encontros teológicos 66

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encontros teológicos 66
Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC
Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC
ISSN 1415-4471
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FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARA
FACULDADE CATÓLICA DE SANTA CATARINA – FACASC
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Encontros Teológicos. Revista da Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC
e do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, n. 66, Florianópolis, 2013.
Quadrimestral ISSN 1415-4471
I. Instituto Teológico de Santa Catarina
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ENCONTROS TEOLÓGICOS
Revista quadrimestral fundada em 1986
Diretor: Elias Wolff
Editor: Vitor Galdino Feller
Redator: Ney Brasil Pereira
Conselho Editorial:
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Domingos Nandi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
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Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa.
Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisadores e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o
objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de
informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais.
Sumário
Editorial ....................................................................................................... A Campanha da Fraternidade de 2014 – Fraternidade e Tráfico Humano
Luiz Carlos Dias.......................................................................................................
O que tem preço e o que tem dignidade: Desafios da Campanha da Fraternidade da Igreja Católica sobre Tráfico Humano (2014)
Roberto Marinucci e Rosita Milesi...........................................................................
Onde está teu irmão? (Gn 4,9): Aproximação bíblico-teológica ao tráfico
de pessoas
Élio Estanislau Gasda..............................................................................................
Presença da Igreja na Cidade e Evangelização das Culturas Urbanas: Horizonte e Compromisso na Igreja Latino-americana e Caribenha
Vitor Hugo Mendes...................................................................................................
O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva – Parte I: Da
Emergência do Homem até Jesus
Rosendo A. Yunes......................................................................................................
O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva – Parte II:
De Jesus até o Presente
Rosendo A. Yunes......................................................................................................
Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
Luís Stadelmann, SJ..................................................................................................
O Concílio de Trento no caminho da Igreja – 450 anos
José Artulino Besen...................................................................................................
Sobre o Judaísmo – Cátedra do Pensamento Judeu – Universidade Monteàvila, Caracas, Venezuela
Luís Moreno Gomez..................................................................................................
A primavera da Igreja
7
11
25
45
61
81
99
121
149
159
Enzo Bianchi.............................................................................................................
171
Recensões .................................................................................................... 175
Crônicas........................................................................................................ 199
Índice Geral 2013.......................................................................................... 203
(Faça uma cópia, caso não queira recortar esta página da revista!)
Editorial
Como é sabido, a Quaresma é um tempo forte de oração e ação, de
penitência e caridade, de conversão e missão. É um tempo privilegiado
para aprofundamento de nossos compromissos com o projeto do Reino,
que se expressa nas ações em defesa e promoção de todas as formas
de vida no planeta, sobretudo a vida humana; tempo de conversão aos
valores do Evangelho da “vida em abundância” (Jo 10,10); tempo de
fortalecimento do nosso discipulado de Jesus Cristo.
Nesta Quaresma de 2014, a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil nos convida a focalizarmos a “Fraternidade e Tráfico Humano”,
tema da Campanha da Fraternidade, levando em conta o lema “É para
a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). Esse tema e lema nos
lembram uma das mais cruéis violências cometidas ao longo da história
da humanidade, o tráfico e a escravidão de pessoas. E nos convidam
a ações proféticas para a denúncia de toda forma de opressão, com
o compromisso de libertar e favorecer para que a vida seja vivida na
liberdade própria dos filhos e filhas de Deus.
A dignidade do ser humano foi ferida de inúmeras formas ao longo
da história da humanidade e mais feridas continuam sendo abertas em
nosso tempo. Não podemos ignorar todas as formas de violência que um
ser humano é capaz de cometer contra outro ser humano, como a discriminação, o preconceito, o cerceamento da liberdade, a fome, o empobrecimento. O tráfico e a escravidão de pessoas são dessas formas cruéis de
violência e injustiça que se praticam na calada da noite e mesmo à luz
do dia. Rouba-se não apenas a liberdade da pessoa, mas seu próprio ser,
apropriando-se dele, tornando-o um objeto de posse, instrumentalizando-o
em função de interesses egoístas, injustos, desumanos.
A Igreja entende essa realidade como uma oposição frontal ao
projeto do Reino que ela crê e anuncia. E sabe que é sua missão lutar
para eliminar as injustiças existentes em nosso mundo. Não é apenas
um debate teológico-pastoral. Decorre do compromisso com o Reino de
Deus que exige uma postura profética para recuperar na pessoa a sua
imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26-27), resgatá-la em sua dignidade, promovê-la em sua liberdade. Trata-se de lutar contra o pecado
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
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Editorial
social que gera as estruturas de pecado e a violência institucionalizada
no mundo atual.
No Brasil, a CNBB tem assumido essa missão por uma ação
evangelizadora fortemente profética e libertadora. As Pastorais Sociais
e as Campanhas da Fraternidade são expressões disso, como mostra
o compromisso da Comissão Pastoral da Terra, pela erradicação do
trabalho escravo nas áreas rurais do país, principalmente mediante a
Campanha “De Olho aberto para Não Virar Escravo”, realizada desde 1997; o Setor da Mobilidade Humana da CNBB, com as diferentes
pastorais que o compõem, bem como o Serviço Pastoral dos Migrantes,
também atuam em defesa dos numerosos trabalhadores migrantes, nacionais ou estrangeiros, que são reduzidos a condições análogas à de
escravos ou são traficados, sobretudo em centros urbanos; a Rede “Um
grito pela vida” que, desde 2001, integra a Vida Religiosa Consagrada
no Brasil no enfrentamento ao Tráfico de Pessoas; a Pastoral da Mulher
Marginalizada, que há décadas busca “ser presença solidária, profética
e evangélica junto à mulher em situação de prostituição, construindo
relações humanas e humanizadoras”; o Grupo de Trabalho de Combate
ao Trabalho Escravo, da CNBB (2009) e, o Grupo de Trabalho para
o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (2010). Esses exemplos, entre
inúmeros outros, são expressões do empenho da Igreja por combater
todas as formas de opressão e de injustiça social.
Como fazemos todos os anos, a revista Encontros Teológicos
quer dar a sua contribuição para a reflexão, ação e oração sobre a
Campanha da Fraternidade-2014. Luis Carlos Dias apresenta o “tema,
lema e objetivos da CF 2014”; Roberto Marinucci e Rosita Milesi
refletem sobre “O que tem preço e o que tem dignidade – Desafios da
Campanha da Fraternidade da Igreja Católica sobre Tráfico Humano
(2014)”; Élio Estanislau Gasda repete a questão bíblica “Onde está
teu irmão? (Gn 4,9) – Aproximação bíblico-teológico ao tráfico de
pessoas”. Dada a complexidade do fenômeno urbano, que exige sempre o aprofundamento da reflexão, Vitor Hugo analisa “A Presença da
Igreja na Cidade e Evangelização das Culturas Urbanas – Horizonte
e compromisso na Igreja latino-americana e caribenha”. Não diretamente ligado ao tema da CF 2014, mas certamente contribuindo para
seu aprofundamento, apresentamos, em duas partes, um amplo estudo
de Rosendo Yunes sobre “O significado do Reino de Deus à luz de uma
teoria evolutiva: da emergência do homem até Jesus, e de Jesus até
o tempo presente.” Segue um estudo de Luís Stadelmann sobre três
8
Encontros Teológicos nº 66
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Editorial
“Salmos de protesto”. José Artulino Besen, aproveitando a passagem
dos 450 anos do encerramento do Concílio de Trento, mostra a relevância desse Concílio “no caminho da Igreja”. Luís Moreno-Gomez
apresenta-nos uma reflexão sobre o Judaísmo. Ainda, Enzo Bianchi
faz breve mas instigante comentário sobre a recente Exortação do
papa Francisco, “Evangelii Gaudium”. Concluem o número, como
de costume, recensões e crônicas.
Esperamos que este número de Encontros Teológicos fortaleça a
consciência e a ação dos leitores em projetos de libertação. Trata-se de
aproximar-se evangelicamente das pessoas, encarnar-se solidariamente
em suas situações. É uma proximidade de serviço à recuperação da vida
de quem tem sua vida diminuída por situações injustas, à recuperação
do ser de quem é roubado em seu ser, à recuperação da humanidade
de quem é desumanizado. Tal negatividade não é própria da pessoa,
mas lhe é imposta injustamente. Ser cristão e ser Igreja é penetrar nas
“periferias existenciais” de nossa sociedade e recuperar dignidade das
pessoas que ali se encontram, sobretudo as que sofrem situações de tráfico e de escravidão. Elas precisam ser reconstituídas em sua dignidade
e liberdade, como seres humanos e como filhos e filhas de Deus. Nisso
consiste viver a CF 2014.
Elias Wolff
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
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Resumo: A Campanha da Fraternidade de 2014 abordará o tráfico humano,
um crime contra a humanidade que desafia a civilização atual no início do
século XXI. O presente artigo procura explicitar a perspectiva da CF perante
esta grave situação. Tendo como referência o texto-base, serão apresentadas
algumas motivações: a noção de tráfico humano e suas principais modalidades;
a gravidade desta situação que atenta contra a dignidade humana e os direitos
fundamentais dos filhos e filhas de Deus, bem como alguns elementos bíblicoteológicos. Por fim, a proposta de enfrentamento desta cruel realidade que exige
a convergência de forças de diferentes atores.
Abstract: A Campanha da Fraternidade de 2014 deals with an excruciating
problem of the marketing of human beings, reducing a person to mere commodities for lucrative aims. Since the past until this century trading human beings in
flesh and blood as well as single pieces of dismembered bodies are for sale to
be purchased by interested costumers among almost all continents. The basic
of the campaign within the Church in Brazil is being analyzed in an all embracing functional perspective regarding the main and focused most of all on the
aggression of human dignity and the fundamental human rights, with special
emphasis on the personal excellence as children of God in the light of selected
texts from the Bible. The last chapter provides detailed suggestions for further
clarifications and practical operations.
A Campanha da Fraternidade de 2014
– Fraternidade e Tráfico Humano
Luiz Carlos Dias*
*
O autor é Presbítero da diocese de São João da Boa Vista, SP, e Secretário executivo
das Campanhas da Fraternidade e Evangelização da CNBB.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013, p. 11-24.
A Campanha da Fraternidade de 2014 – Fraternidade e Tráfico Humano
Introdução
O tráfico humano é uma atividade criminosa que comercializa
seres humanos ou seus órgãos. Em pleno século vinte e um, testemunhamos esta prática que desconstrói o outro como pessoa humana e o torna
mero objeto de comércio e lucro, mediante uma rede complexa, cujos
tentáculos se estendem por todos os cantos do planeta e dos países. Esta
atividade que atinge a dignidade da vida humana e atenta contra direitos
hoje consagrados e tidos como inalienáveis, deve levar-nos a refletir
seriamente acerca das suas causas.
As situações de tráfico humano que envolvem milhões de pessoas
no mundo, praticamente invisíveis à visão da maioria das pessoas, revelam ao menos duas coisas. Primeiro, a sociedade atual está adaptada
ao descarte de certas categorias de vida, o que anestesia as consciências
e gera certo conformismo com situações como a do tráfico humano.1 O
Papa Francisco tem apontado para esta tendência atual constantemente.
A segunda, o modo de vida individualista num contexto de profundas
mudanças e de economia baseada na eficiência e competição, implica
em distanciamento crescente entre as pessoas e arrefece a noção de que
somos todos irmãos e irmãs, necessária para o cultivo de atitudes de fraternidade, solidariedade e inconformidade com injustiças que acometem
nossos semelhantes.
A Campanha da Fraternidade, que em seu texto-base apresenta vários elementos para se conhecer a realidade do tráfico humano,
quer fundamentalmente, contribuir para o enfrentamento desse tráfico,
relembrando a necessidade de aprofundarmos os laços fraternos e de
corresponsabilidade. O presente artigo seguirá a estrutura desenvolvida
no mencionado texto-base.
A escolha do tema: Fraternidade e Tráfico Humano
Alguns critérios nortearam essa escolha. O primeiro, decorre da
própria fé cristã cujo centro é o mistério pascal de Jesus Cristo. Este
evento é tão importante, que a liturgia da Igreja propõe uma caminhada
de quarenta dias de preparação para a sua celebração, visando a conversão
do coração e da mentalidade dos fiéis. Isso, para que suas práticas sejam
1
12
CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2011-2015.
Edições CNBB, Brasília, D.F. 2011. n. 12.
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Ano 28 / número 3 / 2013
Luiz Carlos Dias
condizentes com as de discípulos(as) missionários(as) do Senhor que
vence todos os males. No entanto, a conversão não é proposta individual.
A mudança desejada pelo gesto humilde do Filho de Deus que se entrega
na pior das mortes daquela época, tem uma amplitude que abarca todas
as situações de pecado, as quais impõem sofrimento e morte aos que
Deus adotou como filhos e filhas em seu Filho.
A Igreja Católica no Brasil, por meio deste projeto evangelizador,
a Campanha da Fraternidade, tem feito ecoar esse convite à conversão
nas suas comunidades, para além de suas fronteiras, com a proposição
de um tema pertinente ao tempo e contexto vivido por nossa sociedade.
Tal é o caso do tráfico humano.
Em segundo lugar, o tema tráfico humano requer uma resposta
rápida de toda a sociedade. Esta prática criminosa é uma grave violação
dos direitos das pessoas em situação de tráfico, as quais são exploradas
ao extremo com requintes de crueldade e mesmo mortas. Além disso,
este crime tem crescido de forma assustadora, a ponto de ser listado entre
os três maiores crimes organizados do planeta.
Em terceiro, é situação que afeta toda a sociedade e não apenas
as pessoas vitimadas pelas ações dos traficantes. Isso quer dizer que não
estamos diante de um fato que se refere apenas a traficantes, a traficados
e à polícia. É um crime contra a humanidade, ninguém pode permanecer
com a consciência tranquila com ações como essa em nossa sociedade.
O Papa Francisco tem-nos alertado para o perigo de nos rendermos a
um estilo de vida em que “não cuidamos nem guardamos aquilo que
Deus criou para todos, e já não somos capazes de nos guardar uns aos
outros.”2
Por fim, este gigantesco crime, com uma teia imensa de tráfico
humano que perpassa as sociedades de quase todos os países do mundo
e atuante em todos os estados do nosso país, ainda permanece como que
invisível, aos olhos de muitas pessoas de boa fé. Diante disso, o enfrentamento do tráfico humano não pode ser postergado, e uma ação com
a capilaridade da Campanha da Fraternidade pode representar grande
contributo.
2
PAPA FRANCISCO. Homilia em Lampeduza. Itália, 08/07/2013, In Texto Base CF
2014. p. 99-102.
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A Campanha da Fraternidade de 2014 – Fraternidade e Tráfico Humano
O objetivo geral da CF 2014
“Identificar as práticas de tráfico humano em suas várias formas e
denunciá-lo como violação da dignidade e da liberdade humanas, mobilizando os cristãos e a sociedade brasileira para erradicar esse mal,
com vistas ao resgate da vida dos filhos e filhas de Deus.”3
A conceituação do tráfico humano
Nos dicionários, o verbo “traficar” é sinônimo de comercializar,
mercadejar, e o uso aponta para atividades clandestinas e ilícitas. Esta
ação de traficar, ligado ao adjetivo “humano”, designa uma prática das
mais repugnantes que um ser humano possa desenvolver, a de tratar seu
semelhante como um mero objeto de venda e lucro.
Portanto, o crime de tráfico humano consiste em comercializar
pessoas com a finalidade de explorá-las e alcançar ganhos. O Protocolo
de Palermo4 apresenta três elementos para a definição do tráfico humano:
os atos próprios, os meios e a finalidade. Quanto aos atos mais comuns,
podemos elencar: recrutamento, transporte, transferência, alojamento;
os meios normalmente empregados são: ameaça, uso da força, formas
de coação, rapto, fraude, engano, abuso em situação de vulnerabilidade,
retenção de documentos, entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade
sobre outra, até o aprisionamento; a finalidade principal é a exploração
das pessoas traficadas em atividades que lhes são impostas. Quando
esses elementos são verificados em determinada situação, configurase a atividade de tráfico humano. Essa constatação torna irrelevante o
consentimento da pessoa em situação de tráfico.
O Protocolo de Palermo é a referência utilizada pela maioria dos
países. É o Protocolo Adicional formulado na “Convenção Contra o Crime Organizado Transnacional”, realizada na cidade de Palermo, Itália,
em 1999. Esse evento abordou temas relativos à prevenção, à repressão
e à punição dessa modalidade de crime. A ONU adotou essa Convenção
no ano 2000 e seu Protocolo está em vigor em âmbito internacional desde
14
3
CNBB. Texto Base CF 2014. Edições CNBB, Brasília, D.F. 2013. p. 8.
4
Idem. n. 69.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Luiz Carlos Dias
2003. O Governo do Brasil o promulgou em 12 de Março de 2004, pelo
Decreto nº 5.017.5
O Tráfico Humano, atentado contra a dignidade
humana
O Papa Francisco, no início de seu pontificado, classificou o tráfico humano como uma atividade ignóbil, uma vergonha para as nossas
sociedades que se dizem civilizadas.6 No tráfico humano as pessoas
traficadas são tratadas como meros objetos, com as quais os traficantes
pretendem obter lucro. Este crime é listado entre os mais lucrativos,
juntamente com o tráfico de drogas e de armas.
Os criminosos exploram ao extremo as pessoas em situação de
tráfico em atividades contra a vontade delas. Em muitos casos perdem
o direito de ir e vir, têm os documentos retidos, são sujeitadas a viver
em condições sub-humanas. Para as pessoas que caem nas garras deste
crime é muito difícil conseguir livrar-se, pois os criminosos usam de
ameaças e violências que podem se estender aos familiares; além disso,
os que fogem, são muitas vezes perseguidos e mortos. Não é exagero
dizer que o tráfico humano é uma versão atual das antigas escravidões,
porém, ainda mais cruel.
Com tais práticas, o tráfico humano aniquila a dignidade humana,
ao fazer do ser humano, do seu corpo e de seus órgãos, meras mercadorias para ganhos financeiros. Esta situação de injustiça e morte denigre
a todos na sociedade. Pessoas de boa vontade não podem permanecer
com a consciência tranquila, enquanto irmãos e irmãs são submetidos a
tamanha crueldade. “Onde está teu irmão? A voz do seu sangue clama
até Mim, diz o Senhor Deus (Gn 4,9-11). Esta não é uma pergunta posta
a outrem; é uma pergunta posta a mim, a você, a cada um de nós.”7
As principais formas do tráfico humano
O tráfico humano para a finalidade de exploração laboral é a modalidade em que ele mais atua. É entendida como “qualquer trabalho que
5
Idem. nn. 70-72.
6
Idem. n. 7.
7
PAPA FRANCISCO. Homilia em Lampeduza, Itália. 08/07/2013.
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A Campanha da Fraternidade de 2014 – Fraternidade e Tráfico Humano
não reúna as mínimas condições necessárias para garantir os direitos do
trabalhador, ou seja, cerceie sua liberdade, avilte a sua dignidade, sujeiteo a condições degradantes, inclusive em relação ao meio ambiente de
trabalho.”8 A OIT afirma serem 14,2 milhões as pessoas nessa situação de
exploração em todo o mundo.9 Na última década, o Brasil registrou casos
de trabalho em condições análogas às de escravo em todos os Estados, no
campo e nas cidades, inclusive de imigrantes, sobretudo de bolivianos e
peruanos. Nessa modalidade, os traficados são homens (95%).10
Para a exploração sexual: pessoas são traficadas para a prostituição,
pornografia, turismo sexual, indústria do entretenimento, internet. Nessa
modalidade, 80% das pessoas traficadas são mulheres, mas tem aumentado o número de jovens do sexo masculino nos registros deste tipo de
tráfico.11 O Brasil é um dos alvos preferidos para esta modalidade12.
Para a remoção de órgãos13: é um mercado que procura explorar
situações desesperadas de doentes que podem pagar por órgão em boas
condições, e de pessoas sadias que podem dispor de determinado órgão,
em situação financeira difícil. Há notícias de cadáveres encontrados sem
seus órgãos vitais, mas o caso mais notório apurado no país ocorreu em
2000, que ligava Pernambuco à África do Sul.14
Para a adoção de crianças e adolescentes: Os dados relativos a
essa modalidade deixam muito a desejar. No entanto, o crime movimenta crianças em todo o mundo. Para exemplificar, na década de oitenta,
saíram do Brasil em torno de 20 mil crianças para adoção, das quais a
Comissão Parlamentar de Inquérito do tráfico humano detectou inúmeros
processos com fraudes.15
8
9
BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Manual de Combate ao Trabalho em
Condições análogas às de escravo. Brasília: TEM, 2011, p. 12.
CNBB. Texto Base CF 2014. Edições CNBB, Brasília, D.F. 2013, n. 12.
10
11
16
Idem. n. 15.
Idem. n. 16.
12
Cf. SIQUEIRA, P., QUINTEIRO, M., (Org.). TRÁFICO DE PE$$OAS. Ed. Ideias e
Letras. São Paulo, S. P., 2013. p. 43.
13
A “Declaração de Istambul sobre Tráfico de Órgãos e Turismo de Transplante”, de
2008, define esta prática. Cf. SIQUEIRA, P., QUINTEIRO, M., (Org.). TRÁFICO DE
PE$$OAS. p. 46 – 47.
14
CNBB. Texto Base CF 2014. n. 17.
15
Idem. n. 18.
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Luiz Carlos Dias
Também há casos de tráfico de meninos, adolescentes e rapazes
para a exploração sexual e de mulheres para casamento, no qual ela é
explorada em estafantes horas no negócio do marido, ou por ele obrigada
a se prostituir para aumentar a renda da casa.16 As modalidades citadas
apontam para um crime multifacetado, altamente lucrativo, silencioso,
de baixíssimo custo e de poucos riscos aos traficantes, em que a vítima
tem a sua dignidade aniquilada.17
Algumas características do tráfico humano
Dados da ONU afirmam que as atividades deste crime lucram mais
de trinta bilhões de dólares anuais, ganhos do tráfico que atinge milhões de
pessoas.18 É um crime muito bem organizado, com elos independentes, o
que dificulta as investigações. O tráfico humano ocorre por rotas nacionais
e internacionais que conduzem as vítimas para destinos internos.
Em 2012, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes
(UNODC) identificou 241 rotas no Brasil, 110 internas e 131 destinadas
ao tráfico internacional. Outra característica deste crime é a invisibilidade: as estatísticas não correspondem ao volume dessas atividades, pois
as pessoas ou familiares que passaram por situação de tráfico temem as
violentas represálias dos traficantes.
Neste crime, normalmente, existe o aliciamento das vítimas com
falsas promessas de trabalho e condições de vida; o aliciador procura
entrar no rol de relacionamento das vítimas, se apresenta com bom aspecto, articulado, até mesmo na figura de “empresário”; muitas vezes,
quem aceita proposta para “serviços” sexuais, não sabe da exploração
intensa a que será submetida.
A maioria das pessoas em situação de tráfico é oriunda de realidades em que as condições de vida oferecidas carecem dos requisitos básicos
para uma vida segundo sua dignidade. Desse contexto aproveitam-se os
aliciadores para ofertar o que muitos estão a desejar, trabalho e estrutura
adequada para viver. As propostas podem ser para áreas como: enfermagem, acompanhar crianças ou idosos, jogar futebol, atuar como modelo,
exibição cultural como capoeira.
16
Cf. SIQUEIRA, P., QUINTEIRO, M., (Org.). TRÁFICO DE PE$$OAS. p. 53.
17
CNBB. Texto Base CF 2014. n. 3.
18
Idem. n. 11.
Encontros Teológicos nº 66
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17
A Campanha da Fraternidade de 2014 – Fraternidade e Tráfico Humano
Escravidão, preconceito e tráfico humano
Os colonizadores da terra de Santa Cruz “não encontraram dificuldade em assentar o processo de colonização, sob duas formas: a tomada
das terras dos povos indígenas, os quais também foram escravizados, e
a exploração da força de trabalho dos negros, traficados do continente
africano.”19 Na segunda metade do século XVI, ocorreu o apogeu da
escravidão indígena, sobretudo em engenhos de Pernambuco e Bahia,
mesmo com a publicação em 1537 da Bula Sublimis Deus, em que o Papa
Paulo III determinava que os filhos da terra não poderiam ser privados
de seus bens e nem ser escravizados.20
No continente africano também se praticava a escravidão, e os
comerciantes se aproveitaram para estabelecer um tráfico de pessoas
para as Américas, com predominância de homens jovens para o trabalho
e algumas adolescentes, destinadas ao deleite dos senhores. O tráfico
nesse período prestou-se à produção e à exploração sexual. Este processo de colonização gerou desigualdade e marginalização na sociedade
brasileira. Os escravos que conseguiam comprar sua liberdade tinham
poucas oportunidades, eram considerados inferiores aos europeus e seus
descendentes, o que não mudou com a Lei Aurea de 1888.
A situação ainda se agravou com uma teoria vinda de centros acadêmicos da Europa que condenava a miscigenação racial. Segundo essa
teoria, seriam anuladas as qualidades de cada raça e resultariam pessoas
sujeitas aos vícios como: preguiça, luxúria, indolência e outros. Quando
se avaliam pessoas ou grupos humanos com preconceitos como esse, é
mais difícil despertar indignação pela sua situação de miséria e exclusão,
mesmo em se tratando de vítimas do tráfico humano21.
A precarização do trabalho e o tráfico humano
Nas sociedades sob o regime de economia de mercado, a competição do sistema e a obsessiva busca por lucros gera injustiças que exclui
a maioria do acesso aos bens produzidos e relega à marginalização, onde
muitos vivem com carências básicas para uma vida saudável.22 Na raiz
18
19
Idem. n. 58.
20
Idem. n. 57.
21
Idem. n. 61 – 63.
22
Cf. CELAM. Documento de Aparecida. n. 61-62
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Luiz Carlos Dias
dos grandes lucros encontram-se situações de exploração de pessoas. O
fenômeno da precarização das condições de trabalho, com terceirização
e retrocesso de direitos anteriormente assegurados, é consequência dessa
exploração do sistema produtivo.
“A busca do lucro pelo lucro afeta a condição do trabalhador, que tem
força produtiva explorada ao máximo em contexto de extrema competição econômica, visando-se o lucro acima de tudo, e deixando a classe
trabalhadora em condições vulneráveis.”23
Diante disso, aproveitam-se os aliciadores para ofertar o que
muitos estão a desejar, trabalho e boa estrutura para viverem. Assim, de
repente, alguém que se encontra em condições de marginalização, se vê
diante de uma “oportunidade” que pode mudar radicalmente sua história,
no momento sem grandes horizontes. É esta dura realidade que anima
muitos a acreditarem nas falsas promessas que lhe fazem, a deixarem
sua gente e, até sua terra e empreenderem longas viagens em busca da
sonhada melhoria das condições de vida. No entanto, a realidade com a
qual se deparam é bem outra. Quando chegam ao destino, são comunicados da dívida adquirida, têm os documentos apreendidos e obrigados
a atividades forçadas.
As migrações e o tráfico humano
A migração é um dos componentes da vida humana. Atualmente,
com os modernos meios de comunicação e transporte, o número de migrantes tem aumentado enormemente: cerca de 214 milhões de pessoas
ou 3% da população mundial encontram-se em migração.24 É necessária
a distinção entre migrantes que se deslocam por vontade própria e os
refugiados, neste caso a mudança de residência é forçada por conflitos
políticos, situações econômicas, religiosas ou ambientais.
As pessoas que migram, nem sempre são bem acolhidas onde
chegam, e nem encontram facilidades para obter trabalho e boas condições de vida, sobretudo quando em situação irregular. Nessa condição,
as pessoas se tornam vulneráveis ao aliciamento: segundo a OIT, 44%
das vítimas do tráfico humano são aliciadas entre os migrantes.25 E
23
CNBB. Texto Base CF 2014. n. 55.
24
Idem. n. 29.
25
Idem. n. 14.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
19
A Campanha da Fraternidade de 2014 – Fraternidade e Tráfico Humano
muitos migrantes, perante as ameaças advindas da ilegalidade, acabam
se submetendo às explorações dos traficantes.
Este problema se acirra pelo fato de vários países, entre os preferidos dos migrantes, cada vez mais imporem barreiras aos migrantes,
cujo perfil é o de trabalhadores em busca de melhores condições para
viverem e ajudarem os seus, mas com pouca preparação para aquele
mercado de trabalho.
Até recentemente eram cerca de três milhões os brasileiros com
residência fora do país.26 É necessário que os familiares estejam atentos
à situação deles e, se constatarem algum indício de situação de tráfico,
procurem as autoridades competentes. De outro lado, o Brasil, pela força
de sua economia e perfil de uma população de migrantes, tem atraído
muitos estrangeiros. Precisa proporcionar boa acolhida aos irmãos e
irmãs de outros países que aqui aportam para viver e trabalhar. Não
permitir que o tráfico humano explore tais pessoas é responsabilidade
de toda a sociedade.
A iluminação do Novo Testamento e o tráfico humano
“O testemunho judaico da ação de Deus criador na sua história, colocando-se ao lado dos ofendidos em sua dignidade, como na servidão
ou na deportação, e a luta dos profetas pela justiça, são fundamentais
para a compreensão da maneira como Jesus desempenhou seu ministério e sua proposta de liberdade e vida para todos, sobretudo para os
pequeninos. Nesse sentido, é significativa a passagem na qual apresenta
a compreensão que tinha do seu ministério, como um ministério de
libertação (Lc 4,18-19).”27
Jesus amou a cada um de forma concreta, manifestando sua preferência pelos marginalizados e submetidos a explorações na sociedade
daquele tempo. Passou fazendo o bem e libertando os oprimidos dos
males que os afligiam (cf. At 10,38). Jesus ia ao encontro das pessoas,
não era indiferente às suas dores e se mostrava atento ao clamor dos
sofredores. E sua compaixão pelas pessoas não era mero sentimento,
mas reação firme e eficaz diante do sofrimento alheio.28
20
26
Idem. n. 30.
27
Idem. n. 130.
28
Idem. n. 136-140.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Luiz Carlos Dias
Dessa forma, resgatou a dignidade da mulher que na época não
tinha voz na sociedade, acolheu as crianças que não eram consideradas
seres humanos plenamente realizados, e todos os oprimidos por situações
que atentavam contra a sua grandeza de filhos e filhas de Deus. Ao salvar
e libertar as pessoas de seus males, Jesus as resgatava para viverem sua
vocação mais genuína, a liberdade.
Foi para a liberdade que o ser humano foi criado por Deus.29 Os
discípulos missionários de Jesus Cristo não podem permanecer indiferentes a crimes que ofendem este dom divino como o tráfico humano. A
violação da liberdade e da dignidade das pessoas em situação de tráfico,
é ofensa a todos. Pois, “todo cristão é ungido no batismo para ser abolicionista como Jesus, Ungido para proclamar e defender a liberdade e
levar a Boa Notícia da libertação para todas as vítimas da escravidão.
É missão divina!30
O tráfico humano é uma ofensa à Igreja
Em nossa cultura atual, a solidariedade tem perdido espaço para
a “globalização da indiferença”, constantemente denunciada pelo Papa
Francisco. Trata-se da indiferença pelo outro e, gera consciências insensíveis e descompromissadas pelos atingidos por injustiças, como as
decorrentes do tráfico humano. Ninguém pode se achar imune aos males
existentes na sociedade, pois situações que atentam contra a dignidade
de quem quer que seja agridem a cada um e a todas as entidades e organizações da sociedade.
Por isso, a Igreja, com seus discípulos missionários, não pode
ficar alheia ao enfrentamento do tráfico humano: “A Igreja é provocada
a dar uma resposta de amor, por meio dos discípulos missionários, às
situações que atentam contra a dignidade dos pequeninos e injustiçados,
como são as vítimas do tráfico humano. O tráfico humano não é somente
uma questão social, mas, também, eclesial e desafio pastoral.”31
Sobretudo porque a Igreja tem iluminação que lhe permite perceber profundo que a realidade do tráfico humano está radicada em uma
29
Idem. n. 156-157.
30
GASDA. E. E. Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo: Lugar teológico, exigência ética,
missão da Igreja. In Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo (II Seminário Nacional).
Edições CNBB, Brasília, D.F., 2012. p. 30.
31
CNBB. Texto Base CF 2014. 2ª Parte. 3.3.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
21
A Campanha da Fraternidade de 2014 – Fraternidade e Tráfico Humano
grande idolatria: “A ação pela erradicação do tráfico humano é expressão
de uma Igreja consciente da sua missão de servidora do Evangelho. É
uma missão assumida com a consciência de que o alcance da escravidão
vai além dos milhões de vítimas do tráfico humano. A sociedade toda
precisa ser libertada do jugo das estruturas de pecado, enraizadas na
idolatria do dinheiro.”32.
A Igreja e o enfrentamento ao tráfico humano
Primeiramente, é bom frisar que a Igreja Católica no Brasil já conta
com pastorais atuantes na temática, e a CNBB procura articular essas
iniciativas por meio do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Trabalho
Escravo. Em segundo lugar, a proposta de articulação da CF 2014 para a
atuação das comunidades se estrutura a partir dos eixos: conscientização
e prevenção, denúncia, reinserção social e incidência política.33
A conscientização é o primeiro passo, pois para muitos, o crime
de tráfico humano ainda é compreendido como mera lenda. Então, a
percepção desta realidade concreta é o passo necessário para as pessoas
se prevenirem dos engodos dos aliciadores e promoverem ações de
combate a este crime.
A denúncia dos casos de tráfico humano é importante passo para
o seu enfrentamento, pois os registros deste gênero de ocorrências ainda está muito aquém dos atos criminosos estimados; por outro lado, as
denúncias devem ser apresentadas aos órgãos competentes, que disponibilizam centrais de atendimento pelos telefones gratuitos: DISQUE 100
e LIGUE 180 do Governo Federal.
O trabalho de reinserção comunitário-social dos atingidos pelo
tráfico humano é um trabalho precioso, dado que esse crime causa profundas feridas em suas vítimas, as quais, se não forem ajudadas, podem
cair novamente nas mãos dos criminosos do tráfico humano.
Por fim, lembrando que o tráfico humano é propiciado em grande
parte pelas desigualdades sociais e a marginalização de pessoas e grupos, as lutas por melhoria das condições sociais são indispensáveis no
enfrentamento desta realidade que impõe tantos sofrimentos e morte a
irmãos e irmãs.
22
32
Idem. n. 220.
33
Idem. n. 232.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Luiz Carlos Dias
Para as comunidades contribuírem com ações de enfrentamento ao
tráfico na CF 2014, o texto base apresenta várias indicações operativas
nas dimensões estruturantes da ação evangelizadora da Igreja: pessoa,
comunidade e sociedade.34
Conclusão
As vítimas do tráfico humano se inscrevem entre os novos rostos
pobres que a globalização faz emergir, como salientam as Conclusões de
Aparecida.35 O tráfico humano se desenvolve nos rastros de um sistema
econômico que explora e exclui pessoas em nome do lucro.
O processo de reificação (coisificação) pelo qual as vítimas passam, pela crueldade e violência com que são violadas em sua dignidade
e direitos, é um crime que clama aos céus. Diante de situações como
essa, pessoas de boa vontade e sobretudo os discípulos e discípulas
missionárias de Jesus Cristo, não podem permanecer indiferentes. Sobretudo porque, como bem realçou a Conferência de Aparecida, a Igreja
latino-americana deve empenhar-se em advogar pela justiça e defender
os pobres, como os ameaçados em suas vidas pelo tráfico humano.
Desta forma, para a Igreja no Brasil e seus discípulos e discípulas
missionários, “envolver-se efetivamente no enfrentamento do tráfico
humano é premente em sua missão, que exige estar ao lado dos pobres
e sofredores e, sobretudo, dos que sofrem injustiças.”36 O enfrentamento
desta realidade cruel é um passo necessário em vista da edificação de
uma sociedade verdadeiramente humana e fraterna.
Bibliografia
CELAM. Documento de Aparecida.
CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil
2011 – 2015. Edições CNBB, Brasília, D.F. 2011.
CNBB. Texto Base CF 2014. Edições CNBB, Brasília, D.F., 2013.
34
Idem. 3ª Parte: 2.1 - 2.3.
35
CELAM. Documento de Aparecida. n. 402.
36
CNBB. Texto Base CF 2014. n. 263.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
23
A Campanha da Fraternidade de 2014 – Fraternidade e Tráfico Humano
BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Manual de Combate
ao Trabalho em Condições análogas às de escravo. Brasília: TEM,
2011.
GASDA. E. E. Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo: Lugar teológico,
exigência ética, missão da Igreja. In Tráfico de Pessoas e Trabalho
Escravo (II Seminário Nacional). Edições CNBB, Brasília, D.F., 2012.
SIQUEIRA, P., QUINTEIRO, M., (Org.). TRÁFICO DE PE$$OAS.
Ed. Ideias e Letras. São Paulo, S. P., 2013.
Endereço do Autor:
SE/SUL Q 801 Conj. “B”
Cx. Postal 02067 (70259-970)
CEP 70401-900 Brasilia, DF
24
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Resumo: No seu texto, os autores, depois de ressaltarem o aspecto sóciotransformador das Campanhas da Fraternidade, pretendem aprofundar o
tema deste ano: Fraternidade e Tráfico humano. Após breve análise histórica,
focalizam os princípios que orientam a luta contra o Tráfico humano na ótica
cristã e laica, com destaque para a questão da “coisificação” do ser humano
enquanto violação da sua dignidade. Na segunda parte do artigo, abordam alguns
desafios da temática do Tráfico humano, priorizando, antes que a descrição
fenomenológica, os debates relacionados com a compreensão do fenômeno
e seus desafios. Finalmente, na conclusão, apontam alguns dos desafios da
própria CF 2014.
Abstract: Beginning with the analysis of the social aspects of a deep seated
general crisis which affects human beings in the very core of their existence
and personal growth, a new approach provides normative patterns to deal with
a number of issues involved. Most of all, the Christian religion makes available
the data relevant to the theological investigation of the human person and brings
together diverging viewpoints to be envisaged and assembled to create a wider
perspective in order to work out the implications and fulfilling the promise of their
new life. These are the challenges to be faced by the CF 2014.
O que tem preço e o que tem dignidade
Desafios da Campanha da Fraternidade da Igreja
Católica sobre Tráfico Humano (2014)
Roberto Marinucci* e Rosita Milesi**
*
Diretor da Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana – REMHU e pesquisador
do CSEM.
** Diretora do IMDH/Brasília.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013, p. 25-44.
O que tem preço e o que tem dignidade
Desde os anos 60 do século passado, a Igreja Católica Apostólica
Romana1, movida pela renovação do Concilio Vaticano II, promoveu uma
gradativa, mas radical virada pastoral que a levou a priorizar, em sua
missão, a ação sócio-transformadora enquanto resposta diante dos dramas
vividos pelos povos latino-americanos. De repente, nos debates teológico-pastorais, apareceram novas categorias analíticas, como o “pecado
social”, as “estruturas de pecado” ou a “violência institucionalizada”.2
Uma nova consciência eclesial levava, agora, as comunidades cristãs a
interpretar a missionariedade enquanto “diakonia”: a Igreja existe para
servir, e não para ser servida.3 Nesta perspectiva, como sublinha o historiador Riolando Azzi, antes que promover os “direitos de Deus” ou
da “instituição eclesiástica”, as comunidades eclesiais agora começam a
priorizar a defesa dos direitos do ser humano, pois, como dizia o Pai da
Igreja Irineu de Lião, “a Glória de Deus é o ser humano vivente”.
É neste contexto de renovação conciliar e reconfiguração da missão
eclesial que, no começo dos anos 60 do século passado, na cidade de
Natal, no Rio Grande do Norte, um grupo de padres e leigos ligados à
Cáritas Brasileira idealizaram uma Campanha de arrecadação de fundos
para obras sociais, realizada, pela primeira vez, na Quaresma de 1962.
Desta iniciativa surgiu, em 1964, a primeira Campanha da Fraternidade
(CF) em nível nacional, organizada pelo Secretariado Nacional de Ação
Social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Posteriormente, o próprio Secretariado Geral da CNBB assumirá a responsabilidade da CF, com o objetivo de comprometer os cristãos “na busca
do bem comum” e “renovar a consciência da responsabilidade de todos
pela ação da Igreja Católica na evangelização e na promoção humana,
tendo em vista uma sociedade justa e solidária”4.
Embora seja realizada no contexto do Ano Litúrgico católico,
visando, entre outras coisas, desenvolver o espírito quaresmal de conversão e renovação interior em preparação da Páscoa5, a Campanha da
Fraternidade é uma atividade voltada especificamente para a ação sóciotransformadora a partir dos princípios norteadores da ética social católica,
26
1
Daqui para frente, “Igreja Católica”.
2
CELAM. Documento de Medellin. Paz. 1968.
3
Cf. Constituição Gaudium et Spes, 1965, n. 3.
4
CNBB. 14º Plano bienal de atividades do secretariado nacional, 1998-1999. Documento
n. 60, São Paulo: Paulinas, 1998, p. 33.
5
Cf. ibidem.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Roberto Marinucci e Rosita Milesi
em diálogo com outras igrejas6, com membros de outras religiões e,
mais em geral, com todos aqueles que compartilham, de alguma forma,
o engajamento na busca por uma sociedade justa, fraterna, democrática
e solidária. Em outros termos, trata-se de um espaço de diálogo e transformação, em que a Igreja Católica visa especificamente a construção do
bem comum em colaboração com todos os segmentos comprometidos
da sociedade brasileira.
A Campanha da Fraternidade estrutura-se sempre a partir de um
tema específico e um lema. No entanto, o tema escolhido é sempre o ponto
de partida para uma reflexão mais ampla sobre a sociedade brasileira.
Reflete-se sobre a realidade nacional a partir da perspectiva do tema
escolhido. Não seria errado, portanto, afirmar que a CF é sempre uma
análise da conjuntura nacional – e uma ação de transformação dela – a
partir de um determinado foco. O tema escolhido para a Campanha da
Fraternidade de 2014 é “Fraternidade e Tráfico Humano”.
Neste texto iremos aprofundar esse tema, focando, após um breve
aprofundamento histórico, os princípios que orientam a luta contra o
Tráfico Humano na ótica cristã e laical, com destaque pela questão da
coisificação do ser humano enquanto violação de sua dignidade. Na
segunda parte, vamos abordar alguns desafios da temática do Tráfico
Humano, priorizando antes que a descrição fenomenológica, os debates
relacionados com a intelecção do fenômeno e seus desafios. Finalmente, na conclusão, iremos apontar alguns dos desafios da Campanha da
Fraternidade.
1 A Campanha da Fraternidade sobre Tráfico
Humano
O Tema da Campanha da Fraternidade de 2014 é “Fraternidade e
Tráfico Humano”, com o lema “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). É bom frisar que o tema não surgiu do nada, como se, de
repente, a Igreja Católica percebesse a existência dramática de pessoas
traficadas e escravizadas. Trata-se, ao contrário, de uma Campanha fruto
de uma longa caminhada de comprometimento sócio-pastoral.
6
Já ocorreram três Campanhas da Fraternidade de cunho ecumênico, organizadas
pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, CONIC (em 2000, 2005 e 2010).
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
27
O que tem preço e o que tem dignidade
A Comissão Pastoral da Terra, por exemplo, há décadas está engajada na luta pela erradicação do trabalho escravo no país, principalmente
mediante a Campanha “De Olho aberto para Não Virar Escravo”. Essa
campanha, desde 1997, desempenha um importante papel na luta contra
o trabalho escravo em áreas rurais. O Setor da Mobilidade Humana da
CNBB, com as diferentes pastorais que o compõem, e o Serviço Pastoral
dos Migrantes, também atuam em defesa dos numerosos trabalhadores
migrantes, nacionais ou estrangeiros, que são reduzidos a condições
análogas à de escravos ou são traficados, sobretudo em centros urbanos.
Outro exemplo é representado pela Rede “Um grito pela vida”, que
surgiu, desde 2001, por iniciativa de um grupo de religiosos e religiosas,
com o objetivo de ser um espaço de articulação e ação solidária da Vida
Religiosa Consagrada no Brasil, no enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
Finalmente, é importante também sinalizar a contribuição da Pastoral
da Mulher Marginalizada, que há décadas busca “ser presença solidária, profética e evangélica junto à mulher em situação de prostituição,
construindo relações humanas e humanizadoras”.
Cabe lembrar também que, em 2009, foi criado o Grupo de Trabalho de Combate ao Trabalho Escravo da CNBB e, o ano depois, o
Grupo de Trabalho para o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Esses
Grupos de Trabalho, que hoje atuam em conjunto, caracterizam-se como
instâncias de caráter consultivo, visando assessorar os bispos brasileiros
sobre os desafios e as pistas de ação sócio-pastorais para o enfrentamento
ao tráfico humano.7
Estes exemplos atestam como, no âmbito da Igreja Católica,
há décadas, o tráfico de pessoas e o trabalho escravo são objeto de
preocupação sócio-pastoral. Ainda assim, trata-se de iniciativas por
vezes circunscritas a determinadas pastorais, grupos e áreas geográficas
específicos. Nessa perspectiva, a Campanha da Fraternidade de 2014
configura-se como ponto de confluência de uma caminhada de luta e, ao
mesmo tempo, como uma tentativa de ampliar e revigorar as vertentes
de enfrentamento a todo tipo de tráfico humano. Esse enfrentamento
fundamenta-se em princípios antropológicos e valores evangélicos que
analisaremos a seguir.
7
28
Cf. ANDRADE, William César de; MILESI, Rosita. Igreja no Brasil e enfrentamento ao
tráfico de pessoas. Constituição de um grupo de trabalho na CNBB. In: CNBB. Tráfico de
Pessoas e Trabalho Escravo. II Seminário Nacional. Brasília: CNBB, 2012, p. 33-51.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Roberto Marinucci e Rosita Milesi
2 A dignidade inalienável e a coisificação do ser
humano: contribuições cristãs e laicas
O Tráfico Humano é um tema extremamente complexo e multifacetado, pois abrange questões que dizem respeito a migrações internas
e internacionais, promoção e defesa dos direitos humanos, segurança
nacional e luta contra o crime organizado, relações internacionais,
atendimento e proteção de vítimas, instrumentos jurídicos de proteção,
relações de gênero e raça, desenvolvimento humano e cooperação internacional, debates filosófico-antopológicos sobre a dignidade humana,
entre outros.
Essa complexidade se coaduna com a gravidade do fenômeno e
sua abrangência. Sem entrar em mérito a dados estatísticos – geralmente muito precários e finalizados mais a criar um impacto midiático do
que a favorecer uma apropriada compreensão do fenômeno - o Tráfico
Humano, nas suas diferentes vertentes de tráfico para fins de trabalho
forçado, exploração sexual, comércio de órgãos, adoção de crianças,
matrimônios arranjados, recrutamento de crianças soldado, representa,
na atualidade, uma das formas mais hediondas de violação da dignidade
de seres humanos.
Embora, como veremos mais adiante, haja muitos debates e, inclusive, abordagens discordantes sobre alguns aspectos do fenômeno,
não há dúvida de que os casos mais explícitos de mercantilização do ser
humano despertam a generalizada indignação da opinião pública e colidem contra princípios fundamentais da ética cristã. Com efeito, conforme
o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, a pessoa humana, criada “à
imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,26-27), é “única e irrepetível” e
representa “o fim último da sociedade, que é a ela ordenada8. Nesta perspectiva, “em nenhum caso a pessoa humana pode ser instrumentalizada
para fins alheios ao seu mesmo progresso”9.
Chama-se isso – nas palavras de Alfonso García Rubio – de autofinalidade: “a finalidade da pessoa encontra-se nela mesma. A autorealização como ser pessoal é a finalidade básica de todo o seu agir”.
Portanto, “reduzi-la a mero instrumento para outros fins constitui outro
atentado contra a dignidade da pessoa. O ser humano não é um objeto
8
PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
n. 132.
9
Ibidem, n. 133,
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
29
O que tem preço e o que tem dignidade
ou coisa, é uma pessoa valiosa por ela mesma para além de toda instrumentalização ou utilização”10. Portanto, a autonomia e a autofinalidade
são princípios éticos que caracterizam a “dignidade humana” e que levam
a Igreja a lutar “contra todas as escravidões, explorações e manipulações
realizadas em prejuízo dos homens”11. Em sentido contrário, chamamos
de “reificação” ou “coisificação” o processo mediante o qual o ser humano é reduzido a um mero objeto, manipulável, usado e abusado para
finalidades contrárias à sua vontade.
O Magistério Católico, com frequência tem denunciado as consequências necrófilas de todo tipo de coisificação. Assim, por exemplo,
ainda no final do século XIX, na primeira encíclica pontifícia sobre a
questão social, a Rerum Novarum de Leão XIII, em 1891, o bispo de
Roma asseverava que os ricos e os patrões “não devem tratar o operário
como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda
pela do Cristão. (...) O que é vergonhoso e desumano é usar dos homens
como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção
do vigor dos seus braços”.12 Embora não use o termo coisificação, Leão
XIII denuncia a redução do ser humano a “meio de produção”, avaliado
unicamente pela sua capacidade de produtividade – o vigor dos braços
e o lucro que gera.
João Paulo II, noventa anos depois, na encíclica Laborem exercens,
retomará a questão ao enfatizar a diferença entre a dimensão subjetiva e
a dimensão objetiva do trabalho, realçando como a segunda deve sempre estar subordinada à primeira: “o trabalho humano tem um seu valor
ético, o qual, sem meios termos, permanece diretamente ligado ao fato
de aquele que o realiza ser uma pessoa, um sujeito consciente e livre,
isto é, um sujeito que decide de si mesmo”13. A violação ética está na
transformação do sujeito em um mero “objeto de produção”14. Portanto,
infere o bispo de Roma, “o erro do primitivo capitalismo pode repetirse onde quer que o homem seja tratado, de alguma forma, da mesma
maneira que todo o conjunto dos meios materiais de produção, como um
10
11
30
GARCÍA RUBIO, Alfonso. Elementos de antropologia teológica. Salvação cristã: salvos
de quê para quê? Petrópolis: Vozes, 2004, p. 110.
CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. A Doutrina Social da Igreja na
Formação Sacerdotal. Petrópolis: Vozes, 1989, n. 31.
12
LEÃO XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum sobre a condição dos operários, 1891, n.
10 (grifo nosso).
13
JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Laborem Exercens, n. 6.
14
Cf. ibidem, n. 7.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Roberto Marinucci e Rosita Milesi
instrumento e não segundo a verdadeira dignidade do seu trabalho — ou
seja, como sujeito e autor e, por isso mesmo, como verdadeira finalidade
de todo o processo de produção”.15
No caso específico do Brasil, a CNBB, nas últimas diretrizes
da Ação Evangelizadora, embora não trate explicitamente o tema do
Tráfico Humano, enfatiza como parte da missão eclesial o “serviço
da vida plena para todos”, sendo que essa ação implica o “respeito à
dignidade humana”, que exige “tratar o ser humano como fim e não
como meio, respeitando-o em tudo que lhe é próprio: corpo, espírito e
liberdade”16.
Repetimos mais uma vez: a autonomia e a autofinalidade são princípios inalienáveis da dignidade de cada ser humano, que é livre e tem
direito de fazer suas escolhas de vida com vistas à sua autorealização.
Essas afirmações éticas e antropológicas com frequência são compartilhadas também fora do universo cristão. É relevante, nesse sentido,
citar a brilhante reflexão da filósofa Michela Marzano17 que, a partir de
intuições kantianas, desenvolve a distinção entre “o que tem preço” (as
coisas) e “o que tem dignidade” (os seres humanos). Esta distinção traz
duas consequências: “l’indipendenza della dignità di una persona non
solo dal suo status sociale, ma anche dalla sua utilità” e, em segundo
lugar, “l’impossibilità di confrontare la dignità dell’una e la dignità
dell’altra”. Portanto, infere a autora,
a differenza degli oggetti – oggetti il cui prezzo può variare anche notevolmente in funzione della loro utilità e delle fluttuazioni del mercato
–, le persone non hanno prezzo e la loro dignità é “incomparabile”. A
differenza delle cose che, avendo un prezzo quantificabile, sono sempre
rimpiazzabili, le persone hanno una dignità “superiore a qualunque
prezzo” e “mai quantificabile”. Da qui la loro irrimpiazzabilità.18
15
Recentemente, vários documentos eclesiásticos de cunho sócio-pastoral têm destacado a questão do Tráfico Humano. Constitui uma exceção a última encíclica social
de Bento XVI, Caritas in veritate, na qual não há nenhuma referência ao tema do
trabalho forçado e ao tráfico de pessoas. No documento fala-se em “novas formas
de escravidão” (n. 77), mas referindo-se à dependência das drogas.
16
CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil – 2011-2015,
n. 107.
17
MARZANO, Michela. Etica oggi. Fecondazione eterologa, “guerra giusta”, nuova morale
sessuale e altre grandi questioni contemporanee. Trento: Erikson, 2008, p. 98-100.
18
Ibidem, p. 100.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
31
O que tem preço e o que tem dignidade
A dignidade do ser humano não é quantificável, não diminui ou
aumenta em decorrência de fatores externos ou internos. Independentemente de seu status ou utilidade social e, até mesmo, de sua moralidade,
o ser humano é portador de uma dignidade inalienável e única. Não há
pessoas com mais “dignidade humana” que outras. Daqui decorre também
a unicidade de cada ser humano que não pode ser trocado ou substituído
com outro da “mesma dignidade”, assim como fazemos com os objetos
que possuem o mesmo preço. Cada ser humano é único e insubstituível,
pois não é uma coisa, um objeto.
No entanto, não é essa a lógica hegemônica da sociedade contemporânea. Conforme o sociólogo polonês Bauman, vivemos numa
“sociedade de consumidores”, em que se avalia “qualquer pessoa e
qualquer coisa por seu valor como mercadoria”19. As relações de mercado
tornaram-se hegemônicas enquanto parâmetros avaliativos e valorativos
em todos os âmbitos da vida social. O ambiente existencial da sociedade
de consumidores, acrescenta Bauman, “se distingue por uma reconstrução
das relações humanas a partir do padrão, e à semelhança, das relações
entre consumidores e os objetos de consumo”.
Quais as consequências? Numa sociedade em que a inclusão ou
a exclusão são determinadas pela lógica do consumo, os “consumidores
falhos”, aqueles que por diferentes razões não podem ou não conseguem
consumir, se tornam totalmente desnecessários, perigosos e incômodos.
A norma quebrada por estes consumidores falhos, “que os coloca à parte
e os rotula de ‘anormais’, é a da competência ou aptidão ao consumo”20.
É essa aptidão ou competência ao consumo que mede a dignidade do
ser humano. Neste processo de radical coisificação chega-se ao extremo
da auto-mercantilização do ser humano: a vocação sócio-existencial da
pessoa no contexto da atual globalização neoliberal é a busca da própria
“vendabilidade”.
Os membros da sociedade de consumidores são eles mesmos mercadorias de consumo, e é a qualidade de ser mercadoria de consumo que os
torna membros autênticos dessa sociedade. Tornar-se e continuar sendo
uma mercadoria vendável é o mais poderoso motivo de preocupação do
consumidor, mesmo que em geral latente e quase nunca consciente.21
32
19
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadoria.
Rio de Janeiro: Zahar, 207, p. 157.
20
Ibidem, p. 160 (grifo do autor).
21
Ibidem, p. 76.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Roberto Marinucci e Rosita Milesi
Numa sociedade de consumidores, o próprio ser humano busca
o próprio reconhecimento social vendendo a si mesmo ou comprando
produtos que, a seu ver, acrescentam seu próprio valor de mercado. A
dignidade deixa de ser algo inerente à condição humana, assim como
afirmava “antigamente” a Declaração Universal dos Direitos Humanos –
“Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (Art.
I) – para tornar-se uma construção social a partir do consumo, da autoreificação22, da busca pela própria vendabilidade. É uma dignidade in fieri,
em construção, determinada pela aptidão e competência ao consumo.
Outra consequência desse processo é a redução da responsabilidade em relação ao outro: como assevera Bauman, agora, a responsabilidade pelos outros é substituída pela responsabilidade perante si
próprio e pela responsabilidade para consigo mesmo23 (“você deve isso
a si mesmo”, “você merece” etc.). A principal vítima da sociedade de
consumo – e da coisificação do ser humano – é o outro, é a responsabilidade perante o outro.
Enfim, estas sucintas reflexões, a partir de referenciais eclesiásticos
e laicos, visam apenas mostrar como o Tráfico Humano, na sociedade
contemporânea, se configura como ponta de iceberg de uma realidade
em que as relações humanas são viciadas e manipuladas pela lógica do
mercado, sendo a dignidade do ser humano quantificada a partir de seu
valor de uso e de troca. Não se deve estranhar, portanto, se aumentem
hoje os casos de Tráfico Humano, apesar de todos os avanços das últimas décadas em matéria de direitos humanos. Há, na realidade, uma
esquizofrenia de fundo: alimenta-se a desregulamentação do “mercado
total” e, ao mesmo tempo, reprovam-se – pelo menos formalmente – suas
consequências necrófilas, como, por exemplo, o Tráfico Humano.
Mas o que é Tráfico Humano? Em que sentido o Tráfico Humano
representa um processo de despersonalização da pessoa? Qual sua relação com as migrações e o trabalho forçado? Como proteger vítimas que,
com frequência, não se reconhecem como tais? A pessoa é realmente
coisificada no Tráfico Humano? Vamos, a seguir, abordar alguns desafios da temática do Tráfico Humano, priorizando, antes que a descrição
fenomenológica, os debates relacionados com a intelecção do fenômeno
22
Ibidem, p. 79.
23
Ibidem, p. 119.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
33
O que tem preço e o que tem dignidade
e alguns de seus desafios, sempre levando em conta o contexto da Campanha da Fraternidade.
3 O Tráfico Humano: desafios conceituais
e pastorais
No recente documento Acolher Cristo nos refugiados e nas pessoas
deslocadas à força, o Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes e o Pontifício Conselho “Cor Unum” não hesitam em
afirmar que “O tráfico de seres humanos constitui uma ofensa ultrajante
contra a dignidade humana, além de ser uma grave violação dos direitos
humanos fundamentais”. As vítimas – acrescenta o documento – “foram
enganadas a respeito das suas atividades futuras e já não são livres de
decidir a respeito da sua própria vida. Acabam em situações semelhantes
à escravidão ou à servidão, das quais é muito difícil fugir”24.
O Documento refere-se ao tráfico de pessoas enquanto tráfico
para fins de exploração sexual25, para fins de trabalho forçado26, para
recrutamento de crianças-soldados27 e para tráfico de órgãos28. A isso
devemos acrescentar também o tráfico para casamentos arranjados,
adoção de crianças, mendicância forçada e trabalho doméstico29.
Diante desse quadro tão amplo e complexo, o documento define o
fenômeno como “multifacetado”30, reconhecendo assim sua abrangência e complexidade.
Não se deve estranhar, portanto, se no âmbito acadêmico e político
o debate sobre o tema é bastante intenso, pois entram em jogo diferentes
interesses e abordagens ideológicas, inclusive entre os que objetivam
proteger os direitos humanos das vítimas. A seguir vamos aprofundar
três questões relacionadas ao Tráfico Humano que, em nossa opinião, são
34
24
Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes e Pontifício Conselho “Cor
Unum”. Acolher Cristo nos refugiados e nas pessoas deslocadas à força, 2013, n. 52.
25
Cf. ibidem, n. 73.
26
Cf. ibidem, n. 74.
27
Cf. ibidem, n. 75.
28
Cf. ibidem, n. 53.
29
OIT. Uma Aliança Global contra o Trabalho Forçado. Relatório Global do Segmento
da Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho 2005.
Brasília: OIT, 2005, n. 35.
30
Cf. ibidem, n. 53.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Roberto Marinucci e Rosita Milesi
focos prioritários de debates: a relação entre migração e Tráfico Humano,
a questão do consentimento e a questão da escravidão moderna.
3.1 Migração irregular, tráfico de migrantes
e tráfico humano
Uma das principais dificuldades para o enfrentamento do Tráfico
Humano reside na questão conceitual. A noção de tráfico humano não é
unívoca, sendo, por vezes, objeto de equívocos ou mal-entendidos. Nesta
perspectiva é mister elucidar a distinção entre “migração irregular”, “contrabando de pessoas” (smuggling) e “tráfico humano” (trafficking).31
Por migração irregular entendemos o ingresso de migrantes em
outros países de forma administrativamente irregular. Esse deslocamento
é realizado, neste caso, por iniciativa dos próprios migrantes, que agem
por conta própria ou com o auxílio de redes sociais de parentesco ou
amizades. Neste tipo de emigração não há envolvimento de grupos ligados ao crime organizado ou algum tipo de exploração ou coisificação
do migrante. Não há nenhum tipo de “tráfico”.
Por vezes, no entanto, o migrante não tem acesso ao capital social
suficiente para organizar o deslocamento. Sendo assim, deve recorrer
ao auxílio de atravessadores ou grupos organizados que “facilitam” a
entrada irregular no país de destino, com o “objetivo de obter, direta ou
indiretamente, um benefício financeiro ou outro proveito material”.32
Nestes casos estamos diante do assim chamado contrabando de migrantes
(smuggling) que se diferencia da mera migração irregular, pela presença
de grupos organizados que lucram ao facilitar a emigração da pessoa.
No caso de smuggling , não há exploração do migrante e sim cooperação
entre ele e os atravessadores, visando o ingresso administrativamente
irregular no país de destino. É um tipo de tráfico que não produz vítimas,
mas a violação das leis imigratórias do Estado de destino.33
31
Cf. DAUNIS RODRÍGUEZ, Alberto. Sobre la urgente necesidad de una tipificación
autónoma e independiente de la trata de personas. In: InDret, 1, 2010, p. 6-10.
32
Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional e contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima
e Aérea.
33
PEIXOTO, João. Tráfico, contrabando e migração irregular. Os novos contornos da imigração brasileira em Portugal. In: Sociologia – Problemas e Práticas, n. 53, 2007, p. 73.
Encontros Teológicos nº 66
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35
O que tem preço e o que tem dignidade
Há casos, por fim, em que o deslocamento da pessoa está viciado
por uma limitação ou ausência de consentimento por parte do sujeito
migrante. Esse vício de consentimento ocorre pelo recurso, por parte
dos recrutadores, a engano, ameaças, coação ou outras formas de violência ou aproveitando da “situação de vulnerabilidade” da vítima. Além
disso, o objetivo final e real do grupo organizado de cunho criminoso
não é facilitar o deslocamento – como no caso do smuggling – e sim “a
exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração
sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos”34 das vítimas.
Neste caso, conforme o Protocolo de Palermo, estamos diante do assim
chamado trafficking ou tráfico humano. Há três elementos básicos que
o diferencia do smuggling: o deslocamento não é necessariamente internacional; o consentimento da vítima, de fato, é viciado ou ausente; o
objetivo é a exploração da vítima.
Este último é o punctum saliens: “o recrutamento, o transporte,
a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas” são as premissas e as condições para alcançar o real objetivo, que é a exploração
da vítima. Embora haja tipologias diferentes de tráfico humano, a reificação da pessoa enquanto negação de sua autodeterminação e de sua
autofinitude está implícita no vício ou negação do consentimento, em
sua exploração e, sobretudo, na relação instrumental entre o traficante e
a vítima, independentemente do tipo de trabalho ou atividade realizada
por ela. No caso de trafficking, o termo “tráfico” deve ser interpretado
literalmente no sentido de “trato mercantil, negócio, comércio” ou “negócio ilícito”. O tráfico humano visa a mercantilização do ser humano.
O ser humano deixa de possuir uma dignidade “inalienável”, podendo
esta, pois, ser “alienada”, vendida, comprada, explorada e descartada.
É bom ressaltar que, não raramente, pode haver uma relação entre
smuggling e trafficking, no sentido de que pessoas que procuram redes
que facilitam o ingresso em outro país acabam, por engano, ou outros
fatores, ficando envolvidas em redes de tráfico humano. Há também a
possibilidade de que algumas violações ocorram também no contrabando de migrantes, mas, neste caso, o ato criminoso não está no ato de
facilitar a entrada em outro país em si, mas na maneira específica em
34
36
Cf. Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade
Organizada Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de
Pessoas, em especial Mulheres e Crianças
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Roberto Marinucci e Rosita Milesi
que é realizado. Nas palavras de João Peixoto, há “inúmeras áreas de
indeterminação existentes” entre os dois fenômenos.35
Mesmo assim, de um ponto de vista conceitual, a distinção entre
migração irregular, smuggling e trafficking , é fundamental a fim de evitar que em nome da luta contra o tráfico humano sejam implementadas
políticas imigratórias cada vez mais restritivas, numa ótica “trafiquista”36
que confunde propositalmente o ato de recrutar para fins de exploração
da vítima, com a mera facilitação da entrada no país estrangeiro.37 Essas
políticas, implementadas, por vezes, em nome dos direitos humanos,
não raramente deixam as vítimas em situação de maior vulnerabilidade
e à mercê dos traficantes, além de fomentar uma “criminalização” dos
migrantes irregulares, que não raramente atinge também as vítimas de
tráfico, como demonstra amplamente Jamala Kampedoo38.
Estamos de acordo com Mansur Dias e Sprandel quando afirmam
que o tema do tráfico, nesta perspectiva, tornou-se prioritário na agenda
política de países desenvolvidos preocupados em
endossar a construção do problema, vinculando-o a um ‘outro’ (estrangeiro) potencialmente bárbaro e criminoso, que surge como uma
constante ameaça a ser defendida e evitada. Assim, o tema do tráfico
de pessoas acabaria traduzindo-se em mais um aparado conceitual que
aproxima a conduta de estrangeiros de práticas criminosas, reforçando
35
PEIXOTO, op. cit., p. 73. Para um ulterior esclarecimento da relação entre trafficking e smuggling vale a pena apresentar uma tipologia de tráfico de pessoas e de
migrantes a partir do trabalho de Giuseppe Paccione (La tratta di persone nel Diritto
Internazionale. Disponível em: www.diritto.net) que elaborou 4 diferentes categorias:
1) pessoas que com recursos próprios – ou talvez também com o apoio de familiares
– procuram e pagam os atravessadores (smuggling “puro”); pessoas que procuram os
atravessadores, mas não tendo recursos suficientes para pagar os custos da viagem,
são obrigadas a pagar mediante algum tipo de exploração trabalhista temporária na
terra de chegada (smuggling/trafficking); pessoas que aceitam conscientemente ser
exploradas para fugir de situações degradantes em que vivem na terra de origem
(trafficking/smuggling); pessoas raptadas ou enganadas pelos atravessadores e
traficadas visando a sistemática exploração e a obtenção de algum ganho financeiro
(trafficking “puro”).
36
MESTRE I MESTRE, Ruth. La protección cuando se trata de trata em el Estado
español. In: REMHU, ano XIX, n. 37, jul./dez. 2011, p. 32.
37
O fato de que a questão do Tráfico de Migrantes – e de Pessoas – tenha sido abordado num Protocolo, no interior da Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional, atesta como a abordagem esteja focada na segurança
nacional, antes que na proteção das vítimas e promoção dos direitos humanos.
38
KAMPEDOO, Jamala. Mudando o debate sobre tráfico de mulheres. In: Cadernos
Pagu, v. 25, 2005, p. 67-69.
Encontros Teológicos nº 66
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37
O que tem preço e o que tem dignidade
visões xenófobas e reatualizando representações coloniais e neocoloniais
com relação aos imigrantes.39
Com estas afirmações não queremos relativizar ou menosprezar a
gravidade do fenômeno do Tráfico Humano no contexto contemporâneo,
mas apenas realçar como, por vezes, atrás da luta pela promoção e defesa
dos direitos humanos de migrantes, podem se esconder outros objetivos
e intenções nem sempre nobres. Além disso, distinguir o trafficking e o
smuggling é importante a fim de evitar que a Campanha da Fraternidade
de 2014 possa, indiretamente, gerar algum tipo de suspeita em relação
aos migrantes econômicos e, dessa maneira, alimentar a assim chamada
“criminalização das migrações”: as políticas de enfrentamento ao Tráfico
Humano em nenhum momento podem passar pela negação do direito
à migração40.
3.2 A questão do consentimento
Outro elemento fonte de discussões entre juristas, policymakers,
pesquisadores e membros da sociedade civil, é a questão do consentimento. Como vimos, um elemento essencial que caracteriza o crime de
Tráfico Humano é o vício ou a ausência de consentimento por parte da
vítima. O recrutamento implica sempre o engano, a coação ou alguma
forma de violência ou, então, o aproveitamento de uma situação de vulnerabilidade da vítima. No entanto, com bastante frequência, sobretudo
no que diz respeito à questão do Tráfico para fins de exploração sexual,
muitas vítimas não se autocompreendem como tais.41 Isso gera não poucas
dificuldades em termos de enfrentamento: como promover os direitos de
alguém que não reconhece ter seus direitos violados?
38
39
MANSUR DIAS, Guilherme; SPRANDEL, Márcia Anita. A CPI do Tráfico de Pessoas
no contexto do enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil. In: CNBB. Tráfico de
Pessoas e Trabalho Escravo. II Seminário Nacional. Brasília: CNBB, 2012, p. 96.
Jamala Kampedoo também faz questão de enfatizar a dimensão marcadamente
ideológica da abordagem ao tráfico de pessoas: “a questão do tráfico de pessoas,
abordagem internacional dominante da questão do tráfico, identifica principalmente
gangues internacionais originadas no estrangeiro e países ‘fontes’ como os principais culpados, criminosos e beneficiários no negócio do tráfico. Dado que a maioria
dos países ‘de destino’ são supostamente os países ocidentais pós-industriais, e as
nações mais pobres são chamadas de países ‘fonte’, essa distinção cria uma divisão
internacional em torno de quem é definido como vilão ou ‘do mal’” (op. cit., p. 71.).
40
Cf. PAULO VI. Motu proprio Pastoralis Migratorum Cura, 1969, n. 7.
41
Cf. PISCITELLI, Adriana. Procurando vítimas do tráfico de pessoas: brasileiras na
indústria do sexo na Espanha. In: REMHU, ano XIX, n. 37, jul./dez. 2011, p. 11-26.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Roberto Marinucci e Rosita Milesi
O Protocolo de Palermo tenta solucionar esse impasse sustentando
que “se tiver sido utilizado” (art. 13b) um meio ilícito (ameaça, uso da
força, coação etc.), o consentimento da vítima é irrelevante. Esta afirmação, no entanto, implica indiretamente que o consentimento se torna
“relevante” ou determinante aos fins de comprovar o tráfico caso não
haja como demonstrar a utilização de meios ilícitos.42 É esta a posição
dos defensores dos direitos dos trabalhadores sexuais (GAATW/Human
Right Caucus), que advogam a distinção entre “prostituição forçada” ou
“prostituição infantil”, dois crimes de tráfico de pessoa, e a “prostituição
voluntária de adultos”, que, ao contrário, é parte do direito de liberdade
sexual de cada ser humano.43 Os partidários dessa visão defendem a
necessidade de respeitar as escolhas individuais das pessoas e alegam
que, na realidade, em nome do enfrentamento ao tráfico humano,
muitas vezes, busca-se promover políticas de cunho abolicionista ou,
mais simplesmente, agenciar restrições das políticas imigratórias. O
enfrentamento ao tráfico deveria passar, ao contrário, pela luta contra
as condições degradantes de vida e trabalho a que são submetidas as
trabalhadoras do sexo.44
No entanto, há também outros enfoques. A Coalizão Contra o
Tráfico de Pessoas (CATW) considera a prostituição, em si, como uma
violação de direitos humanos, partindo do pressuposto de que nenhum
adulto daria seu consentimento para essa prática a não ser que seja
submetido a algum meio ilícito ou devido à sua vulnerabilidade social.
A expressão “recorrendo.... à situação de vulnerabilidade”, utilizada
no Protocolo de Palermo, demonstraria – de acordo com esta abordagem – como o consentimento, na realidade, nunca é totalmente “livre”,
sendo sempre condicionado por fatores pessoais, inter-pessoais e sócioestruturais. Assim sendo, com frequência, a pobreza, o desemprego, as
dificuldades de mobilidade social, estariam na origem de escolhas voluntárias, mas não necessariamente “livres”. A pessoa envolvida, em outras
palavras, estaria fazendo uma escolha a partir de um determinado – e,
muitas vezes, limitado – leque de oportunidades, sendo que o aumento
desse leque poderia provocar uma radical mudança de sua opção inicial.
42
Cf. FRISSO, Giovanna Maria. Especialmente mulheres: reflexões sobre a autonomia
individual e caracterização do tráfico de pessoas. In: I Prêmio Libertas: Enfrentamento
ao tráfico de pessoas. Série Pesquisas e Estudos. Secretaria Nacional de Justiça;
Ministério da Justiça, Brasília, 2010, p. 196.
43
Cf. KAMPEDOO, op. cit., p. 62.
44
Ibidem.
Encontros Teológicos nº 66
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39
O que tem preço e o que tem dignidade
Nesta ótica, a “retórica do consentimento”45 acabaria legitimando formas
de exploração de mulheres, sobretudo daquelas em situação de maior
vulnerabilidade.46
Como se colocar diante dessa questão no contexto da Campanha da
Fraternidade? É bom ressaltar que o tema da CF/2014 não é a prostituição
em si, mas a mercantilização de seres humanos. A questão dacoisiificação
diz respeito principalmente à relação entre o empregador e os funcionários – sobretudo no caso de trabalho forçado – ou da relação entre o
traficante e suas vítimas – no caso de tráfico de órgãos ou casamentos
forçados, etc., independentemente do tipo de exploração, seja ela a prostituição, o trabalho forçado, o casamento arranjado ou outras. Portanto,
repetimos, o foco da Campanha não pode ser a prostituição que, aliás,
pode ocorrer também sem a existência de “tráfico” ou “deslocamento”.
Consequentemente, as questões do machismo ou do patriarcalismo,
embora importantes e desafiadoras, também não podem constituir o
eixo da reflexão, inclusive porque, na atualidade, a indústria do sexo
abrange também homens e travestis.47 O que é importante ressaltar, no
entanto, é que diferentes concepções da prostituição condicionam de
forma determinante a formulação de políticas públicas do Tráfico para
fins de exploração sexual.
Finalmente, acreditamos também não deva ser demasiado enfatizada a questão do consentimento, no sentido de que há numerosos
casos em que o consentimento das vítimas não existe e muitos outros
em que é bastante simples demonstrar a utilização de meios Ilícitos para
obtê-lo. Ainda assim, sobretudo de um ponto de vista teórico, a questão
merece um amplo debate, pois diz respeito a concepções filosóficas do
ser humano e de seus direitos.48
40
45
MARZANO, op. cit., p. 93-98.
46
Cabe sublinhar, no entanto, que, para os defensores dos trabalhadores sexuais, é a
posição abolicionista que acaba violando os direitos das mulheres pobres, na medida
em que nega-lhes – por estarem “em situação de vulnerabilidade” – a possibilidade
de escolher a prostituição como caminho de emancipação e mobilidade social.
47
PISCITELLI, Adriana; TEIXEIRA, Flavia. Passi che risuonano sui marciapiedi: la
migrazione delle transgender brasiliane verso l’Italia. In: Mondi Migranti, n. 1, 2010,
Franco Angeli, p. 135-151.
48
Cabe lembrar que também no interior da Teologia Moral católica o tema do consentimento e de suas limitações ou condicionamentos históricos é objeto de debates,
pois o “pecado” implica sempre a “plena consciência e deliberado consentimento” da
pessoa.
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3.3 Trabalho forçado
O Tráfico Humano está frequentemente relacionado com situações
de trabalho forçado. Não há, na realidade, identificação entre os dois termos. Em princípio, pode haver formas de trabalho forçado sem “tráfico”
ou “deslocamento” – por exemplo, no caso da escravidão familiar – e pode
haver tráfico sem trabalho forçado – por exemplo, no tráfico para adoção ou
remoção de órgãos. A OIT reconhece que as expressões “trabalho forçado”,
“escravidão moderna” ou “práticas análogas à escravidão, são utilizadas
nos diferentes contextos com conotações muito diferentes, desde práticas
de trabalho forçado em regimes totalitários até “condições precárias e
insalubres de trabalho, inclusive de salários muito baixos”49.
A definição da OIT de trabalho forçado inclui dois aspectos:
trabalho ou serviço imposto sob ameaça de punição e executado involuntariamente. A ameaça pode se concretizar de diferentes formas. Entre
elas há algumas que dizem respeito especificamente aos migrantes, que
fazemos questão de destacar: “ameaças de denúncia da vítima à polícia
ou a autoridades de imigração, quando sua situação de emprego é ilegal,
ou denúncia a dirigentes locais no caso de jovens forçadas a se prostituírem em cidades distantes”.50 Quanto à liberdade de escolha, a OIT
ressalta os condicionamentos e as pressões externas que podem viciar o
consentimento que, nestes casos, é considerado irrelevante.51
Cabe lembrar que o Protocolo de Palermo utiliza três expressões:
“escravidão ou práticas análogas à escravidão, e a servidão” (art. 3a). Por
“escravidão”, conforme a OIT, entende-se o domínio total sobre outra
pessoa ou grupos de pessoas; trata-se de um direito de propriedade, sem
duração fixa e, por vezes, com direito de descendência.52 A “servidão”
diz respeito a um trabalhador que “presta serviço em condições de
servidão decorrente de considerações econômicas, principalmente por
endividamento por empréstimo ou adiantamento. Quando a dívida é a
causa matriz da servidão, a implicação é de que o trabalhador (ou dependentes ou herdeiros) fica preso a um determinado credor, por período
determinado ou indeterminado, até a quitação da dívida”53. No Brasil,
49
OIT, op. cit., n. 11.
50
Ibidem, n. 14.
51
Ibidem, n. 15.
52
Cf. ibidem, n. 26.
53
OIT. Não ao trabalho forçado. Relatório Global do Segmento da Declaração da OIT
relativa a Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, 2001, n. 86.
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41
O que tem preço e o que tem dignidade
a dívida está frequentemente relacionada com gastos com transportes,
alimentação, alojamento e equipamentos de trabalho. Finalmente, por
“práticas análogas à escravidão” entende-se, de forma ampla, situações
em que pessoas são obrigadas a trabalhar para outros.
A OIT enfatiza também que “o trabalho forçado não pode simplesmente ser equiparado a baixos salários ou a más condições de trabalho.
Tampouco cobre situações de mera necessidade econômica, por exemplo,
quando um trabalhador não tem condições de deixar um posto de trabalho devido à escassez, real ou suposta, de alternativas de emprego”54.
Para ser trabalho escravo, deve haver uma “grave violação de direitos e
restrição da liberdade humana”. Enfim, “toda forma de trabalho escravo
é trabalho degradante, mas a recíproca nem sempre é verdadeira. O que
diferencia um conceito do outro é a liberdade”55.
No entanto, visando responder a desafios específicos da situação
nacional, o Código Penal brasileiro tem ampliado as fronteiras semânticas do termo tradicional, incluindo no conceito de “redução à condição
análoga à de escravo”, além do trabalho forçado, a jornada exaustiva de
trabalho, as condições degradantes de trabalho e a restrição da locomoção em razão da dívida contraída com o empregador ou preposto. Desta
forma, o conceito de condições análogas à de escravo incluem não apenas
a restrição da liberdade, assim como na definição da OIT, mas também
as condições indignas de trabalho.56 Numa sociedade que tolera cada vez
mais a exploração dos trabalhadores, bem como a redução dos direitos
trabalhistas em nome dos cortes necessários para equilibrar os orçamentos públicos, transformou-se a exploração trabalhista ou as condições
degradantes de trabalho em “condição análoga à escravidão”, a fim de
proteger as tradicionais conquistas sociais dos trabalhadores.
Pode-se celebrar essa escolha como uma conquista dos trabalhadores
ou, então, lastimá-la como símbolo do fracasso da proteção de seus direitos.
Seja como for, neste caso também é importante salientar que a Campanha
da Fraternidade não tem como foco específico a busca de trabalho decente
para cada pessoa. O tráfico humano, embora muitas vezes tenha como meta
final a exploração trabalhista, não se identifica com isso, pois abrange “o
recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento
42
54
OIT, 2005, n. 13.
55
OIT. Trabalho escravo no Brasil no século XXI, p. 11.
56
VASCONCELOS, Marcia; BOLZON, Andréa. Trabalho forçado, Tráfico de pessoas e
gênero: algumas reflexões. In: Cadernos Pagu, Trânsitos, 31, 2008, p. 77.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Roberto Marinucci e Rosita Milesi
de pessoas”. Além disso, a meta final nem sempre é o trabalho – como no
caso de tráfico pra fins de extração e comércio de órgãos ou o tráfico de
crianças para a adoção –, ou não é um “trabalho” em sua acepção tradicional – como no caso de casamentos arranjados ou das crianças soldados
–, ou não é um trabalho considerado lícito – como no caso da prostituição
em numerosos países ou o tráfico para a mendicância. O que caracteriza
o “ser traficado”, repetimos mais uma vez, antes que o tipo de exploração,
é a relação de coisificação entre traficante e sua vítima.
Ainda assim, é mister salientar que a abordagem a partir do trabalho
forçado, embora limitada, contribui por enfatizar a negação do livre-arbítrio,
da liberdade de locomoção, enfim, da autonomia individual do trabalhador.
A luta contra o trabalho forçado, nesse sentido, se torna um importante
caminho para a erradicação de várias formas de Tráfico Humano.
Perspectivas
Antes que descrever fenomenologicamente os casos de Tráfico
Humano, com o risco, sempre latente, de gerar estereótipos, nossa
intenção foi detectar os nós que, por vezes, dificultam a intelecção do
fenômeno, a identificação das vítimas e o enfrentamento do tráfico. Essas dificuldades não podem e não devem reduzir o engajamento contra
todo tipo de mercantilização do ser humano. Portanto, sem entrar na
complexidade dos debates supracitados, é importante sublinhar como, na
ótica cristã, a lógica evangélica é contrariada todas as vezes que ocorre
uma despersonalização do ser humano, por confundi-lo com um objeto
manipulável, alienável e descartável. Homens e mulheres, assim, perdem
a própria dignidade de filhos de Deus (cf. Gn 1,26-27), sua autonomia
e autofinalidade. O ser humano se torna um mero instrumento cuja dignidade é determinada pelo valor de uso e de troca.
Embora não ofereça soluções técnicas para problemas sociais57, o
cristianismo pode aportar outras importantes contribuições em termos de
enfrentamento do tráfico. No caso específico do Tráfico Humano, uma
categoria teológica extremamente rica é aquela da idolatria. Na Sagrada
Escritura, o ídolo é uma realidade humana, criatural, a que seres humanos
atribuem conotações divinas. Qualquer coisa pode ser idolatrada, desde
que lhe seja negada sua realidade histórica e contingente. A idolatria não
é algo inerente a um objeto e sim algo que o sujeito atribui a um objeto.
57
Cf. JOÃO PAULO II. Sollicitudo rei socialis, n. 41.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
43
O que tem preço e o que tem dignidade
Uma vez idolatrada, a realidade histórica em questão se torna como
um Deus para a pessoa. Tudo será relativizado e sacrificado ao altar do
ídolo. Mas, diferentemente do Deus que oferece a vida em abundância
(cf. Jo 10,10), os ídolos exigem e reproduzem dinâmicas necrófilas.
Nas palavras de Élio Gasda, “a idolatria aparece como pecado gerador
de outros pecados”58, e por isso, “na raiz do tráfico de seres humanos e
do trabalho escravo, está a idolatria”59. De fato, a pessoa que escraviza
é uma pessoa “escrava de um ídolo”. A pessoa que adora – no sentido
teológico do termo – o “Deus dinheiro” (cf Lc 16,13) relativizará tudo,
inclusive a dignidade de outros seres humanos, para centuplicar a posse
da própria divindade; a pessoa que adora o “Deus poder” passará por
cima dos direitos fundamentais da pessoa a fim de provar a inebriante
sensação de domínio sobre o outro; a pessoa que adora o “Deus das Leis
do livre mercado”, ou “das Leis imigratórias restritivas”, se tornará um
perfeito legalista mesmo quando essas leis não são feitas para o (bem
do) ser humano; a pessoa que idolatra a própria Pátria será levada a menosprezar os estrangeiros, considerando-os passíveis de qualquer tipo de
violação. Enfim, a pessoa que nega a dignidade do outro é a pessoa que
se tornou escrava de ídolos. Por isso, como lembra Élio Gasda, os bispos latino-americanos reunidos em Puebla podiam afirmar: “a adoração
do não-adorável, e a absolutização do relativo, leva à violação do mais
íntimo da pessoa humana. Eis a palavra libertadora por excelência: ‘ao
Senhor Deus adorarás e só a Ele darás culto’ (Mt 4,10)”.60
A Campanha da Fraternidade de 2014 sobre Tráfico Humano
pode aportar importantes contribuições para o enfrentamento ao tráfico
humano, em termos legislativos, políticos, jurídicos. No entanto, sua
principal finalidade é conscientizar a população brasileira sobre a abissal
diferença entre “o que tem preço” e “o que tem dignidade”.
E-mails dos Autores:
[email protected]
...
44
58
GASDA, Élio. Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo: lugar teológico, exigência ética,
missão da Igreja. In: CNBB. Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo. II Seminário
Nacional. Brasília: CNBB, 2012, p. 19.
59
Ibidem, p. 18-19.
60
Documento de Puebla,n. 493. Apud GASDA, op. cit., p. 20.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Resumo: O artigo oferece uma abordagem bíblico-teológica sobre o tráfico de
pessoas. Contém duas partes. Na primeira, busca compreender sua existência
na Bíblia em seus diversos aspectos: contexto histórico cultural, legislação e o
impacto da novidade cristã. Partindo da realidade atual, a segunda parte apresenta o esforço do Magistério Pontifício em atualizar a mensagem bíblica em
relação ao tráfico de pessoas.
Palavras-chave: Sagrada Escritura, Tráfico de pessoas, Magistério, Dignidade
Humana.
Abstract: The present article provides a biblical and theological approach to
delve in the problem of human beings or parts thereof being offered for sale on
the market as common commodities. Needless to say, the price is very high and
the terms for delivery are stipulated by the rules of demand and offer. There is
however a new approach to the problem which transcends the marketing of
commodities by attributing the highest value to human beings created by God.
The second parte of this article takes into account the Church Documents issued
by the Holy See in an attempt to bring new light by analyzing the texts dealing
with the marketing of human beings.
Key words: Holy Scripture, Marketing of human beings, Magisterium, Human
Dignity.
Onde está teu irmão? (Gn 4,9)
Aproximação bíblico-teológica
ao tráfico de pessoas
Élio Estanislau Gasda*
*
Bacharel em Filosofia e Doutor em Teologia (Universidade Pontifícia Comillas-Madrid).
Professor de Ética Teológica na Graduação e na Pós-graduação (Mestrado e Doutorado) na FAJE (Faculdade Jesuíta). Diretor da Coleção Theologica FAJE; Editor
Associado da Revista Perspectiva Teológica; Investigador na área de Teologia da
Práxis Cristã; membro dos Grupos de Pesquisa: Vida Religiosa: problemática atual
e Teologia; Grupo de estudos sobre Doutrina Social da Igreja da Organização das
Universidades Católicas de América Latina e Espanha (ODUCAL) e da Conferencia
Episcopal Latino americana (CELAM). Livros publicados: Fe cristiana y sentido del
trabajo (San Pablo/Madri, 2011); Trabalho e Capitalismo Global (Paulinas, 2011);
Sobre a Palavra de Deus: hermenêutica bíblica e teologia fundamental (Vozes, 2012).
Possui diversos artigos em revistas especializadas em Ética, Bioética e Teologia.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013, p. 45-60.
Onde está teu irmão? (Gn 4,9): aproximação bíblico-teológica ao tráfico de pessoas
Contexto bíblico
A compra e venda de pessoas, geralmente para fins escravagistas,
era um fenômeno arraigado na estrutura social e econômica do Antigo
Oriente e do mundo Greco-romano. Prática mercantil milenar, em princípio
estava associada às guerras. O guerreiro vencido se tornava propriedade
do vencedor, que podia matá-lo, escravizá-lo ou vendê-lo. Além da guerra, as pessoas que contraíam dívidas impagáveis poderiam vender-se a si
mesmas, ou a algum membro da família, como forma de pagamento. Na
Grécia antiga, por exemplo, praticava-se o rapto, especialmente de crianças.
Quando abandonadas pelos pais, podiam ser recolhidas e vendidas.
O escravo passa a ser considerado como mercadoria a partir do
momento em que a agricultura alcança um estágio mais avançado de
produção. A privatização da propriedade da terra por parte das famílias
ricas dissolveu os pequenos aldeamentos de camponeses, que passaram
a se tornar cativos das famílias abastadas.
O fenômeno da compra e venda de pessoas na Bíblia faz parte
deste contexto histórico1. Era uma prática que perpassa toda a Sagrada
Escritura, do livro do Gênesis ao Apocalipse. O povo de Israel bíblico
atravessa distintas fases no seu desenvolvimento. As duas formas de organização que marcaram sua história ajudam a situar melhor essa realidade:
a sociedade familiar-tribal e sociedade monárquico-tributária.
A primeira formação engloba o período dos Patriarcas e a permanência em Canaã depois da travessia pelo deserto. Suas genealogias, próprias
de sociedades tribais, retratam um conjunto de unidades familiares que
levavam uma vida nômade dedicada à pecuária (Gn 26,19s.) e à agricultura
(Gen 26,12), nas montanhas da Palestina e nas zonas desérticas2. Não há
um poder central, seja político, militar ou religioso, e toda a economia
está orientada para a sobrevivência da unidade familiar3. Após a saída do
Egito, houve uma tentativa de construir um modelo social baseado em uma
espécie de liga de tribos após a chegada em Canaã (cfr. Js 13-19)4.
46
1
Cf. ALONSO, Carlos Fontella. La esclavitud a través de la Biblia. Madrid: CSIC, 1986.
2
Cf. ALBERTZ, Rainer. Historia de la religión de Israel en tiempos del Antiguo Testamento. 1. De los comienzos hasta el final de la monarquía. Madrid: Trotta, 1999;
BRIGHT, John. A história de Israel. São Paulo: Paulus, 2003.
3
SICRE, José Luiz. Con los pobres de la tierra. La justicia social en los profetas. Madrid:
Cristiandad, 1984, p. 50-51.
4
Na terminologia tradicional trata-se de clãs e tribos. O clã é formado pela união de
várias famílias, liderado por um ancião, cujos membros se consideram parentes,
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Élio Estanislau Gasda
Nesse período patriarcal-tribal registra-se a presença de escravos
(cfr. Gn 12,5). É pertinente perguntar se Agar, uma das personagens centrais do relato de Abraão, era uma escrava nascida em casa ou adquirida
a preço de dinheiro (cfr. Gn 17,26-27). O relato do patriarca Jacó oferece
duas situações: a primeira descreve que suas duas esposas, Raquel e
Léa, foram compradas de seu sogro Labão (cfr. Gn 31,15). A segunda
relata como José, seu filho mais novo, foi negociado por comerciantes
madianitas por vinte siclos após ter sido abandonado pelos irmãos numa
cisterna vazia (cfr. Gn 37,13-30). Mesmo que o comércio de pessoas
fosse comum durante esse período, o escravo era visto mais como mão
de obra para trabalho agrícola e pastoril e não tanto como mercadoria.
Afinal, todos aqueles que estavam subordinados aos patriarcas, como os
membros da família, também eram obrigados a trabalhar.
A sociedade monárquico-tributária inaugura uma nova fase da
história de Israel que atingirá seu apogeu com Salomão. Com a consolidação do Estado e a formação de um império, a administração pública
torna-se burocrática e onerosa, exigindo o aumento de funcionários
a serviço do Estado (cfr. 1Rs 4,2-20) e da ostentação da corte (2Sm
19,36; 1Rs 5,2-3; 10,4-5; 10,23; 11,21). Há uma intensificação do setor
da construção: edificação do templo (1Rs 6,38), do palácio real (1Rs
7,1), de bases militares, de infraestrutura urbana (1Rs 9,15s), frota de
navios mercantes (1 Rs 9,26-28) e santuários pagãos (1Rs 11,1-8). Os
prisioneiros de guerra (cfr. 2Sm 12,31) eram insuficientes como mão de
obra para tantos projetos. Em consequência, Salomão impõe o trabalho
obrigatório (corvéia) aos próprios Israelitas. O expediente da compra de
pessoas nas feiras de escravos é uma hipótese a considerar.
A expansão da política pró-aristocracia reforça a classe dos grandes
proprietários, dos funcionários, militares e grandes comerciantes. Seu
luxo (Is 1,21-23; 3,13-15; 5,1-7.8; 5,23) era mantido à custa da exploração impiedosa das famílias camponesas despojadas de suas terras (cfr.
Mq 2,1s), obrigadas a venderem seus filhos para honrarem suas dívidas.
Israel é uma sociedade dividida em classes sociais e permanecerá assim
nos períodos posteriores da dominação persa, helênica e romana5. Nesse
invocam um mesmo antepassado, as festas e cultos religiosos são comuns (1Sm 20,
6.29). A união de vários clãs dá lugar à tribo, organização fundada na proximidade
física e em interesses comuns.
5
Para esse período, veja-se o estudo: STEGEMANN, Ekkehard; STEGEMANN, Wolfgang. Historia social do protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades
de Cristo no mundo mediterrâneo. São Paulo: Paulus, 2004; JEREMÍAS, Joaquim.
Encontros Teológicos nº 66
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47
Onde está teu irmão? (Gn 4,9): aproximação bíblico-teológica ao tráfico de pessoas
contexto, as narrativas bíblicas apresentam as duas formas mais comuns
geradoras da prática em questão: a guerra e o endividamento.
Prisioneiros de guerra
A forma mais antiga e mais comum de aquisição de escravos era a
conquista. Com a derrota militar, centenas de homens, mulheres e crianças
eram reduzidas à servidão ou a mercadoria nas feiras de escravos. Um mal
menor, pois outra prática consistia em passar a fio de espada todos os inimigos vencidos (Nm 31,7-35; Dt 20,10-18; 1Rs 20,39). O livro dos Números
relata a partilha do botim de guerra contra Madian, onde as virgens foram
repartidas entre os soldados e a comunidade (cfr. Nm 31,15-18).
O livro de Judite interpreta o tráfico de mulheres causado pela
guerra como castigo divino: “Entregastes vossas mulheres à pilhagem,
vossas filhas ao cativeiro” (Jt 9,4). O livro de Ester ilustra como os haréns
dos reis eram abastecidos com o tráfico de mulheres (cfr. Ester 2,1-8).
Durante a dominação grega, comerciantes de escravos acompanhavam
o exército de Antíoco Epífanes para comprar os prisioneiros de guerra
(cfr. 1Mc 3,41; 2Mc 8,10-11). Também o Cronista alude ao mercado de
escravos (cfr.1 Cron. 2,34,35; 2 Cron. 2,34).
Endividados
A exposição das famílias pobres a tributos era solucionada através
de empréstimos. A insolvência podia levar à servidão temporária ou à
venda de algum familiar. Israelitas empobrecidos pediam empréstimo a
israelitas mais abastados. No ato do empréstimo, era celebrado algum tipo
de contrato, que podia ser verbal, com gesto simbólico de hipoteca, ou por
escrito6. Era lícito vender-se como escravo ou vender algum familiar (cfr.
Ex 21,5-6; Lv 25,39,47; Dt 15,12-17). Geralmente se vendiam crianças e
mulheres para pagar dívidas (cfr. 2Rs 4,1; Ne 5,1-5; Ex 21,7; Ne 5,5; 2Rs
Jerusalén en tiempos de Jesús. Madrid: Cristiandad, 1977; GONZÁLEZ ECHEGARRAY, José. Los Herodes. Una dinastía real de los tiempos de Jesús. Estella: Verbo
Divino, 2007.
6
48
Um gesto simbólico conhecido era a entrega da sandália (cfr. Rt 4,7; Sl 60,10) ou do
cajado (Gn 38) como hipoteca pela dívida assumida. O elemento simbólico não cobria o
valor da dívida, mas era indicativo para outros bens daquele que solicitava o empréstimo.
Esses ‘bens’ podiam ser filhos, filhas, a mulher, animais e a própria terra.
Encontros Teológicos nº 66
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Élio Estanislau Gasda
4,1)7. Após o exílio (Segundo Templo), os pobres afundavam na miséria,
enquanto os ricos se aproveitavam da expansão comercial. As famílias
chegavam a hipotecar seus próprios filhos, além de seus bens, a fim de
obter empréstimos para pagar os impostos (cfr. Ne 5,1-5).
Legislação
Os códigos legais de Israel recolhem as normas tradicionais do
contexto histórico e cultural, contendo leis econômicas, morais e penais
próprias do seu entorno. Sua legislação contempla a prática da compra
e venda de seres humanos. A lei não roubar (Ex 20,15), por exemplo,
que inclui a proibição do roubo de pessoas, é inapelável: “Quem cometer um rapto – quer o homem tenha sido vendido ou ainda se encontre
prisioneiro em suas mãos – será morto” (Ex 21,16; cfr. Dt 24,7). Uma
prisioneira tomada por esposa por um judeu podia ser repudiada, mas
não vendida (Dt 21,10-14). Um pai pode vender sua filha (Ex 21,7). Um
soldado israelita pode comprar uma mulher estrangeira para casar-se com
ela, mas não pode vendê-la a um terceiro (Dt 21,10-14).
O fato de que maioria dos escravos em Israel era resultado do pagamento de dívidas e não da compra de pessoas, explica sua legislação a
respeito. O Dia de Sábado (Ex 20,8-11; Dt 5,12-15) prescreve o descanso
também para o escravo. O Ano Sabático é ainda mais explícito (cfr. Ex
23,10-11; Lv 25,1-7; Dt 15,1-18): “Ao fim dos sete anos farás remissão
(...). Quando teu irmão hebreu ou irmã hebreia se vender a ti, seis anos te
servirá, mas no sétimo ano o deixarás ir livre. E, quando o deixares ir livre,
não o despedirás de mãos vazias”. O escravo pode retornar à sua família
(Lv 25,10). Contudo, alguns optavam por continuar sendo escravos pelo
fato de não terem condições nem meios de viver em liberdade. Não sendo
possível o resgate das dívidas em sete anos (Lev 25, 47-55), era possível
prorroga-la por mais cinquenta anos (Ano Jubilar: cfr. Lev 25,8-55).
O contexto histórico não permitia que Israel se opusesse frontalmente à prática de compra e venda de pessoas. Porém, sua legislação é
mais humana no sentido de garantir direitos excepcionais aos escravos
7
O preço dos escravos variava muito (Ex 21,32; Lv 27,3-7) e podia ser calculado segundo o número de anos que ainda restavam até o Ano do Jubileu. Havendo desacordo,
apelava-se ao sacerdote (Lv 27,8). Quarenta siclos era o preço médio que se pagava
por um escravo (cfr. 1Mc 8,11).
Encontros Teológicos nº 66
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49
Onde está teu irmão? (Gn 4,9): aproximação bíblico-teológica ao tráfico de pessoas
mesmo sem abolir a escravidão8. Isso também explica a impotência dos
profetas em denunciar o tráfico de pessoas. Apesar de contexto tão desfavorável, tal prática não passou despercebida por eles, como em Amós:
“Vendem o justo por dinheiro e o indigente por um par de sandálias” (2,6);
e Joel: “Lançaram sortes sobre o meu povo; deram um menino por uma
meretriz, e venderam uma menina por vinho, para beberem” (4,3).
Novidade Cristã
A origem do cristianismo se dá num contexto de existência da
escravidão e do tráfico de pessoas. Jesus e as primeiras comunidades
não só convivem com a existência de pessoas escravizadas (Mt 24,45ss;
Lc 19,11ss; 1Cor 7,20-22; 12.13; Cl 4,1), mas as acolhem em seu seio
(1Tm 6,1-2; Ef 6,5; Cl 3,22; At 20,4)9.
No início da era cristã, o povo judeu sentia o jugo do sistema
tributário (cf. Mc 12,13-17,22,15-22; Lc 18,12; Mt 17,22-27; Rm 13,67) levando a um considerável aumento da pobreza (Mt 20,1-15). A elite
governante, a “casa de Herodes”, a aristocracia das famílias sacerdotais, a
cúpula militar, os donos do poder, da riqueza e administradores da justiça
exploravam o trabalho da multidão: agricultores, mineiros, pescadores,
pequenos comerciantes, feirantes, curtidores, carpinteiros, tecelões,
sapateiros, jardineiros, diaristas e escravos10.
O cristianismo nasce no interior de uma sociedade cuja economia repousa no regime de escravidão sustentado em boa parte por um
mercado de pessoas. A expansão militar romana fez com que a maioria
dos escravos procedesse do mercado de escravos. Isso explica porque
os primeiros cristãos não conseguiram opor-se de imediato ao tráfico de
pessoas e ao regime escravocrata.
O Evangelho é anunciado aos pobres, aos humilhados e despojados
de sua humanidade. Também os escravos formavam parte das multidões
50
8
De VAUX, Roland. Instituciones del Antiguo Testamento. Barcelona: Herder, 1964,
p.124-137. O Levítico divide os escravos em duas categorias: Os israelitas podiam ser
escravizados temporariamente e com brandura. Os estrangeiros, geralmente adquiridos
através do tráfico humano e pela guerra, podiam ser escravizados indefinidamente.
9
JEREMIAS, Joaquim. Jerusalém no tempo de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1986,
p. 420-454.
10
THEISSEN, Gerard. Sociologia do movimento de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1989.
MATEOS, Juan; CAMACHO, Fernando. Jesus e a sociedade de seu tempo. São
Paulo: Paulinas, 1992.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Élio Estanislau Gasda
que acorriam a Jesus em busca de algum tipo de consolo e de libertação. A
mensagem do Reino é essencialmente uma mensagem de libertação oferecida
a todos os oprimidos, sem nenhum tipo de exceção: “... libertar os cativos e
publicar o ano da graça do Senhor” (Lc 4,18-19). As pessoas que haviam
perdido sua liberdade e foram reduzidas à escravidão estão contadas entre as
que esperam a libertação (cfr. Mt 5,1-12; Mc 10,21-25; Lc 6,20). Os escravos,
os despojados e endividados estão misturados no meio das multidões que
acorrem para ver e escutar o Profeta da Galileia. Jesus, ao identificar-se com
todos aqueles que esperam a libertação, vai além dos gestos e palavras (cfr.
Mt 25,31-46), pois quer ser reconhecido naquele que sofre.
Servo como figura do Messias
No helenismo da aurora da era cristã, chamar alguém de escravo é
uma forma de insulto. A maioria dos escravos dos gregos e romanos são
escravos-mercadoria, que são comprados e vendidos nos mercados como se
fossem animais ou objetos. Sua única obrigação consiste em cumprir todas as
vontades do seu senhor (cf. Lc 17,7-10). São figura de alguém desprovido de
personalidade e autonomia11. O fundador do novo Israel, o Messias prometido pelos profetas, se coloca no lugar vital dos despojados e dos serviçais12:
“Cristo Jesus esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se
semelhante aos homens” (Flp 2,5-7). A melhor tradução deste despojamento
encontra-se na descrição do gesto do lava-pés (Jo 13,1-17). Jesus escolhe o
serviço do escravo (1Sm 25,40-42) para ensinar o maior dos mandamentos
(Jo 13,34). “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir
e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10,45).
Esta figura de Jesus despojado como servo (At 3,13.26) fundamenta a diakonia que caracteriza as comunidades de seus seguidores:
“Todo aquele que quiser entre vós fazer-se grande seja vosso serviçal;
e, qualquer que entre vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo” (Mt
20, 26). Os escritos apostólicos mostram o lugar ocupado pelos escravos
nas comunidades primitivas. Não havia discriminação. Escravos e livres
recebiam os mesmos sacramentos.
11
Cf. OSIEK, Christian. Slavery in the second Testament World: Biblical Theology Bulletin,
22 (1992), 174-179.
12
SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador: a historia de Jesus de Nazaré. 2. ed. Petropolis:
Vozes, 1996, p. 46ss.
Encontros Teológicos nº 66
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Onde está teu irmão? (Gn 4,9): aproximação bíblico-teológica ao tráfico de pessoas
Trata-se de uma imagem que fala do Mistério de Deus, pois Jesus,
o Cristo, “é a imagem do Deus invisível” (Col 1,15), pois “Quem me vê,
vê o Pai” (Jo 14,9). Tal imagem é tão simbólica como a do “Bom Pastor”,
da “Videira com seus ramos” e a do “Cordeiro de Deus”. A revelação de
Deus atinge sua plenitude num crucificado que antes havia sido vendido
por 30 moedas de prata. Esse crucificado é a Palavra de Deus diante da
realidade do tráfico de pessoas. É o próprio Deus crucificado neles.
O Apocalipse contém uma referência significativa. No Império
Romano, o mercado de seres humanos era uma das principais fontes de
sustentação de uma economia baseada na escravatura. Interromper ou
impedir seu funcionamento levava á crise social. A sua interrupção é
apontada como uma das causas da queda do Império: “Caiu, caiu Babilônia, a grande” (Ap 18,2): Os mercadores da terra choram e se enlutam
por ela, porque ninguém mais compra seus carregamentos de ouro, prata,
linho e púrpura... vinho e óleo, flor de farinha e trigo, bois e ovelhas,
cavalos e carros, escravos e prisioneiros” (Ap 18,11-13).
A especificidade da mensagem bíblica
A Sagrada Escritura deu uma importante contribuição ao reconhecimento do princípio da dignidade humana. Atualmente, o tráfico de
pessoas é considerado uma das formas mais brutais de violência contra a
pessoa humana. A compreensão deste conceito resulta de uma evolução
histórica da luta dos povos por igualdade, liberdade e direitos13. Entre as
diversas linhas de pensamento que contribuíram para essa consciência
encontra-se a tradição judaico-cristã14.
O valor da dignidade humana e a sacralidade da vida estão presentes desde as origens do processo da Revelação. Toda pessoa humana
é uma criatura divina (cf. Sl 139,14-18), pois Deus criou o homem e a
mulher à sua imagem e semelhança (cfr. Gn 1,26-27). Cada pessoa é um
símbolo de Deus e como tal deve ser tratado pelos demais. Se toda pessoa
tem a forma de Deus, traficar com seres humanos é uma ofensa ao Criador.
Para um cristão, este crime também é uma agressão a Cristo que, com a
Sua encarnação, uniu-se de algum modo a todos os seres humanos. Nos
rostos sofredores reflete-se o rosto do Senhor (cfr. Mt 25,31-46).
52
13
COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo,
SP: Saraiva, 1999. p. 11-30.
14
BOUZON, Emanuel. O Código de Hamurabi. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Élio Estanislau Gasda
A identidade de Deus (cfr. Ex 3,14) manifesta-se na libertação da
escravidão e na promessa de uma terra sem exploradores e explorados
(cfr. Ex 3,7-8). A Páscoa é um memorial da libertação da casa da escravidão (Ex 20,2, Dt 5,6 Lv 19,36; 22,33). Portanto, o tráfico de pessoas é
uma violação gravíssima da liberdade, um sinal privilegiado da imagem
divina em cada ser humano. A liberdade é um aspecto crucial da redenção
culminada em Cristo. O evangelho pode ser resumido em uma palavra:
liberdade. Cruz e ressurreição inauguram um novo tempo, o tempo da
verdadeira liberdade, de todos os homens, do homem todo e para toda a
criação. A liberdade de Jesus transforma tudo, todas as relações humanas:
“já não judeu ou grego, nem escravo nem livre, nem homem ou mulher,
todos sois um em Cristo Jesus” (Gal 3,28).
Em suma, identifica-se uma evolução na abordagem do tráfico de
pessoas que começa no patriarcalismo, atravessa toda a monarquia e culmina
na plenitude da revelação em Cristo. Quanto mais o ser humano é visto à
luz da revelação, tanto mais revela sua verdadeira identidade e descobre sua
vocação à liberdade. Portanto, longe de ser uma invenção da modernidade,
a dignidade humana e a liberdade têm seu principio e fundamento em Deus.
Logo, traficar com seres humanos é traficar com Deus. Essa é a mensagem
primordial da Sagrada Escritura sobre a prática do tráfico de pessoas. Vender
uma pessoa é vender a Cristo identificado com ela.
Contexto atual
Até meados do século XIX, os enclaves coloniais espalhados pelo
mundo sustentaram o tráfico de pessoas. Recorde-se o tráfico negreiro
africano para a Europa e América. Também os índios, antes dos negros,
foram submetidos ao tráfico e ao trabalho escravo. Aos poucos, tal prática
foi perdendo suas justificativas antropológicas e culturais. Porém, mesmo após a extinção legal do tráfico e a abolição do regime escravista, a
civilização atual continua contando com a recriação de formas de tráfico
de pessoas e sua submissão a regimes de escravidão.
Apesar do avanço da consciência coletiva dos povos em relação
aos direitos humanos, pessoas enriquecem vendendo e comprando pessoas. Apesar de condenado como crime de lesa humanidade, o tráfico
de pessoas intensificou-se em pleno século XXI. De fato, a crueldade
precisa converter-se em banalidade para alimentar a indiferença. Saber
que existem seres humanos tratados como escravos e crianças trabalhando
como adultos tornou-se algo ‘banal’. Em uma sociedade de indivíduos
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
53
Onde está teu irmão? (Gn 4,9): aproximação bíblico-teológica ao tráfico de pessoas
entregues à sujeição do dinheiro, tudo se torna mercadoria, ou instrumento
a serviço da sujeição ao dinheiro: escravizar pessoas, vender pessoas,
explorar crianças. Um mundo em que tudo está à venda, nada mais é do
que a organização cotidiana e sistemática da banalidade.
O crime organizado serve-se do processo de globalização para estender seus tentáculos letais por todo o planeta. A intensificação do tráfico
de pessoas é uma das consequências dos graves problemas socioeconômicos que persistem e aprofundam as desigualdades. O empobrecimento de
regiões inteiras do planeta favorece a prática de diversas formas de violação dos direitos humanos. Há imigrantes hispano-americanos trabalhando
em grandes cadeias de confecções de São Paulo e Bangladesh, territórios
tão distantes quanto díspares. Jovens se inserem no mercado informal do
sexo e na indústria pornográfica, buscando enriquecimento.
O tráfico de seres humanos se encontra entre os três negócios
ilícitos mais lucrativos do mundo, movimentando uma soma estimada
em 32 bilhões de dólares por ano15. Segundo a OIT16, em 2012 mais de
20 milhões de pessoas foram atingidas pelo tráfico humano. A grande
maioria das pessoas traficadas é formada por mulheres e menores de
idade17. Ausência de oportunidades de trabalho, pobreza extrema, falta de
perspectivas de ascensão social, instabilidade política, conflitos armados
e violência urbana têm efeitos devastadores. Nesse contexto, o Brasil
é a maior fonte latino-americana de mulheres destinadas ao mercado
do sexo18. Tal mercado global intensificou-se nos últimos vinte anos a
54
15
Cfr. Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC). http://www.unodc.org/
brazil/pt/ungift_portuguese.html. Com um investimento inicial baixo, as redes criminosas
conseguem obter lucros significativos - as estimativas apontam uma média de US$ 30
mil por ano por pessoa traficada internacionalmente - levando a exploração a patamares
cada vez mais acentuados, sem qualquer preocupação em preservar a vida ou a saúde
dessa “mão-de-obra” descartável. As vítimas chegam a ser vendidas diversas vezes, o
que torna o crime ainda mais perverso (acesso em 21 de abril de 2013).
16
Para maiores informações ver: http://www.oitbrasil.org.br.
17
75% das pessoas traficadas no mundo são do sexo feminino. 43% dessas vítimas são
subjugadas para exploração sexual e 32% para exploração econômica – as restantes
(25%) são traficadas para uma combinação dessas formas ou por razões indeterminadas. Atividades ilícitas são camufladas em atividades legais, como o agenciamento
de modelos, babás, garçonetes, dançarinas, etc.
18
71% são para a exploração sexual e 29% para o trabalho escravo. Cfr. Secretaria
Nacional de Justiça 2012 (Polícia Federal). O número de brasileiros levados para o
Exterior por traficantes soma 70 mil. O II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas (2013-2016) visa reduzir as situações de vulnerabilidade, capacitar profissionais, instituições e organizações envolvidas no seu enfrentamento e sensibilização
da sociedade para prevenir o crime.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Élio Estanislau Gasda
partir de quatro atividades: prostituição, tráfico, comércio de mulheres
e pornografia. Não bastasse a exploração sexual e laboral, o avanço da
biociência e das comunicações traz o risco da utilização de seres humanos
para a comercialização de órgãos. As proporções alarmantes deste crime
levaram a ONU a publicar o Protocolo da Convenção Contra o Crime
Transnacional Organizado com ênfase no Tráfico de Pessoas19.
A que tribunal pedir conta da cumplicidade dos paraísos fiscais e
dos grandes bancos com o tráfico de seres humanos? Tais mecanismos
aceitam que seres humanos sejam tratados como mercadoria para aumentar seu poder. Em nome do lucro, negociam-se pessoas. Quanto mais
os traficantes enriquecem, mais se empenham em traficar, mais querem
aumentar suas contas na Suíça, Bahamas, Londres, Wall Street. Por um
lado, as causas da persistência de crimes de lesa humanidade, como o
tráfico de seres humanos, devem ser buscadas nos “mecanismos econômicos, financeiros e sociais”.20 Tais estruturas estão mais reforçadas,
agravando a dramática situação dos mais pobres21. Por outro, existe uma
sociedade impassível e cruelmente indiferente, que está dando as costas
aos milhares de seres humanos empurrados para os vales da morte do
capitalismo. Aí se escondem os crimes mais cruéis contra a humanidade,
como a fome, a escravidão, a tortura e o tráfico de seres humanos.
Os pronunciamentos do Magistério
A gravidade e a expansão do tráfico humano, já na década de 60,
mereceu destaque no Concilio Vaticano II: A escravatura, a prostituição,
a venda de mulheres e crianças, e as condições de trabalho indignas em
que as pessoas eram tratadas como instrumentos de ganho e não como
pessoas livres e responsáveis, são “infâmias” que “envenenam a sociedade humana, aviltam os seus perpetradores” e constituem “uma suprema
desonra para o Criador”22.
João Paulo II constatava que as consequências do tráfico de seres
humanos não são devastadoras apenas para as vítimas, mas prejudicam
toda a sociedade. “O mercado de seres humanos constitui uma ofensa que
19
The Protocol to Prevent, Suppress and Punish Trafficking in Persons. New York: United
Nations http://www.odccp.org/trafficking_protocol.html.
20
JOAO PAULO II, Sollicitudo rei socialis, n.16.
21
JOAO PAULO II. Centesimus annus, n.35, cfr. n.56.
22
CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et Spes, n. 27.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
55
Onde está teu irmão? (Gn 4,9): aproximação bíblico-teológica ao tráfico de pessoas
choca contra a dignidade humana e é uma grave violação dos Direitos
Humanos Fundamentais (...). Em particular, a exploração sexual das
mulheres e das crianças constitui um aspecto especialmente repugnante
deste comércio e deve ser reconhecida como uma violação intrínseca da
sua dignidade e de seus direitos humanos. A tendência irritante de tratar
a prostituição como um comércio ou uma indústria não só contribui para
o tráfico dos seres humanos, mas é também uma evidência da crescente
tendência a separar a liberdade da lei moral e a reduzir o rico mistério
da sexualidade humana a uma simples comodidade”23.
Para Bento XVI, “é um imperativo mencionar o tráfico de seres
humanos e, sobretudo de mulheres, que prospera onde as oportunidades
de melhorar a própria condição de vida, ou simplesmente de sobreviver, são escassas. Torna-se fácil para o traficante oferecer os próprios
‘serviços’ às vítimas, que muitas vezes não suspeitam minimamente o
que deverão enfrentar. Em alguns casos, há mulheres e jovens que são
destinadas à exploração no trabalho, quase como escravas, e não raramente também na indústria do sexo”24. O Bispo emérito de Roma fez um
apelo ao mundo: “O tráfico de seres humanos por motivos sexuais, para
transplante de órgãos, para a exploração de menores, ou seu abandono
nas mãos de pessoas sem escrúpulos, o abuso, a tortura, se comprovam,
infelizmente, em muitos contextos turísticos”.25 E insiste: “Não podemos
esquecer a questão da imigração ilegal, que se torna ainda mais condenável nos casos em que esta se configura como tráfico e exploração de
pessoas, com maior risco para as mulheres e crianças”26.
Este crime é citado no Compendio da Doutrina Social da Igreja:
“A solene proclamação dos direitos do homem é contradita por uma
dolorosa realidade de violações, guerras e violências de todo tipo, em
primeiro lugar os genocídios e as deportações em massa, a difusão quase
que por toda a parte de formas sempre novas de escravidão qual o tráfico
de seres humanos, as crianças-soldados, a exploração dos trabalhadores,
56
23
JOÃO PAULO II. Carta ao Arcebispo Jean-Louis Tauran, Secretário para as Relações
com os Estados pela ocasião da Conferência Internacional sobre A escravidão do
século XXI. A dimensão dos direitos do homem no tráfico de seres humanos. (15 de
Maio de 2002).
24
BENTO XVI. Migrações: sinal dos tempos. Mensagem para o 92º Dia Mundial do
Migrante e do Refugiado (2005).
25
BENTO XVI. Mensagem para o VII congresso Mundial da Pastoral do Turismo (Cancún,
23-27 de abril 2012).
26
BENTO XVI. Migrações: peregrinação de fé e esperança. Mensagem para o Dia do
Migrante e Refugiado (2013).
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Élio Estanislau Gasda
o tráfico de drogas, a prostituição”27. Trabalhar em conjunto para parar
o tráfico humano. Este é o título da declaração das Comissões Europeias
Justiça e Paz, adotada em sua Assembleia-geral realizada em Belgrado
(Sérvia), em 2008. Como reposta imediata e integral, a Conferência das
Comissões Europeias Justiça e Paz compromete-se a combater este crime
em todas as suas formas, incluindo o trabalho forçado, a exploração
sexual, a escravatura e a remoção ilegal de órgãos28.
O Documento de Aparecida inclui as vítimas do tráfico de pessoas
para fins de exploração sexual entre os novos rostos pobres29. No Brasil,
segundo a CNBB, a erradicação do tráfico humano é serviço á vida: “O
serviço à vida começa pelo respeito à dignidade da pessoa humana (...)
“Atenção especial merecem também os migrantes forçados pela busca
de trabalho e moradia...; c) as vítimas do tráfico de pessoas”30.
Recentemente, Papa Francisco tem sido contundente em denunciar
o tráfico de pessoas. “O tráfico de pessoas é uma atividade ignóbil, uma
vergonha para nossas sociedades que se dizem civilizadas! Aproveitadores e clientes, em todos os âmbitos, deveriam fazer um sério exame de
consciência consigo mesmos e diante de Deus”. Lembrou que “nós, como
Igreja, recordemos que, ao curar as feridas dos refugiados, deslocados e
das vítimas do tráfico, colocamos na prática o mandamento do amor que
27
PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
n. 158. As Comissões Europeias Justiça e Paz deram a público a sua Declaração
de Trabalhar em conjunto para parar o tráfico humano (Sérvia, 2008). Como reposta
imediata, estas Comissões comprometem-se a combater este crime em todas as suas
formas, incluindo o trabalho forçado, a exploração sexual, a escravatura e a remoção
ilegal de órgãos (cfr. http://www.portal.ecclesia.pt/instituicao/ktml2/files/61/TSH%20
Dec.pdf). A Conferência Internacional sobre o Tráfico de Seres Humanos organizada
pelo Pontifício Conselho da Justiça e pela Conferência Episcopal Inglesa assumiu
como linhas de ação a prevenção do tráfico humano (cfr. http://www.vaticaninsider.
lastampa.it). A Conferência deu-se no dia 8 de maio de 2012 em Roma.
28
http://www.portal.ecclesia.pt/instituicao/ktml2/files/61/TSH%20Dec.pdf (acesso em:9
de maio de 2012).
29
CELAM. Documento de Aparecida, n. 402. O Conselho Episcopal Latino-americano
(CELAM), em seu Plano Global 2011-2015 contempla o tráfico humano “principalmente de crianças e adolescentes submetidos à exploração e prostituição, tipificada
– segundo o Protocolo de Palermo – como delito de Tráfico de pessoas. CELAM.
Plano Global e Programas 2011-2015. VII Departamento de Justiça e solidariedade.
Programa 55: Pastoral do Turismo para a Vida e a Comunhão: ponto 55.3.
30
CNBB (Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil). Diretrizes gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2011-2015, nn. 107-111.
Encontros Teológicos nº 66
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57
Onde está teu irmão? (Gn 4,9): aproximação bíblico-teológica ao tráfico de pessoas
Jesus nos deixou, quando se identificou com o estrangeiro, com quem
sofre e com todas as vítimas inocentes da violência e da exploração”31.
Na Evangelii Gaudium, exortação apostólica recém-publicada, escreve: “Sempre me angustiou a situação daqueles que são objeto de diversas
formas de tráfico de pessoas. Gostaria que se escutasse o grito de Deus
perguntando-nos todos: ‘Onde está teu irmão?’ (Gn 4,9). Onde está teu irmão
escravo? Onde está esse que estás matando a cada dia na fábrica clandestina,
na rede de prostituição, nas crianças que utilizas para mendicidade, naquele
que tem que trabalhar escondido porque está informal? Não nos façamos de
distraídos. Existe muita cumplicidade. A pergunta é para todos! Em nossas
cidades este crime mafioso e aberrante está instalado, e muitos têm as mãos
sujas de sangue pela cumplicidade cômoda e muda”32.
A raiz deste mal é o amor ao dinheiro (1Tm 6,10)
Por detrás do problema social do crime de lesa humanidade do tráfico de pessoas se encontra uma profunda questão religiosa que somente
o olhar da fé pode descobrir33, a saber: o pecado da idolatria do dinheiro
(cfr. 1Tm 6,10; Ef 5,5). Para Jesus, o dinheiro representa a realidade
concreta do ídolo (cfr. Mt 6,24; Lc 16,13). Converter o dinheiro em poder
supremo implica a negação do Deus da vida (cfr. Cl 3,5). O apóstolo Paulo
ensina que, por trás de toda idolatria, se esconde a opressão da verdade
e a ocultação da injustiça com consequências imediatas sobre a vida do
outro: perversidade, ganância, maldade e assassinato (cfr. Rm 1,18ss).
Palavras que encontram inegável atualidade no ensinamento do Magistério: “Não poucos, confiando além do necessário no progresso das ciências
naturais e na tecnologia, incorrem em uma idolatria dos bens materiais e
se tornam servos antes que senhores deles”34. Quando predomina a lógica
58
31
PAPA FRANCISCO. Discurso aos participantes na Assembleia Plenária do Pontifício
Conselho para a Pastoral dos Emigrantes e Itinerantes. Em: http://www.vatican.va/
holy_father/francesco/speeches/2013/may/documents/papa-francesco_20130524_migranti-itineranti_po.html. (Acesso:10 de novembro de 2013). Na Conferência internacional denominada “Tráfico de seres humanos: a escravidão moderna”, ocorrida nos
dias 2 e 3 de novembro de 2013, organizada pela Santa Sé, foram apresentadas 49
propostas para enfrentar este crime.
32
PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 211.
33
GASDA, Élio Estanislau. Tráfico de pessoas e trabalho escravo: Lugar teológico,
exigência ética, missão da Igreja. In: CNBB. Tráfico de pessoas e trabalho escravo:
II Seminário Nacional. Brasília: Edições CNBB, 2012, p. 15-32.
34
CONCÍLIO VATICANO II. Apostolicam actuositatem, n. 7.
Encontros Teológicos nº 66
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Élio Estanislau Gasda
do lucro, aumenta a exploração do homem pelo homem. João Paulo II
denunciava que os mecanismos perversos sempre escondem verdadeiras
formas de idolatria, e uma delas é o dinheiro35. Também os Bispos latino
americanos, reunidos em Aparecida, denunciavam a idolatria do dinheiro
como a primeira causa da violência36.
Para Papa Francisco, a idolatria é uma fórmula que nunca perde
atualidade e contém uma raiz bíblica: “Criamos novos ídolos. A adoração
do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32,1-35) encontrou uma versão nova e
impiedosa no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem
rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano”.37 E onde há idolatria,
apagam-se Deus e a dignidade do ser humano. A obsessão de explorar tudo
ao máximo leva à coisificação do outro, esconde a rejeição da ética e a
rejeição de Deus. Ao relativizar o dinheiro e o poder, a ética é vista como
uma ameaça, pois condena a manipulação e a degradação da pessoa38.
A mensagem bíblica está condensada na exigência da rejeição da
idolatria. Os cristãos são alertados a guardar-se dela constantemente (cfr.
1Cor 5,10s) porque a mesma se apresenta como o principal obstáculo
para a fé em Deus. Combater o tráfico de pessoas é confessar o Deus de
Jesus e denunciar os ídolos geradores de violência e morte. “Há muitos
deuses e senhores (...) mas para nós só há um Deus (...) e um só Senhor,
Jesus Cristo” (1Cor 8,6). A ação pastoral junto ao tráfico de pessoas é uma
expressão visível do ministério da evangelização. Tamanha crueldade
exige uma opção pastoral decidida e inegociável.
Consideração final: Humanismo e Religião
A abordagem bíblico-teológica do tráfico de seres humanos levanta
um aspecto ético fundamental da tradição judaico-cristã. A evolução em
relação ao tema é simultânea ao processo de revelação, implícito na Sagrada
Escritura. De forma indireta, o artigo ilustra como esta tradição contribuiu
para o amadurecimento do conceito de dignidade humana. A salvação da
humanidade e a plena realização do ser humano é o único interesse do
Deus bíblico. Nesse sentido, o fiel, como membro da família humana, está
chamado a contribuir na erradicação de crimes como o tráfico de pessoas
35
JOÃO PAULO II. Sollicitudo rei socialis, n. 37.
36
CELAM. Documento de Aparecida, n. 78.
37
PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 55.
38
Cfr. PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 57.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
59
Onde está teu irmão? (Gn 4,9): aproximação bíblico-teológica ao tráfico de pessoas
em suas várias expressões, seja no trabalho escravo, no comércio de órgãos, na exploração sexual, na adoção ilegal ou outras formas. Atualmente,
qualquer religião, não só o cristianismo, que seja indiferente às violações
dos direitos humanos, acaba perdendo a credibilidade.
A sociedade civil espera que o cristianismo seja um canal de
aperfeiçoamento da consciência pelo respeito à vida humana. A maior
contribuição que esta religião poderia fazer é o de amar cada ser humano assim como Deus o ama, reconhecendo a humanidade de todos e de
cada um. Nada justifica a indiferença de um cristão diante de tamanha
crueldade. A resposta ao sofrimento começa pela indignação diante desse
crime e pela compaixão ativa para com as pessoas atingidas por ele. Se
“todo cristão é um instrumento de Deus para escutar o clamor dos pobres,
ser indiferente ao clamor das vítimas do tráfico de pessoas é situar-se
fora da vontade do Pai e de seu projeto, porque esse pobre clamaria ao
Senhor contra ti, e em ti haveria um pecado (Dt 15,9)”39.
O tráfico de pessoas é uma realidade absolutamente devastadora,
que envergonha a civilização atual. A Igreja, inspirada pelas Escrituras
Sagradas e motivada pelo seu Magistério, tem o compromisso de somar-se
aos esforços dos governos e da sociedade civil na luta pela erradicação do
tráfico de seres humanos. Karl Rahner dizia que “a Igreja deveria ser um
baluarte da liberdade; ensinar, viver e proteger a dignidade e, por extensão,
a inviolabilidade do individuo: seu caráter de pessoa, seu destino eterno,
sua liberdade”40. A dignidade é o bem mais precioso que toda pessoa humana possui. Defendê-la e promovê-la é “a tarefa central e unificadora do
serviço que a Igreja é chamada a prestar à humanidade”41.
Endereço do autor
Rua Roberto Lúcio Aroeira, 318.
Itapoã. 31710-570 Belo Horizonte/MG
email: [email protected]
60
39
PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 187.
40
RAHNER, Karl. “Dignidad y libertad del hombre”, 253-283. En: Escritos de Teología
– vol. II, Madrid: Taurus, 1967, pg.278.
41
CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n. 91.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Resumo: O artigo considera, no acelerado processo de urbanização da América Latina e Caribe, a presença da igreja na cidade e a evangelização das culturas urbanas.
Tendo em vista explicitar o horizonte e o compromisso da pastoral urbana no contexto
regional, busca revisar a memória dessa temática a partir da ação evangelizadora do
conselho episcopal latino-americano – CELAM. Foi no ano de 1965 que o CELAM
deu inicio a um processo de reflexão sobre a realidade urbana e suas implicações
pastorais para a Igreja. Chega-se a Aparecida e a missão continental e permanente
precisa ser entendida na perspectiva do universo das culturas urbanas. Nesse sentido,
a inevitabilidade da urbanização condiciona todas as possibilidades e alternativas de
uma Nova Evangelização. No entanto, essa situação não é um beco sem saídas, mas
um momento de encruzilhada que exige discernimento, encarnação e decisão.
Palavras chaves: Urbanização – Cidade – Igreja – Evangelização – Culturas Urbanas.
Abstract: The article focuses on the presence of the Church and the task of spreading
the Gospel in an urban environment, notwithstanding the ongoing process of urbanization
of Latin America and the Caribbean. In order to explicit in greater detail the horizon and
the commitment of urban evangelization in the regional context an effort was under way
to revise the available data of the procedures developed by the Bishops of Latin America and the clues that have been spotted by CELAM. Back in 1965 CELAM began the
search for clarification of the issues involved in the growth of urban society and pastoral
implications to be dealt with by the Church. At the threshold of the Synod at Aparecida
there followed a stress on the continental mission of the pastoral activity of the Church.
Thus, a New Evangelization had to be made available on all levels and the way for the
total rethinking of spreading the Gospel had to taken into account.
Key words: Urbanization; City; Church; Evangelization; Urban cultures.
Presença da Igreja na Cidade e
Evangelização das Culturas Urbanas:
Horizonte e Compromisso na Igreja
Latino-americana e Caribenha1
Vitor Hugo Mendes*
*
Presbítero da Diocese de Lages, Brasil. Doutor en Educação, Mestre em Teología Sistemática. Secretario Executivo de Cultura y Educação – CELAM; Professor do Instituto
Teológico Pastoral para América Latina – ITEPAL.
Comunicação apresentada no Congreso del Proyecto internacional e interdisciplinario
de investigación “Pastoral Urbana” (Universidad de Osnabrück/Alemania). XI Seminario internacional e interdisciplinario del Intercambio cultural latinoamericano-alemán
(ICALA). Ciudad de México, 26 de febrero al 2 de marzo de 2013. Tema: Vivir la Fe
en la ciudad hoy. Las grandes ciudades latinoamericanas y los actuales procesos de
transformaciones sociales, culturales y religiosas. Painel: Perspectivas y Visiones
para el Futuro de la Ciudad. Reflexiones Teológicas.
1
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013, p. 61-80.
Presença da Igreja na Cidade e Evangelização das Culturas Urbanas
Introdução
O presente texto é uma versão revista e ampliada da comunicação
apresentada no Congresso de Pastoral Urbana, realizado no México,
programa que foi organizado pela Conferencia Episcopal Alemã, Universidade de Osnabrück e ICALA. Registro – em nome do Departamento de
Cultura e Educação –, um particular agradecimento a essas instituições
pelo convite e a oportunidade de sistematizar e de propor, desde a missão
evangelizadora do Conselho Episcopal Latino-americano – CELAM,
a experiência de Presença da Igreja na Cidade e a Evangelização das
Culturas Urbanas de América Latina e Caribe.
Ademais de ser uma questão que com o passar dos anos se impõe
por si mesma, a complexidade do fenômeno de urbanização, e mais especificamente, tudo o que se reúne sob a expressão pastoral urbana, de
diferentes modos vem ressoando ao interno dos programas e atividades
do CELAM. Em certo sentido, a temática como tal perpassa diferentes
momentos da reflexão pastoral. Se considerarmos que um primeiro encontro, em âmbito regional, foi convocado em 1965 (São Paulo, Brasil),
logo mais se cumprem os primeiros 50 anos de reflexão da problemática
urbana no contexto Latino-americano.
Neste sentido, vale ressaltar que a missão do CELAM, mais do que
promover programas e atividades, consiste em desenvolver – tanto mais
considera e dialoga com o seu contexto mais amplo – uma perspectiva
de interlocução com as forças vivas da América Latina e Caribe. Trata-se
de reconhecer empreendimentos, projetos e ações significativas e que
possam trazer, de maneira criativa, algum impacto para a evangelização
que realiza a Igreja Católica no Continente.
Com relação a esse aspecto, nosso interesse e participação neste
Congresso Internacional de Pastoral Urbana, ademais de acompanhar
mais de perto este estudo investigativo sobre a realidade urbana do continente, trata também de dar a conhecer e refletir o programa nº. 37 do
Departamento de Cultura e Educação. Como uma importante atividade
em processo de preparação, trata-se da realização do congresso a Presença da Igreja na Cidade e a Evangelização das Culturas urbanas:
memória e compromissos à luz da Missão Continental e Permanente.
Com esse encontro que se realizará em Bogotá (18 a 23/08/2014), se
pretende compreender, analisar e sistematizar, no atual contexto, prospec-
62
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Vitor Hugo Mendes
tivamente, os caminhos já percorridos pela Pastoral urbana nas diferentes
realidades da Igreja na América Latina e Caribe.
Parece significativo destacar que, naquilo que respeita ao tema da
Presença da Igreja na Cidade, retomar esse itinerário tendo em vista Aparecida (2007), significa, de um lado, ter em conta um fator indispensável
para a efetividade da Missão Continental, ou seja, a Nova Evangelização
só será possível mediante uma devida consideração do fenômeno de
urbanização; de outro, considerar uma agenda de trabalho que, desde
a responsabilidade do CELAM, possa promover um acompanhamento
orgânico, progressivo e permanente dos processos de evangelização nas
culturas urbanas.
Dito isso de modo introdutório, passamos a desenvolver de maneira
concisa, uma apresentação do Conselho Episcopal Latino-americano,
instância institucional de animação e articulação da Evangelização no
Continente da Esperança (1); fazemos a memória dos principais eventos
do CELAM com relação ao tema da Pastoral Urbana (2); e, finalmente,
indicamos alguns elementos em perspectiva com relação à reflexão sobre
a presença da Igreja na Cidade (3).
1 Conselho Episcopal Latino-americano – CELAM:
60 anos a serviço da Evangelização
Em 2015 o CELAM completa seis décadas de serviço às Conferencias Episcopais da América Latina e Caribe. Como se sabe, a criação da Instituição resultou de uma solicitação enviada à Santa Sé, em 1955, desde o Rio de Janeiro, por ocasião
da primeira Conferência do Episcopado Latino-americano, pedido que
foi aprovado naquele mesmo ano pelo Papa Pio XII. Considerado uma
iniciativa pioneira no âmbito da organização da Igreja Católica em
âmbito universal, o CELAM foi protagonista, enquanto iniciativa que
se antecipou em promover uma efetiva integração regional da América
Latina e Caribe.
De maneira geral, a partir da reestruturação que se realizou a
partir de 2003-2007, o CELAM passou a se organizar internamente com
7 departamentos e 4 centros de formação2. Cabe à Presidência e sua Se2
Departamentos: Familia, Juventude e Vida; Vocações e Ministerios; Departamento de
Cultura y Educação; Comunhão Eclesial e Diálogo; Justiça e Solidariedade [Movilidad
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
63
Presença da Igreja na Cidade e Evangelização das Culturas Urbanas
cretaria Geral organizar, dinamizar e articular as orientações emanadas
dos Bispos reunidos em assembleias periódicas, de acordo com o que
prescrevem os seus Estatutos.
Para o quadriênio em curso (2011-2015), o objetivo geral da
organização estabelece: “promover com as Conferencias Episcopais da
América Latina e Caribe, a VIDA PLENA e a COMUNHAO MISSIONÁRIA mediante o encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo,
para viver um autêntico discipulado missionário que responda à vocação
recebida e que, neste tempo de Nova Evangelização, comunique a Jesus,
Palavra do Pai feito homem, por transbordamento de alegria e gratidão
e em fidelidade à ação do Espirito santo”.
Com essa trajetória, dar a conhecer, uma vez mais, o CELAM, neste encontro, significa explicitar desde a dimensão institucional-episcopal,
a sua específica contribuição teológico-pastoral e, nas atuais circunstâncias, quiçá, uma significativa contribuição ao que significa Evangelizar
neste ainda início de milênio. Particularmente no que tangencia o aspecto
institucional, mais recentemente se voltou a insistir na necessidade de
resgatar o protagonismo do CELAM, o que em tese significa resgatar
o próprio protagonismo dos bispos como agentes responsáveis em promover, em todos os níveis da pastoral, uma nova evangelização. Nesse
caso, parece evidente, assumindo todas as implicações do que indicou o
Papa João Paulo II, em Haiti, em 1983: nova em seu ardor missionário,
nova em seus métodos, nova em suas expressões (CELAM, 1992).
Sem dúvida, hoje em dia, há indagações se, desde as instâncias
formal-institucionais da Igreja, é possível propor, efetivamente, a responsabilidade de uma pastoral orgânica, significativa e consequente com as
exigências das culturas urbanas. Todavia, parece oportuno indicar, desde
o CELAM, alguns aspectos que a médio e em longo prazo, na perspectiva
atual, soam como o desenho de uma nova dinâmica de evangelização e
que, em concreto, não poderá prescindir do fenômeno da urbanização.
Trata-se de iniciativas que oferecem contribuições específicas para a
realidade de evangelização no continente e, quiçá, possamos considerar
bastantes significativas para uma aproximação das culturas urbanas em
nosso contexto regional.
humana]; Misión y Espiritualidad; comunicação e Imprensa. Centros: Instituto Teológico
Pastoral para América Latina – ITEPAL; Centro Bíblico para América Latina – CEBIPAL;
Observatório de Pastoral – OBSEPAL; Centro de Publicações.
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Encontros Teológicos nº 66
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Vitor Hugo Mendes
Vejamos que aspectos são estes:
1.1 Plano Global de Evangelização
No ano de 1975, encontramos a referência a um primeiro Plano
Global de Pastoral para o CELAM. Desde essa data, sob o marco da
realização das Conferências Gerais do Episcopado Latino-americano,
sobretudo a partir de Puebla (1979), se constata uma sistemática planificação da Pastoral na Igreja Latino-americana3.
Consideramos que, frente a uma crescente fragmentação dos mais
diversos âmbitos do pensar e do agir humanos, o planejamento global
da Evangelização, em seu alcance institucional-continental e teológicopastoral, tem uma grande importância como proposta a uma ação eclesial
integrada e integradora na região. Neste sentido, vale explicitar o que
vem ressaltado como disposição para o quadriênio (2011-2015):
[…] o CELAM é um organismo eclesial de comunhão e colaboração com
as Igrejas locais que peregrinam na América Latina e no Caribe, seu
serviço se realiza en diálogo com os contextos históricos atuais, sempre
desafiantes, mas também, com motivos de esperança.
Ainda permanecem vigentes os esforços de aproximação à realidade
sócio-política e cultural do Continente (globalização, secularização,
interculturalidade…) nestes últimos anos, realizados com vistas ao trabalho evangelizador por parte de diversos organismos do CELAM. […]
Contudo, não se pode deixar de estimular, por um lado, o discernimento
sapiencial dos sinais dos tempos e o espírito profético da Igreja e, por
outro, o estudo sistemático da realidade, em perspectiva interdisciplinar,
que facilite a análise global de nossa situação em seus diversos âmbitos,
local, nacional e regional (Plano Global, 2011, nºs. 05 e 06).
Trata-se, como se pode notar, de uma perspectiva na qual se
renova a finalidade do organismo eclesial em sua ação de promover a
3
Vale a pena conferir os textos impressos que correspondem aos períodos sucessivos:
Segundo Plano Global: 1983-1986; Terceiro: 1987-1991; Quarto: 1991-1995; Quinto:
1995-1999 (Jesucristo, Vida plena para todos); Sexto: 1999-2003 (Encuentro con Jesucristo Vivo en el horizonte del tercer milenio); Sétimo: 2003-2007 (Hacia una Iglesia
Casa y Escuela de Comunión y de solidaridad en un mundo globalizado. Humanizar
la globalización e globalizar la solidaridad); Oitavo: 2007-2011 (Discípulos Misioneros
de Jesucristo para que nuestros Pueblos, en Él, tengan Vida. “Yo soy el camino, la
verdad y la vida”); Nono: 2011-2015 (Para que nuestros Pueblos, en Él, tengan Vida.
“La vida se manifestó, nosotros la hemos visto, y eso les anunciamos”. 1 Jn 1, 1-4).
Encontros Teológicos nº 66
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Presença da Igreja na Cidade e Evangelização das Culturas Urbanas
comunhão e a colaboração com as Igrejas locais, embasadas na colegialidade episcopal. Sem embargo, há um acento particular na continuidade
criativa, atualizada, sistemática e encarnada da Evangelização nas atuais
circunstâncias.
A presença da Igreja na cultura urbana requer um planejamento global permanente e consequente da Evangelização.
1.2 Adequação institucional: regionalizar, descentralizar,
contextualizar
Desde a sua criação, o CELAM tem realizado vários intentos
de – considerando aspectos pastorais, econômicos e administrativos –,
adequar suas estruturas (departamentos e centros de formação) às necessidades concretas da realidade eclesial na América Latina e Caribe.
No quadriênio 2003-2007, teve inicio uma reorganização temática
que resultou na modalidade de 7 departamentos, cada um subdividido
em diferentes secções de modo a dar atenção às múltiplas dimensões da
Evangelização. Para o período atual (2011-2015), em continuidade com as
reformas já implementadas, como também, para alcançar maior organicidade na ação evangelizadora, a Assembleia Ordinária do CELAM (2011)
optou por compor, para cada departamento, uma Comissão Episcopal –
formada por representantes das diferentes regiões (Andina, Caribe, Centro
América e México e Cone Sul) –, para melhor acompanhar o processo
orgânico, global e permanente das diferentes temáticas que compõem
cada departamento, antes indicadas como secções de pastoral.
Trata-se de mudanças que visam uma maior eficiência/eficácia na
operatividade institucional, contudo, são diligências que precisam de um
tempo suficiente de assimilação e acomodação ad intra e ad extra. Em
todo caso, o que se ressalta é a compreensão necessária da regionalização
do CELAM como descentralização, isto é, uma forma dinâmica de coordenar os serviços, animar a evangelização e incrementar os respectivos
processos pastorais. Dessa maneira, o contexto de cada região que conforma o CELAM poderá identificar, ordenar e encaminhar mais e melhor
suas necessidades, carências e urgências, na ação evangelizadora.
A presença pública da Igreja nas grandes cidades depende de
uma continua e atualizada adequação de suas estruturas eclesiais a
necessidades contextuais e específicas.
66
Encontros Teológicos nº 66
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Vitor Hugo Mendes
1.3 De uma funcionalidade pastoral de eventos/atividades
à efetividade de processos de Evangelização.
O Resultado de uma organicidade temática,
interdepartamental e evangelizadora
Tudo aquilo que vem indicado, na reorganização dos departamentos e centros do CELAM, traduz a urgência evangelizadora de incrementar mudanças necessárias em sua ação. Tendo em vista a concretização
de processos, torna-se indispensável tomar em conta critérios de continuidade e de progressividade que – além de superar a fragmentação de
uma funcionalidade de eventos dispersos –, alcance avaliar, compreender,
articular e promover transformações significativas na realidade eclesial
e sociocultural.
Nesse sentido, parece evidente que a efetividade dos processos
de evangelização do CELAM, em ordem a uma ação evangelizadora
orgânica, aparece definida na arquitetura de uma progressiva articulação
horizontal, na perspectiva de uma crescente ação interdepartamental cooperativa, como também, em sentido vertical, na interação das diferentes
temáticas pertinentes ao interno de cada departamento.
A efetividade da evangelização nos ambientes da cidade resulta de processos pastorais orgânicos, significativos, consequentes
e continuados.
1.4 Reflexão permanente e sistemática da ação pastoral.
A específica formação de agentes da Evangelização
No ano de 2012, atendendo a uma disposição da Assembleia Ordinária realizada no Uruguai (2011), o CELAM retomou de modo permanente a articulação de sua Comissão de Reflexão Teológico-pastoral.
Como trabalho de assessoria ao CELAM e às Conferencias Episcopais,
o serviço a ser desenvolvido se orienta em três linhas de ação:
a) Aprofundar os temas teológico-pastorais propostos pelo
CELAM;
b) Contribuir, dentro de uma legítima pluralidade, à pertinência,
coerência e eficácia da atividade pastoral que anima o CELAM
segundo o seu Plano Global;
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
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Presença da Igreja na Cidade e Evangelização das Culturas Urbanas
c) Elaborar, a partir de uma busca critica e criativa, propostas
teológico-pastorais que o CELAM deverá ter em vista no
futuro.
Trata-se de uma iniciativa que busca manter a reflexão permanente
e sistemática da ação evangelizadora, de modo a favorecer condições
e desenvolver possibilidades de responder aos diferentes desafios que
se manifestam desde as Igrejas Particulares, seja como Conferências
Episcopais seja como as regiões que compõem o CELAM.
A rearticulação da assessoria teológico-pastoral constitui um avanço no sentido de buscar uma hermenêutica responsável e consequente
da ação evangelizadora que se realiza e, não menos que a valoração
qualificada e de contribuição a uma teologia pastoral com rosto próprio,
quiçá, na medida do possível, aprofundando os caminhos da Teologia
Latino-americana.
Tal elaboração da ação evangelizadora na perspectiva de uma sistematização teológica, – tarefa e horizonte muito mais amplo que a constituição
da Comissão de Reflexão Teológico-pastoral –, também exige considerar
o ambiente adequado e espaços específicos de trabalho e serviços. Nesse
sentido, desde o ano de 2010, o CELAM vem refletindo sobre a situação
dos seus respectivos centros de formação – ITEPAL, CEBIPAL, Centro de
Publicações, Observatório de Pastoral –, de modo a potencializar a organização de um único Centro Educativo e que este possa responder, com mais
eficácia, à demanda de formação de agentes de pastoral.
Consideramos estas duas iniciativas como passos realmente importantes no sentido de demarcar, favorecer e implementar processos
de evangelização que se mostrem efetivos, missão que exige, de um
lado, prosseguir compreendendo a missão evangelizadora, e de outro, a
formação permanente dos discípulos-missionários.
O fenômeno da urbanização continua sendo um desafio a ser
compreendido, implicando uma formação permanente e atual dos
discípulos-missionários.
2 O tema da Pastoral Urbana no contexto das
ações do CELAM
O quadro a seguir, uma primeira aproximação ao tema em questão,
nos permite visualizar de maneira global o desenvolvimento do tema
68
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Vitor Hugo Mendes
Pastoral Urbana, desde o CELAM, no contexto da América Latina e
Caribe. Trata-se de acompanhar um longo percurso de realizações que
se visibiliza a partir de 1965 e que, portanto, já conta com sua história e
seus respectivos historiadores4.
Vejamos alguns aspectos a destacar do percurso realizado:
DATAS
1955
1965
1967
1968
14/05/1971
1979
MEMÓRIA: Pastoral Urbana no CELAM
Décadas de 1960 – 1970
ACTIVIDADES
DESTAQUES
1ª. CELAM – R. DE
JANEIRO.
Encontro de Peritos –
Primeira parte:
Resumo da situação humana
CELAM – Barueri – São
e pastoral nas cidades
Paulo. Promoção do
Instituto Latinoamericano
representadas.
de Pastoral – IPLA (37
Segunda parte: Elementos
doutrinais
participantes).
Terceira parte:
Publicação 1:
Resumo de Discussões
A Igreja a serviço da
e Informação Geral: (1) A
Cidade. Coleção Andina.
mentalidade religiosa do homem
DILAPSA, Chile; Barcelona: urbano; (2) Função da Igreja na
Editorial Nova Terra.
cidade; (3) Estruturas pastorais
dos grandes centros urbanos;
(4) Os agentes no apostolado; (5)
Princípios e condições de uma
opção pastoral.
(*) Informação Geral.
2ª. CELAM – MEDELLÍN
Octogesima Adveniens
3ª. CELAM – PUEBLA
MEMÓRIA: Pastoral Urbana no CELAM
Década de 1980
DATAS
ATIVIDADES
DESTAQUES
1981 Trabalho: Grupo de Peritos Estudo: Pastoral e Paróquia na
cidade
4
O livro Dios vive en la Ciudad (GALLI, 2011), por exemplo, é um registro bastante completo de dados que indicam essa trajetória, inclusive, com informações que permitem
identificar e acompanhar outras instâncias e outros processos que, em seu conjunto,
são responsáveis pela reflexão, sistematização, desenvolvimento e avanços da pastoral urbana em nosso contexto. Vale a pena conferir também as experiências que
foram sendo sistematizadas, particularmente, na Argentina, Brasil, México, Peru.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
69
Presença da Igreja na Cidade e Evangelização das Culturas Urbanas
1982 Publicação 2: Pastoral e
Paróquia na cidade. Bogotá:
Publicações CELAM
(Secretaria Geral).
1.
Uma Igreja
Evangelizadora da nova
cidade latinoamericana
2. A paróquia na cidade
3. Algumas linhas para uma
pastoral da Paróquia
urbana
Tema: Pastoral da Metrópole
06 a Encontro de bispos
12/09/1982 das Grandes Cidades
Latinoamericanas
1985 Criação da Secção da Cultura – CELAM
1986 Seminário de Peritos
“Adveniente Cultura”
1986
1987
30/11 al
04/12/1988
1989
Identidade da cultura urbanoindustrial e suas tendências;
Cultura adveniente.
Publicação 3: Serie Fe e Cultura: Evangelização da Cultura
Urbana Cultura urbana e a inculturação urbana do Evangelho
(Antonio Do Carmo Chiuiche).
Publicação 4: Serie Fe y Cultura: O fenômeno Urbano (Raúl
Méndez)
Seminário de Peritos
O fenômeno urbano; a cidade na
Cultura Urbana: Desafio
Bíblia; Deus na cidade; A cidade
e as mediações; problemática
à Evangelização. Buenos
do trabalho; Evangelização da
Aires. (10 participantes)
cultura urbana; Situação urbana e
Publicação 5: Cultura
espiritualidade; Estruturas urbanas,
Urbana: DESAFIO À
EVANGELIZAÇÃO. Bogotá: Pastoral urbana e Plano de Pastoral
CELAM (Secção da Pastoral Urbana.
da Cultura)
MEMÓRIA: Pastoral Urbana no CELAM
Década de 1990
DATAS
ATIVIDADES
1992 4ª. CELAM – S. DOMINGO
DESTAQUES
17 a SeminÁrio sobre Promoção Promoção Humana em Santo
19/05/1993 Humana na grande cidade
Domingo; Família nas grandes
(O homem e a cidade).
cidades; infância, juventude e
Brasilia, Brasil. (15
política social no Brasil; problemas
participantes)
ambientais, terra nas grandes
1994 Publicação 6: O homem na cidades; Pobreza e solidariedade;
Nova ordem econômica; população
cidade: promoção humana
urbana e mobilidade; direitos
na megalópole da América
humanos; ordem democrática;
Latina. Bogotá: CELAM
Megalópoles
e
integração
(Dep. de Pastoral Social –
Latinoamericana e Caribenha.
DEPAS, em coordenação
con os Departamentos de
Familia e Cultura)
1997 Sínodo: Encontro con Jesus Cristo vivo, caminho para a
conversão, a comunhão e a solidariedade na América
1999 Exortação pós-sinodal Ecclesia in America
70
Encontros Teológicos nº 66
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Vitor Hugo Mendes
1999 Encontro com Arcebispos
de Grandes Cidades da
América Latina.
A Pastoral Urbana como desafio
Evangelizador; oportunidades
da grande cidade na era da
informática; A evangelização na
grande cidade;
MEMÓRIA: Pastoral Urbana no CELAM
Década de 2000
DATAS
ATIVIDADES
DESTAQUES
2000 Publicação 7:
Além dos textos do encontro
Evangelizar a grande
de 1999 (indicados acima), são
cidade: Um desafio
publicados outros dois Apêndices:
prioritário. Bogotá: CELAM (A) Pastoral e Paróquia na cidade
(Secretaria Geral).
(1981); (B) Pastoral da Metrópole
(1982).
2003-2007 Re-estructuração CELAM
Criação do Depart. de Cultura e
Educação
5a. CELAM – APARECIDA
2007
2008 Publicação 8: BRAVO,
Benjamín. A Pastoral
1. Ver a Urbe
Urbana. À luz de Aparecida.
2. Julgar a Urbe
3. Atuar na Urbe
Coleção Missão continental.
Bogotá: Centro de
Publicações CELAM, 2008.
02 a Encontro Sobre Cultura
Culturas e Pastoral Urbana nas
05/03/2010 urbana à luz de Aparecida,
iniciativas do CELAM; os Meios
de
Comunicação
Social
na
no horizonte da Missão
Continental (Cultura Urbana Cultura urbana; Influências do
e Conversão Pastoral)).
Relativismo na Cultura Urbana;
Buenos Aires.
Aspetos da interculturalidade na
Cultura Urbana; Aspetos da Cultura
(33 participantes)
Popular na Cultura Urbana; Piedade
Popular, agnosticismo, indiferença,
sincretismo e secularismo; As
cidades invisíveis na Cultura
Urbana; Os imaginários e a
construção da cidade na América
Latina; Fragilidades na cultura
urbana: incomunicação, solidão,
desenraizamento,
anonimato,
voragem, fugacidade; Teologia da
cidade: reflexão interdisciplinar;
São Paulo e o cristianismo urbano
primitivo.
MEMÓRIA: Pastoral Urbana no CELAM
Década de 2010
2014 Seminário: Presença
da Igreja na Cidad e e
MEMÓRIA E COMPROMISSOS
Evangelização das Culturas.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
71
Presença da Igreja na Cidade e Evangelização das Culturas Urbanas
Como se pode notar, embora não pretendamos fazer uma análise
mais exaustiva, os dados reunidos nos mostram uma panorâmica de
aspectos diversos que demarcam um itinerário histórico e temático.
Em geral, os elementos sistematizados por parte do CELAM são
oriundos de eventos realizados na modalidade de reunião, encontro, seminário, organizados como publicações em formato de livros que reúnem
as memórias dos encontros, quase sempre, as conferências principais.
Nesse caso, trata-se de diferentes esforços em providenciar uma reflexão
sobre distintos aspectos relacionados com a realidade urbana na América
Latina e, mais especificamente, com a Pastoral Urbana5.
Devemos considerar que essa realidade emergente na América
Latina nos anos 60, pouco depois de Medellín, com a Octogesima Adveniens (1971), encontra um importante referente no âmbito da Igreja
Universal. Dessa articulação, a temática ganha novas configurações,
sobretudo cada vez mais vinculada ao que vem associado às Conferências
do Episcopado Latino-americano.
Nesse sentido, a década de 1980 – profundamente marcada pela
contribuição da Evangelii Nuntiandi (1975) e da Conferência de Puebla
(1979) –, foi expressivamente intensa em dar importância à problemática
urbana e propor uma reflexão compreensiva da pastoral no mundo da
cidade. Em geral, os temas considerados ganham o alcance da década
seguinte, sobretudo a partir de Santo Domingo (1992), por sua vez, preparando o que vem indicado em Ecclesia in America (1999). Trata-se de
perspectivas que grosso modo persistem até a realização da Conferência
de Aparecida (2007) que, a seu modo, retoma, sistematiza, aprofunda
e direciona a problemática urbana: as cidades são apresentadas como
laboratórios da cultura urbana (nº. 509).
Pode-se dizer que, em grandes linhas, os temas apresentados e
discutidos ao longo desse período abarcam uma grande multiplicidade de
problemas, relacionados com o fenômeno da urbanização e suas implicações para a Pastoral urbana. A organização e sequência dos encontros busca
dar um tratamento atualizado à problemática em diferentes perspectivas.
Busca-se considerar as mudanças sociais, situações e problemas que se
tramam na realidade urbana; utilizam-se os diferentes enfoques teórico5
72
Em relação à convocatória desses eventos, embora todos contem com o patrocínio
institucional do CELAM, são iniciativas de diferentes instâncias da instituição: Instituto
de Pastoral – IPLA (1965); Secretaria Geral; Secção de Cultura; Departamento de
Pastoral Social; Secção de Cultura, Departamento de Cultura e Educação.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Vitor Hugo Mendes
metodológicos – da filosofia, das ciências humanas e sociais, etc. – que se
oferecem como ferramentas de estudo sobre essa mesma realidade.
De maneira global, verifica-se que o mundo urbano possui um
caráter plural e dinâmico, que exige uma análise versátil; todavia, em
certo sentido, aquilo que se apresenta como intento de síntese mostrase mais efetivo antes como constatação crítica de uma realidade em
mutação que, propriamente, a sistematização de um discurso eclesial
coerente sobre os diferentes matizes que caracterizam o fenômeno.
Parece consequente que, dessa maneira, a narrativa da pastoral urbana,
na maioria das vezes, continua sendo um conjunto de experiências bem
sucedidas de intentos, êxitos e fracassos. Quer dizer, a compreensão do
rural-urbano-cidade, a articulação do local-global-contextual, a relação
Igreja-mundo-cidade, a correlação Fé-Igrejas-Evangelização, o diálogo
Fé-Direitos Humanos-Cidadania, entre outros, são aspectos que ainda
necessitam de maior aprofundamento e melhor articulação no âmbito da
reflexão teológica e pastoral latino-americana.
A título de conferir uma palavra a este assunto, podemos dizer
que seria injusto não reconhecer, nesse itinerário, o empenho eclesial de
acercar-se ao fenômeno de urbanização no contexto da América Latina
e Caribe, a busca de reflexão-socialização de experiências, o indicativo
de ações pastorais concretas, etc. Não obstante, parece consequente reconhecer que o esforço empreendido não foi suficiente para considerar
os grandes desafios que o processo de urbanização apresenta à presença
pública da Igreja na cidade.
É possível que o distanciamento histórico que temos dessa complexa realidade siga favorecendo mais a crítica do processo que a viabilidade crítica de posicionar a evangelização no mundo urbano. Entretanto,
parece correto afirmar que a inevitabilidade da urbanização, no contexto
Latino-americano e Caribenho, condiciona todas as possibilidades e
alternativas da nova evangelização no horizonte de uma consequente
pastoral urbana; portanto, não se trata de um beco sem saída, mas, de
uma encruzilhada que pede discernimento, encarnação e decisão.
3 Contribuições para a reflexão sobre a presença
da Igreja na cidade
Considerando a proposta do Congresso de pastoral urbana em trabalhar com a indicação de perspectivas e visões para o futuro da cidade,
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
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Presença da Igreja na Cidade e Evangelização das Culturas Urbanas
reflexões teológicas, naquilo que segue apresentamos alguns elementos
a considerar desde a missão evangelizadora do CELAM.
3.1A Evangelização no mundo urbano como horizonte
possível de “integração regional”
Uma primeira contribuição, a respeito da presença da Igreja na
cidade, trata de implicar a ação do CELAM no âmbito que lhe é próprio, qual seja a região Latino-americana. Ao modo de questões previas,
precisamente retorna a possibilidade da Igreja em participar e contribuir
com uma consequente integração regional6.
Em se tratando dessa particularidade, devemos considerar que a
busca da “presença de Deus e de sua ação salvífica” (TMA, nº. 16) no
tempo humano da existência, nos coloca em contato com uma complexidade histórico-social que alcança a extensão planetária, e sua diversidade de povos e culturas. Entretanto, como bem ressalta o documento
de Aparecida (2007), e é isto que nos interessa salientar, em se tratando
da realidade Latino-americana, o grande desafio evangelizador é “a
possibilidade de que esta diversidade possa convergir em uma síntese
que, envolvendo a variedade de sentidos, seja capaz de projetar a todos
em um destino histórico comum” (nº. 43).
Nesse sentido, entendemos que a constituição do CELAM, uma
compreensão pioneira de Região Latino-americana, continua obrigando a
potencializar essa tarefa permanente, cada vez mais, devendo considerar
muitas outras iniciativas de ordem política e econômica. Frente a esse
desafio quase incomensurável, considerando diferentes perspectivas
sócioanalíticas que tratam de encontrar elementos comuns em meio às
diversidades culturais do continente, parece consequente indicar que a
progressiva urbanização da América Latina já constitui uma realidade
característica, que engendra uma específica cultura urbana Latino-americana. Mesmo sem adentrar nos indicadores que averiguam os impactos
concretos desse fenômeno, sugerimos que a crescente urbanização, tanto
quanto a presença da Igreja na cidade, e a necessária evangelização das
6
74
Segundo Paviani, “o conceito de região, além da dimensão natural, e além de envolver
solo, paisagem e outros acidentes geográficos, engloba aspectos linguísticos e antropológicos. Em outros termos, quando se fala de região, de modo geral, se definem
identidades, costumes, tradições, comportamentos linguísticos e, igualmente, obras
técnicas e artísticas” (2010, p. 38).
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Vitor Hugo Mendes
culturas urbanas, constituem elementos fundamentais para identificar
um referente comum e de integração regional.
Isso implica um esforço evangelizador que possa articular as diferentes
instâncias de organização, reflexão e ação da(s) Igreja(s), além da sua esfera
interna. Trata-se de atuar no âmbito de uma institucionalidade eclesial que
se mostre capaz de estabelecer não apenas o diálogo com outras Igrejas
(ecumenismo), instituições civis e não governamentais, instâncias políticas e
governamentais do continente, mas sobretudo adquira uma presença propositiva e força convocatória, capaz de evidenciar sua especifica contribuição
teológica e pastoral como presença pública no espaço urbano.
A presença capilar da Igreja Católica nos microespaços urbanos deve
providenciar, em caráter analítico, uma sólida compreensão do fenômeno
de urbanização em seus diferentes aspectos estruturais e conjunturais.
Nesse sentido, trata-se de ordenar uma hermenêutica dos paradoxos da
cidade, mas, também, das possibilidades de um desenvolvimento urbano
mais integral no contexto regional Latino-americano e Caribenho.
Tendo em vista aspectos reais de uma integração factível, por
exemplo, é possível considerar o impacto de repensar o horizonte, a oferta
e a efetividade de algumas tarefas eclesiais de fundamental importância
evangelizadora, como seja:
a) potencializar a ação conjugada das universidades de filiação
católica seja como ensino-investigação, seja como promotoras
de cultura e liderança cristãs na América Latina e Caribe;
b) fortalecer a perspectiva comum e integrada do trabalho que
realizam diferentes agências de auxilio – que subsidiam as
Igrejas e os seus diferentes projetos pastorais e sociais –,
implementadas no horizonte de uma intervenção colaborativa,
coordenada e diferenciada na região;
c) assumir o significado pastoral de uma revisão planificada, da
experiência intercultural compartilhada e da ação missionária induzida no que diz respeito à formação presbiteral (inicial e permanente) no contexto regional Latino-americano
e Caribenho, etc.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
75
Presença da Igreja na Cidade e Evangelização das Culturas Urbanas
3.2. A Missão Continental, o projeto de sociedade, a
manutenção das políticas públicas inclusivas e as
opções de um projeto de urbanização solidário
Um segundo aspecto a considerar, e que se mostra muito articulado
com o anterior, trata de especificar alguns elementos de caráter sóciopastoral a ponderar no contexto regional Latinoamericano.
De modo geral, as cidades como cenários de uma variedade de modos de vida, ideias, valores, etc. dão visibilidade ao complexo fenômeno
da(s) cultura(s) urbana(s). Sob esse prisma, o processo de urbanização tal
como nos alcança – produto e produtor de um complexo ambiente de modernidade/pós-modernidade7 –, resulta de um dinamismo marcadamente
social, ou seja, em suas bases, atuam diferentes fatores econômicos, políticos e culturais. Trata-se, portanto, de um evento perpassado de possibilidades, ambiguidades e paradoxos, que presume um contexto de inequívoca
pluralidade cultural, um movimento sem precedentes e que em definitivo
afeta a experiência da vida religiosa (MENDES, 1998; 2006).
Tais elementos, presentes na realidade Latino-americana e Caribenha, constituem as bases de uma crescente e duradoura supressão de
uma mentalidade rural arcaica. A tudo isso que se decompõe a passos
largos, correspondem diferentes perspectivas de vida social, e, portanto,
são diferentes alternativas as que delineiam a permanente reconstrução
das cidades. Põem-se em marcha, e convivem em uma mesma realidade,
diferentes projetos de sociedade que buscam legitimidade e que determinam, a seu modo, a correlação de investimentos, metas e estratégias
de construção do mundo urbano. Desse ponto de vista, as cidades são
espaços constantes e privilegiados da missão evangelizadora.
7
76
Não há propriamente um consenso sobre essas categorias. Todavia, para tomar
apenas um exemplo, Habermas (1990), considera que vivemos em uma condição
pós-metafísica. Para o autor, não há mais como referendar razões que se mostrem
desconectadas de seus contextos. Nesse sentido, tratando de situar a inflexão pósmoderna – sismógrafos de faro atilado –, o filósofo da ação comunicativa, contornando
a problemática do “pós”, prefere se referir à modernidade como um projeto inacabado
(HABERMAS, 2000). Sugere que correções são necessárias, mas, sem embargo,
transfere a ideia de um “projeto inacabado” e busca estabelece marcos no campo da
racionalidade desde o qual dar consequências para uma convivência humana possível.
Podemos nos perguntar se, de fato, as coisas são como Habermas apresenta em sua
reconstrução histórica da modernidade. Em todo caso, é de significativa importância
o que supõe sua tese: um projeto inacabado.
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Nesse sentido, quando em Aparecida a Igreja Católica propõe uma Missão Continental, certamente não está colocando em ação apenas mais um programa de Evangelização. A isso corresponde um projeto eclesial que pretende
significar sua presença e compromisso no contexto regional Latino-americano
e Caribenho. Ao deslindar tais consequências, há muito por considerar em uma
nova hermenêutica da presença publica da Igreja na cidade8.
Tal abordagem, cada vez mais efetiva em ordem sócio-cultural,
não é menos prospectiva em ordem eclesial-pastoral: América Latina
e Caribe, definitivamente, se transformam em uma região de muitas e
grandes cidades. Em que âmbito pretende a Igreja contribuir em termos
de uma autêntica Evangelização das culturas urbanas? Que significado
pode ter uma Missão Continental permanente no horizonte de uma nova
evangelização em uma sociedade em crescente urbanização?
Trata-se de questões prévias que se desdobram em temas diversos para a efetividade da presença pública da Igreja na cidade. Alguns
aspectos a considerar:
a) Primeiro, a título de sistematização da problemática urbana, temos pela frente a exigência de operar com diferentes referenciais
teórico-metodológicos de investigação; a compreensão do mundo
urbano requer um olhar interdisciplinar. Conforme parece, aqui se
delineia uma ampla tarefa teológico-epistemológica por avançar,
quanto mais se dedique a perseguir o horizonte aberto da Teologia
Latino-americana. Como, em perspectiva teológica, amparar os diferentes aspectos que compõem as ciências sociais e humanas que
interpretam a realidade urbana? A teoria tem suas consequências.
Quais consequências podem interessar no exercício da reflexão
teológica e pastoral em vista de uma pastoral urbana? O CELAM,
como organismo quase continental, pode reunir, socializar e promover a discussão de alguns desses elementos indicativos dessa
complexa questão teológico-pastoral.
8
Que projeto de sociedade e de Igreja se mostra mais pertinente, considerando aquelas
originalidades que não foram devidamente auscultadas nos povos originários e nas
diferentes culturas que moldam e caracterizam a América Latina e o Caribe hoje?
Tendo em vista essa realidade, há que se levar em conta até mesmo aqueles aspectos
que não alcançaram propriamente o seu pleno desenvolvimento e sua identidade
própria; isto é, não alcançaram na medida em que foram interceptados por aquela
visão hegemônica e uniforme de cultura ocidental – cada vez mais em declínio –, que
pretendia estabelecer os indicadores de medida para a vida social.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
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Presença da Igreja na Cidade e Evangelização das Culturas Urbanas
b) Um segundo aspecto a considerar, no contexto Latino-americano e Caribenho, diz respeito à presença pública da Igreja
como promotora de justiça social e fraternidade na realidade
urbana. Como já indicamos, essa atitude corresponde a ser uma
presença eclesial que seja capaz de refletir, no horizonte de um
projeto de sociedade, a sua face política – a melhor maneira
de exercer a caridade (Pio XI, Paulo VI) –, em vista do bem
comum. Tal aspecto exige dar operatividade a dimensões pouco
evidentes na prática da caridade e que, no mundo urbano, tem
a fisionomia das políticas públicas como direito dos cidadãos
e obrigação social do Estado. Nesta linha de compartilhar a
responsabilidade social, além de garantir assistência e cuidado
pastoral, a presença da Igreja na cidade exige uma inserção no
âmbito do construir a cidade, a cidadania e a fraternidade. Sua
contribuição eclesial decorre de sua capacidade em ajudar a
conhecer, discutir e propor o plano diretor que organiza e administra o espaço urbano. Nesse sentido, o planejamento da
cidade é o resultado de um determinado projeto político que
pode incluir/excluir serviços, programas, responsabilidades,
etc. A presença pública da Igreja na cidade consiste em problematizar a pastoral urbana, de maneira a considerar projetos
e perspectivas que gerem, promovam e possam garantir a
comunhão e a vida plena para todos.
4 A título de uma palavra final
Em se tratando de um tema que permanece em aberto para maiores
discussões e esclarecimentos, uma palavra final deve ser breve, porém,
sem deixar de encarecer a importância de seguir refletindo e aprofundando
o fenômeno da urbanização em suas implicações para a evangelização.
Nesse particular, situamo-nos em um contexto no qual a necessária revisão do itinerário percorrido, desde a contribuição do CELAM, exige dar
um passo mais certeiro no sentido de uma presença pública mais efetiva
por parte da Igreja no ambiente das cidades.
A crescente urbanização, no contexto regional da América Latina
e Caribe, supõe potencializar mais e melhor o que vem sendo realizado
como pastoral urbana. Não obstante, na medida em que se busca acompanhar o crescimento da população urbana, urge que a teologia e, sobretudo
78
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Vitor Hugo Mendes
a pastoral, possa manter o dialogo com uma realidade cambiante e que
exige criatividade na arte de evangelizar.
Nesse sentido, o Documento de Aparecida, no intento de colaborar,
apresenta uma listagem significativa de sugestões para dar efetividade
a uma nova pastoral urbana (nº. 517), como também, para indicar as
atitudes que devem acompanhar a ação dos agentes de pastoral urbana
(nº. 518). Todavia, o que se espera, é que a pastoral urbana “responda
aos grandes desafios da crescente urbanização” (nº. 517, a).
Considerando todos esses elementos, o Congresso de pastoral
urbana (2014) que se está organizando desde o CELAM, na sequência
desses muitos outros trabalhos que se vêm realizando, quer ser um espaço de discussão e aportes em vista de manter o diálogo, intercambiar
experiências e propor uma agenda de trabalho e reflexão que tenha
continuidade e aplicação.
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Misión continental. Bogotá: Centro de Publicaciones CELAM, 2008.
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Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
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Presença da Igreja na Cidade e Evangelização das Culturas Urbanas
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E-mail do Autor:
[email protected]
80
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Resumo: Vivemos num mundo em evolução. Cientificamente observamos que,
na evolução da vida e do homem, existem convergências para atratores. Dois
atratores fundamentais guiam a evolução da mente humana para, matematicamente, um infinito Absoluto (Deus, para nós), que por indução permite que toda
informação evolutiva adquira uma hierarquia superior: para ser um infinito relativo,
a autorreflexão (imagem e semelhança), que pode conhecer sua identidade e sua
circunstância. Puxado por interesses imediatos, o homem, culturalmente mais
evoluído, perde contato com Deus e somente volta a encontrá-lo com Abraão para
constituir com David um grande reino monoteísta, entre povos politeístas. A David foi
prometido que de sua descendência surgiria o Messias que estabeleceria o Reinado
definitivo de Deus. O Filho de Deus se encarna num profeta que predica, durante a
dura opressão Romana, o Reino de Deus, que é completamente diferente e pode
realizar-se aqui e agora se existe amor entre os homens, considerando-se irmãos
por terem o mesmo Pai. O reinado definitivo de Deus é imanente e transcendente
à historia, como o expressa a vida e ressurreição de Jesus.
Abstract: We live in a changing world. Scientifically, we observe that in the evolution
of life and man there are convergences to attractors. Two fundamental attractors
guide the evolution of human mind for, mathematically, an absolute infinite (God, for
us), which, for induction, allowed that its entire evolutionary information acquires a
higher hierarchy: to be an infinite relative self-reflection (image and resemblance),
which can know its identity, its circumstances and signification. Pulled by immediate
interests the man, more culturally evolved, loses contact with God and only back
to meet Him with Abraham, to form with David a great Kingdom monotheistic,
between polytheistic people. David was promised that in his progeny would arise
the Messiah who would establish the definitive Reign of God. The Son of God is
embodied in a prophet that preaches, during the harsh Roman oppression, the
Kingdom of God, which is completely different and can take place here and now
whether there is love between men, considered Brothers for having the same
father. The definitive reign of God is immanent and transcendent to the history as
is supported by the life and resurrection of Jesus.
O significado do Reino de Deus à luz de uma
teoria evolutiva
Parte I: Da Emergência do Homem até Jesus
Rosendo A. Yunes*
* O autor é Pesquisador Senior do CNPq; Doutor Honoris causa da UNIVALI; Premio
Scopus Elsevier-Capes 2009 pela relevância de sua contribuição científica à formação
de recursos humanos; Medalha João David Ferreira Lima da Prefeitura Municipal de
Fpolis pela sua contribuição à educação superior em Santa Catarina.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013, p. 81-98.
O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte I)
Introdução
A reflexão sobre o Reino de Deus tem sido algo esquecida, considerando que este foi o tema fundamental da pregação de Jesus. Como
se sabe, a expressão “Reino de Deus” aparece 90 vezes nas palavras de
Jesus segundo os evangelhos. Portanto, não seria de extrema importância
meditar e conservar este conceito em nossas vidas? O problema fundamental é: que significado tem o “Reino de Deus” para nós, Cristãos, num
mundo em evolução?
Não farei esta análise no campo teológico, pois não é esta a minha área de pesquisa. Sou um cientista interessado na evolução da vida
e especialmente da mente humana. Por este motivo, desejo entender a
história humana e, nela, a história do cristianismo, relacionada com a
vida e a pregação de Jesus. Assim, analisaremos este tema do ponto de
vista antropológico, sociológico, filosófico e especialmente a partir do
homem comum.
Teilhard de Chardin, jesuíta, antropólogo evolucionista, pensava
que seria importante modificar a posição do foco cristão, para lhe preservar o valor iluminador1. Ele se fundamenta em algo que em certa medida
resulta evidente: que existe nas coisas, no universo, uma lógica diante
da qual tudo deve ceder. E que, num universo evolutivo, essa lógica
impõe condições tais, ao ato criador, que o mal dele decorre, a título de
efeito secundário, inevitavelmente. Esta é uma explicação lógica, racional, científica, do mal físico como a doença, o dor, a morte.
A criação não é um ato instantâneo, mas um processo. Para Teilhard, o ato puro é a unidade, e o nada, o múltiplo. O Criador não poderia
se comunicar imediatamente com sua criatura, mas deve torná-la capaz de
recebê-lo. A criação consiste na progressiva unificação do múltiplo.
Na evolução biológica foi demonstrado claramente por Simon C.
Morris2, paleontólogo da Universidade de Cambridge, a existência de um
grande número de convergências evolutivas. As convergências significam que existe um sentido, uma orientação na evolução, contrariando
assim o pensamento de que tudo é produto da casualidade, do azar.
82
1
“Teilhard de Chardin, Mundo, Homem e Deus” Textos selecionados por J.L. Archanjo, Cultric, S. Paulo 1978).
2
Simon C. Morris.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Rosendo A. Yunes
O estudo da evolução demonstra que nos vertebrados existe uma
convergência para animais com cérebros maiores (em relação à massa
corporal) e capacidades cognitivas similares especialmente no emprego
da matemática e da lógica elementares3. Uma convergência também é
observada em diferentes culturas para a construção de pirâmides como
expressão de uma relação com os Deuses. Igualmente, diferentes culturas
elaboraram mitos sobre a criação e o fim do mundo. Isto é produto de
uma lógica interna que leva o ser humano a procurar conhecer de onde
procede e para onde vai.
Esta é uma lógica interna que se faz evidente na emergência
da vida, na formação do código genético (um sistema de codificação
próprio de nossos tempos que, no entanto, aparece faz 3,5 bilhões de
anos) e na evolução da mente humana. Segundo Kaufman4, a evolução
é predominantemente um processo de auto-organização, onde a seleção
natural tem uma função totalmente secundaria (1 em 10, segundo ele).
A convergência se observa igualmente em elementos culturais e tecnológicos, como meios de transporte, meios de comunicação etc., que são
atualmente universais. Estas são forças físicas e espirituais que emergem
como consequência de um processo evolutivo. Onde, então, aparece o
“Reino de Deus” no processo evolutivo?
Para procurar dar uma resposta a essas perguntas, devemos examinar brevemente alguns fatos históricos.
1 A Emergência do Homem
A crença na vida depois da morte tem sido uma caraterística na
evolução humana desde 100 mil anos a.C. P. Liberman5 afirma que
funerais de tumbas com posses pessoais significam claramente práticas
religiosas relacionadas com a vida posterior à morte. Estes rituais religiosos se apresentam universalmente desde 35 mil anos a.C.
A maioria dos cientistas consideram que os conceitos de Deus ou
Deuses, fundamentais à religião, como agentes que possuem algumas ca3
Yunes, R. A. The evolution of the human mind and logic-mathematics structures. J.
Theor. Biol (2005) 236, 95-110.
4
Kaufman, S. At home in the Universe. The search for the laws of self-organization
and complexity. Oxford Univ. Press, USA 1995.
5
Liberman, P. Uniquely Human, Harvard Univ. Press USA 1991.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
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O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte I)
raterísticas humanas, e outras que superam toda regra lógica, se originam
em determinados “módulos” mentais como um produto colateral6.
Este é um problema fundamental para a teologia, filosofia, psicologia e outras ciências afins. Desde o ponto de vista do denominado,
matematicamente, Infinito Absoluto (Deus), este, como analisaremos,
seria um poderoso atrator que está guiando dois outros atratores da evolução da mente humana e sua emergência.
O medo de pensar que a pessoa total é produto da evolução é causado pelo fato de considerar a evolução como um mero produto da matéria
na velha concepção cartesiana ou pela influência da teoria darwinista,
reducionista, que considera o homem produto do azar, da casualidade.
Lembremos que um dos mais destacados evolucionistas, Ernst Mayr7,
escrevia, em uma das mais importantes revistas cientificas do mundo,
que a revolução Darwinista “...requer um novo conceito de Deus e uma
nova base para a religião”...“o darwinismo realizou um lento progresso
porque foi a substituição de uma inteira concepção do mundo por uma
diferente. Isto envolve religião, filosofia e humanismo”. Esta revolução
se transformou em um dogmatismo científico, quase uma religião, que é
uma das bases da carência de sentido observada no mundo atual.
Os constituintes mais simples da matéria apresentam, em sua
essência mesma, dois comportamentos: de onda e de partícula. Isto significa um comportamento informacional e um comportamento físico. A
realidade informacional, aquela que pode ser descrita matematicamente,
não é material e por isso pertence ao mundo espiritual. A característica
espiritual não é incorporada desde fora, como algo externo que se
mistura com a matéria, mas é uma parte constitutiva do que denominamos
matéria. Esses dois aspectos evoluem conjuntamente.
A Bíblia nos ensina que o homem foi criado monisticamente.
Para os hebreus, o corpo é a expressão externa da alma8. Para a Bíblia,
o homem é uma unidade indivisível. Ela não ensina, como os helenistas,
que o homem é composto de alma e corpo, mas que Deus deu a ele a
vida. “Então Deus modelou o homem com a argila do solo, soprou-lhe
84
6
Burbulla J. “The Cognitive and Evolutionary Psychology of Religion”, Biology and
Philosophy 2004,19,655
7
E. Mayr “The nature of Darwinian revolution” Science (1972) 176, 981.
8
J. Pedersen “Israel” Oxford Univ. Press London 1926.
Encontros Teológicos nº 66
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Rosendo A. Yunes
nas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivente” 9.
Aqui devemos, brevemente, analisar a emergência da consciência, da
autorreflexão humana. O que se denomina espiritual?
Os seres vivos, por serem sistemas dinâmicos complexos, evolucionam, em certas condições, por processos de auto-organização, que
dependem do meio ambiente e da constituição interna dos organismos.
Esses processos são guiados por atratores (de atrair) que são regiões de
menor energia dentro do processo. Analisando a evolução do sistema
nervoso, observamos que sua função fundamental está relacionada com
dois processos: 1) ganhar e guardar informações do ambiente; 2) ganhar
e guardar informações do próprio organismo.
No curso da evolução dos organismos mais complexos, pode
deduzir-se que esses processos respondem a dois atratores predominantes:
ao denominado instinto de conhecimento por Perlovsky10 e ao instinto
de autonomia11. O instinto de conhecimento é descrito matematicamente
como a maximização da similaridade dos conceitos e das realidades do
mundo (o que se denominava “adequação do intelecto à coisa”), e o
instinto de autonomia é guiado pelo principio matemático de identidade.
São dois instintos fundamentais para a sobrevivência desses seres.
O processo de individuação é um processo de unificação pela
autorreflexão. O ser humano considera o sujeito de seu conhecimento
(eu) e o predicado do mesmo (sou), como idênticos. Esta identidade é
conseguida pela autorreflexão que é a propriedade fundamental que distingue os seres humanos dos animais. Esta autorreflexão parece envolver
uma retroalimentação (feedback) instantânea, sem tempo.
Existem dois tipos de retroalimentação: a negativa e a positiva. A
negativa é a base dos sistemas de controle cibernéticos. Este mecanismo
permite que, em sistemas biológicos complexos, uma informação que
sai do sistema volte ao mesmo para comparar, computar ou corrigir a
mesma. Na retroalimentação positiva, o sinal volta para acelerar o processo realizado pelo sistema.
9
Gn 2,7.
10
11
Perlovsky L.I. “Toward a Physics of the mind: concepts, emotions,consciousness,
and symbols” Physics of Life Rev. (2006) 3, 23-55
Yunes R.A., “The real sate Strange Loop: Evolution and the uniqueness of human
mind. Psychological Implications” Syntropy (2013) (1) 42-59
Encontros Teológicos nº 66
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O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte I)
A retroalimentação negativa é a unidade básica de controle cibernético e é o fundamento da auto-organização e da vida. A retroalimentação
negativa possibilita a homeostase, que conserva a estabilidade interna
dos organismos frente às mudanças do ambiente. Assim, conserva estável
algumas variáveis fisiológicas como pH, íons, temperatura etc. Como
exemplo, podemos considerar um forno, no qual desejamos manter a temperatura em 200°C. Colocamos um aquecedor que levará a temperatura
a 200°C, mas ela sobe até chegar a 201°, e então um sinal é enviado a
um detector, que rapidamente desliga o aquecedor. A temperatura baixa,
mas ao chegar a 199°C, um sinal enviado ao detector permite este ligar
novamente o aquecedor e assim sucessivamente. Pode-se aumentar a
precisão para 199,9 <200<200,1, mas, nunca a temperatura ficará estável
em 200°C. Para isso seria necessário uma velocidade instantânea, infinita,
de transmissão da informação na retroalimentação.
O cérebro humano, órgão de controle, em sua evolução realizada
fundamentalmente por um processo lento, denominado de auto-organização, com o guia de um fator de atração (a seleção natural apresenta uma
função totalmente secundária), apresenta esse mecanismo de controle,
por retroalimentação, especialmente, por exemplo, na execução dos movimentos das mãos, entre elas e a visão. Quando procuramos pegar um
lápis, existe uma contínua retroalimentação entre a mão e a visão, que a
orienta, até ela conseguir seu objetivo. Assim, para atingir sua identidade (eu sei que sei), a mente humana foi lentamente aperfeiçoando esse
mecanismo de retroalimentação, tornando cada vez mais breve o tempo
de retroalimentação. Isto explica porque o cérebro humano apresenta
muito mais associações neurais que o cérebro do chimpanzé ou outro
macaco superior.
Claramente é possível observar que distintas espécies do gênero
Homo demonstram um nível cada vez maior de aproximação a uma
autorreflexão instantânea. Considerado isto na lógica do recorrente, (eu
sei, que sei, que sei,...) e extrapolando ao infinito para obter sua forma
própria12, chegamos a um “ponto” que é, na concepção matemática, um
total, onde as partes são iguais ao todo, não têm dimensões, é um infinito relativo. Isso significa que este processo leva a mente humana a um
contato com o infinito Absoluto, ou com uma propriedade do mesmo,
que seria o atrator último de menor energia.
12
Kauffman L.H. Reflexivity and eigenform: the shape of process, Construc-
tivist Foundation (2011) 4,121-36.
86
Encontros Teológicos nº 66
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Rosendo A. Yunes
Assim, por um mecanismo que podemos denominar de “indução
da reflexão”, segundo o Principio de Reflexão, qualquer propriedade
possível de conceber do Absoluto é compartilhada por alguma entidade
menor. A mente humana atinge assim uma propriedade do Infinito que
é a retroalimentação instantânea, sem tempo. É uma imagem e semelhança do Infinito Absoluto. Emerge então, em um nível superior,
dentro do mesmo processo evolutivo, um “campo informacional”, que
é um infinito ligado, conectado ou aberto, para um Infinito Absoluto
que é, em nossa concepção, o próprio MISTÉRIO de Deus. Esse é o
campo da consciência autorreflexiva que pode agora compreender, ao
voltar-se sobre a informação, sua significação. A informação estava no
sistema, não surge de fora, existe outro nível hierárquico, a capacidade
de decodificar a informação, de observar seu significado, conservando
sua memória histórica13.
Observamos que é necessário um contato entre a complexa e
profunda rede informacional que se organiza no cérebro humano (a
mais complexa estrutura do universo) e o Absoluto, para constituir a
consciência humana. Nessa visão, o homem, igualmente, apresenta dois
inconscientes ou dois egos: um que é derivado da partícula, filogenético
“réptilico”, que é egocêntrico, agressivo, de características não pessoais:
o ego do domínio; e um ego derivado da onda (informação=sentido),
filogenético, “espiritual”, que emerge, num nível superior, mais tardiamente na evolução humana, com tendência a compartilhar, à arte, à
solidariedade: o ego do amor. Este último é o mais profundo, o mais real
no ser humano. O Reino, de alguma forma, vive neste ego, atua sobre os
humanos e assim está no centro da história. Desde este ponto de vista,
tudo o que na sociedade estimula o ego réptilico vai contra o Reino, ao
contrário do ego espiritual.
A teoria da existência de dois egos é sustentada pela Terceira Escola de Psicologia de Viena, fundada por Viktor Frankl14. Está presente
na espiritualidade de Thomas Merton sobre o eu verdadeiro e o eu falso15,
e na carta de São Paulo aos Romanos: – Eu me comprazo na lei de Deus,
enquanto homem interior, mas em meus membros descubro outra lei que
13
Ver como a procura da verdade leva à mesma conclusão em R. A. Yunes Syntropy
(2013) (1) 42-59.
14
Frankl V. “La presencia Ignorada de Dios. Psicoterapia y religión” 3ra ed. Herder,
Barcelona 1981.
15
Merton T. “The Silent Life” Farrar, Straus, Giroux 4ta ed. USA 1978.
Encontros Teológicos nº 66
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O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte I)
combate contra a lei que minha inteligência ratifica; ela faz de mim o
prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros”16.
Na complexidade humana, esses egos funcionam juntos, não podem
ser separados nem reduzidos a um só. No entanto, o predomínio de um
ou do outro depende de muitas circunstâncias, e sempre, o sentido final é
fornecido pelo ego espiritual. Por isso, na análise dos processos sociais,
muitas vezes é difícil distinguir qual é a sua orientação ou resultado.
É importante esclarecer que a analogia, expressada no ego reptílico, está fundamentada na teoria do neurocientista Paul MacLean sobre o
cérebro com três regiões representando o processo evolutivo: o reptilico,
o mamífero ou límbico, e o neo-mamífero. O reptílico corresponde às
estruturas do sistema nervoso que existem nas formas de vida mais primitivas (tartarugas, cobras, crocodilo, etc). Esta parte controla funções
essenciais da vida como batimento cardíaco, respiração, temperatura do
corpo, entre outras. Ele também guia a conduta para determinar território
(propriedade e domínio), caçar, formar hierarquias sociais, selecionar
líderes em forma rígida e compulsiva17.
Em meu conceito, a serpente do Genesis 3,1 é uma figura que
representa o ego réptilico do ser humano, tentado a ter o poder absoluto (conhecendo o bem e o mal) e dominando o ego espiritual. A ação
deste ego é permanente na evolução humana, e atualmente o conhecer
significa dominar, isto é, determinar o bem e o mal. Aparentemente, o
Gênesis procura mostrar o projeto de Deus em toda a história humana.
O conceito de pecado original deve ser revisto. Na linha científica e
lógica de Teilhard de Chardin, podemos falar de defeito original ou efeito
colateral original: a existência de um ego réptilico necessário para a vida.
Isto coincide com interpretações teológicas que consideram que o pecado
original resulta de uma afirmação sobre a essência do homem: assim,
o pecado de origem é o arquétipo do pecado. O plano de salvação de
Deus compreende uma cristologia de dimensões cósmicas.
Outro dado importante existe em Gênesis 3,22, onde se lê: “O
homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal. Que ele,
agora, não estenda a mão e colha também da árvore da vida, e coma,
e viva para sempre”. Atualmente existem cientistas que trabalham em
88
16
Rm 7, 21-24
17
Albright C.R.; AShbrook J.B. “Where God lives in the human brain” Sourcebooks,
USA 2001.
Encontros Teológicos nº 66
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projetos para conseguir um tempo de vida humana maior e, se possível,
a imortalidade. Aubrey de Grey, chefe do SENS em Califórnia18, biomédico britânico, acredita que nas próximas décadas existirão pessoas
que poderão viver 1.000 anos19.
Tais fatos demonstram a necessidade de uma relação mais profunda entre ciência e teologia. Teilhard escrevia: “Ciência e Revelação,
cada qual por seu lado, não podem subsistir funcionalmente, senão no
movimento que as leva uma ao encontro da outra”20.
O divórcio de Ciência e Religião teve graves consequências, como
J. Eccles21, Prêmio Nobel de Medicina, escreve: “Gostaria de adicionar
que o homem caminha sem sentido nestes dias, tendo perdido o que poderíamos denominar o sentido da condição humana. Necessita de uma
nova mensagem para poder viver com esperança e sentido. Creio que a
ciência tem ido demasiado longe na ruptura das crenças do homem em
sua grandeza espiritual, subministrando a ideia de que é simplesmente
um insignificante ser material na imensidade cósmica”.
Frankl mais corajosamente escreve: “Não foram apenas alguns
ministérios de Berlin que inventaram as câmaras de gás de Maidanek,
Auschwitz, Treblinka; elas foram sendo preparadas nos escritórios e
nas salas de aulas de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se
contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com
o Prêmio Nobel”22.
A revolução agrícola que lentamente substituiu as tribos de caçadores nômades iniciou entre 19 ou 17 mil anos a.C. e se consolidou faz
11 mil anos no Oriente próximo. O cavalo e a ovelha são domesticados.
Há uma grande explosão demográfica e tecnológica. A religião se organiza para representar a nova realidade política e social. Dessa época
são alguns panteões politeístas bem conhecidos, que incluem os deuses
sumérios e egípcios. Os panteões clássicos incluem a religião na Grécia
antiga e a religião Romana.
No entanto é importante indicar o trabalho realizado por W.
Schmidt, que, continuando os trabalhos de Andrew Lang, desenvolveu
18
The Daily Galaxy 27/03/2009.
19
Daily Mail Reporter 06/07/2011.
20
Strategies for Engineered Negligible Senescence.
21
Popper K. R.; Eccles J. “El yo y su cerebro” Labor, España 1980.
22
V. Frankl “Sede de sentido” Quadrante, Brasil, 1989.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
89
O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte I)
um método histórico de análise das instituições sociais e do papel dos
maiores deuses em povos primitivos isolados e na etapa inicial de desenvolvimento econômico. São povos que conservaram culturas mais
primitivas que as politeístas. Tribos da Austrália, África, norte da Ásia,
da América do norte e da Terra do Fogo. A crença em um Ser Supremo
existe em todas essas culturas23.
2 O Povo de Israel
Neste processo evolutivo do ser humano, em determinado momento, em Ur, na Mesopotâmia, aproximadamente 2100 a.C., Abraão,
que morava numa sociedade politeísta, a qual ele combateu , escuta uma
voz interior (Deus começou a revelar-se ao mundo) na qual Deus (um
ser transcendente) lhe solicita mudar de lugar e ir para uma terra onde
sua descendência formaria um novo povo monoteísta.
Naquele tempo governava o rei Nimrod, que tentou destruir o
movimento monoteísta. Mas Abraão foi salvo. Passar do politeísmo
ao monoteísmo significou um profundo movimento de unificação. Esse
desterro permitiu aos descendentes de Abraão constituir um importante
povo monoteísta.
No entanto, eram ainda grupos seminômades. Alguns desses
grupos tornaram-se sedentários, especialmente os que se estabeleceram
ao norte, às margens do lago da Galileia. Os do centro e sul da região
tinham uma vida mais móvel e nas épocas de fome desciam para o Egito. Jacó desceu aproximadamente no ano de 1700 a.C. Os grupos que
ficaram no Egito foram, com o tempo, obrigados pelos faraós a trabalhos
forçados.
O mesmo Deus de Abraão inspiraria Moisés a libertar o povo
da escravidão. Aqui existem dois importantes aspectos que devemos
salientar:
1) É um Deus que se define a Moisés como “Eu sou aquele que
sou” e continuou “... aquele que é me enviou até vocês” 24.
Deus se define como o Ser por excelência (o existente por si
mesmo), significando sua preexistência absoluta sobre todos os
90
23
J. L. Graham “Genesis and the Religion of Primitive Man” disponível em: <www.
xenos.org/ministries/crossroads/onlinejournal/issue>.
24
Ex. 3,14.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Rosendo A. Yunes
seres criados. É uma definição filosófica surpreendente, vinda
de 1200 anos a.C.;
2) O segundo aspecto é que Deus estabelece uma aliança para a
qual entrega um decálogo de mandamentos que não devem
ser interpretados de forma deontológica, mas teleológica, ou
seja, como orientação para uma sociedade ideal e como código
da aliança que estabelece normas práticas para conseguir essa
sociedade. O importante não era somente o monoteísmo, num
mundo politeísta, mas Israel seria diferente de outros povos: o
ideal era que não haveria escravos entre eles, não se abusaria dos
órfãos nem das viúvas; ter-se-ia compaixão dos estrangeiros.
Entre os anos 1200 e 1000 a.C., época dos Juízes, cada tribo se
organizou de forma independente, mas a vida de todas foi mais sedentária. A guerra com os filisteus estimulou os israelitas a pedir um rei,
aproximadamente no ano 1020 a.C.
Nesse momento, o Reino resumia as aspirações e expectativas
mais profundas do povo. Era um reino concreto, real, deste mundo, como
desejavam os israelitas. Assim, no final do governo de Samuel (o último
dos juízes), os israelitas pediram um rei, à semelhança de outros povos.
O Profeta ficou muito triste25 porque sabia que o único rei de Israel devia
ser o Senhor26. Nesse pedido, os israelitas manifestaram não aceitar a
realeza de Deus.
Depois, os israelitas passaram a celebrar especialmente a memória
do rei que unificou as tribos pelo pedido do povo: Davi. Davi (em hebraico
= amado) foi um rei popular que conquistou Jerusalém e tornou-a centro
religioso dos israelitas, trazendo consigo a arca da aliança. É o nome
humano mais mencionado na Bíblia (cerca de 1.000 vezes). Pela primeira
vez constituiu um reino unido, poderoso, com prosperidade e justo.
A Davi, pelos profetas, foi prometido que o Messias seria seu descendente, o qual restauraria o reino paterno e estabeleceria o reinado de
Deus sobre a terra. Para Isaías, o Messias instauraria o reino da justiça,
da felicidade, da paz e da sabedoria27. Na oração que o povo conservava
na época de Jesus, o Qaddish, assim se rezava: “Que seu nome seja
exaltado e santificado no mundo que ele criou segundo sua vontade. Que
25
1Sm 8,5s.
26
1Sm 12,12.
27
Is 11,1-9.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
91
O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte I)
seu Reino irrompa em nossa vida e em nossos dias, nos dias de toda
a casa de Israel prontamente e sem demorar...”
Assim, o Messias, Jesus, era a esperança dos velhos profetas e
patriarcas e do povo de Israel. Toda a longa história de um povo estava
orientada para Ele. Ele seria o Senhor da história, inauguraria o Reino
de Deus no tempo dos homens.
3 Análise dos evangelhos
Refletir sobre o Reino de Deus é igualmente refletir sobre a missão
evangélica, pois o conteúdo central do Evangelho é: “o Reino de Deus
está próximo”28. Notar que a expressão “Reino de Deus” ocorre no Novo
Testamento 122 vezes, 99 nos 3 evangelhos sinópticos e 90 vezes nos
lábios próprio Jesus.
Mas, o que realmente significa o Reino de Deus? No Evangelho
existem expressões como “O Reino de Deus está dentro de vocês” ou “entre
vocês”, que parecem reduzir o Reino a uma vivência puramente subjetiva,
pessoal, individual. Assim, a teologia liberal indica que no judaísmo tudo
era dirigido ao coletivo, ao povo judeu, e tudo era cultual. Jesus muda
essa concepção, dirigindo sua pregação para o individual e moral, e essa
concepção começou a prevalecer na teologia depois de 1930.
Nos círculos da teologia católica, primeiramente se colocava a
Igreja como ponto central do cristianismo, como o Reino de Deus; depois
se passou para uma visão cristocêntrica e por isso se aceitaria Cristo
como o ponto central de tudo; transformou-se em teocentrismo, porque
assim se compreenderiam todas as religiões e finalmente chegou-se ao
reinocentrismo, onde temos um reino no qual domina a paz, a justiça e o
respeito pela criação. Este seria o objetivo final da historia. As religiões
conservariam suas tradições, sua identidade, mas trabalhariam pela
construção do Reino.
Jesus define que Deus está em ação agora, Ele se encarnou no
mundo, se revela como seu Senhor, como o Deus vivo. Assim a soberania
de Deus sobre a história “transcende a história no seu todo e vai além
dela; a sua dinâmica interna conduz a história para além de si mesma.
Finalmente, o reino é, ao mesmo tempo, algo sempre presente”.
28
92
Cf. Mc 1,15.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Rosendo A. Yunes
Ratzinger insiste: “O tema do ‘Reino de Deus’ penetra toda a
pregação de Jesus. Só o podemos compreender a partir da totalidade
de sua pregação”. Assim, fica em aberto o diálogo sobre como devemos
interpretar concretamente o Reino de Deus na atualidade. Que significa para um cristão pregar o Reino de Deus? É somente procurar uma
conversão interior da pessoa? É somente procurar mudar as estruturas
sociais para estruturas mais humanas? Existe algum aspecto que seja o
mais importante? 29.
Jesus nasceu na Galileia quando Israel era um pequeno país submetido ao Império Romano desde 63 a.C., quando o general Pompeu
entrara em Jerusalém. Jesus sabia que eles eram os donos da Galileia
e, mais ainda, quando Herodes Antipas, vassalo de Roma, edificou uma
nova cidade às margens do lago de Genesaré e chamou-a Tiberíades
em honra a Tibério, Imperador de Roma. Roma dominava por meio de
governantes, que em nome do Imperador controlavam os povos, às vezes
de maneira brutal.
A Galileia era uma sociedade agrária. Os contemporâneos de Jesus
viviam do campo. Evidentemente, a propriedade da terra era de importância vital. Os Romanos consideravam os territórios como bens de Roma
e exigiam os tributos dos que trabalhavam a terra. Existiam por favor de
Herodes grandes proprietários que viviam nas cidades e arrendavam suas
terras aos camponeses que eram vigiados por administradores. Deviam
pagar com a metade da coleta ou pesadas somas. Havia também simples
diaristas que se deslocavam pelas aldeias em busca de trabalho e, assim,
viviam do trabalho ocasional e da mendicância. Jesus conhecia bem esse
mundo, como o confirmam suas parábolas.
Segundo Pagola30, Deus não se encarnou num sacerdote do templo,
nem em um especialista da lei, mas em um Profeta do Reino de Deus. Por
isso, quando Jesus diz: “Vim atear fogo à terra”31, pode-se interpretar
que é como o resultado de seus gritos mais evidentes:
1) Em Mt 5,20 Jesus declara “Se a vossa justiça não superar a
dos letrados e fariseus, não entrareis no Reino dois céus” e
“Buscai antes de tudo o reinado de Dus e sua justiça e o resto
vos darão por acréscimo”.
29
Ratzinger J. “Jesus de Nazaré” vol 1.
30
Pagola J. A. Jesus. Aproximação Histórica, Vozes, Brasil 2010.
31
Lc 12,49.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
93
O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte I)
2) Em Mt 6,19-21, Jesus define, com enorme sabedoria: “Não
acumuleis riquezas na terra, onde roem as traças e o caruncho,
onde os ladrões arrombam e roubam. Acumulai riquezas no
céu, pois onde está tua riqueza, aí estará teu coração... Não
se pode estar ao serviço de dois senhores, pois ou se odeia um
e ama o outro, ou agradara a um e desprezará o outro. Não
podeis estar a serviço de Deus e do Dinheiro.” Esta sabedoria
que é de antes e de hoje, de nosso mundo, não é de Deus?
3) Na parábola dos diaristas da vinha32, afirma: “Assim, serão
primeiros os últimos e últimos os primeiros”, e ainda: “Todo
aquele que quiser tornar-se grande entre vós, se faça vosso
servo”. Um bom recado para todos os que exercem algum
poder, inclusive na Igreja. Esta parábola implica uma crítica
duríssima às condições dos diaristas de então.
4) Quantos cristãos (leigos, sacerdotes, bispos) deviam meditar
essas verdades. A não ser que eliminássemos, da Bíblia, a carta de Tiago e o livro do Eclesiástico. O Eclesiástico exorta a
emprestar mesmo a fundo perdido e contrapõe o rico cobiçoso
ao que não se perverte pela riqueza, mas é duríssimo em 34,
21-22: “O pão dos indigentes é a vida dos pobres, e quem tira
a vida dos pobres é assassino. Mata o próximo quem tira seus
meios de vida, e derrama sangue quem priva o operário de
seu salário”. Isso deveria ser lembrado a alguns governos da
Europa atual! Aqui entra um fator decisivo: a justiça. Até um
filosofo pagão, Aristóteles, escrevia que a justiça é a maior
das virtudes.
5) Em Mt 6,6-14, ao ensinar seus discípulos a orar, Jesus propõe:
“Pai, seja respeitada a santidade do teu nome, venha o teu reinado, cumpra-se teu desígnio na terra como no céu!”. “Venha
a nós o Teu reino” parece uma frase de simples compreensão,
mas possui significados exigentes. Deus não deseja ser um rei
que escravize, domine, explore seus servos. Sim, este é o reino
do qual Jesus diz a Pilatos: “Meu reino não é deste mundo”.
O problema que custa a esclarecer é a complexa relação com
“este mundo”.
A mensagem mais revolucionaria de Jesus é que somos filhos,
e por isto irmãos, de um Deus trino que é fundamentalmente
32
94
Mt 20,16.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Rosendo A. Yunes
Amor. A tomada de consciência desta verdade pelo seres humanos já significaria que “o Reino de Deus chegou”. Este anelo
de felicidade, em família, com relações de amor, está presente
em todo ser humano, especialmente no seu processo evolutivo,
que é lento e constitui-se de diversas etapas.
6) Jesus era muito cuidadoso em seu diálogo com as pessoas.
Entretanto, algumas vezes foi duro, como se observa em Mt
23,13: “Ai de vós, letrados e fariseus hipócritas, que fechais
aos homens o reino de Deus! Vós mesmos não entrais e não
deixais entrar os que o procuram.” Evidentemente, o comportamento dos letrados e fariseus tinha suas consequências sociais.
Eles não transmitiam ao povo o real espírito da lei de Moisés.
Assim, fechavam a muitos a possibilidade de entrar no Reino.
De fato, conseguir certo grau de consciência é fundamental
num processo evolutivo.
4 O estranho Reino anunciado por Jesus
Vamos observar isto mais claramente no desenvolvimento histórico
do cristianismo. A história é o início de toda interpretação, a história forma parte de nossa Fé, a investigação histórica nos oferece características
certas de Jesus, o Jesus histórico nos separa do Jesus conformista criado
por alguns “clichês”, como escreve Pagola: “Esse Jesus não pode atrair,
nem seduzir e nem enamorar”. O mesmo autor observa como se pode
desfocar o verdadeiro projeto de Jesus: “Com que facilidade se recorta
sua mensagem mutilando sua boa notícia: por exemplo, como se pode
falar e escrever tanto sobre Jesus, esquecendo seu anúncio central do
reino de Deus?”.
Segundo Kasper33, com Niceia introduziu-se um pensamento
metafísico de tipo essencialista, que deslocou o pensamento da Escritura, que é escatológico e histórico- salvifico. Por isso, o cristianismo
perdeu sua dinâmica histórica e sua perspectiva de futuro. Perdeu-se o
caráter evolutivo do homem e da história. Não se nota, por exemplo,
que a matéria está constituída internamente por algo espiritual, como
é a informação. O logos é ordem do mundo, lei moral, racionalidade.
No entanto, Paulo, na sua primeira carta aos Corintos, deixou claro que
o cristianismo é uma loucura para os Gregos. O logos Grego se opõe
33
Kasper W. Jesus. El Cristo, Sigueme, Salamanca 2002.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
95
O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte I)
ao logos Cristão: o logos da cruz, força de salvação para nós. Como
podiam os Gregos sequer imaginar um Deus que entrega sua vida pela
nossa salvação?
A encarnação é o “grande milagre”, um evento completamente
contrário ao esperado, e é a principal noticia do cristianismo. Este fato
foi interpretado em uma forma limitada. Não tem sido observada sua
importância cósmica, como consumação da evolução, tão apaixonadamente descrita por S. Paulo34: “Sabemos que a criação inteira geme
e sofre as dores do parto até o presente”. Esta encarnação pode ser
explicada cientificamente assim como o conceito de transubstanciação,
que segundo o conhecido físico Tipler, na moderna teoria física, poderia
ser a “coerência quântica”. Isto deve ser objeto de uma aproximação de
ciência e teologia.
A salvação do homem depende da vontade de Deus, que nos amou
primeiro, historicamente, em seu Filho, de modo “concreto”: é um Deus
na história, com o objetivo de salvar a humanidade em Cristo mediante
a divinização. O importante é que Deus se orienta, em seu Filho, desde
a eternidade, para o ser humano.
5 O Reino de Deus na história humana
Eulalio Baltazar35 indica que o problema fundamental é como
distinguir o Reino de Deus na história humana sem separá-lo como outra
realidade (realidade metafísica diferente da realidade física), embora distinguindo esses dois processos. Para Baltazar, não podemos identificar o
Reino de Deus como o crescimento do movimento humano de libertação,
no sentido de fazer da história o objeto de seu próprio desenvolvimento,
como um processo de auto-redenção do homem através da luta de classes.
Para nós, cristãos, a salvação vem de Deus.
Resumindo: para Baltazar, a história não é imanente a si mesma.
Ser imanente a si mesmo é ser totalmente revelado a si mesmo. Pelo contrário, a história é como uma semente que não está revelada a si mesma.
Para ser imanente, deveria estar presente a si mesma com o fruto. Mas
o fruto está ainda oculto nela. O mais profundo da história é o Reino
96
34
Rm 8,19-22.
35
Baltazar E. “Liberation Theology and T. de Chardin” in Teilhard in the 21st Century.
The emerging spirit of Earth. A. Fabel, D. St. John Eds. Orbis Books, NY 2003.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Rosendo A. Yunes
de Deus, que está ainda oculto à nossa vista. O Reino está no centro da
história, no coração da história, e por isso o Reino é imanente à história.
Assim, o Reino, que é transcendente à história, é igualmente o mais
imanente a ela. Como Cristo é o Omega da história, Cristo é imanente à
história, mais imanente que a história a si mesma.
Mas, Baltazar não esclarece como o Reino está no centro da história
e como atua sobre os seres humanos. Um problema é saber se a história
humana e a história cristã da salvação, metafisicamente, são duas realidades
diferentes, ou constituem uma mesma realidade, na qual se podem distinguir. Se fossem realidades diferentes, como se explicaria que o homem
possa ser divinizado na plenitude do Reino de Deus? Como poderíamos
explicar as duas naturezas de Cristo numa única realidade histórica? As
duas naturezas corresponderiam a histórias diferentes? Se Deus é considerado estar fora do tempo – como na teologia clássica influída pela metafísica
de Platão – como pode participar da história temporal?
A participação de Deus na história não significa que Ele esteja
sujeito ao transitório, à contingência e à evolução. Ele é o Senhor do
tempo. Ele permite seu tempo a tudo para desenvolver sua plenitude.
Metaforicamente, se pensamos o mundo em evolução como uma árvore (modelo usado por Teilhard de Chardin), Deus seria o chão que é
imanente à arvore, não fisicamente, mas em um sentido mais profundo,
porque está presente em sua essência. Sem chão a árvore não teria vida,
nem se desenvolveria.
Deus é um manto de amor que conserva o universo, mas é igualmente seu fator de atração, seu ponto final, seu ômega. Se a humanidade
deve ser integral e totalmente libertada, ela deve ser totalmente histórica.
A libertação-salvação de Deus através da história deve ser do homem todo
e de todos os homens. Assim, são dois aspectos de uma mesma realidade
como a que se observa, já claramente, no microcosmo dos constituintes
mais elementares da matéria, que são onda e partícula.
Segundo S. Paulo, existe uma profunda continuidade entre nossa
vida presente e nossa vida futura junto a Deus. Ele explica esse fato com
o modelo da semente que apresenta um processo em duas etapas: uma
primeira etapa de morte, de queda, para dar lugar a uma segunda etapa
de germinação, de vida nova. Da mesma forma, nosso corpo morre, para
ressuscitar com um corpo glorificado, transformado36.
36
1Cor 15,34-44.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
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O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte I)
A ressurreição dá suporte para esta afirmação. Em 1 Cor 15,1617, S. Paulo afirma: “Pois, se os mortos não ressuscitam, tampouco
Cristo ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, vossa fé é ilusória”.
Igualmente em Ef 1,10, S. Paulo escreve: “Deus... fez-nos conhecer o
mistério de sua vontade, a livre decisão que havia tomado outrora de
levar a historia à sua plenitude, recapitulando (reunindo) o universo
inteiro, tanto as coisas celestes como as terrestres, sob uma só cabeça,
Cristo”. Ele também escreve que, quando Cristo voltar, a seguir virá o
fim, quando Ele entregar o Reino a Deus Pai e acabar com todo principado, autoridade e poder. O último inimigo a ser destruído é a morte, o
mal físico, consequência da criação evolutiva.
E-mail do Autor:
[email protected]
98
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Resumo: O Reino de Deus é uma utopia de que o homem necessita para plasmar
a história. A utopia dos primeiros Cristãos desapareceu quando Constantino ligou
a religião ao Estado. Posteriormente, no fim do século XIII, o Papa Bonifácio
VIII se arrogou um poder superior, imaginando construir o Reino pelo “poder”e
não pelo “amor”. Depois, ainda, o cristianismo se afastou da cultura científica
com Galileu. No cristianismo hispano-americano, porém, devemos salientar
a luta dos religiosos dominicanos e a escola de Salamanca (Montesinos, Las
Casas, Vitoria), que conseguiram a Lei das Índias (1542), verdadeira origem
da declaração universal de direitos humanos (ONU, 1948). A construção do
Reino deve ser compreendida com uma visão teleológica e não deontológica:
assim devemos caminhar com nossa memoria histórica, seguindo Jesus, para
promover um mundo mais humano, mais fraterno, orientado para a salvação
definitiva por Deus.
Abstract: The kingdom of God is a utopia that the man needs to shape the history.
There was a utopia of the first Christian that desappeared when Constantine
put together the religion with the state. Later, at the end of 13th century, Pope
Boniface VIII has arrogated a higher power , imagining to built the Kingdom by
“power” rather than “love”. As an important result, Christianity stood aside of the
scientific culture with Galileo. In the Spanish-american Christianity, however, we
must emphasise the work of religious dominicans and the school of Salamanca
(Montesinos, Las Casas, Vitoria), who managed the law of Indias (1542) real
origin of the universal declaration of human rights (UN 1948). The construction
of the kingdom must be understood with a teleological not deontological vision,
so we must walk with our historic memory, following Jesus, to promove a world
more human, more fraternal, guided to the definitive salvation by God.
O significado do Reino de Deus à luz de uma
teoria evolutiva
Parte II: De Jesus até o Presente
Rosendo A. Yunes*
* O autor é Pesquisador Senior do CNPq; Doutor Honoris causa da UNIVALI; Premio
Scopus Elsevier-Capes 2009 pela relevância de sua contribuição científica à formação
de recursos humanos; Medalha João David Ferreira Lima da Prefeitura Municipal de
Fpolis pela sua contribuição à educação superior em Santa Catarina.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013, p. 99-119.
O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte II)
1 O Reino de Deus como utopia social dos cristãos
Os fariseus e letrados foram qualificados por Jesus, no capítulo
23 de Mateus, como hipócritas, porque defendiam estruturas opressivas,
fechando, assim, aos homens, o reino de Deus neste mundo. Jesus fala no
tempo presente: “Fechais aos homens o reino de Deus. Vós não entrais,
nem deixais entrar os que o tentam”. Não está falando no tempo futuro,
de um reino que não é deste mundo.
Devemos pensar que tipo de sociedade permite ao homem uma
maior abertura para o transcendente. Uma como no judaísmo, onde
tudo era dirigido ao coletivo, e tudo era cultual e subordinado ao culto,
ou uma como a sociedade liberal, que salienta o indivíduo até chegar a
estimular um narcisismo hedônico e um relativismo no qual não existe
verdade objetiva, mas meramente subjetiva.
Em nossa visão, o problema fundamental reside em definir os
limites e a relação entre o individual e o social e, mais profundamente,
entre poder e amor. Logicamente, no homem, existe uma luta, em certos aspectos, entre o ego reptílico e o ego espiritual. No plano social,
manifestam-se como vontade de poder ou vontade de sentido (de amor).
A vontade de poder procura somente um valor subjetivo, um valor para
mim; a vontade de sentido observa um valor objetivo, um valor em
si. A vontade de poder transforma as pessoas em egoístas; a vontade
de sentido (o amor) permite perceber os valores e o outro espiritual.
A vontade de poder procura a propriedade absoluta e o prestigio, para
satisfazer o ego.
São os 3 “P” (propriedade, prestigio, poder) que levam ao prazer
que sucede quando se elimina o sentido de uma atividade. É algo patológico, porque ao homem não satisfaz o mero prazer: sempre pretende
um sentido. O prazer se esgota em si mesmo, é somente algo indiferente
e sempre igual. Contrariamente, o ego espiritual, que é o mais profundo,
é real no ser humano, e procura transcender pelo amor, a arte, o Tu de
outra pessoa, até o de Deus.
Frankl, genialmente, recomenda, àqueles que desejam fazer profissão de poder na política, a frase de Ruskin: “Existe somente um poder,
o poder de salvar; existe somente uma honra, a honra de ajudar”1. Jesus
empregou a sua vontade de poder para salvar.
1
100
Frankl V. “Homo Patiens” Plantin, Bs. Aires, 1955.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Rosendo A. Yunes
A presença da informação e a emergência do eu espiritual, no
curso da evolução, e sua orientação e convergência para um fator de
atração final (em meu entender o Reino, o ponto ômega de Teilhard),
explica porque Ele está no centro da história e, mais ainda, é um futuro
que já tem efeito sobre o presente. Isto encontra suporte inclusive na
teoria quântica. Cramer, em 20092, apresentou uma interpretação da
teoria quântica usando uma transação não local executada através de um
intercâmbio de ondas retardadas (que se movem para o futuro) e o das
avançadas (que se movem para o passado). Vannini e Di Corpo (2011)3
observam que as ondas avançadas significam uma lei oposta à da entropia, porque conduzem à ordem, à organização e à complexidade. Elas
são o fundamento dos atratores (“fatores de atração”) e estão situadas
no futuro da evolução dos sistemas complexos.
A ciência cada dia reconhece mais a convergência que foi observada por Teilhard de Chardin. Simon Conrad Morris, um reconhecido
evolucionista inglês, escreveu um livro com o objetivo de demonstrar
que, considerando as restrições existentes na evolução e a ubiquidade
da convergência, que faz a emergência de seres como nós algo quase
inevitável, de fato demonstra que, em essência, os fatos mais significativos da evolução são coerentes com a Criação. E ainda escreve: “Assim,
em algum ponto e de algum modo, dado que a evolução tem produzido
espécies com um sentido de propósito, é razoável considerar as demandas
da teologia seriamente”4. Teilhard observou, igualmente, uma tendência
à socialização. Socialização que não é coletivismo, porque não somos
formigas. É uma união verdadeira que não confunde, mas diferencia.
Num universo convergente, cada elemento encontra sua perfeição não
em si mesmo, mas incorporando-se em um polo superior de consciência.
Assim, a socialização significa a era da pessoa.
O Reino de Deus pleno, total, é o reino que vai chegar em algum
momento. Ele está próximo, tanto no espaço como no tempo. Distância
entre a realidade e o transcendente praticamente não existe, porque o
transcendente está de forma imanente na realidade, não é completamente
difícil de sentir o transcendente pela meditação, a oração individual e o
2
Cramer J. G. “Proceeding of the NASA breakthrough propulsion physics workshop”
p.12-14, 2009.
3
Vannini A.; Di Corpo U. J. of Cosmology, 2011.
4
S. C. Moris “Life’s Solution. Inevitable Humans in a Lonely Universe” Cambridge
Univ. Press, USA, 2003.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
101
O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte II)
culto social. A respeito do tempo, nós estamos pedindo a Deus, no Pai
Nosso, que “venha o seu Reino...”. A propósito, devemos lembrar que
Deus é o Senhor do tempo, e assim, para Ele, “mil anos são como um dia,
e um dia pode equivaler a mil anos” (2Pd 3,8). Por isso, a proximidade
deve ser permanentemente observada, como aliás Jesus recomendou.
O importante é que o Reino pleno de Deus é igualmente uma
utopia. O ser humano é um ser imaginativo, com desejos, o único capaz
de pensar a vida para além de sua existência. O ser humano precisa da
utopia, porque ela expressa a sua afirmação. A desaparição da utopia
ocasiona um estado de coisas estático e o homem se transforma em coisa.
Assim o homem seria mero produto de impulsos, perderia o desejo de
plasmar a historia e, com isso, a capacidade de compreendê-la. Por isso,
Teilhard afirma que, para o cristão, o êxito biológico não é somente uma
probabilidade, mas uma certeza , porque Cristo (e com Ele o mundo) já
ressuscitou. Esta certeza proc ede de um ato de fé , que deixa a pessoa
com todos os anelos da condição humana. Este fato está, portanto,
ligado à nossa fé. Fé na promessa de Deus, de um Reino de felicidade
que não terá fim. O cristão de hoje conserva essa fé? Isto deveria ser
meditado, quando se pensa em “nova evangelização”.
2 O Cristianismo na história: o futuro do
cristianismo
Aceitando o conceito de Mannheim , ao distinguir ideologia de
utopia (ideologia como uma construção conservadora de um sistema
social especialmente pelos que desejam conservar o poder; utopia como
o desejo de todo ser humano oprimido, por diversos fatores, que deseja
uma mudança de estruturas sociais), vemos na história do povo de Israel
a permanente utopia de um reino que não terá fim.
Existiu uma utopia do cristianismo no modelo fracassado dos
primeiros Cristãos. Talvez por isso, o Imperador Constantino estabeleceu uma sociedade onde a religião estava intimamente ligada ao Estado
e por isso era obrigatória para os súditos. Formulou-se então uma ideologia sacralizadora do poder, e as relações sociais foram naturalizadas e
sobrenaturalizadas para conservar a ordem social existente na época.
Devemos observar, no entanto, que o Cristianismo naquele momento conseguiu responder a dois movimentos com alcance cultural e
102
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político, como indica Libânio5. Diante da tendência filosófico racionalista, mostrou enorme capacidade de assimilar a cultura grega clássica
em sua teologia. Diante das miríades de expressões religiosas populares,
sincréticas, opôs certa flexibilidade, sem perder consistência e identidade.
Sirva como exemplo a festa do Natal.
O Cristianismo do Império provocou o distanciamento crescente
entre clero e povo simples. No século XI deu-se a virada para o clericalismo. O clero e o Papa se arrogaram um poder superior. Bonifácio
VIII, no fim do séc. XIII, afirmou que toda autoridade vem de Cristo
e dele mesmo como vigário de Jesus Cristo. Bonifácio VIII morreu
aprisionado, mas sua ideologia resistiu durante séculos. O ego reptilico
dominando o espiritual.
Libanio expressa claramente o problema: “A intenção do Cristianismo não tinha os interesses rasteiros de políticas de Estado. O Sonho
era transformar a terra no Reino de Deus. Ideal maravilhoso. Mas errou,
imaginando que o realizaria pela via do ‘poder’. Poder que foi a tentação à qual Jesus resistiu constantemente”.
No século X, aproximadamente, houve alguns desequilíbrios sociais que se expressavam, inclusive, em termos religiosos. No período
medieval, houve grande mobilização dos pobres que criticavam a vida da
Igreja institucional pela sua riqueza, decadência moral e clericalização
em detrimento dos leigos. Daqui se explica, no começo do séc. XIII, a
aparição das ordens dos mendicantes: franciscanos e dominicanos. As
mudanças tecnológicas de formas de produção, a concentração populacional nas cidades ,a imprensa etc., requeriam novas estruturas sociais.
A evolução ocorre assim, existe uma série de mudanças que vão transformando as velhas estruturas em problemas para o desenvolvimento
social e chegam até um ponto critico no qual as estruturas devem ser
cambiadas.
Um problema cultural importante apareceu na questão de
Galileu Galilei. O mundo ptolomaico, que era uma concepção científica pré-moderna, imbricado com as Escrituras, foi questionado pelos
cientistas. Grupos da Igreja se sentiram ameaçados na concepção da fé.
Assim, criaram um grave problema entre ciência e fé, problema que se
prolonga até o presente. Para piorar o caso, não tinham estudado algo
muito importante, na minha opinião Galilei escrevia que: “A filosofia
5
Libânio J. B. “Qual o futuro do Cristianismo?” Paulus , Brasil 2006.
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O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte II)
está escrita nesse grandioso livro que se mantém continuamente perante
os nossos olhos (quero dizer, o universo), mas não se pode entendê-lo
se primeiramente não se cuida de entender a língua e conhecer os caracteres em que está escrito. Está escrito em linguagem matemática, e os
caracteres são triângulos, círculos, e outras figuras geométricas, sem as
quais é impossível entender humanamente sequer uma palavra; sem estes
meios, é dar voltas em vão num obscuro labirinto”6. A matemática e a
lógica, são informação fundamental constituinte da matéria, e base
da ciência7. Assim, a filosofia escolástica ficou desorientada e afastada
da ciência, não considerando sua importância na vida, e na evolução da
mente humana8. O cristão perdeu o movimento cultural e político do
momento. Fundamentado em sua utopia, devia absorver a ciência, que se
orientava para o futuro, e pensar quais são as estruturas que permitiriam
uma vida mais digna para todos, sem excluídos, o que não ocorreu. O
Cristianismo se transformou em ideologia conservadora, esquecendo
a utopia. Esqueceu o ego espiritual, talvez por comodidade. Mais adiante
voltaremos a isso, na história latino-americana.
No entanto, nesta análise histórica, devemos salientar um grande êxito do catolicismo hispanoamericano, pelo exemplo que foram
os freis dominlcanos, Antonio Montesinos e Bartolomeu de las Casas.
Montesinos, no dia 21/12/1511, em sua homilia frente às mais altas autoridades da Espanha, fez a primeira defesa da vida na América latina:
“Dizei-me com que direito e em virtude de que justiça, mantendes os
índios numa escravidão tão cruel e horrível? Quem poderia autorizarvos a empreender todas essas guerras detestáveis contra pessoas que
vivem tranquila e pacificamente em seu país, bem como promover uma
exterminação desses povos, em espantosos assassinatos e carnificinas?
Como podeis oprimi-los e esgotá-los dessa maneira, sem lhes dar de
comer nem tratar das moléstias a que são expostos mortalmente pelos
trabalhos excessivos que exigis deles? Não me seria justo afirmar que
vós os matais para extrair e acumular vosso ouro de cada dia?...”
Montesinos foi perseguido pelas autoridades, mas ele e os dominicanos estavam com uma fé firme e asseguraram que não temiam os
poderes da terra frente à sua obediência ao evangelho. Frente ao ego
totalmente reptilico dos conquistadores, aparece o ego espiritual em sua
104
6
G. Galilei. “O Ensaiador”. S. Paulo, Abril Cultural, 1987.
7
Ver R. Yunes. J.Theor, Biol (2005)236, 95-110.
8
Yunes R. A. J. Theor. Biol. 236, 95-110, 2005.
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Rosendo A. Yunes
máxima manifestação: dar a vida pelos seus irmãos. Montesinos morreu
mártir, segundo está escrito no convento de San Esteban de Salamanca.
Não foi levado aos altares, mas deveria. Quanto a Frei Bartolomeu de
las Casas, escutou a homilia de Montesino sem compreender muito sua
profundidade. Mais tarde, três anos depois, em 1514, abriria mão de suas
posses (terrenos, encomendas de índios, quase escravos, com sua descendência pelo prazo de suas vidas) e se transformaria no “procurador e
protetor universal de todos os povos indígenas”. De las Casas, possuído
de um sonho – a justiça para com os índios – fez disso a razão de sua
vida, para precisamente procurar o Reino de Deus e sua justiça. Assim,
lutou durante 50 anos para alertar Espanha e Europa das atrocidades que
se cometiam no Novo Mundo. Na prática, conseguiu duas vitórias que,
sempre, considerou insuficientes: As Novas Leis promulgadas em 1542,
que encerraram o sistema de “encomendas” (praticamente a escravidão
dos índios) e as doutrinas jurídicas do grande reformador da teologia
Francisco de Vitória, que demonstrou que não existia servidão natural
dos índios da América. Lamentavelmente, o nome de Frei Bartolomeu
de las Casas (1474-1566) e da escola de Salamanca continuam quase
desconhecidos no Brasil9.
Frente à doutrina dominante que identifica 3 modelos históricos
dos direitos humanos (inglês, francês e colônias inglesas nos EUA), modelos de individualismo possessivo e belicista, devemos colocar o modelo
das leis de Indias das colônias espanholas dos séculos XVI e XVII. A
escola de Salamanca com Francisco de Vitoria levou a enunciados que
veremos consagrados na Declaração Universal de 1948 pela ONU. A
obra De Regia Potestate de las Casas é precursora do direito dos povos
e até da verdadeira Teologia da Libertação.
No entanto, o mais notável fato do cristianismo na América latina foram as reduções jesuíticas do séc. XVII: aldeamentos indígenas
organizados e administrados pelos padres jesuítas. Sua concepção era
fazer uma sociedade diferente, inspirada no Evangelho, mas adequada
para sua época. Assim, conseguiram realizar uma das mais significativas
utopias do cristianismo. Eram autossuficientes e sua estrutura econômica
e cultural funcionava em um regime comunitário. No século XVIII, com
mentiras, como a de que os jesuítas queriam formar um império, setores
do catolicismo, que consideravam os índios uma raça inferior, e os po9
Frei Bartolomé de las Casas: “O Paraíso Destruído. A sangrenta história da conquista da América Espanhola”. L&PM Ed., Brasil, 2008.
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O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte II)
derosos de todos os tempos, conseguiram destruir toda essa admirável
obra de cristãos comprometidos com o Reino de Deus.
O poder e o dinheiro, que funcionam juntos, dominaram o amor.
O ego reptilico não permitiu a realização plena do ego espiritual do ser
humano. As pequenas vitórias de las Casas permitiu que na Argentina,
o país mais europeu da América latina, mesmo depois do genocídio de
índios no século XIX, 56% da população possua DNA mitocondrial
ameríndio,comprovado por um estudo genético de 2004, sobre a linhagem
materna (mitocondrial). Isto permitiu também que um índio seja atualmente presidente da Bolívia: Evo Morales. No entanto, aqui aparecem os
problemas atuais. Este presidente declara recentemente “Eu sou católico,
mas estou decepcionado com a Igreja católica. Pois, faz pouco tempo, a
Igreja na Bolívia abençoou o motim policial”. No Paraguai, a Igreja foi
a primeira a reconhecer o governo golpista de Franco. Devemos lembrar
que quase todos os países latino-americanos não aprovaram o governo
de Franco. O presidente Morales declara também: “Quando o povo está
encurralado pelo Estado colonial, a Igreja Católica não aparece. Mas
quando o povo encurrala o Estado colonial, o padre aparece, rezando
pelos dirigentes. Eu vivi isso como dirigente sindical”.
Como observamos, existem diferenças enormes de posição de
cristãos e de hierarquias frente à realidade atual latino-americana. Isto cria
desorientação, angústia. Acredito que é devido ao fato de muitos, talvez a
maioria, terem esquecido: i) de anunciar, como Jesus, o Reino de Deus;
ii) de refletir, de meditar, sobre como deve ser o Reino aqui e agora.
a) O Reino: uma visão teleológica necessária
O reino de Deus foi o sonho, a utopia, o horizonte de Jesus. Sonho
de que “outro mundo era possível”, aqui e agora, e esperou seu sonho,
e esperando o fez simbolicamente real. Esta é a verdadeira esperança!
Ele sabia que esse horizonte não seria alcançado totalmente aqui, mas
sim ao final, na ressurreição.
O Reino é a boa notícia, a bem-aventurança (felicidade). Jesus
não formulou um código de conduta, proclamou as bem-aventuranças.
Essa proposta simplifica o tratamento dos problemas bioéticos da atualidade. Consideremos o aborto, por exemplo. Como se poderia justificar
com vistas à construção do Reino o aborto, quando toda mulher feliz
deseja ter filhos! O aborto é produto de uma sociedade que não pode
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Encontros Teológicos nº 66
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garantir trabalho, moradia, alimentação, ou seja, os direitos humanos
básicos.
Não podemos ocultar que o aborto é uma realidade diária. Negar
isto seria esquecer uma desigualdade estrutural que mata as mulheres,
especialmente as mais pobres, ante o tranquilo olhar de setores dogmáticos e conservadores da sociedade que usam o slogan “defesa da vida”, de
forma hipócrita. Dom Demétrio Valentim, bispo de Jales e presidente de
Cáritas brasileira, criticou a atitude da Presidência da Regional Sul 1 da
CNBB em assinar material contra uma candidata: “Nunca relacionam o
aborto com as políticas sociais que precisam ser empreendidas em favor
da vida. Votam, sem constrangimento, no sistema que produz a morte,
e se declaram em favor da vida”.
Aqui observamos claramente a posição deontológica, em certo
sentido moralista, de alguns setores religiosos, que não consideram o
mais importante: o fim último que se persegue, ou seja, o teleológico,
que é o Reino de Deus. Isto não significa um teleologicismo.
Inclusive há um grave erro na consideração da lei natural que é
reduzida a um naturalismo ou biologicismo. A natureza é interpretada
como algo fixo, estático, determinista. No entanto, para Santo Tomás, a
lei se diz natural não meramente em referência à natureza física, não
prescinde dela, mas em referência à liberdade e espiritualidade do homem e à plena realização de sua existência. A plena realização significa
igualmente a plena felicidade que está na proposta das bem-aventuranças
(felicidades), a construção do Reino neste mundo.
A natureza humana deve considerar a razão, a liberdade, a cultura,
a história do ser humano, porque ela não é uma essência abstrata. Ela é
racional, interpessoal, livre e histórica. Não é que a razão descubra as
normas na natureza, mas ela descobre a si mesma como parte integrante de
uma natureza complexa que se desenvolve livre e temporalmente. Assim,
a lei natural é aquilo que nos indica o caminho a seguir para atingir
um determinado fim. O fim que se procura é fundamental. Jesus abriu
uma esperança que foi um perigo para Ele, mas era uma esperança ativa
com a qual podemos mudar a atual realidade. O abandono da luta cultural,
especialmente no plano científico, mas igualmente no econômico e social,
pelo conceito de pessoa, levou a um avanço da razão técnico-instrumental
que retira ao mundo objetivo toda racionalidade teleológica. Isto agora
aparece claro na luta pelos problemas bioéticos, onde muitos cristãos
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O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte II)
ainda não compreendem que a lei natural não depende somente do passado, mas talvez, fundamentalmente do futuro (teleologia).
Neste sentido, gostaria de mostrar o erro grave, do ponto de vista
científico, em meu conceito, de um grande teólogo: Andrés Torres Queiruga. Este escreveu um livro intitulado “Repensar a Ressurreição”10, no
qual, fundamentado em paradigmas originados entre os séculos XVII e
XIX, atualmente obsoletos, nega a “real” ressurreição de Jesus. Neste
sentido, recomendaria a leitura do livro de um reconhecido cientista,
Frank J. Tipler: The Physics of Christianity”11, no qual ele sugere uma
interpretação científica da ressurreição “real” do corpo de Jesus. Existem
varias outras interpretações científicas.
Queiruga, recentemente, sugere outra ideia errada sobre ciência, na
linha de pensamento deste trabalho. Segundo ele, considerando o artigo
que publicou em Religion Digital12, a ciência e a religião têm seus próprios
âmbitos, sem nenhuma relação. Então, a Verdade, que é fundamental e
comum à ciência e religião, desapareceria ou ficaria em segundo plano.
O correto, porém, é pensar que a ciência, quando trabalha com amor a
verdade, deve chegar, em algum momento, a encontrá-la, porque Deus
possibilitou a emergência de nossa realidade espiritual com a capacidade
de conhecer a verdade, a realidade fundamental de nossa existência.
As principais potências tecnológicas consideram a economia
como uma guerra, e assim conseguiram dominar os mercados criando
desigualdades cruéis, contrárias ao Reino, entre os países, e voltaram a
impor um sistema de sofrimento aos diferentes povos do mundo. Leiase o artigo do Laureado jornalista Nick Turse sobre Vietnam, Iraque e
Afganistão13: Inteligente mecanismo de domínio: “não à luta de classes,
mas sim a luta econômica”... Na luta econômica, o mercado livre favorece aos poderosos. Assim transformaram o homem em um consumista,
estimulando o ego reptilico pelo marketing : sexo impessoal, comodidade,
poder, beleza física, prestígio etc. O ego espiritual foi reprimido.
Outro problema bioético complexo, é o que corresponde ao “matrimônio” entre homossexuais. Este tema deve ser considerado com
cuidado. Preliminarmente podemos observar que logicamente deve
10
11
108
Paulinas, Brasil 2004.
Doubleday USA 2007.
12
Página digital 10/01/2013.
13
Tom Dispach.com 14-01-2012.
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existir uma correspondência entre o biológico, o psíquico e o espiritual,
que claramente não existe nas pessoas com tendências homossexuais.
Aqui aparece um problema basicamente científico.
A Igreja da Alemanha deu, recentemente, um exemplo ao convocar
peritos universitários para estudar o problema dos abusos sexuais de
sacerdotes e docentes católicos. No entanto, agora, depois de censurar
a pesquisa, retirou a mesma porque a confiança no Instituto chegou a
seu fim pela conduta comunicativa de seu diretor Christian Pfeiffer, um
consagrado pesquisador nessa área14 E a verdade? A pergunta é: por que
não exigir destinar mais verbas para pesquisas e solução destas problemáticas, e não em armas de guerra? O comércio de armas não para de
crescer.15 Entre 2007 e 2011, houve um incremento de 24% em relação
ao quinquênio anterior. Este é o caminho teleológico: inovar em temas
controversos, com a esperança de que a verdade obtida por meio da
ciência chegue a definir essa realidade. Não confiamos totalmente na
verdade? A solução deontológica é discutir empregando argumentos
da moralidade sem considerar as causas do problema. O mundo e a
sociedade estão em evolução: existem muitas perguntas sem respostas
cientificamente claras: qual a causa da homossexualidade? Por que aumenta a infertilidade dos homens? Evidentemente, devem existir fatores
do ambiente, físico e cultural, que estão participando.
Jesus, quando respondeu à pergunta de Pilatos: “Então tu és rei?”,
assim falou: “É o que dizes. Eu sou rei: para isso nasci, e para isso vim
ao mundo, para testemunhar a verdade. Quem está a favor da verdade
escuta minha voz”16. Se os cientistas estão a favor da verdade , hão de
encontrá-la. Quem não está a favor está contra: não vale a neutralidade. Os
cristãos, devemos exigir a pesquisa e a obtenção da verdade em todos estes
problemas modernos da bioética, para construir o Reino e não somente
pensar numa “lei natural”, como coisa do passado, sem ver o FUTURO.
b) O Reino na atualidade
Retomando a história geral do cristianismo, observamos que já no
século XIX aparece o liberalismo num mundo no qual nada permanecia
sagrado, salvo a liberdade para levar a vida de acordo com as próprias
14
Pág. 12, 10/01/2013.
15
Revista Mundo e Missão 02/2012.
16
João 18,37.
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O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte II)
luzes individuais. A utopia liberal postula uma sociedade sem Estado,
onde as corporações governam o mercado que é o que lhes possibilita a
“felicidade”. Com a combinação do interesse egoísta de cada individuo
com o livre intercâmbio, no mercado, o sistema social fica automaticamente regulado. Não precisa obedecer governo, nem Deus, o mercado
define tudo...
O marxismo, que emerge como contraposição ao liberalismo,
igualmente apresenta sua utopia do comunismo, como fase final do
socialismo, que é uma sociedade sem classes, sem Estado e livre de
opressão. As decisões, sobre o que produzir, são consideradas “democraticamente”, permitindo assim que todo membro possa participar do
processo decisório. O anarquismo marxista professa a utopia de que a
liberdade e a ordem são originadas espontaneamente.
Evidentemente, devemos reconsiderar a esperança no Reino, na
realidade terrena. Transportar simplesmente a esperança para um futuro,
além da vida terrena, é um processo alienante e descomprometido com
as realidades humanas. É claro que a plena realização dessa utopia vai
chegar somente com o reinado de Jesus, mas podemos legitimamente
propor soluções acordes com o Reino e denunciar o antirreino como o
fez Jesus17.
Certamente não se trata de um processo privado, individual, de renúncia aos pecados, mas um processo social contra as estruturas sociais
do pecado: mudar uma estrutura por outra não opressiva, e ganhar uma
medida de libertação econômica, política e espiritual. Sabemos que não
seremos completamente libertados nesta história, mas é através da morte
de cada estrutura histórica opressiva que o Reino de Deus avança.
Um breve movimento de atualização da Igreja foi o último Concilio, que definiu fundamentalmente: 1) a Igreja é o “povo de Deus”, e
bispos e padres são somente servidores desse povo; 2) a Igreja assume
todo o humano como próprio, nada lhe sendo alheio. Assim, as grandes tarefas da humanidade – justiça, paz, direitos humanos (liberdade,
igualdade e fraternidade), democracia, política, ecologia, ciência e cultura – tudo é igualmente tarefa da Igreja, porque pertence ao projeto
de Deus criador.
17
110
Mt, cap. 23.
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Infelizmente, o concilio foi esquecido, colocado em gavetas. A
Igreja não está centrada nos leigos e, como Paulo VI reconhecia, não
existe uma evangelização da cultura. Existe, porém, como observamos na
introdução, uma convergência humana. Essa convergência é estimulada
por um poderoso fator de atração, o “Reino de Deus”, que não se pode
engavetar. O ego espiritual sempre emerge, ainda quando não se espera.
É o grão de mostarda, é o fermento.
Paulo VI, guiado pela teleologia, na Evangelii Nuntiandi escreve:
“O Evangelho, e consequentemente a evangelização, não se identificam,
por certo, com a cultura, e são independentes em relação a todas as
culturas. No entanto, o Reino que o Evangelho anuncia, é vivido por
homens profundamente ligados a uma determinada cultura, e a edificação
do Reino não pode deixar de servir-se de elementos da civilização e das
culturas humanas. O Evangelho e a evangelização, independentes em
relação às culturas, não são necessariamente incompatíveis com elas, mas
suscetíveis de as impregnar a todas sem se escravizar a nenhuma delas”.
“A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama
de nossa época, como o foi também de outras épocas. Assim, importa
envidar todos os esforços no sentido de uma generosa evangelização da
cultura, ou mais exatamente das culturas. Estas devem ser regeneradas
mediante o impacto da Boa Nova. Mas um tal encontro não acontecerá,
se a Boa Nova não for proclamada”.
Esta, por sua vez, encontra-se claramente em Lucas 4,18-19: “O
Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para que eu
dê a boa notícia aos pobres...para anunciar a liberdade aos cativos e a
visão aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, para proclamar
o ano de graça do Senhor”. A Boa Nova é a verdadeira libertação de
toda alienação.
Alguns autores consideram que o abandono do cristianismo pelos europeus é produto do caráter dualista do anúncio do Evangelho,
distinguindo por uma parte a vivência personalista da Fé e, por outra
parte, sem relação com esta vivência, a sua participação nos problemas
socioeconômicos. Agora, este conceito foi transportado para a América
Latina. No entanto, algumas entidades da Igreja demonstram que o que
acontece na sociedade não pode ficar à margem da Fé dos cristãos. É agora
indispensável uma conversão política do coração burguês que temos, boa
parte dos cristãos. A verdadeira conversão se realiza no contexto global
da vida social. O Papa Bento XVI, em 12/01/2012, ao falar da crise
Encontros Teológicos nº 66
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O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte II)
global, explicou que ela somente poderá ser vencida com a consciência
de que “o destino de cada um está ligado ao de todos”.
Para surpresa de muitos, Bento XVI afirmara na audiência geral
de 26/09/2007 que a Igreja primitiva, onde se dividia tudo fraternalmente
entre todos, representa um modelo (utopia) para a sociedade. Falou isso
lembrando a responsabilidade do capitalismo a respeito da injustiça e
da devastação ambiental. O Papa lembrou São João Crisóstomo, que
apresentou uma “utopia social”, procurando dar um rosto cristão à cidade. Não é suficiente dar esmolas, ajudar os pobres, caso por caso,
mas criar estruturas novas, com um novo modelo de sociedade baseado
no Novo Testamento.
Faz muitos anos que não escuto isto de algum cristão letrado, iletrado, erudito em teologia ou não. No entanto, tive a satisfação de ler uma
notável homilia de Mons. Romero, no Natal de 1979, seu último Natal,
no qual ele afirmou: 1) com o nascimento de Cristo, o Reino de Deus
já está no tempo dos homens; 2) esse Reino está sendo construído por
Jesus; 3) Ele deseja nossa participação nessa construção. Assim, indica
claramente que “À Igreja, como o Reino de Deus, corresponde criticar,
conscientizar, analisar, denunciando que nos reinos da terra ainda falta
justiça, falta paz, falta eficiência... e somente quando o verdadeiro Rei
anunciado por Deus, o Cristo, for o Rei de todos os corações, só então
existirá o Reino de Deus”.
Há momentos históricos nos quais, considerando o indicado por
Jesus sobre o Reino de Deus, são necessários muitos grãos de mostarda.
Teresa de Jesus, da Espanha colonizadora, era um grão de mostarda: viu
como a cobiça fazia estragos humanos na América, como as leis de 1542
de Carlos V não conseguiram diminuir os danos contra os índios... Teresa
condenou essas práticas e estimulou uma vida mais sóbria e solidária
para todos. Sabia que o dinheiro corrompe e dedicou-se a criar pequenas
comunidades de uma forma de viver diferente, estimulando uma cultura
de vida compartilhada. Assim, podemos considerar grãos de mostarda
pessoas de grande santidade como Francisco de Assis, Inácio de Loyola,
Vicente de Paulo etc., que, ante o que corrompe neste mundo, mostraram
com suas vidas a necessidade de sempre ir ao Evangelho e beber nas
fontes, para serem verdadeiros discípulos de Jesus e construírem uma
Igreja e um mundo melhor. Esses grãos de mostarda, como exemplos,
tiveram uma influência enorme no cristianismo e no mundo, na construção do Reino de Deus.
112
Encontros Teológicos nº 66
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Vejamos a comparação com o fermento. Atualmente é um produto
que está em um envelope e que se coloca na massa de farinha, com o
resultado de fazer crescer a massa. Na época de Jesus, era uma porção
de massa que se deixava apodrecer, era algo corrupto, que se colocava
na massa pura para que fermentasse. Podemos pensar que, quando o grau
de miséria, de corrupção, de alienação do ser humano cresce, o que ainda
não está contaminado reage. O eu espiritual, solidário, não pode aceitar
a falta de justiça, de verdade, de liberdade real, de fraternidade, e
então surgem os movimentos que mudam os sistemas sociais.
c) A atitude dos cristãos
Neste momento, qualquer pessoa honesta deve reconhecer que o
mundo é um imenso oceano de sofrimento, de crueldade e de maldade.
Cada dia morrem de fome 200 mil pessoas, milhões de crianças trabalham como escravas, rios de sangue correm na África pelos diamantes
e agora pelo coltán18, existe exploração do trabalho sexual de mulheres,
trafico com órgãos, o narcotráfico continua a ser um poderoso mecanismo de riquezas etc. Mas Deus está nas vítimas e, por isso, estava certo
o profeta cristão, que foi Emanuel Mounier, ao afirmar: “No futuro os
homens não se dividirão em crentes ou não crentes, mas pela atitude que
assumam ante as vítimas da terra”.
Não devemos esquecer que Deus usa inclusive os erros humanos e
até nossos pecados para fazer emergir das trevas uma luz sobre o futuro:
a libertação plena das pessoas. Inclusive podemos observar que escolheu
Simão de Cirene, e não algum de seus discípulos, para carregar a cruz
de se Filho. Será que muitos Simões não estão atualmente carregando a
cruz em lugar dos cristãos em alguns países? E os cristãos perseguidos
no Meio Oriente, não o serão por causa da nossa omissão nos problemas
do mundo atual? Onde ficou a solidariedade do nosso ego espiritual?
É ainda Pagola que define o que devemos fazer. Ele explica que a
religião Cristã não é uma a mais, ela é uma religião profética, impulsionada por Jesus para promover um mundo mais humano, orientado para
sua salvação definitiva em Deus. Por isso, preocupados por restaurar o
“religioso” frente à secularização moderna, corremos o risco de caminhar sem o espírito profético. Assim, Jesus se distanciará de nós e irá
18
Fundamental para a indústria de aparelhos eletrônicos, centrais atômicas e especialmente telefones celulares.
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O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte II)
para longe, seguindo o seu caminho. Nada vai impedi-lo de seguir sua
tarefa libertadora. Outros, de fora, reconhecerão sua força profética e
acolherão sua função salvadora19.
O Papa Francisco, em 07/06/2013, na Sala Paulo VI, explicou
que envolver-se na política é uma obrigação para os cristãos. Nós
não podemos, como Pilatos, simplesmente lavar as mãos. Isso, porque a
política é uma das formas mais altas da caridade. Inclusive no encontro
com o CLAR, em 10/06/2013, afirmou “Não tenham medo de denunciar.
Vocês sofrerão, terão problemas, mas não tenham medo de denunciar:
esta é a profecia da vida religiosa!”
Quanto aos “poderes que controlam o mundo”, temos impressionante estudo científico20: sobre uma base de 37 milhões de empresas e investidores do mundo todo, identificaram-se 43.060 empresas
transnacionais e traçaram-se as conexões de controle acionário entre
elas. Refinando ainda o modelo, encontrou-se um núcleo central de
1318 grandes empresas com 20 conexões com outras, o que nos leva a
observar uma “superentidade” de 147 empresas (a maioria bancos) que
controlam 40% da riqueza total do núcleo de 1318. Na verdade, diz um
deles, “menos de 1% das companhias controla 40% da rede inteira”21.
Isto está demonstrando claramente um poder global que domina a
maior parte das empresas, especialmente da imprensa mundial, e está
construindo através da mesma um mundo virtual onde o homem é um
elemento secundário e o que interessa fundamentalmente é o lucro, o
dinheiro. Isto é, um claro predomínio do ego reptílico.
Mais ainda, a Intermón Oxfam, uma organização não governamental, informa que os 240 mil milhões de dólares que, durante 2012,
ganharam os 100 mais ricos do mundo, equivalem a 4 vezes a quantidade
necessária para terminar com a pobreza no planeta. Igualmente o 1%
do mundo aumentou seus lucros em 60% nos últimos 20 anos22. É uma
necessidade, é uma obrigação, ter uma visão geral da situação mundial
para poder analisar com propriedade o que acontece em nosso país ou
em qualquer país. Jesus conhecia perfeitamente o que significava a dominação Romana sobre Israel.
114
19
Http://blogs.periodismadigital.com/buenas-noticias.php?cat=11398.
20
New Scientist 22/10/2011.
21
The network of global corporate control, S. Vitali, J.B. Glattfelder, S. Battiston arXiv
19/09/2011.
22
El Universal, México, 22/01/2013.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Rosendo A. Yunes
Ninguém está livre de ser manipulado pelo consumismo da
atualidade imediata. “Por isso, o cristão tem a obrigação moral de se
informar com precisão em fontes confiáveis, e não deixar-se dominar
pela precipitação caótica na qual estamos colocados”23.
O Papa Bento XVI falou, em 16/02/2012, da dependência das
opiniões no mundo, e da ditadura dos meios de comunicação e das
finanças. Denunciou que o que é propalado se transforma em mais importante que a realidade, e que o ter e o parecer dominam o mundo. E
alertou para não ceder e para livrar-nos dessas ditaduras24.
Teilhard, por sua vez, escreveu: “Quaisquer que sejam os méritos
das outras religiões, e explique-se isso como se quiser, é incontestável que
o mais ardente foco de amor jamais aparecido até agora no Mundo brilha
aqui e agora no coração da Igreja de Cristo”. [...] – Afinal de contas, o que
constitui a imbatível superioridade do Cristianismo sobre todas as outras
espécies de Fé é estar ele cada vez mais conscientemente identificado
com uma Cristogênese, isto é, com a ascensão percebida de uma certa
Presença universal, simultaneamente imortalizante e unitiva”25.
O já mencionado filosofo e profeta cristão Emanuel Mounier22,
escreveu: “O sentido cósmico ficou escandalosamente atrofiado no pensamento cristão, que, contudo, se separa do idealismo por não ser apenas
o pensamento de um pensamento, mas o pensamento de um mundo real
orientado para a Glória de Deus e o destino do homem”26. O mundo foii
abandonado pelo homem moderno, aceitando ser considerado somente
coisa, espaço e movimento, sendo o homem apenas espectador indiferente
dos danos ecológicos e da cobiça incontrolada dos recursos naturais.
Em minha opinião, o Cristão não pode ser um conservador.
Conservar o quê, num mundo em evolução, onde tudo muda permanentemente? Conservar o sistema medieval frente ao Renascimento?
Conservar o moralismo do século XIX frente às mudanças do século
XX? Nesse sentido, foi conservador o cristianismo, que perdeu sua
utopia transcendente e por isso mesmo imanente. Será por isso que não
pregamos o Reino de Deus?
23
Carmen Bellver, novelista, poeta, em Religión Digital, 13/01/2013.
24
perioditadigital.com/religion/vaticano/2012/02/23/el-papa-inst...
25
“O Coração da Matéria” 1955 op. cit.
26
E. Mounier, “O Personalismo” Ed. Textografia, 7. Ed. Lisboa, 2007.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
115
O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte II)
Não compreendo como pode haver cristãos que apoiam o capitalismo neoliberal quando Jesus indicou claramente, em Mt 7, 15-16:
“Guardai-vos dos falsos profetas, que se aproximam de vós disfarçados
de ovelhas e por dentro são lobos ferozes. Por seus frutos os conhecereis.
Colhem-se uvas das sarças ou figos dos cardos?” Conhecemos com
evidências concretas os frutos do capitalismo neoliberal: mais pobreza,
mais miséria, mais injustiça social, mais destruição do ser humano, da
dignidade humana.
O escritor protestante Richard Stearns, em seu livro “Unfinished”27,
indica que existem duas classes de assim denominados cristãos: os “discípulos”, que imitam a vida do Senhor, acolhem a missão e os propósitos
do Mestre – construir o Reino de Deus – e os “deciders”, que seguem
seus próprios planos para suas vidas e convidam Jesus a abençoá-los.
Aqui Stearns lembra Mt 7,21: “Nem todo aquele que me disser: Senhor,
Senhor, entrará no reino dos céus, mas aquele que cumprir a vontade
de meu Pai que está no céu”.
Convergente com a linha atual do magistério católico, Stearns
escreve que o cristianismo perdeu sua força revolucionária que o levou
a superar o Império Romano, mas que há de recuperá-la, para mudar o
mundo. Francisco, nosso Papa, afirma que devemos ser cristãos comprometidos, consistentes e revolucionários. “Um cristão, se não é um
revolucionário neste tempo, não é cristão” sustenta.
Pregar o Reino de Deus significa, como João Paulo II, corajosamente, definir as guerras atuais como imorais. Pregar o Reino de Deus
significa dizer que, frente a um novo modelo social, são os pobres que
devem ser os primeiros. Todas as situações de pobreza são injustas. Significa pensar como deve ser o Reino de Deus na política, na justiça, na
universidade, na TV, na imprensa, etc., procurando sempre a felicidade
de todos sem excluídos.
Como os letrados e fariseus, que não deixavam entrar no Reino,
há alguns hierarcas da Igreja atual que também não deixam, como
escrevem os “Cristãos para o Terceiro Milênio”, da Argentina: “Preocupam-nos nossos filhos e netos que, educados na fé, se afastam da Igreja
institucional que consideram uma estrutura mais de poder estabelecido,
27
116
Http://marylousreviews.blogpot.com.br/2013/05/unfinished-richard-stearns-nelsonbooks.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Rosendo A. Yunes
que eles não aceitam por representar interesses contraditórios com os
valores do Evangelho28.
Vemos no mundo atual milhões de pessoas, que demonstram
ansiedade pela construção de um mundo melhor (“occupy Wall Street”
nos USA, os vários focos da “primavera árabe”, os inconformados na
Turquia, Espanha, Grecia e, em junho-julho, no Brasil, etc.). Esta é
uma convergência significativa como as demonstradas na introdução do
presente texto. Desta forma, os cristãos no mundo atual devemos estar
abertos ao diálogo para abordar os problemas do mundo com um enfoque preferentemente “teleológico” e não “deontológico”. Significativos
aportes são os documentos de Paulo VI “Octogesima Adveniens” (1971)
e Evangelii nuntiandi (1975).
Foi clara a mensagem de Maio de 1968, na França: “É proibido
proibir”. Esse movimento tinha um conteúdo espiritual interessante,
que não foi visualizado.
Como escreve o teólogo Pagola29, são muitos os medos que nos
paralisam, aos cristãos. Medo do mundo moderno e da secularização.
Medo de um futuro incerto. Medo de nossa fragilidade. Medo de nossa
conversão ao Evangelho. O medo nos faz dano. Impede-nos de caminhar para o futuro com esperança. Fecha-nos na conservação estéril do
passado. É urgente construir a Igreja da confiança. A força de Deus não
se manifesta através de uma Igreja poderosa, mas de uma Igreja crente
e humilde”.
Como o cristianismo abandonou conceitos tão claros, expostos
por Santo Agostinho: “O único critério de salvação é a atitude para
com o pobre”30; “Amando os outros, os irmãos pobres, os olhos se
limpam para ver a Deus”31; “O caminho do céu é o pobre. Por ele chegarás ao Pai. Começa a partilhar, se não quiseres errar o caminho”32. O
Papa Francisco, no dia 10/06/2013, numa conversa com a Diretoria da
Confederação Latinoamericana e Caribenha de Religiosos e Religiosas
(CLAR), falou: “O Evangelho não é a regra antiga, nem tampouco
este panteísmo. Basta olharem para as periferias: os indigentes...
28
Página 12 (Argentina,) 11/12/2012.
29
Religião Digital, 12/12/2011.
30
Sermões 389,5.
31
Tratados sobre o evangelho de são João 17,8.
32
Sermões 300,7.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
117
O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria evolutiva (Parte II)
os drogados! O modo de tratar as pessoas.. Esse é o Evangelho. Os
pobres são o Evangelho”.
Pagola é notavelmente claro na apresentação de um de seus
livros33: “Infelizmente o cristianismo como é vivido hoje por muitos,
não suscita ‘seguidores’ de Jesus, mas só ‘adeptos de uma religião’.
Não gera discípulos que, identificados com o seu projeto, se dispõem
a abrir caminhos ao Reino de Deus, mas membros de uma instituição
que cumprem de modo melhor ou pior suas obrigações religiosas”. E
acrescenta: “Não recebi a vocação de evangelizador para condenar, mas
para libertar. Não me sinto chamado por Jesus para julgar o mundo, mas
para despertar esperança”.
Ao criar Deus um mundo finito, apareceu o espaço de domínio,
de poder. O ego reptilico é o exemplo mais evidente de um espaço de
domínio, de poder. No entanto, a vontade de poder está em oposição à
vontade de amor, que é Deus. O Dinheiro está ligado intimamente ao
poder. Existe somente um poder legítimo: o poder de salvar. Por isso,
a contraposição máxima está expressada na Cruz: Cristo = amor, cruz
= símbolo do poder. O amor de Cristo é o poder de nossa salvação e da
construção do Reino de Deus.
Finalmente, alguns conceitos que devem ficar claramente definidos
para evitar confusão:
1. Jesus não foi um reformador social, nem um filósofo, mas
sua doutrina tem influenciado como nenhuma outra a história
humana;
2. Nos 20 séculos de sua história, a doutrina de Jesus tem sido
objeto de múltiplas interpretações e igualmente de adulterações. As interpretações dependiam do contexto no qual eram
realizadas. Toda interpretação é limitada, porque o universo
contextual em que o texto foi originado é distante temporal,
espacial e psicologicamente do contexto do intérprete. Considerar que os textos possuem um valor universal e intemporal,
sem limitantes, é uma pretensão ilógica;
3. Jesus, sem ser um reformador social, indicou um caminho
de vida de prática do bem, luta contra a injustiça e de compaixão pelos fracos e marginalizados, que leva implícita uma
33
118
J. A. Pagola “O Caminho Aberto por Jesus” Vozes, Brasil 2013.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Rosendo A. Yunes
força reformadora. Por isto, como pensava Simone Weil, para
conhecer a Verdade do mundo em que vivemos, devemos entrar
pela porta dos menos favorecidos, dos oprimidos, dos fracos;
4. Devemos estabelecer claramente que nenhuma ação é despolitizada. Toda interpretação da realidade e ação leva consigo a
intenção e ideologia do grupo ou pessoa que interpreta ou atua;
5. A prática efetiva da doutrina de Jesus levaria ao advento do
Reino de Deus na terra (justiça, paz, caridade), levando assim a realizar a utopia cristã. Jesus diz “Um só mandamento
vos dou: que vos ameis os uns aos outros, como eu vos amei”.
Isto se manifesta no ego espiritual que emerge como um infinito relativo que recolhe toda a informação de sua evolução e
substitui do centro da vida humana o ego reptilico dos animais.
Nele reside a dignidade da pessoa;
6. A salvação é igualmente libertação. Isso não ocorre no último
dia de nossas vidas, mas em forma continuada durante toda a
vida. A salvação é igualmente a libertação de tudo o que oprime
e degrada a vida;
7. Talvez o mais importante no mundo cultural foi a afirmação por parte
de Jesus da dignidade humana, de todo ser humano. O mundo foi
feito para o homem, para todos os homens. Cada homem é livre e
por isso responsável de seus atos. O homem não pode ser tratado
como coisa. A dignidade humana é de todos, é universal;
8. O Reino de Deus foi o sonho, o horizonte de Jesus. Ele sabia
que esse horizonte não seria alcançado totalmente aqui, mas
sim na ressurreição. Como atrator, está no centro da historia
humana total (cosmogenica);
9. Não podemos perder de vista a visão teleológica ,que é o
caminho a seguir para atingir um determinado fim. O fim fundamental dos cristãos é o Reino de Deus;
10. A superioridade do Cristianismo sobre todas as outras formas
de fé é estar identificado com uma Cristogênese, com uma
ressurreição de todo o universo em forma imortal e unitiva.
E-mail do Autor:
[email protected]
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
119
QUE É O REINO DE DEUS?
l. e m. Pe. Ney Brasil
Refrão: Que é o Reino de Deus?
O Reino que nós pedimos, / o Reino e sua Justiça, / a
ser procurado primeiro,
e tudo, todas as coisas nos serão acrescentadas,
e tudo, tudo o mais nos será dado por acréscimo.
Buscai o Reino de Deus, o Reino do Pai! (cf Mt 6,33)
1. Completou-se o tempo, / eis aqui o Reino:
Convertei-vos todos, / crede no Evangelho! (cf Mc 1,15)
2. Neste Reino todos / amam a Justiça,
Andam na Verdade, na Fraternidade! (cf 2Jo 4-6)
3. A Lei deste Reino / é o Amor fraterno:
Como o Rei é Pai / todos somos filhos! (cf Mt 23,8)
4. Se nós somos filhos, / irmãos uns dos outros,
Não há egoísmo, / não se passa fome! (cf Mt 25,31)
5. O maior no Reino / é quem serve a todos:
Dei-vos o exemplo, / dei-vos minha vida! (cf Mc 10,44-45)
ITESC, Florianópolis, 24-8-2011
Resumo: A temática destes Salmos remonta aos tempos da composição do
Saltério, antes da abolição da monarquia davídica, não por decadência ou crise
interna, mas por agressão externa. Mas a tradição religiosa estava em busca de
outras mediações, que substituíssem as estruturas nacionalistas do judaísmo,
por instituições a serviço do universalismo da religião bíblica. O artigo trata da
liturgia em memória da destruição de Jerusalém, ressaltando o tipo de culto
religioso, que deu origem a determinados Salmos no período pós-exílico. A
seguir se aborda a liturgia do Templo de Jerusalém após 520 a.C. A análise e
o comentário dos três “Salmos de protesto” (Sl 44; 80; 89) são apresentados à
luz de sua relevância na História da Salvação. A recitação desses Salmos na
liturgia da S. Missa e no Ofício divino favorece a assimilação na espiritualidade
comunitária do Povo de Deus a serviço da difusão dos dons salvíficos entre
todos os povos.
Abstract: The thematic content of these Psalms has its origin in the remote past
as far back as the very beginning of the composition of the psalmody before the
abolition of the Davidic monarchy due to foreign aggression and not by decadence or internal crisis. In fact, the cultic tradition was searching for other forms
of mediations to replace those of nationalistic tenets in order to be at the service
of the biblical religion in its ever widening scope to spread over the whole world.
The paper deals with the memorial liturgy at the occasion of the destruction of
Jerusalem, emphasizing the type of religious service which gave rise to a number
of Psalms in the post-exilic period. In this context mention is made about the
liturgy held at the Temple of Jerusalem while its rebuilding was still in progress
(after 520 a.C.). A detailed analysis and commentary on three Psalms of Protest
(Ps 44; 80; 89) makes up the greater part of the article whose explanation has
special bearing on the history of salvation. The prayers at the Mass draw inspiration from the Psalter and the Divine Office thus nurturing the spiritual life both
of the Church and the faithful, and turning into an indispensable means for the
bestowal of God’s gift of salvation upon all the peoples of the world.
Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
Luís Stadelmann, SJ*
*
O autor, doutor em Línguas e Literatura semíticas, Cincinnati, USA, e Mestre em
Ciências Bíblicas, PIB, Roma, é professor na FACASC.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013, p. 121-148.
Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
Introdução
O Documento de Aparecida faz referência a uma das características marcantes da religião bíblica do Antigo Testamento: “Cada vez
que Israel procurou e necessitou de seu Deus, sobretudo nas desgraças
nacionais, teve singular experiência de comunhão com Ele, que o fazia
partícipe de sua verdade, sua vida e sua santidade” (n. 129). Pode-se,
portanto, considerar como fato comprovado, que as orações salmódicas
da liturgia foram conservadas no Saltério, não apenas como memorial
de um evento da história da salvação do passado, mas como celebração
da lembrança de um acontecimento que não se desejava esquecer por ser
um evento onde o destino de Deus na história estava ligado ao destino
do Povo Eleito: salvam-se ou perdem-se juntos.
Ora, uma das experiências mais questionadoras que constam na
Bíblia é a tentativa de penetrar a cortina da inescrutabilidade divina
a fim de descobrir a trama de causa e efeito da catástrofe nacional do
Povo Eleito. Encontramos os “Salmos de protesto” no rol dos Salmos
de Súplica1, onde, na seção de lamentação , constam prantos e queixas
pungentes pela destruição de Jerusalém, do templo, da realeza e do
Estado teocrático de Israel. O impacto da catástrofe nacional sobre os
habitantes do país abalou tremendamente a auto-estima da nação israelita:
foram destruídas as instituições mais sagradas de Israel, representando os
quatro sinais da Eleição divina do Povo Eleito. Seus ideais religiosos e
emblemas alcandorados, como povo de Deus2, caíram por terra, e foram
conspurcados pelas tropas pagãs, tripudiando sobre a desgraça das tribos
de Javé deportadas para o Exílio (em 587 a.C.). Mas os remanescentes
122
1
A designação desses Salmos como súplicas é mais apropriada ao seu conteúdo do
que a outra convencional: “Salmos de lamentação”, do alemão “Klagelied”. Pois tal
expressão chama a atenção predominantemente para uma seção desta categoria de
Salmos, deixando de lado outras igualmente importantes. Por outro lado, “súplica”
corresponde ao termo hebraico tehinnah:”súplica de piedade”, um termo que ocorre
na oração de Salomão e nos Salmos desse tipo, que usam também: tahanûnîm (em
hebraico), palavra relacionada à anterior. É de notar-se que “lamentação” corresponde
ao hebr. qînah, “elegia”, que não é mencionada nos cabeçalhos nem no texto dos
Salmos. Essa substituição de nome na terminologia traz maior clareza ao estudo das
características literárias funcionais desta categoria de Salmos.
2
A praxe dos autores bíblicos de designar os israelitas como Povo de Deus não tem
paralelo na Antiguidade. Com efeito, os babilônios não se chamavam “povo de Marduc”,
nem os assírios “povo de Assur”, nem os egípcios “povo de Amon Ra”, nem os hititas
“povo de Telepino”, nem os persas “povo de Ahura Mazda”, nem os cananeus “povo de
Baal”, nem os Helenistas “povo de Zeus”, nem os romanos “povo de Júpiter”. A razão
é que o respectivo deus tutelar não fez uma “Aliança” com nenhum desses povos.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Luís Stadelmann, SJ
de Judá não se deram por vencidos, enquanto lhes restava a liturgia que
a comunidade de fé celebrava na presença de seu Deus.
Em situação de crise na história da salvação, surgiu uma urgente
demanda de coesão social, que mantivesse unidos os judeus remanescentes
espalhados na Palestina, nos países vivizinhos da província de Judá e nas regiões mais afastadas, tanto na Babilônia como no Egito. Era preciso evitar,
a todo custo, o enfraquecimento da religião como elemento integrador dos
fiéis do Povo Eleito e como fator da coesão do Povo de Deus. Daí foram
os líderes do povo, enquanto guardiães do patrimônio cultural de Israel,
que perceberam a necessidade de criar um rito religioso como suporte para
uma integração emocional-afetiva e para uma coordenação simbólica. Foi
instituída uma liturgia evocativa para relembrar aos fiéis, na presença de
Deus, o impacto dessa catástrofe nacional. A intenção da celebração litúrgica não era de nostalgia ou saudosismo pelo passado, mas visava apelar
para Deus, a fim de realizar uma nova obra salvífica, para compensar as
perdas do passado. Se fosse apenas uma recordação dos acontecimentos
trágicos, seria mero memorial da lembrança coletiva do povo, sem servir
como fator de coesão dos remanescentes, reunidos em oração litúrgica para
pedir de Deus sua intervenção na história. Embora constituíssem apenas
uma minoria, cercados por uma maioria de seguidores de outras religiões,
eram, todavia, membros do Povo Eleito que precisavam integrar o resto
dos israelitas do Norte e dos judeus do Sul3. É que não havia começado
em Israel a obra missionária em grande escala para converter os prosélitos
ao Povo de Deus. Sem o influxo de novos membros, as comunidades de
fé diminuíam intensivamente com grave risco de desaparecerem pouco
a pouco. Se viessem a faltar os fiéis na Terra Prometida, Deus não teria
colaboradores para realizar seu desígnio salvífico entre os povos.
Liturgia em memória da destruição de Jerusalém
A liturgia de luto nacional, instituída em Israel após a destruição
de Jerusalém (em 587 a.C.) era uma lamentação coletiva convidando
os fiéis a reunir-se em oração para suplicar pelo dom da misericórdia
de Deus4, evitando-se, assim, o risco de acalentarem no coração remi3
Cf. Nadav Na’aman, “The Israelite-Judahite Struggle for the Patrimony of Ancient
Israel”, em Bíblica, Vol. 91, Fasc. 4, Ano 2010, p. 1-23.
4
O Livro das Lamentações não se arreceia de encarar a realidade da pátria humilhada
e exausta pela derrota, sem esquecer-se, porém, de levantar os olhos para o céu e
pedir “a misericórdia do Senhor e sua compaixão” (Lm 3,22).
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
123
Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
niscências de amargura e ressentimentos contra o destino nefasto. Por
isso, após a destruição de Jerusalém, a liderança religiosa dos judeus viu
a necessidade de marcar no calendário o dia de luto nacional (em 586
a.C.) com a observância do jejum no quarto mês em memória da queda
de Jerusalém; no quinto mês, em memória do incêndio do Templo; no
sétimo mês, em memória do assassinato do governador Godolias (Jr
41,1-2); no décimo mês, em memória da extinção do Estado de Judá
(Zc 8,19), pelo exército babilônico (2Rs 25,8-9). O Reino de Judá fora
conquistado por Nabucodonosor, cuja política expansionista do Império
da Babilônia estendeu-se desde a Mesopotâmia até o Egito. O Reino de
Judá foi dissolvido após a derrota das suas tropas, que não resistiram ao
ataque do exército invasor.
A espiritualidade que imbuía os fiéis, nas reuniões cultuais, durante
a reza da lamentação coletiva por ocasião do dia de luto nacional, estava
transida de lástima pelas instituições que foram extintas. Fundamentalmente, tratava-se de uma queixa amarga pela ausência de Deus, quando
sua presença atuante junto aos fiéis fazia tanta falta. Cinco elegias5 foram
redigidas para servirem de textos litúrgicos na oração comunitária. Sua
serventia ultrapassou o período exílico, já que foram inseridas posteriormente no Livro das Lamentações , como um dos livros canônicos
da Bíblia. Cada uma das cinco elegias trata de um tópico específico: a
1ª elegia à “Jerusalém desolada”; a 2ª elegia ao “dia da ira do Senhor”;
a 3ª elegia à “esperança em meio à aflição”; a 4ª elegia à “dimensão do
Juízo divino”; a 5ª elegia como “súplica de clemência e restauração”.
A finalidade dessas composições poéticas é mover Deus à compaixão e
inclui um ato de confiança no porvir.
A segunda elegia (Lm 2,1-22) estiliza em versos os pungentes
lamentos pela ação de Deus como causa principal da destruição de
Jerusalém e das instituições sagradas, ao passo que os inimigos eram
meramente causa instrumental. Entre os escombros da devastação geral
são mencionados os seguintes resíduos: as muralhas de Sião (2,1.4.8),
a Arca da Aliança (2,1)6, os emblemas da realeza (2,2.6), o lábaro do
Estado de Israel em extinção (2,5), os ornamentos do templo (2,7), as
124
5
As cinco elegias contêm 22 estrofes; as quatro primeiras são compostas em acrósticos
alfabéticos, ao passo que a quinta não tem o formato poético do acróstico, pois consiste
numa lamentação coletiva. As letras com nomes hebraicos correspondem, em ordem
ascendente, à escrita do alfabeto com letras da grafia hebraica e aramaica.
6
A “Arca da Aliança” é designada simbolicamente como “o esplendor da santidade” (Sl
96,9) ou “escabelo dos pés de Deus” (Sl 99,5; Lm 2,1).
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Luís Stadelmann, SJ
pedras do altar (2,7), os símbolos dos sacerdotes (2,20) e dos profetas
(2,20), e as casas dos habitantes do país (2,20-22)7.
Os membros da comunidade de fiéis abriram os horizontes para
além dos acontecimentos trágicos recentes de 587 a.C., pois lembram
também a queda do Reino do Norte de Israel, um século e meio antes (em
721 a.C.). Nessa liturgia se recorda a extinção do Estado de Israel como,
também, o de Judá (Lm 2,5), fato esse que determinou a inclusão das
preces de intercessão pelos fiéis de Israel e de Judá nos Salmos (Sl 44;
80; 89 etc.). Chama nossa atenção a ressalva do profeta Zacarias, de que
essa liturgia em memória da crise nacional não foi instituída por ordem
divina (Zc 7,5), mas por iniciativa humana. Não possuía, portanto, o aval
de uma autoridade religiosa suprema, pois parecia ser mero rito fúnebre
do qual alguns pietistas se serviam como veículo de “conscientização”
nacionalista. Em vista disso, Deus não sancionou a lamentação pela
extinção de determinadas instituições religiosas, porque eram excrescências do nacionalismo judaico e acréscimos tardios ao culto divino,
mas teriam que ser abolidos, quando se tornariam empecilhos à religião
bíblica, dificultando sua difusão entre povos e nações. Entretanto, esse
dia de luto nacional em memória da destruição de Israel imperou durante
setenta anos (586-520 a.C.), até que foi suspenso com a reconstrução do
Templo de Jerusalém e sua inauguração, em 520 a.C (Esd 6,16).
Liturgia no Templo restaurado após 520 a.C.
Com a restauração do Templo de Jerusalém foi reinstituída a
celebração litúrgica de oferta do sacrifício de ratificação da Aliança
sagrada. Doravante, porém, aludiria à “nova Aliança” revelada pelo
profeta Jeremias.
A substituição da antiga por uma nova Aliança é de iniciativa divina8.
No futuro, Javé agirá diretamente sobre o coração do homem (Jr 31,33);
a Lei divina não será mais gravada sobre tábuas de pedra, mas sobre o
coração humano, dispensando os ensinamentos pedagógicos (v.32-34).
O conhecimento de Deus estará baseado na experiência do perdão dos
7
Cf. John Skinner, Jeremias, Profecia e Religião, (Trd. de Rubem Alves), ASTE, São
Paulo, 1966, esp. p. 257s.
8
Cf. N. Flüglister, “Jeremias”, em J. Schreiner, Palavra e Mensagem do Antigo
Testamento, (Trd. de B. Lemos), Ed. Teológica, Ed. Paulus, São Paulo, 2ª ed., 2004,
239-258.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
125
Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
pecados9 e, por isso, dispensará outros meios externos, como, p. ex., o
ensino dos “preâmbulos da fé”, ou de uma “teologia apologética” com
argumentos sobre a existência de Deus (v. 34). Além disso, o dever de
todas as criaturas de dar glória a Deus, proclamando-o Criador e Benfeitor, será internalizado também nos fiéis e na comunidade litúrgica, como
critério de reconhecimento da presença de Deus no coração humano.
Na interpretação dos “Salmos de protesto”, será preciso
fazer uma análise detalhada de cada um deles, não apenas à luz
das temáticas da revelação divina, expressa numa maravilhosa
variedade de formas, mas principalmente na dimensão da nova
Aliança, incluindo as temáticas do louvor de Deus por sua intervenção na história do Povo Eleito (Sl 44,2-9; 80,9-12; 89,2-38).
Além disso, requer-se também salientar a experiência do perdão
dos pecados (Sl 44,26-27; 80,6; 89,51).
Tendo em vista o dom da salvação concedida aos fiéis através da
Aliança sagrada, impõe-se a tarefa de especificar a mediação dos dons
salvíficos. Ora, os judeus exilados na Babilônia foram re-assentados em
comunidades, com o aval do governo, no vale do rio Eufrates, ao passo
que alguns estavam um pouco afastados, prestando serviço em obras
públicas. Não foram escravizados nem disseminados em regiões distantes, como o haviam feito os assírios anteriormente (em 722 a.C.) com os
israelitas exilados de Samaria. Os judeus deportados pelos babilônios (em
587 a.C.) receberam um tratamento mais humano, concedendo-se-lhes
inclusive o direito de praticarem sua religião. Fator notável era o cultivo
das tradições culturais e religiosas mediante a evocação de costumes
antigos que foram revitalizados na vivência da fé e na observância do
“sábado”, como dia sagrado do judaísmo. A escola da “tradição sacerdotal” floresceu naquele tempo nas comunidades judaicas. Sua criatividade
na historiografia, teologia e espiritualidade, tem valor perene, e serviu
de antídoto contra o sincretismo religioso e a deserção dos praticantes
da religião bíblica10. Não foram, porém, iniciativas de alguns recalcados
das comunidades judaicas incentivando reações de defesa, mas sim, dos
Com base na experiência de reconciliação com Deus foi instituída a “liturgia penitencial”, com seus nove elementos constitutivos, dando origem aos Salmos penitenciais,
(Sl 6; 32; 38; 51; 102; 130; 143), cf. L. Stadelmann, Os Salmos: Comentário e
Oração, Ed. Vozes, Petrópolis, 2001, p. 44-46.
10
Cf. Martin Noth, Historia de Israel, (Trd. de J.A.G. Larraya), Ed. Garriga, Barcelona,
1966, cap. 24. “La situación después de la caída de Jerusalén, p. 265-273.
9
126
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Luís Stadelmann, SJ
líderes religiosos inspirados pelo carisma da revelação divina. Foram os
profetas Ezequiel e o Segundo Isaías que souberam impor-se com visões
deslumbrantes da presença de Javé atuando na História da Salvação.
Na verdade, era preciso neutralizar o impacto nos espectadores causado
pelo imponente aparato do culto pagão nas procissões em honra ao deus
Marduc11. Em contraste com o cerimonial dos desfiles de andores com
ídolos do panteão babilônico, os profetas influenciaram o imaginário da
mentalidade formada pela fé bíblica. A “visão do vale dos ossos” (Ez 37)
e a profecia sobre o “Servo de Javé” como Redentor de Israel (Is 42; 49;
50; 52) abrem vislumbres de um mundo com destino meta-histórico.
É importante notar também que as lideranças judaicas na Babilônia não tomaram medidas para instaurar um culto alternativo, mas sim
uma espiritualidade vivida em torno das tradições religiosas de Israel,
dentro dos parâmetros da História da Salvação. Se tivessem instituído
celebrações cultuais e ritos religiosos, teriam dado origem às seitas,
causando a fragmentação das comunidades de fé, diferenciando as da
Palestina e as do Exílio. Implicitamente deram continuidade à nova
tendência de difundir a religião bíblica pelo caminho do universalismo.
Dessa forma, as comunidades de fé da Judéia, da Samaria e da Babilônia,
permaneceram vinculadas por princípios religiosos comuns e pelos laços
da nova Aliança, que se ratificava pelos sacrifícios imolados no altar dos
holocaustos em Jerusalém.
Ampliando a visão sobre todas as coleções inseridas no Livro
dos Salmos na Bíblia, é importante ressaltar que todo o Saltério sofreu
uma revisão de cada Salmo. Estão incluídos os que foram compostos no
período pré-exílico, como também os de composição pós-exílica. Essa
revisão consiste na influência da experiência amarga da crise nacional,
impondo-se à reflexão teológica, após o fim do Estado teocrático de
Israel e do Exílio. O traço marcante dessa influência é a centralidade da
dimensão salvífica baseada na Aliança sagrada e na vivência da fé nas
comunidades do Povo Eleito, com ênfase na experiência do perdão dos
pecados como também na experiência da presença de Deus na liturgia
de louvor ao Senhor como Criador e Benfeitor. A espiritualidade da
vivência da virtude da religião não estava eivada de uma experiência
de vítima ou ressentimento pela crise nacional do Exílio, mas servia de
11
Cf. “Carta de Jeremias aos Exilados” no livro de Baruc, inspirando-se no texto da
profecia de Jeremias (Jr 24,4-23) e reproduzindo as ideias do seu oráculo contra os
ídolos (Jr 10,1-16). A mensagem dessa carta contém uma exortação à fidelidade na
fé sendo dirigida aos judeus exilados na Babilônia, desde 587 a.C. (Br 6,1-72).
Encontros Teológicos nº 66
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127
Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
incentivo para os fiéis difundirem os dons salvíficos a outros fiéis, e fazer
da comunidade de fé um testemunho da fidelidade, graças à misericórdia
divina. Quem nos abre a porta da experiência da fé da comunidade de
féis, do período pós-exílico, são os salmistas como arautos para levar as
promessas, de efeitos salutares, para as novas gerações. Elas terão que
aprender a tornar a vivência da fé tão vibrante como os salmistas de outros tempos souberam fazer na liturgia sagrada, embora sem o respaldo
das estruturas do Estado, em analogia com o entusiasmo dos habitantes
de outros países, rendendo louvor aos deuses tutelares na solenidade
religiosa12. Na verdade, a presença de Deus não definhou nem se tornou
obsoleta, mas continuou a despertar a esperança na intervenção divina
no “futuro povo restaurado” (Sl 102,19).
Poderia parecer que, com a reconstrução do Templo em Jerusalém,
também as estruturas estatais de antanho fossem restauradas, embora
o próprio Deus quisesse emancipar a religião bíblica do respaldo do
Estado. Na verdade, o que se restaurou foi o altar dos holocaustos, na
esplanada do Templo, de sorte que a referência ao “Templo” serve, aqui,
apenas a título de metonímia, indicando o todo por uma parte, isto é, o
altar dos holocaustos, sobre o qual se oferecia o sacrifício de ratificação
da Aliança sagrada.
Para aprofundar a mensagem dos Salmos 44, 80, 89, será preciso
recordar a aplicação do método exegético das seis etapas à nossa análise:
o gênero literário, a estrutura literária, os aspectos teológicos e litúrgicos, a mensagem de espiritualidade, e o tipo de oração13. Com efeito,
é a motivação próxima da oração, que permite melhor compreensão
dos conteúdos temáticos dos Salmos, e abre o caminho para o colóquio
pessoal, no encontro com Deus.
128
12
Os judeus exilados, reassentados em vários lugares no Sul da Mesopotâmia, tiveram
oportunidade de presenciar o culto esplêndido dos deuses babilônicos, especialmente
de Marduc, com seus numerosos templos e solenes procissões na cidade da Babilônia
(Br 6,1-72).
13
Cf. L. Stadelmann, “Método exegético do estudo dos Salmos”, op. cit., p. 80-83.
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Salmo 44 (43)
Súplica do povo vencido
Estrutura Literária14
1
I. Cabeçalho
10-17 III. Protesto coletivo
2-9 II. Evocação das glórias passadas
18-23 IV. Testemunho de inocência
2a A. Invocação
24-27 V. Apelo para Deus
2b B. Fórmula de transmissão
24
A. Pedido de ajuda
3-4 C. Retrospecto sobre a hist.salvífica
25-26 B. Lamento
5-9 D. Expressão de confiança
27
C. Pedido de ajuda
Comentário e sua relevância na História da Salvação
1
Ao regente do coro. Ode sacra dos filhos de Coré.
O cabeçalho do Salmo é uma rubrica litúrgica, indicando sua
recitação e cantoria pelo coro, com estribilho (v. 9), durante o culto divino, no Templo restaurado (após 520 a.C.). Mas a origem das rubricas
salmódicas data de época posterior (antes do fim do séc. IV a.C.), quando
foi editado o Livro dos Salmos. Sua finalidade é assegurar-lhe a chancela
oficial da autoridade religiosa e garantir o caráter de inspiração divina.
Dessa forma, este Salmo será recitado pelo Povo Eleito, na presença de
Deus. A especificação literária como “ode sacra” (hebr. maskîl) indica
a qualidade esmerada da forma poética dos salmistas e do “Coral de
Coré”, distanciando-a da cantilena dos trovadores populares, improvisando músicas em praça pública. O lamed prefixado ao nome de Coré é
o “lamed do titular de classificação”, que indica o grupo de Salmos de
uma determinada coleção (JM § 130b)15. Não se trata do lamed auctoris
para identificar o compositor do respectivo Salmo.
Evocação das glórias passadas para dar glória a Deus (v. 2-9)
Nossos antepassados nos contaram
a façanha que realizaste no seu tempo.
3
Para implantá-los, com tua mão expropriaste nações,
2
14
Cf. E.S. Gerstenberger, Psalms I, With an Introduction to Cultic Poetry, (The Forms
of the OT Literature XIV), Eerdmans, Grand Rapids, Michigan, 1991, p. 182-186.
15
P. Joüon — T. Muraoka, A Grammar of Biblical Hebrew, vol. I, Part 1: Orthography
and Phonetics, Part 2: Morphology; vol. II, Part 3: Syntax (Subsidia Biblica: 14/I-II),
Rome: P.I.B., 1991, (abrev. JM).
Encontros Teológicos nº 66
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Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
e para expandi-los, arruinaste povos.
4
Não foi por sua espada que se tornaram donos da terra,
não foi seu braço que lhes deu a vitória;
foi tua destra, o braço e a luz de tua face,
pois tu os amavas.
5
Ó Deus, tu, que és meu Rei,
comanda! E Jacó vencerá.
6
Graças a ti, destroçamos nossos adversários,
pelo teu nome calcamos aos pés nossos agressores.
Não está a minha confiança no meu arco:
minha espada não me daria a vitória.
8
Tu nos fazes vencer nossos adversários,
humilhas nossos inimigos.
9
Todos os dias, cantamos os louvores de Deus,
celebrando, sem cessar, o teu nome.
7
Canto
A prestação de louvor a Deus lembra os atos salvíficos de Deus no
passado, especialmente o re-assentamento das tribos migrantes na Terra
Prometida, (v. 2-4), e o relato da fidelidade dos fiéis no presente (v. 5-9).
Nesse retrospecto se afirma a continuidade histórica da religião praticada
desde o passado até a época atual. A evocação das glórias passadas, em
forma de hino para fins litúrgicos, como homenagem de louvor a Deus,
em reconhecimento por sua intervenção na história sagrada, e como
atualização da experiência salvífica nos fiéis, cujas preces, por auxílio
divino, são atendidas. Esse retrospecto sobre a obra de Deus na História
da Salvação tem também finalidade catequética, como lição transmitida
de pai para filho. A fé, nascida e cultivada na família, atualiza-se na
liturgia, onde se conservam e são narrados os fatos da história sagrada
para tornar presente, na liturgia e na vida, a experiência da salvação.
2-4 Retrospecto histórico da vitoriosa entrada do Povo Eleito na
terra de Canaã, motivo para Deus continuar realizando a salvação na
situação presente. A causa da intervenção divina em favor do Povo Eleito
é sua bondade, que o move a doar-lhes gratuitamente a Terra Prometida,
onde, no AT, a história salvífica tem, em âmbito particular, sua manifestação no mundo. No NT situam-se as comunidades de fé no Reino de
Deus, onde se manifestam os desígnios divinos de salvação em âmbito
universal. Com a alusão à “destra de Deus” (v. 4), evoca-se a intervenção
divina no Êxodo, desde o Egito até a entrada na Terra Prometida. A imagem bíblica “luz de tua face”, aplicada a Deus, significa a manifestação
de dons da benevolência divina aos homens.
130
Encontros Teológicos nº 66
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Luís Stadelmann, SJ
5-9 Expressão de confiança na proteção de Deus, dispensada
ao Povo Eleito. Perene fonte dessa confiança é a liturgia celebrada na
presença divina, assegurando aos fiéis o atendimento de suas súplicas,
graças ao poder onipotente que Deus quer manifestar na realização da
obra salvífica, na situação humana. O motivo de mencionar-se o nome
de Jacó para designar Israel é o fato de ser epônimo do povo israelita, em
todo o seu conjunto das doze tribos, denominado pelo nome do patriarca
quando se queria tecer-lhe elogios. Com efeito, povo algum foi agraciado,
como o Povo Eleito, com a honra de poder prestar sua homenagem de
louvor na presença divina (ao “nome” de Javé), celebrando a sagrada
liturgia no santuário. A expressão do fervor religioso encontra-se no v.
9, evocando a praxe cultual de celebrar diariamente o rito litúrgico no
Templo de Jerusalém, frequentado pelos fiéis vindos de longe e de perto
para adorarem o Senhor, que tinha um encontro marcado com o Povo
Eleito na cerimônia de ratificação da Aliança sagrada.
Protesto coletivo (v. 10-17)16
E, no entanto, tu nos rejeitaste e de nós escarneceste,
não mais saindo com nossos exércitos.
11
Tu nos fizeste recuar diante do adversário,
e nossos inimigos levaram os despojos.
12
Entregaste-nos como ovelhas de abate,
entre as nações nos dispersaste.
13
Cedeste, sem vantagem, teu povo17:
nada ganhaste em vendê-lo.
14
Aos ultrajes dos vizinhos nos expuseste,
ao escárnio e aos risos dos que nos cercam.
15
Fizeste de nós uma pilhéria entre as nações,
e diante de nós, os povos levantam os ombros.
16
O dia inteiro, tenho diante de mim meu opróbrio,
e a vergonha cobre meu rosto,
17
sob os gritos de ultraje e de blasfêmia,
em face de inimigo vingativo.
10
16
A análise detalhada do Salmo 44, sob o enfoque de um “Salmo de protesto” apareceu
recentemente no artigo de Dalit Rom-Shiloni, “The Powers of Protest”, em CBQ 70,
Nr. 4 Oct. 2008, 683-697. As intuições são muito lúcidas, mas procuramos em vão
pela explicação do motivo de Deus atuar para eliminar as estruturas teocráticas do
Estado de Israel que davam respaldo à religião bíblica do AT desde a sua origem.
17
O motivo de os membros das comunidades de fé do AT e NT se chamarem “Povo de
Deus” é devido à Eleição divina e Aliança sagrada entre Deus e os fiéis. Essa designação
baseia-se em motivo teológico e não sociológico. No Salmo se menciona “teu povo”, o
que confirma sua adesão irrestrita a Deus mediante a “Aliança sagrada” (v. 18).
Encontros Teológicos nº 66
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131
Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
O problema cruciante é a derrota militar, a destruição do país, o
exílio dos habitantes, e a extinção do Estado teocrático de Israel e de
Judá. Duas monarquias que integravam as tribos israelitas do Norte e
do Sul foram extintas, e seus habitantes marcharam para o Exílio na
Assíria e Babilônia. Mas o mais grave não era só a ausência de Deus
junto aos fiéis do Povo Eleito, mas sua presença atuante junto às forças
hostis, tripudiando sobre as vítimas da guerra. Como é possível que Deus
se bandeasse aos inimigos estrangeiros e fizesse causa comum com as
forças do Império Assírio e Babilônio, cuja política expansionista visava
impor o domínio de Assur e Marduc, os deuses tutelares que exerciam o
patrocínio de países pagãos?
Testemunho de inocência (v. 18-23)
Tudo isso aconteceu a nós, que não te esquecemos,
que não traímos tua aliança.
19
Nosso coração não recuou,
nossos passos não se desviaram de teu caminho;
20
e tu nos esmagaste na terra dos chacais
e com espessas trevas nos cobriste.
18
Tivéssemos esquecido o nome do nosso Deus,
estendido a mão para um deus estrangeiro,
22
não o teria Deus notado,
ele, que conhece os segredos do coração?
21
Por tua causa nos matam, todos os dias,
e nos tratam como ovelhas de abate.
23
A situação dos sobreviventes é a dos mártires pela fidelidade à
Aliança sagrada (v. 18), sem o mais leve desvio da fé para outras crenças
(v. 19-22). Sua apologia mais convincente é a ameaça de morte iminente
dos remanescentes da população (v. 23), de sorte que com o extermínio
do Povo Eleito não haveria colaboradores a serviço da obra de redenção
na História.
Apelo para Deus (v. 24-27)
Acorda, Senhor! Por que dormes?
Desperta de teu sono, não nos rejeites para sempre!
25
Por que escondes a tua face
e esqueces nossa desgraça e opressão?
24
132
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Nossa garganta está inclinada para o pó,
nosso ventre está colado ao solo.
27
Levanta-te para socorrer-nos!
Resgata-nos, por teu amor!
26
O apelo para Deus baseia-se num argumento de que a presença
divina é o fator decisivo para a solução da crise nacional. Se, portanto,
no passado, houve uma atuação eficaz da intervenção de Deus na história
de Israel, é porque Deus estava atento aos acontecimentos históricos do
Povo Eleito sem que ficasse “dormindo”, alheio ao desenrolar dos eventos destruidores do povo israelita. Mais forçoso do que qualquer outro
argumento é o ato de religião de adesão à nova Aliança, que consiste na
experiência do perdão que comprova a presença de Deus no coração do
penitente, cuja atitude de prostração é típica do rito penitencial. Junto
com esse rito é a oração, cuja motivação próxima baseia-se no “amor
de Deus” (hebr. hesed) ratificando a vinculação entre Deus e seus fiéis
pela nova Aliança, para efetuar a obra da salvação.
Oração
Oração de amor confiante na salvação do Povo Eleito, que evoca
os feitos gloriosos do passado de sua história (v. 2-9) para a nação sair
da situação deprimente. Atravessando uma crise, em consequência da
derrota militar (v. 10-17), Israel implora a Deus que intervenha em seu
favor, já que, não tendo sido infiel, não merece ser excluído da proteção
divina (v. 18-27).
Contexto
Este salmo de súplica coletiva data do período pós-exílico.
Encontros Teológicos nº 66
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Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
Salmo 80 (79)
Prece pela restauração de Israel
Estrutura Literária
1
2-3
4
5-7
8
9-12
I. Cabeçalho
13-14 VIII. Protesto
II. Invocação e súplica
15-19 IX. Pedido e promessa
III. Refrão expressando confiança
15-16 A. Pedido
IV. Protesto
17
B. Imprecação e motivo
VI. Refrão expressando confiança
18
C. Intercessão
VII. Retrospecto
19
D. Promessa
20
X. Refrão expressando confiança
Comentário e Relevância na História da Salvação
Ao regente do coro: segundo a melodia “Os lírios”.
Testemunho. Salmo de Asaf.
1
O cabeçalho do Salmo é uma rubrica litúrgica, de época posterior
(antes do fim do IV. séc. a.C.). Na indicação de sua recitação pelo coral
encontra-se uma referência ao serviço litúrgico instaurado no Templo,
pois nas sinagogas não havia coro, nem entoação do canto litúrgico, nem
recitação melódica nem estribilho (v. 9). Consta aí também a chancela
oficial da autoridade religiosa, assegurando ao texto o caráter canônico
para uso cultual na liturgia. A música sacra utilizou melodias já conhecidas (cf. “os lírios”), para salientar o ritmo dos versos e a sonoridade das
sílabas tônicas, como é típico da poesia, e não se usou propriamente a
cadência vocabular. A especificação do teor do Salmo como “testemunho”
(hebr. ‘edût) visa ressaltar sua função na ratificação da Aliança, que, em
seguida, era consignada por documento escrito, chamado “protocolo”.
A composição poética se define como um “salmo” (hebr. mizmôr) que é
característica de quase todos os textos litúrgicos do Saltério. Sua finalidade é assegurar-lhe a chancela oficial da autoridade religiosa e garantir
o caráter de inspiração divina. Dessa forma, este Salmo será recitado pelo
Povo Eleito, na presença de Deus. A referência ao nome de “Asaf” destaca
a qualidade poética mais valiosa do que outras cantigas de trovadores
populares, improvisando músicas em praça pública. O lamed prefixado
ao nome de Asaf é o “lamed do titular de classificação”, que indica o
grupo de Salmos de uma determinada coleção (JM § 130b). Não se trata
do lamed auctoris para identificar o compositor do respectivo Salmo.
134
Encontros Teológicos nº 66
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Invocação e súplica (v. 2-4)
Escuta, Pastor de Israel,
que guias José como um rebanho,
3
diante de Efraim, Benjamim e Manassés!
Desperta teu poder
e vem salvar-nos!
4
Restaura-nos, ó Deus:
faze brilhar tua face, e seremos salvos!
2
A prece do salmista diante do Deus tutelar do povo de Israel, recorda seu patrocínio sobre as tribos de José, como se costumava invocar
a Javé na História dos Patriarcas. Na invocação, menciona-se o relacionamento com as tribos de Efraim, Benjamim e Manassés, cujo território
tribal confinava com as duas tribos de Judá. A súplica insistente é uma
intercessão dos habitantes de Judá pela restauração dos sobreviventes
do Reino do Norte. Data, portanto, de uma época em que havia o perigo
iminente de desaparecer o Povo Eleito, cujo número de fiéis diminuía à
vista de todo o mundo e se temia pela continuidade da História da Salvação. O refrão (v.4, 8, 20) encerra um pedido pela restauração do povo
dizimado e exilado, que outrora fazia parte do Povo Eleito, num apelo que
aplica a eficácia da nova Aliança de Jeremias à situação atual. Trata-se
da experiência da salvação de forma antecipada, que será concedida pela
atuação de Deus, Javé, o todo-poderoso, o autor da Aliança sagrada.
Protesto (v. 5-7)
Deus, Senhor todo-poderoso,
até quando estarás irado,
apesar da oração do teu povo?
6
Deste-lhe a comer o pão das lágrimas,
a beber, um pranto triplicado.
7
Fizeste-nos objeto de contenda dos vizinhos,
e de nós zombam os inimigos.
5
O protesto do salmista não é expresso em termos de uma diatribe
entre o injustiçado e Deus como juiz supremo, mas é formulado como
oração acompanhando a liturgia penitencial que inclui o rito de contrição:
“comer o pão das lágrimas, e beber pranto”. Esse rito de contrição é
mencionado no Salmo para ressaltar a instituição da nova Aliança em
vigor no período pós-exílico.
Encontros Teológicos nº 66
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Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
Para entender a gravidade do descalabro moral, basta visualizar
o “rosto irado” de Deus, em nossa consciência, e perceber a censura à
impiedade. A conversão moral terá, por reflexo, um “semblante amigo” (Sl 34,16), voltando-se Deus para reconciliar consigo o pecador
arrependido. São recursos sugestivos que os Salmos usam para situar a
punição da impiedade no contexto da ira divina, mas colocam o infrator
na presença de Deus, porque assim permanece oferecida a salvação ao
pecador arrependido. Lembremos também que a amizade de Deus para
com os fiéis não se reduz a mero sentimento, mas consiste na irradiação
da benevolência de Deus, cujo reflexo se manifesta como “luz da Sua
face” (Sl 4,7).
A reação hostil dos antigos vizinhos de Judá é típica de uma desforra contra a atitude de exclusivismo judaico, que precisava ser erradicado
nos seguidores de uma religião que tem como meta sua difusão no mundo,
levando para todos os povos os dons salvíficos de Deus.
Retrospecto (v. 8-12)
Restaura-nos, Deus todo-poderoso:
faze brilhar tua face, e seremos salvos!
9
A videira que retiraste do Egito,
tu a replantaste, expulsando nações;
10
preparaste-lhe o terreno,
para que lançasse raízes e enchesse o país.
11
Sua sombra cobriu as montanhas,
e seus ramos, os cedros altíssimos;
12
estendeu os sarmentos até o mar,
até o rio, seus rebentos.
8
A evocação dos acontecimentos históricos que afetaram a existência das tribos israelitas, sob o patrocínio de Javé, migrando através
de terras estrangeiras, em épocas passadas, é introduzida pelo ato de
confiança na intervenção de Deus em favor do Povo Eleito, cuja eficácia,
através da liturgia comunitária, tem efeito salutar na vida dos fiéis sob
o beneplácito de Deus, invocado como protetor do seu povo (v. 8). A
imagem do rebanho migrando de pastagem para pastagem, e o transplante
da videira de um país para outro, ilustram a migração das tribos de Israel,
desde o Egito até a Terra Prometida. Ao evocar suas origens históricas,
marcadas pela solicitude de Deus, como Pastor e Vinhateiro, os fiéis
interpelam a Deus sobre a situação de abandono e falta de proteção. O
136
Encontros Teológicos nº 66
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que mais os atormenta é a cruciante dúvida: se Deus, eventualmente, teria
revogado a Eleição de Israel, “videira e cepa escolhida”, transplantada
do Egito para a terra de Canaã, e estendida sobre todo o território da
Palestina, com as fronteiras recuadas até o Mar Mediterrâneo, até as
montanhas do Líbano e do rio Eufrates.
Protesto (v. 13-14)
Por que lhe derrubaste as sebes,
para que a vindimem todos os transeuntes?
14
O javali da selva a devasta,
pastam nela os animais do campo.
13
A interrogação, dirigida a Deus, é um recurso literário que se usa
no estilo discursivo da oração, das profecias e dos poemas didáticos. A
“vinha” é imagem de um terreno valorizado pela plantação de um vinhedo, protegido por uma cerca contra invasores. A invasão de intrusos fica
visível aos olhos de todos pelo rasto de devastação, pela destruição das
plantações, fruto de anos de esforço e dedicação. O fato de compararem
os inimigos com animais selvagens realça a selvageria e barbárie dos
mesmos ao atacarem tudo o que encontravam à sua frente. Temos aí uma
referência às tradições religiosas, cultuais e ritos que foram pisados pela
soldadesca, como imagem sugestiva, simbolizando objetos religiosos
e os rituais do nacionalismo judaico que tinham que ser eliminados
da religião bíblica. Foi o próprio Deus que “derrubou as sebes” como
causa principal, ao passo que as tropas inimigas eram meramente causa
instrumental.
O tema da Eleição divina do Povo Eleito na sua terra enfrenta o
desafio da ausência de Deus e, com isso, se atribui a Ele a responsabilidade pela queda das estruturas que davam respaldo e sustentação ao
nacionalismo judaico. Em outras palavras, os judeus não queriam, de
modo algum, que a religião se emancipasse das estruturas do estado
teocrático de Israel. Por isso, não havia alternativa a não ser eliminar
aquelas estruturas com ressaibo nacionalista.
Pedido (v. 15-18)
Volta-te, ó Deus todo-poderoso,
olha do céu e vê!
Vem visitar esta videira,
15
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Ano 28 / número 3 / 2013
137
Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
a cepa que tua destra plantou
para o filho que criaste!
17
Ei-la incendiada, cortada.
Pereçam eles, sob a ameaça do teu rosto!
18
Pousa tua mão sobre o homem à tua direita,
sobre o filho do homem que para ti fortaleceste!
16
Comovente prece de intercessão pelas antigas tribos do Norte de
Israel. O pedido é dirigido a Deus a fim de “visitar a videira”, como figura
retórica de metonímia para significar o território e os habitantes após a
catástrofe nacional. Em especial, após a invasão das forças inimigas,
era de grande urgência que Deus todo-poderoso marcasse “presença”.
Trata-se, portanto, de uma fé na experiência da atuação divina através
de acontecimentos providenciais, e dos dons da benevolência divina
concedidos aos fiéis. A revitalização do país em ruína é algo inédito na
obra de restauração, porque se precisa recorrer a elementos inexistentes
ali, porque dez das tribos do Norte de Israel haviam sido deportadas (em
721 a.C.) para a Assíria (2Rs 17,6; 18,11). Para o início da obra será
necessário acabar com a hegemonia assíria, o que de fato ocorreu com a
queda do Império Assírio (em 627 a.C.). Em vista disso, a imprecação
com ameaças de castigo divino contra o domínio do opressor é uma
sentença cominatória post factum (v. 17). Há aqui uma inovação no
sentido de incluir os israelitas exilados da Assíria na fundação de novas
comunidades de fé, unidas às dos exilados na Babilônia. Neste sentido,
o universalismo da religião de Israel conta com um número crescente
de fiéis das mais longínquas comunidades de fé.
O nome patronímico da tribo de liderança sobre as outras dez, no
antigo Reino do Norte de Israel, é sem dúvida, a tribo de Benjamim, da
qual proviera o rei Saul. A referência ao “filho” alude à troca de nome
de “Ben-’ônî – filho da minha desgraça” dado pela mãe, que morreu de
parto (Gn 35,18), para “Binyamîn – filho da mão direita”, como emendou
o pai, para alívio do amargo luto pela perda da esposa, trocando, assim,
em alvíssaras o triste agouro. O nome de Benjamim é explicitado pela
frase nominal “o homem à tua direita” com sentido de identificação18.
Promessa e confiança (v. 19-20)
Não nos afastaremos de ti:
tu nos conservarás a vida, e invocaremos teu nome.
19
18
138
Cf. P. Joüon; T. Muraoka, op. cit. § 154ea.
Encontros Teológicos nº 66
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Luís Stadelmann, SJ
Restaura-nos, ó Deus, Senhor todo-poderoso:
faze brilhar tua face, e seremos salvos.
20
A promessa de louvor, a ser prestado a Deus na liturgia comunitária, em reconhecimento pela salvação, assegura ao povo a vida plena
na presença divina. A fidelidade prometida a Deus é a oferta de adesão
pessoal, como preito de gratidão pela intervenção divina em favor do
Povo Eleito. Mais do que mera ideia, trata-se de uma experiência da
presença de Deus que os fiéis acalentam no coração. Aqui se expressa o
fervor religioso da comunidade de fé ao prometer fidelidade inquebrantável, desde que Deus proteja sua existência na história, a fim de que a
religião bíblica continue dando sinais de credibilidade no mundo. O refrão
expressa a confiança dos fiéis no cumprimento das promessas anexas à
Aliança sagrada, que visam à salvação do Povo Eleito. O pedido pela
benevolência divina em favor do povo, em grave perigo, será atendido,
no momento em que a face do Senhor voltar-se com semblante amigo
às preces dos fiéis.
O refrão expressa a confiança dos fiéis no cumprimento das promessas anexas à Aliança sagrada, que visam à salvação do Povo Eleito.
O pedido pela benevolência divina em favor do povo, em grave perigo,
será atendido, no momento em que a face do Senhor voltar-se com semblante amigo às preces dos fiéis.
Nota
“altíssimos”, o superlativo em hebr. é expresso pelo genitivo:
“de Deus”.
11
19
“nome”, como indicação da presença divina.
Oração
Oração de amor confiante na salvação do Povo Eleito, ameaçado
em sua sobrevivência. Seu destino mudará para melhor, com o favorável
atendimento das preces dos fiéis.
Contexto
Este salmo de súplica coletiva data do período pós-exílico.
Encontros Teológicos nº 66
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Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
Salmo 89 (88)
Promessa messiânica a Davi
Estrutura Literária
1
I. Cabeçalho
2-19 II. Hino de louvor
2-5
A. Prelúdio
2-3 a) Aclamação de louvor
4-5 b) Citação do oráculo
6-9
B. Soberano do céu
10-13
14-15
16-17
18-19
C. Soberano da terra
D. Soberano da história
E. Exclamação admirativa
F. Soberano do Povo Eleito
20-38 III. Oráculo divino
20-22 A. Eleição de Davi
23-26 B. Proteção divina
27-28 C. Adoção divina
29-30 D. Aliança com Davi
31-34 E. Advertência aos pósteros
35-38 F. Promessa à casa davídica
39-52 IV. Lamento
39-46 A. Tribulação atual
47-52 B. Súplica insistente
53
V. Doxologia
Comentário e sua relevância na História da Salvação19
Ode sacra de Etan, o ezraíta.
1
A classificação desse salmo como “ode sacra“ (hebr. maskîl) ressalta a preferência por estribilhos (v. 5, 38, 46, 49) e o esmero poético muito
apropriado ao estilo elevado e à linguagem da corte. O nome próprio
de Etan (‘eitān) o ezraita (‘ezrāti) identifica-o como um dos famosos
“sábios”, cujo carisma o evidencia pelo o caráter de inspiração divina
e de exímia qualidade poética. O lamed prefixado ao nome de Etan é
o “lamed do titular de classificação”, que indica o grupo de Salmos de
uma determinada coleção (JM § 130b). Não se trata do lamed auctoris
para identificar o compositor do respectivo Salmo.
Hino de louvor a Deus (v. 2-19)
Cantarei eternamente os dons de amor do Senhor;
com minha boca anunciarei tua fidelidade, de geração em geração.
2
19
140
O salmista coincide com o historiador deuteronomista na expectativa da restauração
da dinastia davídica. Entretanto, ambos os autores não se inspiram na mensagem de
advertência da pregação dos profetas (Naum, Habacuc e Abdias) e silenciam totalmente sobre a catástofe nacional cf. J. Scharbert, Die Propheten Israels um 600
v.Chr., II, J.P. Bachem, Köln, 1967, p. “Wo bleibt die Davidverheissung”, p. 493-499.
Entretanto, a seção do “Protesto” (v. 39-52) cai fora da linha de continuidade teol.hist.
deuteronomista. Tratando-se da avaliação dos dados narrados nos livros históricos
da Bíblia, é preciso levar em consideração o livro de T. Römer, A chamada história
deuteronomista. Introdução sociológica, histórica e literária. (Trd. de G.A. Titton), Ed.
Vozes, Petrópolis, 2008.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Luís Stadelmann, SJ
Sim, proclamo que teu amor está edificado para sempre,
nos céus estabeleceste tua fidelidade:
3
“Fiz aliança com meu eleito,
jurando a Davi, meu servo:
5
Estabelecerei tua descendência para sempre,
e te construirei um trono, de geração em geração.” Canto
4
Os céus exaltam tuas maravilhas, Senhor,
e tua fidelidade, na assembléia dos santos.
7
Quem, nos céus, se compara ao Senhor?
Quem é igual ao Senhor entre os seres divinos?
6
No conselho dos santos, Deus é grandemente temido,
e inspira mais temor do que todos os que o cercam.
9
Deus, Senhor todo-poderoso, quem é igual a ti?
Forte és tu, Senhor, e tua fidelidade está ao teu redor.
8
Dominas a insolência do mar;
quando suas ondas se sublevam, tu as amansas.
11
Trituraste o cadáver de Raab,
desbarataste os inimigos com o poder de teu braço.
10
O céu é teu, tua é a terra;
fundaste o orbe e quanto ele contém.
13
O Norte e o Sul, tu os criaste;
o Tabor e o Hermon exultam ao teu nome.
12
Tens o braço cheio de vigor,
a mão forte, a destra erguida.
15
A justiça e o direito são as bases de teu trono,
amor e fidelidade antecedem tua presença.
14
Feliz o povo que sabe aclamar-te!
Eles seguirão pelo caminho, à luz de tua face, Senhor.
17
Por teu nome, todo dia, se regozijam
reerguem-se com tua justiça.
16
Sim, és sua força fulgurante
e com teu favor reergues nossa fronte.
19
Ao Senhor pertence nosso escudo,
ao Santo de Israel, o nosso rei.
18
2-19 Hino de louvor à bondade de Deus, que manifesta sua onipotência na criação e na história, e estabelece sua Aliança com o Povo
Eleito e com Davi, e com a dinastia davídica. Com base nesta Aliança
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
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Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
sagrada, a realeza davídica tornou-se um dos quatro sinais da Eleição
divina do Povo Eleito, junto com o sacerdócio levítico, o Templo e a
cidade de Jerusalém. O significado religioso desses quatro sinais era de
grande serventia para a vida dos israelitas, pois bastava conscientizar-se
da existência desses símbolos nacionais para saberem que estavam sob
a égide da Eleição divina.
2-5 Prelúdio. A promessa de perene louvor a Deus é o legado de
fé do salmista a todas as gerações do Povo Eleito para renderem, nas
celebrações litúrgicas, a ação de graças pela Aliança que vincula a Deus
o rei e o povo. Essa Aliança é motivada pelo amor de Deus para com os
fiéis, e tem, na fidelidade divina, a garantia de sua continuidade. Quanto à
realeza davídica, sua instituição foi ratificada por oráculo divino em vista
de sua função como mediação dos dons salvíficos, canalizando-os para
aquelas áreas que estavam fora do setor religioso, tais como o governo
central, a administração pública, o setor da defesa da independência
territorial do país e a gestão do bem comum em benefício dos cidadãos.
É na louvação litúrgica que encontramos a expressão do fervor religioso
da comunidade de fé ao prometer que proclamará os dons da Aliança
sagrada de geração em geração apesar da dolorosa experiência causada
pela destruição da monarquia de Judá e da dinastia da casa de Davi. Pois
a causa principal da destruição é o próprio Deus de Israel, contrariando
a promessa messiânica a Davi.
6-9 Soberano do céu. O louvor à majestade divina é expresso pela
ordem cósmica, através dos astros que executam a sinfonia sideral no
espaço empíreo e, de modo eloquente, pelo reconhecimento dos anjos, no
céu. O temor das criaturas diante da majestade divina não é o “assombro”
causado pelas hierofanias espaciais de tipo cosmológico, mas um santo
horror a qualquer ofensa a Deus.
10-13 Soberano da terra. O reconhecimento do domínio de Deus
sobre o mundo e as forças da natureza louvam o Criador, que subjugou
o caos ao criar o cosmo. As altas montanhas destacam-se na paisagem,
a exemplo do Tabor e Hermon, cujos cimos se elevam até o céu; a contemplação dos altos cumes suscita nos fiéis aclamações de louvor, que
eles costumam expressar na liturgia, celebrada na presença divina. Na
mitologia cananéia encontram-se referências a essas montanhas do Líbano como sede dos deuses tutelares, cuja morada se situava no “extremo
Norte” (hebr.: yarktêi şafôn), olhando do monte Sião (Sl 48,3).
142
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Luís Stadelmann, SJ
14-15 Soberano da história. Na revelação dos desígnios salvíficos,
vinculam-se à Aliança divina os princípios do direito e a justiça, que
constituem os fundamentos da comunidade ética. Os atributos divinos
de “amor e fidelidade”, acompanhados da justiça e do direito, que regulamentam as relações humanas, estabelecem a nova ordem da história:
a História da Salvação.
16-17 Exclamação admirativa, almejando a bem-aventurança ao
Povo Eleito pelo atos beneméritos dos cidadãos em benefício do bem
comum. Na verdade, compete aos membros da comunidade de fé expressar o reconhecimento pela colaboração humana nas obras em favor
da população, em perene louvor à soberania de Deus, que realiza a obra
salvífica no mundo com a ajuda dos seus eleitos.
18-19 Soberano do Povo Eleito. Por Eleição divina é que o rei Davi
e seus sucessores da monarquia colaboram no desempenho das tarefas
conferidas ao Povo Eleito, ao qual estão vinculados pelo mesmo destino
e pelas mesmas promessas de proteção divina.
Oráculo divino (v. 20-38)
Outrora. em visão, falaste assim aos teus fiéis:
“Dei meu apoio a um herói,
do meio do povo exaltei um eleito...
21
Encontrei Davi, meu servo,
ungi-o com meu óleo santo.
22
Minha mão está pronta para ele,
meu braço o fortalecerá.
20
Não o surpreenderá o inimigo,
nem o humilhará algum perverso,
24
pois esmagarei, diante dele, os adversários
e golpearei os que o odeiam.
23
Minha fidelidade e meu amor estarão com ele;
e em meu nome se erguerá sua fronte.
26
Porei sua mão sobre o mar,
e sua direita sobre os rios.
25
Ele me invocará: ‘Tu és meu Pai,
meu Deus, rocha de minha salvação.’
28
E eu farei dele o primogênito,
excelso entre os reis da terra.
27
Encontros Teológicos nº 66
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Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
Para sempre manterei meu amor para com ele,
e minha aliança com ele estará assegurada.
30
Para sempre estabelecerei sua descendência,
e seu trono, como os dias do céu.
29
Se seus filhos abandonarem minha lei
e não seguirem meus decretos,
32
se violarem meus preceitos
e não guardarem meus mandamentos,
33
punirei com a vara sua transgressão,
e sua iniquidade, com açoites,
34
mas sem apartar dele meu amor
nem invalidar minha fidelidade.
31
Não violarei minha aliança
nem mudarei o que saiu de meus lábios.
36
Uma vez por todas, jurei por minha santidade,
de forma alguma enganarei Davi:
35
Sua descendência durará para sempre,
e seu trono estará diante de mim como o sol,
38
como a lua, que sempre permanece,
fiel testemunha nos céus”.
37
20-22 Eleição e consagração de Davi, como rei do Povo Eleito.
A unção confere ao rei caráter sacral, elevando-o acima da esfera do
profano pela relação especial com Deus. A monarquia era, em Israel,
uma instituição de mediação salvífica para o bem da nação. Sua eficácia
era-lhe assegurada por intervenção divina.
23-26 Proteção divina era assegurada ao rei na vida pessoal, no
governo da nação e na defesa da integridade territorial. Em virtude da
presença divina, o rei e a nação beneficiavam-se das graças alcançadas
através das preces de intercessão dos fiéis, que obtinham de Deus proteção contra a agressão externa, simbolizada nas águas revoltas do mar
e dos rios.
27-28 Adoção divina. Na cerimônia de entronização, o rei do Povo
Eleito adquiria o título de “filho adotivo” de Deus, no sentido de aliado
preferencial, sob tutela divina.
29-30 Aliança com Davi. Sua vinculação com Deus não era transitória, mas perene, por todos os anos de sua vida e por toda a dinastia
davídica.
144
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Luís Stadelmann, SJ
31-34 Advertência aos descendentes. Enquanto Davi se destacava
por sua qualidade de fiel vassalo de Deus, seus descendentes estavam
longe de imitar o seu exemplo. Entretanto, a infidelidade pessoal dos
reis de Judá não abalará a estabilidade do trono davídico em mais de
quatro séculos, sendo a monarquia davídica uma das mais estáveis da
Antiguidade.
35-38 Promessa à casa davídica. A indissolubilidade da Aliança
era garantida por um juramento, em que Deus empenhava o que havia
de mais sagrado, sua própria santidade. Quanto à estabilidade do trono
davídico, visava-se ressaltar o fato de que Deus lhe assegurara continuidade para fins de mediação salvífica e pela qual dava sequência às etapas
da História da Salvação. Quando a monarquia davídica fosse substituída
por outra forma de governo, a função dessa mediação seria assumida por
outros órgãos governamentais, dela compartilhando os responsáveis pela
administração pública.
Protesto (v. 39-52)
No entanto, desdenhaste e rejeitaste,
encolerizando-te com teu ungido.
40
Renegaste a aliança com teu servo,
profanaste por terra seu diadema.
39
Derrubaste todas as suas muralhas,
desmantelaste suas fortalezas.
42
Saquearam-no todos os transeuntes,
e ele tornou-se o ludíbrio dos vizinhos.
41
Exaltaste a destra dos seus adversários
e alegraste todos os seus inimigos.
44
Embotaste o fio de sua espada
e não o apoiaste na batalha.
43
Puseste fim ao seu esplendor
e derrubaste por terra seu trono.
46
Abreviaste os dias de sua juventude
e o cobriste de vergonha.
45
Até quando, Senhor? Para sempre te ocultarás,
ardendo como fogo tua cólera?
48
Lembra-te da duração da minha vida!
Criaste em vão todos os seres humanos?
49
Viverá, sem ver a morte, algum valente,
47
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
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Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
que possa subtrair-se à garra do abismo?
Senhor, onde estão teus dons de amor de outrora,
que juraste a Davi por tua fidelidade?
51
Lembra-te, Senhor, do ultraje de teus servos,
que carrego no peito, da parte de muitos povos!
52
Como o ultrajaram, Senhor, teus inimigos,
como ultrajaram os passos do teu ungido!
50
Protesto pela situação de calamidade nacional, que contrasta com
a intervenção divina no passado.
39-46 Tribulação atual, como causa de crise na fé, abaladas as
estruturas da comunidade, não por decadência, mas por causa de vicissitudes históricas. Surge um questionamento quanto à validade da promessa
divina sobre a indissolubilidade da Aliança feita com a realeza davídica,
e sobre a indefectível proteção assegurada à nação e ao rei. Porém, a
causa primeira da destruição da monarquia era o próprio Deus, sendo
as tropas babilônicas mera causa instrumental. Não admira que a ruína
fosse completa e irremediável. A finalidade era de eliminar a estrutura
estatal do Estado teocrático de Judá, que dava respaldo e sustentabilidade
à religião de Israel. Doravante, não se precisava dessa estrutura para
sobreviver, e muito menos a religião bíblica deveria atrelar-se ao regime
monárquico. Com efeito, aos fiéis não se dava o aval de organizar-se em
partido monarquista nem revestir-se de honrarias da nobreza, pois as
comunidades de fé estavam constituídas de gente simples e de pobres.
Não foi por causa do empobrecimento da população após guerra, mas
devido à fuga da elite de Judá para outros países. Daí que os sobreviventes
do país eram os fiéis, a quem cabia consolidar sua fidelidade em meio à
pobreza e difundir a religião bíblica a outros povos.
47-52 Súplica insistente, incluída a interpelação a Deus por sua
ausência e pelo abandono da nação, em sua situação trágica. Implícita na
pergunta “até quando?” está a afirmação “não se pode suportá-lo por mais
tempo”. A prece introduzida pelo verbo “lembrar” tem por fim apresentar
a súplica de maneira enfática, para que esteja presente diante de Deus.
Como motivo para intervenção divina na vida dos fiéis menciona-se a
triste situação do Povo Eleito, à mercê de inimigos, que são os inimigos
também de Deus. A reação de Deus com sentimentos de cólera diante dos
inimigos não é um retrato da natureza divina, mas uma imagem visual da
censura ao estado espiritual do ímpio, obstinado na resistência à graça,
e na perseguição contra os fiéis do Povo Eleito.
146
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Luís Stadelmann, SJ
A repercussão da nova Aliança de Jeremias consta na experiência
do perdão dos pecados, dentro do rito de contrição da liturgia penitencial
(v.51). Não há ressentimento nem amargura no coração do salmista contra os
povos inimigos, mas sentimento de dó e lástima pela ofensa contra Deus.
Doxologia (v. 53)
Bendito seja o Senhor para sempre!
Amém e amém!
53
A doxologia rende perene louvor a Deus, finalizando com a aclamação litúrgica: “amém”, palavra derivada do hebr. ’āmēn, expressa
anuência à prece: “Assim seja!” Ocorre na rubrica do final da terceira
parte do Saltério (Sl 73-89), como também no fim da segunda (Sl 4272) e da primeira parte (Sl 1-41). A designação de Deus pelo nome
do Senhor tem significado especial nessa doxologia, porque exalta a
Deus não pelo nome genérico, mas como Autor da Aliança sagrada.
Na verdade, o nome do Senhor ocorre doze vezes para dar ênfase à sua
vinculação toda especial com o Povo Eleito, cuja mediação era exercida
pela realeza davídica.
Oração
Oração de louvor para despertar nosso amor para com Deus, que
instituiu mediações salvíficas para o bem do Povo Eleito, mostrando aos
outros povos como se realizam seus desígnios na História da Salvação e
assegurando aos fiéis a proteção divina, em meio às vicissitudes históricas
que traumatizam sua fé.
Contexto
Este salmo da realeza data do período pós-exílico.
Conclusão
A piedade bíblica tem caráter litúrgico porque cultiva um pensamento comunitário, não propriamente de orientação tradicional, que se
sente mais protegida e mais segura numa cultura nacionalmente homogênea, ou mesmo, numa sociedade nacionalista. Mas, à luz dos Salmos, se
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
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Salmos de Protesto (Sl 44; 80; 89)
ensina que a oração dirigida a Deus brota da boca dos fiéis que procuram
livrar-se do nacionalismo, unindo-se ao invés a todos os oprimidos na
tentativa de emancipar-se dos confinamentos territoriais e continentais,
porque estão empenhados em conquistar sua liberdade e sua identidade
próprias. Fator marcadamente comunitário, mas isento do reducionismo
cultural e afinidade social, é a religião bíblica situada na História da
Salvação que necessita da mediação de estruturas e instituições, sem que
estejam sujeitas ao nacionalismo e ao fundamentalismo, porque estão a
serviço da difusão dos dons salvíficos entre todos os povos do mundo.
Endereço do Autor:
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148
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Resumo: A passagem dos 450 anos do encerramento do Concílio de Trento
(1563-2013) motiva-nos o estudo das circunstâncias e resultados desse evento
eclesial, certamente um dos de maior ressonância na história da Igreja, e cujos
efeitos ainda são plenamente visíveis. O artigo começa situando Trento no seu
contexto europeu, no final da Idade Média, detendo-se a seguir na figura de
Martinho Lutero, para então comentar “Trento e suas decisões”. Aborda também
o “Missal de São Pio V”, tido por intocável pelos tradicionalistas, e observa que
“mudanças são sempre lentas”. Na conclusão, ressalta o fato de que os 450
anos de Trento estão sendo marcados, inesperada mas providencialmente,
pela eleição e o pontificado de Francisco, o novo “Bispo de Roma”, que está
acendendo tantas esperanças.
Abstract: The course of 450 years since the end of the Council of Trent (15632013) is the reason of studying the circumstances an results of this major ecclesial
event, which without any doubt had one of the most resounding repercussion in
the history of the Church. Its consequence is still in sight today for every body to
see. The article begins situation the Council of Trent in the European context, at
the end of the Middle Ages, with a short stopover visualizing Martin Luther, the
central figure causing a religious conflict for centuries to come. The article also
deals with the Missal of Pius V which was held as untouchable by the traditionalist
wing of the ecclesial circles. The author throws some light on the matter in hand.
In the conclusion, a notable contribution comes forth envisaging the period of
450 years under the sign of the new pope Francis, opening up a new hope for
the Church of today and the ages to come.
O Concílio de Trento no caminho
da Igreja – 450 anos
José Artulino Besen*
*
O autor, que é pároco do bairro Procasa, Barreiros, Florianópolis, é especialista em
História da Igreja, membro da Academia Catarinense de Letras e do Instituto Histórico
e Geográfico de Santa Catarina, Professor emérito do ITESC e Professor pesquisador
da FACASC.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013, p. 149-157.
O Concílio de Trento no caminho da Igreja – 450 anos
Introdução
Ao estudarmos o processo religioso no século XVI1, convém lembrar que foram diversas as Reformas, identificadas no enfrentamento à
prática religiosa e doutrinal católica: Reforma luterana, com foco na Alemanha (1517), Reforma na Inglaterra (1533), Reforma na Suíça (1536).
As duas primeiras se caracterizaram como reformas marcadas pelo espírito nacional, sendo a reforma de Calvino caracterizada pela radicalidade,
sem características nacionais. O movimento de Calvino prevaleceu sobre
todos, neles influindo, dando origem à Igreja reformada, cuja teologia
e organização eclesial se irradiaram nas igrejas presbiterianas, batistas,
adventistas, pentecostais. A personalidade de Lutero encarnava o espírito
alemão e falava à Alemanha partindo da experiência católica, enquanto
que Calvino ignorou toda a tradição histórica, formando a Igreja a partir
unicamente da Sagrada Escritura, razão pela qual se universalizou. Se
Lutero e Henrique VIII reformam a Igreja, João Calvino a constrói a
partir do Novo Testamento.
O processo religioso do conturbado século XVI também mergulha
na imensa problemática sócio-econômica vivida na Europa, o que explica
porque um Continente cujo centro e animador era a Igreja católica passe
a combatê-la. A par das exigências estritamente religiosas, situam-se
interesses de ordem política. Há a resistência contra Roma e o nome
romano como ressentimento das lutas entre Luiz o Bávaro e João XXII,
que interferiu no processo político alemão, e contra o fiscalismo, ou seja,
a multiplicação de taxas por parte de Roma.
A situação econômico-social ajuda a compreender a difusão da
Reforma na Alemanha, onde os camponeses e os cavaleiros, a pequena
nobreza, sofriam após a descoberta da América. Os cavaleiros perderam o antigo poder pela desvalorização dos feudos agrícolas diante do
incremento do comércio, pela transformação da técnica militar (agora
se usava a infantaria mais do que a cavalaria), pelo reafirmar-se dos
feudatários maiores, os príncipes. Para melhorar sua sorte, nada melhor
do que os bens eclesiásticos: mudar para a nova religião possibilitava o
enriquecimento com a invasão de conventos e igrejas.
1
150
O presente trabalho tem como pano de fundo a obra de Joseph Lortz – A Reforma
na Alemanha; de Hubert Jedin – O Concílio de Trento; e de Giacomo Martina – A
Igreja ... de Lutero aos nossos dias.
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José Artulino Besen
Os camponeses, reduzidos ainda a servos, explodiam em revoltas
desde o século XV, reagindo à miséria e à servidão. Já no ardor da Reforma, Lutero deparou-se com a Guerra dos Camponeses, que explodira
em maio de 1524 nas regiões superiores do Reno e se difundira por quase
toda a Alemanha. Mais de mil castelos e mosteiros foram incendiados.
Os príncipes protestaram junto ao Reformador que, de início, apoiou as
revoltas em nome da justiça: ou eles ou os camponeses. Nesse momento
dramático, Martinho Lutero ficou em posição inconciliável: ou os camponeses pobres, ou o apoio dos Príncipes que lhe garantiriam a defesa
e a penetração da Reforma. Escolheu os príncipes: incitou-os a trucidar
os camponeses como cães raivosos, porque isso seria obra agradável a
Deus. Em maio-junho de 1525 a revolta foi sufocada no sangue e foram
aplicados terríveis castigos aos vencidos. Tomás Münzer (1489-1525),
que liderara a formação da cidade “comunista” de Münster, foi torturado
e decapitado.
Os príncipes saíram fortalecidos da guerra e impuseram sempre
mais a sua palavra sobre a Igreja. Lutero, para salvar a Reforma, conferelhes o poder de “bispos exteriores”, com ampla autoridade de governo
e reforma nos negócios eclesiásticos. Tal medida fez com que mais da
metade dos principados alemães abandonassem o catolicismo, misturando
convicção religiosa com ambição político-econômica. E assim, por uma
dessas ironias da história, os cristãos, livres de Roma, ficaram submissos
a seus príncipes em matéria religiosa (na Alemanha, até 1918).
De um lado temos o palco alemão, onde foi detonado o início
reformador e que se espalhou pela Europa; de outro, a insensibilidade de
Roma, que vivia no esplendor da Renascença, sem muitas preocupações
religiosas.
1 Martinho Lutero
Em 1517, um frade agostiniano alemão publicava suas Teses em
Wittenberg, chamando os doutores a discutirem com ele os problemas que
enxergava na Igreja católica, centralizando-os no tema da Justificação:
como o homem alcança a salvação? Para nós, a resposta é clara e, com
todos os protestantes dizemos: somos salvos pela graça que nos é dada
pela fé em Jesus Cristo crucificado.
À época, com o Papado mergulhado na preocupação com as artes, com a Cúria romana mais interessada no jogo do poder, a reposta
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
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O Concílio de Trento no caminho da Igreja – 450 anos
era confusa, mesmo que a teologia, em tese, fosse clara. Era o tempo
das Indulgências, e o papa Leão X estava mais preocupado em arranjar
dinheiro para a construção da nova basílica de São Pedro do que com
as impertinências de um frade alemão. Os pregadores de Indulgências
anunciavam que se poderia salvar uma alma mediante pagamento e Lutero, que passara pela busca ardente da salvação, descobrira o caminho
bíblico: O Justo viverá pela fé (Rm 1,17): pela fé em Cristo, Deus nos
salva.
Lutero (1483-1546) aliava em si profundo conhecimento bíblico,
imenso amor pela oração, capacidade de liderança, e irresistível atração
nos ouvintes. Com sua pregação, a Alemanha entrou em convulsão
religiosa, monges e monjas abandonaram os mosteiros, padres e bispos
passaram para o lado do Reformador e, claro, os príncipes alemães viram na adesão a Lutero um modo de se apossarem dos bens da Igreja. A
Alemanha católica se tornara em grande parte protestante.
E Roma, como reagiu? Com muita lentidão e receio. Afinal, quando
se trata de perder privilégios como fruto de reforma, poucos têm coragem de dar o passo. E, assim, grande parte do tecido imperial aderiu às
novas doutrinas, e a Igreja católica, que fora fiadora da Europa – pois a
Europa é uma sábia construção católica – perdeu espaço, permanecendo
católicos somente Portugal, Espanha, Itália e parte da França. Um grande
trabalho missionário, especialmente dos jesuítas, reconquistou depois
parte do espaço perdido.
Bispos e cardeais, leigos e intelectuais, Lutero, Calvino, os Príncipes, pediam um Concílio ecumênico para a reforma “na cabeça e nos
membros”. Suas vozes não foram ouvidas, pois as preocupações romanas
eram outras. Infelizmente assim foi e, quando o Concílio Ecumênico foi
aberto em Trento, os dois lados estavam irremediavelmente divididos
após 27 anos de conflitos, fazendo com que o Concílio fosse um concílio
católico e de reforma católica.
Por que em Trento, ao pé dos Alpes? Trento era uma cidade neutra, governada por um Bispo-príncipe e garantia a segurança dos bispos
participantes e sua independência frente às interferências do imperador
Carlos V, dos príncipes e da ambiciosa monarquia francesa. Paulo III
convocou o Concílio para 1544, mas, o reduzido número de bispos
obrigou-o a transferi-lo para março de 1545. No início, compareceram
25 bispos e 7 Gerais de ordens religiosas. É útil olharmos os números
em confronto com outros Concílios: na 1a. sessão havia 31 bispos para a
152
Encontros Teológicos nº 66
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José Artulino Besen
abertura e, nas duas primeiras fases, o número oscilava entre 65 e 70, na
última chegando a 225. Nos grandes Concílios da Antigüidade era outra
a vivacidade: em Nicéia (ano 325) eram 318 bispos; em Calcedônia (ano
451) foram 630; nos tempos modernos, 700 no Vaticano I (1869-1870)
e 2500 no Vaticano II (1962-1965).
Por que o reduzido número? As dificuldades de viagem, pestes,
a falta de segurança, ameaças dos príncipes; a Igreja do norte africano
tinha praticamente desaparecido e bispos deixaram a Igreja católica.
O Concílio de Trento (1542-1563)
O Concílio de Trento teve três fases: 1545-1547, 1551-1552, 15611563, vividas sob 5 Papas. Realizou uma obra admirável, respondendo
de modo positivo às instâncias luteranas. Foi um Concílio dogmático,
sim, mas os bispos que lá se reuniram estavam preocupados com algo
muito concreto: como ser bispo frente a uma Cúria romana que interferia na sua autoridade? Como reformar a vida católica, o clero, frente às
dispensas romanas?
A preocupação episcopal era mais pastoral. E muito foi conseguido, podendo ser dito que os bispos saíram de Trento com sua autoridade
reforçada, apesar do título ambíguo de “delegados da Sé apostólica” (os
bispos são sucessores dos Apóstolos, não “delegados” papais).
A grande palavra tridentina foi “pastoral”: reformar a vida católica, o clero, os religiosos. Missão da Igreja não é a promoção das artes,
mas a salvação das almas: Salus animarum suprema lex esto. Foi a ação
pastoral o grande fruto dessa assembléia que durou 18 anos e na qual
houve liberdade de expressão para bispos e teólogos. Ali o santo arcebispo
português, Frei Bartolomeu dos Mártires, pôde dizer aos seus colegas:
“Os eminentíssimos e reverendíssimos senhores Cardeais necessitam de
uma eminentíssima e reverendíssima senhora reforma”. E assim foi.
2 Trento e algumas de suas decisões
Quais foram as decisões que mais diretamente tocaram a vida da
Igreja? Foram tantas e tão importantes, que fica difícil salientar alguma,
pois o corpo doutrinal e pastoral da Igreja é extremamente compacto.
Primeiro fruto foi a resposta positiva e bíblica à doutrina da Justificação, que até Lutero teria assinado. Definiu a dupla fonte da Revelação
Encontros Teológicos nº 66
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O Concílio de Trento no caminho da Igreja – 450 anos
e a Tradição, afirmou o Cânon bíblico, com 72 livros, a doutrina dos
Sete Sacramentos, a fé que opera na caridade, a purificação na doutrina
do culto aos Santos, imagens, relíquias, a riqueza das devoções, a vida
religiosa consagrada, etc.
Trento não teve condições de unir os aspectos visíveis da Igreja
à sua natureza místico-sacramental. Não conseguiu definir um conceito
de Igreja; apenas definiu-lhe os aspectos doutrinais. No longo prazo,
isso fez com que se acentuasse a face mais visível, institucional. Basta
ver o que o santo teólogo Roberto Belarmino (1542-1621) declarou a
respeito: “a Igreja é tão visível como a república de Veneza”. Isso levou
a se confundir a Igreja Corpo de Cristo com suas estruturas que são
passageiras, mas defendidas quase como dogmas de fé.
Algumas instituições marcaram a vida da Igreja para melhor: a
criação dos seminários, obrigatórios para cada diocese, a fim de haver
seleção dos candidatos ao sacerdócio e, ao mesmo tempo, a possibilidade
de pobres e ricos serem padres. A Cúria romana foi reformada com a
criação dos Dicastérios confiados a Cardeais, e deu-se forte impulso à
ação missionária.
A obrigação de cada bispo residir em sua diocese, de realizar a
Visita ad limina Apostolorum: a cada cinco anos ir a Roma e, junto ao
túmulo dos Apóstolos, prestar contas de sua ação pastoral. A mesma
obrigação cabia aos bispos em suas dioceses, que deviam ser visitadas em
visita pastoral. Grande exemplo nesse campo foi o arcebispo de Milão
São Carlos Borromeu (1538-1584): visitou toda a diocese, os conventos
e mosteiros e, com energia até excessiva, puniu os desvios doutrinais e
de comportamento, servindo-se de uma prisão e de corpo policial.
Não foi positivo o fruto de outra decisão: obrigar as religiosas à
clausura, impedindo-as de ação pastoral, o que incorporou um caráter
machista à organização da Igreja, o mesmo que aconteceu na Igreja protestante. A acentuação na Hierarquia enfraqueceu a formação do laicato
adulto, levando à clericalização da organização eclesial. A vida cristã foi
privada da presença pública e ativa das mulheres consagradas.
Os bispos conciliares delegaram ao Papa Pio V a elaboração da
Profissão de Fé (1564), a publicação do Catecismo Romano2 (1566), do
Breviário (1568) e do novo Missal (1570), a Missa de São Pio V.
2
154
Em 1529, Martinho Lutero também publicou o Catecismo Menor, para o uso do
povo.
Encontros Teológicos nº 66
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José Artulino Besen
3 O Missal de São Pio V
Pesa sobre a Missa de São Pio V o caráter de oposição, hoje, à
Missa de Paulo VI, o que não se justifica pois, além dela, sobreviveram
ao Concílio de Trento os ritos litúrgicos ambrosiano, bracarense, galicano, moçárabe. O Missal de 1570 pouco diferia do Missal impresso em
1474 que, por sua vez, reproduzia fielmente o Missal de Inocêncio III.
Com a bula Quo primum tempore, Pio V estabeleceu que a reforma dos
ritos estaria “em conformidade com a antiga norma dos Santos Padres”.
Mas, sem dúvida, à época havia limitações para a investigação dos autores
antigos, o que não aconteceu com a reforma de Paulo VI (cf. IGMR 7)
que teve a felicidade de contar com a rigorosa pesquisa litúrgica levada
a efeito desde o final do século XIX.
Os críticos do Vaticano II alegam a perpetuidade do Missal de São
Pio V, conforme reza a bula Quo primum tempore: Si quis autem hoc
attentare praesumpserit, indignationem omnipotentis Dei, ac beatorum
Petri et Pauli Apostolorum ejus se noverit incursurum: “Se alguém,
contudo, tiver a audácia de atentar contra estas disposições, saiba que incorrerá na indignação de Deus Todo-poderoso e de seus bem-aventurados
Apóstolos Pedro e Paulo”.
A linguagem da perpetuidade é característica de documentos papais
e não significa, em absoluto, que nada poderá ser reformado, corrigido,
melhorado. A perpetuidade refere-se à autoridade papal, ou seja, enquanto outro papa não dispuser o contrário. A Bula que estabeleceu o novo
Breviário continha a mesma determinação, mas não impediu que fosse
reformado em 1911 pelo papa São Pio X, com a bula Divino Afflatu.
Lembre-se, também, que o rito da Missa de São Pio V foi posteriormente
revisto por outros papas em 1604, 1634, 1888, 1920, 1955 e 1962.
Se um dos grandes méritos da causa de sucesso de Martinho Lutero
foi o uso da língua alemã na pregação e no culto, o mesmo não se pode
dizer de Trento, apegado firmemente à língua latina, quase canonizandoa. O conflito já existia na Idade Média, mas lá se dizia que a Liturgia
poderia ser expressa apenas nas línguas citadas na cruz: grego, latim
e aramaico. O latim foi responsável pelo espírito autoritário romano e
franco-germânico frente aos povos eslavos que se convertiam à fé cristã
e impediu, nos séculos seguintes, a compreensão da Liturgia por parte
da massa que ignorava o latim..
Encontros Teológicos nº 66
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O Concílio de Trento no caminho da Igreja – 450 anos
A preocupação com a reta doutrina fortaleceu na Igreja o espírito
inquisitorial e, no ano da abertura do Concílio de Trento, Paulo III criou
a Inquisição romana ou “Congregação da Sacra, Romana e Universal
Inquisição do Santo Ofício”, que existiu entre 1542 e 1965. Para evitar a propagação de doutrinas heréticas foi criado o Índice dos Livros
proibidos.
A unidade dos bispos em torno do Papa deu-lhe autoridade e
instrumentos para enfrentar os Estados que ingressavam no absolutismo
e que tentaram por todos os caminhos assaltar a liberdade da Igreja e
sua missão, pois não admitiam que seus súditos obedecessem a uma
autoridade estrangeira.
4 Mudanças sempre são lentas
As decisões conciliares se depararam com a contrariedade da
Cúria romana que continuou a conceder privilégios e isenções, bispos
se deixando empolgar pela riqueza e pelo apoio da autoridade dos reis e,
somente no século XX, a obrigação dos seminários se universalizou com
a criação de seminários regionais. Parte do clero continuará a mergulhar
numa prostração espiritual fruto do sustento acomodador recebido do
Estado.
O espírito controversístico levou a pastoral a acentuar os aspectos
antiprotestantes: Tradição, mais forte que a Bíblia; obras, mais poderosas
que a fé; vontade, em detrimento da graça; culto aos Santos e a Maria,
e os exercícios de piedade, mais valorizados que uma espiritualidade
verdadeiramente centrada no Cristo e no mistério trinitário. A autoridade
do Papa e da Cúria marcou na Igreja o caráter acentuadamente romano
e centralizador.
Finalizando, o Concílio de Trento deu à Igreja energias insuspeitadas, principalmente conteúdo e convicção doutrinária para enfrentar
as grandes batalhas que logo ganharam força: garantir a liberdade da
Igreja, salvar a Revelação diante do Iluminismo racionalista, afirmar
a Palavra de Deus frente às escolas modernas que a reduziam ao mito,
salvar a encarnação do Verbo e a própria existência de Deus frente a uma
sociedade econômico-cultural cada vez mais narcisista, arrogante e que
tenta repetir o desafio de Prometeu: roubar o fogo dos deuses e desse
modo negar Deus e deixar o homem ao arbítrio do tempo.
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Encontros Teológicos nº 66
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José Artulino Besen
No dia 3 de dezembro de 1563 era encerrado o Concílio de Trento
e, 400 anos depois, em 4 de dezembro de 1963, os padres conciliares do
Vaticano II publicavam a Sacrosanctum Concilium, a liturgia do povo
de Deus que celebra comunitariamente o mistério pascal.
E, no dia 13 de março de 2013, 450 anos após o encerramento de
Trento, a Igreja romana recebe como Papa o argentino Francisco, filho
de um Continente ocupado à época do Concílio e da Reforma, um Papa
que se propõe renovar a vida pastoral e sacudir estruturas engessadoras
da Igreja católica. A duras custas, aprendemos a ser servidores do povo,
humildes e desarmados, oferecendo ao mundo uma palavra de vida, uma
pessoa: Jesus, o Salvador.
E-mail do Autor:
[email protected]
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
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Livros dos nossos Professores
– Pe. José Artulino Besen
Transcrevemos do JORNAL DA ARQUIDIOCESE, Florianópolis, n. 196, dezembro de 2013, pág. 5, a notícia seguinte:
LIVRO resgata os 300 ANOS da Paróquia da Catedral
“História de Nossa Senhora do Desterro – 1713—2013 – Ilha
de Santa Catarina”. Esse é o título do novo livro de autoria do Pe. José
Artulino Besen, que relata os 300 anos da Paróquia que em 1908 foi
elevada à condição de Catedral de Florianópolis. Pe. José é membro da
Academia Catarinense de Letras e do Instituto Histórico Geográfico de
Santa Catarina, IHGSC, Professor emérito do ITESC e Professor pesquisador da FACASC. O lançamento foi realizado na sede do IHGSC,
em 27-11 e, depois, na Catedral Metropolitana, em 13-12 p.p.
A obra abrange a história religiosa da Ilha de Santa Catarina e
do Continense circundante desde 1500, focalizando essa história nas
quatro fundações bandeirantes: São Francisco do Sul, Nossa Senhora
do Desterro, Santo Antônio dos Anjos da Laguna, e Nossa Senhora dos
Prazeres das Lages, que foram os polos de comunicação e penetração
populacional e econômica.
O livro é escrito a partir da história do povo: índios, negros,
migrantes, trabalhadores, padres, sem esquecer as classes dirigentes e
economicamente melhor situadas, tentando, assim, apresentar a religiosidade popular e as instituições religiosas e caritativas criadas pela
Igreja católica na região.
Na segunda parte da obra são oferecidos verbetes dos padres
que trabalharam em Santa Catarina de 1500 a 1890, quando aconteceu
a proclamação da República, com a separação entre Igreja e Estado e a
consequente extinção do Padroado.
O autor espera ter conseguido identificar os padres nascidos em
território catarinense nesse período e, de modo particular, os padres que
vieram dos Açores e da Madeira no século XVIII e todos os nascidos
na Ilha. Igualmente oferece a lista, com dados biográficos, de todos os
padres vigários e coadjutores da paróquia de Nossa Senhora do Desterro,
desde a sua criação em 1713 até hoje.
O livro, com 410 páginas, integra a Coleção CATARINIANA.
No. 15, do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, do qual
Pe. José é membro emérito. Pode-se adquiri-lo na Catedral, pelo fone
(48)3224.3357, a R$ 20,00. A renda será revertida para as obras sociais
da Catedral (N.B.P.).
Resumo: O autor, um jornalista venezuelano, curioso de sua origem possivelmente judaica, participou de um Curso sobre o Judaísmo, ou seja, sobre o
Pensamento Judeu, em Caracas, Venezuela. Neste artigo, ele partilha, além
dos motivos que o levaram ao Curso, as suas descobertas e impressões sobre a
“complexidade do Judaísmo”. E sistematiza suas impressões em quatro pontos:
1. O pensamento judeu; 2. A evolução histórica do Judaísmo; 3. É “religião” ou
“modo de ser”?; 4. Fidelidade, a quem? A seguir, pergunta e responde: “O que
queria Deus? – O povo judeu”. Por fim, antes das observações conclusivas,
discute a “defesa da propriedade”, em relação à Terra Prometida.
Abstract: The author is a journalist from Venezuela inquiring about his Jewish
origin as he was participating in a course about Judaism and concomitantly trying
to understand Jewish Thought in the milieu of Caracas, the capital of Venezuela.
In this article he explains the reason for this course being offered in that country
and he shows forth the tenets of Judaism and its religious doctrines and systematic. In the conclusion an inserted brief answers to the defense of the right to
private property in relation to the Promised Land.
Sobre o Judaísmo
Cátedra do Pensamento Judeu
Universidade Monteàvila, Caracas, Venezuela
Luís Moreno Gomez*
*
Licenciado em Jornalismo, Universidade Central de Venezuela; Master of Science,
Columbia University, New York; Diplom, Konrad-Adenauer-Stiftung, Alemanha; Candidato a Doutorado em Historia, Universidade Santa Maria, Caracas; Profesor de
Jornalismo Científico, Universidade de Zulia e Universidade Catolica Andres Bello,
Caracas, Venezuela.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013, p. 159-169.
Sobre o Judaísmo: Cátedra do Pensamento Judeu
1 Introdução
Quando escutei, nestas conferências, frases relativas à complexidade do Judaísmo, e ao expor-me ao material que foi ministrado pelos
diversos expositores, concluí que, para quem não é judeu de nascimento
e não seguiu de perto esses ensinamentos, uma imensa montanha está à
sua frente. Logo compreendi, ao longo das diversas aulas, que, tanto para
um judeu de nascimento como para qualquer outra pessoa, o caudal de
informação acerca da origem do povo nascido sob o amparo divino do
seu Criador, demanda muito estudo, primeiro para entender o que não é
inteiramente racional – entenda-se, a razão do homem, do ser humano –
nos capítulos iniciais do livro pro excelência e, logo, para compreender e
aceitar séculos de tradição, pesados e sopesados, discutidos e concluídos
sem acordo mas aplicados a todos por igual.
Outro assunto que resulta claro é que o Judaísmo é labiríntico,
crucigramático, exclusivo de um povo que nasceu com essa marca,
cresceu e se multiplicou sob uma forma de ser que de fora se denomina
“religião” mas que, de dentro, na concepção de alguns rabinos, se trata
mais de um modus operandi humano que de uma ideologia dominante
da alma, do espírito, daqui para a eternidade.
Pessoalmente, aproximei-me do judaísmo por várias razões. Uma,
histórica, ao tratar de compreender o que aconteceu na Espanha que denomino “jucrislâmica” (um neologismo de minha colheita para assinalar
o tempo de sete ou mais séculos de convivência entre judeus, cristãos e
muçulmanos naquele território em formação denominado Sefarad por
seus primeiros visitantes, expulsos da sua terra de origem), e de que
maneira suas tradições e modos de ser se trasladaram para a América a
partir das viagens de Colombo e as seguintes aos territórios ultramarinos
dos reinos da Espanha e Portugal.
A outra, derivada de um sentimento de curiosidade familiar ao
encontrar desde a primeira idade um dilema, um questionamento, frente
ao ensino de uma religião – a cristã – assim como um “mistério” acerca
das origens das quais ninguém quer falar e um contínuo emigrar como
que fugindo sempre de um perigo à espreita.
E uma terceira visão, obrigatória, pois, ao percorrer caminhos de
investigação, a gente vai-se dando conta em si mesmo de características
de comportamento que parecem iniludíveis e, ainda por cima, naturais,
de o sentimento de conversão original para “salvar a vida”, o rechaço à
160
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Luís Moreno Gomez
imposição pela força, e não pela razão, de qualquer objetivo perseguido
(a obediência cega, contrária ao livre arbítrio intrínseco à criação do ser
humano), até um certo sentimento de solidariedade para com indivíduos que parecem provir do mesmo lugar e com quem se encontra uma
vinculação inexplicável.
Por acaso, mais que por outra coisa, penso, alguém se interessou
em informar-me sobre esta Cátedra aparentemente nova, uma espécie de
desaguamento no oceano, que antes teve de percorrer longo caminho em
forma de rio, saltando obstáculos mas ao mesmo tempo polindo rochas.
Não é minha esta alegoria, não me recordo de quem ouvi dizendo-a, mas
aflorou nesta exposição de modo espontâneo.
2 Comentários
Passo agora a formular alguns comentários acerca deste curso da
Universidade Monteàvila, não sem antes agradecer seu convite e o de
outras organizações associadas. Ouvi que somos um grupo escolhido,
quiçá para uma prova, e ali pretendo situar-me para fazer as observações
que em seguida se hão de formular, com o deliberado propósito de compensar com gratidão pelo convite e contribuir de maneira consistente ao
melhor desenvolvimento da Cátedra em um futuro.
2.2 Pensamento judeu
Aparentemente, fica claro que o pensamento judeu se concentra
sobre a origem de sua própria etnia, raça, tribo – segundo o tempo de que
se trata. A razão de ser é determinante de seu pensamento. Deus criou este
povo “à sua imagem e semelhança” e o distinguiu ao escolhê-lo como
“seu povo”, “o povo de Deus”, fazendo abstração de que existissem nos
tempos do Gênesis outros povos nos mesmos territórios dos rios Eufrates
e Tigre e suas conhecidas adjacências. De maneira que o pensamento
judeu não pode ser outro senão o “Eu sou o que sou”, para usar uma frase
do seu Criador e em atenção à imagem e semelhança dEle.
Como temos entendido, esses axiomas, muitos outros também,
devem ser aceitos pela fé, uma convicção de que “assim sucedeu e assim
foram as coisas”, como está estabelecido nos primeiros nove livros da
Torá, o que foi entregue ao povo e recebido por este através de seus pais
fundadores, entre os quais Abraão, a quem Deus falou e disse o que fazer
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
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Sobre o Judaísmo: Cátedra do Pensamento Judeu
e como agir. De todas as formas, assim como começa um povo nasce a
pergunta, a interpretação, o entendimento daquilo que sucedeu e como
os homens, com sua própria capacidade – dom que lhes foi outorgado,
como a alma, a própria vida – e a longa história do estudo interminável
acerca da cada palavra, de “o quê quis dizer” e como devemos seguir
um mandamento, tudo o que submerge através de cinco milênios aos
sacerdotes, aos mestres chamados rabinos, em uma discussão na busca
da exata e mais correta interpretação, não sempre em acordo entre eles
porque, em fim de contas, são homens com pensamento judeu, sim, porém
livres para argumentar, contrastar e ordenar.
Bastariam os cinco livros de Moisés (o libertador dos judeus da
escravidão egípcia por 430 anos) conhecidos como “Pentateuco” (palavra
grega indicando “cinco estojos”) para gerar suficientes perguntas-respostas-novas interrogações, se é que alguém se atreve a cruzar a fronteira
de que o recebido (a Torá) não admite discussão.
Em apertadíssimo resumo, o “pensamento judeu” é o que se contém
basicamente em: Gênesis/Êxodo/Levítico/Números/Deuteronômio/
Josué e Juízes/Samuel 1 e 2. Sem descartar, obviamente, todos os outros
livros que compõem o chamado “Antigo Testamento” na Bíblia e que
têm significação na história e permanência deste povo genericamente
conhecido como “judeu”.
2.3 A evolução histórica
Queremos aqui, antes de tudo, destacar que no ano 2012 da Era
Comum (ou depois de Cristo, um judeu muito singular, por certo), o
pensamento judeu caminha pelo ano 5772. É fácil pensar o que pode ter
ocorrido em todo esse tempo. A Bíblia é a melhor recomendação para
sabê-lo e, mais perto dos séculos XII a XX, existe uma muito completa
bibliografia – histórica, sociológica, econômica, social, política, migratória, financeira, científica e tecnológica, literária e bélica (e talvez outras
áreas que escapam a essa intenção), – que descreve minuciosamente o
que ocorreu, o que sucedeu ao povo judeu. Independentemente de êxitos
e fracassos, de uma contínua diáspora, de lutas e sacrifícios, de disfarces
para salvar a vida (como lhes foi permitido fazer porque ninguém pode
dispor de algo que nos foi outorgado, como a vida), de conversões obrigadas por mandatos reais, de idas e vindas intermináveis, de ocupar-se
dos mais “vis” ofícios mas ao mesmo tempo dos mais engrandecidos da
economia e/ou do governo dos povos, o que desejamos destacar é que,
162
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Luís Moreno Gomez
em todo esse tempo, o pensamento judeu não se modificou em absoluto
em relação às suas primogênitas normas de conduta, seus costumes e
tradições, abertamente, ou no abrigo de um gueto, na clandestinidade.
Deveríamos falar, então, mais que de evolução histórica, de permanência
através dos séculos.
Como dizia aquele defensor da criação do Estado de Israel perante
a Organização das Nações Unidas em 1948, todos esses povos assinalados na Bíblia, ao lado ou vizinhos dos judeus, não mais existem. O
pensamento judeu persistiu e persiste no tempo, o que não quer dizer
que todos os “eleitos” se comportem sem mácula. Os princípios são
únicos. Apesar de serem únicos os homens, também é certo que são os
únicos que se dão duas vezes o golpe com a mesma pedra, como se diz
daqueles que, mesmo advertidos, continuam desvairando, prejudicandose a si mesmos.
Há, certamente, outro tipo de evolução que já se insinuou antes,
quando anotávamos que, através desses milênios, se passou da organização tribal à sociedade étnica moderna e ao mesmo tempo a Estado integral
e soberano em territórios que lhe foram prometidos por Deus mas que
geraram naquela Terra muitas contendas políticas e bélicas. Esse é um
capítulo que também se aborda mais adiante nestes comentários.
2.4 Religião ou modo de ser
O ser de uma maneira, com exceção de Deus (“Eu sou quem sou”,
“Eu sou a Palavra”), vem determinado por lugar de nascimento, crescimento, costumes, tradições, compromissos sociais, normas civis e sociais,
educação, assim como por cargas genéticas inerentes à essência biológica.
A religião é também determinante, especialmente quando ela estabelece
em quê crer mais além da existência terrena, como comportar-se para
consigo mesmo e em relação aos outros, individual e coletivamente, que
mandamentos seguir, a quem obedecer (leia-se, ao BEM ou ao MAL).
Creio que todas as religiões monoteístas fazem ênfase na existência de
um só Deus, como a mesma palavra o indica; e num conjunto de regras
para aceitar o inexplicável sem questionamentos (apesar de que em
muitas mentes eruditas ou primitivas as perguntas sejam inevitáveis,
uma exigência da razão), a seguir os ensinamentos ministrados pelos
mestres (para o caso de que tratamos, rabinos, sacerdotes, imanes),
desde a entrega total a um comando superior, acima de nossas próprias
Encontros Teológicos nº 66
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163
Sobre o Judaísmo: Cátedra do Pensamento Judeu
forças, como até a prática da limpeza como fator purificante na escolha
e ingestão de alimentos.
Por isso, resulta curioso que alguns opinem (dentro do curso destas
aulas que estamos seguindo em Monteàvila), que o pensamento judeu é
mais “uma forma de ser” que uma “religião”. Fica claro, ao menos para
mim, que não há diferenças entre um ou outro termo. “Na atualidade, o
povo se denomina judeu, sua religião judaísmo, sua língua o hebraico, e
sua terra Israel1 Quando falamos – ou escrevemos – às vezes a utilização
de vocábulos na rapidez de uma ou oura ação nos faz cair em erros ou gerar
interpretações que não vêm ao caso. Para fechar esta questão, digamos
que o judaísmo é uma religião e que o judeu (que professa ou segue essa
religião) tem um modo de ser descrito e estabelecido pelo judaísmo.
2.5 Fidelidade a quem?
Quisera dar uma opinião acerca da discussão do que fazer em
caso de guerra, quando, sendo de uma religião, se apresenta a situação
de estar com a nacionalidade ou com a religião que me obriga ao reconhecimento de um Estado distinto. O tema foi objeto de revisão a partir
de um exemplo dado de judeus na assembleia irânica e um possível
conflito bélico com o Estado de Israel. A situação contemporânea e a
partir do século XVIII, introduziu esse novo elemento na complexidade
dos que, professando uma religião, nascem em um país onde se professa
em maioria outra religião distinta, porém exercvem cargos públicos na
igualdade de direitos com os que, mesmo sendo de outra religião, são
constitucionalmente nacionais. Conflito comum a turcos muçulmanos
nascidos na Alemanha, a católicos romanos nascidos nos Estados unidos,
a judeus nascidos na Inglaterra. Conflito pessoal, diríamos, se na mente
de cada um deles não se tomou a decisão de ser nacionais e renunciar a
crenças, ou como no passado, ser nacionais conservando na intimidade
a religião que se professe (caso típico dos “marranos” na Espanha dos
Reis católicos Fernando e Isabel). Deu-se o caso em diferentes ocasiões
bélicas, quando judeus foram soldados franceses, ingleses e norteamericanos, obedecendo a seu mandato constitucional de nascença, sem
deixar de ler a Torá como apoio religioso. No caso da Venezuela, judeus
tomaram parte como investidores e militares na Guerra de Independência
contra a Espanha, sendo ou não nacionais do país.
1
164
Veja-se O ser judeu, de Rabi Hayim Halevy Donin, NY 1972.
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Luís Moreno Gomez
Parece-me mais um assunto individual que político. Se nasceste e
cresceste num lugar determinado, se tua educação e aprendizado é dali,
muito provavelmente teus sentimentos te atam ao destino certo ou incerto
desse território. Problema há, por exemplo, em pleno século XXI, quando
o estabelecimento de indivíduos de outras religiões, sua imigração, tem
acontecido puramente por necessidade e não por convicção. São notáveis
os casos de muçulmanos na Europa e na Austrália e no Canadá, onde pesa
mais a religião e sua exigência e não há integração societária, tudo o que
levou os governos (Austrália, Canadá, Suíça) a recordar o que demanda
a seus cidadãos cada Constituição ou retirar-se por estar em desacordo.
Na França o uso do véu, na Espanha a utilização de crucificados nas
paredes das escolas, nos Estados Unidos a separação do conceito divino dos estabelecimentos de ensino, a que alguns atribuem as matanças
indiscriminadas por falta de consistência moral.
Creio que o judeu está em vantagem frente a outras nacionalidades na hora de conflitos porque sua exposição a tantas experiências ao
longo de sua existência os torna flexíveis para permanecer fiéis à sua
origem à margem de que devam participar a favor de uma nacionalidade,
ou permanecer também fieis frente às forças destruidoras irresistíveis
romanas (Massada), espanholas e outras nações europeias (Inquisição),
nazistas (Holocausto) e russas (Pogroms). Como ficou claro, para “salvar
a própria vida”, que é um dom recebido sobre o qual não temos direito,
até a mentira adquire valor.
3 Que queria Deus? O povo judeu
Vamos tratar de um tema bastante complexo, que guarda relação
com a intenção divina, com uma abordagem a mais apegada à razão
possível. Embora já saibamos que os primeiros livros da Torá são de
aceitação sem questionamentos, de todos os modos aos estudiosos chama
a atenção o por que haja um Princípio determinante da criação de um
ser à sua imagem e semelhança que parecera referir-se exclusivamente
a Abraão (Isaac e Jacó) e à sua semente, deixando de lado outros seres
existentes na Terra criada e por conhecer-se, mesmo se se estabelece
(Gênesis 11) que “toda a terra tinha então uma só língua e as mesmas
palavras”. Sabemos que esses porquês não têm resposta. Assim foi,
assim ocorreu e deste modo ensina o judaísmo (religião), a todos os que
nascem em seu seio.
Encontros Teológicos nº 66
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Sobre o Judaísmo: Cátedra do Pensamento Judeu
“Este povo, Israel, iniciou sua existência como uma família, cujas origens
remontam a Abraão o Hebreu... a fé monoteísta e o ‘pacto com Deus’,
estabelecido por Ele e reafirmado por seus descendentes, identificou esta
família como a de aderentes a uma fé singular. A família não se arrogou
direitos de exclusividade sobre esta fé, mas, ao contrário, esforçou-se
por atrair novos aderentes a ela.”2
Por que o homem desobedece? (“Mas, da árvore da ciência do
bem e do mal não comerás”, Gn 2,18). Por que uma serpente possui tal
capacidade persuasiva, ou é a ingenuidade de Eva e de Adão? – Por que
Deus olha com agrado para a oferenda de Abel e não para a de Caim,
ambos, filhos de Adão e Eva, e por que Caim mata Abel? Que significa
que JHWH condene Caim, depois de amaldiçoá-lo, a ser “errante e estrangeiro na terra” (Gn 4,12)?
Como Deus pôde equivocar-se com a criação do ser humano?
(“E viu JHWH que a maldade do homem era grande na terra, e que
todo desígnio dos pensamentos do seu coração era de contínuo somente
para o mal” (Gn 6,5) “E JHWH arrependeu-se de ter feito o homem
na terra, e sentiu dor no seu coração” (Gn 6,6). Como ocorre que Noé
“encontrou graça antes os olhos de JHWH” e como consegue evitar a
total destruição do homem, para recomeçar o “crescei e multiplicai-vos
e enchei a terra”? (Gn 6,8 e 9,1).
Isto é apenas uma amostra para destacar que resulta fácil pôr em
dúvida (por ter comido originalmente da árvore da ciência do bem e do
mal, talvez) toda a história bíblica como narrada, tanto acerca do chamado “Antigo Testamento” como do “Novo”, resenhado pelos seguidores
de outro judeu excepcional como foi Jesus de Nazaré, crucificado pelos
romanos em conivência com as autoridades e com a aclamação do povo
de sua estirpe ao querer introduzir modificações no tema divino para
terminar com a “maldade do homem”, um segundo intento também
frustrado e frustrante.
Não posso saber quantos dos treze milhões de judeus que se diz
existirem no mundo estão apegados a essas lições da história. Presumo
que em princípio todos aceitarão o que por lei é “palavra de Deus”. Esta
asseveração é válida também para os seguidores de Jesus Cristo, chamados cristãos, os quais têm em Jesus a revelação da Palavra divina e única
maneira de salvação da alma para a vida eterna, como para os que também
2
166
Halevy Donin, op. cit., p. 8.
Encontros Teológicos nº 66
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têm em sua raiz “o livro” (em uma clara referência à Bíblia), como são
os muçulmanos, embora o seu “Corão” estabeleça outros termos para a
vida no planeta, diferentes dos da Torá ou dos Evangelhos.
Novamente citamos em conclusão o rabino Halevy Donin: “Este
sentimento de pertença que se manifesta no povo judeu é mais uma experiência ‘mística’ que um fenômeno racional”3. Os judeus, acrescenta, não
são uma raça (conceito biológico), não são uma religião ou nação (apesar
das definições aceitas e coincidentes), senão um povo, simplesmente o
povo judeu. Em palavras de JHWH a Moisés: “E vós sereis para mim
um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19,6).
4 A defesa da propriedade
Como se trata de um “pequeno ensaio” a ser avaliado, sobretudo
para verificar se se entendeu ou não a matéria do curso, tratarei nesta
parte quase final, resumidamente, o tema da defesa da propriedade, como
gostaria de definir o esforço mantido por séculos pelo povo judeu para
recuperar o que lhe foi geograficamente, territorialmente, concedido por
Deus para seu assentamento. A fundação política do Estado de Israel,
ocorrida na Organização das Nações Unidas em 1948, terminou teoricamente com a reivindicação de “o que me pertence”, pelo fato de que
ainda há conflitos por resolver politicamente embora na prática comum
parece que também por séculos se tenha vivido uma situação definida
pela convivência pacífica das três religiões monoteístas no território
chamado Palestina, indistintamente seguidas por judeus, árabes, cristãos
de muitas partes do globo, residentes ou transeuntes.
Como o percebo, então, trata-se de um esforço paralelo ao realizado pela liberdade plena, embora sujeita às normas divinas (Torá e toda
a interpretação e regulamentação consequentes), a que foi levada a cabo
pelo povo judeu desde que saiu de sua terra, obrigado pela carência de
alimentos suficientes (o quase meio século de permanência no Egito) ou
pelas guerras e ocupações de diversos povos, entre eles antigamente os
romanos e, posteriormente, em tempos mais próximos, Inglaterra, esse
esforço, repito, de “defesa da propriedade”.
A diáspora do povo judeu foi uma consequência da obrigação que
teve de emigrar de seu hábitat original por causa dos ataques dos povos
3
Op. cit., p. 9.
Encontros Teológicos nº 66
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Sobre o Judaísmo: Cátedra do Pensamento Judeu
vizinhos, cominada por um imperativo econômico-comercial, como é
o caso da compra e venda de matérias primas e elaboradas ao longo
de toda a concha do Mediterrâneo, o comércio de especiarias, de bens
elaborados e utilitários, de valiosos minerais, conjuntamente com outros
povos ou independentemente. O território ibérico (a Espanha judia),
que chamaram de Sefarad, também foi parte do mandamento bíblico,
feito realidade, do crescimento, multiplicação e povoamento do mundo.
Seu reclamo pela “Terra Prometida”, a meu modo de ver, tem sido, e
continua sendo, a maior “defesa de propriedade” que se tenha exercido
tão consistentemente.
5 Observações conclusivas
Como estabelecemos no princípio desta modesta contribuição,
resulta abundante, complexo, exigente de muito estudo e análise, o pensamento judeu e tudo o que rodeia o povo que vive sob seus postulados4.
Dos quase seis mil anos de existência que tem esse povo, obviamente
não pode ser de outra maneira. Há constantes através desses séculos – o
que constitui certamente a essência que os mantém coesos e que está
bem descrita nos livros sagrados. Há variáveis, que as múltiplas experiências desse povo através dos tempos em diversas regiões do planeta.
Uma constante negativa, de parte dos que foram seus adversários, tem
sido a violação dos direitos humanos de sua própria existência, com a
pretensão de seu extermínio parcial ou a “solução final” levada a cabo
pelo nazismo e que, no prazo de um quinquênio – cinco anos mais ou
menos – produziu a SHOÁ, o aniquilamento de milhões de judeus de
nacionalidade alemã, polaca, austríaca, tchecoeslovaca, húngara, russa,
francesa, italiana, holandesa, belga, e de muitas outras nacionalidades
europeias, “gueteadas”, concentradas, exterminadas finalmente pela demência coletivizada em sua mais acentuada expressão, um “cataclismo:
inesperado e destrutivo”.
Citemos, para encerrar, as palavras de Isaac Cohen Anidjar, em sua
apresentação sobre um “Anteprojeto para uma Cátedra de Pensamento
Judeu” na Universidade Monteàvila de Caracas, Venezuela: “De minha
parte, limito-me a informar-lhes que a leitura do TALMUD, de maneira
4
168
Ver, nesta Revista (“Encontros Teológicos” n. 20, 1996/1, pp. 37-45), o artigo de PEREIRA, N.B., “A espiritualidade judaica”. Também, neste número, a recensão da obra
de KÜNG, H., El Judaísmo. Pasado, Presente y Futuro. Madrid, Ed. Trotta, 2006, 5a
ed., por ACQUAROLI, A.R.C.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Luís Moreno Gomez
sistemática e ordenada, estudando e discutindo com profundidade um
trecho diário requer ao menos sete anos; e que estudar a TORÁ é para o
judeu uma obrigação para todos os dias de sua vida; e que as dúvidas e
controvérsias existenciais que propõem, por exemplo, o livro de JÓ e o
ECLESIASTES, duvido muito que possam ser resolvidas, nem sequer
parcialmente, no breve lapso que toca ao ser humano transitar por este
mundo”.
Caracas, junho de 2012.
E-mail do Autor:
[email protected]
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
169
A primavera da Igreja
Enzo Bianchi*
O Papa Francisco nos deu sem muitos atrasos a exortação póssinodal segundo os votos dos Padres do Sínodo sobre a nova evangelização
(outubro de 2012), do qual eu participei como especialista chamado por
Bento XVI. A evangelização é apresentada nela na ótica da alegria cristã,
porque o Evangelho é sempre um alegre anúncio. No texto, há, sim, ecos das
proposições do Sínodo, mas os conteúdos respondem acima de tudo à visão
do Papa Francisco, à sua leitura da atual situação da Igreja no mundo.
Acima de tudo, é reafirmado mais uma vez o primado do perdão
de Deus, que não se deve merecer, mas apenas acolher como um dom,
para que nós, homens e mulheres – operadores do mal, mesmo que não
o queiramos –, possamos levantar a cabeça e recomeçar com esperança
o seguimento do Senhor. Se o cristianismo realmente é um “ir de começo
em começo, por começos que não têm fim” (Gregório de Nissa), então
a vida cristã é alegre, sabe esperar também no desespero. Aqui o Papa
Francisco se faz “servidor da alegria dos fiéis” (Paulo VI) e consegue
restaurar força à fé como convicção, a dar novamente impulso ao movimento do Evangelho no mundo.
Mas o bispo de Roma também coloca limites à sua exortação:
ela é dirigida a toda a Igreja, mas não pretende ser exaustiva. Por isso,
ele renuncia a tratar de modo específico muitos temas que precisam de
aprofundamento por parte das Igrejas individuais. Não por acaso, nas
notas, aparecem – dado incomum para um documento papal – textos de
algumas conferências episcopais. A voz do papa não esgota as dos bispos,
nem as encobre: isso já é um princípio da descentralização.
*
O autor é prior e fundador da Comunidade de Bosè. O artigo foi publicado no jornal La
Repubblica, 04-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto, no Instituto Humanitas,
da Unisinos, IHU, São Leopoldo, RS.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013, p. 171-174.
A primavera da Igreja
O papa, depois, passa a delinear a reforma da Igreja e a indicar a
modalidade, o estilo do seu testemunho no mundo. Entre os muitos temas,
os pontos mais decisivos são a conversão do papado, a hierarquia das
verdades, o senso dos limites eclesiais e a mundanidade. Certamente, um
grande espaço é dado ao tema da pobreza da Igreja e da sua ação pelos
pobres do mundo, os primeiros clientes de direito da palavra de Deus.
A “conversão do papado” (sic) está no espaço da conversão pedida
a toda a Igreja. Se o papa convida todos – bispos, padres e fiéis – a se
converterem, repudiando toda forma de idolatria para voltar ao Evangelho, o apelo também diz respeito ao papado como forma de exercício
do ministério petrino.
João Paulo II, na encíclica sobre a unidade dos cristãos (Ut
unum sint, 1995), tivera a audácia de pôr em discussão a forma do
exercício do ministério petrino, convidando ortodoxos e protestantes a
fazer sugestões para uma maior fidelidade ao Evangelho e à intenção
do Senhor no exercício do bispo de Roma. O então cardeal Joseph
Ratzinger, a esse respeito, também tinha dito que as Igrejas ortodoxas
não deveriam ter aceitado uma forma de ministério petrino diferente da
exercida no primeiro milênio. Mas, então, um forte silêncio caiu sobre
esse convite de João Paulo II. O Papa Francisco sabe que o caminho
da reconciliação entre as Igrejas não pode ignorar que a forma atual do
exercício do papado constitui um obstáculo decisivo para ortodoxos e
protestantes... É preciso a audácia de ouvir todos juntos o Evangelho e
a grande Tradição, é preciso não ter medo.
Mas é significativo que o papa retome outro tema conciliar, o da
hierarquia das verdades. Ele convida, tanto para as verdades de fé,
quanto para os ensinamentos da Igreja e da moral, a não se achatar tudo,
mas a reconhecer o que é primário, fundamental, e que, ao invés, é derivado; o que é essencial e o que deixa possível a liberdade de adesão ou
não. Não basta a obsessão da ortodoxia para estar de acordo com o pensamento de Jesus Cristo. As expressões da fé devem ser plurais, porque
“multicolorida é a sabedoria de Deus” (Ef 3, 10), adverte o Apóstolo.
E, por fim, o papa – agora já entendemos – gosta de mencionar os
hipócritas, ou seja, aqueles cristãos que amam a mundanidade travestida
de atitudes espirituais. Aparentemente são muito religiosos, mas não se
preocupam com os pobres cristãos confiados a eles. Eles pensam que
são solidários com a humanidade através da sua “presença” em jantares
e em recepções, ou imergindo em um funcionalismo empresarial, cujo
172
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Enzo Bianchi
beneficiário não é a Igreja dos fiéis, mas sim a instituição eclesiástica.
Palavras duras como as de Jesus aos homens religiosos do seu tempo!
Para o Papa Francisco, a mundanidade é o ordenamento injusto
deste mundo, as suas estruturas de escravidão, violência e mentira, os
poderes invisíveis e ocultos que Paulo chama de árchontes, “poderosos
deste mundo” (1Cor 2, 6.8). Por isso, ele lembra que a potestade de quem
é ministro na Igreja também deve se inscrever apenas ao espaço da função,
não da dignidade e da santidade, porque a dignidade vem do batismo e
pertence a todos os cristãos, assim como o chamado à santidade.
Destaquei apenas alguns pontos da exortação que parecem inéditos
e autônomos com relação às vozes do Sínodo de 2012: são o pensamento
e o projeto de Francisco, atualmente bispo de Roma. É claro que esse
início de pontificado, as palavras e os gestos desse papa e, por fim, essa
exortação alegram muitos católicos e não só. Há grande alegria e expectativa, há um clima de primavera às vezes exaltante e maravilhado.
Nunca pequei por papolatria, mas não posso deixar de reconhecer que
eu também participo dessa alegria eclesial. No entanto, sem querer ser
o “profeta da desgraça” (e eu me guardo bem disso, lembrado da advertência de João XXIII na abertura do Concílio), gostaria de lembrar
apenas aquilo que um olhar cristão sabe prever.
Se realmente com o Papa Francisco nos encaminhamos a uma
reforma evangélica da Igreja, não devemos cair em um otimismo fácil
ou em uma atmosfera de canto de “vitória”. Porque quanto mais a Igreja
se torna conforme ao seu Senhor, mais ela conhece fadigas, sofrimentos e até mesmo dilacerações: há uma necessitas passionis da Igreja
que se deve àquela que foi a necessitas passionis do seu Senhor Jesus
Cristo. O que aconteceu com Jesus acontecerá para a Igreja e para cada
comunidade cristã, se for conforme ao seu Senhor, porque as potências
mundanas postos contra o muro pela “lógica da cruz” (1Cor 1, 18) se
desencadearão, e isso vai causar um “choque” com o mundo, aquela
realidade que Francisco chama de mundanidade. A conversão de cada
um, e mais ainda a da Igreja, comporta tudo isso.
A Igreja sempre é tentada a se render ao mundo, não mostrando mais a diferença cristã, esvaziando a cruz, diluindo o Evangelho,
curvando-se às exigências mundanas; ou é tentada a enfrentar o mundo
com intransigência e a se munir com as mesmas armas da mundanidade:
presença gritada, vontade de contar e de ser contado, atitude de grupo de
pressão. Em particular, será sempre difícil realizar “uma Igreja pobre, de
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
173
A primavera da Igreja
pobres e para os pobres”, uma Igreja que não conte com os poderosos
deste mundo.
Portanto, o entusiasmo com o Papa Francisco é grande e não
deve ser apagado, mas devemos permanecer vigilantes e, acima de tudo,
estar conscientes de que, se o papa não for ajudado pelos bispos, pelos
presbíteros e pelo povo, ele não conseguirá fazer nenhuma reforma. As
reformas precisam da conversão e do apoio do povo de Deus, não podem
ser tarefa de um só. O Papa Francisco vai ter contra ele principalmente
o vento das potências adversas, porque terá que entrelaçar fatigantemente
as reformas eclesiais com o princípio sinodal.
E, como todo profeta, ele será mais ouvido – como aconteceu com
o Batista e com Jesus – por aqueles que se reconhecem como pecadores,
“publicanos e prostitutas” (cf. Mt 21, 2; Lc 7, 34; 15, 1), “samaritanos e
estrangeiros” (cf. Lc 17, 38; Jo 4, 39-40), e não por aqueles da sua própria
casa. Dizia-me Hans Urs von Balthasar: “A Igreja conheceu poucas
primaveras, sempre interrompidas por geadas repentinas”. Façamos de
tudo para que esta primavera desabroche e dê os seus frutos.
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Encontros Teológicos nº 66
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Recensões
KÜNG, Hans. El Judaismo: Pasado, presente y futuro. Tradução
Vítor A. M. Lapera e Gilberto C. Marcos. 5 ed. Madrid: Trotta,
2006. p. 718.
Armando Rafael Castro Acquaroli*
Novamente o renomado teólogo Hans Küng brinda-nos com uma
obra monumental. Nascido na Suíça (1928), estudou também na França
e Itália, participou do Concílio vaticano II como perito e, por fim, teve
sua licença para ensinar retirada (1979). Isso não o impediu de continuar
se dedicando ao estudo sério da teologia e de seus temas afins, sobretudo
no que tange ao diálogo com as outras religiões. E justamente a partir
disso surge Das Judentum em 1991, logo traduzida para o espanhol
(1993). Infelizmente, a versão em língua portuguesa não saiu. Fica aí
uma provocação para que alguém se debruce sobre isso.
O repto a que o autor se propõe é bastante ousado, pois não é fácil
um cristão falar de judaísmo. Muito menos fazer uma abordagem com
uma envergadura que abrange passado, presente e futuro. Por outro lado,
talvez nisso resida sua originalidade, dado que o olhar vem “de fora”,
mesmo considerando os muitos judeus que o auxiliaram na elaboração
do texto (cf. Prólogo).
Com uma linguagem densa, mas acessível, a redação é envolvente, de sorte que a leitura é agradável. Metodologicamente, optou-se por
apresentar as ideias a que cada título se propõe junto com um quadro no
qual comparam-se elementos das três religiões monoteístas (judaísmo,
cristianismo e islamismo). Isso é bastante didático. Suas afirmações são
sempre muito bem fundamentadas, conforme se pode consultar nas notas
(p. 597-686) e nas referências (p. 695-712). Por isso, o texto tem uma
autoridade e relevância significativa.
Dividido em três grandes partes, o livro intenta fazer um diagnóstico histórico sistemático do judaísmo, cujas tradições milenares
*
O recensor é bacharelando do 4º ano do ITESC.
Encontros Teológicos nº 66
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Recensões
resistem até o presente e, por fim, fazer alguns planejamentos para o
futuro, tendo em vista um olhar ecumêmico. Isso é deixado bem claro
no Prólogo (p. 9).
Na primeira parte, dividida em três seções, trata do “passado ainda
presente” (p. 19-211). Na seção sobre a Origem, foca Abraão, o pai de
três grandes religiões mundiais, abordando alguns aspectos históricos da
humanidade, mas apenas à guisa de introdução, sem aprofundamentos.
Destaca sua fé (em hebraico ’aman, isto é, estar firme), em nome da qual
muitos conflitos se desencadearam envolvendo cristãos, judeus e muçulmanos. Em seguida, traz à tona alguns elementos mais ricos, do ponto
de vista exegético. Isso porque assinala o horizonte mítico-teológico no
qual os textos acerca do Pai da fé se inserem. É mister, segundo o autor,
considerar que existe um “evolução da fé em Deus” (p. 42). Assim,
pode-se compreender melhor que, essencialmente, na concepção israelita
estão o “Deus uno, seu povo e a terra” (p. 49).
Isso abre espaço para a segunda seção: O centro. Com tal vocábulo,
ele não quer dizer que é uma simples “ideia fundamental”, com ideias
centrais e outras periféricas, mas quer falar dos “elementos estruturais
centrais” (p. 51). O ciclo do Êxodo é paradigmático. A partir dali surgem
os conceitos de revelação (Eu Sou o que Sou), eleição (tu serás meu
povo e eu serei o vosso Deus), Aliança no Sinai e entrega da Torah, e
cumprimento da promessa da terra feita a Abraão. Após esse olhar mais
canônico, entra num aspecto crítico. Dessa feita, pergunta-se quem foi
realmente Moisés, à luz da arqueologia e dos recentes estudos? Após
apresentar algumas delongadas opiniões, finaliza afirmando que existe
uma unidade, continuidade e identidade que marcam esse povo. Mas seu
principal contributo à humanidade foi a fé “no Deus único” (p. 66).
Em seguida, o foco passa para a História. Partindo do paradigma
das tribos, explana sobre a monarquia e suas implicâncias, sobretudo
na época Davídica e Salomônica. Vale dizer que Davi é considerado de
forma diferente: para os judeus ele é o “Pai do Messias”, observante e
mestre da Lei, modelo de vida de acordo com a tradição e símbolo do
estado de Israel. Para os cristãos, cujo Messias é filho de Davi, é exemplo
de religiosidade e modelo dos imperadores cristãos. E aos muçulmanos,
ele é o tipo do profeta Maomé, modelo de profeta, de chefe de estado
e dos califas.
Posteriormente, o autor fala dos profetas iniciais (carismáticos,
verdadeiros) que logo se tornaram decadentes ao entrar para a corte.
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Recensões
Num outro tópico, acentua-se a Golá (exílio) tão cara aos hebreus e, ao
mesmo tempo tão fundamental para a consolidação da fé Javista e da
comunidade teocrática. Já na época helenista, vieram os sábios, como
resposta ao grande desafio que foi duelar contra a ofensiva cultura grega.
A tradução da Bíblia para o grego (LXX) foi notadamente marcante para
uma aproximação menos conflituosa. Mas logo vieram os selêucidas e
a guerra dos Macabeus. Com a destruição do Templo (70 d.C.) o que
resta do judaísmo é somente a Torah e seus intérpretes (fariseus). Aqui
temos uma nova época em que tradição oral (Mishnah e Talmud) e escrita
(Torah) se intercomunicam. Curiosamente, os cristãos seguem o mesmo
esquema com a Traditio e o Ius Canonicum; e os muçulmanos com a
Sunna e a Sharia.
Seguem-se tristes estatísticas que mostram a segregação judaica
efetuada pelos cristãos. Sob a égide de sua culpa pela morte de Jesus,
os judeus foram subjugados à periferia e a péssimas condições de vida.
Encerrando essa seção, apresenta o paradigma de assimilação da modernidade, com destaque para o movimento cabalístico. Lutero, querendo
voltar às origens cristãs, “converte-se em decidido advogado dos judeus”
(p. 179). Isso torna a ofensiva católica trentina ainda mais acirrada. Porém, alguns expoentes judeus destacam-se como Spinoza, para o qual
Küng dedica algumas páginas, junto com Moses Mendelssohn e José
II (monarca austríaco defensor dos direitos judeus). Em meio a tantos
conflitos urgiu a necessidade de reforma no seio judaico. Nesse coexistiam paradigmas rivais, dentre os quais se destacam: os ortodoxos, os
seculares, os reformadores e os conservadores. Tais correntes perduram
até hoje e, portanto, são desafios ao presente.
Justamente sobre o presente se trata na segunda parte (p. 215417), também tripartida. Enceta do holocausto ao estado de Israel. Não
se pode negar que os alemães tinham consciência da perseguição feita
aos judeus, motivada por um racismo desmedido. No entanto, também
não se pode condenar uma nação inteira por conta dos crimes de Hitler
e seus sequazes, muitas vezes obcecados pela obediência cega. Após
uma acurada apresentação histórica da perseguição, o autor elabora um
curioso quadro comparativo. Nesse, fica patente, para meu espanto e
escândalo! o quanto as medidas nazistas se aproximam das normas do
Ius Canonicum (p. 228-230) no que tange aos judeus.
Diante disso, é sobremodo assustadora a atitude cristã perante a
questão judaica. Os “protestantes não protestaram” (p. 238), os catóEncontros Teológicos nº 66
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licos se calaram, sob os auspícios do papa Pio XII, grande diplomata:
“a Igreja foi vítima de uma diplomacia que se havia convertido quase
em vítima de si mesma” (p. 249). Porém, João XXIII, segundo o autor,
foi um homem mais coerente que defendeu os direitos judeus e, assim,
não deixou que o papado se tornasse “totalmente deplorado” (p. 252).
Os bispos alemães e poloneses também tiveram sua grande parcela
de omissão, mesmo que tenham se redimido em 1965 pedindo perdão
“ainda que não desinteressadamente” (p. 258) por isso. Até que após a
guerra, como um desencargo da consciência, as potências se uniram e
formaram o Estado de Israel.
A volta a Israel veio sob a forma do sionismo, expressão cunhada
recentemente para significar a institucionalização do partido sionista. Mas
a criação do estado israelense abriu um precedente. Agora os palestinos
reclamam para si um estado. E enquanto isso não ocorre, já efetuaram-se
cinco guerras, sem que houvesse a paz.
Não obstante isso, ainda há o problema com os cristãos. Embora
pareça simples, a tarefa do diálogo não o é. Isso porque, para Küng, ambas
as histórias são marcadas por ofensas e mágoas mútuas. Para iniciar um
diálogo acerca de Jesus um caminho é a exegese, pois tanto a católica
quanto a judaica, tendem a convergir quando se fala de aproximação ao
Jesus histórico.
Daí surge a questão: quem foi Jesus? Pode ter sido um revolucionário político, leigo que, embora pareça belicoso, não “prega a violência”
(p. 309). Ou talvez um asceta monacal que, para alguns, seria o Mestre
da Justiça de Qumran. Tese não defendida por nosso autor. Ou ainda um
fariseu piedoso, visto que seu pensamento se aproxima de algumas escolas farisaicas mais atentas ao espírito da Torah. Diante de várias teorias é
muito difícil chegar a uma opinião certeira e inquestionável, mas parece
que há vários elementos que se coadunam tornando Jesus ímpar.
A tese da fé em Jesus como Messias também não é contraditória
com o que pensam os judeus. Mesmo a ideia de ressurreição já estava
posta como integrante de certos grupos. Muitos elementos são compartilhados por judeus e cristãos, conforme o autor resume muito bem em
cinco pontos: crença no Deus uno, coleção de escritos sagrados, culto
com estruturas semelhantes, talante ético de justiça e amor a Deus e ao
próximo, e fé na consumação dos tempos. Mas a adesão a Jesus como
Senhor só se dá no âmbito da fé, não só das tradições comuns.
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Tais convergências, porém, não impedem que haja um distanciamento da religião primeva, por parte dos seguidores de Jesus. Isso é
fomentado, sobretudo, nas correntes helenistas, cuja crítica ao binômio
Templo-Lei era mais ferrenha. De outra parte, os judeus responderam
com a sua “excomunhão” pedindo que os cristãos “não sejam mais
registrados com os justos no livro da vida” (p. 344).
Küng estabelece uma curiosa crítica mútua entre os judeus e cristãos. Acentua, de um lado, as questões acerca da concepção de Deus como
Pai, o Filho, a encarnação, a Trindade e o sacrifício de Cristo. De outro,
veem à tona os questionamentos que o sermão da montanha levanta ao
judaísmo: disposição de perdoar e a renúncia ao direito e ao poder.
Encerrando essa parte, vem à baila aquilo que o autor chama de
superação da modernidade. Mesmo após a constituição do estado de
Israel a maioria dos judeus vive nos EUA, sendo a parte “mais ativa de
toda a história judaica” (p. 381). Dentre os principais elementos que
contribuem para sua crise e renovação destacam-se: o crescente bem-estar
e influência política, a renovação religiosa nos anos 50 e 60, a guerra dos
seis dias e seu imenso poder de influência adquirido, sobretudo depois
do anos 90. Apesar da crescente tendência do “judeu sem religião” (p.
385), surgem figuras como Heschel, que dá um novo impulso em direção
à fidelidade à Aliança. Ele acentua três coisas: perceber a presença de
Deus no mundo, reconhecê-Lo na Bíblia e sentir Sua presença na ação
santificadora dos mandamentos.
Para a terceira parte (p.421-571) é dedicado o judaísmo na pósmodernidade. Começa com o discutido conceito “pós-modernidade” a
partir do qual desenvolve seu contributo para a religião. Um autor bem
visado é Martin Buber para o qual existe a distinção fundamental entre
o Eu-Ele (âmbito da experiência) e o Eu-Tu (Mundo das relações com
o mundo, o ser humano e com os seres espirituais).
Diante desse mundo em que vivemos, o judaísmo tende a assumir
duas posturas: uma ortodoxia fundamentalista isolada do mundo, ou o
secularismo radical esvaziado do religioso. O caminho talvez seria um judaísmo emancipado, conforme se depreende do quadro bem esquemático
na página 434. Seguem-se discussões acerca da Lei e sua interpretação,
diante da qual o autor questiona-se: a serviço de quem ela funciona? De
Deus ou dos homens? Dentre as 613 leis extraídas da Torah, a maioria
(365) são proibições. Isso, no mínimo, é questionador.
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Refletindo para o futuro do Estado de Israel, parece que o caminho
apontado é o de “retornar a intenção humana que presidiu a fundação
do Estado” (p. 490). Por isso, não se pode negar que, além da dimensão política, ali se imbrica a religiosa, especialmente o diálogo judeumuçulmano. Um dado assustador é que, na guerra de 1948, 850.000
palestinos foram desterrados em prol do Estado de Israel (cf. p. 506).
Para evitar esse tipo de problema, uma saída seria estabelecer um regime
democrático. Por outro lado, isso tende a descaracterizar o estado judeu.
Uma irônica alegoria ilustra bem o que acontece: Golias (judeus) luta
contra o Davi (palestinos) (cf. p. 514).
O caminho da resolução dos conflitos não poderá passar pelos
extremos. Nesse sentido, Jerusalém (conforme a etimologia popular:
cidade da paz) carrega consigo algo contraditório: a guerra. Por motivos religiosos os três monoteísmos arrogam-na para si. O que resta é o
diálogo e a oração. Aliás, “não parecem haver grandes inconvenientes
para que cristãos e judeus se unissem na recitação comum dos Salmos
e de outras orações da Bíblia Hebraica” ( p. 545). O mesmo poderia
ocorrer na recitação de algumas orações corânicas.
Finalmente, Hans Küng aborda a possibilidade da crença em Deus
depois de Auschwitz. É mister superar a ideia de que Deus é insensível
à dor humana. O sofrimento não pode ser entendido teoricamente, mas
somente pode ser suportado na prática. Essa é a conclusão que se chega após muitos anos de experiência (cf. p. 568). Portanto, conforme o
epílogo, só é possível uma nova ordem mundial com uma nova ética.
“Não deveria haver nenhuma sinagoga, Igreja ou mesquita que não
prestasse sua própria contribuição em favor do mútuo entendimento
religioso”. (p. 593).
Certamente, uma obra de tal porte em muito a contribuir no diálogo entre as religiões, sobretudo cristã, judaica e muçulmana. Dentre os
elementos apresentados, os fundamentos e opções teológicas feitas ficam
patentes. A visão do autor tende mais a uma postura aberta em relação à
crenças diferentes. Isso, sem dúvida, é uma riqueza. Sobretudo, porque
na época em que vivemos as grandes teologias estão enfraquecendo e
dando espaço para a simples repetição de Doutrinas Magisteriais. Sem
desconsiderá-las, é preciso reinventar respostas num mundo que apresenta novas perguntas. Nesse sentido, em El judaísmo aparecem novas
propostas.
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Tendo em vista a magnitude do texto, ressalto duas coisas que
poderiam ser revisadas. A primeira diz respeito ao Rei Davi, sobre o
qual se falou na Primeira parte. A visão de Küng é bastante positiva,
desconsiderando elementos mais atuais das pesquisas arqueológicas
que o tornam menos “celestial”. Para maior aprofundamento pode-se
consultar LIVERANI, 2008 et al. E um segundo elemento é que, muitas
vezes, o autor traduz a expressão Torah por Lei. Isso não tem sentido nas
línguas vernáculas, somente quando se passa do hebraico para o grego
é que tais expressões são relativamente equivalentes. Assim, o melhor
seria manter a expressão original, talvez acrescida de nota explicativa
acerca de seu vasto conteúdo semântico.
E-mail do Recensor:
[email protected]
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KÜNG, H. El islam: história, presente, futuro. 2. ed. Trad. de José
Manuel Lozano Gotor e Juan Antonio Conde Gómez. Madrid,
Editorial Trotta, 2007. 847 p. (Colección estructuras y processos.
Serie religión)
Paulo Stippe Schmitt*
Hans Küng, já conhecido pela variedade de seus escritos, encerra
sua trilogia acerca das grandes religiões monoteístas do mundo, com a
grande obra – tanto em qualidade redacional e histórica como em número
de laudas – sobre o Islamismo, a religião mais recente entre as que professam um só Deus, ao lado do Judaísmo e do Cristianismo, já abordados
em obras anteriores, igualmente de grande valor. A obra de 2004, com
tradução ao castelhano de 2006 (por José Manuel Lozano Gotor e Juan
Antonio Conde Gómez), surpreende pelo modo de escrita leve, para uma
leitura sem distração e que impulsiona o leitor a continuar com afinco.
Além disso, em termos de estruturação, facilita a existência de subtítulos
e grifos do autor ao longo do texto, ressaltando a importância de pontos
doutrinais essenciais, lugares e personagens.
A proposta de Küng, o intento da trilogia que El Islam: história,
presente, futuro encerra, é proporcionar, sobre bases reflexivas históricas
e teológicas, o diálogo aberto entre as religiões. Essa tentativa não pode
ocultar a grandiosidade e a diversidade de cada forma de organização,
mas também não pode prescindir das falhas históricas, advindas, principalmente, da maneira como as instituições foram se organizando ao longo
da história, tecendo relações de poder e influência, ganhando território
etc. O autor, a meu ver, consegue realizar esse propósito com maestria,
pondo lado a lado dados objetivos, positivos e negativos, e fornecendonos sua interpretação acerca dos mesmos, bem como propostas para o
futuro das religiões, a partir do lema que norteou sua pesquisa nesta área:
“Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá
*
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O recensor é aluno do 1º ano do curso de Teologia da FACASC, Faculdade Católica
de Santa Catarina, Florianópolis, SC.
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paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo
entre as religiões se não se investigam os fundamentos das religiões”1.
Não se pode deixar passar despercebida a intenção do autor em
promover o diálogo ecumênico. Todo o eixo que mobiliza a reflexão da
trilogia é pautado pelo ecumenismo, que, nos tempos atuais, em termos
de religião, faz-se necessário para a construção da paz não somente entre
os membros das mesmas religiões, mas entre as nações como um todo,
sempre marcadas pelo sentido do religioso, mesmo que não o defendam
de maneira explícita. O esforço em prol do ecumenismo, atualíssimo,
faz-se mais que necessário nestes tempos do “retorno de Deus”, da explosão de movimentos de espiritualidade e do cultivo de espiritualidades
personalizadas. As religiões precisam encontrar seu espaço adequado para
o anúncio da mensagem de paz, mas só poderão fazê-lo elas mesmas se
perseguirem a paz entre si.
É incrível como a Introdução do livro consegue dar a tônica da
obra inteira e, principalmente, dar ao leitor a curiosidade necessária para
iniciar a leitura de um volume tão denso e extenso. O autor constrói a
portada de seu escrito mostrando a premência do diálogo inter-religioso,
que deve ser fomentado também pela via intelectual, com seriedade,
pensando a situação histórica atual do mundo – no qual as religiões têm
papel fundamental – com vistas a haurir dessa leitura luzes para uma
postura crítica e voltada para as consequências das ações dos homens e
mulheres religiosos no planeta (p. 13). “É precisamente e verdade da
própria religião que requer uma veracidade sem reservas, que, sem embargo, deve ir acompanhada de justiça e correção” (p. 36, grifo do autor).
A religião se revela, pois, instrumental possível e eficaz para proporcionar
vida abundante e felicidade, e, de modo contundente, a paz universal.
A função última dessa relação, nas palavras do próprio autor, não é a de
apropriação de uma pela outra, mas também não utiliza a “estratégia de
mosca morta” (Leisetreterstrategie) para dizer-se incapaz de confrontar
os dados históricos (p. 559).
O texto é dividido em cinco partes, ao estilo das obras precedentes
da mesma trilogia. Num primeiro momento, Hans Küng trata da origem
do Islam, a partir de dois enfoques interessantes: a visão ocidental-cristã
sobre o Islam, ao longo da história; e as bases históricas reais do surgimento da religião na Arábia, em estreita ligação com o Judaísmo e o
1
P. 9. (tradução nossa).
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Cristianismo – o modo como foram inicialmente bem aceitos pelo profeta
e, por outro lado, seu intento de purificação do monoteísmo –, ressaltando a figura de Maomé, o profeta, receptor direto da revelação divina.
Esse capítulo inicial nos dá a possibilidade de aprender termos-chave
para a compreensão de tudo o que segue, ressaltando-se a importância
do profeta Maomé, a formação do Corão – a passagem da tradição oral
à escrita – e o significado de ‘Islam’. Também fornece a necessária distinção entre uma visão deturpada do Islamismo e a busca de parâmetros
mais verazes para a pesquisa dessa religião – a imagem ideal, a imagem
hostil e a imagem real (cf. p. 713).
Desde o lugar donde escreve, Küng assegura: “Sem embargo, lutar
decididamente como teólogo cristão contra a imagem distorcida do islam
não quer dizer, muito menos, que alguém tenha que render tributo a uma
imagem ideal do islam” (p. 33). Ainda, lança um desafio, logo ao findar
da primeira parte do primeiro capítulo: “O islam aspira a ser uma visão
global da vida, uma atitude vital que tudo embebe, um caminho vital que
tudo determina. Deverá examinar até que ponto isso pode ser realizado
no novo contexto histórico mundial” (p. 43). Para dita análise, o autor
não deixará de tomar a colaboração de diversos escritores renomados na
área, relacionando o Islamismo a uma gama de conhecimentos: política,
economia, direito, história, sociologia etc. Ao mesmo tempo que fornece
dados interessantes da relação da religião com outros campos do saber,
o escritor dá pistas de leituras para ampliar o conhecimento em áreas
determinadas que, mesmo por já estarem bem trabalhadas por autores de
renome, não têm necessidade de serem abordadas no presente livro.
Por fim, em termos de origem, o autor continua sua clássica
definição das grandes religiões monoteístas como “religiões do livro”
(pp. 66ss) – criticada por Bento XVI, quanto ao Cristianismo, na Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini (2010, n. 7) –, unindo-as
a partir do patriarca comum, Abraão, exemplo de submissão (‘islam’ =
‘submissão’), pelo que os muçulmanos, embora sejam a religião mais
recente, historicamente, pretendem mostrar-se como a religião monoteísta universal mais antiga e verdadeira. “A ele, Abraão, devem muito:
seu ‘nome’ (muçulmanos), sua fé, os ritos instituídos que se celebram
na Meca e, com isso, também seu teocentrismo e seu universalismo”
(p. 73). Para Küng, o patriarca constitui-se num alicerce real para o
fundamento do “triálogo” entre Islamismo, Judaísmo e Cristianismo
(cf. ibid./também p. 135).
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A apresentação do teocentrismo faz a ponte entre a abordagem das
origens e aquilo que forma o centro do Islamismo (cap. B), sua essência,
que Küng encontra, exatamente, na breve confissão de fé islâmica: “Não
há outro Deus senão Alá, e Maomé é seu profeta” (p. 99). Antes, todavia,
o escritor fala da centralidade do Corão, o livro sagrado dos muçulmanos – sagrado desde seu caráter: o formato, a unicidade, a linguagem, a
vivacidade (cf. pp. 83ss). Propriamente aqui se pode dizer do Islam que
é uma “religião do livro”. Interessante é a abordagem, acompanhada
da crítica sutil, que apresenta o processo de formação do Corão e sua
canonização – a tradição oral; a transcrição de azoras separadamente;
a compilação de todas as azoras em forma de livro, sequenciadas por
sua extensão; a fixação do texto e seu caráter normativo, religioso e
político (cf. pp. 88-95). Küng, porém, dá um voto de credibilidade para
a autenticidade do livro sagrado, mesmo sem deixar de considerar seu
percurso histórico e as relações religiosas e políticas que influenciaram
sua confecção: “A autêntica resposta de Maomé à demanda de provas é a
mensagem mesma, o Corão. Este, por seu conteúdo e pela beleza de sua
mensagem, vem a ser um milagre em si mesmo, o sinal por excelência
da revelação de Deus e da credibilidade do Profeta” (p. 123).
Ainda refletindo acerca dos pilares que constituem a base islâmica,
o autor dá ênfase ao pilar da oração, estreitamente ligado à profissão de
fé. Reconhecendo a Deus como Deus e a missão do Profeta, o muçulmano
religioso coloca-se em atitude de islam, de submissão; esse caráter de
adoração ao único Deus, na oração ritual, marca o dia inteiro da pessoa
religiosa; “[...] a oração canônica manifesta com sua perspicácia a essência mais íntima do islam: entrega à vontade de Deus!” (p. 156, grifo
do autor). Küng ainda ressalta a purificação como condição sine qua
non para a oração, e outras características da oração islâmica: seu modo
disciplinado e universal; a ausência de sacerdotes etc. Além da oração,
fala do jejum, da esmola e da peregrinação à Meca, que o muçulmano
deve realizar ritualmente ao menos uma vez na vida, conforme suas
condições pessoais.
Concluídas as duas primeiras partes, que introduziram o leitor
no universo dos conceitos religiosos do Islamismo e abriram sua mente
(ocidental-cristã) para a amplitude do mundo islâmico, buscando extrair
os preconceitos históricos e, ao mesmo tempo, criando em si uma disposição crítica para olhar esse universo religioso, o texto abre espaço
para a abordagem da história da religião. Esse capítulo constitui-se numa
aproximação mais aprofundada de personagens e fatos que delinearam os
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inícios do Islamismo e que o foram modelando desde lá até hoje. Tornase latente a interação entre religião e política – no Islam mais do que
em qualquer outra das grandes religiões monoteístas. Desde o Profeta, a
organização política dos estados nascentes na Arábia, não raro firmada
sobre a guerra (guerra santa/yihad), veio confirmada pelos ideais religiosos (Küng fala de exclusividade, teocracia e belicosidade – p. 186).
Como com o Judaísmo e o Cristianismo, o escritor se vale da
noção de paradigma – de Thomas Kuhn (cf. p. 170) – para estabelecer
seis momentos na história do Islamismo em que se pode perceber uma
mudança de maior efeito. A tabela apresentada na página 172 é bastante
elucidativa. É interessante perceber que as mudanças no Islamismo se
dão de forma muito mais rápida que nas demais religiões, tendo-se logo
três paradigmas subsequentes, dentro de um período de um século desde
a hégira, mormente marcados por intenções políticas e econômicas, pelas
quais o império árabe foi-se consolidando e para o que a nova religião
serviu, não raro, de instrumento de justificação e dominação. Acompanhando a expansão, mas como movimento interno, pode-se notar a
divisão entre grupos de diferentes opiniões dentro do sistema religioso,
na sua maioria divididos em função da discordância sobre o modo de
eleição dos califas – chefes políticos e religiosos que sucedem Maomé,
sendo o primeiro Abu Bakr.
A longa parte do livro sobre a história traz consigo elementos que
levam o leitor iniciante no assunto a penetrar com maior intensidade no
modo de organização cultural islâmico: os grupos de maior expressão
(sunitas, xiitas, jariies, entre os mais importantes – p. 216); a maneira
de se relacionarem com estrangeiros e pessoas de outras religiões,
monoteístas e politeístas; a teologia incipiente e seu desenvolvimento;
os centros de culto e de organização mais importantes; o surgimento
do direito islâmico e a formação de grupos jurídicos de julgamento
com base no Corão. Esses pontos são retomados a cada paradigma e as
mudanças aí ocorridas são não só apresentadas, mas também refletidas
com base na atualidade e nos anseios do povo muçulmano por uma
organização futura mais próxima ao islamismo originário, mas também
aberta às mudanças advindas com a Modernidade. Como adverte o
próprio autor, os paradigmas religiosos – diferentemente dos matemáticos – não são automaticamente substituídos quando da emergência
de um novo, mas convivem e inter-relacionam-se – como na arte (cf.
p. 274; também p. 713.).
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Após a apresentação histórica, o autor volta sua reflexão para o
presente e o futuro – como sugere o subtítulo da obra. “O decisivo frente
ao futuro não será que tipo de islam deseja ‘o mundo’ ou inclusive ‘o
Ocidente’, mas que forma de islam desejam e perseguem os próprios
muçulmanos em seus diferentes contextos” (p. 510). De início, Küng
realiza uma explanação das possibilidades já “testadas” no mundo islâmico: secularismo, extremismo, socialismo, restauracionismo. A Turquia de Atatürk (pp. 486ss) e o Iran do aiatolá Komeini (pp. 494ss) são
tomados como exemplos opostos de modos de ação, mas, na crítica do
autor, não são o caminho que constitui a relação mais harmoniosa entre
a Modernidade, o Estado e a religião. Segue, ainda, uma forte crítica ao
intervencionismo estadunidense no Iraque, com claras intenções econômicas e bélicas, no mais forte sentido imperialista, sustentada sobre o
princípio inválido da suspeita (cf. p. 508).
Refletindo sobre as distintas possibilidades de configuração abertas
ao Islam em nossa época histórica, parece questionador o posicionamento
de Küng: “Tudo depende de que [...] se consiga convencer o povo. Este,
segundo algumas pesquisas de opinião, está mais disposto a alcançar um
compromisso, do que seus obstinados líderes. Tal compromisso não se
conseguirá com manobras táticas”; “A visão de paz para Israel e Palestina
resulta bastante mais convincente quando se contempla no contexto da
transcendental mudança de paradigma da ordem nacional-imperialista
própria da Modernidade à ordem mundial cooperativa própria da TransModernidade” (p. 538).
Cabe aqui, ainda dentro do capítulo D, uma breve menção da
interessante parte IV, versando sobre as discussões e a possibilidade
de concordância das três grandes religiões em torno da figura de Jesus
Cristo, desde o prisma de enfoques possíveis, mas evidenciando os de
Enviado de Deus e Filho de Deus. Escreve Küng: “Se a filiação divina de
Jesus voltasse a ser entendida hoje segundo este sentido originário [uma
filiação de investidura e jurisdição, recebida em função de sua missão e
morte], provavelmente tampouco seria objeto de demasiadas objeções
sérias por parte do monoteísmo islâmico” (p. 551). O autor propõe, como
lente para acessar a pessoa de Jesus no “triálogo”, a noção judeu-cristã
de Jesus, compatível tanto com o Novo Testamento como com o ponto
de vista islâmico, que vê em Jesus um tipo excelente de mestre e místico,
ao lado de outros nomes bíblicos importantes, mas abaixo de Maomé,
“selo dos profetas” (cf. p. 559). Sob uma nova luz, o escritor avalia que
o diálogo cristológico entre Novo Testamento (em ótica judaico-cristã)
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e Corão “se revelará sumamente fecundo” (p. 561). Tanto para esse
tema (Cristologia) como para o do posicionamento entre monoteísmo e
Trindade, são esclarecedoras as tabelas das páginas 572 e 573.
Encaminhando-se para o final de sua obra, Hans Küng abre o leque de suas expectativas para a caminhada das religiões como um todo
e a participação fundamental do islamismo nesse processo, sempre com
vistas ao “triálogo”. O autor vê como necessário o redimensionamento
de diversos âmbitos importantes das sociedades islâmicas: a política, a
economia e até o modo de vestir. Todavia, no sentido de aprofundar a
reflexão, indo até a base dos confrontos e buscando a facilitação de mudanças significativas no âmbito das pessoas, o escritor diz ser fundamental
a discussão em torno às raízes morais e aos valores de tal renovação,
que trarão consigo, quase que naturalmente, a revitalização dos diversos
campos sociais e das práticas exteriores (cf. p. 599). Nesse processo, a fé
religiosa, como marca arraigada na constituição antropológica humana,
tem muito a colaborar – para o autor, o Islamismo tem, nesse sentido,
uma forte função de recordar ao Ocidente essa força presente e indelével
no ser humano.
Ao Islamismo será necessário o devido balanceamento entre a
maneira de encarar a secularização e o secularismo, a ocidentalização e o
desenvolvimento; será necessário, tendo firmeza na essência da fé, entrar
em diálogo com o paradigma transmoderno-pluricêntrico atual. O autor
inova ao propor uma relação entre democracia e Islam – o que, como ele
mesmo argumenta, é impossível para muitos outros estudiosos da área.
Além da crítica em relação ao Estado – não raro autócrata –, Küng faz
menção à configuração do Direito, ao papel da mulher, à economia, ao
papel da tradição (sunna).
Num apanhado geral, recolhendo como que o sumo da extensa
obra, Küng centra-se, no epílogo e na conclusão, naquilo que se mostrou
fundamental durante todo o volume: para o Islamismo, no atual paradigma, em função do tão importante diálogo para a busca da paz e da
não-violência, urge redimensionar as imbricações entre religião e política
– não extinguindo-as, porque presentes de modo relacionado desde o
início do Islam, mas revendo-as criticamente, para um desenvolvimento
que não significará secularização (cf. p. 717).
O autor posiciona-se a favor de uma universalização de valoreschave para o equilíbrio e a aceitação entre culturas distintas: o respeito
à vida, a solidariedade, a veracidade, a tolerância, a igualdade e a co-
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laboração entre os gêneros, um princípio de humanidade fundado na
fraternidade (cf. pp. 728-729). Apela, por fim, ao próprio Corão, em sua
“regra de ouro”: “Nenhum de vós é crente enquanto não desejar a seu
irmão o mesmo que deseja a si mesmo” (ibid.). À guisa de conclusão,
após o trabalho de um quarto de século, o autor acrescenta ao programa
que traçou todo o percurso da pesquisa: “[...] Nosso planeta não poderá
sobreviver sem uma ética global, sem uma ética mundial, assumida
conjuntamente por crentes e não-crentes” (p. 732). As grandes religiões
são, assim, convocadas à cooperação, a partir de seu potencial de futuro
fundado na sua riqueza espiritual e ética, para um mundo mais pacífico
e justo (cf. ibid.).
E-mail do Recensor:
[email protected]
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BUGNINI, Annibale, “Liturgiae cultor et amator, servì La Chiesa”.
Memorie autobiografiche. Roma, Centro Liturgico Vincenziano,
2012, 231 pp., 15 x 22 cm
Ney Brasil Pereira*
Traduzo o título: “Estudioso e amante da Liturgia, serviu a Igreja”.
São palavras que o próprio Bugnini, o grande artífice da reforma litúrgica
do Vaticano II, propôs como síntese de sua vida, para seu epitáfio. Nascido
em Todi, na Itália, em 1912, entrou para a congregação dos Lazaristas, na
qual foi ordenado presbítero em 1936. Sua primeira e decisiva atividade no
campo da liturgia foi, por quase 20 anos, a direção da revista Ephemerides
Liturgicae (1945-1963), seguindo-se logo sua nomeação como Secretário
da Comissão de Pio XII para a reforma da Liturgia (1948). Sob João XXIII,
foi nomeado Secretário da Comissão Preparatória para o Concílio, do
qual foi também nomeado perito para a Liturgia. Em 1964, sob Paulo VI,
foi nomeado Secretário do “Consilium” para a atuação da Sacrosanctum
Concilium e, ainda, Secretário da Congregação para o Culto Divino, em
1969. Ordenado arcebispo ainda por Paulo VI em 1972, foi repentinamente
destituído em 1975 e nomeado Núncio Apostólico no Iran (!), de 1976 a
1982, ano em que faleceu em Roma, aos 70 anos de idade.
Estas suas “memórias autobiográficas” vieram à luz 30 anos após
sua morte, ano passado, marcando o centenário do seu nascimento. Elas
fazem parte dos escritos por ele redigidos nos últimos sete anos de vida,
isto é, depois da sua destituição em 1975. Entre esses escritos encontra-se
a imponente obra “La Riforma Liturgica (1948-1975)”, de 1000 páginas,
publicada um ano após seu falecimento, e reeditada em 1997, creio que
(ainda) não traduzida em português. Ainda em vida, publicou “La Chiesa
in Iran”, 1981, 471 pp., e “San Vincenzo de Paul. Pensieri”, 1981, 218
pp., preparado para o quarto centenário do nascimento do Santo.
O prefácio destas memórias se deve ao lazarista Pe. Nicola
Albanesi, visitador provincial da congregação em Roma, que assim o
intitula: “Padre Annibale Bugnini: um padre da Missão”. E justifica esse
*
190
O recensor é Mestre em Ciências Bíblicas, professor na FACASC, Florianópolis e,
como músico, regente do Coral da Catedral e membro da Equipe de reflexão de
Música Litúrgica da CNBB.
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Recensões
título: “Se se quiser compreender mais a fundo a ação do Pe. Bugnini,
não se pode prescindir da sua pertença à Congregação da Missão. Tudo
o que fez na Igreja e pela Igreja, ele o fez como ‘padre da Missão’”.
[...] “Padre Bugnini pertence àquela geração, nascida antes da segunda
guerra mundial, formada num catolicismo radicado no universo rural
que representava mais de 80% da população italiana, que fez do duro
trabalho o seu modo de interpretar-se. Era o tempo em que se era católico de nascença e se entrava no Seminário muito cedo. Crescia-se na
disciplina e com acentuado espírito de sacrifício e sentido do dever. Além
disso, nas ‘Escolas Apostólicas’ vicentinas (os Seminários Menores da
Congregação), herdava-se a paixão pela Missão. São Vicente de Paulo
recomendava aos seus missionários que o essencial era encontrar-se em
‘estado de missão’. Era isso que permitia ao Padre Bugnini transformar
todas as atividades, das mais humildes e insignificante às mais nobres,
em missão!” (p. 6)
Por isso, “trabalhar pela reforma litúrgica e defender suas conquistas foi o seu ‘estar em missão’ nos anos da sua maturidade. Ele o fez
com aquele ardor e aquela incansável dedicação típicas do missionário.
Assim, o entusiasmo contagioso, o são otimismo, a fidelidade ao trabalho
cotidiano ‘nos bastidores’, a coragem frente às dificuldades, a fortaleza
nas provações, a obstinação de quem caminha sem hesitação rumo à
meta. Ele começou, dedicando-se ao trabalho pastoral nas cercanias de
Roma como autêntico missionário. Trabalhou na Cúria romana como
missionário. Interpretou o serviço diplomático no Iran como missionário” (pp. 6-7). [...]
“Seu nome foi associado a sabe lá quais sociedades secretas e
conjurações palacianas. Foi feito passar, às vezes, como um despreparado
(!), outras vezes como um audacíssimo manipulador que teria inclusive
forçado a mão do papa Paulo VI”, acusações que infelizmente resultaram na sua destituição, em 1975. Ele, porém, repetidamente reafirmou
a honestidade do seu trabalho, do seu serviço à Igreja. Assim, na carta
de despedida aos seus colaboradores, em janeiro de 1976: “Num grande
momento da história, procuramos servir a Igreja, não servir-nos dela”.
Noutra carta, de setembro de 1979: “Eu servi a Igreja, amei a Igreja, sofri
pela Igreja...” Quanto às “memórias”, o prefaciador observa que elas
por pouco escaparam de serem queimadas com outros papéis, porque o
autor as havia entregue em confiança a seu secretário, no ponto em que
estavam, incompletas, em julho de 1977 (cf. p. 8).
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A apresentação é do mencionado secretário, Pe. Gottardo Pasqualetti, que completa, com mais detalhes, as informações do prefaciador.
Primeiro, Pasqualetti detém-se na já citada grande obra de Bugnini, “La
riforma liturgica”, fartamente documentada (pp. 12-16). Um episódio:
“Na audiência depois da saída do Cardeal Lercaro como Presidente do
Consilium, comentando as publicações maldosas contra Bugnini, assim
disse-lhe Paulo VI: ‘Agora, resta somente o senhor. Recomendo-lhe
muita paciência, muita prudência, e lhe confirmo toda a minha confiança’. E Bugnini: ‘Santo Padre, a reforma irá adiante, enquanto continuar
a confiança de Vossa Santidade. Apenas ela cesse, a reforma se deterá’.
E foi o que aconteceu!” (p. 16).
Quanto às próprias “Memórias”, elas têm o objetivo de dar a
conhecer os componentes basilares da vida de Bugnini: o ambiente familiar e sócio-religioso de suas origens, sua formação, a espiritualidade
vicentina, os estudos e atividades desenvolvidas, iluminando a sua obra
para a Liturgia. De tudo isso emerge a sua personalidade e as características humanas e espirituais que o distinguem e que estão em flagrante
contraste com as suspeitas e calúnias de que foi alvo. Ele desejou que
estas “Memórias” fossem publicadas como seu testamento (p. 18).
Explica Pasqualetti: “Mons. Bugnini deixou o manuscrito ainda
sem ordem na sucessão dos assuntos. O que vai publicado, porém, respeita fielmente o que ele escreveu. Apenas pareceu oportuno dispor a
apresentação dos eventos da sua vida em quatro partes, que formam os
quatro capítulos: I. O percurso da vida desde o nascimento até as responsabilidades que lhe foram confiadas na Congregação e para o ensino,
a pastoral, a promoção da liturgia, até a preparação do Concílio. II. Os
tristes reveses enfrentados na preparação do esquema sobre a Liturgia e
na atuação da reforma litúrgica, sem deter-se no seu detalhado percurso, já
exposto na obra La riforma litúrgica. III. O serviço diplomático no Iran,
para o qual ‘não tinha vocação’, que lhe foi imposto e que ele aceitou
por obediência. IV. As raízes e situação da Igreja no Iran, conhecidas e
aprofundadas com estudos, encontros e visitas”. Além da Apresentação,
também a Conclusão é de Pasqualetti, o qual porém assegura que tudo é
fundamentado nos escritos e cartas do próprio Bugnini.
As últimas quatro páginas da Apresentação têm por subtítulo:
“O segredo do sucesso” (pp. 20-23). Pasqualetti começa ressaltando
“a tenacidade, a habilidade organizativa de Bugnini, a capacidade de
mediar entre instâncias e mentalidades diferentes [...] Ele sublinhava
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sempre que a renovação da liturgia devia ser feita em conexão com
as Igrejas locais, com abertura aos seus problemas e às suas legítimas
exigências. Por isso mesmo sofreu a adversidade de ambientes da Cúria
romana. Mas não se cansou de sustentar e propor este novo estilo de
governo baseado no estudo, no confronto com as realidades para saber
discernir, avaliar, acolher ou também recusar, mas sem preconceitos. A
isso associou a cordialidade e a acolhida fraterna e sincera, testemunhada por muitos (no rodapé, lemos os nomes de alguns desses “muitos”:
S.Marsili, B.Fischer, P. Jounel, R.Kaczynski)” (p. 20). Por ocasião da
sua ordenação episcopal, em 1972, escreveu: “Minha natural mansidão
de ânimo, gostaria que se tornasse programa espiritual pastoral do meu
serviço eclesial no episcopado” (p. 23).
O capítulo I, intitulado “Nascimento – Estudos – Atividades”
(pp. 25-66), além das recordações de infância, nos informa o nascimento
da sua vocação para a Liturgia. Durante o noviciado, em Roma, 192829, nos seus verdes 16-17 anos, foi encarregado de ajudar na expedição
da revista Ephemerides Liturgicae, fundada em 1887. Por esse tempo
conheceu o Liber Sacramentorum do beneditino Ildefonso Schuster,
depois Cardeal. À medida que saíam os volumes da obra, Bugnini os
“devorava” e anotava “com a ânsia do neófito”, escreve ele. E acrescenta:
“Schuster foi o meu primeiro mestre de Liturgia” (p. 36). Pouco depois,
pôde aprofundar-se no estudo das obras de São Vicente, então republicadas em edição crítica. No final da Teologia, em 1939, defendeu uma
tese sobre a Liturgia no Concílio de Trento, fruto de três anos de contacto
com as Atas daquele Concílio. Confessa que não imaginava quanto esse
trabalho o ajudaria vinte anos depois, quando foi nomeado Secretário da
Comissão litúrgica preparatória do Vaticano II.
Em 1945, terminada a guerra, assumiu a direção de Ephemerides
Liturgicae, então com apenas 96 assinantes. As reformas, que começavam
a delinear-se com o lançamento da encíclica Mediator Dei em 1947, e
os novos estudos publicados na revista, multiplicaram o número de assinantes. Nessa revista, publicou vários dos seus trabalhos: “A liturgia dos
Sacramentos no concílio de Trento” (parte de sua tese de láurea), 1945;
“Para uma reforma do Martirológio romano”, 1947; “A versão piana
do Saltério”, 1948; “Para uma reforma litúrgica geral”, 1949, trabalho
traduzido integralmente em Bibel und Liturgie, de Kosterneuburg, e fruto
de um questionário respondido por 40 especialistas de todo o mundo; “A
solene Vigília Pascal restaurada”, 1951; “A comunhão dos fiéis na sextafeira santa”, 1954. Além da coleção já existente “Biblioteca Ephemerides
Encontros Teológicos nº 66
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Liturgicae”, deu início em 1945 a outra coleção de divulgação científica,
a “Ardens et Lucens”. Ao mesmo tempo, no nível de divulgação popular,
criou fascículos que pouco a pouco introduziram a forma das “Missas
dialogadas”. Ele conta: “Enquanto o celebrante ia adiante com seu texto latino, um leitor, geralmente um dos jovens catequistas que vinham
ajudar-me no domingo, fazia a assembleia participar com paráfrases do
texto em italiano. Percebi que a fórmula era um achado, pois o povo
acompanhava com prazer a Missa. A assembleia ‘inerte e muda’ se tinha
transformado em assembleia viva e orante. Por que não estender a outros
a boa experiência?” (p. 51). Em 1950, para o Ano Santo, tentou oficializar
a experiência. Negada a oficialização, obteve pelo menos o “nihil obstat”
e imprimiu por própria conta 10.000 exemplares do livrinho “A nossa
Missa”, que em doze anos chegou a 1.500.000 exemplares, foi traduzido
e teve adatações em várias línguas.
Como lazarista, aceitou em 1947 a direção dos “Annali della Missione”, durante dez anos. Criou, em 1952, o “Bolettino Vincenziano”,
mensal, depois rebatizado como “Vincentiana”. Redigiu 39 verbetes de
caráter vicentino para a “Enciclopedia Cattolica” e também todos os
verbetes vicentinos do “Dizionario Enciclopedico” da UTET.
No campo do ensino, em 1949 assumiu a cátedra de Liturgia na
faculdade do “Propaganda Fide” e, em 1955, no Pontifício Instituto de
Música Sacra”. Elaborou as apostilas de suas aulas no “Propaganda”,
mas não as publicou quando viu chegar a obra de Martimort, “L’Église
en Prière”. No “Música Sacra”, escreveu as aulas que abordavam o tema
“Música sacra e Liturgia”. Sobre essa atividade, escreve: “Ambiente
querido, que começou a perturbar-se quando a reforma litúrgica mostrou
uma face nova, à qual os musicistas tradicionais custavam a se adaptar.
Pouco a pouco essa rejeição da reforma se acentuou. O ambiente ficou
pesado, criticava-se o meu ensinamento. Assim, demiti-me em 1965,
embora conservando vínculos de sincera amizade com o corpo dos professores e a instituição” (p. 57). Em “La riforma liturgica”, escreveu:
A música sacra “foi a cruz da Comissão preparatória, desde o primeiro
momento do nosso trabalho e, agora, como coroa, a minha cruz”, por
causa das calúnias divulgadas pelo Presidente do Instituto de MS (cf.
nota 6, p. 57).
Em 1957, assumiu a cátedra de Liturgia no recém-criado Instituto Pastoral da Universidade Lateranense. Eram 20 aulas de Liturgia
Pastoral, depois pouco a pouco reduzidas, por divergências internas, até
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sua exoneração em 1962, “por ordem da Santa Sé”, ordem, porém, sem
conhecimento de João XXIII (p. 59). Em 1956, após o 1º Congresso
Internacional de Pastoral Litúrgica em Assis, Bugnini sugeriu e organizou as “semanas anuais de estudo” para professores de Liturgia, depois
incorporadas ao “Centro di Azione Liturgica”, nascido em Parma, 1948.
Em 1958, foi eleito vice-Presidente da “Associazione Italiana di Santa
Cecilia”, com a qual fundou a Escola de Música Sacra para religiosas,
ao perceber que elas, “mais que o jovem clero”, se interessavam pela
Música litúrgica (p. 62).
Quanto ao seu ministério como padre, assim escreve: “Os empenhos de estudo, ensino e escritório, reduziram necessariamente os
do ministério sacerdotal. Reduziram, não eliminaram. Estive sempre
convencido de que, se um padre abandonasse totalmente o seu ministério, seria um padre falido” (p. 62). A propósito, recorda “o período mais
fecundo” dessa atividade, o decênio 1943-53, em diversos subúrbios de
Roma: Borgata Prenestina, Borgata di Tor Tre Teste, inclusive construindo
igrejas e outras estruturas paroquiais (cf. pp. 62-66).
O capítulo II é intitulado “Vida difícil”, que, como informa Pasqualetti, era o título de uma pasta no centro de sua escrivaninha durante
todo o tempo do seu serviço para a renovação da Liturgia. Ali recolhia
contestações, oposições, obstáculos, insinuações, falsidades... Mas, como
ele costumava dizer, “não faltaram anjos de Deus que vieram em ajuda.
E assim, mesmo passando por quatro ‘tribunais’ qualificados (Comissão
central, Subcomissão para as emendas, Concílio, Comissão conciliar),
nada de substancial foi mudado no texto da Constituição, como havia
saído da Comissão preparatória em 13 de janeiro de 1962” (p. 67).
Mesmo depois da aprovação da Sacrosanctum,continuaram as reações
de associações e movimentos em defesa do latim, do canto gregoriano e
polifônico, das precedentes formas litúrgicas, mesmo com manifestações
descabidas... e mais ainda a oposição de ambientes da Cúria, desde a
Congregação dos Ritos, que não suportava a existência de um organismo
colateral como o Consilium, até a Congregação para a Doutrina da Fé,
as Congregações dos Seminários e dos Religiosos, e mesmo a Secretaria
de Estado. [...] Pe. Bugnini, e também o Cardeal Lercaro, foram acusados, até veementemente, de serem os culpados dos males que afligiam
a Igreja... Mas, o que mais magoou Bugnini, foram “as calúnias e insinuações venenosas sobre a sua honestidade e correção nas tarefas que
lhe foram atribuídas, e a infame invenção da sua pertença à Maçonaria,
publicamente avalizada e divulgada por Lefèbvre” (p. 69).
Encontros Teológicos nº 66
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Recensões
“Primeiro exílio” é o título da primeira parte do mencionado capítulo II. Bugnini comenta aí os acontecimentos desde a sua destituição
de Secretário da Comissão litúrgica conciliar, em 6 de outubro de 1962
(poucos dias antes do início do próprio Concílio!), com a sua concomitante demissão da cátedra de Liturgia Pastoral no Lateranense, até a sua
reintegração, em 3 de janeiro de 1964, já sob Paulo VI, como Secretário
do Consilium ad exsequendam Constitutionem de Sacra Liturgia. Escreve
Bugnini: “O exílio havia durado 14 meses e 26 dias. Assim, no dia 3 de
janeiro de 1964 teve início a reforma litúrgica. A história da reforma (e
a minha) está relatada amplamente no volume La Riforma Liturgica” (p.
78). Não posso, nesta recensão, deter-me sobre os interessantes detalhes
desse “primeiro exílio”, exposto em dez páginas (pp. 69-78). A título de
amostra: “Qual foi mesmo o motivo desse procedimento discriminatório
e odioso para com o Secretário da Comissão preparatória do Concílio? De
preciso nunca se soube e talvez nunca se saberá. “Santa Sé”, “Seminários”, “Ritos, “Santo Ofício”, eram nomes que saltavam de boca em boca,
de um corredor a outro, em voz baixa, insinuantes, sugerindo algum delito
que se queira prudentemente esconder, para sacudir dos ombros uma
responsabilidade que já estava pesando. Mas, na dança das insinuações,
duas retornavam insistentemente: a acusação de que eu havia adulterado,
com um grupo de amigos ‘progressistas’, o texto da Constituição, e que
eu mesmo seria um perigoso progressista”... (p. 71)
No “Segundo exílio”, Bugnini relata os eventos desde a sua repentina destituição da Secretaria do Consilium, em 14 de julho de 1975, até
a sua partida para o Iran, como Núncio Apostólico, no dia 3 de fevereiro
de 1976. Especialmente no início desse período, angustiava-o pensar que
o Papa, Paulo VI, que por onze anos o tratara com ternura de pai, constantemente comentando com ele sobre os mínimos detalhes da reforma,
agora não lhe dissesse uma palavra... Entretanto, a imprensa e a opinião
pública deitaram e rolaram a seu respeito, inventando mil conjecturas
sobre seu paradeiro. É que Bugnini resolvera isolar-se, mas sem perder
tempo, “mesmo se psiquicamente provado e fisicamente abatido” (p. 81).
Decidiu então escrever a história da Reforma litúrgica, recolhendo para
isso todos os documentos disponíveis. “Não teria pensado poder levar
a termo, em seis meses, naquelas condições ‘desastrosas’, um trabalho
tão ingente. Datilografei mais de mil páginas. O Senhor me ajudou: a
memória, como por encanto, recuperava nomes, datas, episódios, ideias,
fatos, enredos. Nos inícios de dezembro (1975), a maior parte do trabalho
tinha terminado. [...] Em 5 de janeiro de 1976, foi publicada a minha
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nomeação a Núncio Apostólico no Iran. Pareceu-me de obrigação, antes
de deixar totalmente a cena romana, despedir-me de modo fraterno dos
colaboradores no campo da reforma litúrgica, mandando-lhes uma carta
de despedida” (p. 82). Segue o texto da carta (pp. 82-83).
Sobre o “Caso Lefèbvre”, Bugnini o expõe em onze páginas (pp.
84-94). Quanto à “missa de São Pio V, embora o impetuoso Prelado
(Lefèbvre) tachasse de herética a Missa renovada e herético o Papa que
a havia promulgado, pareceu-me desde o início que talvez se pudesse
encontrar um ponto de entendimento e pacificação. E me parecia vê-lo
na Notificação de 14 de junho de 1971, que permite aos padres idosos ou
doentes a permissão de continuar a celebrar a Missa segundo o velho rito.
Se isso é permitido aos padres, eu dizia, por que não deve ser concedido
também a grupos de fiéis que têm a mesma dificuldade psicológica com a
liturgia renovada?” (p. 85) Já no Iran, em 21 de setembro de 1976, escreveu ao Secretário de Estado, Villot, uma carta com o seguinte parágrafo:
“No fundo, as diferenças entre as duas celebrações não são substanciais.
Estou convencido de que é questão de tempo e, se se consegue não dar
importância à coisa, dentro de alguns anos as novas gerações farão justiça
por si. Perigo de desordem não pode haver, se se aceitam as seguintes
condições” (p. 89). Bugnini propõe quatro...
Em 7 de novembro de 1979, em longa carta ao Cardeal Oddi, ele se
permitiu esta confidência: “Eminência, depois de ter vivido plenamente
um ano de revolução islâmica no modo bárbaro que o mundo conhece,
e refletindo o meu caso, não posso furtar-me a uma óbvia comparação:
não fui tratado melhor do que faz Khomeini com os ex-ministros do Xá,
os quais, antes ainda que se inicie o processo, são condenados à morte
sem remissão. Com uma nuança de diferença: Khomeini dá a eles a
possibilidade de uma aparência de processo, enquanto a mim ela não
foi dada. Khomeini fuzila os seus condenados, enquanto a minha é uma
perfeita morte moral” (pp. 92-93). Da mesma carta, cito um parágrafo
sobre a reforma litúrgica: “Quando ainda me era concedido aproximarme do Papa (Paulo VI), eu lhe dizia que, para concluir a reforma, eram
necessários mais dois anos (haviam transcorrido oito), mas que depois
seriam precisos outros dez para reforçá-la, aprofundá-la, segui-la nas
fases de desenvolvimento e nas várias culturas...” (p. 93)
Quanto à gratuita acusação de pertença à Maçonaria, Bugnini a
comenta e documenta com detalhes, nas pp. 94-109. Sobre ela, escreve:
“Foi a acusação que mais me amargurou a vida, e tornou incandescentes
Encontros Teológicos nº 66
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de vergonha e dor os meses de verão e outono de 1975, no meu forçado
‘eremitério’ em São Silvestre no Quirinal” (p. 95) Sirva de exemplo o
que lhe veio dizer, num daqueles dias, de viva voz, o Cardeal Oddi: “que
havia visto a minha assinatura no documento de afiliação à Maçonaria”
e que “a Maçonaria me passava meio milhão de liras por mês” e que
“com a reforma litúrgica eu teria tido o objetivo de subverter a Igreja
por dentro”... (p. 95) Já no Iran, em 19 de julho de 1976, escreveu diretamente a Paulo VI, negando as acusações e terminando: “Não há no
mundo nada que me esteja mais a peito do que a cruz peitoral. Pois bem,
se os caluniadores forem capazes, honesta e objetivamente (grifo de B.),
de demonstrar um só pingo de verdade no que estão desonestamente
afirmando, estou pronto a restituir essa cruz. Isto lhe diz, Santo Padre,
quanto a coisa me faça sofrer, lacerando minha alma em uma das fibras
mais profundas e mais caras: a minha fidelidade ao sacerdócio, a Cristo,
à Igreja, ao Papa” (p. 102).
Os capítulos III e IV tratam do seu ministério de Núncio no Iran
(pp. 111-164) e da presença cristã nesse país “ontem e hoje” (pp. 165187). Leitura muito interessante, pelas informações que dá sobre o próprio
Bugnini, contribuindo para completar o conhecimento do personagem, e
também sobre esse país, de presença cristã tão exígua. Mas esta recensão
já vai extrapolando os limites. A Conclusão (pp. 189-194), devida ao
apresentador, Pasqualetti, informa: “B. não pôde dar uma conclusão às
suas ‘Memórias’. Mas a sucessão dos eventos da sua existência mostra
que ela foi sempre percorrida e guiada pela fé e pelo serviço. [...] A fé
inspirou-lhe os passos na realização da grande obra da renovação da
Liturgia (p. 189). [...] E o serviço, é a palavra que com maior frequência
retorna nos seus escritos” (p. 191). E é o que exprimem as palavras de seu
epitáfio: “Estudioso e amante da Liturgia, serviu à Igreja” (p. 193).
Completam o livro 13 páginas da sua bibliografia, na sequência
cronológica das publicações, e 20 páginas de documentação fotográfica. É um livro que merece traduzido. Será lido com grande proveito,
e contribuirá para se entender o ambiente conflitivo no qual gestou-se a
reforma litúrgica, da qual todos somos beneficiários.
Endereço do Recensor:
Caixa postal 5041 – ITESC
88040-970 Florianópolis, SC
E-mail: [email protected]
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Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Crônicas
FACASC conclui formação em Teologia para leigos
A Faculdade Católica de Santa Catarina, FACASC, realizou à
noite de O2-12 a formatura de mais uma turma de lideranças leigas que
frequentaram seus cursos de extensão. No total, dos seis cursos oferecidos, 127 alunos receberam o certificado de conclusão. A formatura foi
realizada na paróquia da Agronômica, em Florianópolis. O evento foi
precedido pela celebração eucarística presidida pelo Pe. Vitor Galdino
Feller, Diretor da Faculdade, e contou com a presença de professores,
familiares e amigos dos formandos. Os cursos oferecidos foram: Teologia Fundamental; Bíblia, Primeiro Testamento; Teologia Bíblica
Fundamental; Teologia Litúrgica Sacramental; Teologia Catequética; e
Canto e Música Litúrgica I.
Para Silvia Togneri, coordenadora dos cursos de extensão da
FACASC, esses cursos oferecem ampla formação aos alunos. Além das
aulas normais ministradas por professores qualificados, eles podem complementar seus estudos com as várias atividades realizadas no decorrer
do ano pela Faculdade.
Novas inscrições: A FACASC convida as lideranças das paróquias
e comunidades, pastorais e movimentos, a aproveitarem esses cursos de
extensão que acontecem em sua sede, no bairro do Pantanal, às segundas-feiras, à noite. As aulas terão início no dia 25 de fevereiro, e serão
oferecidos os seguintes cursos: Teologia Sistemática; Bíblia, Segundo
Testamento; Teologia Bíblica Pastoral; Teologia Litúrgica Fundamental.
Teologia catequética pastoral. E Canto e Música Litúrgica II.
Mais informações com a coordenadora ([email protected])
ou pelo site da Faculdade: www.facasc.edu.br
Correspondência de Pe. Ney com Hans Küng
No dia 25-11, Pe. Ney recebeu de HANS KÜNG a resposta a uma
mensagem de congratulações enviada a ele duas semanas antes, em 1211. Reproduzimos aqui o intercâmbio de mensagens, traduzindo-as do
original inglês, para conhecimento dos leitores.
Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
199
Crônicas
Mensagem do Pe. Ney: Prezado Prof. Küng. Sou um padre brasileiro, um de seu colegas de classe na Universidade gregoriana, onde
cheguei em 1952, ainda a tempo de vê-lo entre os alunos alemães com
suas batinas vermelhas, à esquerda da cátedra da Aula Magna. Em junho,
ou maio, de 1963, assisti à sua conferência na Universidade Duquesne,
em Pittsburgh, nos EE.UU., onde eu estava terminando dois semestres
de graduação em música. A sua conferência versava sobre “Liberdade
na Igreja”. Era logo após a primeira sessão do Concílio Vaticano II.
Tenho seguido seus passos durante esses 50 anos, admirando e prezando sua incansável luta pela reforma e unidade da Igreja e a união da
humanidade. Estou agora com 83 anos, e sei que você passou dos 85...
É tempo, então, antes que partamos daqui (!), dar-lhe a conhecer que
alguém, aqui em baixo, no sul do Brasil, constantemente reza por você
e é sinceramente grato pela sua maravilhosa obra. Deus o abençoe e o
encha de alegria por tudo! Já li, é claro, as suas apreciadas Memórias,
volumes I e II, e estou ansioso para ler o III e último volume. Espero
que a tradução espanhola não demore muito. Desejo-lhe o melhor de
tudo. Oremus pro invicem. Pe. Ney Brasil Pereira
Mensagem do Prof. Küng: Prezado Ney Brasil Pereira. Fiquei
muito sensibilizado por sua expressão de simpatia e de diuturna solidariedade. Muitos agradecimentos e todas as bênçãos. Hans Küng
Pe. Ney admitido como membro efetivo do IHGSC // Pe. Besen
lança mais um livro: “História de Nossa Senhora do Desterro”
No dia 11-12, em sessão solene na “Casa José Boiteux”, sede da
Academia Catarinense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico
de Santa Catarina, no centro da capital, foi admitido oficialmente como
membro efetivo do mencionado Instituto, Pe. Ney Brasil Pereira, um
dos professores da nossa Faculdade Católica e também redator e revisor
desta revista. O IHGSC é a mais antiga entidade cultural do Estado, fundado que foi em 7 de setembro de 1896. Entre seus membros eméritos
encontra-se o Pe. José Artulino Besen, Professor Pesquisador da nossa
Faculdade, que acaba de lançar, na sessão solene de 27 de novembro,
mais uma contribuição à história eclesiástica de Santa Catarina: o livro
“História de Nossa Senhora do Desterro”. Com o subtítulo “Na Ilha de
Santa Catarina, 1713-2013”, o livro, com 418 páginas, é uma publicação do IHGSC e integra a coleção “Catariniana”, vol. 15. Abrangendo
um arco histórico de 500 anos, desde os aborígenes até a Florianópolis
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Crônicas
multicultural do século XXI, o livro é uma preciosa fonte de informação
da nossa história. Para saber mais sobre o IHGSC, acesse a home-page:
www.ihgsc.org.br ou o email: [email protected]
Cardeal Dom Falcão: “A arquidiocese de Brasília tem o privilégio
de ter uma Faculdade de Teologia para Leigos”
Há 27 anos atrás, o então arcebispo de Brasília, Dom José Freire
Falcão, dava o ponta-pé inicial ao Curso Superior de Teologia (CST),
nascido no dia 16 de Dezembro de 1986. Dando sequência a esse trabalho,
vinte e dois anos depois, no dia17 de abril de 2008, Dom João Braz de
Aviz, sucessor de Dom Falcão como arcebispo de Brasília, criava a Faculdade de Teologia da Arquidiocese de Brasília (FATEO), aproveitando
a estrutura do antigo CST. Atualmente Dom Sergio da Rocha, atual
arcebispo de Brasília, assumiu o legado dos seus antecessores. Como
coroação de todos esses anos de esforços e de construção, a FATEO, no
dia 23 de outubro de 2012 recebeu do Ministério da Educação a aprovação do credenciamento da Faculdade de Teologia, recebendo a nota 4,
numa escala de 1 a 5, além de nota 5 para o corpo docente.
A instituição já conta com 571 alunos das mais diversas proveniências profissionais: advogado, procurador, médico, dona de casa,
servidor, empresário, aspirantes ao diaconado, religiosa, jovens universitários, etc... Todos cursando a grade curricular do curso de Teologia
e dos diversos cursos de extensão oferecidos pela Faculdade, dentre os
quais também “canto gregoriano para leigos e religiosas/os”.
Nesta entrevista, o mencionado cardeal Dom José Freire Falcão,
arcebispo emérito de Brasília, responsável por ter colocado a sementinha
dessa obra de evangelização, falou sobre o sentido de um leigo estudar
teologia hoje.
Como surgiu a ideia
“A ideia de criar um curso de teologia surgiu em mim lá em Teresina, onde fui arcebispo”, disse o prelado. “Foi lá que senti a necessidade
de que os cristãos tivessem um conhecimento mais profundo da sua fé”.
Dom Falcão revelou que quando chegou a Brasília, se encontrou com
uma forte organização catequética da juventude, mas “havia necessidade de um ensino da fé mais profundo para o laicato e foi então que
surgiu a ideia, que foi bem recebida, e que tem crescido sempre mais,
transformando-se hoje na Faculdade de Teologia”.
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Crônicas
É um privilégio uma Faculdade de Teologia
“É um privilégio ter uma Faculdade de teologia numa arquidiocese”, disse o cardeal, destacando que, no caso de Brasília, dada a importância da cidade, como sede nacional do poder político, é inadiável
formar cristãos de fé profunda, que possam ter uma atuação mais eficaz
na nossa comunidade e no nosso país”.
É necessário o apoio dos párocos
Nesse sentido, comentou Dom Falcão, “os párocos devem contribuir, estimulando os leigos mais capazes da sua paróquia para que eles
façam esse curso de teologia”.
Teólogos leigos
“Sinto o orgulho por ter sido o fundamento do curso superior de
teologia do qual nasceu a faculdade, graças a visão de Dom João Braz de
Aviz, meu sucessor. “Agente sempre se alegra – disse Dom Falcão -quando encontra na própria comunidade homens com uma fé esclarecida e
bons teólogos”. “Outrora, quando se falava de teólogo, só nos referíamos
a padres e bispos. Hoje são mais numerosos as mulheres e os homens
que têm um maior conhecimento da fé cristã”. Finalizando a entrevista,
disse o cardeal: “Todos, como católicos, devemos ter o dever de ajudar
a Faculdade, e não só financeiramente, mas também pelo testemunho
que se pode dar às pessoas de que vale a pena estudar, também em nível
superior, para se ter um conhecimento mais profundo da Fé.
Para mais informações, acesse www.fateo.edu.br ou ligue para
(61) 3345 0102.
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Encontros Teológicos nº 66
Ano 28 / número 3 / 2013
Índice Geral
INDICE GERAL dos números 64, 65 e 66
(2013/1, 2 e 3)
a) Indice Geral dos três números monográficos
– n. 64 (2013/1): CONCILIO VATICANO II: MEMÓRIAS E
PERSPECTIVAS – Congresso teológico 2012 – ANAIS
- VALENTINI, Demétrio, Conferência: “O Concílio Vaticano
II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos”, pp. 11-23.
- GAMELEIRA SOARES, Sebastião Armando, “Tributo a
Dom Clemente Isnard ”, p. 24.
- SCHMITZ, Erik Dorff (sintetizador), Debate sobre a
Conferência de Dom Luiz Demétril Valentini, pp. 25-27.
- FELLER, Vitor Galdino, Conferência: “Lumen Gentium:
pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II ”, pp. 29-50.
- JACQUES, Jonathan Speck Thiesen (sintetizador), Debate sobre
a Conferência do Pe. Dr. Vitor Galdino Feller, pp. 51-63.
- ISNARD, Clemente, Dom, “Reminiscências do Vaticano
II” (1), p. 64.
- BINGEMER, Maria Clara, Conferência: “Da Apostolicam
Actuositatem aos ministérios leigos”, pp. 65-72.
- GUESSER, Murilo (sintetizador): Debate sobre a Conferência
da Profa. Dra. Maria Clara Bingemer, pp. 73-77.
- LIBÂNIO, João Batista, Conferência: “Igreja, Sociedade,
Juventude”, pp. 79-87.
- WEIDUSCHATH, Ismael e STEFFENS, Fernando
(sintetizadores), Debate sobre a Conferência do Pe. Dr. João
Batista Libânio, pp. 89-95.
- RAMADA PIENDIBENE, Daniel, Conferência: “O desafio
hermenêutico da Gaudium et Spes”, pp. 97-136.
- KASPER, Walter, Cardeal, “Um Concílio a caminho”,
pp. 137-145.
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Índice Geral
- BESEN, José Artulino, Conferência: “ITESC – 40 anos, O Instituto
Teológico de Santa Catarina 1973-2012”, pp. 147-174.
- GILBERT, Maurice, Crônica: “O Cardeal Martini (in
memoriam)”, pp. 175-183.
– n. 65 (2013/2): POR UMA PARÓQUIA COMUNIDADE
- ORIOLO, Edison, “A revitalização das paróquias”, pp. 11-30.
- PEREIRA, José Carlos, “Paróquia, comunidade de
comunidades. Desafios centrais”, pp. 31-49.
- FRANCISCO, Papa, “Aos catequistas, no ano da Fé”
(excertos), p. 50.
- COUTINHO, Sérgio Ricardo, “A paróquia e um conceito
‘forte’ de comunidade: uma compreensão pela Sociologia
e pela Pastoral”, pp. 51-63.
- EDELHEIT, Joseph A., Rabino, “Diálogo interreligioso”
(excertos) p. 64.
- LIMA, José de, “Formação cristã na comunidade
paroquial”, pp. 65-78.
- AZEVEDO, Laudelino Augusto dos Santos, “O cristão
leigo e a paróquia”, pp. 79-97.
- DORNELAS, Sidnei Marcos, “A missão ‘da’ e ‘na’
paróquia. Um ensaio de releitura do Documento de Estudos
104 da CNBB, na perspectiva da ‘Missão’”, pp. 99-113.
- WOLFF, Elias, “Grupo de Reflexão, modelo de comunidade
para a paróquia”, pp. 115-132.
- FORNASIER, Rafael Cerqueira, “Família como comunidade
e comunidade eclesial como família: fraternidade cristã e
universal na nova paróquia”, pp. 133-144.
- WOLFF, Elias, “A nudez de Francisco, o Papa”, pp. 145-155.
- GUESSER, Murilo, “A produção musical cristã
contemporânea e a música ritual cristã pósconciliar:
história, questões e desafios”, pp. 157-175.
- PEREIRA, Ney Brasil, recensão de GELINEAU, Joseph, “Os
cantos da Missa – no seu enraizamento ritual”, São Paulo,
Paulus, 2013, col. “Liturgia e Música”, 116 p., pp. 179-186.
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Índice Geral
– n. 66 (2013/3): CF 2014: FRATERNIDADE E TRÁFICO
HUMANO
- DIAS, Luiz Carlos, “A Campanha da Fraternidade de 2014
– Fraternidade e Tráfico Humano”, pp. 11-24.
- MARINUCCI, Roberto; MILESI, Rosita, “O que tem
preço e o que tem dignidade: Desafios da Campanha da
Fraternidade da Igreja Católica sobre Tráfico Humano
(2014)”, pp. 25-44.
- GASDA, Élio Estanislau, “Onde está teu irmão? (Gn 4,9):
Aproximação bíblico-teológica ao tráfico de pessoas”, pp. 45-60.
- MENDES, Vitor Hugo, “Presença da Igreja na Cidade e
Evangelização das Culturas Urbanas: Horizonte e Compromisso
na Igreja Latino-americana e Caribenha”, pp. 61-80.
- YUNES, Rosendo A., “O significado do Reino de Deus à
luz de uma teoria evolutiva – Parte I: Da Emergência do
Homem até Jesus”, pp. 81-98.
- YUNES, Rosendo A., “O significado do Reino de Deus à luz
de uma teoria evolutiva – Parte II: De Jesus até o Presente”,
pp. 99-119.
- STADELMANN, SJ, Luís, “Salmos de Protesto” (Sl 44;
80; 89), pp. 121-148.
- BESEN, José Artulino, “O Concílio de Trento no caminho
da Igreja – 450 anos”, pp. 149-157.
- GOMEZ, Luís Moreno, “Sobre o Judaísmo – Cátedra do
Pensamento Judeu – Universidade Monteàvila, Caracas,
Venezuela”, pp. 159-169.
- BIANCHI, Enzo, “A primavera da Igreja”, pp. 171-174.
- ACQUAROLI, Armando Rafael Castro, recensão de
KÜNG, Hans. “El Judaismo: Pasado, presente y futuro”.
Tradução Vítor A. M. Lapera e Gilberto C. Marcos. 5 ed.
Madrid: Trotta, 2006. p. 718. n. 66 (2013/3), pp. 175-181.
- SCHMITT, Paulo Stippe, recensão de KÜNG, H. “El islam:
história, presente, futuro”. 2. ed. Trad. de José Manuel
Lozano Gotor e Juan Antonio Conde Gómez. Madrid,
Editorial Trotta, 2007. 847 p. (Colección estructuras y
processos. Serie religión), n. 66 (2013/3), pp. 182-189.
- PEREIRA, Ney Brasil, recensão de BUGNINI, Annibale,
“Liturgiae cultor et amator, servì La Chiesa”. Memorie
autobiografiche. Roma, Centro Liturgico Vincenziano,
2012, 231 pp., 15 x 22 cm, n. 66 (2013/3), pp. 190-198.
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Índice Geral
b) INDICE GERAL dos três números monográficos de
2013, por autor:
- ACQUAROLI, Armando Rafael Castro, recensão de
KÜNG, Hans. “El Judaismo: Pasado, presente y futuro”.
Tradução Vítor A. M. Lapera e Gilberto C. Marcos. 5 ed.
Madrid: Trotta, 2006. p. 718. n. 66 (2013/3), pp. 175-181.
- AZEVEDO, Laudelino Augusto dos Santos, “O cristão
leigo e a paróquia”, n. 65 (2013/2), pp. 79-97.
- BESEN, José Artulino, Conferência: “ITESC – 40 anos, O
Instituto Teológico de Santa Catarina 1973-2012”, n. 64
(2013/1), pp. 147-174.
- _____, “O Concílio de Trento no caminho da Igreja – 450
anos”, n. 66 (2013/3), pp. 149-157.
- BIANCHI, Enzo, “A primavera da Igreja”, n. 66 (2013/3),
pp. 171-174.
- BINGEMER, Maria Clara, Conferência: “Da Apostolicam
Actuositatem aos ministérios leigos”, n. 64 (2013/1), pp. 65-72.
- COUTINHO, Sérgio Ricardo, “A paróquia e um conceito
‘forte’ de comunidade: uma compreensão pela Sociologia
e pela Pastoral”, n. 65 (2013/2), pp. 51-63.
- DIAS, Luiz Carlos, “A Campanha da Fraternidade de 2014 –
Fraternidade e Tráfico Humano”, n. 66 (2013/3), pp. 11-24.
- DORNELAS, Sidnei Marcos, “A missão ‘da’ e ‘na’
paróquia. Um ensaio de releitura do Documento de Estudos
104 da CNBB, na perspectiva da ‘Missão’”, n. 65 (2013/2),
pp. 99-113.
- EDELHEIT, Joseph A., Rabino, “Diálogo interreligioso”
(excertos) n. 65 (2013/2), p. 64.
- FELLER, Vitor Galdino, Conferência: “Lumen Gentium:
pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II ”, n. 64 (2013/1),
pp. 29-50.
- FORNASIER, Rafael Cerqueira, “Família como comunidade
e comunidade eclesial como família: fraternidade cristã e
universal na nova paróquia”, n. 65 (2013/2), pp. 133-144.
- FRANCISCO, Papa, “Aos catequistas, no ano da Fé”
(excertos), n. 65 (2013/2), p. 50.
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Ano 28 / número 3 / 2013
Índice Geral
- GAMELEIRA SOARES, Sebastião Armando, “Tributo a
Dom Clemente Isnard ”, n. 64 (2013/1), p. 24.
- GASDA, Élio Estanislau, “Onde está teu irmão? (Gn 4,9):
Aproximação bíblico-teológica ao tráfico de pessoas”, n. 66
(2013/3), pp. 45-60.
- GILBERT, Maurice, Crônica: “O Cardeal Martini (in
memoriam)”, n. 64 (2013/1), pp. 175-183.
- GOMEZ, Luís Moreno, “Sobre o Judaísmo – Cátedra do
Pensamento Judeu – Universidade Monteàvila, Caracas,
Venezuela”, n. 66 (2013/3), pp. 159-169.
- GUESSER, Murilo (sintetizador): Debate sobre a
Conferência da Profa. Dra. Maria Clara Bingemer, n. 64
(2013/1), pp. 73-77.
- _____, “A produção musical cristã contemporânea e a
música ritual cristã pósconciliar: história, questões e
desafios”, n. 65 (2013/2), pp. 157-175.
- ISNARD, Clemente, Dom, “Reminiscências do Vaticano
II” (1), n. 64 (2013/1), p. 64.
- JACQUES, Jonathan Speck Thiesen (sintetizador), Debate
sobre a Conferência do Pe. Dr. Vitor Galdino Feller, n. 64
(2013/1), pp. 51-63.
- KASPER, Walter, Cardeal, “Um Concílio a caminho”, n.
64 (2013/1), pp. 137-145.
- LIBÂNIO, João Batista, Conferência: “Igreja, Sociedade,
Juventude”, n. 64 (2013/1), pp. 79-87.
- LIMA, José de, “Formação cristã na comunidade
paroquial”, n. 65 (2013/2), pp. 65-78.
- MARINUCCI, Roberto; MILESI, Rosita, “O que tem
preço e o que tem dignidade: Desafios da Campanha da
Fraternidade da Igreja Católica sobre Tráfico Humano
(2014)”, n. 66 (2013/3), pp. 25-44.
- MENDES, Vitor Hugo, “Presença da Igreja na Cidade e
Evangelização das Culturas Urbanas: Horizonte e Compromisso na
Igreja Latino-americana e Caribenha”, n. 66 (2013/3), pp. 61-80.
- ORIOLO, Edison, “A revitalização das paróquias”, n. 65
(2013/2), pp. 11-30.
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Índice Geral
- PEREIRA, José Carlos, “Paróquia, comunidade de
comunidades. Desafios centrais”, n. 65 (2013/2), pp. 31-49.
- PEREIRA, Ney Brasil, recensão de GELINEAU, Joseph,
“Os cantos da Missa – no seu enraizamento ritual”, São
Paulo, Paulus, 2013, col. “Liturgia e Música”, 116 p., n. 65
(2013/2), pp. 179-186.
- _____, recensão de BUGNINI, Annibale, “Liturgiae cultor
et amator, servì La Chiesa”. Memorie autobiografiche.
Roma, Centro Liturgico Vincenziano, 2012, 231 pp., 15 x
22 cm, n. 66 (2013/3), pp. 190-198.
- RAMADA PIENDIBENE, Daniel, Conferência: “O desafio
hermenêutico da Gaudium et Spes”, n. 64 (2013/1), pp. 97-136.
- SCHMITT, Paulo Stippe, recensão de KÜNG, H. “El islam:
história, presente, futuro”. 2. ed. Trad. de José Manuel
Lozano Gotor e Juan Antonio Conde Gómez. Madrid,
Editorial Trotta, 2007. 847 p. (Colección estructuras y
processos. Serie religión), n. 66 (2013/3), pp. 182-189.
- SCHMITZ, Erik Dorff (sintetizador), Debate sobre a
Conferência de Dom Luiz Demétril Valentini, n. 64
(2013/1), pp. 25-27.
- STADELMANN, SJ, Luís, “Salmos de Protesto” (Sl 44;
80; 89), n. 66 (2013/3), pp. 121-148.
- VALENTINI, Demétrio, Conferência: “O Concílio Vaticano II visto
a partir do jubileu dos seus 50 anos”, n. 64 (2013/1), pp. 11-23.
- YUNES, Rosendo A., “O significado do Reino de Deus à
luz de uma teoria evolutiva – Parte I: Da Emergência do
Homem até Jesus”, n. 66 (2013/3), pp. 81-98.
- _____, “O significado do Reino de Deus à luz de uma teoria
evolutiva – Parte II: De Jesus até o Presente”, n. 66 (2013/3),
pp. 99-119.
- WEIDUSCHATH, Ismael e STEFFENS, Fernando
(sintetizadores), Debate sobre a Conferência do Pe. Dr. João
Batista Libânio, n. 64 (2013/1), pp. 89-95.
- WOLFF, Elias, “Grupo de Reflexão, modelo de comunidade
para a paróquia”, n. 65 (2013/2), pp. 115-132.
- _____, “A nudez de Francisco, o Papa”, n. 65 (2013/2),
pp. 145-155.
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