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PROMETHEUS a tragédia do fogo itinerância C I A T E A T R O B A L A G A N C a d e r n o P e d a g ó g i c o M a i o 2 0 1 3 E s t e p r o j e t o f o i c o n t e m p l a d o c o m o P r ê m i o P r o c u l t u r a d e E s t í m u l o a o C i r c o , D a n ç a e Te a t r o 2 0 1 0 Este caderno de viagem é um caderno de notas escrito a seis mãos. Três atores do espetáculo escrevem o que seus olhos viram. Antonio Salvador apresenta o caminho percorrido na itinerância, Natacha Dias vê os espetáculo através das paredes dos espaços físicos que receberam Prometheus e Gustavo Xella vê os que se encontram, os coletivo de artistas em cada cidade e oficineiros. Este é o ponto de partida para a escrita. Mas os papéis e olhares se misturam, as impressões se complementam em um campo e outro, se contrapõem, querem contar o que viram, além do que lhes foi designado. Contemplada pelo Prêmio Procultura de Estímulo a Dança, Circo e Teatro 2010, entre Julho de 2012 e Fevereiro de 2013, a Cia Teatro Balagan rodou por sete cidades de seis estados diferentes – duas cidades do Sudeste (Belo Horizonte e São João Del Rey) e cinco capitais do Nordeste (Salvador, Aracajú, Maceió, João Pessoa e Natal) – para apresentar o espetáculo Prometheus – a tragédia do fogo, ministrar oficinas e realizar trocas com os grupos locais. Originalmente, visitaríamos três capitais e três cidades no interior em cada estado. Devido a intercorrências relativas às trocas das administrações municipais, ocorridas ao final de 2012 e início de 2013, tivemos que alterar o cronograma inicial. Esta dificuldade de produção deslocou as apresentações para as sedes de importantes Cias. – como o Bando Teatro Olodum (BA), o Grupo Imbuaça (SE), o Grupo Piollin (João Pessoa) e Clowns de Shakespeare (Natal). O que permitiu retomar uma experiência que marcou o processo de criação do espetáculo Prometheus – a troca com coletivos de artistas que desenvolvem um trabalho continuado. Exceto os Estados de Minas Gerais e Alagoas, as apresentações aconteceram em parcerias com outras instituições, como a Funarte – Belo Horizonte, o Festival de Inverno de São João del Rei e a unidade SESC Poço, em Maceió. Este Caderno Pedagógico é o relato dos atores da Cia Teatro Balagan a partir dessa experiência. Sobre (o) vento Vento que venta não venta Mar que urra não urra Se atrás de mim não vem gente, oh meu Deus! Quem é que tanto me empurra? Aprendemos essa canção no final da nossa viagem, em Natal, com o Grupo Clowns de Shakespeare que, por sua vez, aprendeu com o pessoal do Imbuaça, lá de Sergipe. Prometheus Brasil acima. Desde Belo Horizonte e São João del Rei, no inverno de 2012, até as cinco capitais do nordeste, que visitamos entre janeiro e fevereiro de 2013, no verão. Os espaços cada vez mais abertos, os ouvidos atentos, enquanto os olhos pareciam entender que, às vezes, é preciso repouso. E, sim, ventava muito. Mas, para um espetáculo que nasceu para a mobilidade, isso é tudo o que se deseja. No início, quando este espetáculo não tinha corpo (nem pés) uma das referências importantes foi a Teogonia, de Hesíodo, cujo início se dá com a evocação do ser-nome das Musas. A seguir, o poeta nos conta que elas, as Musas, “têm grande e divino o monte Hélicon”, fazendo uso de um verbo, ékhousin, que significa ao mesmo tempo “ter-ocupar-habitar” e “ter-manter-suster”. Como as Deusas o têm por habitação, elas o mantém na grandeza e sacralidade em que ele se mostra. É pela presença delas que ele, o monte Hélicon, se dá em sua presença imponente e sagrada*. É a presença da palavra numinosa do poeta, inspirado pelas Musas, que cria o próprio espaço. No início, quando este espetáculo não tinha corpo (nem asas), éramos movidos apenas por perguntas: como fazer com que nossa palavra seja ato? Como fazer com que nosso mélpomai que, para os gregos, significa ao mesmo tempo cantar e dançar, presentifique o mito? * TORRANO, JAA. Musas e Ser. Introdução à Teogonia – a Origem dos Deuses. Iluminuras, São Paulo, 2007, p. 22 Belo Horizonte MG De São Paulo para Belo Horizonte, a Cia segue viagem. Realizamos 3 apresentações no prédio da Funarte, antigos galpões que parecem outrora terem sido parte de uma estação ferroviária, em frente a Casa do Conde, na Rua Januária, 68, Floresta, durante a semana, de terça a quinta. Duas sessões de Workshop abertas aos interessados e troca artística com o Grupo Oficcina Multimédia. De 17 a 19 de julho de 2012, foram três dias de espetáculos reveladores para todos nós. Três dias de rever o trabalho que já havia cumprido temporada em São Paulo no ano anterior e no primeiro semestre de 2012. Era e foi a chance de adentar outras veredas, tanto geograficamente, quanto internamente, na própria obra. De cara a acústica do espaço surpreendeu a todos. Era preciso pouco esforço para se fazer ouvir. O espaço ressoava de maneira plena, inteira. E as dimensões espaciais para a disposição do espetáculo, da cenografia, acomodaram a obra onde pudemos vê-la nova, como primeira vez de novo. E como primeiro ponto da parada desta viagem, encontramos muita coisa, sobretudo espectadores quem vieram ao espetáculo como observadores, testemunhas de uma criação que nós ainda não conhecíamos e realizaríamos naquelas noites. montagem em Belo Horizonte o espetáculo De cimento pintado de preto, com limites bem definidos e a sobriedade que caracteriza claramente uma fronteira institucionalizada entre os “espaços de arte” e as pessoas. Com esforço e requerimento oficial, conseguimos fazer o furo na parede para levantar nossa cortina, sob a promessa de restaurarmos a pintura danificada quando fossemos embora. Nas três apresentações, algumas cadeiras vazias, onde repousavam nossas mentes de artistas inquietos: este espetáculo comunica, nós conseguimos nos comunicar? E, estranhamente, ainda que tudo ali favorecesse a acústica, pequenas partes desafinadas nos assustavam ainda mais. o encontro Encontro através da música Em BH quem nos recebeu foi o Grupo Oficcina Multimédia, dirigido por Ione Medeiros. Um grupo só com homens em cena e uma diretora. Eles fazem tudo, se dividem em todas as tarefas, da produção de vídeo ao preparar da comida. A troca com o Multimédia teve uma particularidade: mesmo sediados em estados diferentes, conseguimos realizar uma parte da troca em Minas e outra em São Paulo. Interessante notar que em Minas eles assistiriam Prometheus, em São Paulo, nós assistimos As últimas flores do jardim das cerejeiras. Nós fomos até a sede deles, trabalhamos com eles, eles cozinharam para nós na casa da Ione (e no dia do aniversário do Escandar, ator do Multimédia). Eles vieram para São Paulo, foram até a Casa Balagan, trabalharam com a gente, cozinhamos para eles. Eles nos mostraram como eles trabalham com o ritmo como base para a criação da cena, nos mostraram o treinamento básico até o Play it Again, que é um grande jogo rítmico – a partir da famosa frase do filme Casablanca. Eles tinham estruturado uma espécie de maratona musical, e eu vi muitas conexões com o como Prometheus foi estruturado. Nosso espetáculo tem forte ligação com a música, os instrumentos são objetos de cena, não são dissociados dela. Em Prometheus, como no jogo rítmico do Multimédia – existem muitas tarefas que os atores devem cumprir (brinco que tem transições musicais que devo fazer com dois instrumentos diferentes, com a voz e ainda em plena conexão com o Léo, que está fazendo a cena do Tífon, que a única coisa que dá tempo de pensar é “vai dar tempo de fazer tudo?”). Vejo os dois grupos com muitas semelhanças, que nos fazem completamente diferentes: das diretoras, das relações dos atores (ao detalhes que consegui reparar ao vê-los cozinhando), das pretensões artísticas, etc. atores da Balagan e Multimédia em encontro realizado em BH São João del Rei MG ensaio em São João del Rei De Belo Horizonte, para o interior, para a cidade histórica de São João del Rei. Lá as duas apresentações do espetáculo e a oficina foram programados em parceria com o 25o Inverno Cultural da UFSJ. Ficamos quatro dias na cidade e inauguramos uma sala de espetáculos da UFSJ. Na última apresentação o número de espectadores praticamente dobrou do que tínhamos previsto para o espaço, o que nos obrigou a concretizar o que antes, durante o processo criativo, tinha sido vislumbrado como uma possibilidade de ponto de vista do espectador: ver o espetáculo de cima, ter uma visão aérea, da planta do espaço cênico, como a águia que avista o titã preso ao Cáucaso, já que os espectadores excedentes assistiram a tragédia do fogo sentados no mezanino que circundava a sala. o espetáculo Prometheus inaugurou a sala de apresentações da UFSJ, ainda não plenamente finalizada. Já pintado de preto, não resta dúvidas de que o destino daquele espaço parece ser o de, em breve, “virar um teatro”. Mas agora, ainda nu, sem rotundas, sem mesmo as estruturas típicas de um teatro, era como se aquelas paredes ainda não soubessem ser paredes e, por isso, devolviam nosso canto com violência. Ali nossas palavras ressoavam forte demais, desmedidas e impertinentes. Com todos os lugares da platéia preenchidos, olhos nos olhos, bem abertos, com o tom de voz mais baixo, experimentamos mais uma vez a comunicação. Graças aos deuses, algo nos escapou para além dessa tentativa. E foi bonito. A presença do público modificou a acústica do espaço, e também a temperatura e, principalmente, alterou algo que não se pode nomear sem cair no domínio do invisível. Depois da apresentação, uma estudante de teatro da cidade veio nos dizer que aquele trabalho sintetizava com concretude tudo o que ela aprendia sobre teatro na teoria. Ela nos parecia movida pelo interesse do desconhecido. As características do espaço – gigante, ainda sem tratamento acústico finalizado –, nos assustou no ensaio geral. Este tem sido um dos aprendizados com o espetáculo, manter a mesma estrutura em espaços com dimensões muito diversas, e que exigem recursos técnicos – do ponto de vista da voz, da presença do ator, do jogo e da escuta entre o coro e com o público – muito diferenciados. Diminuindo o susto na primeira apresentação, percebemos que na segunda apresentação tínhamos encontrado a versão para aquele espaço, ainda que permanecesse o grande eco das vozes. A diversidade dos espectadores (alunos da Universidade, crianças, idosos, etc.) demonstrava que a população geral formava um público múltiplo que se reuniu para ver o trabalho, fruto também de um festival que tem uma longa tradição como o Inverno Cultural de São João. Para nós, a inauguração daquele espaço, diante da testemunha daquele público, mostrava-nos que nossa viagem implicava em algo mais do que deixar que a peça se faça a cada novo espaço visitado, como vínhamos querendo desde o início de sua criação. Era preciso deixar que os espaços se fizessem com a peça, retomando um princípio do teatro em sua origem, quando a imaginação colaborava com a arquitetura e, em grandes espaços abertos, inventava mundos. Salvador BA camarim do Teatro Vila Velha anotações de um ator Saímos de São Paulo no dia 16 de janeiro de 2012. Embarcamos no Aeroporto de Guarulhos rumo ao nordeste. O primeiro destino, desta segunda parte de nosso giro com Prometheus, é Salvador, Bahia. Somos treze pessoas. Duas com pânico de avião. A caravana é de quatorze, sendo que a diretora Maria Thaís já nos aguarda no aeroporto de Salvador. Chegamos. O motorista da van que faz o transfer é italiano. Aeroporto distante do hotel. Outdors das grandes figuras da cidade, Ivete Sangalo, Chiclete com Banana, Luiz Miranda, vários outdors. Aqui todo dia é carnaval, um dizia. Prédios modernos, favela. Prédios antigos, casarios, mar. Hotel Vila Velha. Reunião no saguão. Thaís nos localiza no mapa, cidade, percurso, teatros, praças, pontos imperdíveis. Dia de hoje. A noite, troca no Teatro Vila Velha com o Bando de Teatro Olodum. 18h. Amanhã, lavagem da escadaria do Bomfim, festa sagrada e profana. Quem tem fé vai a pé, dizem. 7,8 km. Concentração 7 e 30 da matina. Tênis, chapéu, água, pode-se também não ir a pé. Quem vai, pergunta Thaís? Eu vou. Almoço. Restaurante do Teatro Vila Velha. Sarapatel e salmão, café expresso. Ida para o teatro Vila Velha. Vista incrível do mar. Encontro com parte do Bando de Teatro Olodum. Oito pessoas. Contam como surgiram, se organizam. Querem saber o mesmo de nós. Têm curiosidade para saber da Lei de Fomento, de como funciona a Cooperativa Paulista de Teatro. Contamos de nossa experiência. No dia seguinte, houve a Caminhada do Bonfin. À noite, ensaio no Teatro Vila Velha. Espaço deveras grande, bem diferente de onde nos apresentamos pela última vez, na SP Escola de Teatro, em São Paulo, depois da viagem de Minas Gerais. No outro dia, já dia 18, terceiro dia em Salvador, no teatro, a arrumação, montagem do cenário e luz, corria a todo vapor. Ana, Natacha, Débora e Xella pintam papel craft para arrematar o chão do cenário que faltou. O teatro é muito grande, tentam acertar o tom das cores que são borrifadas no papel. Almoço no Teatro Castro Alves, café no Instituto Goethe, belo pátio. 16h no Teatro. Arrumar o camarim, tirar o figurino das malas, separar, passar. Preparação das argilas para a maquiagem, potes, tapeweres novos. Lanche, tem pãozinho, bolinho com massa macia e recheio de queijo, que é uma delícia. No teatro, Tom Campos tenta afinar um único instrumento, um pandeiro por mais de 2 horas, parece não conseguir. Maquiagem. Cabelos. 120 e poucos lugares, até 10 minutos antes, às 19:50 já havia mais de 100 pessoas. Descemos ao espaço cênico. A mãe da Thaís já estava, vestida de azul floreado de branco, no espaço, com uma bengala, linda. Os atores experimentam o espaço, a voz. Roda, silêncio. Skatá. Xella sai e vai encontrar os espectadores, dar os avisos, fazer o pré-prólogo. Um experimento que resolvemos fazer na circulação nordestina, em cada cidade. A cada apresentação um dos atores se reveza na função de receber o público, apresenta brevemente o enredo e os instrui sobre a maneira de se distribuírem no espaço. Volta. Começamos. Espaço grande. As vozes precisam ir longe. Parece dar para ouvir as vozes, cada uma isoladamente. É necessário mais energia, força, expansão da ação no espaço. O pé direito é bem alto e a dimensão da grandeza do universo parece mais presente. Na cena dois, salto, e o craft improvisado que completa o chão rasga, caio. Tudo é grande no espaço. Apresentação grande. Ao fim os atores comentam que gostaram, outros que os espetáculo caiu do meio pra frente. Depois, outros ainda, que na dança do fogo estendi o tempo e fiz um pouco maior. Alguns espectadores cumprimentam. Uma espectadora vem dizer que o espetáculo é muito lindo, se refere também aos instrumentos, a música. É um comentário meio silencioso. Outra espectadora que já tinha visto o trabalho duas vezes em São Paulo, volta pela terceira vez e traz a família toda. Ela estava de férias aqui. Disse que queria mostrar ao pai que teatro não é só comédia, que em São Paulo se faz outros tipos de teatro, que dá para viver de teatro. Ela disse que é fã do espetáculo e que a família gostou muito. No final agradecemos a todos, ao Teatro Vila Velha e ao Bando de Teatro Olodum, parceiros que nos receberam aqui. Dedicamos o espetáculo a Maria Thaís, pela primeira vez que estamos apresentando na Bahia, sua terra natal. Soube da morte do Walmor Chagas, triste. Pra ele este Prometheus de hoje. Na segunda apresentação, dia 19, alguns integrantes do Gantois, um dos mais importantes terreiros de Salvador, vieram assistir ao trabalho. o espetáculo Quando os atores ali entraram, com as luzes da peça já preparadas, não se podia identificar com certeza as cores da parede. Azuis, roxas, cinzas, vermelhas? Concreto ostensivo, altura dividida em três longos níveis, mas com uma beleza tal que era como se fosse feito de algo além do real. Nós ali não éramos os primeiros a entrarmos, ao contrário. Como um teatro verdadeiramente deve ser, mais do que concreto compunha aquela estrutura, uma amálgama feito de histórias de muitas pessoas, grupos, a história de um Bando. Que Prometheus narraríamos ali? No primeiro ensaio, a voz era pouca para o tamanho farto das paredes, e pedíamos aos deuses um pouco mais de corpo, um pouco mais de força para falar e cantar. Mas Manoel de Barros murmuraria baixinho, em nossos pensamentos: “o esplendor da manhã não se abre com facas!” E, enquanto o ensaio acontecia, era como se o espaço resistisse à macular seu silêncio. Quem sabe se nossas vozes estrangeiras não devessem ter permanecido, ali, por uma ou duas horas antes, quietas apenas, em atitude de escuta, à espera de permissão para existirem? Um dia antes da estreia em Salvador, fomos embora preocupados, nossas vozes abatidas apresentação em Salvador pela imensidão. Na noite da primeira apresentação, ainda no prólogo, com as cortinas fechadas, enquanto o público é convidado a entrar, as vozes dos atores águias lembram que não são apenas uma e, com um corpo feito de muitos corpos juntos, encostamse umas nas outras e se roçam. Lançadas as três primeiras águias para a primeira cena do espetáculo, volta o perigo do desejo de comunicação e, com ele, a busca pelo melhor jeito de dizer, a preocupação com o alcance da voz. A garganta fica comprimida, os músculos tensos, as pausas esvaziadas. Aos poucos, o próprio espaço nos lembra que, em um rito, a comunicação não é interpessoal e o entendimento tampouco é dado pela construção racional ou direta do discurso. Era preciso abandonar a ideia de que somos os emissores dessa canção. Na verdade, é ela que nos embalava. o encontro Encontro entre bandos Em Tauromaquia, espetáculo da Cia Teatro Balagan, há uma cena onde os vaqueiros, em sua travessia, encontram com um bando de cangaceiros. Dois planos de ação acontecem: um silencioso, de estudo respeitoso e de certa forma temerário, entre esses dois grupos; o outro eram as narrativas suscitadas pelo encontro. Encontrar com o Bando de Teatro Olodum me fez lembrar dessa cena. Nós, os vaqueiros, em viagem cruzando uma terra nova para o grupo (apesar de alguns de seus integrantes conheceram Salvador, essa foi a nossa primeira passagem por terras baianas), deparando-nos com os cangaceiros – que até bando trazem no nome. O silêncio do encontro foram nossas conversas, trocas de experiências, modos de produção, desejos e história. O ‘monólogo’ interior que me suscitou foi o das resistências e lutas que escolhemos para nosso percurso artístico. O do Bando de Teatro, ao que me pareceu, foi o de ser um grupo de teatro com raízes na cultura negra, de origem popular, com atores vindos das comunidades e querendo dar voz à essas comunidades e, talvez, transformá-las. Nós, com atores vindos em sua maioria de cursos superiores de Artes Cênicas, de diferentes partes do país, buscando modos diversos de se fazer teatro, que não estejam fundados no que se pode dizer ‘senso comum’ da medida do teatro. Vale lembrar que o grupo, em sua configuração atual, juntou-se para realizar uma pesquisa sem o objetivo final de construção de um espetáculo e com o tema daquilo que é inumano e mais-humano e que poderia servir de matéria para o teatro. O que sempre me chamou mais a atenção nesses encontros com grupos de teatro, que a Balagan realiza desde o processo de criação de Prometheus – a tragédia do fogo, é como as trocas revelam as coexistências de pensamento e modos de feitura do teatro. Nessa viagem, essa característica revelou ainda uma outra face: pessoas de partes diversas do país, com formações diferentes, separadas por milhares de quilômetros de distância se aproximam pelo modo de pensar, fazer e querer teatro. Obviamente, as formas como se criam esses teatros são bastante diversas. encontro entre Balagan e Bando de Teatro Olodum Balagan no Gantois último dia em Salvador, visita ao Gantois* 20 de janeiro de 2012, dia 05, Salvador, Bahia. Visita ao Gantois, um dos primeiros terreiros do Brasil. Mãe Menininha, Mãe Estela, Mãe Carmem. Espera. Tom Campos, bailarino, músico, entra pelos fundos, nós pela frente. Lá ele toma banho para poder entrar, ele é filho de santo. Uma Filha de Santo nos recebe silenciosa de branco. Entramos no salão, piso de madeira, vemos fotos, quadros de Mãe Menininha, Estela e suas ancestrais. Na sala a cadeira de mãe Carmem. Uma imagem grande de São Jorge, a imagem é antiga, diz, a casa é de Oxóssi. Mas a casa estava toda dourada, enfeitada da última festa de Oxum. Também no canto esquerdo, fundo para quem entra, uma grande imagem de Oxum, tamanho de uma pessoa, foi presente de um artista plástico. O teto é forrado com bandeirolas brancas, recortes retos, não como as de São João. São como se fossem tiras. É forrado de forma que não vemos o teto. Olho para o alto e tenho a sensação do teto, do céu parecer de penas, algodão, grande forro macio, é muito bonito. Na sala os lugares para homens e mulheres são divididos. Homens a direita, onde também estão os tambores, e mulheres a esquerda, no sentido de quem entra. Silêncio. 2 O encontro da Cia com a casa do Gantois. Passamos anos estudando, dançando as danças dos orixás, nos perguntando sobre as origens, onde era essa casa. Ao fim sintetizamos no espetáculo a figura de Iroco, com a águia, depois de ter internalizada outras. Ir ao Gantois, na primeira vez que a Cia vai a Bahia e ver o que só se imaginava, é encontro e troca. Chegar lá e ver Iroco plantado no Chão, a árvore, é ação marcante neste percurso de pesquisa e transformação da obra artística. Nos movimentarmos até lá depois desse tempo todo é de nosso interesse, é nossa pesquisa em movimento. Uma ou outra pergunta de alguém da Cia que interrompe o silêncio. A Filha de Santo responde breve. Parece que não tem muito o que se perguntar. Pra que saber o que que é o quê ali naquele momento. Silêncio. Ela nos convida a ir para fora. Passamos por um corredor e vemos uma foto antiga do Gantois. Outra de Mãe Menininha, preta e branca, como as da sala, dizendo do grande período que ela comandou a casa. Lá fora, o pé de Iroco gigante, é Iroco, a casa de Iroco, o assentamento de Iroco, que é uma árvore e uma ave. Um orixá. Sua dança, seu ato, fonte de inspiração na composição das águias do espetáculo. Em volta dele pratos de louça, utensílios, vasos de barro, penas de galinha grudadas em volta de todo o tronco na parte baixa, provavelmente oferendas. A Filha de Santo recolhe alguns pratos. Em volta do tronco da árvore um grande pano branco em volta. Também tem assentamento alí Omolu, a casa é vermelha e tem palha. O assentamento de Oxóssi é uma pequena floresta, uma mata cercada na casa. No portão diversas carcaças de boi. Para Oxóssi é realizada a festa da cabeça de boi. No espaço entre as casas, os assentamentos, algumas placas dos governos locais, reconhecendo o Gantois como importante na luta pela manutenção e reconhecimento do candomblé na Bahia. Descendo uma escada que recorta a pequena mata, ou resquício do que um dia pode ter sido uma mata maior está a fonte de Oxum. Nossa anfitriã descreve que antes a água era retirada em outro lugar, iam caminhando com balde e retiravam na fonte e traziam para a casa. Lá encima também, esqueci de mencionar, tem o assentamento de Oxalá. Um quadrado, meio caixa onde só as arestas de madeira são visíveis, todo branco, com uma pomba de barro, também branca no canto. Do lado um pé de algodão. Outros orixás tem assentamentos dentro da casa. retornamos a casa e vemos a distância, pois não é permitida a entrada de estranhos, os quartos onde os filhos de santo se preparam. A casa está aberta para nos receber na festas que acontecem em maio, junho, agosto, setembro e uma última em novembro ou dezembro, nos diz. Do Gantois para o Pelourinho, procurar uma imagem de Omolu. Almoço, enganados no almoço... uma isca de peixe que não veio quase nada. Elevador Lacerda. Mercado modelo fechado. Hotel. Notícia de que Natacha Dias foi assaltada, levaram o celular. Teatro. Café. Preparação, último dia. Indicação da Thaís para ensaiar o prólogo, as vozes ainda com a dimensão pequena do espaço anterior onde fizemos a última temporada, na SP Escola de Teatro, Sede Roosevelt. As palavras estão mal articuladas. Fizemos imagens filmadas aéreas do espetáculo. Espetáculo com altos e baixos. Parece que em alguns momentos as cenas voltavam para uma intimidade, pequeno, outras alçavam voo. Uma espectadora sai e volta. Deve ter ido beber água. 75 espectadores. Desmontagem. Carregar cenário. Pensar em como transportar, de uma cidade para outra, o figurino ainda úmido de suor. Não há tempo para secar. Entre uma cidade e outra, uma desmontagem e a próxima, o tempo é restrito. Pedras usadas como instrumentos musicais, que quebraram, jogadas fora. Aracajú SE 21 de janeiro de 2012, sexto dia de viagem, rumo a Aracajú, Sergipe. Saída as 07h40. Na estrada, de Salvador a Aracajú, casas de pau a pique. Jumentos amarrados em tocos, postes, paus. Parque de vaquejada, ainda estamos na Bahia. O que filmar, o que registrar, falamos eu, Nat, Deb e Xella. Divisa da Bahia com Sergipe, deixe Sergipe surpreender você, na placa de entrada. Mais adiante, uma pequena cidade, vilarejo, eu não sei, com casas todas pequenas, iguais pintadas com cores que variam de verde, laranja, amarelo, rosa, praticamente todas com antenas parabólicas. Depois passamos por Itaporanga D’ajuda. Chegada em Sergipe, 13h34, Hotel Jangadeiro. Nosso anfitrião, em Aracajú, foi o Grupo Imbuaça, em sua sede no bairro Santo Antonio. Dois dias de apresentação, num calor infernal. Casa cheia os dois dias, público mais que atento, muitos jovens, curiosíssimos. o espetáculo figurinos do Prometheus na sede do Imbuaça Nesse ritmo seguimos e, em Aracajú, vimo-nos em condição oposta à anterior. As paredes coloridas, bem próximas, com algumas janelas de vidro, compõem um território pequeno e que evidencia tudo. Mudam as nossas perguntas: como um local tão pequeno poderá conter esse mito de gigantes? Como podemos, aqui, não ser maior do que o próprio mito? Sem termos tido tempo pra ensaiar, o primeiro dia é mais difícil. Para nossa surpresa, as portas são mantidas abertas, para que a brisa possa entrar e amenizar o calor da sala, lotada de gente. No segundo dia, já podíamos ouvir o vento. Não que ele não estivesse antes, mas era tão sutil que nos exigia poros abertos para ser percebido, algum silêncio para ser ouvido. O silêncio e o vento fizeram parte da composição da nossa música, naquele dia. Se já não há necessidade do esforço na voz, enfrentamos o perigo de tornar a palavra cotidiana, social, humana demais. Enquanto os nossos corpos adaptam-se ao mínimo espaço que têm para se moverem, nossa imaginação deveria estar mais ativa do que nunca e a palavra deveria sair com uma precisão capaz de ultrapassar as apertadas barreiras de concreto. o encontro encontro Balagan e Imbuaça O meu diferente é meu igual, mas bem diferentes Sentados ao redor da mangueira plantada no quintal da casa ocupada pelo Grupo Imbuaça, os dois grupos puseramse a conversar sobre teatro, modos de produção, objetivos, história. O Gurpo Imbuaça existe a muito mais tempo que nós, com muito mais espetáculos realizados e um repertório significativo. Em uma trajetória de mais de trinta anos o Imbuaça cultivou uma prática profissional que é desconhecida por nós. No seu percurso a Balagan mudou o modo de produção, solidificou novas bases, recebeu novos integrantes e tem – pela primeira vez – duas peças em repertório, se apresentando ao mesmo tempo. Apesar das nossas diferenças, percebemos que um traço comum nas Cias que atuam no Brasil é o tempo de construção de um espetáculo. A idéia de processo, a atitude diante da criação difere totalmente da acepção de tempo do teatro de mercado (que, até pouco tempo utilizava os famosos três meses. Prática que vem, cada vez mais, sendo reduzida). Em nossos processo criativos um ano já é pouco. Prometheus foi feito e refeito desde 2009. Ainda hoje, mudamos coisas no espetáculo, de forma mais pontual, mas mudamos. Dedicamos três anos e meio, entre pesquisa e montagem, em Recusa – o outro espetáculo da Cia. O Imbuaça também dedica bastante tempo para suas montagens, e se ressente bastante das condições que necessita para o desenvolvimento de uma prática artística continuada. A principal diferença são os recursos, o apoio público que encontramos nas cidades onde os grupos estão alocados. O fato da Balagan ter sua sede em uma cidade como São Paulo permite o acesso, além dos aportes federais que também contempla o Imbuaça, a financiamento voltados para a pesquisa teatral no âmbito estadual e municipal*. No meio de uma fala de Lindolfo Amaral, ator e diretor do Imbuaça, encontramos uma singular semelhança: nas raízes dos nomes que batizam nossos grupos. O Imbuaça, homenagearam a um artista popular, o embolador Mané Imbuaça, tem em seu nome uma corruptela de briga, tumulto. Quando ouvimos a explicação, os sorrisos dos integrantes da Balagan se abriram, pois nos nomeamos a partir de uma palavra que existe em vários idiomas e que significa briga, tumulto, ou ainda teatro popular, de feira. * A Cia Teatro Balagan teve o projeto Do Inumano ao mais-Humano contemplado pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, em 2007-08. Este projeto não previa a criação de um espetáculo, mas se propunha a investigar temas específicos. Foi neste projeto onde plantamos as sementes de nossos dois espetáculos atuais: Prometheus – a tragédia do fogo e Recusa. Balagan atravessando o rio São Francisco Maceió AL 26 de janeiro de 2012, primeiro dia de Prometheus em Maceió. A montagem só pôde começar a ser feita neste dia. Tempo recorde. Chegamos no SESC Poço e tínhamos dúvida se tudo ficaria pronto para a apresentação. Surpreendi-me com o espaço montado dentro de uma quadra de esportes. Já existia um palco e foi construída uma extensão para ampliálo. Luz, cenário pendurados em box-trans. Sessenta lugares, conseguimos colocar mais seis pessoas, sessenta e seis. Mais de cinqüenta pessoas foram embora. Ventava muito, muito, no lugar. As cortinas esvoaçavam. Foi preciso contê-las segurando-as. Lembrei-me da fala de Epimeteu, há sempre o vento que pode um dia descobrir os meus restos! O vento deste dia inspirou. Segundo dia de espetáculo, primeiro de oficina. Mais ou menos trinta jovens artistas apareceram na oficina. À noite, no espetáculo, mais espectadores do que a lotação comportava, alguns voltaram para ver de novo, trouxeram outros. Apresentação intensa. Música altíssima lá fora, na rua, carro de som talvez?, no prólogo, nas primeiras cenas. Difícil. Mas, aos poucos, tudo se ajeitou. No terceiro, e último dia de espetáculo e oficina, ampliamos para sessenta e oito cadeiras. Mas tínhamos oitenta pessoas na lista de espera; quinze foram embora, as outras sessenta e cinco pessoas se acomodaram em pé, atrás dos espectadores sentados e assistiram desta forma o espetáculo! Um dia de muita procura! Gente da Universidade, muita gente da escola técnica e muitos espectadores voltando pela segunda, terceira vez. Bela apresentação. Dias especiais para Prometheus em Maceió. Espectadores mais do que atentos, curiosos, respeitosos. Algumas crianças, uma quantidade considerável de senhores e senhoras na platéia. Um público espontâneo. Neste dia ventou menos. o espetáculo Em Maceió, apresentamos no SESC Poço, em um palco elevado que ficava dentro de uma grande quadra de esportes semi-aberta. Desta vez, mesmo com a interferência dos sons prometéicos da rua ao lado, buzinas, ônibus, neste palco sem fronteiras de concreto, neste nosso deserto, podia-se ouvir o som da poeira levantada pelo vento e, junto disso, a história do irmão esquecido nunca fora tão visível, tão audível. No primeiro dia de apresentação, novamente sem termos tido tempo para ensaio, a ventania parecia brincar com as nossas vozes. Lutávamos para manter a direção do som das palavras emitidas. Mesmo que agora tentássemos um tipo de comunicação diferente, menos direta, em muitos momentos ainda éramos reféns de um esforço que parecia querer dominar a amplidão daquela quadra. Além disso, as cortinas balançavam e alteravam continuamente a configuração espacial de cada uma das cenas, o que nos obrigava a ajustar a movimentação conforme a intensidade dos ventos. No segundo e no terceiro dias de apresentações, devido à superlotação de público, logo no início da primeira cena constituíram-se dois tipos de platéia. A primeira, conforme o habitual, colocou-se nas cadeiras dispostas na arena e em frente a elas; a segunda, formou-se do lado de fora do palco, nas arquibancadas da quadra de esportes. Assim, duas relações simultâneas, uma baseada na proximidade e outra na distância, caracterizaram essa primeira cena. Já a partir da segunda cena, os que estavam do lado de fora aproximaram-se, formaram, ao redor da arena, uma parede de pessoas em pé. Essa mudança alterou consideravelmente as condições do espaço e a qualidade das vozes. A circulação de ar tomava a todos, atores e público, e criava uma ambiência comum, feita de corpos concretos e de muitas outras coisas que não saberíamos descrever. O público não só não se incomodava com o olhar direto dos atores, como aconteceu em muitas apresentações desta peça no sudeste, como parecia desejá-lo. Em alguns momentos, naquelas duas últimas apresentações em Maceió, alguns espectadores fechavam os olhos para ouvir, embora claramente mantivessem a atenção presente àquele espaço erguido pelo mito narrado. acontecido do mpletamente na cena Perdi-me no texto co u o sei o que ho ve. nã s, co an br 3 2, ns fogo. Tive u daquelas palavras as m gu al vi ou i, le fa a Também ndo. Palavra encarnad ta cu es a nh ti a nc nu como do o que nunca tinha acha ela o nd ce re pa se o m co o ali naquela confusã seu sentido antes, e forço investido em es e nd ra G r. ga lu u com achava se espectadores, fazer os m co r ta es ar alcanç não se desliguem, e s na ce as m ha en que eles se at o e fazer um pacto nd gu se da ca a es el do olhar para m comigo. Dia forte ja te es e qu ra pa so es silencio o de que as questõ çã ep rc pe a e lo cu espetá São grandes, profundas. o sã a at tr e el e qu de ando alma humana, que qu a, elas temas arraigados na lcão de urgênci vu o m co m pe m ro ir , de emergem luladas. A quadra on u r se m de po só e pedem nha um certo eco e ti z, vo a va ia pl am , re apresentamos evidenciava. Me ocor se a os di an gr o sã mais essa dimen do o espetáculo fica ade an qu , or en m la sa ld que em ção tem grande dificu ta es if an m ta es ta is intim izar este espetáculo al ci pa Es r. re or oc de ito importante. adequadamente é mu o encontro A matéria de que somos feitos Maceió foi a última cidade a ter a programação fechada. Ao contrário das outras cidades, não tínhamos uma sede de grupo na qual iríamos nos apresentar. Nessa viagem, percebemos depois, estávamos refazendo longe de casa, o processo que fizemos ao criar essa versão de Prometheus que temos agora. Visitamos as sedes de grupos de pesquisa em São Paulo, íamos construindo aos poucos os vários textos, testando versões, ouvindo impressões e avançando em nossas indagações. O espetáculo era (e ainda é) nosso objeto de investigação. Agora novamente visitávamos grupos, conhecíamos gente de teatro e realizávamos trocas a partir dos trabalhos e do encontro com outros grupos. Mas em outro lugar. Em Maceió, apesar da ausência de um grupo para nos acolher, tivemos a sensação que a cidade nos acolheu. A troca foi disseminada: com professores e alunos da universidade, professores e alunos de outros cursos de teatro (como os de Paripoeira), com pessoas que freqüentam o SESC Poço e chegavam com suas famílias, com aqueles que viram uma reportagem na televisão e correram para ver, com os que ficaram após o último dia de espetáculo para a conversa com a Maria Thaís, na quadra do SESC Poço – onde apresentamos. Essa conversa gerou uma situação interessante. Nos estudos primordiais da construção do espetáculo, realizamos alguns estudos a partir de O Banquete, um dos diálogos de Platão. Esse texto começa com a narrativa de Apolodoro, sobre um conhecido que o tentou alcançar para pedir que este lhe narrasse o diálogo que acontecera entre Sócrates, Alcebíades entre outros. Durante a conversa com Maria Thaís acontecia algo parecido, como eram muitos, e o espaço grande demais, alguns contavam para os outros o que estava sendo falado e, durante o seu relato, aproveitavam para relembrar passagens do espetáculo, discutindo os temas, o mito, etc. Esse dinâmica revelava um aspecto da matéria que Prometheus é feito. Assim, nestes dias em Maceió, pude ter uma outra dimensão do que era narrar uma história, de como algo que me afeta afetará também o outro e principalmente, que narrar algo é manter vivo uma história*. * J.A.A. Torrano afirma em seu estudo sobre a Teogonia “Desde sempre e ainda hoje – e creio que será assim sempre – o maior encanto da poesia reside no poder de instaurar uma realidade própria a ela, de iluminar um mundo que sem ela não existiria.” (Teogonia – a origem dos deuses, p.20.) João Pessoa PB foto: Rafael Mendes Projeto Captura.me 30 de janeiro de 2012, saímos de Maceió rumo a João Pessoa às 7h50 da manhã. Cinqüenta minutos de atraso do ônibus. Primeira cidade de Pernambuco, Xexéu. Passamos sobre o Riacho Santo Antônio. Na estrada, cana, cana, canade-açúcar. Uma usina soltando fumaça pela chaminé-torre e uma igreja antiga alta, ao lado. Vamos passando por cidades em construção, muita construção, novos prédios, cidades novas sendo construídas, sendo ampliadas. O contraste é grande entre o que se ergue agora, e o que se ergueu antes, numa cidade antiga, por exemplo as que estamos passando pelo nordeste, seus centros históricos. As construções novas são caixas, feias, desordenadas, sem planejamento, desarmônicas, sem linguagem. Faz o que quer, quem quer, a feiura que quer. Placa que aponta Recife, João Pessoa, Natal, cruzamos o rio Pavão. Recife, entramos, favela, favela, favela. Chegamos em Jampa (João Pessoa), como dizem. Encontramos o Grupo Piollin, que nos acolhia, encontramos o grupo Oxente de Teatro, de quem assistimos o espetáculo Anáguas; tudo na sede do Grupo Piollin, lugar belíssimo, antiga Casa Grande e Engenho. No engenho desativado onde se produzia derivados da cana, fizemos três apresentações de Prometheus. O espaço era um grande galpão cavado há uns três metros na terra. Dois dias de oficinas no mesmo lugar. Ao fim do segundo dia de espetáculo, 02 de fevereiro, dia de Iemanjá, fomos todos tirar a maquiagem no mar. o espetáculo foto: Rafael Mendes Projeto Captura.me Agora uma grande construção, entranhada no chão de terra, sustentada por cimento, grades, e imensas pedras expostas. Tudo isso coberto por telhas e madeiras antigas. Aquilo que um dia foi um engenho, espaço de fabricação de rapadura e aguardente, preserva ainda, encoberta, uma grande fornalha. Foi ali, no Centro Cultural Piollin, o lugar onde fizemos a quarta parada desse trajeto de Prometheus pelo nordeste. Vizinhos do zoológico da cidade, a noite guardava o silêncio dos bichos e podíamos, vez em quando, ouvir o rugir do leão. Sentíamos como que resguardados pelo cheiro e pela umidade da terra, como se nossa peça fosse de fato acontecer na clareira de uma floresta, feito um ritual primitivo. Essas sensações foram mais fortes do que qualquer preocupação técnica, sabíamos que a acústica do lugar era boa, que o tamanho era mais do que suficientes mas, de algum jeito, a caminhada até ali vinha nos ensinando a prestar atenção em qualidades mais sutis de cada espaço. Enquanto o público descia as escadas que levavam ao espaço, víamos passarem apenas os seus pés, pelas grades vazadas da janela. Ao abrir a cortina, os rostos. Olhares de novo interessados; um dos integrantes do grupo que nos acolhia, depois, diria que se sentiu, como espectador, conduzido para algo que ele sabia que não era uma experiência comum. Mas a sensação que tínhamos era a de que o público adentrava sem esforço em cada passagem da peça, como se tudo aquilo lhes fosse natural: o sabor da oralidade, o prazer da escuta, a dimensão de uma teatralidade que, provavelmente, ainda não foi sufocada pela realidade da vida cotidiana urbana. No último dia de apresentação em João Pessoa, inesperadamente, as luzes se apagaram no exato momento em que Epimeteu, rastejante, era atropelado pelo galope de Prometeu. Enquanto a cena principal do espetáculo começava no escuro, e os cantos continuavam, alguém acendeu a luz do aparelho celular. Do outro lado, alguém fez o mesmo. E, pouco a pouco, até reacenderem as luzes do teatro, os contornos visíveis das figuras daquele mito só existiram pela ação do público. o encontro Balagan e Oxente Oxente! Elas não faziam isso – teatro – a 25 anos? O Grupo Piollin nos recebeu em seu maravilhoso espaço de trabalho, mas a troca aconteceu com o Grupo Oxente! Os dois grupos faziam parte de uma mostra organizada pelo Projeto de Teatro Piollin (http://piollingrupodeteatro. com/projetoteatropiollin/), que reuniu espetáculos de vários grupos do nordeste e que contemplava a troca artísticas entre grupos que dividiam, a cada mês, a programação. Fomos o único grupo do Sudeste. Esse encontro foi o que mais se assemelhou ao que fizemos no projeto O Trágico e o Animal, processo que culminou na atual versão de Prometheus, na medida em que pudemos realizar um conjunto de atividades e espaços de convívio: assistir os espetáculos, trabalhar de forma prática ora coordenado por um outro integrante dos grupos, as conversas e, principalmente, o intenso convívio diário. Assistir o espetáculo Anáguas, a partir do texto da dramaturga paraibana Lourdes Ramalho, foi a primeira atividade que fizemos. Três atrizes maduras, mais velhas que a maioria das atrizes e atores das cias. que costumamos encontrar (pois estas se compõe normalmente de pessoas na faixa de trinta anos) compunham o elenco da peça. Eram três mulheres a lançar palavras no ar, disparandoas como flechas (essa imagem é muito recorrente, nas indicações que os atores da Balagan recebem). Saímos todos com a impressão de estarmos entre pares. Entre viajantes que trilham paisagens e caminhos análogos. O dia seguinte foi dedicado ao encontro prático e as conversas a partir das trajetórias dos grupos. Temas, encontro prático entre Balgan e Oxente procedimentos, interesses comuns, as formas tradicionais, os trupés de dança, a palavra, a narrativa, a dramaturgia de D. Lourdes se fazendo conhecer – para muitos de nós, que desconhecíamos – etc. Enfim, fomos encontrando as pontes. Os dias que se seguiram tínhamos a cada dia a presença dos integrantes do grupo Oxente no nosso espetáculo, e o convívio foi aprofundando a troca – de materiais, de referências, de situações que poderíamos ter nos encontrado, etc. Estávamos em marcha, em algum ponto cruzaríamos. Só faltou cozinharmos juntos para completar as experiências que costumamos realizada com outros grupos na cidade de São Paulo. E nas conversas vamos nos aproximando das histórias de vida, de vidas que se separaram do fazer teatral por vinte e cinco anos e que retornavam ali, com aquele espetáculo, depois que “os filhos já podiam comer um pão com ovo por conta própria”. Mas a força daquelas mulheres, o poder de suas palavras quando ditas em cena, ou mesmo em nossa roda de conversa, eram admirados por nós. E o espetáculo o reencontro com o fazer teatral. Em algum momento, Maria Thaís nos lembrou uma hipótese interessante: as atrizes se afastaram do fazer teatral, mas as suas vidas são carregadas de teatralidade – o entorno onde vivem, as tradições que estão vivas, o tempo que neste estado parecia tão sob o domínio dos que vivem. Natal RN público na apresentação em Natal 04 de fevereiro de 2012, de João Pessoa, Paraíba, saímos as 9h30 em direção a Natal. Passamos por Mamanguape, rio Tinto. Chegamos em Natal, onde encerramos nossa circulação pelo litoral nordestino. Neste mesmo dia encontramos o Grupo Clowns de Shakespeare, que haviam acabado de estrear Hamlet, sob a direção do nosso querido amigo e mestre Márcio Aurélio. A visita técnica – deu inicio a montagem do espetáculo no Barracão Clowns, sede da Cia. As nossas apresentações só foram possíveis porque eles interromperam a temporada do Hamlet para uma viagem ao Uruguai com outro espetáculo. Assim, só tínhamos aquele dia pra realizar um encontro entre os grupos. Enquanto acontecia no Barracão Clowns a montagem de luz e cenário de Prometheus, nos encontramos para a conversa entre os dois grupos na sala do laboratório de Iluminação e Cenografia do Departamento de Artes Cênicas da UFRGN. Nos dias seguintes fizemos duas apresentações no Barracão. Na primeira delas, completamos uma centena de vezes que a Balagan entrou em cena para narrar o mito do ladrão do fogo e seu irmão esquecido desde sua estreia em maio de 2010 em Adamantina, interior de São Paulo. Viva! o espetáculo No final da nossa viagem, com as duas últimas apresentações na sede do grupo Clowns de Shakespeare, retornamos a um espaço com as características de uma “caixa preta”. Ali, a diretora, Maria Thaís, pergunta a uma atriz: porque a sua voz não ressoa quando fala, só quando canta? Novamente a atriz busca solução nos problemas técnicos, apoio, força, relaxamento, dicção. Propõe-se então a um desafio, que será o de fincar os pés no chão bem forte, enraizar o peso com solidez naquele espaço para que dali possa nascer uma árvore, com ramificações voltadas para todos os sentidos ao mesmo tempo. Talvez faltasse perceber que, nesse espaço criado pelo mito, o ator é uma pilastra importante, que une e que faz o trânsito entre céu e terra. Para isso, sem pensar nisso, era preciso expandir o corpo-passagem, soar, ressoar, atuar como o vento, evoluindo por todo o espaço, não apenas o que ocupa com seu corpo, não apenas o que imanta com suas presença. É preciso aprender a se deixar decantar por cada vão de cimento, entrar e sair da vista do público com a naturalidade do ar que se respira, misturar-se aos outros corpos, esquecer-se de si. Finalizada essa viagem, tendo chegado ao ponto programado, o horizonte se afasta e nos sugere novos pontos de partida para prolongar essa caminhada. o encontro Clowns de Shakespeare e Balagan Sentados à mesma mesa Se em João Pessoa faltou o encontro gastronômico, em Natal o encontro com os integrantes do Clowns de Shakespeare foi ao redor de uma mesa. Entre ações simples, o levantar para pegar a comida, dizer, o de criar a grande roda, o comer, o ouvir. Comendo, conversando. O grupo, na tensão dos dias posteriores à estreia e no preparo das malas para a primeira viagem internacional; destino – Montevidéu, com Sua Incelença, Ricardo III, com direção de Gabriel Vilella. Prometheus é um espetáculo que nasceu na estrada. Mesmo a primeira versão do espetáculo – onde os muros eram estruturas de metal, e não cortinas, tivemos nossa primeira apresentação à 590km de nossa sede. Em Natal, estávamos à 2.900km. O mais longe, até então, que levamos nosso espetáculo. Os Clowns estão oitenta por cento do ano na estrada. Como isso influencia nas relações de produção? Como isso define a continuidade da pesquisa? Como se treina? O que se treina? Como se ensaia, quando? Quanto tempo dura o processo? Como a Balagan treina? A Balagan treina? Os Clowns treinam? Quem viaja oitenta por cento do tempo, faz outra coisa da vida? Viaja e, ao mesmo tempo, mantêm um espaço de apresentação? De quem é a Cia? Da Maria Thaís? As perguntas eram muitas, e muitas outras teriam surgido caso o tempo ao redor da mesa fosse mais extenso. Perguntas sem respostas, perguntas respondidas com outras perguntas, sob o olhar atendo de um pequeno grupo de alunos da Universidade. Ao final, um presente, cada grupo “dá” ao outro um canto. E o encontro finaliza com música. Passamos uma canção nossa, mas que veio da Grécia e que chamamos de Dirladadá e recebemos uma canção deles, e que veio do Grupo Imbuaça, de Aracajú – espaço onde já tínhamos passado. Os cantos, para nós, são chamados, quem os escuta? oficinas Oficina em Belo Horizonte No espaço da Funarte em BH, realizamos dois dias de encontro com um grupo composto em sua maioria por atores e bailarinos. O primeiro dia, conduzido por Antonio Salvador e Gustavo Xella abordou os princípios do movimento da Biomecânica e o étude “Atirando uma Pedra” composto pelo encenador russo V. Meierhold e seus colaboradores, e que é um material importante no treinamento da Cia. O outro material de trabalho foi a primeira estrofe do coro das Oceaninas, do texto Prometeu Cadeeiro, em grego arcaico. Partimos do mesmo material e procedimentos que usamos durante o processo de pesquisa, na etapa que nomeamos Prometheus Nostos – um espetáculo-protótipo. No segundo dia, Gisele Petty e Tom Campos trabalharam a partir de um canto do Orisá Ògún e dos elementos do pé de dança do mesmo Orisá. O trabalho, tem uma dupla abordagem, técnico – com o intuito de mover as articulações e envolvendo o corpo todo, e poético – a partir dos elementos que compõem o vocabulário da dança, que forma o Ato dos Orisá. O trabalho explorou ainda os Atos de Ògún, Osoosê, Omolu e Oya. Antes de viajar para a segunda parte de nosso projeto, visitando algumas capitais do nordeste brasileiro, encontramonos em nossa sede para discutir o que havia acontecido em Minas Gerais. Esse foi um procedimento recorrente durante a construção de Prometheus – a tragédia do fogo. Sempre após apresentarmos em uma sede de companhia de teatro que nos havia acolhido, e onde apresentávamos as diferentes etapas da nossa construção, voltávamos para a Casa Balagan e conversávamos sobre as experiências ocorridas até então. Isso era decisivo para os rumos que a criação tomava. Percebemos que as experiências propostas em Minas Gerais ainda estavam ligadas ao projeto da ação de Formação do Olhar para o Teatro*, que tinha como pressuposto a aproximação do público com os elementos que compõe o espetáculo Prometheus – a tragédia do fogo, compartilhando outras vias e ferramentas de leitura, que não apenas as que se revelam ao assistir à peça. * O projeto Formação do Olhar para o Teatro estava presente na pesquisa Do Inumano ao mais-Humano, e tinha por objetivo abordar a relação do espectador com as várias matérias teatrais. O Formação surgiu de questionamentos levantados pela experiência de montagem de Západ – A Tragédia do Poder (2006-07) e teve parte importante na construção da primeira versão do espetáculo, Prometheus Nostos – um espetáculoprotótipo. Oficina em Aracaju Porém, as oficinas de Belo Horizonte e de São João del Rei comprovaram a dificuldade de realizar o Formação no formato proposto no projeto original e fizeram com que mudássemos a abordagem das oficinas. Em primeiro lugar a organização do programa em cada cidade nem sempre permitia que todos os participantes da oficina tivessem assistido ao espetáculo. Assim, as relações ficavam evidentes para alguns e para outros não. Um outro aspecto fundamental foi o perfil dos inscritos, majoritariamente artistas e estudantes de teatro que buscavam na oficina um contato direto com as fontes nas quais a Balagan bebe para a construção de suas peças. Alguns procedimentos que até então não faziam parte das oficinas, começaram a figurar no ‘programa’. Um exemplo disso era a Maratona. A Maratona, é exercício transmitido para os intergrantes da Cia Teatro Balagan pelo pedagogo russo Yuri Alchisz e é uma analogia à cena. Este exercício é baseado em composições de velocidade e tarefas dadas aos participantes que vão se tornando mais complexas quanto mais se faz a Maratona. Durante nossas conversas para estruturar a viagem pelo nordeste, havia sido combinado uma presença maior da Maratona nas oficinas. Outro ponto que se modificou foi a forma de conduzir os encontros. Em todos os lugares visitados, as oficinas foram compostas por dois encontros. Até Salvador, havia um revezamento entre os integrantes da Cia de quem conduziria a oficina. Se no primeiro dia foi Antonio e Xella a conduzir, no segundo seria a Gisele e o Tom – como em BH, por exemplo. Isso se alterou, e a partir de Aracaju, as duplas eram mantidas também no segundo dia. Isso se dava para aprimorar o contato com os participantes das oficinas. Percebemos que essa mudança constante causava certa confusão em todos, inclusive os atores que deveriam conduzir, principalmente o segundo dia. Apesar de desenvolvermos uma linguagem comum, a alternância entre condutores da oficina deixava de proporcionar uma abordagem mais aprofundada Oficina em Maceió Oficina em Natal dos materiais que apresentávamos. Para mim, foi importante essa mudança, inclusive para poder olhar as matérias sobre as quais nos debruçamos de uma outra forma. Mesmo que meu interesse maior seja a Biomecânica e seus princípios expressivos, foi com as oficinas que eu pude vislumbrar pontos interessantes de conexão entre a Maratona e a Biomecânica. Essas oficinas modificaram meu olhar sobre o Núcleo O Corpo Grotesco, que coordeno na Casa Balagan**. Essas relações, apontadas nas oficinas ocorridas no nordeste, estão agora sendo exploradas melhor com os integrantes do Núcleo. Para os participantes das oficinas também era possível ver uma maior aproximação com os materiais ali propostos. Penso que principalmente pela manutenção do olhar de quem conduz, da avaliação e discussão do que acontecera no primeiro dia de encontro e na possiblidade de novas realizações com o material abordado. De modo indireto, as inteções pretendidas com a oficina nos moldes do Formação do Olhar ainda se mantinham. A presença da Maratona nas oficinas não fez com que elementos das danças dos Orixás fossem abandonados. No decorrer da turnê introduzimos uma ficha de inscrição em que o participante respondia algumas perguntas e indicava o seu interesse na oficina. As respostas dos inscritos em Maceió demonstravam que tinham se informado sobre o material de pesquisa de Prometheus e que a dança dos Orixás tinha despertado um interesse particular. E ainda era reservado, ao fim das oficinas, um período de conversa sobre questões surgidas tanto sobre os encontros quanto sobre o espetáculo – para quem o tinha assistido. A independência da oficina em relação ao Prometheus deu a oportunidade dos participantes de conhecer a Balagan não só pela sua vertente do que apresentamos em cena, mas também puderam explorar a forma como pensamos e estudamos a cena. **O Núcleo O Corpo Grotesco era parte dos núcleos Os Corpos do Teatro, integrantes do projeto RECUSA e PROMETHEUS: uma simetria invertida. Neles, alguns atores da Cia se propuseram experiências pedagógicas de matérias que fazem parte das pesquisas recorrentes sobre o corpo em cena na Balagan. Os Núcleos eram: Mover, entre a dança e o teatro, O corpo ancestral na experiência do Ato e Butoh – corpos múltiplos. O Núcleo O Corpo Grotesco ainda se reúne semanalmente na Casa Balagan, dando continuidade aos estudos realizados entre 2011 e 2012. Sobre (o) vento Ao final dessa jornada que percorreu sete cidades, completaram-se cento e uma apresentações de Prometheus – a tragédia do fogo. Mais de uma centena de vezes nossos corpos de atores materializaram o invisível vôo da águia sobre este deserto, cumprindo seu rito, em memória dos deuses. Todas as noites, enquanto a ave, cansada, repete a condenação que lhe foi imposta, nós costumamos nos perguntar se alguém pode, de fato, ouvir o seu eterno grito de saudades. Ela sabe que deve sempre morrer com a quarta flecha mas nós, atores e público, sabemos sentir o ranger dessa sua dor-palavra em nosso peito? Da raiz sânscrita mu surgem duas palavras, μyθος (mythos) e mudo, o que nos levou a especular que o mito narrado deveria guardar, em si, um silêncio intraduzível, capaz de atingir o ser humano universal. Esta peça foi, portanto, feita como uma prece, com palavras mudas e gestos invisíveis. E desde o início intuíamos que poderia acontecer em qualquer lugar, desde que ali soubéssemos criar um templo. Primeiramente, construímos um muro moldável, que se dobrava e se refazia, com estruturas largas que se impunham como limites sólidos no espaço, na primeira versão do espetáculo em 2010, quando ainda o chamávamos de Prometheus Nostos – um espetáculo-protótipo. Depois o substituímos por uma cortina, que sabia cortar os espaços sem bases fixas, que sabia desaparecer, que respira quando vem a brisa e que é fina o suficiente para revelar as sombras das coisas que acontecem (e sempre acontecem) em seu avesso.