ESTEREÓTIPOS FEMINOS E DOMINAÇÃO MASCULINA EM
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ESTEREÓTIPOS FEMINOS E DOMINAÇÃO MASCULINA EM
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 ESTEREÓTIPOS FEMINOS E DOMINAÇÃO MASCULINA EM “THE STORY OF AN HOUR”, DE KATE CHOPIN Natalia Helena Wiechmann (UNESP-Araraquara)1 Kate Chopin e “The Story of an Hour” Kate Chopin (1851-1904) é uma das escritoras norte-americanas mais conhecidas do fim do século XIX. O reconhecimento quanto a sua importância literária, no entanto, não se deu durante sua vida, pois seus textos carregados de referências (explícitas ou não) à sexualidade feminina não eram considerados adequados aos leitores e às leitoras da época. “The Story of an Hour”, por exemplo, apesar de ter sido escrito e publicado numa revista feminina em 1894, só passou a ser conhecido, de fato, em 1969, quando foi publicado em uma coletânea de textos da escritora, The Complete Works of Kate Chopin2. Nesse conto, Chopin, pelos olhos de um narrador não-personagem cuja focalização é onisciente3 apresenta-nos Mrs. Mallard, exemplo de esposa e dona de casa do ponto de vista patriarcal, que sofre significativa transformação durante um breve momento de sua vida. Com isso, Mrs. Mallard se desdobra em uma outra mulher, tornando-se protagonista de sua própria existência por meio da descoberta de sua sexualidade. Neste trabalho, serão discutidas algumas questões acerca das relações de poder que os papéis de gênero implicam. É preciso mencionar, no entanto, que o gênero será entendido, aqui, como uma construção social à qual todos os indivíduos estão sujeitos, independentemente de seu sexo. Para isso, a transformação de Mrs. Mallard em “The Story of an Hour” bem como seu final surpreendente nos servirão para uma reflexão sobre as imagens estereotípicas da mulher que são criadas, essencialmente, pelo ideário masculino e sobre as conseqüências da naturalização desses estereótipos na sociedade tomando como base o contexto histórico no qual o conto se insere (final do século XIX). Nesse sentido, discutiremos o conto de Chopin a partir de alguns princípios acerca das representações do feminino pelo olhar masculino tratados por Sandra Gilbert e Susan Gubar no primeiro capítulo de The Madwoman in the Attic: the Woman Writer and the Nineteen-Century Literary Imagination (2000). De acordo com a antologia literária organizada por Baym (2008, p. 426), Kate Chopin teve contato, desde muito jovem, com o trabalho literário de Cervantes, Goethe, Jane Austen, as irmãs Brontës e outros romancistas e poetas dos séculos XVIII e XIX, além de ter recebido fortes influências de escritores franceses (como Émile Zola e Guy de Maupassant). Essas influências deram a ela aparatos filosóficos e teórico-literários para que começasse a escrever. Tendo sofrido a perda do pai aos quatro anos de idade e criada pela mãe, pela avó e pela bisavó, Chopin casou-se aos 19 anos e teve seis filhos. Após a morte do marido, Chopin decidiu-se por escrever e, por meio da ficção, passou a registrar o regionalismo de Louisiana (onde morava) e a herança de ser mestiça de colonizadores franceses com escravos. A obra de Kate Chopin é conhecida pela forte simbologia das imagens que retratam de maneira peculiar a sexualidade feminina. Seu trabalho mais conhecido é o romance The Awakening (1899), mas ela é também autora de outros dois romances, de mais de 150 contos e de um significativo número de poemas e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, campus de Araraquara-SP. Bolsista CAPES. E-mail para contato: [email protected]. 2 A referência completa dessa e demais obras a serem mencionadas encontra-se na bibliografia deste trabalho. 3 Por focalização onisciente entendemos ser “toda representação narrativa em que o narrador faz uso de uma capacidade de conhecimento praticamente ilimitada, podendo, por isso, facultar as informações que entender pertinentes para o conhecimento minudente da história; [...] o narrador comporta-se como entidade demiúrgica, controlando e manipulando soberanamente os eventos relatados, as personagens que os interpretam, o tempo em que se movem, o cenário em que se situam, etc...” (REIS; LOPES, 2000, p. 174) 1 Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 5, p. 48-52, jan./jun. 2010 48 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 ensaios de crítica literária. “The Story of an hour”, por sua vez, é um dos contos mais conhecidos da escritora e foi escrito e publicado em 1894. Para que se compreendam as discussões a serem feitas neste trabalho, é necessário, primeiramente, que se faça um resumo do enredo de “The Story of an hour”. A história trata de um breve momento da vida de Louise Mallard, uma jovem senhora cuja vida tinha sido, até então, devotada às obrigações de esposa e dona de casa. Mrs. Mallard tem problemas de coração e, por isso, seus familiares e amigos pretendem contar a ela a notícia da morte de seu marido com muito cuidado para que ela seja o menos afetada possível. Brenty Mallard teria sofrido um acidente fatal de trem. Ao tomar ciência disso, Mrs. Mallard se retira, num impulso, para seu quarto e passa a refletir sobre o acontecimento ao mesmo tempo em que olha pela janela e vê um parque cuja aparência primaveril chama sua atenção. Nesse momento, Mrs. Mallard começa a perder o controle sobre sua própria consciência à medida que percebe que estando viúva, dali em diante, ela estaria livre para viver por si mesma. As imagens que ilustram essa passagem na história evocam uma transformação em Mrs. Mallard intrinsecamente relacionada à sua sexualidade, visto que a descrição de seus pensamentos se desdobra na descrição de um ato sexual. Em seguida, ao recobrar a consciência, Mrs. Mallard, agora chamada de Louise, vai ao encontro de sua irmã que estava aflita por consolar a viúva e se certificar de que ela estaria bem. Nesse meio tempo, ao ouvir alguém abrindo a porta, Louise se depara com o marido, que não estava no mesmo trem do acidente; Louise, agora chamada de Mrs. Mallard novamente, não consegue suportar a surpresa e morre. Como pode ser visto nessa breve referência aos acontecimentos da história, “The Story of an Hour” traz em si muitos elementos que dão margem a uma interpretação acerca da protagonista e das relações de poder que a envolvem e a definem enquanto esposa, dona de casa, viúva e mulher. Essa interpretação será apresentada a seguir dando ênfase, em especial, à transformação que a personagem sofre ao se ver viúva e aos significados implicados nessa passagem de Mrs. Mallard à Louise e na posterior volta ao seu papel de esposa, com o regresso no marido. Mrs. Mallard versus Louise: os estereótipos femininos e a dominação masculina Em “The Story of an hour”, Mrs. Mallard, a protagonista, recebe a notícia da morte de seu marido e passa por um momento único em sua vida, um momento de reflexão sobre o passado e de ansiedade pelo futuro. No entanto, ela recebe um segundo choque quando o marido volta para casa, vivo, e esse choque causa a morte da mulher. A maneira como essa personagem reage tanto à notícia da morte quanto ao retorno do marido nos sugere que as mulheres são estereotipadas em pólos extremos e, por conseguinte, que a dominação masculina provoca o confinamento da mulher em si mesma, o que resulta em dificuldades por parte das mulheres para lidar com as relações de poder que o gênero estabelece. Para falarmos dos estereótipos femininos presentes nesse conto, é necessário contextualizá-lo com relação ao momento de produção literária em que ele foi escrito. Sobre isso, Gubar e Gilbert (2000, p. 17) argumentam que os séculos XVIII e XIX teriam sido os de maior preocupação com a repressão da sexualidade feminina. Essa preocupação estaria expressa, na literatura, em duas formas de representação das mulheres feitas a partir da visão masculina: as personagens classificadas como “Anjos” e as classificadas como “Monstros”. Nesse âmbito, a representação da mulher angelical seria basicamente a figura da mulher submissa, modesta e self-less4 (GILBERT&GUBAR, 2000, p. 23), uma mulher cujo objetivo seria se casar e servir ao seu marido com sua beleza, não com seus conhecimentos intelectuais. Por outro lado, a mulhermonstro seria a imagem oposta à mulher angelical por ser possuidora de características consideradas masculinas, como agressividade, autonomia e, principalmente, consciência de sua sexualidade. De acordo Na falta de uma palavra em português que corresponda adequadamente a esse termo em inglês, podemos pensar em self-less como sendo a mulher que não se possui, isto é, que não possui uma auto-afirmação enquanto construtora das próprias ações. 4 Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 5, p. 48-52, jan./jun. 2010 49 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 com Ferguson (1973, p.2), a base para esses estereótipos estaria no fato de que nas sociedades patriarcais as mulheres são ensinadas para serem passivas enquanto os homens é que podem tomar a iniciativa tanto no ato sexual quanto nos negócios e na política, por exemplo. A situação contrária daria às mulheres traços considerados não-femininos e, logo, artificiais, visto que o apetite sexual masculino é que seria o normal nos relacionamentos homem-mulher. Considerando esses dois estereótipos, o anjo e o monstro, podemos ver que Mrs. Mallard é descrita a princípio como exemplo do ideal de feminilidade angelical. As primeiras frases da história já colocam o leitor em contato com a protagonista por meio de seu nome de casada, Mrs. Mallard, o que indica a falta de identidade da figura feminina e contribui para a idéia de que essa mulher é submissa ao seu marido. Dessa forma, Mrs. Mallard não tem autonomia, mas é, ao contrário, uma continuação do homem, um suporte para ele: ela é a esposa, não a mulher. Além disso, ela é retratada com grande ênfase à sua fragilidade, especialmente por seu problema de coração, como se fosse um objeto de porcelana a ser manuseado com cuidado. Entretanto, ao mencionar a enfermidade do coração, não estaria o narrador tentando sugerir que esse problema não é necessariamente literal, mas uma metáfora que indique problemas amorosos? Se considerarmos essa possibilidade, temos, então, mais um elemento que evidencia a condição de Mrs. Mallard enquanto esposa e não mulher. Outras evidências dessa fragilidade estão nas comparações entre Mrs. Mallard e uma criança, sugerindo sua pureza, inocência e necessidade de proteção. Mais do que isso, no entanto, essa comparação também nos remete à idéia de que ela ainda não teria atingido a maturidade e que seu desenvolvimento estaria por vir. Assim, ao mesmo tempo em que as descrições do narrador reforçam que Mrs. Mallard seria a esposa angelical ideal (por sua delicadeza, pureza e dependência), se pensarmos para além da superfície do texto, veremos que algo se antecipa e ultrapassa o papel da esposa no sentido de fazê-la crescer em sua maturidade feminina. De fato, a notícia da morte do marido é a chave para o leitor enxergar o quão diferente Mrs. Mallard é do que se espera de uma esposa ideal. Ao invés de desespero, tristeza profunda e choro fulminante, a personagem se distancia daquela cena para entrar em contato consigo mesma, resultando numa transformação que a desperta para sua existência enquanto mulher. A partir desse momento, as imagens que se seguem contrariam totalmente as expectativas de qualquer leitor já que toda a descrição de Mrs. Mallard reclusa em seu quarto não indica sinais de tristeza, mas de felicidade por ela se sentir livre de seu marido: são referências à natureza, à nova vida que a primavera simboliza, ao canto de pássaros e ao cheiro fresco da chuva que confirmam sua ansiedade por experimentar uma vida desvinculada do papel de esposa. Como resultado dessas imagens de liberdade e de vida nova, a história chega ao seu clímax, construído à medida que a protagonista deixa Mrs. Mallard para trás e se transforma em Louise. A partir da contemplação do mundo exterior, ela perde o controle de sua consciência, sentindo mais do que pensando, apercebendo-se de que algo está acontecendo com ela mas sem conseguir definir o que seria, até que essa sensação de liberdade a possui numa imagem metafórica porém nitidamente sexual. Ressalte-se, ainda, que a transformação da protagonista é contada pelo narrador e conhecida apenas pelo leitor, criando uma cumplicidade que contribui para a ironia do final da história (já que Mrs. Mallard morre como a esposa, ou seja, sem que ninguém tenha sabido de sua profunda mudança). Essa passagem sugere, portanto, que é através da experiência sexual que as mulheres atingem seu eu interior. Contudo, lembramos que a tomada de consciência de sua sexualidade aproxima a mulher do estereótipo da mulher-monstro, o que estabelece uma relação de duplicidade para com a essência feminina da personagem: em Mrs. Mallard temos a mulher angelical, mas em Louise manifesta-se o monstro. Nesse caso, podemos tomar esse argumento como uma indicação de que às mulheres não cabem estereótipos, visto que elas podem desempenhar mais de um papel de acordo com a condição a qual forem submetidas. Nesse sentido, pode-se afirmar que a personagem não conclui seu papel de esposa para se tornar a mulher, Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 5, p. 48-52, jan./jun. 2010 50 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 ao contrário, desperta-se nela a mulher que já existia e que estava escondida no interior da esposa. Assim, podemos considerar que a mulher angelical reflete o lado feminino que pode e deve ser mostrado à sociedade ao passo que quaisquer características opostas, isto é, de aproximação com o estereótipo da mulher-monstro, devem ser reprimidas por ferirem as regras da sociedade patriarcal. Louise representa, portanto, uma ameaça à dominação masculina, pois ao atingir sua liberdade sexual, ela poderia agir como sujeito dominante da relação sexual. Para que isso seja evitado, Louise Mallard recebe um segundo choque que se mostra fatal: seu marido retorna e ela se vê forçada a, consequentemente, retornar ao seu papel de esposa. Contudo, poderia ela, depois de ter experimentado a liberdade, ser aprisionada novamente? Se considerarmos que não, podemos entender a morte da personagem como uma fuga das obrigações a qual ela estaria sujeita novamente. Entretanto, a morte de Louise Mallard também pode sintetizar uma espécie de punição pela tentativa de fugir dos papéis que a sociedade impusera a ela e essa punição pode se aplicar a qualquer mulher que tentar superar a dominação patriarcal. Dessa forma, Mrs. Mallard nunca deveria ter tentado ir além da esposa, simplesmente porque ela não foi preparada, ensinada para isso. Em outras palavras, “The Story of an Hour” deixa claro que mesmo que as mulheres escolham não se submeterem aos papéis de esposa e dona de casa, ainda assim devem admitir que, de maneira geral, elas têm menor poder ao tentarem se esforçar contra uma sociedade que sempre foi dirigida por homens e que as moldou para serem ou anjos ou monstros. Considerações finais Depois de analisar o conto de Chopin a partir de argumentos que colocam em foco os estereótipos femininos e a dominação masculina, percebemos que essas duas instâncias são inseparáveis. Dessa forma, pode-se afirmar que é sob a dominação masculina que residem os estereótipos femininos, fazendo com que a existência destes dependa da preponderância do poder masculino.Isso significa que as imagens de mulher angelical e mulher-monstro são produtos da crença masculina do que deveria ou não ser a mulher ideal. Assim, esses estereótipos somados a uma determinada visão dominante agem na conduta tanto de homens quanto de mulheres bem como em suas relações entre si. Por fim, considerando que a protagonista da história (enquanto representante das mulheres) possui dentro de si o anjo, que se revela em sua aparência, e o monstro, por sua sexualidade reprimida, é preciso admitir que a personagem não teria condições de lidar com essa relação complexa entre dois “eus” extremos e que, sendo frágil a ponto de não sobreviver, Louise Mallard foi sufocada por seus próprios conflitos. Sua morte reflete, portanto, a inabilidade feminina para lidar com os estereótipos impostos a elas, deixando evidente que as mulheres não estariam preparadas para entrar no mundo dos homens enquanto não atingirem a igualdade de autonomia para lidarem consigo mesmas enquanto seres conscientes de sua sexualidade. Não se pode esquecer de que o contexto histórico tratado aqui seria o do século XIX. Apesar disso, parece claro que ainda hoje encontramos resquícios desse tipo de tratamento estereotípico direcionado, principalmente, às mulheres. Além disso, apesar de termos nos voltado a discussões baseadas numa história fictícia, a literatura sempre acompanhou a história da humanidade e, portanto, fornece-nos subsídios para pensarmos a realidade criticamente já que podemos nos isentar dos acontecimentos retratados na ficção. Convém, contudo, lembrar que essa isenção vai apenas até certo ponto pois não se pode deixar de considerar que a produção literária depende de sujeitos sociais e históricos cujos pensamentos invariavelmente deixam-se transparecer na materialidade textual. Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 5, p. 48-52, jan./jun. 2010 51 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 REFERÊNCIAS: BAYM, N. (Org.). Kate Chopin. In: The Norton Anthology of American Literature. New York: Norton & Company, 2008. CHOPIN, K.. The Story of an hour. In: LAUDUN, T., McDOWELL, L. (Org.). Kate Chopin: A Re-Awakening. Disponível em: <http://www.pbs.org/katechopin/library/storyofanhour.html>. Acesso em: jan. 2011. CHOPIN, K.. The Awakening. New York: Norton & Company, 1999. FERGUSON, M. A.. Images of women in literature. Boston: HoughtonMifflin, 1973. GILBERT, S., GUBAR, S.. The Queen’s Looking Glass: Female Creativity, Male Images of Women, and the Metaphor of Literary Paternity. In: The Madwoman in the Attic: the woman writer and the nineteenth-century literary imagination. New Haven: Yale University Press, 2000. REIS, C.; LOPES, A. C. M.. Dicionário de narratologia. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2000. SEYERSTED, P. (Org.). The complete works of Kate Chopin. Los Angeles: LSU Press, 1969. Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 5, p. 48-52, jan./jun. 2010 52
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