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A
vida é perto
Pe r f i s d e q u e m
passa na calçada
P a r a n á ,
2 0 1 5
A vida é perto - Perfis de celebridades da sua calçada
Copyright © 2015 by Editora Gazeta do Povo
Fun d ad ores
Benjamin Lins
Oscar Joseph de Plácido e Silva
Vice p reside nte
Ana Amélia Cunha Pereira Filizola
Guilherme Döring Cunha Pereira
Mariano Lemanski
Diret or p resi d e nte
Francisco Cunha Pereira Filho
( 1 9 6 2 -2 0 0 9 )
Diret or p resi d e nte
Edmundo Lemanski
( 2 0 0 9 -2 0 1 0 )
Diret or d e Re d a ç ã o
Leonardo Mendes Júnior
C hefes de
Eduardo Aguiar
Audrey Possebom
R e d a ç ã o
Ed it or executi vo
Lyn Jannuzzi
pa r a
Ed it or executi vo
Marcos Tavares
d e
I m a ge m
Ed it or executi vo
André Gonçalves
d e
V i d a
Ed it or de
Alexandre Mazzo
Di gi ta i s/ I n t e r n e t
e
Ci d a da n ia
Fotogr a fi a
Ed it or de Ví d e o
Thiago André Costa
Organ izaç ão
José Carlos Fernandes e Marisa Bononi Valério
P rojet o gráfi c o
Lucio Barbeiro
e
d i a gr a m a ç ã o
A u t ores
Camille Bropp; Carolina Grando; Cristiano Castilho; Flávia Schiochet; Diego Antonelli; Diego Ribeiro;
Fernanda Trisotto; Felippe Aníbal; Francisco Marés; Joana Neitsch; Jocelaine Santos; José Carlos Fernandes;
Katia Brembatti; Katna Baran; Luan Galani; Rafael Waltrick.
Fot ografia
Albari Rosa; Alexandre Mazzo; Brunno Covello; Daniel Castellano; Henry Milléo;
Hugo Harada; Jonathan Campos; Marcelo Andrade.
Dados internacionais de catalogação na publicação
Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira
A vida é perto : perfis de quem passa na calçada [livro eletrônico]. –
organização: José Carlos Fernandes. - Curitiba, PR :
Gazeta do Povo, 2015.
----Kb ; --ePUB
ISBN 978-85-63221-05-6
1. Paraná – Biografia. 2. Jornalismo – Paraná. I. Fernandes,
José Carlos.
CDD ( 22ª ed.)
920.098162
Prazer em
conhecê-lo
Índice
6
Goura Nataraj
10
Claudia Silvano
20
Rafael Pussoli
28
Christiane Yared
38
Vânia Mara Welte
46
Paulo Venturelli
56
Araci Asinelli da Luz
66
Paulo Salamuni
76
Frei Pedro Brondani
88
Álvaro da Silva
98
Padre Reginaldo Manzotti 106
A p r e s e n t a ç ã o
A t e n t o s
P o t e n t e s
P r e s e n t e s
I n t e i r o s
José Kalkbrenner Filho 116
Edla Van Steen 124
Lélio Sotto Maior Júnior 132
I l u m i n a d o s
Key Imaguire Junior 140
Paulo Pimentel 150
Tato Taborda 158
E l e i t o s
René Dotti 166
Mossa Bildner 176
Wanderley e Isadora Greca 184
A m a n t e s
Sueli Cortiano 192
Newton da Costa 202
Helen Muralha 210
E t e r n o s
“ A
v i d a
é
p e r t o
Perfis de celebridades da sua calçada
”*
ascer leva tempo”, diz um personagem do escritor e compositor Vitor Ramil no livro Satolep. Bem sabemos. A gente
nasce no dia de aniversário, mas depois tem de pular fogueiras, apanhar chuva,
chorar os mortos, nascendo uma, duas, três vezes..., sempre com a impressão
de que ainda falta muito para nascer. É uma trabalheira. ¶ Ninguém perguntou
aos 24 personagens da Série Perfil 2015 da Gazeta do Povo quanto tempo eles
demoraram para encontrar seu lugar nessas terras largas. Mas eles se adiantaram, contando como se tornaram quem são. Via de regra, quase nos fazem
cair da cadeira. ¶ Algumas histórias se repetem. Ninguém, por exemplo, chegou
sozinho à curva, “aquela”, que faz tudo ser diferente. Ninguém chegou sem ter
de dar braçadas, como um dia sugeriu o poeta Paulo Leminski: “Pra que cara
feia? Na vida ninguém paga meia”. Outras são o avesso do avesso, meio romance, meio épico, tragédia com comédia, vale risada com uma lágrima de bônus.
Reações bipolares, vidas binárias, contradições quais rotações por minuto, não
tem remédio – rendem perfis. ¶ De modo que só nos resta uma alternativa logo
que sabemos dessas biografias – sair e contar para Deus e todo mundo as dores
e delícias da vida alheia. Perfis são elegantes fofocas sobre gente que nasceu
6 Série Perfil
a duras penas. ¶ Esta é a graça. Helen, Jorge, Chris, Mossa, Sueli, Rafael, Claudia, Edla, Lélio, Kalk, Álvaro, Eleonora e Wanderley, René, Vânia, Reginaldo, Key,
Newton, Araci, Tato, Pedro e os Paulos – o Salamuni, o Pimentel e o Venturelli
podem ser nosso espelho, mas também ser o que nunca seremos, pois é da regra do jogo. Perto e longe, diferentes e parecidos, impressiona o caminho torto
e o tempo demorado que uma pessoa incrível leva para nascer. Saber deles, vai
ver, deve ser um jeito de a gente estar pronto para se dar à luz. ¶ Se escrever
sobre gente nascida e crescida exige fôlego, fotografar, então, sai da frente. Tem
de cruzar oceanos até descobrir o melhor ângulo, aquele lugar especial em que
figura se rende, a conversa boba que faz os seus olhos arregalarem. A tarefa
coube a oito fotógrafos que só faltou se mudarem para a casa dos perfilados –
Alexandre Mazzo, Marcelo Andrade, Daniel Castellano, Brunno Covello, Henry
Milléo, Hugo Harada, Albari Rosa e Jonathan Campos. ¶ O que realizaram aqui
é um clássico do jornalismo – foto e conversa de gente, com tudo que a tarefa
exige. Se um bom papo vale uma vida, um bom retrato, seguido de um perfil
bem temperado, vale a eternidade.
José Carlos Fernandes, jornalista.
* Frase atribuída a Millôr Fernandes
Série Perfil 7
Atentos
G o u r a
N a t a r a j
10
C l a u d i a
S i l v a n o
R a f a e l
P u s s o l i
20
28
Goura Nataraj
Jorge Brand nasceu em 1979 em Curitiba.
Recebeu o nome Goura Nataraj em um batismo Hare Krishna quando tinha 18 anos e
foi à Índia. Passou a adolescência imerso
na contracultura – além da filosofia vaishnava, Goura fez parte do movimento straight edge e de bandas de hard core, como
The Family e Adjustment. No terceiro ano
do ensino fundamental, faltava aula para
prestar serviço devocional no templo no
bairro do Cabral. Graduou-se em Filosofia
pela Universidade Federal do Paraná e estudou Arthur Schopenhauer em mestrado
pela mesma instituição. Aos 24 anos entrou
para o coletivo Interlux, formado por jovens
artistas como Rimon Guimarães, André
Mendes e Celestino Dimas, entre outros.
Na mesma época, voltou de sua segunda
temporada na Índia e começou a dar aula
de hatha yoga. ¶ No final de 2005, o Interlux
organiza a primeira bicicletada, que daria o
tom do que os anos seguintes trariam. Em
2007, o coletivo pinta a primeira ciclofaixa
pirata na Rua Augusto Stresser e três dos
rapazes são multados por crime ambiental,
Goura entre eles. No mesmo ano, instituem
setembro como o mês da bicicleta e quatro
anos depois criam a associação de ciclistas
Cicloiguaçu, da qual Goura foi coordenador
geral por duas gestões. ¶ No ano passado,
Curitiba recebeu a terceira edição do Fórum
Mundial da Bicicleta, que dá a partida para
a construção em mutirão da Praça de Bolso
do Ciclista, bem no meio da cidade. Em paralelo, Goura se lançou candidato federal pelo
Partido Verde e recebeu 13 mil votos. Não foi
eleito, mas a campanha fez “o cara das bicicletas” ficar (mais) conhecido pela cidade.
Em fevereiro de 2015, entrou para a equipe
da Coordenação de Mobilidade Urbana da
Secretaria Municipal de Trânsito.
10 Série Perfil
Série Perfil 11
Goura Nataraj
Um iogue contestador em ação
Flávia Schiochet, com foto de Brunno Covello
o início da tarde da segunda-feira de carnaval, um rapaz louro com a juba presa em coque aguarda
em frente a um pequeno hotel na cidade catarinense de São Bento do
Sul. Ele havia intermediado uma entrevista coletiva com Ian Anderson, o fundador da banda de rock progressivo Jethro Tull. O flautista
e vocalista arrastou uma legião de fãs para ver seu show no norte catarinense e se apresentaria naquela noite. O rapaz aproveitava seu intervalo para conversar com conhecidos e tomar um ar. Uma mulher
para ao seu lado e dispara, empolgada, sem escolher um interlocutor:
“Pre-ci-so de uma foto com ele. Será que dá? Minha filha é fã”. Ninguém entendeu. Perguntei, apontando para o Goura: “Com ele ou
com o Ian?”. A surpresa: “Com o Goura. Minha filha adora ele. Votou nele, anda de bicicleta pra todo canto, é vegana… Nossa, ela vai
ficar muito feliz”. A foto foi clicada em um smartphone. Nela, Goura
aparece com um semblante sério, sem o quase-sorriso que sempre o
acompanha, vestindo uma camiseta azul da Cicloiguaçu.
“Ainda tô digerindo isso”, confessa, quando perguntam sobre
sua vida pós-candidatura a deputado federal. Goura concorreu ao
cargo durante as eleições do ano passado pelo Partido Verde. Conquistou simpatizantes pelas ruas e pelas redes sociais, mas não chegou a Brasília. Foi o candidato das pautas ditas alternativas: era “o
cara das bicicletas”, do parto humanizado, da reocupação do espaço
público pelas pessoas; representava, enfim, um discurso que destoa
do politiquês corriqueiro. Alguns dos adesivos amarelos e pretos que
replicam placas de trânsito resistem à ação do tempo pelo centro de
Curitiba, nas magrelas de eleitores e também em sua caixa de correio.
Cada abordagem de um desconhecido é uma enzima catalisadora em seu processo de digestão. Nada pelo qual ele não passe em
12 Série Perfil
logradouros do qual é habitué: na primeira quadra da Rua São Francisco, próximo à Praça de Bolso do Ciclista, cumprimentam-no a
cada dois paralelepípedos. Se hoje tem tantos admiradores é porque
a campanha o expôs a pessoas que não conheciam seu trabalho como
cicloativista. “Acho que tudo [que fazemos] é ação política, mas você
nunca dá tanto a cara a tapa quanto em campanha. Isso cria uma imagem pública que eu não tinha, é até um pouco estranho. Pessoas que
eu não conheço vêm me cumprimentar. Falam: ‘eu votei em você’.
Tento lidar de uma forma legal com isso, mas vai demorar pra cair a
ficha”. A superfície de contato só cresce.
0
Jorge Brand está batendo expediente. Entra às 8h e sai às 18h; tem
um computador, uma mesa e um ramal. Vai ao trabalho pedalando
uma bicicleta celeste, de capacete da mesma cor. Nas saídas a campo,
veste um colete cinza com faixas reflexivas da Secretaria Municipal
de Trânsito por cima da camisa; uniforme e um pouco de burocracia
agora fazem parte de sua rotina. “Você concorreu a deputado federal,
fez 13 mil votos, tem um trabalho superimportante... e teve a humildade de aceitar o colete e virar guardinha de trânsito”, arriscou um
amigo. Jorge, o Goura, riu: “Teve um vereador que falou assim: ‘Pô,
que legal que você aceitou. Não sei se isso é bom eleitoralmente para
você’. Ele quis dizer que de certa forma estou me restringindo, como
se estivesse me comprometendo por trabalhar na gestão do PDT”,
explanou. Para ele, a palavra deveria ser outra: agindo.
Independentemente de onde estiver, que cargo ocupar ou que
atividade desempenhar, Goura não espera resultados positivos ou
Série Perfil 13
Goura Nataraj
negativos pelo que faz. É uma das influências mais flagrantes do ioga
em sua vida – e também da época em que era devoto Hare Krishna
como manda o figurino: de vestes açafronadas e o indefectível tufo de
cabelo na cabeça raspada. Hoje, de barba e cabelos longos, a filosofia
e devoção ao Deus azul permanece em sua forma de ver o mundo. Em
2013, Goura lançou um pequeno livro de ensaios em que relaciona o
ioga e a filosofia vaishnava a assuntos que lhe são caros, como bicicleta, urbanismo em escala humana e vegetarianismo.
Ao futuro, à divindade ou ao acaso (a escolha é do leitor) caberia o resultado do que fazemos. “Eu encarei a campanha como uma
intervenção, algo que não se tinha controle absoluto do que resultaria. Conseguimos intervir no meio político de uma forma criativa, relevante e sem ficar nos jargões”, avalia. Com um orçamento que mal
chegava aos R$ 20 mil, a estratégia de divulgação de sua candidatura
guarda semelhanças com o método punk de realizar as coisas: do it
yourself, no muque. Uma das formas que encontraram para divulgá-la assomava pela Rua São Francisco até poucas semanas atrás: um
retângulo de compensado amarelo com Goura pensativo pintado em
estêncil.
Foi pela “SanFra”, aliás, que ele passou a maior parte de 2014:
plantando, cavando buracos, bebericando chopes ou de olho nas filhas enquanto elas brincavam em montes de areia da pré-Praça de
Bolso do Ciclista. Goura esteve tão presente naquela quadra que,
quando chegou a época das eleições, houve quem julgasse que ele
estava tentando se promover em cima de um trabalho coletivo. Sua
presença criou nódulos de mal-estar em alguns pontos da rede de colaboradores. Ele dispensa pouca energia aos críticos e foca no que é
preciso fazer. “Às vezes as pessoas falam merda… dane-se. Se estão
falando, a coisa está reverberando e esse é o espírito”.
Em março foi a Medellín, na Colômbia, como convidado para
a quarta edição do Fórum Mundial da Bicicleta. Contou sobre o case
da pracinha da Rua São Francisco, construída por incontáveis mãos
durante os fins de semana entre fevereiro e setembro. Quando confirmou a participação, era coordenador geral da associação de ciclistas Cicloiguaçu. Quando embarcou no voo, funcionário da prefeitura
14 Série Perfil
de Curitiba. Dois meses antes da viagem, Goura recebeu uma ligação da titular da Secretaria Municipal de Trânsito, Luiza Simonelli,
convidando-o a assumir a assessoria da Coordenação de Mobilidade
Urbana. Não respondeu na hora. Meditou sobre a questão por dias
a fio e ao final, pesando as prováveis lambadas que levaria da opinião
pública, aceitou. “O que mais pesou foi a vontade de agir. Não estou
lá dentro para fazer joguinhos.”
Jorge se torna Goura
Em seu cartão de visita lê-se “Goura (Jorge Brand) – Coordenação de
Mobilidade Urbana”. O nome em sânscrito ele ganhou aos 18 anos,
quando foi à Índia pela primeira vez. Acompanhou 30 monges Hare
Krishna em uma excursão que durou um mês. Participou da cerimônia três dias antes de voltar para casa. Teve que pagar uma ligação
internacional – muito mais cara, naquela época – e pedir que a mãe
intermediasse o pedido para o presidente do templo da Sociedade
Internacional para a Consciência de Krishna (ISKCON). Autorização dada, recebeu o novo nome, que suplantou o de batismo – Goura
é um dos nomes de Krishna, Nataraj, “rei dos dançarinos”. Ligaram-no para sempre a um nome divino e festivo. Foi resoluto na mudança. Entre os 16 e os 20 anos dedicou corpo, alma e mente ao estudo
da filosofia, à meditação, à venda de livros na rua e cortou “vícios
mundanos”, como prega a cartilha dos Hare.
Seu interesse pela filosofia hindu começou aos 16, quando
trombou com devotos em uma avenida de Nova Iorque durante férias em família. Havia uma abertura à religião: Jorge gostava de ouvir
a banda straight edge Youth of Today, liderada por Ray Cappo, que
virou devoto nos anos 1990 e criou o estilo Krishna-core com a banda Shelter. Dúvidas dançavam sobre a sua cabeça: por que o mundo
é do jeito que é? Não há outra maneira de fazer as coisas? Em um dos
passeios pela cidade, comprou uma biografia de Prabhupada, fundador da ISKCON, em um sebo e leu de cabo a rabo. Antes de voltar
ao Brasil, já havia parado de comer carne. Foi mais ou menos nesta
época que o rapaz virou o guidão e fez uma curva definitiva na vida.
Encontrou-se.
Série Perfil 15
Goura Nataraj
Ele já trepidava pelas vielas da adolescência, quando a busca
por um sentido é urgente. Enveredou-se pelo contrafluxo. Trazia em
si, desde o berço, a introspecção e uma natureza contemplativa que
lhe definem bem à primeira vista. Mas quem o conhece se incomoda
se o descrevem com a cabeça nas nuvens. Goura não é sempre zen,
tampouco um iogue otimista movido a filosofia barata. É, em certa
medida, um rapaz cuja ponderação, autocontrole e diplomacia fazem
queixos cair. Muitos o descrevem como uma pessoa iluminada, um
sábio da urbe que trabalha bem intermediando conflitos e opiniões
contrárias.
“Não sei se quero ter esse papel de conciliador. Eu quero simplesmente ser, agir. Compartilho de uma visão schopenhauriana: o
mundo é o caos. É violento, é feio, é horrível, na verdade. A gente
pode aumentar essa feiúra e os conflitos ou a gente pode ter um papel
de buscar sínteses e harmonizações”, resume. Por anos, sua postura foi de guerrilha: nos governos Ducci e Richa, chegava a ir à casa
dos políticos, não por convite, mas para cobrar mudanças na cidade,
construção de ciclovias, fazer barulho, enfim.
Durante a campanha de 2012, a Cicloiguaçu entregou aos candidatos à prefeitura uma carta compromisso pedindo aos postulantes
que incluíssem em suas planos de governo para tornar Curitiba uma
cidade mais amigável para os ciclistas. Quando Gustavo Fruet, do
PDT, foi eleito, pedalou na companhia de Goura e outros ciclistas
até o Palácio 29 de Março para ser empossado. Para alguns, a relação que se construiu entre Fruet e Goura foi uma pequena decepção,
como se o cicloativista tivesse anestesiado sua veia crítica ao apoiá-lo
e se relacionar de maneira mais institucional com o executivo em vez
de manifestações nas ruas.
A sua bússola, no entanto, aponta para a mesma direção há 20
anos. Uma inquietude está sempre a lhe queimar o peito, mas agora
não se alivia mais com grito-no-microfone, como nos tempos de adolescente. “Depois da paternidade ele enraizou. As ações deixaram de
ser mais abstratas para concretizarem algo. Uma das primeiras foi
o Jardim de Sofia, que nasceu junto com a nossa primeira filha [em
2009, oficializado pela prefeitura em 2012]. Não era mais um grito,
16 Série Perfil
colar cartaz, essas coisas. Depois veio a Praça [de Bolso do Ciclista],
essas conversas todas com o poder público, a candidatura... e agora
ele está lá dentro”, relembra a esposa Elenice Guimarães, num tom
de voz baixo e sorridente. Ela também é uma figura admirada: terapeuta ayurvédica, integrante do coletivo Saia de Bici, ativista por
uma maternidade ativa e guardiã dos saberes sagrados femininos. Estão juntos há seis anos e além da bicicleta e do yoga, têm duas filhas:
Sofia, de 5, e Tulasi, de quase 3.
Independentemente das avaliações alheias de que seu modus
operandi evoluiu ou se descaracterizou, Goura continua sua busca
incessante por mudanças – coletivas, de preferência. Não há freios,
só equilibrío entre a teoria e a prática: o que lhe importa é estar em
movimento. Solucionando. Organizando. Goura é a personificação
do gerúndio. Ele descreve sua estratégia como a ação das raízes de
uma árvore: qualquer brecha é bem-vinda. Um avanço lento, insistente e inexorável conquista pequenas distâncias e então não há retrocesso que seja grande demais.
O Cabeção lidera
Foi um guri quieto, leitor dos livros que o pai, o jornalista Jaques
Brand, lhe presenteava, com a casa da mãe, a psiquiatra Margarida
Oliveira, sempre cheia dos colegas da escola. Não lhe faltam hoje
amigos que o conhecem desde “este tamanho aqui”, quando ele ainda era um menino rechonchudo que todos chamavam de Jorge. De
vocalista e guitarrista de bandas contestadoras a assessor da coordenadoria de mobilidade urbana da Setran, por onde ele passou teve
um protagonismo discreto, porém notável. Quando era adolescente,
chamavam-no de “Cabeção” pelo tamanho da cabeça e pela atividade
cerebral. Depois das bandas de hard core, veio o interesse pela desobediência civil por pessoas como o filósofo e pedagogo austríaco
Ivan Ilitch e no agricultor urbano brasileiro Claudio Oliver.
“O Jorge é uma pessoa muito cerebral. E ao mesmo tempo ele
tem uma luz diferente. Ele não é o cara que tem o dom de fazer; ele
é um bom idealizador de ideias. Ele as executa também, mas ele conSérie Perfil 17
Goura Nataraj
segue convencer as pessoas a fazerem as coisas acontecer, mas de um
jeito positivo. Ele paira por cima dessas coisas”, diz o primo Brunno
Covello, que o fotografou para este texto. A boa oratória é um empurrão para a liderança natural que Goura tem. “É um cara muito
claro ao se expressar e bem pragmático. Isso o coloca à frente [dos
movimentos, como a bicicletada], mas ele é comum, não é pedante,
não coloca as coisas de uma maneira inalcançável”, analisa Marcos
Hadlich, um dos responsáveis pela documentação em vídeo dos quatro dias do 3.º Fórum Mundial da Bicicleta, em fevereiro de 2014.
Goura estudou os estoicos na graduação. Fez mestrado em
Schopenhauer. Cita Espinosa, Nietzsche, Sêneca em uma mesma
conversa. Sua erudição é de pasmar. Tem o dom de falar com quem
quer que seja sem alterar a voz, mas apresenta um cacoete quando
parece estar no limiar da impaciência: desloca o ombro esquerdo em
direção à orelha e fala olhando para os lados, sem completar as frases.
Mais desconfortável que isso é difícil flagrá-lo, mas há coisas que lhe
tiram do prumo. Um desses momentos raros foi durante a abertura
do Fórum, quando uma turma do Movimento Passe Livre se reuniu
para vaiar o prefeito, que comparecia à solenidade para demonstrar
simpatia à causa e interesse em discutir formas de tornar Curitiba
mais ciclável. Ninguém sabe como Goura desceu tão rápido do palco, venceu a distância até o grupo no meio de um mundaréu de gente
e deu de dedo nos agitadores.
É o lado menos popular dele, tanto que nenhum dos amigos
consegue descrever com precisão outro estado de espírito que não
seja a serenidade. “Para nós, o Goura sempre foi um iluminado, ele
tem um negócio…”, titubeia o amigo que o conhece desde o jardim de
infância. “As mulheres com quem convivi não pensam assim”, brincou “o iluminado”. Ele morou com duas namoradas antes de casar-se
com Elenice e a primeira filha nascer. Sofia e Tulasi são o grude do
pai, principalmente depois que ele assumiu o cargo na Setran.
Uma vez por mês Goura vai com a família para um sítio em
Anhangava, seu refúgio da vida em meio ao concreto. Em uma manhã
de sábado após o desjejum, as meninas chamam-no a cada dez minutos. Querem lhe mostrar uma folha, um inseto, tomar mais iogurte,
18 Série Perfil
arrancar picão da barra da calça do pai. Há quem diga que é preciso
uma paciência de Jó para aguentar sozinho o pique de duas crianças
soltas no mato e um pouco de austeridade, mas Goura se rende a alguns caprichos da mais nova com a mesma tranquilidade com que
passa um café. Sua fala é pausada e baixa; a paciência é outra lição do
ioga. Também esta é uma das características que o fazem um bom
orador e porta-voz, atributos desejáveis em um político. Brincando
com um guardanapo molhado enquanto bebe uma cerveja de trigo,
Goura examina as possibilidades que o futuro lhe reserva. “Quando
você faz 13 mil votos em uma eleição federal, tem toda uma pressão
para que se candidate a vereador. É um caminho bem possível, mas
eu quero ter a liberdade de chegar em 2016 e dizer… hum, não”.
Série Perfil 19
Claudia Silvano
A curitibana Claudia Silvano, 48 anos, se
formou em Pedagogia, em 1989. Anos depois, enveredou para o Direito, vindo a se
tornar coordenador do Procon Paraná. Seu
estilo cidadão, participativo, a tornou rosto
conhecido na cidade. Não se nega a dar entrevistas, uma de suas maneiras de mostrar
que não descuida da coisa pública. Nem
sair à rua, bater na porta de estabelecimentos que estejam ferindo o Código de Defesa
do Consumidor. ¶ A fama de negociadora
aguerrida vai além do público que faz filas
todas as manhãs na Rua Presidente Faria,
sede do Procon. Seu público interno, na
“repartição” também é beneficiado pelo
estilo aberto e divertido. A persona popular nem sempre dá a conhecer as agruras
da vida privada. Durante 12 anos, Claudia
cuidou paripassu da mãe, Paulina, morta
em 2011, e com quem passou parte da juventude às turras. Falar dela, hoje, é ir às
lágrimas. Paulina foi quem apresentou à
filha o primeiro emprego, aos 13 anos, em
uma loja de joias. Claudia fazia coisas pequenas de escritório – pagava contas, deixava a loja limpa, escovava o veludo azul
das gavetas do mostruário. Não é exagero
dizer que aprendeu ali a ética no atendimento ao público.
20 Série Perfil
Série Perfil 21
Claudia Silvano
E a Justiça se fez afeto....
Camille Bropp Cardoso, com foto de Alexandre Mazzo
e um dia alguém perguntasse
à advogada Claudia Francisca Silvano qual a pessoa mais bem vestida do mundo, ela diria: “Agostinho Carrara”. A mistura de estampas berrantes, que cobre o personagem do ator Pedro Cardoso em
A grande família, pode não agradar a todo mundo, “mas é alegre”,
argumenta ela. É essa a sensação que ela quer passar quando, antes
de sair de casa, às 7 da manhã, veste uma calça listrada e uma camisa
com botões coloridos – confeccionadas sob encomenda à costureira.
As roupas, feitas com base na sensação que as cores provocam,
são o pedaço da vida de Claudia em que pode exercitar a alegria. E
alegria é daquelas coisas que teriam o quilo tão caro neste mundo que
nem estão à venda. Assim como o amor e a justiça. São suas palavras-chave. Sim, a advogada é sorridente, piadista, daquelas figuras que
têm tiradas incríveis nas redes sociais e que reúnem muita gente a
sua volta. No íntimo, porém, pode-se dizer que, aos 48 anos, Claudia
valoriza alegria, amor e justiça porque sua história tem sido basicamente correr atrás desses três prêmios.
“Há duas Claudias: uma sempre alegre e carismática e outra
que já viveu e enfrentou muita coisa”, resume o advogado Rodrigo
Damasceno Ferreira, diretor da Escola de Gestão Pública, um dos
amigos mais próximos da advogada.
0
Enquanto está sentada em frente ao computador, em um gabinete
limitado por divisórias no Procon-PR, a diretora Claudia não se importa em ser interrompida. E o é, o tempo todo, seja pelo telefone
ou pelos funcionários. O prédio tem seis andares, dos quais os dois
22 Série Perfil
primeiros são para atender as pessoas. A partir do momento em que
cruzam a porta, elas assumem o posto de consumidores ou de uma
das “partes” de um processo administrativo.
O pequeno prédio na Rua Presidente Faria, numa quadra decadente, perto do Passeio Público, está sempre apinhado de gente – de
engravatados a gente de chinelo. As revistas nas salas de espera são
velhas e o ventilador às vezes quebra. Os atendimentos são corriqueiros mas, não raro, difíceis, como o da consumidora que comprou uma
geladeira a prazo. O eletrodoméstico estragou, a fábrica não consertou, e as parcelas deixaram de ser pagas. Esse exemplo mostra ser
possível alguém ter razão e, ao mesmo tempo, não ter. A justiça “é
uma moça atribulada”.
“Como ela [consumidora] quer uma nova geladeira se a que ela
tem ainda não é dela?”, rumina Claudia. Ainda assim, garante classificar a maioria dos problemas que chegam ao Procon-PR como de
“fácil solução”, tanto que nem deveriam estar lá. E não estariam caso
o diálogo das empresas com os clientes fosse mais transparente. Mas
reconhece: “A nossa matéria-prima é o pepino”. Nesse quesito, o
órgão tem ido bem. O Procon-PR hoje consegue resolver 86% dos
problemas que batem à sua porta.
Às vezes, no entanto, o pepino é colossal – e público. Um
exemplo é o caso da tarifa de transporte público na Região Metropolitana de Curitiba (RMC), uma incógnita depois que o “sistema
integrado” desintegrou, em janeiro. Em meio ao jogo de empurra
que dura até hoje com a prefeitura de Curitiba, a coordenação do
RMC (ligada ao governo do estado) havia definido uma data-limite para uso dos créditos já comprados por passageiros. Também
estabeleceu diferenciação de preço para a passagem embarcada e
Série Perfil 23
Claudia Silvano
a comprada com antecedência.
O Procon-PR e o Ministério Público intervieram no assunto,
contestando o prazo curto e a diferenciação. Diversas reuniões depois, o resultado: todos os usuários do transporte público passaram a
pagar o preço mais alto (R$ 3,30), mas tiveram prazo maior para usar
créditos antigos. “A saída era difícil, mas foi necessário ceder nisso
para que pudéssemos negociar o prazo que seria ainda mais prejudicial para os passageiros”, explica Claudia.
Quer trabalho mais difícil do que administrar uma bomba dessas?
Salvação
Contrariando qualquer resposta, Claudia demonstra um raro amor
em pertencer a uma instituição pública. Nada parece deixá-la mais
satisfeita do que rabiscar com a mão esquerda, no primeiro papel
ou guardanapo que surge na frente, um gráfico sobre como funciona um tal artigo do Código de Defesa do Consumidor. Ou mesmo
fazer a mala para pegar pela centésima vez o avião até Brasília, onde
são feitas periodicamente reuniões com cerca de 200 membros de
Procons estaduais e municipais na Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon).
“Adoro ir a Brasília. É onde encontro as pessoas da área. Sempre saímos juntos para conversar, é muito legal”, comenta ela. No
celular de Claudia, as conversas continuam: são grupos e mais grupos
para discutir Defesa do Consumidor pelo aplicativo Whatsapp. A
qualquer horário do dia, ela responde a dúvidas que nascem em Procons municipais, coisas como: “Se o cliente compra uma bermuda e,
ao se abaixar, a peça rasga, pode pedir reembolso da loja por defeito
de fabricação?”
Tanta dedicação fez com que fosse natural a nomeação, em
2011, para a coordenação do Procon – um cargo de confiança que costuma fazer parte dos “lotes” políticos do governo estadual. O nome
de Claudia surgiu com força para a então secretária de Justiça, Maria
Tereza Uille Gomes, “tanto no Paraná quanto fora do estado” – nas
palavras da própria Maria Tereza. E o mais impressionante no jogo
de poder: a secretária saiu do cargo em fevereiro e a coordenadora
24 Série Perfil
continuou, mesmo sem ter contatos políticos que a sustentem.
O Procon-PR hoje tem quadro de funcionários aquém do
necessário para a demanda de 80 mil atendimentos anuais. Complicado, desgastante e por vezes inglório, mesmo assim o trabalho
a salvou. A explicação está na história que ainda a faz chorar. Durante 12 anos, Claudia cuidou da mãe, Paulina Borovsky, que morreu em 2011, aos 80 anos. Mulher linha-dura, apesar de elegante
ex-negociante de joias, Paulina era do tipo que sempre pedia à
filha para se vestir melhor.
Ex-modelo, usava vestidos, peça que Claudia odeia tanto que
nem as tem. A relação entre as duas um tanto turbulenta. A mãe pedia laranja a um pé de maçã. Depois que sofreu o primeiro derrame,
porém, Paulina baixou a guarda e as duas se aproximaram como nunca ao longo de 12 anos. Criada apenas pela mãe, Claudia conheceu o
pai já adulta, e optou inclusive por ficar fora da partilha de bens após
a morte dele. “Não havia por quê. Eu mal o conhecia”.
Na época em que Paulina sofreu o primeiro derrame, em 1999,
a filha era técnica do Procon e estava no meio da graduação em Direito na UniCuritiba. A notícia da doença da mãe acendeu o extremo senso de responsabilidade de Claudia. Foi o que a levou a cogitar
trancar a faculdade. Quem a demoveu da ideia foi o professor Daniel
Ferreira, então coordenador do curso. Encontraram-se sem querer
nos corredores enquanto ela preparava o afastamento. Ao saber da
história, Ferreira tratou de sentar com Claudia em um café.
“Ela era uma aluna madura, participativa, e fazia a faculdade
por amor, não por imposição da família. Era o que realmente queria.
Expliquei que poderia conciliar as duas coisas, que a doença não precisava ser um peso tão grande”, conta o professor. Intimamente, Ferreira tinha um exemplo próprio em que se basear: o mal de Parkinson
do pai, que acompanhou até o fim, durante sete anos. “Só quem passa
por isso sabe o que é ver uma doença minando aos poucos um familiar”, afirma ele. Claudia se diz grata ao professor; e admite que se
esperasse 12 anos para retornar ao curso, nunca o faria.
Antes de morrer, Paulina estava cega e frágil “como uma criança”. A conversa entre as duas, então, era menos sobre exigências e
Série Perfil 25
Claudia Silvano
mais sobre passado e carinho. Essa troca lhe faz falta. “Ainda não
enterrei a minha mãe”. Paulina teve o corpo cremado e as cinzas jogadas no mar –contrariando a fé judaica de parte da família. Depois
que a mãe morreu, a advogada se pegava várias vezes adiando a hora
de ir para casa. Liberada do Procon, no fim da tarde, seguia para o
cursinho jurídico onde dava aulas e saía de lá perto da meia-noite.
Preparava aulas com antecedência de semanas. “Eu simplesmente
não sabia o que fazer com o tempo que agora estava livre”, conta.
Os amigos sentem em ver que Claudia muitas vezes traz para
si uma culpa que não tem, já que fez o que estava a seu alcance para
tornar melhor os últimos anos da mãe. “Ela só não fez pela mãe o que
não era possível. Gastou muito dinheiro e deu-lhe todo o seu tempo
vago. Foi uma filha maravilhosa”, avalia o técnico em Eletrônica Ivo
José Rockenback Filho, marido da fisioterapeuta de dona Paulina e
hoje um grande amigo de Claudia.
Bonança
Como a vida é tudo, menos coerente, também houve arco-íris durante a chuva. Em 2006, Claudia conheceu a mulher da sua vida. A
jornalista Ana Paula a procurou no Procon para resolver o caso de
um DVD player que parou de funcionar logo depois da compra. Nos
bastidores, um grupo de amigos em comum serviu de “cupido” para
a história. Claudia gostou da ideia de cara; Ana Paula ficou reticente
no início.
“Tinha acabado de perder meu pai… E não me agradou tanta
gente pressionando”, conta Ana. Em suma, Claudia teve que “camelar”. Ligava, jogava conversa fora, convidava para sair. Um dia, foram
ver Capote no cinema. “Um filme bem romântico”, ironiza Ana Paula. De lá, foram jantar. A história começou a fluir até chegar à tatuagem com um trecho de letra de Djavan, no braço de Claudia: “Vem
me fazer feliz porque eu te amo”.
As duas moram juntas desde 2009 e firmaram união estável em
2011. Claudia diz que não é de levantar bandeiras – apesar de estar
planejando tatuar um código de barras nas cores da bandeira GLS
na mão –, mas recomenda a casais homoafetivos oficializarem suas
26 Série Perfil
uniões, como forma de proteção jurídica. “Aconselhei o funcionário
da padaria que eu frequento que se casasse com o companheiro com
quem vivia há 25 anos e estava internado, com câncer. Eles fizeram.
Semanas depois que o homem morreu, batata: apareceram sobrinhos
no apartamento querendo tirar coisas de lá”.
0
Os altos e baixos dos últimos anos deixaram lições para Claudia. “Por essas e outras, não permito que ninguém mais me encha o
saco”, brinca. Deixa coisas bestas passarem, escolhe as batalhas que
valem a pena. Dentro do sobrado de três andares em que mora no
Cajuru, com Ana Paula, nada a atormenta. Lá estão as duas cachorras
– Cissa, uma vira-lata calma que só; e Rebeca, daschund que é pura
braveza. Claudia convive com poucos pertences da mãe – basicamente, dois. Um deles é a cômoda pequena com banco, que ea advogada
reformou para ficar colorida, azul e rosa. A outra é um quinteto de
matrioscas (bonequinhas russas que se encaixam dentro uma da outra) de madeira leve, pintada à mão. Claudia já foi de frequentar noitadas na juventude -- batia ponto na boate Época, popular nos anos
1980 e 1990. Hoje, exercita uma certa pacatez. O principal hobby,
além do artesanato, é ver séries de TV. É fã de Criminal Minds. Mas
está planejando viajar para os Estados Unidos – do exterior, a advogada conhece apenas a Argentina. “Tenho que ir, se não me separo”,
brinca. Sair do sossego, só se for para acompanhar Ana Paula.
Série Perfil 27
Rafael Pussoli
O engenheiro e intelectual cristão Rafael
Pussoli era ainda um menino quando
conheceu a Casa dos Pobres São João
Batista, no Rebouças, em Curitiba. Estava em companhia do pai, o empresário
Ricardo Pussoli. Foi uma experiência de
uma vez para sempre. O abrigo, fundado
por dom Manuel da Silveira D’Elboux, em
1954, sobreviveu a todos os avanços – e
modismos – do setor de caridade e assistência. Parte disso se deve a Rafael. Há
mais de 20 anos, recém-formado, ele foi
chamado a trabalhar no restauro do local, após um incêndio. Nascia ali o voluntário, com folga um dos mais perseverantes – e discretos– do setor. Hoje, a
Casa dos Pobres é modelo de atendimento aos desvalidos, sem perder de vista a
comunidade. Paralelamente às emergências de quem procura abrigo durante
tratamento médico, por exemplo, o São
João Batista oferece contraturno para crianças oriundas dos bolsões de pobreza
da região. E é modelo de criatividade e
acolhida no campo da ação social.
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Série Perfil 29
Rafael Pussoli
O devoto da Casa dos Pobres
Jocelaine Santos , com foto de Hugo Harada
ão logo se concluem as formalidades da apresentação, ele pergunta se podemos ir ao seu lugar preferido. Rapidamente percorremos corredores, damos voltas. Há degraus para subir e descer no labirinto que ele conhece de cor devido
aos anos de convivência. Por fim, chegamos. “Aqui é o coração da
Casa dos Pobres”, diz com ar de triunfo e me convida a entrar na capela que encima uma das mais antigas casas assistenciais de Curitiba.
Queria saber mais sobre Rafael Pussoli, engenheiro e empresário curitibano, mas logo percebo que o que mais ouvirei serão as
histórias daquele albergue localizado na esquina das ruas Piquiri e
Brasílio Itiberê, no Rebouças. E boa parte do que devo saber aprendo ao observar a capelinha branca e azul.
Assim como o restante da casa, tudo ali foi doado, da tinta que
cobre as paredes ao piso que sustenta os pés de quem ora ou apenas
passa. O ar final é meio antiquado, démodé. Tem-se a impressão de
uma viagem no tempo, talvez aos anos 60 ou 70, décadas que não
vivi. Tudo é modesto, sem luxo ou brilho, franciscano. Mas não há
austeridade. É um espaço acolhedor, que se abre da mesma maneira
aos empresários que lhe sustentam e aos doentes que buscam nele a
esperança perdida.
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Rafael Pussoli fala rápido – e muito. Mais de uma vez reconhece que
seu principal defeito é a língua, ágil para relatar as crônicas da própria
vida e as da Casa dos Pobres São João Batista, que, aliás, confundem-se a
todo instante. A boa memória permite desfiar com exatidão as inúmeras
datas envolvidas. Nascimentos, mortes, viagens, inaugurações. Nos pri30 Série Perfil
meiros 15 minutos de nossa conversa já me convenço de que será inútil
tentar registrar à mão tantos dados. Da próxima vez, trago um gravador.
Ele assumiu a presidência da Casa dos Pobres ainda na juventude, aos 20 e poucos anos. Havia acabado de se formar em Engenharia pela PUCPR, curso que quase abandonou por desgosto com
o ambiente acadêmico. Achava os professores arrogantes, mais interessados em se pavonear de seus títulos e dotes intelectuais do que
ensinar e formar os futuros profissionais. Foi convencido a ficar com
um argumento prático. Era o último ano do curso, que terminasse
Engenharia e depois partisse para outra área, Direito talvez. Ele convenceu-se. Formou-se no mesmo ano em que a mãe, Ziloah, concluiu
a graduação em Psicologia.
Numa tarde um senhor de rua bateu na nossa porta. Estava sujo
e maltrapilho. O pessoal não quis que ele entrasse, mas eu disse para
deixar. Ele veio, jantou, tomou banho. De manhã, havia morrido. Fiquei feliz por termos conseguido dar a ele, pelo menos no seu último
dia, algum conforto.
Desde criança Rafael conhecia a Casa dos Pobres das vezes em
que acompanhava o pai, Ricardo Pussoli. Mas era apenas uma visita
que vinha vez ou outra, sem promessa de voltar. No início da década
de 90, um incêndio transformou o que era um namoro sem compromisso em casamento. A casa foi destruída de tal forma que se pensou
em derrubar o que havia resistido ao fogo e fazer nova construção.
Só havia restado as paredes. Rafael, o engenheiro recém-formado, foi chamado para dar o veredicto. Em vez de lançar ao pó o que
restava, ele achou viável reconstruir o que havia se perdido. As paredes eram fortes, espessas e com fundações feitas para durar gerações.
A casa se refez. E Rafael fez dela também a sua casa.
Série Perfil 31
Rafael Pussoli
Pai herói
Não é preciso perguntar duas vezes quando se quer saber da maior
influência na vida de Pussoli. É o pai, Ricardo, fundador da construtora que leva o sobrenome da família e falecido em 2012. A epopeia
do patriarca narrada pelo filho é digna de filme. Vai da fuga de casa
ainda na adolescência, levando apenas um pedaço de pão – que acabou ficando tão duro que nem serviu para ser comido –, à criação de
uma das maiores empresas de engenharia do estado, responsável pela
pavimentação de inúmeras ruas e avenidas de Curitiba e região metropolitana. A Rodoferroviária de Curitiba é só uma das várias obras
públicas erguidas pelos Pussoli.
“Meu pai era um homem extraordinário”, começa a contar. Foi
com o pai, homem simples que mal passou pelos bancos da escola,
que diz ter aprendido as lições que transparecem no seu jeito de ser:
franqueza, simplicidade, fé. Foi com o pai também que aprendeu a
amar o ato de construir. “Meu pai dizia que adorava construir algo
onde não havia nada. Eu achava estranho fazer asfalto no meio do
mato. Para que se não tinha ninguém morando lá?”
Para o filho, o pai era um exemplo de um tipo de empresário
cada vez mais raro hoje em dia. Entregava as obras antes de terminar
o prazo, oferecia benefícios aos empregados, participava de obras de
caridade e não se deixava levar por extravagâncias. Só foi ter motorista particular depois dos 80 anos após muita insistência dos filhos. O
único luxo que teve foi a casa construída no Alto da XV em que criou
toda a família: a escadaria imitava a do casarão de E o Vento Levou...
O carola
“Você se considera um beato?”, provoco só para ver a reação dele.
Rafael não se abala. Sim, ele é um homem de fé, não há como negar. No escritório, quem entra pode ver vários santos: são padre Pio
de Pietrelcina, são Josemaria Escrivá, imagens de Nossa Senhora.
Nas missas, que participa não apenas aos domingos, mas também
durante a semana quando possível, busca não chamar a atenção.
“Quando mais discreto eu for, melhor, porque é só eu e Deus. Poucos vão entender.”
32 Série Perfil
Em 1998, teve uma das experiências mais significativas de sua
vida: uma conversa particular com são João Paulo II, em Roma. O
encontro foi intermediado pelo atual bispo auxiliar de Curitiba, dom
Rafael Biernaski, e acabou imortalizado em um retrato colocado em
lugar de honra no hall de entrada da Casa dos Pobres. “Quando eu saí
de lá comecei a chorar. Foi aí que fiz a promessa de que enquanto eu
viver trabalharei pela Casa dos Pobres.”
Ser visto com frequência em companhia do arcebispo emérito
de Curitiba, dom Pedro Fedalto, também alimenta a fama de homem
de igreja de Pussoli. O empresário acompanha o arcebispo em eventos, o consulta para resolver dilemas, mantém longas conversas com
o mestre. Se Pussoli estiver com dom Pedro Fedalto e disser que a
conversa vai durar só “uns minutinhos”, não se iluda: será pelo menos
uma hora de papo entre os dois.
A proximidade entre eles também é explicada pela Casa dos
Pobres. Dom Pedro acompanhou a história da instituição – estava
ao lado de dom Manuel da Silveira D’Elboux quando este a abençoou
durante a inauguração em 1954. Ele conhece todas as dificuldades
envolvidas em sua manutenção, que depende exclusivamente de recursos vindos de pessoas e empresas. “Rafael Pussoli é um teimoso”,
brinca. No entender do arcebispo, apenas a teimosia – mas uma teimosia boa, diga-se – explicaria tamanha dedicação a uma obra, que,
por não “dar lucro” já foi desprezada muitas vezes.
Os pobres
Após tantos anos à frente da Casa dos Pobres, Rafael coleciona inúmeras histórias. Funcionando como um albergue, a maior parte dos
hóspedes são pessoas que chegam a Curitiba em busca de tratamento médico. Sem ter onde ficar, encontram no abrigo cama, banho e
comida sem custo algum. Mas a Casa também recebe eventualmente
pessoas que simplesmente não têm onde dormir.
“Numa tarde um senhor de rua bateu na nossa porta. Estava
sujo e maltrapilho. O pessoal não quis que ele entrasse, mas eu disse
para deixar. Ele veio, jantou, tomou banho. De manhã, havia morrido. Fiquei feliz por termos conseguido dar a ele, pelo menos no seu
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Rafael Pussoli
último dia, algum conforto”, conta Rafael.
Como o fluxo de pessoas é grande, é difícil precisar quantas pessoas já passaram pelos quartos da Casa. Homens, mulheres, famílias
inteiras já se abrigaram lá. Hoje são mais de 200 leitos disponíveis.
Há uma equipe de profissionais contratados para fazer o ambiente
funcionar. Além da função de albergue, a Casa dos Pobres mantém
uma creche e oferece educação em contraturno para as crianças da
região. Todas as atividades são custeadas por meio de doações.
Um bazar semipermanente com produtos de segunda mão –
roupas, calçados, eletrodomésticos – traz parte dos recursos necessários. O restante, vem diretamente do bolso de benfeitores. Uma
vez alguém doou à Casa um envelope com a quantia exata para fechar
as contas do mês. Rafael até hoje diz não saber quem foi. Prefere ver
naquele gesto um ato de Deus.
O comentarista político
Além de empresário e presidente da Casa dos Pobres, Rafael Pussoli bem que poderia ser comentarista político. Conhece muito bem
os meandros do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Amigo de
vários políticos e desafeto de outros tantos – melhor não nomeá-los
para evitar constrangimentos –se alguém lhe disser um nome do cenário político, dificilmente vai deixar de receber em resposta uma
avaliação dos feitos e do caráter do sujeito.
De alguns personagens e experiências guarda impressões sombrias, como da vez em que trabalhou no Tribunal de Justiça do Paraná. “No Judiciário tem algumas pessoas que sofrem de ‘juizite’.
Acham que só porque são juízes estão acima das outras pessoas, num
pedestal”, diz contrariado. Ao lidar com as licitações do Judiciário
paranaense, outra experiência desagradável foi encontrar empresários dispostos a pagar suborno para verem suas empresas vencedoras.
“E o pior é que era uma pessoa que eu considerava idônea.”
Mas não pensem que ele desanima diante de tantos escândalos
e corrupções. Para Rafael, a onda de protestos por uma política com
menos corrupção é um bom sinal. Ele está convencido de que existem muitas lideranças, tanto na política quanto no meio empresarial,
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que podem fazer a diferença e ajudar a mobilizar aqueles que ainda
acreditam em valores como honestidade, justiça, integridade e – por
que não? – bondade. Seria o primeiro passo para uma profunda mudança na sociedade, capaz de fazer as pessoas enxergarem o verdadeiro sentido da vida.
“Hoje as pessoas só se preocupam em ter. Não percebem que
vivemos uma crise ética. Todo dia eu me pergunto o que é que eu
vou levar comigo? Não vai ser o dinheiro, nem a fama, nada. Só vou
levar o pouquinho de bem que conseguir fazer aos outros. Nada mais
importa.”
Série Perfil 35
Potentes
C h r i s t i a n e
Y a r e d
V â n i a
M a r a
W e l t e
P a u l o
V e n t u r e l l i
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Série Perfil 37
Christiane Yared
Christiane Yared nasceu em 23 de fevereiro de 1960. Filha de desembargador, desde criança era dada a colocar a “boca no
trombone”. Com 14 anos, mudou de religião. Todos de casa se tornaram pastores
evangélicos. Na igreja conheceu Gilmar.
Dois anos depois se casaram. Logo nasceram Daniele, Gilmar Rafael e Jonathan.
Formada em Belas Artes, precisava ajudar
no orçamento da família e começou a fazer bombons de morango para vender. O
negócio prosperou e virou uma confeitaria
elegante no Alto da XV. Também fazia bolos
de noiva. Na véspera do Dia das Mães de
2009, foi acordada às 2h30 por dois agentes funerários. Gilmar e um amigo haviam
morrido em um acidente de carro. Christiane e o marido não sabem quantas entrevistas deram para pedir justiça contra o então
deputado estadual Fernando Ribas Carli
Filho, envolvido no acidente. Fundou o Instituto Paz no Trânsito (IPTRAN). Ano passado foi eleita deputada federal com 200.144
votos. “As urnas foram o júri”, repete. Carli
Filho ainda tenta recorrer na Justiça para
não ir a júri popular.
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Série Perfil 39
Christiane Yared
O dia e os dias de dona Chris
Katna Baran, com foto de Marcelo Andrade
uas noites ao mês, o entorno
das ruas Fernando Amaro e Schiller, no Alto da XV, em Curitiba,
fica ainda mais estreito. Dos carros estacionados descem olhares marejados e sorrisos amarelos que se juntam, em roda, na sala de entrada
de uma casa bege, com grades antigas nas janelas. A simpatia de ocasião dura poucos minutos. “Perdi meu filho há dois meses, num acidente de moto, e não consigo mais viver”, desaba a primeira a falar.
Entre um lencinho de papel e outro, uma senhora toma a palavra e ameniza o clima da conversa. Pergunta pela história do Instituto Paz no Trânsito (IPTRAN), organização que promove o encontro. “Começou com umas sete pessoas: eu, a dona Antônia, a Juliana,
a Ana, a Dona Helena, o seu Osmar e a Chris. Fazíamos reuniões em
uma salinha do lado da igreja do balão [apelido do templo evangélico instalado no Jardim Ambiental]”, responde Rose Mari Carriel de
Lima, hoje secretária do instituto e, como costuma dizer, “todos os
dias mãe do Robson”, morto em um acidente na Linha Verde, no dia
em que completava 21 anos, véspera de Natal de 2008.
A Chris de quem ela fala é a deputada federal Christiane Yared.
Hoje, disputa espaço com engravatados nos corredores de Brasília.
À época da fundação do IPTRAN, tinha como principal atividade
buscar Rose e outras mães em casa, para garantir que não faltassem
às reuniões. “Ela é uma mãezona, para todas nós”, conta a amiga, que
não deixa escapar um acidente de trânsito em Curitiba sem procurar
familiares para levar aos encontros de apoio. “Chris faz muita falta
aqui”, lamenta.
Novas Roses, Anas, Helenas, Antônias e Julianas nascem todos os dias na capital. Órfãs de filhos, encontram em Christiane uma
mãe. “Você não imagina o que é acordar de madrugada com o telefo40 Série Perfil
nema de uma mãe e ver sua esposa chorar com ela a noite toda pela
perda dos filhos”, conta o marido Gilmar Yared, que passou para Gilmar Rafael não só o nome, mas também boa parte dos traços.
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Na última sexta-feira, Gil, como era chamado, completaria 32 anos. Na
véspera do próximo Dia das Mães, em maio, serão seis anos sem ele.
“Seis anos sem respostas”, resume a deputada, que em dois segundos de
conversas vira somente Chris. “Lá no Congresso, seja quem for, não tem
nada de chamar de senhor ou de senhora. Pra mim, todo mundo é você”,
diz. Durante todas as entrevistas para esse perfil, ela só não dispensou o
formalismo para se dirigir a uma pessoa: o “senhor” Carli Filho.
Chris sabe contar de trás para frente os últimos passos – e voltas
– do então deputado estadual antes do acidente que vitimou Gilmar
Rafael e o amigo Carlos Murilo de Almeida, na madrugada daquele
dia 7 de maio de 2009, na esquina das ruas Ivo Zanlorenzi e Paulo
Gorski, no Mossunguê. Também consegue detalhar com precisão as
horas derradeiras do filho. “Ele comeu pizza e tomou suco”, diz.
Assim como a própria história, Chris decorou as estatísticas de
mortes violentas no trânsito – no Brasil, informa, são mais de 200
óbitos por dia. “Vamos analisar: cai um avião e morrem 200 pessoas.
É feito um estudo para se saber o que aconteceu. Morre o equivalente a isso no trânsito, todos os dias, e ninguém se preocupa”, questiona. Diz mais: tem na ponta da língua o que acontece a um motorista
depois de ingerir uma taça de vinho. “Em média, você vai demorar
mais sete segundos do que o normal para parar. Nesse espaço de tempo, atropelou um ponto de ônibus inteiro”, observa.
Série Perfil 41
Ponteiros doidos
De tantas outras coisas, Christiane se esquece. Do horário, por exemplo. Chegou uma hora e meia atrasada para a gravação de uma mensagem para o Dia da Mulher na produtora que contratou, na campanha
eleitoral, para cuidar da sua imagem. Para economizar tempo, uma
entrevista para a Gazeta do Povo acontece no salão de beleza, enquanto tenta “disfarçar as olheiras de Capitão Caverna” para o vídeo.
Correria. Mas ela arruma um jeitinho de fazer inveja às cabelereiras
ao mostrar fotos do neto Lorenzo, que completava quatro dias naquela sexta-feira de fevereiro. Lamenta não estar do lado da filha Daniele, também mãe de Isabela, de 8 anos.
“Tive que fazer algumas escolhas, deixar algumas coisas de
lado”, pontua. O IPTRAN e as palestras de conscientização sobre
mortes no trânsito, ao menos, ela não larga. Bate ponto no Alto da
XV todas as sextas-feiras, depois de cumprir expediente semanal na
Câmara dos Deputados. “O instituto abastece a minha alma. É o que
me dá forças”, repete. Três, quatro, cinco reuniões depois, lembra
que ainda não almoçou.
O marido Gilmar deixa uma marmita para ela na cozinha. Chris
nem se dá ao trabalho de sentar: engole a comida em cinco minutos,
às quatro da tarde. “Partiu?”, pergunta, ainda com a boca cheia, sobre
um assunto qualquer. “Abraça o mundo inteiro, e isso afeta sua saúde”, critica o filho caçula Jonathan, que acabou assumindo o negócio
da família, a Confeitaria Coeur Douce, uma das atividades deixada
de lado pela mãe.
“Esta noite sonhei que estava comendo um pedaço de torta”,
lembra a ex-doceira que, de tanto gosto por chocolate, desenvolveu suas próprias técnicas gastronômicas. São dignas de tutoriais no
Youtube. “O marshmallow, por exemplo, é algo que vira açúcar muito rápido e ela consegue fazer todos os bolos com ele, sem desandar”,
ilustra o marido. A arte de cozinhar faz parte da múltipla mulher para
quem a definição de “ajudadora”, da Bíblia, é a que melhor a define.
Outros a chamariam de força da natureza.
42 Série Perfil
Em Brasília, “aquela”
“Pra mim, ela é uma extraterrestre”, ri Gilmar, ao se referir ao estilo
“fazer e acontecer” da companheira. Logo na primeira semana de trabalho no Congresso, Chris foi avisada de que demoraria pelo menos
quatro anos para marcar uma reunião com algum ministro. Em sete
dias, falou com três. Enquanto fica abismada com os “achacadores”,
tenta conquistar apoio para projetos, como o que trata do “dolo eventual” para crimes de trânsito. O termo se refere aos que não têm intenção de matar, mas assumem esse risco ao dirigirem embriagados,
por exemplo. Entre olhares maliciosos, ouve conversas miúdas como
“aquela que é a mais votada do Paraná”. Christiane fez 200.144 votos.
Assim como toda decisão importante de sua vida, a de se candidatar também foi obra de Deus, como ela gosta de pontuar, nos moldes de sua cultura evangélica. Depois de semanas de insistência das
lideranças do PTN, nanopartido ao qual estava filiada, ela só registrou
a candidatura 20 minutos antes de expirar o prazo permitido pela lei
eleitoral. Estava decidida a fazer campanha e apoiar alguém que a legenda indicasse, mas se sentiu incomodada quando esse alguém lhe
disse: “Que triste, quem pode, não quer, e quem está lá, não faz.”
O número na urna também foi um sinal: 1900. O mote da primeira campanha que coordenou foi “190 km/h é crime”, em referência à suposta velocidade que atingiu o carro de Carli Filho no acidente. Depois da decisão de seguir na política, vieram os primeiros
julgamentos – e as novas conversas com Deus. “Quando ouvi dizerem
que eu estava usando a morte do meu filho para me eleger, respondi:
‘Realmente, estou usando a morte do meu filho, porque preciso disso
para que o seu filho tenha uma chance de viver’”, desabafa.
As polêmicas não começaram aí. “Quando assumimos uma
postura de linha de frente nos meios de comunicação para denunciar
as circunstâncias da morte do Gil, teve boleira dizendo que a Chris
queria vender mais bolo na confeitaria, por isso ia pra TV”, espanta-se Gilmar, ainda hoje. Ultimamente, os debates giram em torno de
alguns posicionamentos da deputada, reticente à descriminalização
do aborto e ao casamento homoafetivo. “A opção é de cada um e eu
respeito, mas carrego meus valores”, resume.
Série Perfil 43
“Balão Mágico”
Christiane é pastora evangélica. Toda família se converteu quando
ela tinha 14 anos. “Meu pai era desembargador e estudou a Bíblia
como se fosse um processo”, explica. Tamanha dedicação fundou
uma nova igreja: a do Evangelho Eterno – a igreja de lona, no Alto
da XV, ou “Balão Mágico”, como alguns gostam de brincar. Hoje, a
pregação entrou parcialmente na lista dos abandonos de Chris, mas
costuma não negar quando alguém a convida para discursar em uma
assembleia.
Falar, aliás, é com ela mesmo. Sem economia nos gestos ou preocupação com o tom de voz e o volume da risada, compartilha piadas
com as assessoras enquanto se desloca de um lado para outro da cidade. A ausência de meios tons se soma à sua própria existência. Nunca
passa despercebida. É uma mulher grande, “tem presença”, como se
dizia. Ou “virada em olho e cabelo”, como ela mesma se qualifica.
Faz o estilo perua despachada: “Tem feijão no meu dente?”, pergunta, sem pudores.
Depois da gravação na produtora, despede-se de todos e entra
no carro com a assessora, mas não parte de pronto. Passados alguns
minutos, chamaria todos perto do veículo para combinar como seria
sua festa de aniversário, dali a dois dias. Queria fazer um almoço em
casa, preparado por ela mesma. Ninguém aceitou. “Vai trabalhar no
dia do aniversário?” Decidiu-se reservar uma mesa no Restaurante
Madalosso. “Mas a sobremesa, eu levo”, grita Chris.
Reunir os amigos e a família ainda dói, mas a vida melhora
quando pensa nos avanços alcançados, como a maior rigidez na Lei
Seca. Para o trânsito no Brasil, usa a metáfora do terreno abandonado, de onde é preciso arrancar as ervas daninhas para poder replantar. “Às vezes, para isso, é preciso machucar a terra”. O filho, para ela,
é uma das árvores dessa terra, que mesmo envolta em arames, dá seus
pequenos frutos.
Na festa em que comemora seus 55 anos, Christiane não é apenas a mãe do menino que morreu em um acidente terrível, com cenas
dignas de filme. Nem ao menos é a deputada mais votada do estado,
a boleira, a pastora ou alguém que muda comportamentos com suas
44 Série Perfil
palestras. Ali, quem ri, chora, grita e fala sem parar é a Chris: esposa
do Gilmar, avó do Lorenzo e da Isabela, e mãe da Daniele, do Jonathan e do Gilmar Rafael. O título mãe das mães lhe cai bem.
Série Perfil 45
Vania Mara Welte
Jornalista há 50 anos, Vania Mara Welte
se formou pela PUCPR e não largou a vida
acadêmica. Foi professora de Jornalismo
na UFPR e na Tuiuti. Atualmente, contrastando com os colegas de 20 anos, é estudante de Direito na Uniandrade. Escreveu
livros, trabalhou em TV, jornais e revistas
e durante décadas esteve nos bastidores
assessorando vários governadores do Paraná. Começou com Ney Braga e, junto com
Jaime Lerner, “encerrou o mandato” em
2003, quando se aposentou. Não aguentou
ficar longe e voltou a ser assessora, agora na Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano. É a única mulher entre os
quatro filhos de Ana Tigrinho Ribeiro Welte
e Artur Welte. Tem dois irmãos economistas – um morando em Nova York e outro
em Vera Cruz do Oeste – e um médico veterinário radicado em Buenos Aires. “Adotou” os enteados Palmor Carlos, Regina e
Rejane. É viúva do advogado João Carlos
von Knüppeln Almeida, mãe do educador
social João Guilherme e vó de João Léo, de
7 anos. Vania também é “João”. “Vania” é
um nome russo, diminutivo de Ivan, equivalente a João, que significa “abençoado
por Deus”.
46 Série Perfil
Série Perfil 47
Vania Mara Welte
A vida ela mesma traça
Katia Brembatti, com foto de Albari Rosa
oi ouvindo rádio, ainda criança, que Vania Mara Welte decidiu o que queria ser na vida. O aparelho de transmissões em ondas curtas trazia informações da Europa no pós-2.ª Guerra. Do outro lado do oceano chegavam relatos
da jornalista Oriana Fallaci. Arthur, pai de Vania, elogiava muito
o trabalho da repórter italiana. Dizia que ela não deixava nenhuma pergunta sem resposta. Sem saber, incutiu na filha o sonho de
contar histórias, de sempre ir a fundo na busca por informações, de
dar voz àqueles que não tinham a quem recorrer. Quando Oriana
Fallaci morreu, em 2006, anunciaram que havia morrido também
“o jornalismo incômodo”. Vania também incomoda. Com ela não
tem mesmice, acomodamento, zona de conforto. Ela foi uma das
primeiras mulheres a trabalhar em redação jornalística no Paraná
e a primeira repórter do estado a conquistar um Esso, prestigiado
prêmio de jornalismo, em 1996, pela série de reportagens sobre o
caso conhecido como “As bruxas de Guaratuba”. “Para mim, jornalismo é mais do que uma profissão. É uma missão social, transformadora, instigante e prazerosa”, diz.
Era de extremos
Vania Mara Welte tinha os cabelos negros como “a asa da graúna” e
hoje ostenta um loiro platinado. Ela não tem medo de se reinventar.
As alterações são sempre bruscas na trajetória dessa jornalista com
mais de seis décadas de vida. Vania nasceu em Curitiba, mas os pais
dela se mudaram para o interior pouco depois. Atraídos pelos sonhos
de fazer a vida em uma terra promissora, compraram uma farmácia
em Araiporanga, cidade do Norte Pioneiro hoje rebatizada como
São Jerônimo da Serra.
48 Série Perfil
Arthur atendia todo tipo de urgência, até costurar cabeças
abertas por garrafadas de brigas de índios guarani, caingangue e xetá.
Foi naquela época que nasceu sua mania de desafiar a vida. Começou
a viver numa gangorra, sem nunca “brincar” de ficar parada no meio.
Entre os altos e baixos, a oscilação financeira na família Welte.
Nos tempos de fartura, cada filho chegou a ter um cavalo com
baia individualizada. Nos tempos de penúria, não tinham nem sapato
apresentável para ir à escola. Os Welte voltaram para Curitiba, morando de favor na casa de parentes. Na primeira sexta-feira de cada
mês, quando havia missa especial no colégio, Vania precisava ir de
uniforme de gala. Assim que chegava, com a roupa rota e furos na
sola do calçado, uma freira falava no megafone: “Você aí, Vania, já
para a fila das relaxadas”. Na hora da leitura a situação não melhorava. Apavorada, se confundia e era chamada de “burra”. Os gritos da
religiosa eram acompanhados de reguadas na palma das mãos. “Não
é preciso dizer que odiava ir para a aula. Eu ia me agarrando em todas
as árvores que via pelo caminho”.
Um dia, o pai descobriu o que acontecia e decidiu transferi-la para a Escola Americana, um braço do Novo Ateneu, na Vicente
Machado. A atitude da professora no primeiro dia de aula na nova
sala transformou a relação de Vania com o ambiente escolar. De vestido branco, todo bordado de pequenas flores e joaninhas coloridas,
sentada na última carteira da sala, ela foi convidada a bater o sino
que anunciava o recreio. “Eu me levantei, peguei aquele pesado sino
de bronze e o fiz ecoar bem longe, muitas e muitas vezes. Eu estava
aceita e inserida. Eu era a felicidade em forma de gente”, conta. A
meta a partir dali era ser a melhor aluna da classe. E foi assim, até na
faculdade.
Série Perfil 49
Vania Mara Welte
Vania na vila
Antes dos 18 anos, Vania decidiu se dedicar ao magistério. Trabalhou como professora numa escola estadual da Vila Lindoia, então
uma zona favelizada. Foi quando se deparou com as várias faces da
pobreza. Lembra de ter visto, em três ocasiões, corpos de mulheres
assassinadas. Também encontrava pelo caminho os alunos indo para
a aula, sem agasalho e descalços. Resolveu ajudá-los com mais do que
roupas (que também recolhia e distribuía). Reunia histórias de superação, de gente que vencia passando por cima das dificuldades. Anos
mais tarde, Vania soube que a mensagem havia tocado ao menos um
aluno. “Encontrei Pedro na rua. Ele me contou que tinha montado
uma oficina mecânica e que graças às histórias que eu contava acreditou que poderia mudar a própria realidade.”
Para continuar contando histórias e conhecendo gente, escolheu cursar Jornalismo. Já no primeiro ano de faculdade, a turma foi
desafiada pelo professor Mussa José Assis, então editor do jornal O
Estado do Paraná. O aluno que se saísse bem em diagramação ganharia um estágio. Vania achava a disciplina chata, mas decidiu se
empenhar. Não deu outra. Quando recebeu a notícia de que havia
conquistado a vaga, avisou que precisava era de um emprego. Alguns
anos antes de mulheres ameaçarem queimar sutiãs no Miss Universo,
em 1968, Vania já agia como uma feminista. Quando foi questionada
sobre quanto queria receber de salário, não titubeou: “O mesmo que
os homens”.
Foi a primeira mulher a trabalhar na redação – a jornalista pioneira Rosy de Sá Cardoso, ainda hoje em atividade na Gazeta do
Povo, à época entregava no Estado os textos que produzia em casa,
expediente comum às repórteres. Nem banheiro feminino havia no
jornal. Francisco Camargo, veterano repórter de Curitiba, recorda
a estranheza que causou a presença de uma mulher naquele meio
masculino.
Vania trabalhava como diagramadora à noite, estudava de
tarde e continuava dando aulas de manhã. Mas ela queria escrever
e convenceu Mussa, morto em 2013, que podia fazer, de graça, um
suplemento para crianças, O Estadinho. Daí para o mundo das re50 Série Perfil
portagens foi um pulo. A primeira entrevista foi com a atriz Nathalia Timberg, preparando-se no camarim para uma apresentação no
Teatro Guaíra. Daquela época, guarda também recordações de uma
reportagem com o músico Lápis. O título foi: “Fino, comprido e negro: Lápis”. O cantor ficou tão feliz que foi à casa de Vania fazer uma
serenata. “O meu pai o tocou de lá”, lembra.
Encontro com João
Foi num lance de sorte – acaso ou destino? – que Vania conheceu o
marido, o advogado João Carlos von Knüppeln Almeida. Em 1970,
o carro dela enguiçou na Emiliano Perneta e ele se aproximou para
ajudar. “Eu encontrei um homem bonito, inteligente, brilhante e
sedutor no meio da rua, em uma situação crítica”, resume. Vania
tinha apenas cinco anos a mais que o filho mais velho de João. “Era
uma festa. Eu brincava com eles e namorava o João”, conta. Virou
a “boadrasta” dos três enteados, frutos do primeiro casamento do
advogado.
Mas Vania queria o próprio filho. Ainda no início da gestação,
descobriu que estava com toxemia gravídica. Foi orientada a abortar.
“A vida é o bem maior, junto com a liberdade. Eu era responsável por
aquela criança e queria muito ser mãe.” Lembrou do livro que ganhou
do pai sobre a história do médico humanista Albert Schweitzer, que
mostrava que se o cérebro pode matar um corpo são também tem o
poder de curar um corpo doente. Ela se apegou à fé e está entre os
casos raros de gestações tão complicadas que foram levadas até o fim
com sucesso.
Mesmo depois que João ficou viúvo, Vania não quis se casar.
Não gostava da ideia de “posse” e não queria que outro laço, além do
amor, os prendesse. Um padre tentou dissuadi-la. “Caso no dia em
que o senhor me apresentar o padre que uniu Adão e Eva”. Assim
como o pai de Vania, João também oscilou entre momentos de muita
fartura e de grandes dificuldades. A casa vivia cheia de artistas e intelectuais. Advogado influente e comentarista de rádio, no dia em que
morreu, em 2000, João ganhou um programa dedicado inteiramente
a ele na CBN.
Série Perfil 51
Vania Mara Welte
A repórter
Às gargalhadas, Vania conta da vez que literalmente parou o bairro
de Santa Felicidade. Preocupado com intoxicações alimentares recorrentes, o então secretário de Saúde Oscar Alves chamou uma reunião com os donos de restaurantes. Um confessou que a comida que
ficava na mesa era requentada e voltava para os próximos clientes,
cheia dos perdigotos dos comensais anteriores. Vania fez a matéria.
A repercussão foi tanta que o secretário determinou que todos os
estabelecimentos fossem fechados por uma semana, até que os funcionários passassem por cursos da Vigilância Sanitária.
A jornalista também carrega a sina de ser a última a entrevistar algumas das personalidades paranaenses. Foi assim com o artista plástico Poty Lazzarotto, morto em 1998. Ela conversou com ele
para um livro que estava fazendo, juntamente com outros jornalistas,
sobre histórias de Curitiba. No dia, Poty rabiscou uma estação-tubo
e deu de presente a Vania. O quadrinho está entre as centenas de
pinturas e retratos pendurados nas paredes da casa dos Welte. Ao relatar esses e outros encontros, beira o infinito. Por pouco, por exemplo, a jornalista não se tornou o braço direito da médica Zilda Arns
na Pastoral da Criança, iniciada em 1983. Davam-se bem, falavam a
mesma língua - inclusive no que diz respeito à distribuição de pílulas
anticoncepcionais no sistema público de saúde. Zilda o fazia, mesmo
sendo irmã de dom Paulo Evaristo Arns.
A jornalista recorda o quanto aprendeu com as pessoas que entrevistou. Foi uma batalha convencer dona Flora Camargo, viúva do
ex-governador Bento Munhoz da Rocha Netto, a falar. “Com ela, infelizmente já falecida, aprendi a força da determinação”. Ao perguntar de onde Flora tirava, aos 90 anos à época, tanto viço e juventude,
a ex-primeira-dama respondeu que, de manhã, depois de orar e fazer
a maquiagem, ia para a frente do espelho e dava o seu grito de guerra:
“Flora, não morra enquanto você não morrer.”
Depois de fazer uma reportagem de repercussão, questionando
o que era feito com as doações à santa popular Maria Bueno, Vania
foi instigada pelo editor-chefe do jornal Hora H, Cícero Cattani, a
reviver o caso conhecido como o das “Bruxas de Guaratuba”, ocorri52 Série Perfil
do em 1992, até hoje não elucidado, tornando-se um dos mais extensos e ruidosos da crônica policial brasileira. Vários questionamentos
apontando falhas na investigação tinham sido publicados na Gazeta
do Povo, mas havia a percepção de que era possível avançar mais.
Num primeiro momento, Vania se negou. “Não lido com energias baixas.” Mas ao perceber que estava julgando sem conhecer o
caso, decidiu que precisava ir mais a fundo. Listou perguntas sem respostas, falhas e tudo que parecia anormal ou injusto. “Foram 17 matérias que mostravam os furos, os erros e indicavam novos caminhos.”
Em 1996, o trabalho lhe rendeu um dos prêmios mais prestigiados do
jornalismo – o Esso, na categoria Regional Sul. Ela escreveu um livro,
até hoje não publicado, contando os detalhes da história.
A sobrevivente
Exames mostram que Vania já teve mais de nove AVCs. Aos poucos,
os acidentes vasculares cerebrais foram lhe custando parte da visão,
da audição e criando dificuldades na fala. O derrame mais forte foi o
primeiro, em 2003, e afetou o cerebelo e, momentaneamente, a capacidade de andar. Recebeu do médico o diagnóstico de que poderia
morrer a qualquer momento. Soltou uma risada e lembrou de que ele
também podia estar perto do fim. Noves fora, dá vivas ao Sistema
Único de Saúde. Defende que é muito bem atendida no Hospital das
Clínicas. “Sou a soma de todos os meus escombros e me sinto feliz.
Eu me reinvento a cada crise, a cada dia.”
Esteve mais vezes às voltas com a morte. Uma recém-contratada empregada ouviu um telefonema em que jornalista falava que ia
ao banco buscar joias penhoradas. Quando voltava do supermercado
com as compras, foi atacada por um homem. “Ele me atingiu na cabeça com uma pedra e eu fui ao chão. Ele se abaixou e puxou a bolsa.
Eu reagi, segurei a bolsa, pedi que a empregada me ajudasse, mas ela
ficou parada, me olhando”, lembra.
O bandido deu pontapés, pisou com força na garganta e no
rosto. Arrastou-a pela rua. Vania gritou por ajuda aos moradores.
Clamou a Deus. “Do chão, eu vi, no alto de uma varanda, uma porta
se abrir e um jovem saltar lá de cima para o jardim e gritar: “Larga
Série Perfil 53
Vania Mara Welte
ela”. O agressor fugiu levando a bolsa com dinheiro e as joias. “No
hospital, lembro de ouvir um médico dizer: ‘Atenda aquela moça
que foi atropelada. Foi por um caminhão?’” A empregada nunca
mais foi vista.
Último ato? Não. No fim de década de 1980, junto com outras
quatro pessoas, doava sangue em grande quantidade para o Centro
de Produção e Pesquisas de Imunobiológicos, para fazer soro homólogo antirrábico. “Descobriram que nós cinco tínhamos enorme defesa contra a raiva animal e o soro feito com o nosso sangue era mais
seguro para as pessoas que precisavam tomar o soro contra a raiva.
O que era fabricado com sangue de cavalo traz riscos de paralisia”.
Tempo depois o programa foi encerrado, segundo ela por falta de recursos, mas ela chegou a vir do Rio de Janeiro somente para a doação.
Vania e as surpresas andam de braço dado.
A jornalista Maria Amélia Lonardoni, do Ministério Público, e
parceira de trabalho de Vania, por tempos, na ONG Ciranda – ligada
aos direitos da infância – bem a define. É um tipo que compra briga,
que não faz corpo mole, que se coloca no lugar do outro. Mostra-se
tão forte para se colocar contra o mundo – e não há exemplo melhor
do que sua decisão em reportar Celina e Beatriz Abagge, chamadas
de “As Bruxas de Guaratuba” – quanto para abraçar o que é imperceptível para a maioria das pessoas. Vai do pequeno ao grande gesto,
sem escalas. Pode ser vista carregando caixas numa mudança, para
ajudar amigos, e combatendo a exploração sexual de adolescentes na
Tríplice Fronteira, para citar uma de suas muitas atividades em prol
dos direitos humanos.
“Detalhista e atenta ao que passa batido, Vania corre o risco
de ser incompreendida num mundo pautado pelas relações objetivas,
pela praticidade e pela superficialidade”, observa Maria Amélia. “Ela
põe fogo no rabo das pessoas para que façam alguma coisa”, costumava dizer outra parceira na Ciranda, a jornalista Lilian Romão. É a regra da vida que aplica para si. Tempos atrás, sua labrador Pipoca, 30
quilos de pura energia – tormenta das diaristas, que pediam a conta,
assim que a conheciam– foi atropelada, ficou paralítica. A dona fez
da cadela uma celebridade dos hospitais veterinários, tantos frequen54 Série Perfil
tou. Colocou-a na cadeira de rodas, na fisioterapia e, finalmente, em
pé. É uma crônica doméstica, mas se repete na esfera pública.
A propósito, Vania perdeu o telefone do policial militar que
adestrou Pipoca, ensinando-a a respeitar de pés de mesa a para-choques de automóvel. Onde quer que o benfeitor esteja, ela pede que
mande notícias. Pista - “o PM estudava Teologia”. Ela observa tudo.
Difícil passar em branco por Vania Mara Welte.
Série Perfil 55
Paulo Venturelli
Ele foi alfabetizado por uma freira, lendo
as obras de Charles Perrault. Foi seu primeiro contato com a literatura, logo esquecido no lar modesto e proletário onde
nasceu. Na adolescência, passada num
seminário católico em Santa Catarina, teve
contato com romances policiais e novelas
de aventura de Karl May. Tornou-se leitor e
também autor – assinava e não raro interpretava peças bíblicas no claustro. Jovem
adulto, aos 24 anos, e já longe da Igreja,
rompeu com a família, pediu as contas em
um bom emprego e se mudou para Curitiba, disposto a ser escritor. ¶ Para se manter, começou a dar aulas. Mal imaginava
que viria a se tornar um dos mitos da história da educação no Paraná, inspirador de
um sem número de leitores e criadores em
geral. A lista dos discípulos de Venturelli é
longa. Em certo sentido, foi para eles que
formou uma biblioteca de 15 mil exemplares no prédio onde mora, no Bacacheri.
Ex-alunos e alunas prestigiam o local. Reverenciam também a literatura do guru.
Sim, o propósito de se tornar escritor se
realizou. E bem. Venturelli é autor de duas
dezenas de livros – oito deles marcos da
literatura infanto-juvenil.
56 Série Perfil
Série Perfil 57
Paulo Venturelli
O cara que bota fogo no circu
José Carlos Fernandes, com foto de Alexandre Mazzo
m 1978, ao pisar pela primeira
vez numa sala de aula, o recém-formado em Letras Paulo Venturelli
não tinha a mínima ideia do que deveria fazer. Apavorou-se. “Minha
impressão era a de que o chão se movia e que a gurizada ia despencar
em cima de mim”. Foi em meio a essa vertigem regada a tremores
que decidiu praticar uma de suas maiores especialidades – a rebeldia
–, promovendo um gesto tresloucado que dividiria sua trajetória em
antes e depois daquele dia.
Pediu aos alunos – uma seleta sétima série do tradicional Colégio Nossa Senhora de Sion, em Curitiba – que não só rasgassem o
livro didático que tinham sobre a mesa, como os atirassem pela janela. Sem dó. Ninguém desobedeceu, para desespero da direção, que
se viu numa saia justa diante daquela insólita chuva de papel picado.
Pais, docentes, muitos pediriam sua cabeça, mas era tarde. O emprego durou pouco, mas a fama incendiária do professor Venturelli
tinha ganhado a eternidade.
0
1989 – o telefone toca na casa de Venturelli. Na linha, um aluno do
colégio Nossa Senhora Medianeira: “Paulo, Paulo, você precisa assistir a Sociedade dos poetas mortos. Esse filme é sobre nós...”. E desligou. No escuro do cinema, horas depois, chorou feito criança ao
acompanhar a história do nada convencional professor de literatura
John Keating, vivido por Robin Williams. Era impressionante a semelhança entre a trama e o que tinha experimentado em sala de aula,
desde o episódio dos livros lançados pela janela. “Foram os anos mais
58 Série Perfil
importantes da minha vida”, resume. Não está sozinho: quem viveu
aquela época, também acha.
Dez anos se passaram entre a mal-sucedida passagem pelo
“Sion” e as glórias do “Medianeira”. Nesse período, há quem jure que
tenha sido escrito o “método Paulo Venturelli” de ensino. Ele acha
graça. Nunca houve pedagogia própria. No máximo seguia a regra:
“Nada de mostrar os dentes para a gurizada”. Conquistou os alunos
para a literatura, qual John Keating, no improviso, carisma e poder.
Era rígido. Bem lembra dos estudantes do ensino médio, na porta da
sala, tentando adivinhar que haveria para aquela manhã.
Poderia ser uma aula sem as carteiras, com todo mundo deitado no chão, ouvindo Pink Floyd. Ou um pito homérico por causa dos
resultados da última leva de textos. As aulas eram tão imprevisíveis
quanto o noticiário – de onde Paulo tirava seus temas. Usava textos objetivos de grandes jornais. Mas se valia também do mundo cão
dos tabloides – para escândalo dos puristas. “Eu puxava pelas coisas
nas quais acreditava. Criticava da Playboy à Coca-Cola. Condenava
a colonização da mente, a colonização da fantasia. Era um desbunde,
literalmente”.
“Às vezes, ele era temperamental. Não fazia o tipo bonzinho.
Seu estilo era Charlie Hebdo”, lembra a jornalista e ex-diretora da
Biblioteca Pública Valéria Prochmann, ex-aluna de Venturelli, o
iconoclasta. Entusiasma-se. A exemplo de outros, chama-o de guru
e afirma que as aulas com aquele catarinense culto e de pavio curto – o homem que lhes apresentou Kafka e Caio Fernando Abreu
– decidiu suas escolhas. “Agora é que eu entendo as aulas do Venturelli”, costumam dizer os egressos, uma lista que vai da artista plástica Adriana Tabalipa ao escritor e videomaker Cezar Tridapalli.
Série Perfil 59
Paulo Venturelli
Paulo se impressiona com os depoimentos que recebe, às pencas,
mandados pela turma que ele chegou a desdenhar, rotulando-a de
burguesia com pele de pêssego.
Como um sujeito sem arreios conseguiu se manter tanto tempo num colégio confessional, eis a pergunta. Ele responde: acredita
que virou um chamariz duplo, para pais que queriam filho com livro
debaixo do braço e para guris e gurias loucos para se livrar do tédio
escolar. Mesmo os dissidentes mais valentes – que juraram lhe dar
uma sova de corrente –, ficavam pianinhos a dibruras tantas. Teria
se aposentado lá. Não fosse algo ocorrido por aqueles dias em que
estreou Sociedade dos Poetas Mortos. Daí o motivo de parte das lágrimas derramadas naquela sessão de cinema.
“Tinha pintado” um concurso no Departamento de Letras da
UFPR. Os amigos insistiram. Paulo tentou e passou. Ninguém acreditava que pudesse deixar o Medianeira. Nem ele. Mas em 1990 estava lá, no 10.º andar do Edifício Dom Pedro I da UFPR, não propriamente para ter alegrias, como logo percebeu. “Me arrependi. Nunca
me entrosei com a burocracia, com o carreirismo e a produção de
textos que ninguém lê. Mas podia dar menos aulas, escrever meus
livros...” Aposentou-se em setembro passado, depois de 24 anos de
ensino superior. Talvez não sinta saudade. O próximo romance, Madrugada de farpas, sobre uma paixão homoerótica interracial entre
estudantes, trará, na rabeira, críticas à instituição. “A universidade
em si nunca me encantou”.
Em tempo. Na carreira acadêmica, Paulo se tornou referência nacional em literatura homoerótica. Tomou muito sarro, é
claro. Estudou Adolfo Caminha, João Silvério Trevisan, Silviano
Santiago, Caio Fernando Abreu, Roberto Piva. Tem material para
produzir uma suma sobre prosa e poesia gay no Brasil. O tema lhe
veio por acaso, quando um amigo, dos tempos em que fazia plantões num setor de processamento de dados, lhe perguntou por
que havia “tanto veado no teatro”. Achou a pergunta um acinte.
Respondeu anos mais tarde a seu modo, estudando. Lógico – vive
às turras com a turma que estuda gênero e guetos em geral. “Nunca me acertei em nenhum grupo. Minha independência intelectu60 Série Perfil
al ofende as pessoas”, diz, num momento raro de autoexposição.
Bigodes do pai
Paulo Venturelli foi criado entre Brusque e Jaraguá do Sul, Santa Catarina, numa família de poucas posses. Um de seus luxos foi ter sido
alfabetizado por uma religiosa, irmã Celeste, que lia para ele os contos de Perrault. Os pais eram operários da indústria da tecelagem.
Não passou ileso por nenhum dos dois. Lembra de acompanhar o pai
em reuniões de sindicato. Getulista e membro do PTB, chegava a se
disfarçar com bigodes para panfletar nas periferias. Credita a ele o
temperamento, digamos, forte, e a indignação cívica.
Mas foi a mãe, Albertina, que o influenciou para a experiência
mais determinante de sua vida – a ida para o seminário da Congregação do Sagrada Coração de Jesus, os dehonianos, em Corupá, nos
idos de 1962. Tinha apenas 12 anos e deu trabalho à família religiosa
cujo membro mais famoso no Brasil é o decano dos sacerdotes cantores, o padre Zezinho. Se por um lado Paulo desfrutou de todas as
benesses do seminário – a biblioteca, o teatro, o jornal mural, o rádio,
dos quais fala com entusiasmo – por outro atazanou o clero com seu
espírito contestatório crônico e demolidor.
Lia com apetite. Descobriu Conan Doyle, as aventuras de Karl
Mayt, livros proibidos, os pockets, “aqueles de vamps com peitão”.
As partes picantes eram censuradas com caneta preta. “O que a gente
imaginava era muito pior do que o que devia estar escrito”, brinca sobre o ambiente bipolar e estimulante, onde cartas eram abertas, mas
era possível ouvir iê-iê-iê e assistir a filmes toda semana.
Em 1968, com o mundo ardendo em chamas, os reitores o
mandaram embora. Alegaram que não tinha vocação para o voto
de obediência. E que era mundano. Menos de dois anos depois,
estava de volta, mitificado. “Eu era o cara que tinha ido para o
mundo e voltado. Virou um inferno. Minha vida se resumiu a ouvir os problemas dos meus colegas, a maioria de ordem afetiva.
Todo mundo tinha problema de sexo. Foi uma rebordosa na minha cabeça”. Em poucos meses, pediu para sair. Mais uns meses,
depois de uma missa, avisou aos pais que era ateu, para desespero
Série Perfil 61
Paulo Venturelli
da mãe, que até hoje reza por sua conversão.
Só lhe faltava mais uma ruptura – com Jaraguá do Sul. Demoraria. A boa escrita, expressão e educação trazida do seminário lhe
garantiram salário alto e obrigações: pagava aluguel na família de quatro filhos. Em 1974, chamou sua turma e disse que viria para Curitiba,
estudar e ser escritor. Sabia que precisavam dele, mas era o que tinha
de fazer. Fez.
Não foi nenhum mar e rosas. No começo, morava nas barbas
do Cajuru, não parava no mesmo lugar, mudava de empregos, alugava
quartinhos e comia pouco. Formou sua própria família de trás para
frente – primeiro veio o Gigio, um ex-menino em situação de rua que
adotou antes mesmo de terminar a faculdade. E depois Líbera, sua
mulher, a quem conheceu nos tempos de Medianeira, inseparáveis.
As aulas na UFPR, conta, não eram tão estimulantes quanto sonhava. Mas havia algo que valia cada noite sem jantar – o teatro.
Embora Paulo Venturelli seja conhecido pela literatura infanto-juvenil – os seus Anjo rouco, admirável ovo novo e Visita à baleia
são marcos nacionais no gênero, somando, juntos, perto de 100 mil
exemplares exemplares – seu posto nas artes cênicas é incontestável.
Chegou a sonhar com os palcos – em qualquer das posições – e produziu muito, em especial ao lado do já falecido Cleon Jacques. A falta
de profissionalismo e a inconstância financeira da classe, contudo, o
derrotaram, para miséria geral da cidade.
Fala do assunto com certa irritação – “vivem me pedindo textos
e me negando créditos” -, irritação semelhante à devotada aos tempos de seminário. “Não gosto desse assunto. Pago terapia até hoje
por causa daquele período”, dispara. Mas adianta que tem um livro
pronto em que saltam algumas memórias do claustro. Livro pronto,
a propósito, é uma marca de Paulo Venturelli. São muitos, nem ele
sabe dizer, sempre em gestação. “Está vendo esse caderno? É o número 43. Você é testemunha”...
Sim, cadernos. Paulo Venturelli escreve todos os dias, à mão,
em cadernos numerados. De um caderno passa a limpo para outro,
“com letra caprichada”. Só depois vai para o computador. As tarefas são metodicamente divididas – a manhã para produção literária
62 Série Perfil
própria; a tarde para estudo e leitura; e às noites, para a leitura. Nas
contas, ler ganha em número de horas praticadas. O escritor e pesquisador gasta mais de R$ 2 mil por mês em livros. No prédio em
mora, tem dois apartamentos – um para ele e Líbera (Gigio, casado,
vive na Argentina), outro para os 15 mil títulos, fora a infinidade de
CDs, obras de arte, pôsteres de ídolos como James Dean de Machado de Assis, e flâmulas do Atlético Paranaense.
O apartamento-biblioteca é uma lenda dos pinheirais. Seria seu
elo com os ex-alunos, que aparecem vez em quando para uma consulta e empréstimo. O movimento não parece mais tão intenso. Aos 64
anos, Paulo Venturelli dá a entender que se retirou. Livre circulação
naquele espaço, apenas do poodle Nino, que quebra a aura monástica
do local. O exílio para produzir e pensar não pesa à consciência do
socialista declarado – aquele sempre pronto para provocar os guris
e gurias bem-nascidos do Medianeira. Provoca-os quando lhe aparecem na frente. Que joguem tudo pela janela. “Eu sou o cara que bota
fogo no circo”, avisa.
Série Perfil 63
Presentes
A r a c i
A s i n e l l i
66
P a u l o
F r e i
d a
L u z
S a l a m u n i
76
P e d r o
88
B r o n d a n i
Série Perfil 65
Araci Asinelli da Luz
A bióloga Araci Asinelli da Luz é doutora
em Educação, professora da Universidade
Federal do Paraná (UFPR), vice-presidente
do Conselho Estadual de Políticas sobre
Drogas e secretária Regional da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência. Não
queria ser professora, mas o destino não a
permitiu outro caminho. Deu aula no Instituto de Educação do Paraná, mas nunca
parou por ali. É pesquisadora em educação
e foi influenciada por Paulo Freire, Cèlestin
Freinet, Makarenko e Urie Bronfenbrenner.
Além de tudo isso, é mãe de cinco filhos e
avó de seis netos. Araci também se tornou
uma militante na luta contra o tráfico e uso
de drogas no Paraná. É contra a legalização
das drogas, mas a favor da descriminalização do usuário. Em temas confusos, deixa
tudo claro. Por isso, ressalta ser contra o
aborto. Mas sua vida não é somente recheada de temas duros. Participa de um grupo
de piadas chamado PDS–Piada da Semana
–, formado por intelectuais, cientistas e
pesquisadores.
66 Série Perfil
Série Perfil 67
Araci Asinelli da Luz
Teoria e prática da iluminação
Diego Ribeiro, com foto de Brunno Covello
sta história começa em 1948,
quando os pais da educadora Araci Asinelli da Luz se acidentaram
na Estrada do Cerne, entre Ibaiti e Curitiba. Chuva forte, ventania,
escuridão. Não deu outra. O carro capotou várias vezes, caiu com
as quatro rodas cravadas no chão. Por sorte, ninguém se machucou.
Mas foi o início de uma correria até o Hospital Victor Ferreira do
Amaral – na Avenida Iguaçu. “Minha mãe entrou em trabalho de parto”, conta ela.
O problema é que o hospital sofria um apagão. Logo no final da
madrugada, quase pela manhã, a criança nasce e a luz retorna ao estabelecimento. Seria um sinal sobre o futuro daquela menina, que viria
a ser a terceira filha, de sete irmãos. Já nos braços do pai, o engenheiro civil Silvio Asinelli, outra coincidência. Os olhos dela lembravam
a avó. Ali, recebeu o nome que, em tupi-guarani, significa “mãe do
dia”, “aurora”. Virou Araci. “Gosto muito do meu nome. Meta que
eu tenho é ser luz para as pessoas”, diz, sem conter as lágrimas.
Assim tem sido. Araci Asinelli da Luz é bióloga, doutora em
Educação, professora da Universidade Federal do Paraná e sinônimo
de luta contra o marasmo político. São muitas as suas causas, mas
o fio dessa meada começa com o trabalho de prevenção às drogas e
combate aos malefícios do tráfico.
Duas vezes “luz”, Araci é necessária.
0
Levar a luz da educação às pessoas e lutar contra o marasmo político
no combate ao uso e tráfico de drogas são missões tão pretensiosas
quanto nobres. Mas essas duas responsabilidades encabeçam uma
68 Série Perfil
lista que mostra o quanto a sociedade precisa de gente como Araci.
Se de um lado a quase fábula envolvendo o acidente de carro e a
escolha do nome definem Araci, de outro, um encontro casual – quase banal – teve para ela o mesmo peso. Foi em 1987, numa daquelas
rampas do Edifício Dom Pedro I, ao lado da Reitoria da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Na descida estava ela. Na subida, o
ex-frade carmelita Fernando de Góis, que em alguns anos seria internacionalmente conhecido como o criador da Chácara dos Meninos
de 4 Pinheiros.
Quando houve esse “encontro marcado” – coisa do destino,
como dizem –, a rotina da professora Araci estava resolvida. Mesmo
assim, foi um caminho sem volta. Ela já era casada com o parceiro
da vida e professor Gastão da Luz – também biólogo e com carreira
na UFPR–, tinha com ele quatro filhos –viriam a ter mais uma filha, temporã, Chiara, a companheira para todas as horas, hoje com 18
anos. Na vida civil, grande fase: integrava a Sociedade Brasileira para
o Progresso da Ciência (SBPC) e o Conselho Estadual de Entorpecentes.
Sua relação com o tema drogas, aliás, vinha da década de 1970
e por vias tortas. Por mais estranho que pareça, o saber de uma das
maiores experts em drogadição no Brasil surgiu em um curso de Educação Sexual em São Paulo, procurado no afã de ajudar as adolescentes do Instituto de Educação do Paraná, onde Araci lecionava. Do
desejo por sexo para o desejo por drogas foi um pulo.
“Cursei com a Marta Suplicy”, lembra, aos risos, a mulher dadas
às reviravoltas – tantas que mal poderia esperar por mais uma. Foi
assim, supõe-se, desde que pisou numa sala de aula. Exemplo? Sua
relação com as alunas do Instituto de Educação do Paraná. Ao perSérie Perfil 69
Araci Asinelli da Luz
ceber que as aulas de Ciência e Biologia eram o escoadouro de tantas
angústias, fez o que devia fazer: correu atrás para esclarecê-las. “Foi
quanto me identifiquei com a adolescência e com as relações humanas”, conta. Aliás, lutou pela primeira turma mista no Instituto.
Anos mais tarde, quando passou a lecionar na UFPR, carregou
consigo a experiência do Instituto e chegou “com tudo”, disposta a
abrir a universidade para a comunidade, algo atípico na academia.
Seu discurso era o de que a educação também poderia fazer o caminho inverso, de dentro para fora, como ela gosta de ressaltar.
Pois foi essa Araci que cruzou com Fernando de Góis na rampa
. O homem de trajes modestos e com inseparáveis chinelos de dedo
perguntou se ela conhecia alguém que estudasse Paulo Freire, Cèlestin Freinet e Makarenko. “Sim, sou eu mesma”, respondeu a professora, com a espontaneidade habitual.
O encontro
Fernando integrava o movimento nacional dos meninos e meninas
de rua e fazia abordagens em praças, numa época em que não faltava
quem dissesse que aquela gurizada era uma causa perdida. Ele provou que não. Em meados dos anos 1990, iria se tornar o fundador da
Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros, em Mandirituba – tido como o
mais revolucionário projeto voltado para crianças e adolescentes vulneráveis na América Latina. Araci seria sua parceira na empreitada.
Não se largaram mais. Dali em diante foi uma sucessão de
acontecimentos. “Organizei o 1.º curso de educadores de rua”, inicia
a lista de atividades que tirou qualquer resquício de retórica na frase
“abrir a universidade”.
A partir de 1994, quando a 4 Pinheiros saiu do papel, passou a
dedicar as terças-feiras para passar o dia na chácara – cruzava os 50
quilômetros de manhã, com um séquito de alunos. Na terça-feira não
tinha banca, não tinha viagem, não tinha família, era a chácara. Impossível contabilizar o número de meninos que tiveram seu destino
entrelaçado com o de Araci.
70 Série Perfil
Prova do nome
“Percebi que sempre que perguntava os nomes para os meninos, eles
não falavam ou assumiam seus nomes da rua”. É a prova de fogo. Escaldadas, as crianças testam quem se aproxima, usando de despistes.
Foi quando a professora Araci percebeu a importância do
nome e, desde então, procura o significado de cada um deles, sempre
que pode, para mostrar a importância de assumirem suas identidades
de batismo. “Eu mostrava o significado [dos nomes] para eles, que
diziam: ‘ela não esquece o nosso nome’. Foi serendipidade”, explicou,
ao descer as escadas da casinha de boneca que tem no quintal de casa
no Jardim Social, brincando com a expressão inglesa serendipity.
Sem tradução para o português, a palavra equivale a usar do devaneio
e do acaso para redescobrir coisas e seus significados.
Enxergou que, ao contribuir tanto com os seus meninos de 4
Pinheiros, ajudou a si mesma. Descobriu o significado do próprio
nome e percebeu que, mesmo sem saber, o acaso a fez trilhar um caminho marcado no dia do seu nascimento. Araci confirmou que tem
tudo a ver com luz – que a luz seja feita.
A convicta
Ser Araci não é fácil. Ela faz política o tempo todo, mas tem de explicar à exaustão que não faz militância partidária – sabe-se que negou
convite para concorrer à vaga na Câmara Municipal. Dificuldades à
parte, segue “jogando na cara” da sociedade o quanto isso é possível.
E não é de agora. Talvez seja a inspiração na família. A começar pela
mãe, hoje com 93 anos, morando sozinha, e complemente lúcida.
“Ela é minha grande inspiração”, relata.
Em 1988 Araci saía de uma reunião do Concitec [Conselho Estadual de Ciência e Tecnologia] no Palácio Iguaçu, quando a cavalaria da Polícia Militar, sob o comando do então governador Álvaro
Dias, passou por cima dos professores.
“Fui até em casa e trouxe comigo os quatro filhos à época (crianças e pré-adolescentes) para que vissem o que aquele governo faz com
os professores quando reivindicam seus direitos e para que entendessem o porquê sua mãe participava dos movimentos”, comenta,
Série Perfil 71
Araci Asinelli da Luz
entre os sofás de sua sala de estar, ao lado de sua coleção de conchas
-- a mais importante vinda diretamente de Moçambique. Ela é assim,
inesperada.
No sofá da sala, iluminada com abajures, faz algumas considerações sobre isso e aquilo e volta ao dia que virou marco da luta dos
professores. Por essas e outras, ela não desgrudava dos filhos, mesmo
que tivesse que levá-los para viagens de trabalho. Chiara, a mais nova,
acompanhou de pequena, a mãe, em paradas LGBTs e congêneres.
Sem discursos – tem de estar de corpo presente.
“Isso serviu para que nenhum quisesse ser professor”, diz a sério, mas quase como uma brincadeira, após uma parada para levar seu
cachorro, o Marley, ao banho e tosa.
A convicção de Araci ainda obrigou os cinco a estudarem em
escolas públicas. Gastão e Araci sempre foram professores de escolas
públicas. “Acreditamos que ali devemos sempre dar o nosso melhor”,
afirma.
Cabe todo mundo
Os mais próximos dizem que Araci “é uma esponja”. A mulher que se
deixa conduzir pelos acasos vai absorvendo trabalhos e experiências
aqui e ali. Sujeita a uma tabela de comportamentos, ou coisa assim,
diriam que ela é hiperativa. Na imprensa, os que recorrem a ela, preferem chamá-la de “cidadã”. Ela não nega a palavra e a opinião, nunca.
Para que se tenha uma ideia, hoje ela acompanha dois orientandos de doutorado, sete de mestrado, três no programa de desenvolvimento da educação (PDE) e um no curso de Pedagogia. As atividades
não param por ai. Vão além da quantidade – sua marca é o modus
operandi. “Dona Luz” é capaz de criar disciplina de mestrado abertas
à comunidade – nas quais nunca falta café, conversa e interação. Alguém lhe conta de uma escola assim ou assado, num ponto distante
da Região Metropolitana. Pode contar: Araci vai até lá e não raro
acaba incluindo o local na sua agenda. Poucos pesquisadores orientaram tantos policiais militares e federais, o que lhe garante o título
informal de a maior influenciadora das forças de segurança pública
no Paraná. Dá para imaginar o choque da mentalidade autoritária da
72 Série Perfil
PM com o espírito libertário da orientadora.
Mas ela descansa. Ao mesmo tempo, consegue manter amizade
com as amigas do “liceu” – o Colégio Cajuru, onde estudou no final
dos anos 1950, para citar um dos muitos grupos os quais se liga. Não
tem preconceito. Listando tudo, é humanamente impossível. Não
para ela.
Mas não a chamem de uma mulher sem foco. Seria injusto. A
atuação de Araci se concentra em núcleos de estudos e pesquisas em
Educação, Ambiente, Pedagogia Social e no Núcleo Interdisciplinar
de Enfrentamento à Drogadição da UFPR. Ela integra o Conselho
Estadual de Polícia Sobre Drogas, representando a universidade. A
prevenção às drogas é seu trabalho.
Na área, não é dada a afagos. Coloca o dedo na ferida. É clara
em relações confusas – inclusive com seus pares, quando se pronuncia contra o aborto. Se o assunto são entorpecentes, não vacila: “Sou
contra a legalização das drogas”, reafirma. Num país com educação
precária e saúde deficitária, não há opção, opina. Mas não abre mão
da descriminalização do usuário. Mostra disso é a posição recente
dentro do Conselho. Não acredita no sucesso de uma política sobre
drogas que esteja debaixo das asas da Segurança Pública, como parece querer o governo do estado.
“Por isso, devo sair do conselho”, antecipa. Vem aí uma briga
anunciada. Não se trata de não gostar da polícia, em absoluta. Oficiais de altas patentes como Perovano, Blasius e Bondaruk, para citar três, só faltam lhe prestar continência. Além dos que foram seus
orientandos na UFPR, a pesquisadora conheceu quartéis inteiros ao
participar das primeira formações do Programa Educacional de Resistência às Drogas (Proerd) da Polícia Militar, instituição que já a
homenageou com a medalhada Sarmento, maior honraria concedida
a um civil pela corporação.
O interesse em ampliar o debate e desenvolver políticas
sobre drogas, no entanto, ultrapassa os limites da academia. Em
casa, lê o livro Um preço muito alto, do neurocientista norte-americano Carl Hart. “Tenho me sentido incomodada”, confidencia.
Hart defende que a droga é usada como bode expiatório para jusSérie Perfil 73
Araci Asinelli da Luz
tificar a falta de políticas sociais e que descriminalizar o uso não
aumenta violência urbana. Apesar da leitura, Araci ainda constrói
opinião sobre o assunto.
Avó do Alyson, Jéssica e Felipe
Araci não nega. Gosta de uma polêmica. Mas, neste caso, o tema não
entra em questão, mas coloca a amizade construída com o casal Toni
Reis – criado do grupo Dignidade e uma dezena de outras ONGs, e o
britânico David Harrad em primeiro lugar. Ela é avó dos filhos deles
por adoção, o Alyson, a Jéssica e o Felipe. Integrante do movimento LGBT, ela sempre foi atuante no Dignidade, onde pode entrar
sem pedir licença ou ser apresentada. Araci também foi professora
de Toni, um dos fundadores do grupo. Araci é avó também de outros
seis netos, filhos de seus rebentos.
Sua participação no grupo fez quebrar preconceitos de todas
as formas e levar a bandeira adiante, inclusive dentro de sua família.
Tudo começou com Alyson. Ele queria uma avó. Ela se ofereceu. Assim, estendeu um pouco mais sua família. “O Alysson se encantou
com ela. É impossível não se encantar com a Araci”, elogia Toni Reis.
Falar sobre temas delicados é especialidade de Araci. Argumentar a favor do que pensa também. A professora de biologia é contra
aborto. “Valorizo a vida em todas as suas formas”, frisa. Ela é adepta
da prevenção.
74 Série Perfil
Paulo Salamuni
Nascido em Curitiba, em Paulo Salamuni
tem 54 anos. Desde 1991, exerce a função
de vereador – ainda que tenha ficado apenas como suplente nas eleições de 1996 e
2008. Em 2013, foi eleito presidente da Câmara para um mandato de dois anos, que
se encerrou em janeiro deste ano. Nesta
semana, aceitou o convite de Gustavo Fruet
para assumir a liderança do prefeito na Câmara. É sua primeira legislatura como um
vereador da base – antes disso, foi sempre
de oposição. Foi filiado ao PMDB até 2005
e, depois, ingressou no PV. Além de seu
mandato como vereador, Salamuni é também ligado ao movimento escoteiro. Presidiu a União Brasileira dos Escoteiros entre
2002 e 2009. Foi, também, presidente do
Clube Sírio Libanês do Paraná, entre 2009
e 2011 – todos os seus quatro avós vieram
do Líbano. Formado em Direito pela PUC-PR, é procurador municipal desde 1996. É
filho de Riad Salamuni, primeiro reitor eleito da UFPR em 1985, e Hôda Salamuni, e
tem três irmãos. É solteiro e não tem filhos.
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Série Perfil 77
Paulo Salamuni
Curitiba a bordo de um Tempra
Chico Marés, com foto de Alexandre Mazzo
vereador Paulo Salamuni começou sua carreira no movimento estudantil. Foi de uma vez por
todas. Tornou-se um político em tempo integral. No Jardim Botânico, onde mora, pode ser visto em conversa na calçada, às voltas
com questões paroquianas. Usa carro, mas é passageiro do biarticulado. A bordo do coletivo, exerce sua maior habilidade – a fala
intensa, incansável, sobre qualquer assunto. Se preciso for, recorre
ao Império Romano para explicar alguma coisa. Dá voltas. Nunca
nega o verbo. Ei-lo
Era o auge da carreira política de Paulo Salamuni. No dia anterior, ele havia sido alçado à presidência da Câmara, depois de passar
21 anos como vereador de oposição – a maior parte do tempo, no
exercício do mandato. Seu compromisso para o dia era um almoço
com Gustavo Fruet, também recentemente empossado. Era de se
imaginar que tal ocasião requisitasse o salão mais nobre de um extravagante – ainda que brega – restaurante de Santa Felicidade, com
correligionários, comissionados, jornalistas, fotógrafos, assessores,
aspones e beldades desfilando entre uma horda de garçons atordoados, com dezenas de porções de frango a passarinho e risoto equilibradas em seus braços. Uma demonstração incontestável de poder.
Os dois preferiram, porém, comer sozinhos uma frugal lasanha na
casa de dona Ivete, mãe do prefeito. Nada podia ser menos apropriado para dois políticos.
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Ninguém poderia ter um perfil tão oposto ao que se espera de um
presidente do Poder Legislativo da capital quanto Salamuni. Ao lon78 Série Perfil
go de sua carreira política, nunca demonstrou as qualidades e defeitos necessários para um chefe de poder – a capacidade de articular e
desarticular, unir e desunir, erguer o palanque e puxar o tapete, jogar
o jogo da política como um Derosso, um Aníbal, um Sarney. Pelo
contrário: é famoso pelos discursos exageradamente eloquentes,
pelas escolhas políticas pouco pragmáticas, pela defesa arraigada de
conceitos distantes da prática do parlamento. Um homem que prefere lasanha ao poder.
Isso não significa que Salamuni não seja um político. Aliás, poucas pessoas em Curitiba encarnam o personagem político como ele.
Em duas ocasiões, desde que tomou posse como vereador, perdeu
as eleições e ficou na suplência. Mesmo assim, circulava pelo Jardim
Botânico, bairro onde a família vive há mais de 40 anos, conversando
com os moradores, buscando soluções para os problemas paroquiais.
Não por acaso se refere a parlamentares que deixaram a Câmara pelo
título de “sempre vereador”.
Na última derrota eleitoral, em 2008, parecia estar destinado
a assumir de vez o título de “sempre vereador”. Alguns anos antes,
tinha deixado o PMDB após entrar em rota de colisão com Roberto
Requião, um de seus aliados de primeira hora. Na época, o então governador impediu que Fruet se candidatasse a prefeito pelo partido.
Filiado ao PV, Salamuni chegou a disputar o Senado em 2006, mas
a maior exposição não foi suficiente para que recuperasse os apoios
perdidos após a troca de legenda.
Sair do PMDB foi uma decisão difícil: iniciou sua carreira na
juventude do partido, nos anos 80, período de efervescência política no país. Como jovem liderança peemedebista, interagiu com
algumas das figuras sobre as quais decalcou sua carreira política:
Série Perfil 79
Paulo Salamuni
Ulysses Guimarães, Teotônio Villela e, principalmente, Pedro Simon – com quem se identifica particularmente por “ser árabe, baixinho e falar pelos cotovelos”. Além, claro, dos paranaenses José
Richa e Maurício Fruet.
Enquanto o Brasil vivia uma era de otimismo com a transição
para a democracia, Salamuni cursava Direito na Universidade Católica – hoje, PUC-PR. Após ser duramente combatido durante a ditadura, o movimento estudantil ressurgia naquela época. Com seus
colegas, fundou o Centro Acadêmico Sobral Pinto em 1980, e passou
a se dedicar à militância na universidade – em uma época na qual as
lideranças políticas estavam realmente próximas da sociedade civil.
Não era só a política estudantil e partidária, porém, que aproximava o jovem Salamuni de figuras como Ulysses, Simon, Richa e
Fruet. Seu pai, o geólogo e professor da UFPR Riad Salamuni, foi o
primeiro reitor eleito da história da instituição, em 1985. Tal feito
exigiu a mobilização política da comunidade universitária. Assim, se
aproximou das principais lideranças democráticas da época. E, nesse
processo, a sala de estar de sua casa no Jardim Botânico virou mais
um ponto de encontro do universo político.
Ali, o choque pacífico entre a política e o dia a dia da faculdade
de Direito era inevitável. Conta Salamuni que chegou a atuar como
cupido neste meio. Foi lá que sua colega Débora conheceu um deputado federal do PMDB jovem e boa pinta, com aspirações de se
tornar senador: Álvaro Dias. Os dois são casados até hoje, e tem dois
filhos. Ele próprio, entretanto, continua solteirão. Não sabe dizer o
porquê: por um lado, testa a hipótese de que a vida na política, ainda
mais a política do seu jeito idiossincrático, dificulta a formação de
uma família. Porém, admite também que temia não ser capaz de formar um núcleo familiar tão sólido quanto o que tivera como jovem.
Sólido não significa livre de conflitos, porém. Em 1982, ele
botou na cabeça que queria ser vereador. A oportunidade era ótima: o PMDB vivia o auge de sua popularidade, e, como se dizia
na época, “até um poste” conseguiria se eleger. O pai, experiente,
jogou o balde de água fria: “só saia candidato depois de concluir a
universidade. A Câmara é um moedor de carne, você pode acabar
80 Série Perfil
com a sua vida se for eleito”, disse. Hoje, meio a contragosto, admite: o pai estava certo.
Formado, foi se candidatar somente em 1988. Os tempos eram
outros: o candidato peemedebista, Maurício Fruet, foi derrotado por
Jaime Lerner. O PMDB perdeu mais de dez vereadores. Como resultado, Salamuni acabou ficando somente com uma distante quinta suplência. Após uma sequência de mortes, eleições e nomeações para o
secretariado estadual, acabou se tornando vereador no dia 23 de abril
de 1991 – coincidentemente, o Dia Mundial do Escoteiro.
Nem sempre alerta
Antes de ser político, Salamuni é escoteiro. Com orgulho. Seu gabinete é decorado com medalhas, troféus e recordações de suas atividades no escotismo. Foi presidente da União dos Escoteiros do
Brasil entre 2002 e 2009 e conheceu o mundo viajando de Jamboree
em Jamboree. Sente falta apenas de uma viagem ao Líbano, terra dos
seus avós. Reconhece que o momento não é exatamente adequado
para uma viagem na região, mas faz uma proposta: pode achar uma
solução “salamúnica” para os conflitos entre árabes e israelenses, xiitas e sunitas, sírios e sírios. Nada mais adequado para um atleticano
filiado ao Partido Verde.
Pela causa, quase fez uma tremenda burrada. No auge dos protestos de junho de 2013, já no cargo de presidente da Câmara, quase
deixou a cidade em polvorosa para participar de um encontro escoteiro fora do país. Só não foi porque levou um sonoro pito da jornalista Teresa Urban.
Quando conta essa história, sua voz fica embargada. Jornalista
veterana, vítima da ditadura, Teresa se tornou sua principal conselheira depois que ele assumiu a presidência – virou uma espécie de
chefe de gabinete voluntária, sendo a primeira e última pessoa que
ouvia para cada decisão que tomava. Os dois tinham em comum a
irônica solidão de uma existência dedicada à vida pública, cada um à
sua moda, e se tornaram amigos próximos.
Dias antes da viagem, Salamuni comunicou Teresa via SMS que
deixaria a cidade. A resposta veio minutos depois, de forma ríspida.
Série Perfil 81
Paulo Salamuni
“Como você vai deixar a cidade com o povo na rua? Perdeu a noção
da sua responsabilidade?” Ele percebeu o que estava fazendo e, algumas horas mais tarde, respondeu que a viagem estava cancelada. Ficaria em Curitiba para acompanhar os desdobramentos do protesto.
Às 23h, ela respondeu que estava aliviada. Foi a última mensagem.
Minutos depois, teve um ataque cardíaco, ao qual não resistiu.
Esse homem não para de falar
Foi através do escotismo que Salamuni teve seu primeiro contato com a vereança. Quando tinha cinco anos, sua mãe, Hôda, o
levou, vestido a caráter, à inauguração do Largo Baden Powell –
homenagem da cidade ao fundador dos escoteiros. No palanque,
o presidente da Câmara fazia um discurso enfadonho, rebuscado.
Os minutos passavam como horas, até que o pequeno escoteiro
vira para mãe e diz:
– Ai, que saco, esse homem não para de falar!
Não tem como não rir da ironia. Quem conhece a política de
Curitiba, sabe que Salamuni fala mais que o homem da cobra. Durante um depoimento da CPI que investigou o ex-presidente da Câmara
João Cláudio Derosso, cada um dos membros tinha direito a fazer
três perguntas, cada uma de cinco minutos. Quando chegou sua vez
de perguntar, Salamuni iniciou a questão lembrando da história da
mulher de César, a quem não bastava ser honesta, precisava parecer
honesta. Refletindo sobre isso, gastou os cinco minutos. Pediu prorrogação. Continuou o raciocínio por mais um minuto, e estourou o
tempo. Pediu mais trinta segundos.
Quando voltava ao raciocínio, foi interrompido. “Pare de falar sobre a mulher de César e faça logo sua pergunta, Salamuni!”, reclamou o presidente da CPI, Emerson Prado. Ele ficou indignado.
Quem é o presidente para cercear a liberdade de fala de outro vereador? Depois de muito bate-boca, chegou-se à solução “salamúnica”:
Salamuni poderia usar todos os quinze minutos ao qual tinha direito
de uma vez só. Encerrados os quinze minutos, ainda estava falando
sobre a história da mulher de César. Acabou não perguntando nada.
Apesar deste e de muitos outros contratempos, a CPI reani82 Série Perfil
mou a carreira política de Salamuni. Em 2011, ele retornou à Câmara, herdando a vaga deixada por Roberto Aciolli, eleito deputado
estadual, e a perspectiva era pouco animadora. A bancada de oposição, da qual participava desde os tempos de Lerner, nunca esteve menor, mais desunida e mais esmagada pelo rolo compressor do
governo. As denúncias de irregularidades nos contratos de publicidade da Câmara acabaram servindo como um fator de união e deu
visibilidade aos poucos vereadores do PV, PT e PMDB no segundo
semestre daquele ano.
Salamuni teve um papel de destaque na investigação do escândalo. Foi indicado pelo PV para fazer parte da CPI e, junto com o
petista Pedro Paulo, apresentou um relatório paralelo que responsabilizava Derosso pelas irregularidades. Foi voto vencido, como
era de se esperar, mas sua atuação rendeu prestígio político e votos.
Foi reeleito em 2012 com uma votação expressiva e, com o apoio de
Fruet, virou presidente da Câmara depois de passar 21 anos como um
vereador de oposição, sem nunca ter sentado na Mesa Diretora.
Muitos vereadores votaram a contragosto, para não se desgastar com o prefeito. “Se o Salamuni virar presidente, ele não vai deixar
a gente tirar nem Xerox na impressora da Câmara”, confidenciava um
dos parlamentares mais experientes, às vésperas da votação. Como
presidente, deu sequência a uma agenda de moralização da Câmara já iniciada na gestão de João do Suco: cortou cargos, instituiu o
ponto eletrônico, aumentou a transparência na internet, entre outras
coisas. Sua predisposição para o diálogo também deixou a Câmara
mais aberta para os outros vereadores do que era anos antes. Não
que estas aberturas fossem livres de problemas: a instalação da ouvidoria municipal, prevista para 2013, está quase dois anos atrasada, em
grande parte, pela insistência em ouvir todas as partes, o tempo todo.
Além disso, teve a honra de assumir a prefeitura de Curitiba
por quatro dias, o que lhe rendeu uma situação no mínimo curiosa.
No carro oficial, reparou que passava por uma rua esburacada, e comentou com o motorista: “preciso anotar o nome dessa rua aí para
avisar para o prefeito”. Ao perceber a expressão do motorista, lembrou: “peraí, o prefeito sou eu!”
Série Perfil 83
Paulo Salamuni
Seu período como presidente, porém, não o tornou popular
dentro da Câmara. Os servidores se revoltaram contra o ponto eletrônico. Junto com parte dos vereadores, também entraram na Justiça contra a Câmara por sua insistência em não pagar a correção da
URV, medida que causaria um rombo de R$ 120 milhões aos cofres
do município – decisão de primeira instância deu ganho de causa
à Câmara. No fim do seu mandato, o apoio ao prefeito era quase
irrelevante: o que contava eram as bancadas de apoio e oposição a
Salamuni.
Sendo assim, eleger um sucessor foi mais difícil que eleger a si
próprio. Durante o processo eleitoral, teve de tudo: seus opositores
chegaram ao extremo de rasgar um documento e tirar um computador da tomada para evitar o registro formal do bloco de Aílton Araújo, um de seus braços direitos na administração da Câmara. No dia
da votação, a confusão era tanta que o PSDC constava como inscrito
nos dois blocos que iriam participar da disputa – e isso era suficiente
para definir o resultado. Caberia ao presidente decidir qual das inscrições era válida.
Durante toda sua trajetória, Salamuni sempre foi adepto das
decisões “salamúnicas”. Antes de tomar qualquer decisão, ouve todas
as partes envolvidas e, acima de tudo, busca o conselho das pessoas
que mais admira. Mas Teresa e Riad já não estavam mais lá para dar
um pouco de luz. Com uma canetada, ele decidiu que o PSDC era
parte do seu bloco. Assim, garantiu a eleição do sucessor.
Conduzindo mr. Fruet
Voltamos a 1991. Salamuni já começa sua carreira de vereador estorvando. Quando foi fazer seu juramento, aproveitou que era Dia
Mundial do Escoteiro e, sempre alerta, fez a saudação. Na sequência,
emendou um discurso sobre as qualidades do escotismo na formação dos cidadãos. Os vereadores ficaram irados: como esse sujeitinho
chega aqui e, sem nem tomar posse direito, já emenda um discurso
desse tamanho?
No mesmo dia, saiu da Câmara acompanhado de Jorge Samek. Os dois passaram na frente de uma loja de motos e, meio que
84 Série Perfil
de supetão, Salamuni resolveu comprar uma Honda recém-lançada,
aconselhado pelo colega. Acabou desenvolvendo um hábito: para
espairecer, dá umas voltas de moto pela cidade. Não é algo para o
dia a dia. Para ir à Câmara, geralmente vai de carro, mas volta e meia
prefere pegar um ônibus. Enxerga isso como uma oportunidade de
exercer sua função de vereador, ouvir e sentir na pele as reclamações do povão.
Na realidade, a moto uma forma de passar alguns minutos no
anonimato: após tantos anos na política, é difícil ter um momento
de privacidade. Não importa onde você esteja, sempre vai aparecer
alguém pedindo ajuda com um buraco na rua, uma lâmpada queimada, uma rua que sempre alaga. “E eles tem toda a razão! Não foram
eles que vieram pedir para eu ser vereador, sou eu quem peço voto”,
reflete.
Esses passeios geralmente são rápidos. A rotina de vereador
exige tempo. Não são só as sessões, que ele sempre frequentou religiosamente, ou os atendimentos no gabinete. Tem também as inevitáveis ocasiões sociais. Ele conta que, certa vez, foi convidado para
quatro casamentos no mesmo dia, na mesma igreja. No final do quarto, viu que o casamento seguinte era de um colega de faculdade com
quem não falava há anos. Acabou ficando por lá mesmo.
Apesar da sensação de anonimato, a moto não consegue tirar
de Salamuni seus tiques de homem público. Segundo ele, já virou piada entre seus irmãos o fato de que, mesmo irreconhecível atrás de
um capacete, dá tchau para os transeuntes toda vez que para em um
semáforo.
23 anos depois, ele ainda tem a mesma moto, que cuida com
zelo absoluto. É até difícil acreditar que ela seja tão velha. Além dela,
possui também um Tempra – que, para começo de conversa, é um
Tempra, modelo que deixou de ser produzido em 1999. Ele tem um
carinho especial por esse carro: gosta de listar seus passageiros ilustres, que vão de Marina Silva a Requião, passando por Fernando Gabeira e Elias Abrahão – outro peemedebista que gosta de citar como
um modelo para sua formação política.
A bordo desse mesmo Tempra, em janeiro de 2013, ele conduSérie Perfil 85
Paulo Salamuni
zia Fruet de volta para a prefeitura, após a lasanha de Dona Ivete.
Além de velho, ainda que bem conservado, o carro não possui insulfilm. Então, a cada semáforo que paravam, os motoristas ao lado
olhavam para o carro e ficavam estupefatos: “é o prefeito de Curitiba
e o presidente da Câmara dando uma volta de Tempra?”
Depois da vacilação, os motoristas acenavam, buzinavam. Era
aquela lua de mel entre os eleitores da cidade e seu prefeito eleito,
que, assim como tudo na política, logo passa. Os dois acenavam e buzinavam de volta. “Só espero que os aplausos do início não se transformem nas vaias do final”, divaga Salamuni, ao relembrar o episódio
após dois longos anos de poder. Faz algum sentido. Após aqueles dias
de glória, os dois teriam de enfrentar as realidades da administração
público: orçamentos, egos, projetos, críticas, decisões difíceis quase que diárias. Era só o começo do caminho mais difícil que os dois
iriam trilhar.
– Imagina o sujeito no carro ao lado, “a cidade de Curitiba está
sendo conduzida por aqueles dois cidadãos ali no Tempra!” – comentava Salamuni, aos risos, durante o trajeto.
– Eu só não sei como é que deixaram a gente chegar até aqui! –
respondia Fruet, às gargalhadas.
Ao chegar na sede da prefeitura, ele dirigiu até o estacionamento reservado a Fruet e seu secretariado. Nisso, “metade da Guarda
Municipal” – nas suas contas sempre exageradas – corria em direção
ao carro, já aos berros: “vocês não podem estacionar aqui, essas vagas
são das autoridades”. E constataram, estupefatos, que o Tempra estava cheio de autoridade.
86 Série Perfil
Frei Pedro Brondani
O frade capuchinho Pedro Brondani comemora em 2015 os dez anos da Pastoral da
Aids, projeto que iniciou quando atuava na
Vila Nossa Senhora da Luz, em Curitiba. A
ideia foi acolhida pela arquidiocese, espalhou-se pelo país e pauta o próprio Ministério da Saúde. As ações de frei Pedrinho,
como costumam chamá-lo – pela altura e
pelo afeto instantâneo que desperta – incluem o conforto espiritual aos contaminados, a militância junto a governos, mas
em especial a convivência fraterna com os
soropositivos. O religioso faz visitas semanais ao Hospital Oswaldo Cruz; assessora
o grupo de adesão do Hospital de Clínicas
– iniciativa da enfermeira Maria Alba Oliveira e do assistente social Silas Moreira
–; mas principalmente está à disposição.
Não raro, abre as portas dos conventos capuchinhos para confraternizações com os
que considera os últimos entre os marginalizados. Nesses encontros, viúvas, idosos,
jovens, transexuais e travestis, voluntários
formam o que ele chama de “sua família”.
“O vírus não mata. O que mata é a indiferença”, repete em defesa dos seus.
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Série Perfil 89
Frei Pedro Brondani
E Pedrinho inventou o abraço...
José Carlos Fernandes, com foto de Jonathan Campos
a década de 1980, até os crentes
blasfemavam ao saber notícias da Etiópia. Dizia-se que Deus tinha se
esquecido daquele pedaço da África. Não bastassem os estragos causados pelos 44 anos de tirania do imperador Hailé Selassié, sobreveio
no país a guerrilha, a seca, a fome em massa e mais de um milhão de
mortos. As fotos da população esquálida rodavam o Globo. Não se
via nada tão desolador desde o Holocausto.
O frade capuchinho Pedro Brondani, 51 anos, bem se lembra. À
época, era um adolescente da classe média da pacata Ponta Grossa,
nos Campos Gerais. Um bom rapaz. De família devota, não faltava à
missa – e causava impressão com suas roupas de domingo, as camisas
bem passadas e os sapatos bico fino. Habitava um mundo perfeito.
Ou quase.
As misérias não lhe eram de todo estranhas. Via-se bem perto
delas quando chegava sua vez de levar um prato-feito para os mendigos que batiam palmas no portão de sua casa, no bairro Ronda, perto
da rodoviária. Atender a quem pedisse comida fazia parte das regras
ditadas por seu José e dona Idovina aos seis filhos. Mesmo não sendo
um “alienado”, saiu desconcertado da reunião do grupo de jovens em
que frei Pio, o vigário, mostrou uma reportagem sobre o flagelo etíope. “Aquela leitura inquietou minha mocidade”, resume.
Foi quando Pedro se sentiu “chamado”. Na ocasião, havia lido
umas linhas sobre Francisco de Assis. Simpatizava com os capuchinhos. Curtia vê-los todos de marrom e dedões de fora, puxando cortejos nas animadas procissões de Corpus Christi. Escolha feita. Em
pouco tempo, passou a fazer parte da comunidade franciscana do
bairro Uvaranas. Aos 21 anos, em 1984, entrou para a ordem. Trouxe
consigo as camisas, os sapatos e o desejo de ajudar a Etiópia.
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Três décadas depois, frei Pedro Brondani ainda não conseguiu carimbar seu passaporte para a África. “A África é aqui”, costumam
consolá-lo seus superiores, a cada adiamento. Ele concorda, com
conhecimento de causa. De seu ingresso na ordem dos frades capuchinhos até hoje, viu mais tragédias do que podia supor nos tempos
em que atendia os pobres no portão. E depois de vê-las, mergulha de
cabeça.
Quando trabalhou com os meninos em situação de rua, dormiu
no sereno e revirou latões de lixo, para entendê-los. Colocar-se no lugar dos outros é sua medida. Repetiu a mesma dose ao atuar junto aos
soropositivos, missão mais conhecida em sua lista de serviços prestados. Dessa experiência, surgiu em 2005 a Pastoral da Aids, projeto
ousado até o osso. A aids é a Etiópia de Pedrinho.
O capuchinho teve de ler muito relatório da Organização Mundial da Saúde para fazer a coisa certa. Não só. Precisou presença de
espírito para driblar o preconceito – que acabou recaindo também
sobre ele. O frade lida com contaminados – o que inclui qualquer
pessoa. Mas os olhos míopes dizem vê-lo de braço dado apenas com
prostitutas, homossexuais, travestis e transexuais, a quem, nas entrelinhas, culpam pela epidemia. “Já ouviu falar da moral de cueca?”,
descontrai.
Muitos se horrorizam ao encontrá-lo de conversa não com
um paroquiano, mas com uma trans que passava pela rua. E se
espantam mais ainda quando uma travesti o visita no convento,
em busca de um ombro amigo. Não faz cerimônia – convida-as
Série Perfil 91
Frei Pedro Brondani
à mesa, como faria com um casal que dá curso de Batismo. Não
faltam passagens curiosas.
Em 2007, frei Pedrinho foi com uma leiga idosa a um encontro
de ONGs. Sem que soubesse, no mesmo local havia um colóquio de
militantes trans – para o qual chegaram “montadas”. Em minutos,
aquele estranho no ninho, de hábito puído, se confundia às ruidosas gurias de salto plataforma. Não se sentiu à vontade, mas lembrou
que tinha preparado uma fala sobre “O bom samaritano”. Foi o que
bastou para decidir usar a régua de sempre. Mergulhou. “Tive de me
desconstruir, saber da dor delas. Isso tem nome – misericórdia”, comenta recorrendo à sua infalível moral prática.
Virou rotina. Em 1.º de dezembro – Dia Mundial de Luta Contra a Aids –, Pedrinho sai de capuchinho pela cidade, acompanhando
a ação das ONGs. “Não consigo entender o silêncio dos meios de
comunicação. Fala-se da HIV no carnaval e no Dia Mundial, como
se o vírus tirasse férias os demais 363 dias do ano”. Não distribui preservativos, pois não é essa a tarefa da pastoral. Distribui informação.
O encanto e o frisson causados por sua presença nem por isso
são menores. Nessas horas em que está ao sabor das pedras, usa de
graça, inclusive com os companheiros de claustro. “Os frades mais
velhos estranham, é natural. Os outros entendem. Costumo dizer
que estão ficando mais católicos” – e dá risada.
Certa vez, um parente confidenciou o mal-estar que sentia
diante da turma, digamos, exótica, com quem ele lidava. Por quê?
A resposta foi simples: “Essas pessoas são a minha família...” Com
mansidão, pediu para que da mesma maneira com que acolheu os sobrinhos, também eles acolhessem os filhos que a vida lhe tinha confiado. A treva se dissipou.
Em outra ocasião, um rapaz o abraçou na frente de ninguém
menos que José Brondani – o pai, caminhoneiro, gaúcho, formado
na castiça tradição dos Pampas. “Quero que o senhor saiba que o frei
Pedrinho é o amor da minha vida”, disparou . O patriarca franziu o
cenho – mas a essa altura já sabia de que amor o visitante estava falando. Ele e a mulher chegaram a embarcar num trailer no qual o filho
idealista cruzou o Paraná, em meados dos anos 2000, visitando de92 Série Perfil
zenas de cidades, onde falou sobre prevenção e tolerância. Viraram
entusiastas da causa.
O velório
Pedro Brondani costuma dizer que não escolheu a aids – a aids o escolheu. Essa história tem local e data. Foi no ano de 1986, em Ibiporã,
no Norte do Paraná. Ele morava numa “fraternidade inserida”, pequeno convento em área de conflito social – quando lhe pediram para
“encomendar um corpo”. Tinha 23 anos e recém-professado seus votos perpétuos, cerimônia em que o religioso se consagra a Deus e se
compromete em definitivo ser casto, pobre e obediente, como Jesus.
Estava de lua-de-mel. Catou a água benta e se mandou às carreiras.
Para sua surpresa, encontrou um soberbo caixão lacrado – desses de filme americano – e um velório pouco concorrido. Estavam lá
apenas os pais e os irmãos do falecido, um jovem rico que morrera
nos EUA, em decorrência das infecções impertinentes. Nem amigos,
nem parentes, nem vizinhos vieram se despedir. Naquele dia, viu a
cara da aids, até então, uma abstração.
[Três anos antes do velório em Ibiporã, Pedro – ainda noviço –
foi designado para servir no Hospital Dermatológico São Roque, em
Piraquara, para pacientes de hanseníase. No passado, um leprosário.
Não queria ir. Chegou a se atirar no chão da capela, dando uma dura
em Deus. “Eu preferia o asilo”, ri. No hospital, pânico – não comia
nada, tinha pavor de deitar numa cama. Até que entrou numa ala – e
lá encontrou Lázara, a Lazinha, sem o nariz, sem pés e mãos, cega.
Mas ela o percebeu. “Está com medo do quê?” Disse que seguisse
pelo corredor. Que acharia um jardim e uma fonte. Bebeu água. Logo
soube que a fonte fora cavada com o toco das mãos dos primeiros
internos. A angústia acabou. “Lazinha era o Amado”, deduziu Pedrinho, que depois disso se livrou das camisas de bom corte e dos sapatos. Adotou a barba longa. E se tornou quem é.]
De Ibiporã, Pedro ganhou transferência para Foz do Iguaçu.
A cidade é um capítulo à parte. O frei não esconde a empolgação
Série Perfil 93
Frei Pedro Brondani
ao falar das seis comunidades que ajudou a criar, para acolher dependentes químicos e soropositivos. Presenciou lances dramáticos
– como a da prostituta que lhe perguntou se havia alguma chance de
ser recebida no céu. A mulher morreu ouvindo o capuchinho lhe falar
num Deus amoroso. “Na casa do pai tem muitas moradas”, costuma
repetir nessas ocasiões, sem afetação.
Pedrinho não é clerical, é coloquial – uma de suas qualidades.
A outra é a forma incisiva com que defende o choro. Não lhe parece
pieguice, mas um santo remédio para abrir as portas da compaixão.
“Acho que tem de chorar, sim”, decreta, em uníssono com o papa
Francisco, que faz pouco pediu aos jovens filipinos que amem e chorem pelos outros.
Se for preciso arrancar gargalhadas, contem com ele. Certa
vez, na decadente região do Cadeião, em Foz, a dona de um ponto
de prostituição chamou os frades às falas. Queria lhes doar a casa que
mantinha – que fizessem do lugar o que quisessem, até uma capela.
Fizeram uma capela. Na hora das missas, não se ouvia um pio na zona
de meretrício. Necas de música de corno, nada. Dava-se uma hora de
trégua para os ofícios religiosos. Não faltavam fieis.
A essa altura de sua peregrinação, frei Pedro tinha desenvolvido duas “manias” que se mostrariam determinantes na sua futura
obra – 1) a de abraçar as pessoas; 2) a de rezar em voz alta pelos doentes de aids. Parecia apenas um toque pessoal, até que alguém, a 640
quilômetros do Cadeião de Foz, na Cidade Industrial de Curitiba,
quis saber por que tanta insistência no assunto. A Pastoral da Aids
estava para nascer.
“Frei, sou soropositivo”
Em 2003, os superiores mandaram Pedro Brondani para a Vila Nossa Senhora da Luz. Obedeceu. Passou a ajudar no atendimento a 19
capelas – em todas pedia pelos que sofriam “a solidão da aids”, não se
importando para o desconforto da audiência. Até que um rapaz lhe
pediu um aparte. Ouvira a oração e estava ali para se declarar – “sou
soropositivo”. Em resposta, o frei lhe disse que queria fazer algo mais
pelos contaminados, mas que não iria sozinho. “Vem comigo?”
94 Série Perfil
Dois anos depois, com o aval de dom Moacir Vitti, a Pastoral
da Aids estava formatada. Uma ação ficou famosa – as vigílias pelos
mortos. Outra foi copiada pelo Ministério da Saúde: frei Pedrinho
viajava a bordo do trailer, cruzando oito dioceses ao lado de seus
agentes. O trabalho do religioso não é só o primeiro de que se tem
notícia – deve também ser o único que consegue ser divertido, contrariando as expectativas fúnebres.
Parte da leveza se deve ao que acabou sendo chamada de “Terapia dos 12 Abraços”, técnica informal que deveria registrar em cartório. A ideia nasceu em 1995. Frei Pedro notou que os soropositivos, ao
se verem pouco tocados, também passavam a não tocar nas pessoas.
O efeito psicológico da ausência de contato físico é devastador. “A
indiferença mata. O vírus não mata”, repete. Passou então a sugerir
que os participantes da pastoral – soropositivos ou não – fizessem o
propósito de abraçar, “sei lá, 12 pessoas por dia”. O “12” foi aleatório,
jura. Virou um viral.
O próprio Pedro não se furta da regra. Não se espantem ao passar pela Avenida Manoel Ribas, próximo à Paróquia Nossa Senhora
das Mercês, onde ele mora, e encontrar um sujeito baixinho, sorridente, de longas barbas brancas, perguntando com voz rascante e
agauchada: “Posso te dar um abraço?” Se as contas estiverem certas, o
frei dá 4.380 abraços por ano – 87.600 desde que inventou essa moda.
Em tempo. Talvez Pedrinho consiga se mudar para a África
em 2016. “Quando for, acho que vou de vez”, avisa o pontagrossense. Anda ansioso para abraçar a Etiópia. Ou seria Moçambique? Vai
onde a voz do vento lhe chamar. Assim tem sido.
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Inteiros
Á l v a r o
P a a d r e
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R e g i n a l d o
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M a n z o t t i
Série Perfil 97
Álvaro da Silva
A Sociedade Operária Beneficente 13 de
Maio – no bairro São Francisco, em Curitiba – completou este mês 127 anos de
fundação. Para pesquisadores, é a terceira
agremiação negra mais antiga do país em
funcionamento – a primeira fica na Bahia,
a segunda no Rio Grande do Sul. ¶ São muitos os encantos da “13”. Surgiu no ano da
Abolição da Escravatura, 1888, pondo por
terra algumas crenças propaladas sobre o
“Paraná Branco de Neve”. Fica no “ponto
zero” da Alameda Princesa Isabel – sabe-se pouco a respeito dessa coincidência.
Teve sócios alforriados, letrados, ligados
ao anarquismo, à luta operária e, suspeita-se, à maçonaria. ¶ Mas a “13” não é feita
só de glórias. Como as demais sociedades
étnicas, provou da decadência. Em 1995,
quando foi eleito para o cargo de presidente, o aposentado Álvaro da Silva temia pelo
futuro do mais importante símbolo de resistência negra do estado. Viu que a única
saída era abrir a casa à gente da música e
da arte em geral, para que a ocupassem.
Deu certo. ¶ De 15 anos para cá, a sociedade foi descoberta por jovens alternativos,
que circulam por ali todos os dias. Sabem
que não são da diretoria. Mas abraçaram a
“13” como uma causa política e libertária.
“A cultura salvou nossa sociedade”, avisa
Álvaro, e firma como verdade.
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Álvaro da Silva
Na “13” ainda tem batucada
José Carlos Fernandes, com foto de Daniel Castellano
or ocasião da virada do milênio, Álvaro da Silva chorou. Não foi culpa dos fogos de artifício
nem da proximidade da Era de Aquarius. Chorou porque viu a Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio com lotação completa – contava 400 pessoas, mais a fila na porta. Havia muito não
acontecia. Em cada palmo dos 870 metros quadrados da casa tinha gente balançando as cadeiras, ao som da banda Serenô, como
se não houvesse amanhã.
A maioria dos que estavam ali, Álvaro nem imaginava de onde
vinha – era uma moçada bem diferente da que conheceu nos tempos
de boemia, quando se acabava na Escola de Samba Colorado – a mítica agremiação da Vila Tassi, Capanema, faculdade na qual se graduou. Mas não importava: bem-vindos, adoráveis estranhos. Aqueles
“descolados”, como os chamavam, tinham salvado a “13” de baixar as
portas. Euclides da Silva, seu pai, podia enfim descansar em paz.
0
Euclides da Silva, morto em 1995, faz parte de uma dinastia – a dos
homens ilustres que presidiram a vetusta Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio. Estima-se que a “13” é a terceira agremiação de negros mais antiga do país. Uma das atas indica que teria sido fundada
em 3 de maio de 1888, dez dias antes de a princesa Isabel assinar a Lei
Áurea. Outra fonte indica 6 de junho de 1888, 25 dias depois do fim da
escravidão. Não importa – é uma data surpreendente tal e qual. De
lá para cá, qual uma monarquia, não mais do que cinco homens passaram pelo comando da instituição. Somando os tempos de diretoria
e o de presidência, Euclides ficou 40 anos na liderança da sociedade;
100 Série Perfil
40 anos que pesavam nas costas do filho Álvaro.
Ele é a cara da Sociedade 13 de maio, presidente desde 1997, Álvaro da Silva dedicou a vida à casa que resguarda a cultura dos negros
paranaenses. Quando não está trabalhando, ele caminha pelas ruas
de Curitiba e joga conversa fora com os amigos na Boca Maldita.
A realeza de Euclides é anterior a seus tempos de monarca na
“13”. Vindo de Itajaí (SC), tornou-se um dos barbeiros mais populares
da capital a partir da década de 1950. Seu trono, uma cadeira de reluzente no Salão do Raul, na “paralelepípeda” Rua Saldanha Marinho.
Sentavam-se ali políticos e capitalistas, árabes e judeus que tocavam
o comércio da Tiradentes. Apreciavam a destreza do profissional no
manuseio da navalha e da tesoura, mas sobretudo o asseio. “Era um
cara estiloso, andava só no cipó”, resume o filho. Apelidaram-no, por
isso, “Garoto da Saldanha”. Tratava-se de um distinto cavalheiro, de
lendária elegância, capaz de suscitar os mais ardorosos adjetivos. Segundo consta, seu caráter era tão reto quanto o vinco de suas calças
de tergal.
Os sete filhos de Euclides acabam sendo conhecidos como...
“os filhos de Euclides” – na Saldanha, no Juvevê – onde os Silva passaram alguns anos – e na Vila Nossa Senhora da Luz, para onde o
barbeiro levou a família em 1966. Hoje, uma rua da vila, a antiga Perimetral Norte, o homenageia.
Álvaro, um dos mais novos da prole, fala com pouca paixão dos
anos anteriores à morte do pai, quando lhe coube substituí-lo na “13”.
Estudou no Colégio Professor Brandão, frequentou a Escola de Samba Não Agite, no Coritiba; casou cedo com Jurema, enviuvou mais
cedo ainda, nove meses depois das núpcias. “Ela tinha asma”, lembra,
sem mais. Trabalhou em de tudo um pouco – em fábrica de bolacha
Série Perfil 101
Álvaro da Silva
e fábrica de pincel. Foi vendedor. Casou-se de novo – com Jussara.
Tem uma filha, Amanda Elisa da Silva do Prado, 27 anos, mãe de seus
dois netos. Curtiria uma aposentadoria modesta na periferia – quem
sabe iria sábado para o samba – não fosse o pai ter-lhe apontado o
dedo: “Você vai me substituir na 13’”. Tremeu.
Estatuto da gafieira
A primeira vez de Álvaro na “13 de Maio” foi por volta de 1957. Tinha
10 anos e gostou do que viu. Àquela época, o “clube” era uma espécie
de antecessor de sociedades de negros da classe média que vingariam
no país, como a paulistana Sociedade Aristocrata, fundada em 1961.
Ao mesmo tempo, funcionava como prima pobre de agremiações
emproadas como o Thalia, Concórdia, Juventus, Dom Pedro II ou
Duque de Caxias – para citar cinco das aproximadas 45 sociedades
étnicas que animavam as matinês de Curitiba. Quem quisesse outra
opção de lazer, que se contentasse em paquerar no grupo de jovens
da paróquia.
As instalações acanhadas da “13”, com paredes meio-madeira-meio-alvenaria, contudo, eram compensadas pelo charme das gafieiras. Essas reuniões dançantes se tornaram disputadas a tapas. Como
muitas namoradinhas não achavam o local adequado, os rapazes se
beneficiavam da localização discreta, no inspirado “ponto zero” da
Alameda Princesa Isabel, e chispavam para lá. Ali se refugiavam nos
“50” os curitibanos entediados com as versões de Neil Sedaka; e, “nos
60”, os refratários às canções bobinhas da Jovem Guarda.
A Terra Santa da “13”
Se eram samba, e emoção, o que queriam, encontravam. Tanto que
as senhoras da “13” obrigaram os maridos a baixarem um decreto:
moça “de fora”, que frequentasse as gafieiras, não entrava em baile
das famílias negras. Ninguém ousava desobedecer. E os bailes do
petit comitê eram mesmo um luxo só. A sociedade estava longe
de ser rica, mas sua gente vinha do funcionalismo público – como
das fileiras da Rede Ferroviária Federal – caprichava nas perucas,
nos vestidos longos bordados a lantejoulas e nos sapatos brancos.
102 Série Perfil
Como se diz hoje, era “afirmativo”.
A casa tinha uma orquestra, a “Guarani”, e crooners capazes de
arrancar suspiros em série mesmo da ala mais conservadora das matriarcas negras. Era o caso do ex-jogador de futebol e cantor Darcy
Rosa – “negro Rosa” para os vizinhos; negro Dumbo para os íntimos.
Por essas e outras, de Ney Braga, Iberê de Matos e Omar Sabbag ao
então iniciante Maurício Fruet, uma penca de políticos graúdos preferia a “13” a qualquer outro point [ou mesmo inferninho] da capital.
Mais: sabiam o que deveriam fazer ao pisar naquele solo sagrado –
cumprimentar negros da diretoria, Euclides entre eles.
Álvaro cresceu vendo o pai no centro da cena, impecável e
galante como ele nunca tinha imaginado ser. “Não sou um dedo
dele”, repete.
Depois da queda
Faltam dados sobre a ascensão e queda de “13”. “Combinamos que
esse período é assunto do jornalismo, não da história”, brinca o advogado Thiago Hoshino, 28 anos, líder de uma equipe de pesquisadores
que nos últimos anos turbinou os estudos sobre a sociedade operária
dos negros. Hoshino e os seus viraram referência – mas estão com os
olhos voltados para os enigmas que rondam a fundação da sociedade,
nas barbas do movimento abolicionista do século 19. O próprio Álvaro se furta de explicar porque a sociedade foi minguando ao longo
dos anos 1970, 1980 e 1990. É provável que ocorreu ali o mesmo que
nas outras agremiações étnicas. Com a organização do antigo INPS,
o caráter de amparo na viuvez oferecido pelas sociedades deixou de
ser necessário. Acrescente-se que as opções de lazer se multiplicaram. Os famosos bailinhos do Thalia perderam a graça. As gafieiras
do “13” também. “Algumas sociedades étnicas faliram por falta de
uso... Estávamos no mesmo caminho”, comenta o presidente.
Euclides da Silva morreu em 1995, aos 76 anos. Foi velado dentro da “13”, com honras de rei Zulu, sendo levado em cortejo até o
mítico jazigo da sociedade operária, no Cemitério Municipal. Álvaro
viu o tamanho da carga – tinha de honrar o pai, ao mesmo tempo que
impedir que as paredes do “13” desabassem, o que podia acontecer a
Série Perfil 103
Álvaro da Silva
qualquer momento. Daí ter chorado naquele dia do ano 2000, quando viu a casa cheia de gente e a reforma em dia.
De um sujeito de poucas ambições, passara num estalar ao
posto de o cara que tirou da lona a Sociedade Operária Beneficente
13 de Maio. O contrário disso seria seu fim. Sabia bem o que significaria ser o sujeito que enterrou o mais importante símbolo da
comunidade negra do Paraná. Não foi o que aconteceu, à custa de
suor , lágrimas e ranger de dentes. “Naquela luta, eu fazia até bailes sertanejo. E muita reza”. Assoprou, passou: o som hoje na Rua
Clotário Portugal, 274 vem do berimbau e dos tambores. Quanto a
Álvaro, sente-se um pouco mais à vontade em fazer parte da dinastia dos que governaram a “13”.
Encantos
Álvaro da Silva já reparou numa coisa. A data da fundação da “13”
mexe com a imaginação do pequeno exército de Brancaleone que
ajudou a salvar a sociedade. Para quem cresceu ouvindo que o Paraná não tinha negros, impressiona saber que não só tinha como havia
entre eles letrados e politizados o bastante para criar um grupo antes
mesmo da assinatura em caneta tinteiro, de Isabel, ter secado.
“Não foram necessariamente os negros que ressuscitaram a ‘13’.
Quem revigora essa casa são os que gostam da história da sociedade
e da cultura do negro. Os jovens se comovem. Estar no território do
negro é um símbolo para essa gurizada loura que vem aqui”, fala Álvaro, num raro momento de prolixidade.
Além de Thiago Hoshino e sua trupe, o séquito de simpatizantes da “13” conta com Geslline Giovana Braga – habitué e uma das
autoras de Maria Bueno: santa de casa (2011), santa popular e mártir,
uma das mais ilustres frequentadoras da sociedade no século 19 – o
que inclui ter tido ali sua missa de corpo presente, após ser vítima de
um crime passional e ser rejeitada pela Igreja.
A lista dos novos participantes vai longe – passa pelo grupo Capoeira Angola Resistência, pelos oficineiros de maracatu, pela banda
de forró Areia Branca – que há sete anos comanda os animados saraus
de domingo na agremiação. Por apaixonados incondicionais, como
104 Série Perfil
a publicitária Brenda dos Santos, 35 anos. “Antes da ‘13’ acho que eu
nem sabia que era negra”, conta a jovem de turbante vistoso, alçada
ao posto informal de produtora da sociedade. Ela não gosta de título.
Sabe que há uma hierarquia de sócios e de negros históricos a quem
fazer genuflexão, mas admite, sim, que vai para as tabelas, em defesa
da casa. Faz o maior sentido.
O pequenino “13” serve como uma luva aos afetos de jovens que
lutam por direitos humanos, melhores condições urbanas, questões
de gênero e uma saraivada de bandeiras. É uma galera que acredita
no sistema de cotas e que promove ruidosas manifestações para suas
causas. Mas não são os únicos novos filhos da “13”. Por semana, entre
300 a 800 pessoas passam por ali – para cursos ou para os bailes, inclusive os de domingo.
Todos os simpatizantes, independente da escala, sabem de cor
o ano da fundação da sociedade: “1888, o mesmo ano da... Já pensou
nisso?” Comovidos, nunca negam uma mãozinha ao Álvaro. Nem
sempre ele aceita. Aos 68 anos, tem problemas de visão e está longe
de ser o rapagão de sorriso escancarado que arrepiava nos desfiles da
Colorado. Mesmo assim, está no auge moral. Descobriu que veio ao
mundo para cuidar da “13”. O que mais curte? Ver o pessoal subir a
escadinha da entrada e quase se ajoelhar diante do estandarte em que
está bordado a data “6 de junho de 1888”. Depois, os visitantes se arrepiam em sambar naquele terreiro onde o Paraná viveu uma de suas
mais belas histórias. Ninguém sai ileso desse ritual.
Série Perfil 105
Padre Reginaldo Manzotti
Reginaldo Manzotti nasceu na pequena Paraíso do
Norte, Noroeste do Paraná, em 25 de abril de 1965.
Caçula da família, recebeu formação católica dos
pais Antonio e Percília Manzotti. Como todo garoto da época, gostava de acompanhar as séries da
tevê, como Bonanza. Junto com os irmãos e primos,
recriava as disputas do western com revólveres de
brinquedo . Havia espaço também para as encenações inspiradas nos programas de telecatch. Um ringue improvisado era montado no local de descarte
de palha de arroz da cerealista dos Manzotti. Não
finge modéstia: ganhava todas as lutas. Descobriu
a vocação aos 12 anos. Ordenou-se em 1996. Em
2005, fundou a Associação Evangelizar é Preciso. Faz
shows por todo o país. Só no ano passado foram 98.
Escreveu oito livros e gravou dez CDs. Todos os meses sua página na internet tem 1 milhão de acessos.
Mais de 5 milhões de pessoas já curtiram sua página no Facebook. ¶ Na lateral, uma banda completa
– guitarra, baixo, bateria, teclado, cantores – está
prestes a iniciar o canto de entrada, que o próprio
padre conduz logo após a reverência diante do altar.
Enquanto a música continua, ele aproveita para os
ajustes. Com acenos suaves à equipe, acerta o retorno do microfone, direciona melhor os cinegrafistas.
¶ Tem anos de experiência em rádio e na televisão
e sabe muito bem que os detalhes técnicos podem
significar o sucesso ou o fracasso de uma transmissão. Todos os dias, as missas do Santuário chegam
a milhões de telespectadores, graças à tecnologia. ¶
Quem está na igreja canta junto, mesmo sem a mesma desenvoltura do padre. Em alguns momentos, ele
encoraja gestos, acenos dos fiéis, que se envolvem.
¶ Não raro, há aqueles que se emocionam, deixando
as lágrimas correr. Outros trazem nas mãos fotos de
família, documentos.
106 Série Perfil
Série Perfil 107
Padre Reginaldo Manzotti
A terra treme no Guadalupe
Jocelaine Santos, com foto de Daniel Castellano
oucos minutos antes do meio-dia de um dia qualquer, ele está a postos no Santuário de Nossa Senhora do Guadalupe para celebrar a missa. Não é dia de preceito nem
de festa, mas a igreja está cheia. Não há lugar para se sentar e quem
chega precisa se acomodar como pode – em pé, nos corredores laterais, recostando-se a uma parede ou pilastra. Aqui e ali, cinegrafistas
uniformizados preparam a transmissão. Há três câmeras espalhadas
pela nave e mais outra em uma grua, que dará as imagens panorâmicas de todo o Santuário, mergulhando de tempos em tempos entre os
fiéis, em busca dos detalhes da religiosidade de cada um.
Ele é padre
Esqueça os mitos e os preconceitos. Não espere ver nesse devoto de
Nossa Senhora do Carmo, São Luiz Gonzaga e Santo Antônio um
mero artista vestido com alva e casulo. Tampouco queira encaixar
em seu 1,90 metro de altura a caricatura do religioso alheio às coisas
do mundo, envolto em incensos de santidade. E muito menos a figura do sacerdote condescendente, adepto da religiosidade amena.
Não, Reginaldo Manzotti não é nada disso.
Sim, ele é padre. E, sim, canta. Mas de modo algum resume sua
atuação a cantar. Mesmo que a música seja um dos aspectos mais conhecidos de Manzotti, é apenas um instrumento. Desde os primeiros
anos de sacerdócio, o religioso percebeu o poder da música. Os fiéis,
argumenta, sentem-se mais participativos quando conhecem as músicas e cantam durante as celebrações. “O papa Bento XVI, em um
de seus livros, fala que a música desperta no ser humano sentimentos
que a palavra não consegue tocar. Eu me valho disso”, explica, para
em seguida enfatizar o cuidado que tem com a liturgia.
108 Série Perfil
“Não existe ‘missa show’. Esse termo é abominável. Missa é
missa. Show é show. São duas coisas distintas”, desanca. De fato,
nas missas no Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, no “Baixo
Centro” de Curitiba, a música aparece sempre, mas sem invadir os
necessários momentos de introspecção e silêncio. Já quando o padre
se apresenta em eventos, a música toma o lugar principal, mas sem
se tornar mero espetáculo. “Meus shows são cantados e ministrados.
Canto e uso a música para evangelizar e passar conteúdo religioso.”
Além de cantar, Reginaldo compõe. Estimula esse lado com
muita leitura, para poder “fugir do “lerê-larâ” das músicas atuais, e
ouvindo todos os gêneros musicais – quase todos. “Sou fã do Guns
N’ Roses, mas escuto de tudo. Sertanejo, pagode, pop, rock para conhecer todos os nuances da música. Só não consigo ouvir funk. Aí já
é demais. Quem gosta, ótimo, mas eu não consigo”, explica, aos risos.
24 horas
O dia de Reginaldo Manzotti parece ter bem mais que as 24 horas
dos reles mortais. Acorda bem cedo, malha alguns minutos para
manter a saúde. “Preciso cuidar dessa carcaça de Deus. Porque o corpo é o tempo de Deus. E senão o colesterol vai lá pra cima.” Depois
segue sua oração particular, o café da manhã, hora de ler os jornais e
se atualizar, o programa de rádio das 10 às 11, reuniões com a equipe
de trabalho – além de reitor do Santuário Nossa Senhora de Guadalupe, Manzotti é diretor da TV e da Rádio Evangelizar mantidos pela
Associação Evangelizar é Preciso.
Ao meio-dia, celebra a missa, almoça em seguida, às 13h15, e
às 14 horas está de volta ao trabalho, que inclui atividades pastorais,
reuniões, gravações de programas, entrevistas. Só volta para casa às
Série Perfil 109
Padre Reginaldo Manzotti
22 horas, para jantar, responder e-mails, compor, escrever – publicou
oito livros – e finalmente dormir. Não tem um dia de folga fixo. Renunciou a isso há muitos anos, devido a uma promessa pessoal.
Para poder cumprir tantos compromissos, a organização é essencial. O padre trabalha com checklists. Tudo tem de ser marcado na agenda – cumprida à risca. Para esta repórter, reservou uma
hora, das 16 às 17 horas. A gravação em vídeo roubou o horário de
almoço do sacerdote: foi marcada para as 13h30, e as fotos tiveram
de ser feitas durante a celebração ao meio-dia. Não havia outro espaço na agenda.
Quem quiser trabalhar com ele precisa ter a mesma disposição. Cobra eficiência e responsabilidade da equipe e está sempre por
perto. Acredita que “é o olho do dono que engorda o boi”. “Delego
funções, mas a responsabilidade continua sendo minha.” É exigente,
quer tudo bem feito e tem excesso de energia – “parece ligado no
220”, conta uma pessoa próxima.
Pânico
Não, ele não foi um menino rebelde empurrado à força para o seminário, para se “emendar”. Tampouco recebeu uma revelação divina
para ser padre. A ideia lhe ocorreu aos 12 anos, quando folheava uma
revista e deu de cara com um anúncio que perguntava: “Você quer
ser padre?”, seguido de um endereço para correspondência. Escreveu
uma carta e a enviou. Logo se esqueceu do feito, achando que não
daria em nada. Meses depois alguém apareceu na porta da sua casa.
Era o carmelita Jerônimo Brodck, de moto, perguntando por Reginaldo. O piá de 12 anos entrou em pânico, pois não tinha falado nada
aos pais sobre a carta. Depois de uma breve conversa com eles, seguiu
mesmo para o seminário.
“Claro, com aquela idade você ainda não tem certeza, mas ao
longo do tempo eu fui confirmando que era essa o meu caminho.
Você vai pesando se mesmo com as renúncias que você terá de fazer,
aquilo vai te realizar. Quem não se realiza fica amargo, infeliz consigo
mesmo.”
Os anos de preparação foram marcados por muito estudo
110 Série Perfil
e momentos de crise, que o padre assume sem problema. Em
alguns momentos, teve dúvidas sobre qual direção seguir. Pensou que queria constituir uma família, teve namoricos, custou a
aprender a obedecer.
“As pessoas acham que é um anjo que aparece e diz ‘você vai
ser padre’. Isso não existe. Na verdade, você mesmo vai percebendo que se inclina a isso, que ama a Deus, que pode cuidar das coisas
Dele”. As crises foram momentos positivos, que firmaram sua fé e a
confiança na própria vocação. Hoje, garante, é feliz como sacerdote,
apesar de ter seus momentos de tristeza, angústia e melancolia. “Se
Nosso Senhor disse ‘minha alma está numa tristeza mortal’, por que
eu seria diferente?”
Obra
Manzotti dá a entender que não tinha ideia de onde chegaria com
sua obra. “Deus sonhou mais para mim do que eu para mim mesmo”,
faz trocadilho. Hoje, a Associação Evangelizar É preciso, fundada há
uma década, tem milhares de associados. Além da rádio e da televisão, que produzem conteúdo retransmitido para o mundo através da
internet e centenas de emissoras, a entidade mantém obras sociais.
Em parceria com a Pastoral da Criança, a associação atende 10
mil crianças por mês. Também auxilia na manutenção de uma creche, um programa social e em breve integrará um projeto estadual
para socorro de dependentes químicos.
Mas o padre acredita que a maior contribuição acontece através dos meios de comunicação. Seu programa de rádio Experiência
de Deus é retransmitido por 1,5 mil emissoras do país. Impossível
calcular o público atingido pelas mensagens e aconselhamentos que
Manzotti faz ao vivo.
Há pessoas que tentam anos a fio falar com ele e quando conseguem, emocionam-se. Através de uma ligação telefônica, compartilham suas vidas e crises, sem pudores. É aí que o sacerdote se
desdobra em psicólogo, assistente social, médico, advogado. “Não
tenho obrigação de dar uma resposta final, mas de fazer as pessoas
Série Perfil 111
Padre Reginaldo Manzotti
refletirem. Por isso me proponho a falar de tudo, mas sem ser o dono
da verdade.”
E fala de tudo mesmo. Bem informado, não tem medo de se expor. Vai a entrevistas, debates, responde a qualquer pergunta que lhe
façam, seja sobre política, economia, tabus, preconceitos. “Aceito
aparecer porque sei que quando me exponho, eu divulgo Jesus Cristo, a Igreja Católica, o sacerdócio”. Mas tem cuidado em não confundir a notoriedade com fama. Sabe dos perigos que isso poderia causar
e tem consciência de que isso pode mudar a qualquer instante. Não
por acaso, um dos seus livros preferidos da Bíblia é o Eclesiastes.
“Você pode ser vaidoso por andar descalço. O problema não é
onde você está ou que você tem, mas o que você faz de onde está ou
com o que tem.” Na política, alimenta posições fortes. Apoia a taxação de grandes fortunas, o fim do financiamento empresarial de campanhas, a mobilização popular contra os desmandos dos corruptos,
desde que não haja violência. “Existem políticos muitos bons, mas e
os corruptos? Será que não têm medo de ir para o inferno?”
Um homem comum
Ele também tem momentos de fraqueza e cansaço. A agenda extenuante por vezes transparece na voz mais rouca ou no olhar abatido
do padre. Nos programas de rádio, não raro deixa escapar suspiros
de impotência diante de relatos trágicos de ouvintes desesperados.
Nos escassos momentos em que não está trabalhando, opta por ler
um livro. Há sempre três em sua cabeceira: um de teologia, um sobre
a vida de algum santo e outro de literatura.
Gostou muito de Os Catadores de Conchas, de Rosamunde
Pilcher. Começou a ler Inferno, de Dan Brown, mas não gostou. Vez
ou outra assiste a um filme “de Hollywood mesmo, com efeitos especiais, que faz chorar”. Foge dos filmes cabeça, cinema alternativo ou
com muita violência. Filmes são diversão.
Pessoalmente, é acolhedor. Com os anos de prática com o público não podia ser diferente. Mas também é firme quando precisa
criticar. Não se exime em dizer quando há erro ou distorção na compreensão da doutrina. E tem horror a “católicos frouxos”.
112 Série Perfil
Para Reginaldo, precisamos ser cristãos de verdade, que dobram o joelho diante de Deus e se revestem de Cristo. Nada de
frouxidão.
“Eu estou apostando a minha vida. Você tem de consumir a sua
vida em algo que você acredita. E eu realmente acredito naquilo que
vivo.” Esta é a mensagem final do padre Reginaldo Manzotti. Para
crentes e descrentes.
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Iluminados
J o s é
K a l k b r e n n e r
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E d l a
L é l i o
K e y
V a n
S o t t o
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S t e e n
M a i o r
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I m a g u i r e
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F i l h o
J ú n i o r
J u n i o r
Série Perfil 115
José Kalkbrenner Filho
Filho de pais alemães, foi alfabetizado
no idioma e só aprendeu português aos
6 anos. Aos 14, ingressou na fotografia.
Foi o primeiro no Paraná a montar um
estúdio para publicidade. Conviveu com
a elite burguesa e política da capital e
também colocou o pé na periferia. Foi
atleta profissional e membro da seleção
brasileira de ciclismo. Competiu em países da América do Sul. Aos 83, Kalk olha
o passado esbanjando felicidade. Separado há quase 20 anos da ex-esposa,
vive hoje com uma companheira 20 anos
mais nova. Pai de duas mulheres feitas
na vida, o tempo parece ter parado para
ele, que se orgulha ao dizer que sua
mente é de um cidadão de 30 anos.
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Série Perfil 117
José Kalkrebenner Filho
Os instantes mágicos do senhor Kalk
Diego Antonelli, com foto de Brunno Covello
ão foram raras as vezes em que
a sorte fitou Kalk, como o chamam, com um olhar sedutor e apaixonado. Diz o ditado que ela torna-se companheira de quem detém
uma dose de talento. Talvez seja esse o segredo do curitibano José
Kalkbrenner Filho, uma unanimidade reclusa. Se fosse realizada uma
enquete com os principais fotógrafos de Curitiba, certamente Kalk
figuraria entre os mais respeitados. Pioneiro na fotografia publicitária no estado e um dos principais ciclistas do país, chegou a vestir a
camisa da seleção brasileira de ciclismo durante décadas.
O primeiro passo na carreira foi aos 20 anos. Com uma câmera
pendurada no pescoço e dono de um olhar ímpar, foi escalado para
cobrir um jogo de futebol. Embora não tivesse noção alguma do que
era fotojornalismo, encarou o desafio com maturidade impressionante. Acompanhado do natural “frio na barriga”, foi ao gramado e
esperou o momento certo para o clique certo.
Naquela época, o filme fotográfico era valioso e cada chapa batida tinha de justificar o investimento. Durante a partida, conseguiu
o difícil ato de clicar dois gols. Talvez flagrar uma bola na rede fosse
suficiente para que o então inexperiente fotógrafo acabasse definitivamente contratado pela Gazeta do Povo, onde permaneceu por três
anos. “Eu não sabia nada de foto”, comenta.
0
Aos 83 anos, Kalk olha os fatos do passado com orgulho. Não se envergonha ou se arrepende de absolutamente nada. Começou a mexer com fotografia ainda nos primeiros anos da adolescência, aos 14,
meio que por acaso. Queria fazer uma graninha e, para isso, foi atuar
118 Série Perfil
como office-boy na loja Carlos Boutin, de fotografia amadora, em
Curitiba. Foi ali que aprendeu a revelar filmes e teve os primeiros
contatos com as máquinas fotográficas. Uma paixão à primeira vista.
Ao longo de toda a trajetória profissional, até quando menos
esperava – ou principalmente nessas situações – Kalk foi abençoado
pelo destino. Como no dia em que a Seleção Brasileira de Futebol
desembarcava no Rio de Janeiro celebrando o primeiro título em
uma Copa do Mundo, em 1958. Kalk não teve sucesso ao flagrar o desembarque dos atletas. Em compensação, driblou seguranças, entrou
em um ônibus fretado pela hoje extinta Confederação Brasileira de
Desportos (CBD) e se deparou com uma porção de mulher – todas
esposas dos campeões.
Após conversar com os dirigentes, conseguiu carona para o Palácio do Catete, onde seria realizado uma homenagem aos atletas.
“A gente entrou pelos fundos do palácio. Toda a imprensa estava do lado de fora”, conta. De repente, um camarada da própria CBD
falou algo do tipo: ‘Olha só, que bonita’. Era a hoje derretida taça
Jules Rimet, que repousava em um estojo aveludado. Sem pestanejar,
sacou a câmera e começou a disparar fotos. “Fui o primeiro a fotografar essa taça no Brasil. Foi uma emoção desgraçada”, orgulha-se.
A adrenalina só foi baixar quando chegou ao hotel e mandou ver um
copo cheio de uísque. Teve, certamente, o sono dos deuses. A foto
foi publicada, segundo Kalk, nos jornais Paraná Esportivo e Diário
do Paraná.
E o juízo?
A sorte manteve fidelidade a Kalk até quando ele espontaneamente
perdeu o juízo. Estava há seis meses sem receber salário no extinto
Série Perfil 119
José Kalkrebenner Filho
Diário do Paraná. Para cumprir alguns compromissos particulares,
foi obrigado a ir São Paulo e se ausentou por alguns dias do trabalho.
Verdade que deixou outro profissional em seu lugar. Mesmo assim, o
fato irritou a direção do veículo de comunicação.
Quando o fotógrafo chegou de viagem, o então diretor do jornal
Adherbal Stresser indagou na frente de toda equipe: “Kalkbrenner,
você acha que isso aqui é a casa da sogra?”. Sem pestanejar, e como a
situação financeira não era lá das melhores, a resposta de Kalk deixou todos os colegas atônitos: “Eu acho que é”. Nunca mais ninguém
tocou no assunto. “Uns colegas me perguntavam se eu estava louco”,
diverte-se.
“Saco cheio de não fazer nada”
Após três anos atuando na Gazeta do Povo, Kalkbrenner foi fazer fotografia documental no Instituto Brasileiro do Café (IBC). Trabalho
que, para ele, foi uma “babada”. O expediente era das 13 às 17 horas
e pouco produzia. Era tanta a falta de serviço que chegava a sair do
trabalho para curtir uma ou outra sessão de filme nas matinês.
Ele bem que poderia ter se pendurado no cabide de emprego.
Mas a vontade de trabalhar falava mais alto. Sorte de todos nós. Em
termos fotográficos, Kalk parado seria uma perda irreparável.
Em pouco tempo, estava novamente pisando em favelas, fotografando acidentes e até clicando para coluna social. Foi contratado
no que ele define como uma das principais “escolas de jornalismo do
Paraná” nos anos 50 – o Diário do Paraná, do grupo DiárioS Associados.
Aceitou trabalhar no jornal por 6 mil cruzeiros em período integral. “Era um salário alto para a época”, confessa. Além de ter sido
o responsável por montar a equipe de fotógrafos, pediu autorização
para comercializar eventuais fotos de eventos que faria para o Diário.
Deixou tudo às claras para que não o acusassem de picareta.
Kalk ainda conta que nesse período começaram a surgir os primeiros flashes eletrônicos. Até então, para cumprir essa função eram
usadas lâmpadas de magnésio. Para cada chapa batida, uma lâmpada
era queimada e automaticamente jogada fora. Como o jornal estava
120 Série Perfil
em crise, ele mesmo comprou um flash para trabalhar. “Mas fiz um
acordo. Para cada chapa que batesse pegava uma lâmpada para mim
e a vendia. Com isso, paguei meu flash só com a venda dessas lâmpadas”, relata.
A fala
O sotaque é típico de quem já morou em terras germânicas. Quem o
escuta e alia à sua imagem –alto, olhos azuis e pele clara – pode facilmente pensar: “Esse aí nasceu pelos lados da Alemanha ou Polônia”.
Mas Kalk jamais morou no Velho Mundo. A pronúncia acentuada é
reflexo da alfabetização. Filho de alemães, só foi aprender o português aos 6 anos. Começou a conhecer os países europeus há cerca de
uma década. Uma das últimas viagens que fez foi para a Rússia.
Bunda no chão
Na época em que as lâmpadas de magnésio faziam a função de flash,
os fotógrafos deveriam carregar algumas delas no bolso. Aconteceu
que durante um baile de debutante nos anos 1950, Kalk correu com
seu smoking todo elegante no meio do salão para alguns disparos fotográficos. O chão era liso e o sapato não aguentou o tranco. Caiu
de bunda no chão no meio do baile. Lâmpadas se espatifaram e se
espalharam por todo espaço. Sem moral, abandonou a cobertura da
festa. “Todos riam quando olhavam para mim”. Esse foi um dos raros
momentos em que a sorte “esqueceu” de Kalk.
Sobre duas rodas
Kalkbrenner não foi “somente” um dos principais nomes da fotografia no estado, como também integrou a seleção brasileira de ciclismo.
Aliou uma coisa com a outra. Segundo Kalk, naquela época os treinos
não eram tão exigentes quanto são hoje. “A gente treinava na hora de
folga ou até durante a noite”. Isso lhe possibilitou unir o trabalho ao
prazer de correr de bicicleta.
O talento para o esporte foi tamanho que, em 1950, chegou a
representar o país em uma competição sul-americana em Montevidéu. Tinha apenas 20 anos e precisou enfrentar a resistência dos pais.
Série Perfil 121
José Kalkrebenner Filho
Driblada a desconfiança, correu pelas ruas da capital do Uruguai.
Enquanto percorria os mais diferentes ambientes em busca da
melhor foto para a notícia, Kalk teve a bicicleta como uma de suas
principais companheiras durante décadas. A primeira competição
que Kalk participou foi em São Paulo. Também esteve em competições no Chile, na Venezuela e na Argentina. Até os 42 anos, continuou participando de corridas se equilibrando sobre as duas rodas.
Lembranças desse período são diversas. Ele guarda um álbum
com dezenas de recortes de jornal em que aparece competindo nos
mais diversos locais.
A publicidade
Foi em 1962 que Kalk talvez tenha realizado sua experiência mais
ousada. Abandonou o jornalismo fotográfico e montou a primeira
empresa de publicidade fotográfica do estado. “A gente não sabia
nada”, conta rindo. Foi a primeira a ter um estúdio completo – onde
coisas inimagináveis aconteciam. As empresas chegavam a montar
um banheiro, com azulejo, pia, vaso sanitário e banheira. E o mais
surpreendente: com água saindo de todas as torneiras. “Montavam
estruturas completas. Não era faz de conta”.
Sem falar no número quase incalculável de mulheres de topless
ou com roupas sensuais que davam seu charme para as mais diversas peças publicitárias. “Era uma coisa de louco. Para fazer uma foto
demorava-se quase um dia ou até mais”, conta.
A Fototécnica, fundada com sua ex-mulher, tornou-se sinônimo de publicidade fotográfica no estado. A empresa encerrou as atividades somente há oito anos. “Minha escola foi o jornalismo. Sem
ele, não conseguiria manter uma empresa como essa”, conta.
A casa em que Kalk reside atualmente foi uma adaptação do
que era a sala social do antigo estúdio. A empresa pode ter sido fechada, mas uma coisa que ninguém apaga é a memória que Kalk guarda daquele espaço.
Mudanças tecnológicas
A história da fotografia paranaense e a vida de Kalkbrenner se con122 Série Perfil
fundem. Por suas mãos passaram um sem-número de equipamentos.
Vivenciou dia após dia as mudanças tecnológicas no setor. Usou o famigerado flash de tungstênio, as Rolleiflex, as Leica ... até chegar aos
equipamentos digitais. Hoje, ele usa uma máquina simples que faz
questão de colocar no automático. Ele que, trabalhou a vida toda regulando o obturador e a abertura de diafragma, fotografa atualmente
só por diversão.
Kalk mantém um pequeno museu no antigo estúdio. Quase todas as máquinas que usou na carreira estão cuidadosamente guardadas em um armário. Até as lâmpadas que faziam função de flash estão
lá. Também estão os negativos das milhares de imagens batidas pelas
mãos desse discreto documentarista da aldeia onde nasceu.
Série Perfil 123
Edla Van Steen
Uma das mulheres mais transgressoras de
seu tempo, a catarinense Edla van Steen
chegou a Curitiba aos 6 anos, na década
de 1940. Foi interna do tradicional Nossa
Senhora de Lourdes, o “Colégio do Cajuru”. Tão logo se livrou do claustro, desviou
do caminho convencional e se recriou na
arte. Amiga de Dalton Trevisan, o Vampiro
de Curitiba, e de nomes de peso da literatura nacional, como Otto Lara Resende e
Fernando Sabino, Edla se arriscou como
atriz de um filme só, jornalista, tradutora
e galerista, antes de se encontrar, enfim,
na literatura. Como editora, esteve à frente
da publicação de mais de 300 títulos da literatura brasileira contemporânea. Língua
afiada e humor ácido, ela revisita um passado fragmentado – “O resto, imaginei.”
124 Série Perfil
Série Perfil 125
Edla Van Steen
A grafomaníaca
Carolina Pompeo, com foto de Henry Milléo
ão guardo na-da. Tem um verso do Cacaso que adoro: ‘Minha infância é meu país, por isso vivo
no exílio.’ Tenho horror da minha infância; tenho horror da minha
juventude. Não olho para trás. Não revisito o passado”, sentencia,
a voz rasgada subindo um tom, em resposta a mais uma tentativa de
captar algum vestígio, que fosse, sobre o que se passou décadas atrás.
Não é que Edla van Steen, 78 anos, tenha rompido laços com o passado, mas qual é o sentido de resgatar memórias sobre cuja veracidade
não há mais certeza?
“Acredito que a gente se construa. E o autor é tão mentiroso.
Todo autor fantasia muito. Em certo momento, não se sabe mais
o que é verdade e o que é mentira; se a infância sobre a qual se fala
pertence a si ou ao outro.” A suspeita, inclusive, a afasta da leitura
de biografias, diários ou livros de memórias. “É como as memórias
do Pedro Nava. Você acha que são dele? São tão maravilhosas; que
memórias são essas tão maravilhosas?”, encerra.
Edla decidiu que a vida começou para valer quando deixou de
ser interna do tradicionalíssimo Nossa Senhora de Lourdes, o “Colégio do Cajuru”, de Curitiba, que frequentou dos 6 aos 15 anos. Jovem, fez tudo nos conformes da época: aprendeu a bordar, a cerzir
e a rezar; debutou no Curitibano, como toda menina de boa família
que quisesse se inserir na sociedade fazia; cogitou aderir ao hábito. Durante os anos vividos sob a tutela das irmãs de São José de
Chambery, acreditou estar protegida sob a vigilância de um Deus
que tudo via. Recém-egressa do internato e livre dos rigores do
claustro, no entanto, transgrediu.
126 Série Perfil
Nas ondas do rádio
Edla van Steen define a si mesma como grafomaníaca, termo referente à compulsão patológica de escrever. O epíteto foi cunhado pelo
jornalista e amigo Otto Lara Resende, com precisão. Desde muito
jovem, conta, as circunstâncias a treinaram a pensar com palavras.
O primeiro emprego foi na Rádio Tingui – por necessidade.
Era um programa de radiofonização de cartas, no qual interpretava
as missivas de ouvintes aflitos por conselhos familiares e amorosos.
Edla lia os relatos, transformava as revelações em diálogo e encenava
as histórias com o auxílio de técnicas primárias de sonoplastia. Simulando voz de senhora, a jovem de 16 anos sugeria que suas pobres heroínas pedissem o divórcio e que os filhos incompreendidos saíssem
de casa – dicas pouco ortodoxas para a Curitiba cinquentinha.
As pequenas e grandes tragédias da vida comum compartilhadas por meio das cartas foram determinantes para que Edla entendesse que seu olhar recai sempre sobre o outro e que são essas as histórias que gosta de contar. Inspirada pelos relatos radiofonizados,
arriscou o primeiro livro, Contos Incomuns, jamais publicado – os
originais manuscritos foram extraviados em um táxi em São Paulo. A
perda a fez prometer que jamais escreveria novamente.
Labirinto profissional
Mais de 50 anos se passaram desde a malfadada promessa e Edla van
Steen continua sobrevivendo de literatura – da sua e da dos outros.
Como escritora, tem 29 títulos publicados, entre contos, romances,
entrevistas, biografias e peças de teatro. Como editora, contabiliza
mais de 300. Edla é uma espécie de curadora de literatura. Garimpa
novos autores, apura obras de nomes consagrados e dirige coleções
Série Perfil 127
Edla Van Steen
de peso da Global Editora, como Melhores Contos e Melhores Poemas. Orgulha-se, não sem razão, ao se afirmar uma das maiores conhecedoras da literatura brasileira.
O trajeto profissional até a dedicação exclusiva à literatura, no
entanto, foi sinuoso. Depois da Rádio Tingui, arriscou-se no jornalismo, em uma revista cujo nome não revela – limita-se a dizer que se
tratava de uma publicação de gosto duvidoso, na qual era responsável
pela crônica social curitibana, assinada, “evidentemente”, com um
pseudônimo que só os muito íntimos conhecem.
Logo, a vida pessoal se sobrepôs, abrupta, à profissional. Edla
se envolveu com Loio Pérsio, marco do modernismo brasileiro. Loio
era desquitado e pai de dois filhos. O relacionamento foi um escândalo. Decidiram então mudar para São Paulo. Um ano depois, nasceu
Ricardo, o primogênito. A sobrevivência urgia, o dinheiro escasseava
e ela não se fez de rogada: permitiu-se como atriz, roteirista, redatora
publicitária, tradutora e galerista.
A carreira como atriz, embora brevíssima, foi bem-sucedida
e reconhecida internacionalmente. Sua Miriam de Na Garganta do
Diabo (1960), filme de Walter Hugo Khouri, lhe rendeu o prêmio de
melhor atriz no Festival de Cinema de Santa Margherita, em Ligure,
na Itália. Época de vacas magras, não só não pôde viajar para receber
o prêmio, entregue pelas mãos de Roberto Rossellini, como teve de
vender a moeda de ouro para bancar a educação do filho. Tempos
difíceis.
A união com Loio não vingou. “Ele era realmente insuportável e não aceitou o sucesso que fiz como atriz.” Sem vocação
para a tristeza, Edla pegou o filho pelo braço e partiu. A despeito
do sucesso como atriz, sequer cogitou seguir carreira no cinema.
Seu negócio era escrever. O primeiro livro, Cio, foi publicado em
1965. Não parou mais.
Mundo de míope
Edla gosta de escrever sobre gente. Décadas de literatura renderam uma galeria de tipos comuns, que bem poderiam ser encontrados pela vizinhança. Personagens frustradas, insatisfeitas se128 Série Perfil
xualmente, traídas e traidoras, em luto: estão todas lá, e aqui, ao
redor, basta espiar.
A casa, o retorno e a morte são temas preferidos. O drama está
sempre presente em suas narrativas, mas não há maldade. A maldade
é inverossímil. A vida acontece repleta de tragédias sem que ninguém
precise interferir, acredita.
Outra marca da autora são as relações. “Meus personagens não
prescindem do outro. São construídos na relação com o outro.” Ela
atribui à miopia a capacidade apurada de ouvir e observar.
“A Rachel de Queiroz me contou em entrevista que desconhecia ter problemas de visão até o dia em que colocou os óculos
e descobriu que havia estrelas no céu. Não é maravilhoso? O meu
olhar não é panorâmico, os relatos também não. Meu universo é o
íntimo.”
O processo criativo de Edla opera pela exaustão e pela obsessão: jamais se deu por satisfeita com a primeira versão de um texto.
Busca, incansável, lapidar o estilo. Repetir palavras em uma mesma
página é inaceitável.
Adepta aos contos longos, a escritora desafiou-se a si mesma
em seu último livro, Instantâneos (2013). A empreitada surgiu como
forma de canalizar alguma energia para si mesma quando se desdobrava para finalizar o Roteiro da Poesia Brasileira, catatau dividido
em 15 volumes sobre 500 anos de verso nacional, e começar a coletânea de críticas teatrais assinadas pelo marido, Sábato Magaldi.
Como não dispunha de muito tempo, decidiu abreviar a escrita. Todos os dias, escrevia um miniconto – um exercício textual para
absorver o que havia testemunhado no dia.
“Captava um instante e imaginava quem eram aquelas pessoas,
sobre o que conversavam, o que faziam. Inventei histórias para aquelas imagens.”
As cinco ou seis linhas de cada texto exigiram que o olhar fosse
apurado até que restasse apenas o mais importante. Instantâneos é
talvez a obra mais experimental de Edla e, insinua, a que mais revela
sobre a autora.
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Edla Van Steen
A filha do pai
Nascida em Florianópolis (SC), em 1936, de pai belga e mãe brasileira com ascendência alemã, Edla conheceu cedo a ausência. Quando
tinha 6 anos, o pai se separou da mãe e partiu para o exterior, onde
viveu por muitos anos sem dar notícias. O divórcio causou rebuliço
na sociedade florianopolitana e a mãe decidiu migrar com as duas
filhas para Curitiba. Edla foi direto para o internato.
“Demorei a entender que não havia sido abandonada. O internato era uma forma de proteção. A mudança social deve ter sido difícil para ela. Tinha uma certa tristeza. Não sei se fantasiei ou se é
verdade, mas Edla era o nome da melhor amiga dela, que lhe roubou
o grande amor”, recorda.
O pai, sumido por anos, foi adotado pela filha quando Edla
tinha 42 anos, depois de algumas idas e vindas. A última despedida
abrupta havia acontecido quando ele soube que ela havia hospedado
Fernando Henrique Cardoso em plena ditadura – “Minha filha, não
falo com comunista”. E debandou.
Doze anos depois, o homem reapareceu. A adoção do pai não
foi indolor, mas pareceu mais simples do que alimentar mágoa. “Resolvi meus sentimentos, me senti generosa.”
Cheiro de amor
Edla definitivamente não tem vocação para o tipo sofredor. A única característica atribuída aos escribas que admite em si mesma é o
sedentarismo e a saúde frágil (dois enfartes, cinco pontes de safena,
artrose na perna direita). “Quanto mais ferrado for, melhor é o escritor”, tasca.
O tal vício em ler, aliás, quase a enlouqueceu quando descolou
as retinas. Seis meses sem ler uma única linha.
De espírito coletivo, ela quer a família e amigos por perto.
“Quis construir uma família unida.” Seria uma resposta à ausência
experimentada quando criança? Não refuta, mas pondera – nunca
somos uma causa só.
A disposição para o relacionar-se é evidente: emendou casamentos, esteve pouco sozinha. Depois de Loio, casou com o arquite130 Série Perfil
to Ennes Silveira Mello, com quem viveu 16 anos e teve duas filhas,
Anna e Lea. Mais tarde, Ricardo o adotaria como pai. São amigos até
hoje. O terceiro casamento foi com o crítico de teatro Sábato Magaldi, 88. A união dura 36 anos.
Quando o assunto é Sábato, a fala é cuidadosa. Recentemente,
Edla lançou a coletânea de críticas teatrais do marido. O trabalho
de uma vida, mais de três mil textos selecionados. “Fiz esse livro por
amor. É a retribuição aos anos em que fui feliz com ele”, entrega.
O envelhecimento do companheiro preocupa, magoa. Não
acha justo. A velhice, argumenta, não deveria ter o ônus da doença
e da senilidade. Logo muda o tom, afasta a ameaça de tristeza com
uma resignação corajosa. “Viver é perigoso, dizia o Guimarães Rosa.
Viver, sobreviver e ser gente exige demais. Mas não me abato, nunca fico deprimida, levanto e parto para outra. A gente sobrevive das
desgraças. Elas também contribuem para a compreensão do mundo.”
Série Perfil 131
Lélio Sotto Maior Júnior
Cinéfilo desde a adolescência, Lélio começou a estudar cinema e escrever suas
próprias críticas após ter contato com a
revista francesa Cahiers du Cinéma – há
quem diga inclusive que, se soubesse escrever em francês, teria sido publicado no
prestigiado veículo, ao lado de seus mestres André Bazin e Jean-Luc Godard. Viveu
com intensidade febril os anos 1960 e 1970
ao lado do poeta Paulo Leminski, a quem
iniciou no apreço à sétima arte, em uma
Curitiba que tinha arrepios a figuras controversas. Com a idade, sossegou o facho
e fugiu dos holofotes, embora ainda seja
reverenciado por estudantes, críticos e cineastas da nova geração curitibana.
132 Série Perfil
Série Perfil 133
Lélio Sotto Maior Jr.
O crítico manda notícias
Rafael Waltrick, com foto de Marcelo Andrade
pagam-se as luzes, o projetor é
ligado. Silêncio na sala. Surge na tela Lélio, um rapazote qualquer.
Aos 17 anos, ele ganha de presente de aniversário da mãe uma assinatura da revista francesa Cahiers du Cinéma, baluarte da crítica literária
e a mais inspirada, se não a mais importante, publicação do gênero.
Há um porém: os textos são escritos em francês e, para quem não
entende patavinas do idioma, caso do adolescente cinéfilo, podem
soar como grego. Corte para o jovem debruçado sobre as edições,
jogadas em cima da mesa. A empolgação é tamanha que ele aprende
francês por conta e, não satisfeito, passa a escrever suas próprias críticas. The End. Sobem os créditos. Ligam-se as luzes.
0
Só o início da trajetória do crítico de cinema curitibano Lélio Sotto
Maior Jr., por si só, renderia um filme, embora os personagens mais
pitorescos e as reviravoltas viriam anos depois. Nascido na capital
paranaense, em 1946, sob o signo de Áries e ascendente em Escorpião – informações importantes, como se verá mais tarde –, Lélio
passou, ainda jovem, da condição de mero espectador para estudioso
feroz da sétima arte, levando consigo a tiracolo as impressões e ensinamentos dos jovens cineastas da Nouvelle Vague francesa.
Nem havia atingido a maioridade e já falava, com desenvoltura
e reverência, da importância de autores europeus e americanos como
Alfred Hitchcock, Vincente Minelli e Alain Resnais – nomes que, na
então Curitiba provinciana da década de 1960, pouco significavam
mesmo para os cinéfilos iniciados.
Apesar da fixação pela leitura das Cahiers e quaisquer ou134 Série Perfil
tras publicações que pudesse colocar as mãos, não fazia o tipo intelectual concentrado e reservado. Era figurinha carimbada nas
discussões que rolavam nos poucos cineclubes da cidade, sendo
frequentador assíduo do Cine de Arte Riveira (que funcionava em
espaço anexo ao Colégio Santa Maria) – na década seguinte, a partir de 1975, seria um dos entusiastas da recém-criada Cinemateca,
então no Museu Guido Viaro.
Não raro, interrompia palestrantes e os críticos ditos “profissionais” para dar suas próprias opiniões inflamadas a respeito, conquistando a admiração de alguns e impaciência de outros. No processo, arregimentava para perto de si uma geração de cinéfilos iniciantes,
que o buscavam de olho em suas impressões e, é claro, em suas raras
revistas importadas.
“O Lélio sempre foi muito acessível. A gente era uns moleques,
enquanto ele era mais velho, mas sempre nos tratava de igual para
igual, nunca estabeleceu uma hierarquia intelectual ou foi arrogante.
Conquistava admiração naturalmente. Nós o enxergávamos como
uma grande fonte de informação, ainda mais numa época pré-internet, quando era muito difícil ter acesso a qualquer coisa”, relata o
cineasta Fernando Severo, atual diretor do Museu da Imagem e do
Som do Paraná (MIS-PR).
A desenvoltura e a frequência insistente com que participava
das discussões sobre cinema e o então acanhado cenário cultural da
cidade conquistou logo de cara duas figuras influentes que o “apadrinharam” e seriam fundamentais para dar vazão a seus textos: o jornalista Aramis Millarch e o escritor Valêncio Xavier.
“O Aramis foi quem me conseguiu um ‘passe livre’ pra eu frequentar os cinemas da cidade. Assistia a tudo que era possível”, conta
Série Perfil 135
Lélio Sotto Maior Jr.
Lélio. O que não era pouco, visto que o ofício de crítico lhe rendia
admiração, mas grana no bolso, que é bom, nada.
Os agitadores
Ciceroneado por figuras como essas, acabou sendo natural que,
mais cedo do que tarde, Lélio acabasse dando de cara, em um festival universitário, com um tal Paulo Leminski, na segunda metade
da década de 1960. A admiração pelo poeta foi instantânea, reforçada pelos gostos em comum e pelo rótulo que ambos compartilhavam, de “agitadores”. “Vivíamos com discos embaixo do braço. Naquela época, éramos loucos pela Inglaterra, Rolling Stones, David
Bowie”, lembra Lélio.
Faziam parte da turma dessa turma da contracultura local personagens como Ivan da Costa, Alice Ruiz, Wilson Bueno, Carlos
João e Paquito, um dos amigos mais próximos de Lélio. “O Paquito
era o nosso Ivan, o Terrível, que fazia as coisas mais ultrajantes”, resume ele, sem entrar em detalhes.
Ivan, Lélio e Leminski, inclusive, levariam a vontade de “revolucionar a província” tão a sério a ponto de criar o Grupo Áporo,
em 1967, uma espécie de movimento que queria “cerrar fogo na produção intelectual para afastar a pasmaceira que reina na cidade”,
como recorda o jornalista Toninho Vaz. Planejavam concentrar a
atividade intelectual em literatura, cinema e música e, para deixar
claro suas intenções, chegaram a escrever um manifesto inflamado.
Que poucos leram, diga-se de passagem. “Nenhum jornal quis publicar”, conta Lélio.
“Nos anos 60 e 70, Curitiba era uma cidade absolutamente careta, ao extremo. Qualquer figura controvertida, como diziam por aí,
tinha a cabeça posta a prêmio. O Paulo e o Lélio eram uns dos poucos
que enfrentavam a sociedade por meio de todo um pensamento em
nível político e estético e com uma nova postura ética em relação
às coisas. Faziam parte de um grupo de vanguarda de pensadores e
contestadores”, recorda o fotógrafo Orlando Azevedo, ex-baterista
da banda curitibana A Chave, formada no final da década de 1960.
Na época, Lélio transitava pela cidade tal qual personagem
136 Série Perfil
de história em quadrinhos, com direito a alter ego. Durante o dia,
cumpria horário e batia cartão como funcionário público do estado,
exercendo o cargo de escrevente datilógrafo. Fazia ofícios e listas de
remessas. À noite (e com muita frequência, nas madrugadas), fazia
ronda nos bares e cinemas com Leminski e os demais, separando nos
intervalos um momento para voltar à máquina de escrever, desta vez
para digitar suas críticas.
Os astros
Foi também neste período que Lélio abraçou a astrologia com uma
fixação febril, que sustenta até hoje – segundo ele, iniciado por Alice Ruiz, que “manjava do assunto como ninguém”. Logo passou a
levar as datas e horários do nascimento dos cineastas em consideração para avaliar suas obras – o que foi visto como uma excentricidade por alguns.
Hoje, no alto de seus 69 anos, diz saber de cor e salteado o signo de mais de 100 diretores. E, independente do interlocutor, ao iniciar uma conversa com um desconhecido dispara logo um “você é de
quê?”, para então emendar “já assistiu a O Ano Passado em Marienbad, do Resnais?” Se não, é melhor fazer a lição de casa.
No seu canto
A memória de Lélio está ótima, mas lhe falta disposição para frequentar cineclubes e salas de cinema com a mesma rotatividade de
outrora. Nega o rótulo de recluso, embora reconheça que não gosta
muito de sair do apartamento em que mora, às margens da Avenida
Paraná, no Cabral. Mesmo assim, pode ser visto com certa frequência caminhando no Parque Bacacheri ou visitando a Panificadora
Piegel, sempre na companhia do filho Alan Quadros Sotto Maior,
seu fiel escudeiro. E, seja fora ou dentro de casa, sempre trajado a
rigor, com seu chapéu panamá.
O quarto é seu reduto, onde diz assistir a até dez filmes por
dia, em maratonas que dariam inveja mesmo aos adolescentes mais
ávidos por séries do Netflix. As gavetas e armários estão cheios de
fascículos encadernados de modo artesanal que reúnem críticas e
Série Perfil 137
Lélio Sotto Maior Jr.
ensaios escritos ao longo da vida – na sua conta, foram mais de 500
textos publicados em jornais e livros desde que folheou suas Cahiers
pela primeira vez.
Seu primeiro livro, Ci(s)ne, que reúne ensaios redigidos entre
1964 e 1969, foi publicado via MIS-PR, na década de 1980, com a
ajuda do escritor e cineasta Valêncio Xavier. No prefácio da obra, o
jornalista Aramis Millarch sintetiza com clareza única a importância
do mais engajado crítico curitibano que já passou por essas terras:
“Lélio procurava, em seus textos objetivos, elétricos e inteligentes,
abrir as cabeças dos espectadores para um cinema que, visto apenas
como comercial, trazia, entretanto, grandes realizadores”.
Prova disso era a defesa apaixonada que fazia do comediante
Jerry Lewis. “Uma das maiores polêmicas que enfrentei foi considerá-lo um gênio, enquanto outros o achavam um palhaço”, completa Lélio.
Resgate
Mesmo quieto no seu canto, há uma série de cinéfilos, estudantes
e críticos da “nova geração” que têm se mobilizado para “resgatar”
Lélio. Tarefa não muito fácil na prática, posto que ele nunca teve um
editor fixo ou se preocupou em catalogar seus textos – apesar de que
alguns volumes “caseiros” estão disponíveis na Biblioteca Pública do
Paraná, levados para lá pelo próprio Lélio. “Localmente, o Lélio foi
quem levou mais a sério, a longo prazo, essa tradição da crítica cinematográfica, de entender a crítica como um projeto. Acima de tudo,
ele é um cinéfilo maravilhoso, de uma paixão incrível por cinema”,
afirma o cineasta curitibano Rafael Urban.
O crítico e jornalista Nikola Matevski também está entre os
engajados e “seguidores” de Lélio. “Ele tem uma grande clareza de
colocação, consegue sintetizar suas ideias sobre cinema de forma
muito peculiar. Seus textos são breves, sintéticos, mas ao mesmo
tempo profundos. Quem já tentou escrever críticas dessa forma sabe
o quanto isso é difícil”, diz.
Há esperança, porém, de que textos inéditos venham por aí.
Semana passada, a velha máquina de escrever de Lélio estragou – pela
138 Série Perfil
centésima vez, ao que parece. Depois de muita discussão, o filho,
Alan, o convenceu a passar a usar, pela primeira vez, um notebook.
Enfim Lélio cairá na tal da “rede”, para ser curtido e compartilhado.
E, quem sabe, retomar os planos de “revolucionar a província”.
Série Perfil 139
Key Imaguire Junior
Curitibano de nascença e entusiasta da cidade de todo coração, Key Imaguire Junior é
um ativista cultural. Escolheu ser arquiteto
depois de conhecer Brasília, em 1962, mas
não foram as pranchetas que o seduziram.
Foi a história que o levou a batalhar pela
identificação e preservação do patrimônio
histórico. Está tudo exposto: são casas e
construções das mais diversas, que trazem
as particularidades dos imigrantes na formação da identidade cultural do brasileiro
e do curitibano. Os desenhos fazem parte
da sua vida, mas não como projetos. São
os quadrinhos, os gibis, que se tornaram
uma paixão. E daquelas arrebatadoras,
que dão espaço a ideias sensacionais. Por
que não uma Gibiteca em Curitiba? Assim
foi. E assim persiste, com a cabeça ativa e
produtivo, à espera de mais.
140 Série Perfil
Série Perfil 141
Key Imaguire Junior
O superjapa dos quadrinhos
Fernanda Trisotto, com foto de Marcelo Andrade
sobrado simples, de jardim vistoso, em que vive o arquiteto Key Imaguire Junior pode até passar
desapercebido em uma rua ainda repleta de casas no bairro das Mercês. De fora, é um imponente bonsai de jabuticabeira que se impõe
de uma janela do segundo andar. Um tsuru, de origami, pendurado
logo acima quase repousa na copa daquela árvore. “Meu filho foi criado brincando na rua, um privilegiado, com uma infância de interior.
Hoje essa rua já é bem mais movimentada”, observa.
O barulho dos carros reforça a afirmação. Curitibano nascido e
criado no São Francisco, Key fincou as raízes no bairro vizinho, com
a mulher, Marialba, e o filho, Key San. E é dali que observa a transformação de Curitiba, cidade que se dedicou a conhecer, desvendar
e até influenciar.
“Queria que não tivesse crescido tanto”, confessa. O temor é
pela descaracterização da cidade, em parte pelo avanço do mercado
imobiliário, que tratora construções antigas para erguer novos e altos
prédios, muitos de gosto duvidoso. Essa verticalização acaba por destruir o patrimônio histórico pelo qual o arquiteto tanto trabalhou. E
leva junto algumas características que são daqui, como o pãozinho
d’água, que perdeu espaço nas padarias para o francês. “Nosso dialeto, nosso jeito meio esquivo e os gestos, o urbanismo tem a ver com
isso”, pondera.
Parte da vida profissional foi dedicada a pesquisar a arquitetura
como produto cultural. Uma guinada para o jovem que, encantado
com pontes, tinha pensado em seguir carreira na engenharia. O estalo para a mudança foi uma viagem, organizada pelo pai, curioso para
conhecer Brasília, a nova capital do país. Em 1962, a família desembarcou na cidade. “Era uma coisa surrealista”, lembra Key. Na época,
142 Série Perfil
com 16 anos, impressionou-se com o contraste entre o avermelhado
do Planalto Central e o branco dos projetos de Niemeyer. Foi o que
o levou a buscar uma cadeira no novo curso de Arquitetura da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Na academia, não se adaptou à área de projetos. “Você faz tudo
na arquitetura, menos o que você quer”, pontua, lembrando da interferência dos contratantes e engenheiros nos desenhos. Quem trouxe a sugestão de trabalhar com patrimônio cultural foi o professor
Cyro Correia Lyra, que também o incentivou a assumir a cadeira de
Arquitetura Brasileira na universidade. “A ideia de dar aula não me
fascinava, mas a pesquisa me chamou”. A carreira acadêmica foi profícua. Além de lecionar para novos arquitetos, estudou História no
mestrado e doutorado, também na UFPR. Aposentou-se há cinco
anos, debaixo de protestos dos alunos.
Um sinal do espaço*
“Sou um produto da Universidade Federal”, brinca. A afirmação não
se restringe apenas aos passos de Key, mas tem a ver com os caminhos
que levaram seus pais a se conhecer. O avô decidiu deixar o Japão
depois de ouvir maravilhas sobre o Brasil. Chegou em Santos, onde
trabalhou por um período e foi descendo, pelo interior de São Paulo
e Paraná, até se fixar em Ponta Grossa. A mudança definitiva, para
Curitiba, só aconteceu quando o pai de Key estava com idade para
frequentar o curso superior. De outro lado, a avó materna, açoriana
que vivia em Florianópolis, matutava uma maneira de encontrar maridos para as filhas. A ideia foi buscar uma cidade com oportunidades
para a família e uma universidade, que certamente atrairia estudantes
de diversos locais. A escolha recaiu sobre Curitiba.
Série Perfil 143
Key Imaguire Junior
Os pais se conheceram ainda jovens: a mãe tinha apenas 14
anos. Da união de um dentista e de uma dona de casa, nasceram
dois filhos – Key tem um irmão que vive em Curitiba e é engenheiro mecânico. A infância no bairro São Francisco, nos arredores da
Praça Garibaldi, não se deu à solta. A mãe tinha medo e não permitia que os filhos brincassem na rua. Os primeiros bancos escolares
foram os do Colégio Martinus, ali perto. Mais liberdade foi alcançada quando Key começou a cursar o então Científico, no Colégio
Estadual do Paraná.
“Só na hora que fui morar sozinho é que conheci mesmo Curitiba”, revela. A mudança foi feita quando começou a faculdade de Arquitetura, na UFPR. O endereço escolhido foi a Praça Zacarias, onde
mantinha um pequeno apartamento. O imóvel não desagradava: era
próximo da Cinelândia curitibana e adequado para o então estudante. A casa das Mercês, construída como investimento pelo pai, só
tornou seu endereço definitivo pouco antes do casamento, em 1981.
Os anos de aluno da Federal foram bons: o curso novo movimentava o Centro Politécnico. A Arquitetura trouxe mais diversidade para os corredores da UFPR, mais estímulo pela busca do conhecimento e discussões políticas. “O pessoal da engenharia estranhava
um pouco essa abertura. Diziam que arquiteto era comunista ou bicha. Ou os dois”, lembra-se, aos risos.
Foi nesse período que a fotógrafa Vilma Slomp conheceu Key.
Ainda adolescente, ela acabou sendo apresentada ao círculo dos estudantes de Arquitetura pela irmã e o cunhado. Frequentou festas,
sessões de cinema e jantares. “Os arquitetos eram muito antenados
na cultura”, lembra, o que dizia muito em tempos de ditadura militar.
Criaram uma amizade – Vilma até fotografou o casamento do arquiteto. “Ele é muito inteligente, culto, simples na sua forma de ser, antenado ao meio social. Faz parte do patrimônio cultural, histórico e
humano da cidade”, decreta.
Ao coração da tempestade*
Os primeiros passos na profissão foram no Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc). Ali Key conheceu o tam144 Série Perfil
bém arquiteto Domingos Bongestabs. “Ele era aficionado por histórias em quadrinhos e começou a me levar gibis. Depois, fui trabalhar
com ele”, lembra. Os quadrinhos se fizeram mais presentes a partir
desse encontro.
Nos idos de 1960, o gênero tinha má fama no Brasil, creditada
a um livro, que nem publicado no país havia sido. Seduction of the
innocent (Sedução dos Inocentes, em tradução livre), obra do psiquiatra alemão Frederic Wertham, trazia a tese de que as histórias
em quadrinhos eram uma forma ruim de literatura popular e fator
para a delinquência juvenil. No Brasil, a tese do alemão se espalhou
como pólvora pelas publicações da revista Seleções.
Por algum tempo, o único gibi que caía às mãos de Key era o
Sesinho, da revista do Sesi. Bongestabs mudou esse panorama. Dali
em diante, Key começou a formar seu acervo impressionante. Entre Will Eisner e Hergé, há espaço para mangás, deboche, sátiras e
produção local. O amigo José Humberto Boguszewski, professor de
Design na UFPR, brinca que Key é o José Mindlin Paranista das publicações de quadrinhos, gibis, cartuns, arquitetura e objetos gráficos
afins, em referência ao célebre bibliófilo brasileiro.
“Key sempre foi muito engajado, muito participante, principalmente na área dele. É a pessoa que criou a Gibiteca de Curitiba. A
ideia original é dele. É humilde, gosta de ficar no canto dele. Mereceria mais destaque do que tem pela importância do que já fez, como
professor, historiador e na área de quadrinhos”, observa.
Os dois se conheceram ainda estudantes. Boguszewski cursava
Belas Artes, desenhava e também gostava de quadrinhos. Fazia parte da turma que editava uma revista chamada Casa de Tolerância.
Embora remeta a erotismo, a revista tinha quadrinhos “normais”. A
tolerância estava no fato de que qualquer um poderia fazer parte. Por
um tempo, a revista foi editada no escritório que Key mantinha no
Centro.
A falta de um espaço adequado para a produção deu outro estalo: por que não criar uma gibiteca em Curitiba? Key teve o lampejo
quando trabalhava na Casa Romário Martins. O espaço reuniria uma
biblioteca de gibis e serviria para formar autores. Diz que “só” teve a
Série Perfil 145
Key Imaguire Junior
ideia. A movimentação política para tornar a sacada real foi articulada pelo jornalista Aramis Millarch, que levou a proposta para o então
prefeito Jaime Lerner. Em 1982, nasceu a primeira gibiteca do Brasil.
“São as duas coisas da minha vida, a arquitetura e o gibi”, resume.
Assunto de família*
Na miscigenação cultural que formou a família de Key, o DNA japonês falou mais forte. “Tenho manias de japonês. As coisas têm uma
maneira para serem feitas. Nem sempre é a melhor, mas se não sair
daquele jeito, me incomoda”, confessa. A organização é outra característica. Em sua casa, quatro quartos do piso superior abrigam os livros, catalogados e ordenados por temas. Há a sala dos quadrinhos, as
estantes de livros técnicos e dicionários. Com carinho, um pequeno
espaço guarda relíquias: os títulos que costumava ler na infância. A
mãe se desfez dos livros, mas Key reuniu o acervo vasculhando sebos.
A mulher, Marialba Rocha Gaspar Imaguire, entrega: ele tem
as aulas de quando cursou arquitetura encadernadas. E não apenas
isso. Cada viagem ganha um álbum especial e as expedições arquitetônicas, comandadas por ele e que levaram alunos a diversos lugares do Brasil, também têm seus roteiros guardados. “Não confio no
virtual”, conta Key, ao mostrar o tomo correspondente a um ano de
postagens em seu blog pessoal, criado em 2013 como um escape.
O casal está junto há 34 anos. Key conta que Marialba foi sua
aluna e assim que se conheceram ficaram amigos e se tornaram namorados. Ela conta um pouco mais. Antes de ser aluna de Key na
PUCPR, candidatou-se a uma vaga de estágio na Casa Romário Martins, onde ele trabalhava. “Lembro que quando entrei, ele me deu
uma paquerada e fiquei toda vermelha”, relembra. Mas puxando pela
memória, a primeira vez que ela viu o futuro marido foi quando era
adolescente. “Tinha mudado para o Alto da XV e havia um grupo de
pessoas na frente de casa. Ele estava lá”, diz. Pensou: um dia hão de
se conhecer. Dito e feito.
Culturalmente, Key se identifica muito com a Itália, país que
visitou algumas vezes. “Sou apaixonado pela Itália. Não tenho sangue italiano, mas meu filho tem”, diz, brincando com a ascendência
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da mulher. Com Marialba, divide a vida, o gosto pela arquitetura e
patrimônio histórico e por viagens. “Um é complemento do outro”,
emenda Marialba.
Na casa, cada canto traz um pedaço da história – seja o boneco
Samurai e o carimbo da família Imaguire vindos do Japão ou pequenas lembranças de passeios. Pelas paredes, estão quadros com desenhos feitos por amigos, que os presentearam. Tem até um desenho
do herói Spirit, de Will Eisner, com dedicatória do autor.
Os dois se conheceram num Salão da Caricatura em Montreal, caminharam juntos pela cidade canadense e trocaram correspondências. Os quadrinhos de Eisner agradam a Key não apenas pelas
histórias, mas por trazerem a própria arquitetura das cidades como
personagem.
O quadro é mais uma entre tantas peças que trazem lembranças e se acumulam pelas escadas e prateleiras. Ainda há espaço com
os bonsais – são pelo menos três, além da jabuticabeira, que marca
sua aposentadoria da federal – e para os cães, que lembram o lado
cordial. No quintal, há um vaso com três plantas, que eram cuidadas
pelo pai, já falecido. “A ideia de casa é essa: estar no meio das coisas
que a gente gosta, estar aonde quer”, resume.
*Os intertítulos fazem referência a títulos de graphic novels de Will Eisner, um dos quadrinistas preferidos de Key.
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148 Série Perfil
Eleitos
P a u l o
T a t o
R e n é
P i m e n t e l
150
T a b o r d a
158
D o t t i
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Série Perfil 149
Paulo Cruz Pimentel
Nascido em Avaré, no interior paulista,
Paulo Cruz Pimentel fez história no Paraná.
Trilhou caminho na política: foi secretário de Estado, governador (aos 36 anos) e
deputado federal. Paralelamente, consolidou um império de comunicação – que
somou três jornais, três tevês e uma rádio.
Por causa disso, ao mesmo tempo em que
comemorava realizações, colecionava inimigos. Na vida privada e na pública, não
passou incólume à ditadura e sofreu perseguições. Fora da política e da comunicação, aos 86 anos, doutor Paulo vive da
renda de seus imóveis e administra suas
fazendas de cana-de-açúcar no Norte do
Paraná. Degusta seu outono com lucidez,
com gana de passar dos 100 anos.
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Paulo Cruz Pimentel
Um homem no teto do mundo
Felippe Aníbal, com foto de Marcelo Andrade
conversa com o então candidato a governador Ney Braga varou a madrugada, na varanda do casarão-sede das usinas do grupo Lunardelli, naquele dezembro de 1960.
O anfitrião Paulo Cruz Pimentel recebia o político por acaso: não
havia hotéis na pequena Porecatu, às margens do Rio Paranapanema. Falavam entusiasmados sobre política e desenvolvimento – havia
muito por fazer no Paraná. Horas antes, Braga havia conduzido um
comício animador na cidadezinha. Semanas depois, já eleito, veio o
convite inesperado: ele queria Pimentel como seu secretário de Agricultura. Havia se impressionado com as ideias arrojadas daquele
jovem, que contava então 32 anos. Pimentel relutou e relutou, mas
acabou cedendo. Assim, meio sem querer, entrou para a vida pública.
“Foram as guinadas históricas, as esquinas da vida que me trouxeram até aqui. Eu nunca tinha pensado em entrar para a política. Eu
era superintendente das usinas [do grupo Lunardelli], já tinha duas
filhas. Queria continuar ali. Eu não entendia nada de agricultura, mas
as condições se impuseram”, observa.
0
A história de Paulo Pimentel parece ter sido conduzida por essas
esquinas aparentemente tortas. Soube sobreviver, ora indo para a
briga, ora afagando egos. Faro e oportunismo. Diz ter agarrado as
chances que a ventura lhe pôs no caminho. Entrou por acaso, mas
acabou se acostumando – e gostando – do jogo do poder. Foi numa
dessas guinadas que abandonou a promissora carreira de advogado
do grupo Votorantim (de José Ermírio de Moraes) para assumir as
usinas do sogro, no Norte do Paraná. Foi assim, quase ao acaso, que
152 Série Perfil
se tornou secretário de Estado e, em seguida, governador. Foi assim
que consolidou um império de comunicação. É considerado o último
publisher do Paraná.
Aos 86 anos, Pimentel olha a própria vida em retrospecto, com
uma lucidez admirável. Esmiúça fatos, enumera datas, aponta detalhes. Com os cabelos engomados bem penteados para trás e sempre
alinhado em roupas sociais, ainda guarda muito do tempo em que fazia suspirar as mocinhas e eleitoras. Conta sua história como se fosse
o protagonista de um longa-metragem – e ele dá sempre um jeito de
ficar bem na fita. A alguns episódios, a acidez é inevitável (como o
que perdeu o controle da afiliada da Rede Globo ou as rusgas com
os militares). Mas, jura, não há ressentimentos. Parece em paz com o
próprio passado.
Do nelore ao Palácio
Na vida pública, as realizações começaram pouco depois de o acaso
tê-lo colocado na Secretaria de Estado de Agricultura. Mesmo sem
dominar o tema, começou a “inventar moda” – como ele mesmo diz.
Percebeu que a pecuária paranaense era quase que rudimentar, com
animais sem linhagem. Desenvolveu uma política insólita de aperfeiçoamento do rebanho, a partir da distribuição de gado nelore. Em
quatro anos, foram mais de sete mil cabeças entregues. “Eu comprava nelore puro no Triângulo Mineiro e trocava pelo ‘garraio’ [rês sem
qualidade] do criador do interiorzão”, diz.
Paralelamente, oxigenou a agricultura, até então assentada no
café e no algodão, que vinham em franca decadência. Estimulou a
rotatividade de culturas e trouxe as primeiras sementes de soja ao
Paraná. Ao mesmo tempo em que se empolgava, eliminava oposiSérie Perfil 153
Paulo Cruz Pimentel
tores. “O pessoal da secretaria me ajudou. Os que não me deram a
mão, botei pra fora. Nós entusiasmamos o estado”, lembra.
Nessa onda, ainda no fim de 1961, Paulo Pimentel foi escolhido “O Homem do Ano”. Achou que podia mais e começou a sonhar
alto: queria o governo do estado. Impulsionado pelo frisson da secretaria, desbancou concorrentes dentro do próprio partido (o PTN) e
a rejeição por ser paulista. Em 1965, foi para a eleição contra o tradicional Bento Munhoz da Rocha Neto. E venceu. “Eu, praticamente
um plebeu, lutei contra o poderio de um monarca... e ganhei”, sorri.
As três universidades
No Palácio Iguaçu, “doutor Paulo”, como é chamado, estabeleceu
como meta “desenvolver o interior”. Vislumbrou descentralizar o ensino superior, até então exclusivo à Universidade Federal do Paraná.
“Eu me inspirei na USP, que buscava seus professores na Sorbonne,
de Paris. Mandei buscar os melhores de São Paulo e Campinas. Assim, fiz não só uma universidade, fiz logo três.” Assim nasceram as
universidades de Londrina (UEL), de Maringá (UEM) e de Ponta
Grossa (UEPG).
Em tempos de ditadura, convinha não desagradar (ainda mais)
os militares. Nessa esteira, Pimentel acariciou os oficiais com a criação da Academia Militar do Guatupê. “A PM era uma droga, amadora e destreinada. Foi a partir dali que se profissionalizaram”, observa.
“Ainda hoje, a cada cinco anos, recebo homenagens nas universidades”, completa.
Império
O “homem de comunicação” surgiu em outra dessas esquinas. As
pretensões políticas aumentavam, mas doutor Paulo não pertencia
a nenhum grupo político. Era seu próprio grupo. Em 1963, quando
ainda estava à frente da Secretaria de Agricultura, recebeu uma proposta para comprar a Editora O Estado do Paraná. Financiado pelo
dono do Bradesco, Amador Aguiar, abraçou a empreitada de olho
não no jornalismo, mas em ter uma ferramenta que catapultasse sua
candidatura ao governo.
154 Série Perfil
“A cobertura jornalística impressa era fundamental. Eu fiz
minha campanha [ao governo] basicamente com os jornais”, assente. Os jornais foram só o primeiro passo. Já como governador, comprou as tevês e a rádio. O Grupo Paulo Pimentel chegou a ter mais
de 2,5 mil funcionários, em três jornais, três tevês e uma rádio. Sua
queridinha, a Tribuna do Paraná, alcançou a tiragem de mais de 70
mil exemplares. Era o auge, a “era de ouro”, como gosta de se referir.
Por outro lado, em tempos de ditadura militar, doutor Paulo
colecionou opositores. Sofreu perseguição e seus veículos, censura.
Em 1975, em um golpe, perdeu o direito de retransmitir a programação da Rede Globo.
Em dificuldades, precisou apertar os cintos e de um trago de
malandragem. A exemplo e conselho de Sílvio Santos, passou a contrabandear filmes dos Estados Unidos e a dublá-los em estúdios locais. A grade era completada por programas produzidos por aqui –
entre eles, o “Show de Jornal”, no qual o próprio Pimentel figurava
como comentarista. O telejornal é um dos marcos do jornalismo paranaense. Apresentado por Laís Mann, o programa mantinha entre
os comentaristas o jornalista policial Ali Chain e inovou ao introduzir a reportagem de rua.
“Era só programação local e filmes contrabandeados. Até 1982,
quando surgiu o SBT, a programação era isso. Dava resultado, porque
a tevê era muito assistida. O ‘Show de Jornal’ não fazia menos que
12 pontos”. Ele ia diariamente aos jornais. Conta-se que tinha uma
entrada exclusiva, com uma sala imperial, com uma vista ampla, de
onde, do alto do Vista Alegre, contemplava Curitiba de cima.
Nos anos 2000, a receita dos veículos de comunicação caía na
mesma proporção que a tiragem dos jornais e a audiência das tevês.
Em 2007, o império começou a ruir: vendeu as afiliadas do SBT para
o empresário Carlos Massa. Com os jornais “pererecando”, vendeuos em 2011 ao grupo GRPCom. Sobreveio o fim de uma era. “Havia
um sentimento de tristeza por abandonar um negócio que fiz crescer.
Mas me senti aliviado. Não é vergonha vender. É vergonha quebrar.
E se tivesse continuado, o grupo teria quebrado”, analisa.
Série Perfil 155
Paulo Cruz Pimentel
Inimigos e censura
Ao longo das décadas, Pimentel acumulou uma leva do que chama
de “inimigos”. Os políticos Ney Braga, Saul Raiz, Jaime Canet Júnior
e José Richa; os militares Ernesto Geisel, Golbery do Couto e Silva,
Emílio Garrastazu Médici e João Figueiredo; e os empresários Roberto Marinho e Walter Clark (do grupo Time Life). Hoje, usa expressões ásperas para defini-los, mas o faz mais de forma marota do
que com amargura. Diz entender que os embates são importantes.
“Eu era o homem mais votado do Paraná, era rico e defendia
a democracia. É claro que tentariam me destruir. Me deram golpes,
usaram de ilegalidade e autoritarismo, mas não me derrubaram. Isso
faz parte. Todos eles já morreram, mas eu continuo aqui”, diz. “Em
1974, o Geisel veio aqui, em um evento no Teatro Guaíra e disse:
‘Paulo, perdemos a eleição por sua causa. Você vai pagar por isso’. E
eu paguei. Me fizeram o diabo”, revela.
As redações da Tribuna e de O Estado do Paraná passaram a
conviver com a figura de censores, especialmente durante o governo
de Haroldo Leon Peres, inimigo de Pimentel. Matérias eram substituídas por trechos de Os Lusíadas ou ilustrações de araucárias. Scripts
dos programas eram devassados. Os militares também apertavam o
cerco contra as tevês. O governo chegou a sugerir que Paulo se exilasse nos Estados Unidos. Só não foi por que não conseguiu vender
as emissoras. “No dia que o Geisel morreu, fui à tevê e fiz um comentário: ‘Tenho certeza de que esse ilustre cidadão está queimando nas
fornalhas do inferno’”, conta, em meio a risos.
Primavera e outono
Aos 16 anos, Pimentel deixava Avaré, onde nasceu, e desembarcava
no coração de São Paulo, com o sonho de se tornar doutor. Ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. O jovem Paulo queria muito e queria logo. Sonhava ser sócio do Clube Atlético
Paulistano, expoente da elite da época. Habilidoso, fez amizades que
endossaram sua filiação. Ali, num desses acasos, conheceu Yvonne
Lunardelli. “Eu me encantei por ela. Convidei-a para ir ao cinema.
Em dois anos, estávamos casados”, lembra.
156 Série Perfil
A união já se estende por seis décadas, à sombra de um casarão
no Vista Alegre, em Curitiba, de onde, com ar soberano, vê a capital de cima. Aos sábados, reúne a parentada em longos almoços. Tiveram quatro filhas – o único varão morreu com poucos dias, depois
de ter nascido prematuro. São 12 netos e sete bisnetos.
Os hábitos também atravessaram o século. Ainda hoje, o doutor Paulo acorda cedinho – às 5h30 – faz uma hora de exercícios físicos, toma café e parte para seu escritório. Ali, administra seus investimentos imobiliários, que lhe rendem mais de R$ 200 mil por mês.
Antenado, devora jornais e revistas – que lê em seu tablet – e gosta de
palpitar sobre política, “só de farra”.
Pimentel vive seu “outono” com sobriedade. Com saúde em
dia, quer chegar aos 100 anos. “O médico jura que eu passo [dos 100
anos] e eu prefiro acreditar nele”. Fora da política e da comunicação,
quer se dedicar às suas fazendas de cana-de-açúcar no “Nortão” do
Paraná. A meta: saltar dos 600 para os mil alqueires de terra.
No escritório, um memorial em construção lembra da jornada.
São mais de 300 títulos de cidadão horários (entre eles, o de cidadão
da Coréia do Sul) e 17 comendas (destaque para a Medalha do Pacificador, concedida pelo Exército, em plena ditadura). “Eu realizei
coisas importantes, mas nem por isso me considero grande coisa.
Cada um tem suas esquinas. O segredo é saber agarrar as chances.”
Série Perfil 157
Tato Taborda
O nome solene veio do avô e do pai – tradição que repetiu com o filho mais velho.
São Pretextatos. Assim costumavam fazer
as famílias tradicionais, quanto mais aquela que, dizia-se, “era dona da Rua XV”. Mas
à revelia da estirpe, ele virou Tato, apelido
sem cerimônia que se sobrepõe e o traduz.
É o ilustre que fica bem no diminutivo. ¶ No
ramo do Direito, Tato chegou longe – participou do governo João Goulart e assessorou o distinto ministro paranaense Amaury
de Oliveira e Silva. Quando eclodiu o golpe
de 1964, estava de passagem para Ministério Público do Trabalho, onde fez carreira como juiz. Nos anos 2000, aposentado,
aceitou ser secretário do governo Jaime
Lerner. ¶ Paralelo às lides oficiais, deu
asas a sua segunda paixão – o jornalismo.
“Você vai sentir inveja”, brinca, quando
lhe perguntam como foi ter sido repórter
do Última Hora, em pleno 1968. No início
era um bico. Não demorou muito, estava
com os pés em dois mundos – o dos morros
violentos e o dos eventos internacionais.
Cobriu o lançamento da Apolo XI nos EUA,
a Copa de 70 no México, a libertação de
guerrilheiros tupamaros no Uruguai. “Ele é
um encantador de salões”, resume o jornalista Aroldo Murá, em perfil que publicou,
sobre as incríveis memórias de Tato. ¶ Aos
77 anos, casado com Maria do Rocio há 28,
é pai de cinco filhos e avô de oito netos.
Passa os dias ao pé dos pinheiros na cidade que chama de sua. Vai dedicar um livro
a Curitiba.
158 Série Perfil
Série Perfil 159
Tato Taborda
Tato, o passageiro da história
José Carlos Fernandes, com foto de Jonathan Campos
or volta de 1962, o advogado
Pretextato Taborda se viu incumbido de ir ao Mato Grosso preparar uma visita do presidente João Goulart, para quem trabalhava.
Ao circular no hotel onde estava hospedado, deparou-se com um
sujeito deitado na porta de um dos quartos. Mirou a cena e até puxou conversa – ao que escutou a recomendação de que se fosse dali.
Obedeceu.
“Não lembro para qual dos Geisel ele fazia a segurança”, conta Pretextato, referindo-se aos generalíssimos Orlando e Ernesto.
Mas recorda bem o nome do rapaz da guarda – Mariel Moryscötte
de Mattos, o Mariel Mariscot, um tipo galã de subúrbio que, entre
outras, faria fama ao se tornar amante da atriz Darlene Glória (a Geni
do filme Toda nudez será catigada).
Mal podiam prever, mas iriam se reencontrar no final daquela
década, numa das visitinhas que Mariel – então alçado ao posto de
um dos “12 homens de ouro” da Polícia Civil do Rio de Janeiro – costumava fazer à redação do jornal Última Hora, o UH, na Rua Sotero
dos Reis, 62, Praça da Bandeira. Nessas ocasiões, sentava a bunda na
mesa dos repórteres e os seduzia com informações frescas sobre o
Esquadrão da Morte, grupo de justiceiros anônimos regido pela máxima do “bandido bom é bandido morto”.
O bordão horrorizava setores mais civilizados da sociedade carioca. Os “12” surgiram para tranquilizá-la, em vão, pois as farinhas se
misturaram, como hoje se sabe. O publisher Samuel Wainer, dono
do UH, fez o que devia: montou uma pequena equipe de jornalistas
para produzir um dossiê sobre os “homens de ouro”. Pretextato – ele
mesmo, o que trabalhava para o Jango – escolheu Mariel. Já o conhecia de vista, afinal. Confessa que sentiu medo.
160 Série Perfil
Quanto a Mariel, o “Ringo de Copacabana” – baleado em 1981,
na hora em que estacionava o carro – morreu sem saber o tamanho
da honraria que foi ser reportado por aquele jornalista educado como
um candidato ao Itamaraty. Resta saber que diabos Tato, como o
chamam até hoje, estava fazendo na redação do Última Hora.
0
Pretextato Pennafort Taborda Ribas Netto nasceu em São Paulo, no
ano de 1937, mas mal se lembra disso. Chegou aqui nos cueiros. Usa
com fartura a expressão “minha terra” ao se referir ao Paraná. Depois
de duas décadas no Rio de Janeiro, e andanças por Brasília, voltou
para Curitiba. Mora cercado de pelo menos 20 pinheiros, numa reserva nas rebarbas do bairro Mossunguê. Ali, “porvinhas” sugam sem
piedade seu sangue azul.
Reúne todas as credenciais para ser chamado de paranaense:
tem parentesco com gente graúda – o interventor Manoel Ribas
–; estudou na Universidade Federal do Paraná; ocupou cargo de
confiança no Palácio Iguaçu – as pastas da Casa Civil, Justiça e Direitos Humanos no segundo governo Jaime Lerner (1999-2002).
Some-se a seu atestado de bons antecedentes que, na meninice,
era louco por turfe.
Os mais jovens duvidam, mas na primeira metade do século 20,
as corridas de cavalo em Curitiba eram tão ou mais populares que as
“pelejas” entre times como o Britânia ou o Coritiba. As capas dos
segundos clichês dos jornais não deixam mentir. Havia mais fotos
dos puros-sangue Iáskara e Falum do que de craques como Florisval
“Neno” Lançoni e Evilton Elias Carazzai.
Série Perfil 161
Tato Taborda
Ser setorista de turfe era o “ó”, um sonho inclusive para moços
como Pretextato, destinados a baias mais seletas. Seu pai, cujo hobby não eram cavalos, mas cavaletes, fazia parte do seleto grupo do
pintor norueguês Alfredo Andersen. Mesmo assim, rendeu-se e pouco antes de morrer lhe garimpou um estágio na imprensa. Recorreu
à amizade com o jornalista Adherbal Stresser, diretor do Diário do
Paraná, jornal do conglomerado Diários Associados, de Assis Chateaubriand, em Curitiba.
Era 1955. O Diário tinha sido inaugurado havia pouco, na Rua
José Loureiro, 111, e passava a circular numa cidade que provava os
ventos modernistas trazidos pelo governo de Bento Munhoz da Rocha. Tato debutava no melhor endereço da redondeza – feeling que
se repetiria em outras ocasiões.
O temperamento boa praça de Tato ajudou. Tinha 17 anos, sentia-se à vontade no ambiente vira-lata e boêmio das redações, estava
pronto para ser “adotado”, o que na cultura da imprensa de outrora significava passar por todas as provações destinadas aos “carrapichos” e pés-rapados em geral, como se dizia no jargão.
Sua tarefa era ir ao hipódromo duas vezes por semana, bem cedinho, para assistir aos treinos. A ordem dada pelo editor Luiz Renato Ribas era dracônica: tinha de fazer cronometragens, saber “só de
olhar” o nome dos cavalos e dos jóqueis. Sem essa capacidade, jamais
cobriria bem uma corrida. Que observasse. E trouxesse palpites sobre quem seriam os vencedores. “Eu ia até o Guabirotuba de bicicleta”, resume, sobre seu batismo de fumaça no jornalismo.
Dá para dizer que Luiz Renato Ribas – mais tarde um pioneiro
da TV e da publicidade no Paraná – plantou naquele repórter iniciante as qualidades que anos depois lhe abririam as portas de dois dos
maiores veículos da imprensa brasileira – o Última Hora e o Jornal
do Brasil. Editores como Samuel Wainer e Alberto Dines botaram
o olho gordo no rapaz de Curitiba porque ele falava três línguas com
a facilidade de quem dá nós no cadarço; não perdia a classe mesmo
diante de um crápula, mas sobretudo porque era um observador.
Aprendeu decorando nome de cavalos aos pinotes.
162 Série Perfil
64 no avião
A carreira do bacharel em Direito Pretextato Taborda não foi, digamos, um passeio de bicicleta. No meio do caminho havia o lendário político de Rio Negro – Amaury de Oliveira e Silva. Senador
eleito pelo Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB, em 1963, o paranaense se tornou ministro do Trabalho e da Previdência Social de
João Goulart. Ao montar sua equipe, Amaury levou junto afiliados
do PTB – um deles atendia pelo apelido de Tato. Foi uma antessala
da revolução: em menos de um ano na pasta, o desconhecido Amaury
se mostrou um ás em negociações e multiplicou sindicatos rurais. Foi
leal a Goulart na alegria e na tristeza. Acompanhou-o no exílio. “Chegou a trabalhar como garçom num restaurante de comida brasileira,
em Montevidéu”, ilustra Taborda.
Tato também provou da pimenta do golpe de 1964. Naqueles
idos de março, voava para uma convenção trabalhista no México quase ao mesmo tempo em que Jango era catapultado aos infernos. Foi
um embaraço: estava em terra estrangeira representando um governo que não existia mais. A aeronave desceu no Panamá – “disseram
que se a quartelada não desse certo, podiam precisar do avião”. A viagem acabou dando certo, mas na volta, teve de explicar aos militares
por que comprava tantos jornais e revistas na banquinha da frente do
Hotel Serrador.
“Naquela época, a imprensa era a única maneira de a gente saber das greves em outros estados”, conta. Os fardados aceitaram a explicação, deixando o assessor livre para assumir uma vaga na Justiça
do Trabalho. Tinha 27 anos e um bom emprego – conquistado num
Brasil em que pessoas com a formação de Tato não havia às pencas.
Era um sujeito bem preparado num país que desafinava. Para sua surpresa, o dono do Última Hora, Samuel Wainer, também achava.
Zoom
O Brasil não é um país dado a biografar seus jornais – o Le Monde,
sozinho, rendeu três. A exceção fica para o Última Hora, objeto de
meia dúzia de livros. Motivos, a rodo – vão do financiamento camarada feito por Getúlio Vargas a Wainer, em 1951, para que abrisse
Série Perfil 163
Tato Taborda
a empresa; passam pela inovação gráfica e editorial; pela resistência
ao golpe de 1964. Sem falar em seus jornalistas brilhantes e, claro, na
mulher do chefe – Danuza Leão.
Uma das publicações mais saborosas sobre o UH é A rotativa parou! – os últimos dias da Última Hora de Samuel Wainer, do jornalista
Benício Medeiros. Funciona como uma crônica de bastidores. A folhas
tantas, Medeiros fala da chegada de Tato Taborda à redação, em 1968.
Descreve-o como criativo, culto, independente e rico – qualidades que
pareciam ficar ainda mais salientes em se tratando de alguém que não
precisava do salário de jornalista para pagar contas. Claro – sua finesse
causava pontadas de ciúme na turma que esperava o vale.
Tato desconversa. Conta que foi apresentado a Samuel pelo jornalista Nelson Motta, com quem partilhava o gosto por arte e as festas
nos apês à beira-mar. No primeiro encontro entre criador e criatura, o
publisher, que se gabava de ter desmoralizado Orson Wells, simpatizou com o forasteiro contido que, ironia, tinha trabalhando em Curitiba para o arqui-inimigo Assis Chateaubriand. Ficou combinado que
faria notas culturais para a coluna Zoom e copyright de matérias compradas do Nouvel Observateur e do Financial Times.
Podia aparecer de vez em quando, mas quem disse. O paranaense logo se tornou pródigo em cavar faith divers e canards, expressões francesas para aquelas aparentes quinquilharias noticiosas que
escondem ouro. Chegou a ser ovacionado pelos fãs de Emilinha Borba, na porta do jornal, ao noticiar que ela voltaria a cantar, depois de
ter um gato arruinando seu gogó. Mas arrancar declarações de ex-Rainhas do Rádio não era seu único talento.
Em 1969, Samuel Wainer o enviou como correspondente do
UH no lançamento da Apolo XI, em Cabo Canaveral, na Flórida.
Um ano depois, cobriu a Copa de 1970, no México. Não ficava no arroz com feijão. Tornou-se amigo do craque Rivelino, com quem conversava sobre passarinhos. “O pai dele ligava na concentração, para
contar com andava a criação”. Wainer vibrava. É também da autoria
de Tato a matéria “Rondon, o último dos xetás” que denunciou o fim
dessa etnia no Paraná. Além de miudezas sobre o mundo do crime.
Na redação do UH, Taborda ficou próximo de papas como Tar164 Série Perfil
so de Castro e Arthur da Távola. E de ninguém menos que Amado
Ribeiro. É ainda hoje o maior mito do jornalismo policial no Brasil –
cabra que comia sanduíche no meio dos cadáveres, como propalavam
os que queriam dar a dimensão de sua frieza. Basta lembrar que Amado virou personagem da peça Beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues.
Taborda, na contramão, o descreve como um bom sujeito, sempre
pronto a dar dicas sobre o submundo. Ganhou várias.
A breve passagem do paranaense pelas páginas de crime merece
um brinde. A Justiça do Trabalho o obrigava a garimpar as favelas e a
Baixada Fluminense. Não via por que não fazer o mesmo pelo jornal.
Com a diferença de que em vez de reforçar o “mundo cão”, descobria
histórias de interesse humano. Aconteceu na entrevista com o bandido Toco de Vela – assim chamado por deixar um toquinho aceso
ao lado de suas vítimas.
Era pintado como uma besta fera, a personificação do Esquadrão da Morte. O “Toco” que Tato encontrou na vida como ela é não
passava de um velho bandido doente, sem condições de arcar com
toda a barbárie a ele atribuída. O adolescente que um dia observava
cavalos matou a charada. Dessa vez, não foram só os fãs de Emilinha
a aclamá-lo.
Epílogo
Samuel Wainer vendeu o Última Hora em abril de 1971.
Tato lhe telefonou, lamentando a falência. Nunca mais
se viram. Tempos depois, pediria uma licença no serviço público para trabalhar no Jornal do Brasil, a convite
de Alberto Dines. Em 1974, voltou à seara. Garante que
nunca pensou em trocar o Direito pelo jornalismo.
Aposentado, é casado Maria do Rocio. Conheceu-a numa
padaria, ao lado do extinto jornal Correio de Notícias, na
Rua Benjamin Constant, em Curitiba. Estava no lugar
certo, mais uma vez. Em casa, tendo-a sempre por perto,
escreve textos que acha parecidos com matérias de jornal.
Suspeita que nunca serão publicados.
Série Perfil 165
René Ariel Dotti
Filho de um decorador de paredes e de
uma costureira, aluno oriundo da escola
pública, o curitibano René Ariel Dotti se
tornou um dos grandes nomes do Direito
brasileiro – é autoridade em Direito Penal,
cadeira na qual chegou a professor titular
na Universidade Federal do Paraná. ¶ Na
mocidade, tentou carreira no teatro e na
imprensa – na década de 1950, chegou a
trabalhar no Diário do Paraná, do grupo Diários Associados, de Assis Chateaubriand.
O curso de Direito, concluído em 1958, se
impôs. Ainda mais a partir de 1964. Com
o início da ditadura militar, Dotti passou a
ser requisitado por seus colegas de jornalismo. Numa única ação, defendeu mais de
20. “Nunca contei quantas causas foram ao
todo”, diz, o homem que figura nos anais
dos direitos humanos como uma aguerrida
personalidade da liberdade de expressão.
¶ O método Dotti se tornou lendário. Com
diplomacia, conseguiu driblar a censura e
o autoritarismo, em episódios que conta
com teatralidade. Num tribunal militar, negaram-lhe o direito de defender um cliente. Ainda lembra a porrada na mesa que o
calou. Mal esperava o promotor que aquele
paranaense sempre de toga – competindo
em paramentos com os militares – conseguiria junto ao escrivão as provas de que
precisava para fazer valer sua tese. Quarenta anos depois, dedicou ao burocrata
corajoso o texto “O escrivão João de Castro”. Eis o homem.
166 Série Perfil
Série Perfil 167
René Ariel Dotti
Superman, Kafka, Voltaire e ele
José Carlos Fernandes, com foto de Daniel Castellano
stou com as duas meias da mesma cor?”, brinca o criminalista René Ariel Dotti, 81 anos, ao se ajeitar
numa das poltronas de seu escritório, antes de posar para as fotos
desta matéria. De imediato, alguém lembra a fotografia de Fernando
Henrique Cardoso com a meia furada, quando era presidente da República. “Foi parar na capa dos jornais. Lembra?” Dotti ri. Parece à
vontade, apesar de tudo.
Há um corre-corre no escritório – espaço elegante e solene que
ocupa quatro andares de um edifício cinquentão na “Marechal Deodoro”, Centro de Curitiba. O local emprega 60 profissionais, 24 deles
advogados. Na semana passada, o grupo – verdadeira tropa de elite –
assumiu a defesa da secretária de estado do Trabalho e do Desenvolvimento Social Fernanda Richa, a esposa do governador, investigada
num possível esquema de corrupção eleitoral.
Junto com a causa vem a artilharia pesada de pelos menos duas
parcelas de pessoas – os que repudiam a gestão Beto Richa – antes,
durante e depois do episódio que feriu 200 pessoas na Praça Nossa
Senhora de Salete, em 29 de abril passado; e os que se sentem traídos
por Dotti.
Advogado de estirpe, criminalista cinco estrelas, professor titular da Universidade Federal do Paraná, o veterano consolidou sua
carreira na luta pelos direitos humanos e da liberdade de expressão
– em especial nos anos da ditadura militar. Políticos, sindicalistas e
jornalistas defendidos por ele nos últimos 50 anos – sem a cobrança
de honorários – costumam mudar o rumo da conversa. Tornam-se
paladinos de Dotti, mesmo diante do argumento de que seu escritório aceita processos “indefensáveis”.
O mais ruidoso deles é a defesa do deputado Carli Filho no
168 Série Perfil
chamado “caso Yared”. Dispensa apresentações. O mais exótico – o
ganho na Justiça de alvarás de demolição para casas modernistas de
Curitiba, protegidas como Unidades de Interesse de Preservação, as
Uips. Dotti foi secretário de Estado da Cultura e é conhecido homem das artes.
“Como o senhor lida com a patrulha?” (pausa) Dentre as perguntas feitas a René Dotti nas três sessões de entrevista para este
perfil, é a única que demora alguns segundos para ser respondida.
“Sou advogado, trabalho com a lei. Incomoda, mas tenho de lidar
com isso.”
Não ter Facebook ajuda. Ignora boa parte dos desaforos. Quanto às meias, estão impecáveis, professor.
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O advogado René Dotti é um homem miúdo, de voz pequena e raciocínio a galope. Na meninice, quem diria, foi gago. A memória lhe
passa poucas rasteiras, das quais se vinga com a destreza de um lutador de MMA. Como se diz, “é um grande papo”, sempre ilustrado
por episódios bem temperados – não raro hilários. A seu lado, difícil
sentir tédio. Por certo, ajudaram na construção dessa performance o
flerte com o teatro, na juventude. O gosto pela linguagem do rádio.
As cinco décadas passadas na sala de aula – chegou a titular em Direito Penal na Universidade Federal do Paraná. O Tribunal de Júri. A
curta, porém decisiva, passagem pela imprensa.
Para cada um desses capítulos reserva uma narrativa deliciosa,
repetida e aperfeiçoada – com vantagem para o teatro e para o jornalismo. Não esconde que adoraria ter sido “um vocacionado... como o
Série Perfil 169
René Ariel Dotti
Ary”, comenta, referindo-se ao ator Ary Fontoura, a quem tem como
a um irmão. Quando eram “moços, pobres moços”, fundaram juntos
uma companhia cênica, a Sociedade Paranaense de Teatro. Até que
Curitiba se tornou pequena para tantos planos.
“Não fui com ele para o Rio de Janeiro porque peguei segunda
época em algumas matérias. Tinha de me formar”, brinca o homem
que tem no trágico monólogo de amor bandido, As mãos de Eurídice, de Pedro Bloch, sucesso na interpretação de Rodolfo Mayer,
o texto de sua existência. Na casa do Jardim Social onde vive com
Rosarita – sua mulher – construiu um palco. Não aceitou encenar ali
um trecho da obra de Bloch para um videocast. “Eu cairia no ridículo”, esquivou-se. Além do mais, não faz muito tempo, um homem de
leis, no interior do Paraná, o esculhambou, acusando de viver como
um nababo, num palácio “que até um teatro tem”. “É um palquinho”,
descreve.
Quanto à imprensa, cruzou seu caminho em meados da década de 1950, de uma vez por todas. Era estudante de Direito na
UFPR e ganhou uma vaga como colaborador no Diário do Paraná,
jornal de Assis Chateaubriand, do grupo Diários Associados. Fazia
crítica de teatro no suplemento Artes e Letras, criado por outro
chapa, o hoje cineasta Sylvio Back. Foi um período pródigo para as
artes cênicas – sorte do novato Dotti, que dividiu a cena com resenhistas do quilate de Eddy Franciosi, Glauco Flores de Sá Brito e
Roberto Menghini.
Dotti reconhece que estava em boa companhia, mas não esconde que o que mais o marcou foi o ambiente da redação. Descreve a rotina do jornal com minúcias e sem palidez. “Achava incrível
ver toda aquela gente pensando junta”, resume. Ao se formar, em
1958, distanciou-se, mas não por muito tempo. Criou seu escritório
em 1961 – em princípio numa saleta do Centro Velho; em 1962 deu
início a sua carreira na UFPR; em 1964, com o golpe militar, reencontrou toda a turma do Diário do Paraná, dessa vez para defendê-la de cabeludos processos militares. Nunca cobrou um tostão de
nenhum deles.
170 Série Perfil
De toga
Enquanto René acertava os pontos com o Direito, parte da equipe
do Diário migrou para a sucursal do Última Hora – o mítico jornal
de Samuel Wainer. O sonho durou pouco. Ligado a João Goulart até
o último fotolito, o UH levou pedrada [uns dizem que foi bosta de
cavalo] – literalmente – assim que os militares chegaram ao poder.
Profissionais como Milton Ivan Heller, Walmor Marcelino, Cícero
Cattani e o próprio Back ficaram privados do direito de exercer o ofício. A partir de meados de maio de 1964, em vez de baterem máquina
na sede que funcionava no Edifício Asa, Praça Osório, passaram a
bater ponto no quartel da Praça Rui Barbosa. Respondiam os chamados “Inquéritos Policiais Militares”. Para se vingar dos meganhas,
fumavam um cigarro atrás do outro. Cortina de fumaça.
O processo durou quatro anos – Dotti o venceu ao descobrir
uma mancada de Ney Braga, simpatizante do governo militar. Antes mesmo do golpe, ele teria usado verba do programa Flagelos S/A,
destinada a desabrigados do grande incêndio que varreu o Paraná, em
1963, para pagar anúncios institucionais. E vejam só, no Última Hora.
Ao ganhar a causa, em 1968, Dotti estava longe de ser um novato ajudando amigos em apuros. Era o doutor René, um ex-eleitor de Jânio,
leitor de Kafka e próximo de repórteres de fina casta.
Tinha se virado muito bem em uma pá de encrencas envolvendo esquerdistas – já no dia 3 de abril, na boca do golpe, saiu a campo.
Astuto, sacou as manhas para lidar com o regime. Os militares iam
de farda. Ele, de toga. Um bêbado, ao vê-lo certa vez, paramentado,
chamou-o de “padre porreta”. Por supuesto, representava uma ameaça. Ser fichado pelo Dops era só um dos preços a pagar. “Tive medo,
confesso”. “E tenho falado muito na liberdade de não ter medo. O
medo torna a alma refém”.
Os traques corriam atrás das pernas do advogado. Somando todos os episódios em que se fiou, daria uma novela. Fã confesso de
Fidel Castro, por exemplo, atraiu a fúria do reitor José Nicolau dos
Santos. Mais? Um colega da universidade se desculpou, mas não foi
ao casamento de René porque temia ser fotografado ao lado do noivo. Podia entrar em cana. Noutra ocasião, um sujeito se apresentou
Série Perfil 171
René Ariel Dotti
a ele como fotógrafo do Jornal do Brasil. A insistência em tirar fotos
de frente e de lado deu a entender que não tinha pedaços de laranja
naquela Crush. Era do SNI. “Eu estava acostumado como a maneira
como eles nos retratavam nas audiências da Justiça Militar. Percebi
e o mandei embora”.
Não foi o único infiltrado na sua cola. Certa vez, um pinta apareceu no escritório, pedindo auxílio jurídico para se safar de uma
briga “com vizinhos”. Percebeu ser um policial à paisana. Quem não
entendeu nada foi um dos comunistas que defendia. De passagem
pelo escritório, ao entrar na sala para cumprimentar o advogado e
o cliente falso, saiu-se com a frase que entregava todo mundo: “Dr.
René, estamos derrotando os gorilas”. “Minha sorte era que eu lecionava Direito Militar”.
A crônica de René Dotti e a ditadura – embora relatada por ela,
reconheça-se, com graça – ainda é uma história à espera de um autor. Ele sabe disso. Nos últimos anos, reúne material, dá entrevistas
a quem quer que lhe peça, esbalda-se em debates nas universidades.
Nessas ocasiões, mexe com os nervos e com o emocional da plateia.
Rejeita o binarismo do nosso tempo. Ninguém é só uma coisa o tempo todo. Os que se incomodam com alguns casos defendidos pela
equipe de Dotti – e não escondem isso – se comovem ao saber de
figuras como o escrivão João de Castro.
Impedido de defender um cliente, no auge dos anos do chumbo, René pediu ao escrivão que lhe desse a prova escrita de que seu
direito de advogado tinha sido usurpado. Castro deve ter se imaginado apanhando num pau de arara. Mesmo assim, dias depois Dotti
recebeu as provas, pediu um Habeas Corpus e safou o cliente – foi
concedido por Ernesto Geisel, o futuro presidente. Uma década depois, o escrivão Castro foi objeto de um texto elogioso do advogado.
Não menos cativantes são os relatos sobre o médico comunista Jorge Karam, cuja biblioteca foi apreendida e ele preso
como subversivo. O texto de defesa intitulado Libelo de leitura,
escrito por Dotti, em 1969, bem podia ser tema de estudos aqui e
ali, O mesmo se diga da cassação do jurista marxista José Rodrigues Vieira Neto. A defesa de Clair da Flora Martins – a militante
172 Série Perfil
torturada. “O caso que mais me comoveu...”
No escritório da Marechal Deodoro – decorado em estilo inglês por Rosarita – as memórias da ditadura dividem espaço com as
telas paranistas, fartas nas paredes. Tem De Bonas, mas também um
quadro com o documento em que o ministro da Justiça Armando
Falcão declarou um “nada a declarar”, livrando René de mais alguma
enrascada. No meio da rica biblioteca de Direito, pode-se encontrar
um livro em que ex-cliente agradecem os serviços prestados.
Juca Chaves, cliente de ocasião, faz suas loas por escrito, “com
todo o meu coração e todo o meu nariz”. O cartunista Ziraldo preferiu presentear o advogado com uma tela gigante de um “Superman
afrodescendente”, como define Dotti. O quadro destoa do ambiente,
apesar da moldura raffinée. Diz tudo. Menos para ele. Mas de toda
a coleção de pinturas, livros, processos e coisa e tal que acumula no
famoso escritório, uma peça é de sua predileção – um busto do filósofo Voltaire esculpido por Matulevicius. O autor de Tratado sobre
a tolerância, diz, ensinou-o a rir e a fazer rir. De longe, ninguém diz.
Série Perfil 173
174 Série Perfil
Amantes
M o s s a
W a n d e r l e y
e
S u e l i
b i l d n e r
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E l e o n o r a
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C o r t i a n o
192
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G r e c a
Mossa bildner
A trajetória da musicista e intelectual
norte-americana Mossa Bildner se cruza
com o Brasil desde os 6 anos de idade,
quando aqui chegou com a família. Não
saiu impune do contato com os trópicos.
Ela se miscigenou, cumprindo o destino da cultura no século 20. É uma artista
que cumpre as mais sólidas metas da arte
contemporânea: improvisa e faz variações
para qualquer tema, à revelia do quanto
isso lhe custa. Não cabe numa gavetinha,
pois mora na música contemporânea, com
tanta liberdade que suas misturas exigem
correr riscos. As andanças a trouxeram –
os deuses que expliquem por quê – à Rua
General Carneiro, Alto da XV, em Curitiba.
O que dizem sobre ela é um quase protesto. Acham um desperdício que tão poucos
tenham acesso a Mossa. Namorou homens
interessantes, como Glauber Rocha. Teve
entreveros com Ângela Rô Rô, que ao revê-la, anos depois, cobriu-a de abraços. Não
é difícil entender.
176 Série Perfil
Série Perfil 177
Mossa bildner
Vida e obra no improviso (ou All that Mossa)
Cristiano Castilho, com foto de Marcelo Andrade
la demora para abrir a porta da
ampla sala-quarto que aluga na General Carneiro. Não sabemos sua
idade. Nunca saberemos. Embora 60 e poucos seja um bom chute.
O mistério se torna de certa forma motivador quando rompe uma
figura de cabelo vermelho-Rita Lee, pele apessegada, batom nos
trinques. Emana uma energia sábia, daquelas que dominam o interlocutor simplesmente porque o tempo faz com que seja assim. O
repórter senta-se à mesa que dá para a janela, de onde se vê o rabicho
da Comendador Franco. Vizinhas espiam. No Spotify instalado em
um MacBook, ela escolhe um álbum de Ryuichi Sakamoto, músico
e produtor japonês doidinho, pioneiro no que hoje se chama de acid
house. Segue para a cozinha a passos lentos. Serve água gelada em um
copo largo. Quebra o gelo. “Cheguei em Curitiba uma semana depois
da neve. Foi o papo do resto do ano, não é?”
0
Quase ninguém sabe, mas Mossa Bildner está entre nós, de novo,
desde julho de 2013. A cantora e compositora que nos anos 1960
namorou Glauber Rocha e fez com ele “um filme de férias” no Marrocos, a mulher que deu uma primeira chance a Ângela Rô-Rô nos
anos 1970 – e a despediu na sequência –, e que lá pelo meio da década
de 1990 gravou diversos álbuns com o renomado compositor norteamericano Henry Threadgill, está à procura de aventuras musicais. E
de mais improvisos, como atestou o jornal The New York Times em
uma matéria que publicou sobre a musicista em 2009. Porque é isso
que a faz viver: reinventar-se.
No som, é a vez de Nusrat Fateh Ali Khan, cantor paquistanês
178 Série Perfil
que admira. “Veja como ele usa microtons”, diz, referindo-se à escala musical hindustani, comum na Índia e em parte do Oriente. Ela
escolhe o português para conversar, embora expressões em francês
e inglês (poderia ser italiano ou espanhol) brotem sem avisar. “É o
maior cantor dos últimos cem anos”, continua. A voz de Mossa é plácida, mas firme. Uma gagueira sutil se intromete no meio de algumas frases de vez em quando. Quando troca uma palavra por outra
(“aclarar” em vez de “clarear”), cria um sotaque único e divertido.
De berço
Mossa nasceu em Nova York, cidade dos improvisos. Veio ao Brasil
ainda guria, aos 6 anos. O pai, industriário, investiu no país do futuro.
Endinheirado, comprou uma ampla casa no Leblon, no Rio de Janeiro, onde Mossa morou com a mãe e os dois irmãos mais novos. Ela
não fala sobre a família – “são judeus agnósticos do pós-guerra.” Na
estante, poucas pistas: fotos da mãe, sempre com olhos melancólicos. De um cachorro. De gatos com nome de ópera – Lindoro, em
homenagem ao Barbeiro de Sevilha, era um mourisco rechonchudo.
Uma das imagens mostra que uma escola do Amazonas foi batizada em homenagem a Patrícia Bildner. “Minha mãe era diretora da
Fundação Fulbright do Brasil”, diz a filha, lacônica.
Após ser humilhada por um professor da escola inglesa-carioca
em que estudava, quando levou um álbum de Ravi Shankar para uma
atividade em grupo – “esse sujeito nem inglês sabe falar direito”, bradou o mestre fajuto –, o altruísmo musical e o sincretismo religioso
tomaram forma.
A história poderia estar em livros infantis: todas as noites, a
menina Mossa, então com 12 anos, ouvia uma cantoria aguda, vitaSérie Perfil 179
Mossa bildner
minada por batucadas. Não conseguia pregar o olho porque tentava
imaginar o que era aquilo tudo, a algumas quadras de casa. Indagou a
empregada, que despistou ao dizer “que era uma festa”. “Posso ir?”,
disse a jovem. Ouviu um não mais forte que os atabaques. A gringuinha reinou. Conseguiu, enfim. Com a condição de que não contasse aos pais. “Foi uma aventura. Ela me acordou, botamos galochas
para passar no mato, porque tinha cobra, e chegamos.” Mistério resolvido: um terreiro de umbanda jazia no quintal de casa. “Vibrei.
Era a minha praia”, diz a musicista, improvisando algum outro artista
nada ortodoxo no Spotify. A aventura em segredo durou até as 3 da
manhã. Abriu portas e a cabeça.
Mossa era habituée da extinta loja de discos Modern Sound,
no Rio, quando voltou a Nova York para estudar na Juilliard School,
laboratório que pariu Nina Simone e Miles Davis. Tinha 17 anos.
Como em muitos casos, a faculdade fez água. “Foi para agradar meu
pai. Ele não achava que eu tinha talento”, lamenta Mossa, que reflete
nos olhos a tristeza que contrai de repente.
Dedicou-se muito, entretanto. Cantou óperas, atuou em peças.
Mas a estrutura rígida da academia jamais irá dobrar uma sagitariana
para quem regras desmancham no ar. Então voltou ao Brasil. É que
não importava onde. Mossa já tinha a cabeça no mundo.
Eram os anos 1970 e o país usava coturnos. Durante a apresentação de Tropix, espetáculo escrito e dirigido pela quase brasileira,
soldados invadiram o Teatro João Caetano, no Rio. A orquestra de
30 integrantes “que custou os olhos da cara” silenciou. A peça não
era exatamente política. “Havia duas meninas com roupas justas e a
censura achou repugnante”, conta.
Na mesma Tropix, uma atriz voluptuosa dava trabalho. Não
tinha jeito: Ângela Rô Rô insistia em bebericar uísque durante os
ensaios. “Nós é que demos esse nome a ela”, lembra a cantora. “Eu
era Mossa Ossa. Tinha também a Binda Branca, o Pedro Pecado...”
Conversar na chincha de nada adiantou. “Num dia, dei um golpe de
judô e chutei o copo da mão dela. E a demiti também.” O elenco ficou em pé-de-guerra. Porque Ângela “tomava conta do palco, era impossível, um grande talento.” Em abril de 2014, a cantora de “Só Nos
180 Série Perfil
Resta Viver” fez uma apresentação no Teatro da Caixa, em Curitiba.
Mossa estava na plateia. Não deu um pio. Ao fim do espetáculo, foi
cumprimentar a ex-colega. “Seu nome”, perguntou Ângela. “Mossa
Ossa.” Pronto. Faniquitos inesperados, abraços saudosos.
Glauber, o barrigudo
Era o fim dos anos 1960, e deu praia no Rio. Mossa se enrabichou
por um jovem cineasta, indicado à Palma de Ouro em Cannes com
o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), vencedor dos prêmios Luis Buñuel e Fipresci com Terra em Transe (1967) e do prêmio
de melhor diretor, também em Cannes, com O Dragão da Maldade
Contra o Santo Guerreiro (1968). “Era um jovem barrigudo”, lembra
Mossa. Os dois engataram um namoro lisérgico cujo pico foi uma
viagem à mítica cidade de Essaouira, no Marrocos, um oásis hippie
de outrora. “O cineasta sempre está à procura de algo, mesmo que
não saiba o quê. Glauber foi me encontrar lá.” O casal viajou por
Marrakesh e Casablanca, na companhia de narguilé com haxixe e chá
de menta. Com uma câmera super-8 a tiracolo, Glauber registrou o
que Mossa diz ser um “filme de férias.” Na verdade, é um precioso
achado cinematográfico.
O “documentário” de 32 minutos, sem som, flagrou o cotidiano do casal na pacata vila do país africano. O registro começa com
Mossa no comando, filmando Glauber na cadeira do barbeiro. Um
close demorado no suco de laranja do café da manhã e enquadramentos nada óbvios dão provas concretas aos descrentes: é Glauber. O
curta-metragem também mostra o casal em Madrid, a improvisar.
“Sei que isso é raridade”, reconhece. A ideia agora é turbinar o filme
com uma trilha sonora. Coisas da época, como Jimi Hendrix, The
Doors ou Crosby, Stills & Nash. Com a ajuda do Museu da Imagem
e do Som, o filme deverá passar por um processo de restauração para
ser exibido em Curitiba, em uma sessão especial, quem sabe ainda
neste ano.
A essência de tudo
Em 1997, uma catarse deliberada assomou o corpo e a cabeça de
Série Perfil 181
Mossa bildner
Mossa. A ideia era pesquisar o que pode ser o Bóson de Higgs da
música: as semelhanças estruturais e harmônicas entre ritmos aparentemente diversos, como aquele que embala o candomblé, o gnawa
do Marrocos, o jazz, o blues, o hip hop. Após 15 anos, nascia o projeto Colours of Ritual, apresentado algumas vezes em Nova York.
“Não gosto de música sem nexo”, argumenta Mossa. É preciso razão
maior, afinal, para misturar gaita de fole com cuíca. Qual uma ONU
em versão melodiosa, o Colours of Ritual aproxima, por exemplo, a
música judaica da canção árabe. “No futuro, espero, teremos consciência de que somos uma coisa só.”
Desde que chegou a Curitiba, Mossa, adepta do que chama
de free improvisation, tenta se estabelecer numa cena de música
contemporânea que ainda engatinha na cidade. Com o compositor
e musicólogo Harry Crowl, trabalha na ópera Meu Tio o Iauaretê,
baseada no conto homônimo de Guimarães Rosa. “Ela é culta, muito
viajada, eclética e uma cantora lírica completa”, atesta Crowl. Mossa
não abre o jogo sobre o projeto porque é supersticiosa. Com o percussionista Vina Lacerda, gravou algumas faixas – disponíveis no
Soundcloud da artista. “Ela é interessante, tem influência de músicas
de várias partes do mundo. E por isso é ‘livre’”, diz o músico.
Um desperdício, na opinião do produtor Alvaro Colasso, é
que os conhecimentos e a experiência de Mossa Bildner não sejam
aproveitados em eventos como a Oficina de Música, alvo de críticas da senhora, que agora toma um chá de maçã com gengibre. “É a
mesmice de sempre. Não há ousadia nenhuma.” Mossa também tem
boas relações com as atrizes Cris Macedo e Pagu Leal. E participa do
grupo Meninas que Escrevem em Curitiba, empreitada de Andréia
Carvalho e Alexandra Barcellos da qual participam, hoje, 146 poetas.
O Facebook apita. Mossa sorri. “Oh, my God! Me convidaram
para dar aulas de repertório operístico e master classes no Villa Vox,
no São Lourenço. Querem até que abra um curso de improvisação
livre.” Com ela é assim mesmo, o inesperado é rotina. Enquanto caça
gigs e ganha dinheiro traduzindo poemas e documentos, Mossa tenta
compreender o modus operandi do curitibano – um desafio. A ausência de calefação nas casas, por exemplo, ela não engole. “Me inco182 Série Perfil
moda. Quando você finalmente chega em casa, sente mais frio ainda.
Me deixa um pouco deprê.”
Mossa Bildner acha graça quando desistimos de um compromisso por causa da chuva. Diz que a desculpa só cola no Brasil. Sua
explicação é que somos seres sensíveis às vicissitudes da natureza.
Nos Estados Unidos, diz, há até um distúrbio, o seasonal affective
disorder (também conhecida como depressão sazonal). “O tempo
exterior influi no nosso tempo interior.” Lembra então do poeta
Paul Verlaine. “Il pleure dans mon coeur comme il pleut sur la ville.”
(“Chove no meu coração como chove sobre a cidade.”)
Mossa parece encolher quando fala sobre um câncer, em tratamento. As sessões de quimioterapia a deixam imprestável. Às vezes,
não consegue cantar. Sofre com isso. Quase chora. Com gentileza,
ela pede ao repórter que desligue o gravador. Chove muito lá fora. Il
pleure dans mon coeur comme il pleut sur la ville.
Série Perfil 183
Eleonora e Wanderley
Primeiros-bailarinos do Balé do Teatro
Guaíra (BTG) desde os anos 1980 até esta
década, Eleonora Greca e Wanderley Lopes
viveram tempos gloriosos em que a companhia era destaque no cenário da dança nacional. Em seu currículo, trazem a atuação
em balés como Gisele, o Quebra Nozes, A
Sagração da Primavera, 13 Gestos de um
corpo e o lendário O Grande Circo Místico, que fez história e tornou a companhia
a mais aclamada do país na época em que
era apresentado. Em seus primeiros passos no BTG, Eleonora teve forte influência
do polonês Yurek Shabelewski, que dirigiu
o balé nos anos 1970. Wanderley teve como
primeiro mestre Carlos Trincheiras, que o
ajudou a ter a primeira experiência internacional em Portugal. O casal está junto
desde 1984, criou dois filhos e se tornou
referência tanto pela história na arte quanto pela trajetória na vida. O envolvimento
deles com a dança vai para além do Teatro
Guaíra e os levou a serem atuantes em diferentes âmbitos do cenário cultural, como
o empresarial e o político.
184 Série Perfil
Série Perfil 185
Eleonora e Wanderley
O poema de Nora e Wande
Joana Neitsch, com foto de Marcelo Andrade
urante uma turnê do Balé do
Teatro Guaíra, na Bahia, com o espetáculo O Grande Circo Místico, o
bailarino Wanderley Lopes queria escrever poesia e precisava de papel.
A primeira bailarina da companhia, Eleonora Greca, também gostava
de escrever e deveria ter papel de carta para lhe arranjar. Naquele 1984,
as sapatilhas eram uma obviedade em comum entre os dois integrantes
da companhia de cerca de 50 bailarinos. As letras deram uma forcinha
para que os dois se aproximassem. Os colegas, que já compartilhavam
o palco, começaram a compartilhar os poemas que faziam. Para dividir
a vida foi um passo. Mais de 30 anos depois, os dois dividem uma casa
que parece de bonecas, com floreiras nas janelas e tudo, na antiga Vila
Ferroviária, entre o Alto da XV e o Tarumã.
0
Aos 12 anos, Eleonora foi convidada por professoras da Escola do Teatro Guaíra, onde estudava balé, para viajar para o Rio de Janeiro e
assistir à companhia inglesa Royal. Ganhou um ingresso extra para o
espetáculo A Bela Adormecida. No dia seguinte, tinha O Lago dos
Cisnes, mas não havia ingresso para Eleonora. Mesmo assim, as professoras insistiram que ela fosse e, na entrada, enquanto entregavam
os ingressos, empurraram a pequena bailarina para dentro do teatro
e fizeram sinal: “Vai”.
A menina baixinha e magra passou despercebida, subiu até o último balcão e lá do alto assistiu às bailarinas “com aquelas costas trabalhadas”. Hoje, Eleonora reconhece que, ainda que inconscientemente,
naquele momento alguma coisa mudou na sua relação com a dança.
Wanderley e Eleonora se conheceram numa turnê do Balé Te186 Série Perfil
atro Guaíra. Passaram a compartilhar, além dos palcos, poesias. E, há
30 anos, resolveram dividir também suas vidas.
Na mesma época, a pianista Liane Essenfelder escreveu em sua
coluna na Gazeta do Povo que Eleonora era uma promessa da dança,
mas pecava pela indisciplina. O pai da menina leu aquilo e questionou: “Como assim, indisciplina?”.
Filha de um engenheiro e de uma professora, Eleonora era uma
menina sapeca, hiperativa – como se define. Falava com todo mundo.
Só começava a fazer aula depois de cumprimentar todas as amigas
com um beijinho. A primeira vez que subiu no palco foi com uns 5
anos, em uma peça de teatro em um colégio de freiras. O que mais
lhe marcou não foi nem o palco, nem a plateia, mas os bastidores –
aquele clima das coxias. Começou na Escola do Teatro Guaíra ainda
na infância e aos 14 anos passou a ser estagiária na ainda incipiente
companhia. Para ela, tudo em sua vida foi se realizando sem que planejasse muito. Quando via, as coisas estavam acontecendo.
Quando fez audição para a companhia, assustou-se ao se dar
conta de que dançava no meio de duas grandalhonas. Decidiu dançar
com alma. Se não passasse, pelo menos teria feito bonito. Mal sabia que ali a outrora menininha, que fez pacto com as amigas de que
“nunca vou sair do balé”, se encaminhava para ser a diva daquele teatro por 30 anos. Passou em segundo lugar nessa prova, mas o posto
pelo qual ganharia reconhecimento nas próximas décadas seria o de
primeira bailarina do Guaíra.
Baryshnikov
Aos 17 anos, Wanderley estava fervendo leite na Casa do Pequeno
Jornaleiro quando viu Mikhail Baryshnikov saltando e girando na
Série Perfil 187
Eleonora e Wanderley
TV. Seus olhos brilharam. Achou aquilo incrível. Queria fazer igual.
No dia seguinte, passava pela Praça Tiradentes e, de novo, lá estava o
bailarino russo na tela da TV de uma loja. Só podia ser o destino. Será
que dava para pensar em destino?
Na infância, Wanderley viveu no Educandário Curitiba, casa
que abrigava filhos de portadores de hanseníase que se tratavam no
Hospital São Roque – era a única opção de local para a mãe dele, uma
enfermeira separada, deixar os filhos. Mais tarde, ela foi morar no
interior com os mais novos. Não tinha condições de cuidar de todos
e Wanderley ficou. Dali, foi para o Educandário Munhoz da Rocha e
depois para a Casa do Pequeno Jornaleiro, instituição onde as crianças viviam e trabalhavam entregando jornais.
Quando se deparou com Baryshnikov na TV, além da tarefa
diária de ferver leite para quase uma centena de crianças e ajudar no
controle interno dos pequenos jornaleiros, Wanderley fazia caratê,
jogava entre os iniciantes do Coxa e trabalhava como estagiário na
Telex. Resolveu procurar algum lugar para dançar, coisa rara para
meninos, ainda mais para os empobrecidos. Algum tempo depois,
conseguiu entrar em um grupo de formação para bailarinos no Guaíra, com o professor Carlos Trincheiras.
No começo, Wanderley tinha vergonha de dizer o que fazia no
teatro. O pessoal do Pequeno Jornaleiro mostrava curiosidade e ele
despistava. Dizia que era auxiliar administrativo. A desculpa colou
até o dia em que Wanderley participou de uma apresentação com o
corpo de baile no Rio de Janeiro. O grupo tirou uma foto, que saiu
na revista Manchete. Os pequenos jornaleiros, que se identificavam
por números, também entregavam a Manchete e quando folhearam
a revista e deram de cara com Wanderley em trajes de dança caíram
na risada: “Olha o 36”.
Em poucos meses o menino jornaleiro voava para Portugal com
uma bolsa para estudar dança. Foram dez meses e US$ 18 mil poupados com o que recebia e mais uns bicos como modelo de propagandas
na TV. Até que recebeu a notícia de que a irmã mais nova estava grávida. Pegou as economias, voltou para o Brasil e comprou uma casa
para a mãe e a irmã.
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O Guaíra estava a sua espera. E, mal sabiam eles, Eleonora também. Contando hoje, tudo parecia coreografado. E como toda coreografia extenuante, as marcas ficaram no bailarino. “Há dez anos, eu
não conseguia contar tudo isso sem chorar. A gente vai ficando insensível. Hoje me sinto um bobo em me ver chorando”, conta Wanderley, com humor.
O encontro
“Garoto que chegou na hora certa/ Que veio sem compromisso/ Pegando-me tão de surpresa/ Que quando tocou-me, soltei-me/ E quando beijou-me, deitei-me”
Assim Nora, como é carinhosamente chamada por Wanderley,
se refere ao amado em um dos poemas dedicados a ele.
Quando Wanderley voltou da Europa, Eleonora era primeira
bailarina do Guaíra, a estrela da companhia. Em casa, tinha um filho
pequeno, Guilherme, do casamento desfeito com um engenheiro.
Foi na ascensão da companhia que o casal se formou. No início dos anos 1980, O Grande Circo Místico foi uma explosão. Não
havia dinheiro para divulgação. Fazia-se panfletagem na Rua XV.
O disse-me-disse levou o teatro a lotar e lotar, e também a longas
turnês pelo Brasil.
Eleonora lembra com carinho dessa fase. Apesar do orçamento
em casa e no teatro ser apertado, os bailarinos viviam tempos gloriosos, eram aclamados pelo espetáculo, cumprimentados nas ruas.
“Tinha muita felicidade envolvida”, lembra ela, com sorriso largo e
olhos brilhantes. Mesmo tendo feito cursos no exterior, viajado com
a turnê por vários lugares, o sentimento era de que a dança borbulhava aqui em Curitiba, de frente para Praça Santos Andrade. “A gente
tinha a sensação de estar onde as coisas estavam acontecendo”, diz a
primeira-bailarina mais lembrada do Guaíra.
As crianças se acostumaram a ver os pais em turnê. Guilherme,
34, tem Wanderley como um segundo pai e Isadora, 27 – nome inspirado na bailarina Isadora Duncan – nasceu da união dos dois. Os
filhos viam a rotina agitada com muita naturalidade. Acostumaram-se a ter o Guairão como extensão da casa e a ficar com a avó materna
Série Perfil 189
Eleonora e Wanderley
italiana e divertidíssima quando os pais viajavam. Eleonora sempre
foi de pensar em tudo. Não deixava escapar nenhum detalhe na criação dos dois, mesmo quando precisava ficar longos períodos longe.
Quando pensam em Eleonora, os filhos pensam na mãezona, exigente, que cozinha bem e é superorganizada. A imagem glamourosa da
bailarina fica para a hora da admiração de alguns amigos ou conhecidos quando descobrem quem é a mãe deles.
As trajetórias tão distintas se equipararam no palco. Wanderley também se tornou primeiro bailarino do Guaíra. Depois de perambular por tantos cantos no mundo, sentiu-se acolhido na família
Greca, de italianões animados. Não ficou amargurado pelo que passou e tem a determinação de manter a ternura. A própria filha o descreve como quase ingênuo, daquele tipo que se torna grande amigo
de uma pessoa que encontrou só uma vez na vida.
Em 2013, Eleonora decidiu que era hora de se despedir dos palcos enquanto estava bem, sem drama, com festa. Fez sua última apresentação no palco do Guaíra, dançando o dueto Beatriz de O Grande
Circo Místico com Wanderley. No final, as portas do cenário do balé
13 Gestos de um Corpo se abriram e 13 bailarinos lhe entregaram buquês de flores.
E acabou? Nada disso. Eleonora diz não sentir saudades da dança porque continua trabalhando com os palcos, mas agora nos bastidores. Foi coordenadora de Dança da Fundação Cultural e organizou
a Bienal de Dança. Aos 57 anos, aplica sua formação em administração, com ênfase em Marketing, no grupo O Boticário. Trabalha na
gestão dos recursos de lei de incentivo para grupos de dança. Adora
lidar com planilha. É uma nova vida, o que não é problema para ela.
“Meu ego já foi bastante escovado”, diz. Continua fazendo algo pela
dança, é o que importa.
Wanderley segue como primeiro bailarino na companhia. Aos
52 anos, participa de espetáculos, faz aulas com a mesma disciplina
de um menino iniciante, traz no corpo a linha clássica e muita experiência em cada movimento. É respeitado e convive muito bem com
a garotada que integra o Balé do Teatro Guaíra. Foi coreógrafo da
Seleção Brasileira de Ginástica Olímpica. Filiado ao PPS, na última
190 Série Perfil
eleição municipal concorreu a uma vaga de vereador. Diz que resolveu entrar a política porque ainda se olha muito pouco para as artes.
Em casa, a dupla tem um acervo organizado em pastas, com
fotos e datas, não só sobre a carreira deles, mas sobre a história de
toda a companhia de dança. Entre as imagens, registros de festas
animadas, festa do azul, festa cafona... Adoram reunir pessoas, comemorar, fazer macarronada, jogar conversa fora. Também adoram
viajar, agora sem as correrias de turnês. Dos muitos destinos, ficaram
encantados com o mar azul de Fiji – tanta beleza lhes é muito natural.
Série Perfil 191
Sueli Cortiano
A assistente social Sueli Cortiano, 52 anos,
nasceu em uma família de sitiantes, no Norte
Pioneiro. Aos 14 anos, trabalhava como vendedora numa loja de roupas para crianças, na
Rua Monsenhor Celso. Aos 17, casou-se com
Nelson Cortiano, então futuro oficial da PM.
Tiveram dois filhos, dos quais cuidou como
uma típica dona de casa. Até que decidiu
trabalhar fora. ¶ Não queria um bico, queria
fazer diferença. Por uma década administrou
um CMEI na Vila Trindade, Cajuru. Passou por
outras unidades. A partir de 2005, tornou-se
um dos timoneiros do projeto “Criança Quer
Futuro”. Nessa etapa da carreira, o noticiário policial quebrou sua vidraça. Nelson foi
assassinado. “Por que comigo?”, perguntou
Sueli. Ela é coordenadora do Núcleo de Atenção a População em Situação de Rua, da Fundação de Ação Social de Curitiba (FAS).
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Série Perfil 193
Sueli cortiano
Diante da dor dos outros
José Carlos Fernandes, com foto de Alexandre Mazzo
aquela quarta-feira, Nelson e
Sueli Cortiano fizeram tudo sempre igual. Por volta das 8h30, ele a
levou de carro ao trabalho. Partiram do Bairro Alto rumo à sede do
“Criança Quer Futuro”, projeto da Fundação de Ação Social (FAS),
na Rua Rockefeller, Rebouças. Na Linha Verde, ao ver uma aeronave
que se preparava para aterrissar no Afonso Pena, Nelson repetiu o
gracejo de costume. “Olhe, o nosso avião”. Adorava viajar. Despediram-se com abraço seguido de beijo, ritual de três décadas de casamento. Ele deu partida, rumo à novena do Perpétuo Socorro, no Alto
da Glória.
Ao entrar no seu gabinete, Sueli viu que um quadro tinha se
espatifado no chão. Nas horas que se seguiram, Nelson não ligou no
celular para perguntar se comprava um ou dois quilos de peixe no
Mercado Municipal, coisas assim, pretexto usual para falar com a
mulher durante o expediente. Ela estranhou, mas seguiu sua lida junto à centena de meninos de rua que ocupava o pavilhão onde atuava
como assistente social.
As horinhas de sossego só vieram no final da tarde, assim que
a tevê anunciou ... o Pica-Pau. Batata. A inimitável risada do personagem de desenho animado tinha o poder de hipnotizar a gurizada.
Sueli aproveitou para aviar pareceres sobre um dos adolescentes
atendidos – a juíza estava à espera da papelada. Olhou no relógio.
Nelson devia estar a caminho, para buscá-la. Pediu ao telefone que
lhe desse um tempinho. “Tudo bem?”
Tudo – o atraso dela fazia parte da rotina dele. Aproveitou para
estacionar na Rua Visconde de Abaeté, onde até as pedras o conheciam. Trocou umas palavrinhas com um pastor, seu amigo, cumprimentou os conhecidos que viu na calçada e entrou na farmácia para
194 Série Perfil
dar um alô a quaisquer. O local estava sendo assaltado. Havia lá uma
balconista grávida. E ele ali, a tal da pessoa certa no local errado,
como na mais clássica das tragédias.
Nelson Walter Cortiano tinha 56 anos, era sargento aposentado da Policial Militar – um homem treinado para a guerra, se preciso fosse. Com perícia, imobilizou um dos dois envolvidos. Havia um
terceiro no carro da fuga, todos na faixa dos 20 anos A campanha
não teve final feliz. Atingido por uma bala no peito, Nelson tombou,
corpo para fora da loja, em plena hora do rush. Em 50 segundos os
estilhaços da bala o mataram. Era 18h05 de 18 de abril de 2012. Faz
três anos no próximo sábado.
“E se eu não tivesse me atrasado?”, pensou Sueli, ao chegar à
cena do crime. Multidão em volta.
0
Sueli Galvão tinha 15 anos quando “segurou a vela” para a irmã mais
velha, Luzia, num baile na CEU – a Casa do Estudante Universitário.
Nelson estava lá. Tinha 22 anos e era o que as gurias chamavam de
“um pão”. Tirou-a para dançar. Olhinhos reviraram. Ao voltar para
casa, tinha cruzado um oceano. Convertera-se na guria do Bairro
Alto caída por um moço de família italiana da Água Verde.
O frisson adolescente acabaria ali não fosse, dias depois, Nelson ter vencido os 11 quilômetros que o separavam da “pequena” que
conheceu na matinê. Tinha um Fusca amarelo. Bateu na porta de seu
Manoel e dona Maria Pereira Galvão. Queria pedir a caçula em namoro. Não foi recebido com licores de figo. Ouviu que se tratava “de
uma criança”. Fazia sentido: no meio dos rapapés, Sueli pediu licença
Série Perfil 195
Sueli cortiano
e foi dormir. A mãe e o candidato ficaram a sós.
Maria tinha pencas de razões para fazer um inquérito. Nascida
numa família de sitiantes remediados de Siqueira Campos, no Norte
do Paraná, provou na mocidade a fortuna do ciclo do café. Provou
também o amor, que atendia pelo nome de Manoel Galvão – um tipo
que tocava modas caipiras, pródigo em arrancar suspiros das brejeiras e das sestrosas. Um boêmio. Contra todos, Maria e Manoel se
casaram, tiveram três filhas e pencas de desacertos, como os parentes
profetizaram que iria acontecer. A inclemente temporada de chuvas
de 1963 se encarregou do resto, levando uma promissora colheita, o
dinheiro e os combinados do casal.
Migrados para Curitiba, Manoel se empregou no Açúcar Diana, sem muito sucesso. Morreria jovem, aos 50 anos. Maria ganhava
o pão fazendo limpeza, atividade a anos-luz das rendas e sianinhas do
passado. Não podia se dar ao luxo de errar. Usava de mão firme para
que Luzia, Sirlei e Sueli tivessem sorte maior. Que o sujeito não se
esquecesse disso, a cada vez que estacionasse na porta dos Galvão.
Em 1979, antes mesmo de Sueli completar 18 anos, Nelson lhe
colocou anel no dedo. A cerimônia foi numa capela, onde hoje está
a UniBrasil, na “Konrad Adenauer”, rua que seria o rio da biografia
do sargento Cortiano. Nela se uniu à mulher a quem amou. Ali serviu por 25 anos na Polícia Montada. Ali acabou por ser velado, num
adeus dos mais concorridos – 2,5 mil pessoas se acotovelaram no Cemitério Vertical. Sueli pediu que os canais de tevê fossem embora.
Era realidade demais para tamanha ficção.
Os dias felizes
O casamento serviu como luva a Nelson e Sueli. Os filhos Liveston
e Piero vieram cedo. Os quatro, mais dona Maria, gostavam de receber, de fazer longas viagens de carro, de estar juntos. A aura de “família de Frank Capra”, o cineasta otimista da Depressão Americana,
sobreviveu ao gosto de Sueli por reviravoltas. Enérgica, de raciocínio
rápido, ativa, dona de uma beleza sertaneja e sem truques – um tipo
que parece imune à preguiça –, preparou mudanças assim que percebeu Piero crescido o bastante. Avisou Nelson que ia trabalhar fora.
196 Série Perfil
Ele não saiu saltitando pelo jardim, mas a apoiou, como de regra.
Aprovada num concurso municipal, Sueli agora batia cartão
num centro infantil da Vila Trindade, então um encrave pobre e violento do Cajuru. Nunca pegou piolho. Nunca teve medo – exceto
de dirigir –, mas era como se o chão se abrisse a cada jornada: não
há drama humano que não desembarque numa creche de periferia.
Àquela altura, pensava juntar dinheiro para comprar um automóvel .
Mas que nada.
Sueli não recorda o momento em que decidiu que queria modificar também a vida dos outros. Mas lembra bem de ter visto dona
Maria “dando um jeito” para fazê-lo, mesmo debaixo da penúria trazida pelas geadas. É uma mulher generosa e tarefeira, qualidades que
não esmorecem debaixo do peso de seus 78 anos. O jeitão de animadora de quermesse, da mãe, dava comichões à filha. Eram feitas
do mesmo barro. Entre quebrar uma pedreira e se esparramar numa
rede, quebram a pedreira.
O primeiro sinal de que se sentia chamada para uma obra veio
ainda nos tempos de dona de casa. Cozinha tinindo, abalava-se para a
Pastoral da Família, onde dava aulas de crochê. “A pastoral se tornou
minha escola”, resume. Nos tempos em que foi diretora de CMEI, a
altíssima voltagem humanitária só fez aumentar. Quando numa de
suas implacáveis limpezas de gavetas encontrou um fôlder do curso
de Serviço Social da Faculdades Espírita, viu um sinal. Repetiu seu
mantra pragmático: “Nada acontece por acaso”. Sem alarde, fez vestibular e ganhou uma vaga no noturno. Nelson, claro, concordou.
Sempre que podia, sargento Nelson a buscava na “Espírita”. A
rota, agora, ia do Santo Inácio ao Bairro Alto. Depois do beijo e do
abraço, dava tempo para ela lhe contar das aulas de sociologia, das
causas da miséria e da fragilidade das políticas públicas. “Eu saí do
senso comum no que diz respeito à pobreza e à violência...” Cada
semestre mais afiada, sua fala contrastava com a rigidez dos espartilhos militares do marido. Na hora da diferença, é quando muitos
casamentos acabam. O deles se fortaleceu.
Influenciado pela empolgação daquela universitária tardia,
Nelson se engajou nos projetos de direitos humanos da PM. Por alSérie Perfil 197
Sueli cortiano
guns anos, o dial de um e outro seguia as mesmas frequências. Até
que ele passou a contar os meses para a aposentadoria e ela fazia um
mergulho cada vez mais radical. Tinha virado a “Sueli da FAS”, uma
referência. Sem problemas. Ele fazia as compras da casa, cumprindo,
talvez, a promessa que fez à dona Maria no dia em que pediu a filha
em namoro. Cuidava dela enquanto ela cuidava do mundo.
No mais, sempre teriam os telefonemas bobos, as caronas, uma
maçã verde de presente, os planos da próxima viagem de férias. “Natal?” A capital do Rio Grande do Norte era a preferida. No domingo
antes de morrer, brincou com uma cunhada que queria suas cinzas
jogadas lá. Ainda estão do lado da cama do casal – mas têm destino
certo: as águas potiguares. Sem problemas: Nelson sabia esperar.
Depois daquele dia
Sueli Cortiano, agora viúva, pediu “licença nojo”. Quando voltou,
mês depois, ganhou novo posto. Ia lhe fazer bem. Trabalharia na
Central de Resgate, o popular “assistência aos necessitados”. Saía a
gurizada, entravam os bêbados, drogados, retirantes, os sem destino
que faziam fila na Rua Conselheiro Laurindo. Parte do problema resolvido, restava “o outro”. Ficou à espera de um sinal. Encontrou-o a
bordo da Kombi da FAS.
Ao passar na frente do quartel do Exército, na Silva Jardim, viu
o carro usado no crime, com a placa “vende-se”. Fez o diabo. Fotografou, levantou as multas, esparramou documentos na mesa dos homens e mulheres da lei: o pai do condutor do veículo era um fardado.
Qualquer um podia prevaricar, menos ele, prestando-se a tamanho
descaso com a dor alheia. Tinham se passado seis meses – a solução
do assassinato espreguiçava na repartição: um preso, dois soltos.
Melhor que um sinal – outro sinal. Sueli foi à novena do Perpétuo Socorro. No banco da frente, pasma, viu o pai militar e o
filho acólito, aquele que conduziu o veículo usado no latrocínio.
Alvará de soltura no bolso. Cercou-o em meio à muvuca de fiéis.
Depois lhe pôs diante das fuças o santinho da Missa de Sétimo Dia
de Nelson. “Sabe quem é esse homem?” Pois ela mesma respondeu.
Apresentou o morto ao vivo, até ser interrompida por uma sobri198 Série Perfil
nha – ela queria contar que estava grávida, depois de tantas tentativas. As intenções de novena de tio Nelson naquele 18 de abril de
2012, tinham sido ouvidas...
Sueli reagiu. Procurou a imprensa, autoridades, quem mais. Escreveu uma carta para a ministra Maria do Rosário. Tinha de se coçar para fazer Justiça. Deu resultado. Um dos assaltantes, foragido,
foi capturado. Quer mais, não nega. Ao dilema inicial “se não fosse
aquela meia hora”, sobreveio outro: “Se acontece o mal com as pessoas com quem trabalho, por que não comigo?” Suas convicções não
foram abaladas. Permanece diante da dor dos outros.
Quanto às mudanças das quais tanto gosta, em três anos ajudou
a criar abrigos para mulheres, LGBTs, idosos e índios. Conhece-os
pelo nome. Mora com dona Maria. Tirou carteira de motorista. Sua
rota – do Bairro Alto ao Campo Comprido, sede da FAS. Vai de ônibus ou de carona. Em definitivo, não gosta de dirigir.
Série Perfil 199
200 Série Perfil
Eternos
N e w t o n
H e l e n
d a
202
C o s t a
M u r a l h a
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Série Perfil 201
Newton da Costa
O matemático e filósofo Newton Carneiro
Affonso da Costa nasceu em setembro de
1929, quando o mundo ainda tentava assimilar a quebra da bolsa de Nova York. Foi
um dos precursores da lógica moderna. Graduou-se em engenharia e matemática pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde
lecionou por 14 anos, até se transferir para
a Universidade de São Paulo (USP). Ao longo de sua carreira, teve passagens pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
e pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica
(ITA), além de várias instituições pelo mundo, como as universidades de Buenos Aires,
da Califórnia, de Paris, de Varsóvia e da Austrália. É professor na Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC) desde 2003, quando começou a dividir o tempo entre Florianópolis e sua “terrinha”, como ele mesmo se
refere à capital do Paraná. Foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Lógica em
1979 e o primeiro brasileiro a integrar o Instituto Internacional de Filosofia, sediado em
Paris. Ganhou a medalha Nicolau Copérnico.
202 Série Perfil
Série Perfil 203
Newton da Costa
O mestre da contradição
Luan Galani, com foto de Henry Milléo
ocê pode provar que existe?”,
provocou o tio durante um almoço. O garoto de 15 anos disparou,
certeiro: “Estou aqui, logo existo”. Foi contrariado pelo tio: “Pode
ser um sonho”. O menino tentou mais uma vez: “Penso, logo existo”.
O tio balançou a cabeça negativamente e replicou sem dó: “Isso não
passa de pensamento”. Mais algumas tentativas estéreis e, em menos
de cinco minutos, o jovem viu que não dava conta do recado. O desafio nunca saiu da cabeça de Newton da Costa. E foi o que levou o
curitibano a se enamorar pela lógica.
No currículo de matemático e filósofo pesa uma das maiores
criações da ciência moderna: o desenvolvimento de um sistema de
lógica que aceita informações contraditórias entre si. Justamente o
que Heráclito, Hegel, Marx, Wittgenstein e Popper suspeitaram ser
possível, mas nunca conseguiram desenvolver. Newton virou uma
celebridade internacional da ciência. Sua lógica é o que está por trás
de inúmeras tecnologias que nos cercam atualmente. Se alguém fizer
uma lista dos dez maiores matemáticos do século passado e não incluir esse curitibano de cabeça redonda e sorriso cativante, desconfie. Hoje quem lança os desafios é ele. Newton sempre alerta no início de suas conferências: “Vim jogar a serpente no paraíso de vocês.”
0
Newton da Costa é um gênio com muitas esquisitices. Detesta sujar
as mãos com giz na sala de aula. Vê beleza em equações matemáticas
que mais parecem grego. Torce o nariz para aglomerações. Não gosta
de novelas. É a gentileza em pessoa e tem a humildade dos grandes
homens. Por isso reluta em aceitar a alcunha que confirma sua genia204 Série Perfil
lidade. “Não diga isso, rapaz. Fiz alguma coisa em lógica, sim, mas
sou apenas um cientista reconhecido.”
Durante a infância, sempre que tinha tempo, escapava da escola para a casa de seu avô, o médico Petit Carneiro, que tinha uma
biblioteca “monstruosa” no porão. Passava o dia todo por lá e lia tudo
que encontrava, sem julgar livro algum pela capa. Quando não estava no endereço do avô, estava com o tio Milton Carneiro, que era
professor universitário de filosofia. Conversavam sobre tudo. A mãe,
professora de literatura francesa, lia os grandes autores para ele. Com
o pai, um funcionário público durão, aprendeu os primeiros problemas de geometria.
Mas divertia-se mesmo ao assistir sua tia Carmen Carneiro,
uma luz da poesia paranaense e professora de língua inglesa, recitando Shakespeare pela casa. A primeira vez que chorou foi por volta
dos 15 anos, quando leram juntos o discurso que Marco Antônio fez
no enterro de César, na peça Júlio César. “É das coisas mais bonitas
que já li”, confessa.
De tudo isso, o gostinho pela autonomia intelectual foi o que
ficou. Nunca foi obrigado a nada. Sempre foi instigado a pensar por
si mesmo. Deu-se conta dessa liberdade quando questionou a mãe
sobre qual seria a religião da família. Eis a surpresa: “Filho, não sei
a minha. Mas a sua é você quem tem de decidir”. Ela o levou para a
biblioteca da família: “Aqui tem vários livros sobre diversas religiões.
Leia o que quiser. Informe-se e depois decida por si mesmo.”
Apercebeu-se da liberdade que gozava e resolveu ser pintor.
Queria seguir os passos de seu professor de artes do Colégio Americano de Curitiba, o mestre italiano Guido Viaro. Achou demais
quando Viaro botou fogo na própria casa em busca de inspiração, tal
Série Perfil 205
Newton da Costa
como Nero. “Achei genial”, brinca. Viu que não seria um Rembrandt
e, aos 11 anos, imitou Viaro. Ateou fogo em todas as suas obras. A
mãe chegou a tempo de salvar algumas. Decidiu, então, partir para
outra paixão: a matemática.
Complexo de Napoleão
Newton percebeu que a matemática, ao contrário do que muitos
pensam, é cheia de contradições. Então, tratou de construir um sistema de lógica que refletisse a realidade, já que a lógica clássica de
Aristóteles entra em colapso toda vez que uma coisa não bate com
outra. Com 29 anos, já havia criado a lógica paraconsistente.
Mas ninguém botava muita fé. Certa vez, anunciou o feito para
um colega da universidade. Ouviu uma resposta “deveras ousada”:
“Tenho a impressão de que você é um vigarista”. Esse mesmo amigo
ajudou Newton a escrever uma carta em francês, apresentando o trabalho. “Os franceses vão nos dizer se essa sua nova lógica vale alguma
coisa”, completou o colega. Meses depois, a Academia de Ciências
de Paris chancelou a descoberta e Newton foi correndo mostrar a
carta. “Puxa, Newton. Se você for mesmo um vigarista, é um bom
vigarista!”, brincou o amigo.
De 1976 para frente, foi disputado a tapas por diversas universidades do mundo. Sua fama se espalhou de tal modo que, certo dia,
um menino de 11 anos bateu à porta da Escola Técnica de Curitiba,
atual Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), e pediu para assistir às aulas de matemática de Newton. Ele deixou.
Só Napoleão Bonaparte tem poder suficiente para fazer Newton
largar o trabalho. Basta passar um documentário na tevê ou aparecer
um livro novo relacionado ao famoso imperador. Isso porque vê muito de si no figurão histórico. Em resumo: Napoleão foi um francês da
Córsega que poderia muito bem ter sido italiano, já que a ilha em que
nasceu pertencia à Gênova algum tempo antes. Nunca aprendeu a falar francês corretamente, foi alvo de chacota, dedicava-se com afinco
à matemática e sofria de complexo de inferioridade. Mesmo assim se
tornou imperador. Newton também tem o tal complexo.
Tudo veio à tona aos 4 anos. Era tão soturno e raquítico para a
206 Série Perfil
idade que muitos conhecidos da família sugeriram levá-lo ao médico.
A mãe seguiu o conselho. Depois de examinar minuciosamente, o
diagnóstico: “Mãe, vou ser honesto com a senhora. Seu filho é débil
mental e não vai chegar ao ginásio”, garantiu o doutor. Ela ignorou
o parecer. Embora a profecia médica tenha falhado, Newton parece
nunca ter se livrado desse sentimento. Até hoje, aos 85 anos. “Talvez
seja por isso que fiz tudo o que fiz”, diz, às gargalhadas.
Newton se cansou. A criatura acabou devorando seu criador.
Há dez anos decidiu sair dos trilhos da lógica para se dedicar à física quântica. “Agora tento entender as partículas subatômicas. São
como as mulheres – de comportamentos difíceis de se prever.”
Revolucionário
Na década de 1970, quando circulava pelos corredores da Universidade de São Paulo, um coronel do exército brasileiro apareceu de
surpresa e quis conversar com Newton. Disse que tinha três acusações pendentes contra ele: de que utilizava vários nomes diferentes,
de que era especialista em plutônio e de que era anarquista. Newton
não pensou duas vezes: “Coronel, isso é culpa da minha mãe, que me
deu um nome tão comprido. Alguns me chamam de Newton Carneiro. Outros de Newton da Costa”, explicou. “Segundo, como é que
vou ser especialista em plutônio? Fale com quem quiser e vai ver que
não entendo nada disso. Terceiro, nunca fiz bagunça. Meus únicos
discursos são feitos em sala de aula”. O coronel nunca mais apareceu.
Em contrapartida, sua troca intensa de cartas com pesquisadores da Polônia chamou a atenção de outro oficial. Questionado se sabia que estava mandando correspondência para um país comunista,
quando havia acontecido uma revolução militar no país para conter
o comunismo, Newton utilizou de sua habitual sinceridade. “Pode
abrir a carta se quiser. Mas tudo que vai ver são símbolos. É tudo
sobre lógica”. No fim, o militar o deixou ir: “Guarde esta carta e só
mande a resposta em alguns meses. Agora não é conveniente.”
Ainda bem que os militares não escutaram quando, um tempo depois, uma professora de filosofia do México chamou Newton
de “novo Simon Bolívar”. Ele desejava uma revolução intelectual
Série Perfil 207
Newton da Costa
na América Latina. Queria que nosso continente soubesse o que é
pesquisa e ensino. Que se pode pensar por conta própria. “Consegui
criar alguns discípulos formidáveis que hoje estão em grandes universidades. Mas a tal revolução fracassou. Esvaziar o oceano com um
copo é difícil mesmo”, confidencia.
Apesar da negativa em avaliar sua própria revolução, Newton
atesta que o que fez bastou para atrair a atenção de grandes nomes.
O psicanalista francês Jacques Lacan, por exemplo, veio à Venezuela
no fim da década de 1970 e anunciou logo no desembarque: “Quero
conhecer Newton da Costa”. Aí lhe disseram que Newton era brasileiro, e não venezuelano. Moral da história: tinha errado de país.
“Infelizmente ele morreu antes de nos conhecermos”, diz Newton.
A surpresa mora ao lado
Quando não está sassaricando por aí, passa horas em seu escritório.
Dos suvenires expostos, o que chama a atenção dos visitantes é uma
almofada branca que mantém no sofá. Tem a foto de sua esposa gravada nela. Newton está casado há 60 anos com a professora de educação especial aposentada Neusa Feitosa Affonso da Costa, hoje com
80 anos, por quem mantém uma vivaz admiração.
Ela morava ao lado da casa de seu tio Milton. Logo no instante que a viu pela primeira vez, caiu apaixonado. Não à toa. Neusa
guarda uma semelhança incontestável com Ava Gardner, a sensação do cinema norte-americano dos anos 1950. Começaram a namorar aos 16 anos e casaram-se em 1955. Tiveram dois filhos, uma
filha e duas netas.
Ele diz que sem a família nada teria sido possível. Com razão.
Onde quer que decidisse ir, da França à Nova Zelândia, lá ia o séquito
atrás, sempre disposto a ajudar e a saborear as aventuras com o cientista da casa.
Hoje não viaja mais com a mesma frequência. Mas não resiste
às praias catarinenses e aos calçadões de Curitiba. É frequentador
assíduo. E, apesar da fama que o acompanha, ao longo dos anos só foi
reconhecido fora da sala de aula três vezes. Em uma delas, foi confundido com um padre em plena Rua XV. A pessoa insistiu tanto por
208 Série Perfil
uma bênção que ele acabou dando. De imediato veio o agradecimento do sujeito: “Nossa! Já sinto minha alma mais leve”. Naquele dia
Newton descobriu que também faz milagres.
Série Perfil 209
Helen Muralha
A médica Helen Anne Butler Muralha é uma
das obstetras e ginecologistas com mais
tempo de atividade no Paraná. Ano passado,
comemorou 60 anos de profissão. Apenas
em 2013 deixou de fazer partos normais, sua
especialidade. A parede de sua sala no Edifício Asa é forrada de retratos de crianças que
colocou no mundo. ¶ Paralelo à medicina,
Helen mantém a Fundação Sidónio Muralha,
em homenagem a seu marido. O escritor lisboeta viveu em Curitiba cinco anos, entre os
anos 1970 e 1980. Morreu em 1982. Sua obra
para crianças figura entre as melhores produzidas na língua portuguesa.
210 Série Perfil
Série Perfil 211
Helen Muralha
A adorável filha de mister butler
José Carlos Fernandes, com foto de Alexandre Mazzo
h, então a senhora é advogada
da empresa de ônibus?”, disparou o lisboeta irritado à passageira que
tentava tranquilizá-lo sobre os serviços da Viação Penha. Ele, o “reclamante”, era o poeta e escritor de obras infanto-juvenis Sidónio Muralha. Ela, “a defensora”, a médica e musicista curitibana Helen Anne
Butler.
“Não sou advogada, sou médica”, disparou. Ao que ouviu: “Entendi, a senhora dá atestado de óbitos”. Ao que lhe devolveu, com a
precisão de um anestesista: “Não, senhor, faço partos...
Helen dava à luz “bebés”. Sidónio escrevia para crianças.
Naquela noite de 1970, na BR-116, discordaram sobre a qualidade do transporte interestadual, mas entenderam que tinham algo
em comum, de uma vez para sempre.
0
Helen Anne Butler é alta, esguia, dona de grandes olhos azuis, destacados pelos cabelos presos em coque. Sua voz pausada, com todas as letras bem marcadas, soa como uma canção. Faz jus à soprano
que poderia ter feito carreira nos palcos. “Eu tinha condições para
tanto”, reconhece. Mas a Medicina venceu. Ela se formou em 1954,
pela UFPR, uma das 13 mulheres em meio a 120 homens. Em pouco
tempo estava entregue à obstetrícia.
O que mais lhe perguntam é quantos partos fez em 60 anos de
ofício. Como não sabe, brinca de devolver o cálculo. Informa apenas
que chegou a pilotar entre 20 e 30 nascimentos num mês. Por baixo,
foram 240 por ano – algo como 14,4 mil bebês até aqui. “Ela pariu
metade de Curitiba”, superfatura o arquiteto Key Imaguire Júnior,
212 Série Perfil
um dos muitos fãs confessos da médica.
Não raro, jovens namorados descobrem terem vindo ao mundo
pelas mãos de Helen. Festejam a coincidência, ignorando sua altíssima probabilidade estatística. Há situações curiosas, como a das
pessoas de cabeça branca que a cutucam quando a veem na rua: “A
senhora fez o meu parto”. Ela ri e solta a piada nem sempre compreendida: “Acho que não.”
A doutora Helen completa 84 anos no próximo sábado – e ainda dá expediente em dois endereços: no consultório que mantém
desde 1958, no Edifício Asa, Praça Osório; e na Fundação Sidónio
Muralha, na Rua Desembargador Westphalen. Adora fazer os dois
percursos a pé. É de sua natureza.
O viajante
O pai de Helen, Guilherme Butler, era um forte. Jovem, migrou da Letônia, no Leste Europeu, para o Brasil. Depois rumou para
os Estados Unidos. Chegou a noivar por lá, mas seu espírito expedicionário – uma espécie de Coronel Fawcett – o atraía para a América
do Sul. Nos anos 1910, voltou, para ser pastor batista em uma comunidade leta de Rio Novo, Santa Catarina. Ali conheceu Martha,
com quem se casou, mudou para Curitiba e provou da fama. Mister
Butler, como o chamavam, era morador da Rua Ratclif, 110 – hoje
Westphalen – e lendário professor de inglês do Ginásio Paranaense,
(Colégio Estadual do Paraná).
Merece uma biografia. Por suas origens, por suas aulas rigorosas, por suas viagens sertão adentro. Preparava-se meses para conquistar rincões da Amazônia, do Mato Grosso e de Goiás numa época
em que essas aventuras significavam morte certa. Quando voltava,
Série Perfil 213
Helen Muralha
aclamado, relatava o saldo de sua aventura em páginas inteiras de
jornais, debaixo de títulos sem floreios como “A minha viagem de
férias à Amazônia”, publicado em O Dia no ano de 1934. Está tudo
em álbuns guardados por Helen, a única filha, que conserva também
uma coleção de frascos com águas de rios nos quais Butler se banhou,
como o Negro e o Tapajós.
Ao se aposentar do magistério, ganhou o título de paraninfo.
Seu inflamado discurso “As características de uma pessoa educada”
saiu na íntegra na edição da Gazeta do Povo de 14 de dezembro de
1950, prova de seu prestígio.
Mister Butler morreu em 1962, aos 82 anos, em decorrência de
um bloqueio cardíaco total. Foi uma comoção pública, para orgulho
de Helen, que se perguntava se, algum dia, alguém se referiria a ela de
outra forma que não “a filha de mister Butler”.
Aconteceu uma vez. Ela fazia residência em São Paulo. O pai
apareceu para uma visita. Na volta, no ponto do ônibus, ouviu duas
mulheres conversando sobre a excelente médica que tinham arranjado. Chamava-se Helen Butler.
Em tempo. Essa história de moça bem comportada poderia
acabar aqui, ao som de “Carol of the Bells”, de Mykola Leontovych,
uma das peças que tocou para a reportagem em seu piano Blüthner.
Mas a mulher dada à música, nascida num lar que funcionava nas peias da pontualidade – “vício que herdei” – experimentou pelo menos
dois descompassos. A eles.
O amado
O primeiro foi a escolha de Helen pela obstetrícia – uma área à prova de horários. Na mocidade, via-se impedida de acompanhar em
excursão os corais nos quais cantava: sabia que os bebês desobedecem ao chegar. Por tempos teve uma chácara, mas ficava logo ali, no
Jardim Schaffer, para que pudesse chegar mais rápido que as contrações das pacientes. Lembra de ter ficado 12, 16, 24 horas ao lado de
parturientes. De três noites sem dormir, em partos seguidos. “Tem
de observar a rotatividade da cabeça do nenê...”, comenta, com perícia, ao descrever o que pouca gente sabe fazer: o mundo da medicina
214 Série Perfil
se rendeu à lógica industrial das cesarianas.
Quanto ao segundo descompasso, atende pelo nome de Sidónio
Muralha. A disciplinada Helen tinha quase 40 anos quando o conheceu. Não era o tipo de homem que vem para organizar. Para começar,
tinha sido perseguido pela Pide – órgão de repressão do salazarismo.
Na busca de se safar, mentiu para os capitalistas da multinacional
Unilever que sabia falar francês. Foi sua estratégia para conseguir um
emprego no Congo Belga, livrando-se dos espartilhos da ditadura.
Foi descoberto, recobrou o respeito e virou herói. Em 1960,
Sidónio ajudou muitos belgas a fugirem do Congo quando a farra colonialista acabou. Arrumaram-lhe em prêmio, inclusive, um lugar na
Bélgica, mas era homem dado a altas temperaturas. Queria o Rio de
Janeiro, onde à frente da Editora Giroflé tentou fazer o que queria –
escrever e publicar e inventar.
Como o Brasil não é para iniciantes – inclusive para os patrícios
– o projeto não deu certo: Muralha perdeu perto de US$ 30 mil, dinheiro ganho como indenização por sua aventura na África. Economista com quatro filhos para criar, virava-se para sustentar aos seus
ora na Unilever, ora dando consultoria financeira, ora o que pintasse.
Talvez por isso estivesse nos cascos na noite em que conheceu Helen
no ônibus.
Palitinhos
Sidónio e Helen foram amigos até que ela recebeu o ultimato do casamento, em 1978. Negociaram as condições. Ela abandonou a carreira
de professora de Medicina na UFPR e PUCPR. Ele se mudou para
Curitiba – o que não foi propriamente um bom negócio. Gostava dos
céus altos da cidade, como dizia. Mas é curioso como um intelectual
da estatura de Muralha, com mais de 20 livros publicados e o nome
firmado no neorrealismo português, tenha passado de forma tão discreta pela capital. Era bem fácil achá-lo: batia ponto no Restaurante
Enseada, no Rebouças, seu preferido.
Além de comer peixes, dedicava-se, ali, a uma tarefa que conquistaria qualquer mulher – incluindo a reservada Helen: escrevia
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Helen Muralha
poesias curtas nos palitos de madeira usados para mexer as caipirinhas. “Eu fui muito amada”, resume ela. Somaram cinco anos de
casados, tempo embalado pela literatura e pela fleuma política do
marido. Em 1982, Sidónio partiu levado pela rapidez traiçoeira das
doenças hepáticas. Tinha 62 anos. Assim ela resume o poeta: “Sabia
ser engraçado, contava charadas e fazia mágicas com copos”.
Depois dele, Helen voltou à vida comum. Passadas duas décadas de viuvez, aos 73 anos se casou de novo, com o calculista Themístocles Santos Júnior, morto em junho passado. Tinham a música e a
religião em comum. “Virei Dona Flor e seus dois maridos”, brinca.
Na casa onde um dia viveram Martha e Guilherme Butler, na
Westphalen, funciona hoje a Fundação Sidónio Muralha, de incentivo à leitura. Na porta, um verso dele: “Esta casa não é uma casa
nascida no Sul, ela é uma asa voando no azul”. O local é Ponto de
Cultura, do governo federal. No quintal dos fundos tem um abacateiro atingido por um raio. Não morreu. Helen batizou-a de “José
Alencar” – não o escritor, mas o ex-vice-presidente, “que não morria
nunca”. A filha do pontual mister Butler se senta ali, vez em quando,
para umas horinhas de descuido. É de direito. Seu nome é Helen Muralha, afinal.
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