HERANÇA E DESTINO NA ORDEM DA FILIAÇÃO

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HERANÇA E DESTINO NA ORDEM DA FILIAÇÃO
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ISSN online: 2359 2893
HERANÇA E DESTINO NA ORDEM DA FILIAÇÃO:
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA CARTA AO PAI DE FRANZ
KAFKA.
Patrícia Oliveira Lira1
Taciano Valério Alves da Silva2
RESUMO: Com base na Carta ao Pai de Franz Kafka, o presente artigo busca estabelecer
uma articulação entre as questões expostas pelo autor e os embates geracionais entre pais e
filhos, colocando em evidência a contemporaneidade do texto. Com base em autores como
Agamben, Bourdieu, Pasolini, Guattari e Deleuze, entre outros, argumenta-se que, para além
de uma narrativa pessoal, a carta convida a uma reflexão acerca do legado cultural moderno,
interpelando o leitor a um exercício crítico diante de suas próprias filiações e endereçamentos
ao passado, no sentido de permitir uma abertura para a partilha das responsabilidades frente ao
destino de cada tempo na sucessão dos acontecimentos.
Palavras-chave: Franz Kafka; herança; filiação; contemporâneo; consumo; responsabilidade.
ABSTRACT: Based on Franz Kafka’s “Letter to His Father”, the present paper aims for
providing an articulation between the questions exposed by the author and the generational
strife among parents and children, emphasizing how the text can still be in accordance with the
present days. Based on authors like Agamben, Bourdieu, Pasolini, Guattari, Deleuze and
others, it is argued that, beyond a personal narrative, the “Letter” could also be an invitation
for reflecting about the modern cultural legacy. An interpellation that would lead the reader
into a critic exercise before his own affiliations and past addressing, in order to allow him an
opening for sharing responsibility, once the rolls of parents and children are sentenced to be
fulfilled while time goes by and, since time keeps on flowing, these same rolls usually change
places and ideas at both sides.
Keywords: Franz Kafka; Heritage; Affiliation; Contemporary; Consumption; Responsibility.
Em 1905, quando publicou seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,
Freud colocou em evidência a íntima conexão entre a transmissão do legado
histórico por meio das gerações e o trabalho de construção psíquico
empreendido por cada sujeito na linha das sucessões. Mais precisamente, no
segundo ensaio, que discute, a partir dos fundamentos psicanalíticos acerca do
infantil sexual, As transformações da puberdade, Freud afirma que constituir-se
sujeito implica colocar em cena o desejo incestuoso de base na trilha
civilizatória através de uma superação fundamental: o desligamento da
autoridade dos pais até então garantida pela ternura infantil. Essa separação
entre pais e filhos deve ser operada pela ruptura dos filhos com o projeto
narcísico das gerações anteriores transmitido pelas projeções parentais, elas,
também, filiadas aos apelos de conformidade da história. Em outras palavras, a
experiência púbere, que coloca em movimento as configurações das pulsões
sexuais adultas, requer a renúncia dos afetos infantis que colocam o sujeito na
posição de puro objeto dos agenciamentos paternos de transmissão da
verdade. É nesse contexto que se consolida a ruptura fundamental no legado
1Doutora
em Psicologia pela Universidade Paris 13, França. Professora Adjunta da
Universidade de Pernambuco, Garanhuns-PE. e-mail: [email protected]
2Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco. Professor do
Centro Universitário Unifavip/Devry, Caruaru-PE. e-mail: [email protected]
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da transmissão, através da qual “se cria a oposição, tão importante para o
progresso da cultura, entre a nova e a velha gerações.” (FREUD, 1905/ 2006,
p. 214).
Mais tarde, em 1929, quando, já maduro em sua obra, Freud escreve o
Mal-estar na civilização,estabelece os termos da íntima conexão entre subjetivação
e cultura, entre História e romance familiar, através da formulação de sua tese
sobre o mal-estar inerente a todo processo de humanização do homem pela
linguagem, na medida de sua inscrição na ordem cultural do seu tempo. Não é
possível considerar o homem e seus embates subjetivos singulares sem levar
em conta o legado da transmissão histórica da qual faz parte na ordem da
sucessão e da filiação. Ao mesmo tempo, não se pode considerar a História e
todo legado simbólico transmitido pela cultura, sem encontrar seu sentido nos
embates pulsionais que mobilizam a existência subjetiva dos homens. Por trás
de toda ordem civilizatória, existe uma injunção que leva os homens a uma
renuncia das experiências (míticas) das totalidades, a fim de assegurar a
convivência por meio do gerenciamento do mal-estar diante das contingências
de realidade e do gozo sempre parcial. Ou seja, para garantir o avanço do
projeto civilizatório, a transmissão do legado cultural deve sempre prevalecer
através de um anacronismo entre a nova e a velha geração. O pai deve ser
superado.
Diante disso, nossa aproximação com a literatura favorece o esteio e o
caminho psicanalítico, visando o texto literário como um espaço de
interlocução propício ao nosso tempo enquanto potência de investigação e
incursões diversas.A literatura sempre exerceu sobre Freud um fascínio e uma
intensa admiração. Leitor das tragédias gregas e amante de autores como
Goethe, Shakespeare, Schiller, Cervantes, além de outros, Freud encontra no
texto narrativo, no teatro e na poesia, um profundo efeito. Textos como
Escritores Criativos e Devaneios (1908), Dostoievsky e o parricídio (1928), Delírios e
Sonhos de Gradiva e Jensen (1907), entre outras obras e escritores, colocou Freud
lado a lado com a literatura pela necessidade de encontrar, no texto literário,
aspectos da sua teoria, como foi o caso da obra Édipo Rei de Sófocles, assim
como ele busca interpretar uma obra de arte ou a maneira como o autor
executa seu processo de criação. Essa afinidade com a literatura obteve
interfaces marcantes no âmbito futuro da psicanálise, na continuidade dessa
interlocução. A relação que Lacan (1976/ 2007) vai manifestar com a obra de
James Joyce afirma ainda mais o quanto a escrita se põe como atravessamento
do sujeito pela sua história, ou melhor, diante do seu romance familiar. Ou
seja, somos a fala do outro que se põe nos interstícios da nossa jornada
enquanto sujeito que faz sintoma.
É nessa direção que tomamos o texto de Franz Kafka como documento
emblemático dessa querela entre romance familiar e embates geracionais, entre
construção subjetiva e projeto civilizatório, entre herança cultural e a invenção
do futuro engendrada, por um lado, pela garantia da transmissão do Pai e, por
outro, pela ruptura e superação do apelo de sua ordem. O texto kafkiano é um
testamento, exemplo notório das configurações que se põe em curso na
dinâmica dos afetos caracterizados no âmbito familiar e posto para fora como
um incessante apelo neurótico de um sujeito que faz existir a resistência, pois é,
também, a resistência como potência espalhada na vida que leva um sujeito a se
rebelar contra a ordem. Para Foucault (2013), tal resistência aparece no âmbito
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familiar quando uma criança se inflama contra os pais apontando os dedos para
eles e dizendo não.
Ao nos depararmos com esse texto kafkiano, somos levados, num
primeiro tempo, a adentrar o universo privado das questões familiares, visto
que se trata da carta ao pai do próprio Kafka. Nela, vemos um acerto de contas
com um pai tirano, ao mesmo tempo fascinante e repulsivo, ao mesmo tempo
invejável e odiável. Vemos um filho discorrer sobre as razões de seus fracassos
diante do ideal de autonomia e liberdade, colocando o medo como
fundamento último e primeiro das questões postas por sua experiência de
filiação a esse pai déspota. Fracassos que se revelam na escolha profissional (a
formação em Direito que fez dele um burocrata) e nas escolhas afetivas (o
irrealizável do casamento apesar das três tentativas) como sendo, na verdade,
não-escolhas. Não-escolhas como modo de repudiar a perpetuação do projeto
de transmissão do legado paterno.
Assim como somos, porém, o casamento me está vedado pelo
fato de que ele é precisamente o seu domínio mais próprio.
(KAFKA, 1997, p. 68).
Diante disso posso então oscilar, mas a saída final é certa: preciso
renunciar. A comparação do pássaro na mão e os outros dois
voando só se aplica aqui muito remotamente. Na mão eu não
tenho nada, todos os pássaros estão voando e no entanto eu
preciso – assim o determinam as condições da luta e a miséria da
vida – escolher o nada. Também na escolha da profissão tive que
fazer uma opção semelhante. (KAFKA, 1997, p. 70).
Ao tecer literatura como linha de fuga para a existência, Kafka denuncia
o antagonismo entre sua herança e suas possibilidades desejantes ao elucidar as
contradições do projeto educativo do qual foi alvo. Ele se põe como um
interveniente desse processo em que é autor e vítima, pois ele cria através de
uma via estética as possibilidades para atuar num cenário que extrapola o limite
do eu que para ele foi dado. Abrindo a caixa de ferramentas pelo campo
literário, a redação da carta não se posiciona apenas como uma catarse, mas
por uma via ética em que o cuidar de si é narrativo, inventivo. Então, a sua
posição é como a de um cartógrafo que lê não o que lhe aconteceu, mas o que
repetidamente acontece ou aconteceu com outros.
Com isso o mundo se dividia para mim em três partes, uma onde
eu, o escravo, vivia sob leis que tinham sido inventadas só para
mim e às quais, além disso, não sabia por que, nunca podia
corresponder plenamente; depois, um segundo mundo,
infinitamente distante do meu, no qual você vivia, ocupado em
governar, dar ordens e irritar-se com o seu não cumprimento; e
finalmente, um terceiro mundo, onde as outras pessoas viviam
felizes e livres de ordens e de obediência. Eu vivia imerso na
vergonha: ou seguia as suas leis, e isso era vergonha porque elas só
valiam para mim; ou ficava teimoso, e isso também era vergonha,
pois como me permitia ser teimoso diante de você?, ou então não
podia obedecer porque, por exemplo, não tinha sua força, o seu
apetite, a sua destreza, embora você exigisse isso de mim como
algo natural: essa era a vergonha maior. Desse modo se moviam
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não as reflexões, mas os sentimentos do menino. (KAFKA, 1997,
p.19-20).
Apesar do fato da carta evocar análises psicanalíticas, a referência
kafkiana ao pai, nos remete, aqui, a uma reflexão mais ampla que nos coloca na
dimensão da história da herança moderna que nos atravessa até hoje e produz
seus efeitos. Esse é, de fato, nosso objetivo ao longo dessa discussão, ainda
preliminar, sobre o tema da transmissão do Pai e da filiação na sucessão das
gerações dos nossos tempos e dos mundos evocados por Kafka na passagem
acima: o mundo do Pai, a um só tempo, esforçado em perpetuar-se e em ser
superado; o nosso mundo, singular e marcado pelas contradições da herança; e
o mundo dos outros a quem julgamos felizes. Essa é a geografia desse
testamento kafkiano posto por uma visitação às vizinhanças e suspendidas
através das suas análises para extrair mapas nos trazendo algo bastante familiar.
Sendo assim, a carta parece apontar para três dimensões que nos
colocam diante de nossa própria filiação ao tempo e à História. Primeiro,
coloca em pauta a inscrição de cada um na ordem das sucessões geracionais a
partir do legado do Pai enquanto figura-objeto por excelência na transmissão
da Cultura. Segundo, parece denunciar que a modernidade inventou para si um
Pai déspota e contraditório que, ao mesmo tempo, cultua a liberdade e a tolhe,
querendo e não querendo o fracasso do próprio filho em superá-lo.Finalmente,
um terceiro aspecto ao qual gostaríamos de nos reportar, diz respeito à
responsabilidade do filho enquanto objeto-alvo da herança. Diante dessa
questão, a da responsabilidade, o futuro se coloca enquanto projeção
reinventada, enquanto destino possível, que exige dos filhos a ruptura e o
reposicionamento diante do legado transmitido pelas gerações anteriores.
No que diz respeito à transmissão da herança paterna, nos termos
discutidos por Bourdieu (1997) como sendo a “gestão da relação entre pais e
filhos”, num movimento que se esforça para perpetuar nos filhos a projeção
paterna, está em jogo, paralelamente, um pacto de continuidade e uma espécie
de transgressão. Herdar, nos termos postos por ele ao discutir acerca das
contradições da herança, significa reproduzir o idêntico, distinguindo-se dele e,
de certo modo, negando-o:
Herdar é substituir essas disposições imanentes, perpetuar esse
conatus, aceitar fazer-se instrumento dócil desse “projeto” de
reprodução. A herança bem-sucedida é um assassinato do pai
realizado com injunção do pai, uma superação do pai destinada a
conservá-lo, a conservar seu “projeto” de superação, que, como
tal, está na ordem, na ordem das sucessões. (BOURDIEU, 1997,
p. 9).
Herdar significa, portanto, aceitar o legado paterno como referência,
ser atravessado por ele, identificado a ele, para, a partir dele, vir a ser outro.
Esse caráter contraditório da transmissão revela-se com veemência na Carta.
O pai, tão grande em mestria, aponta a impotência do filho obediente. É
preciso encontrar uma zona de ruptura diante de sua soberania. É preciso
transgredir, desobedecendo, para superá-lo, e, desobedecendo, cumprir com a
ordem das sucessões. Êxito e fracasso se fundem na figura do pai. Ele é o
ponto de fratura, o limite que “não deve ser ultrapassado, que, interiorizado,
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torna-se uma espécie de proibição de diferir, de se distinguir, de renegar, de
romper”. (BOURDIEU, 1997, p. 12).
Aqui importa o exercício de tornarmo-nos contemporâneos, em
nossa própria condição de filiação, à carta escrita por Kafka na aurora do
século XX ao qual também pertencemos. Kafka, aos 36 anos, vivendo o
apogeu e a falência dos ideais libertários que fundaram a ilusão moderna
através do fascínio do dito desenvolvimento industrial, de um lado, e do
horror da guerra, de outro, coloca em questão sua filiação a um tempo
preciso, onde o agenciamento dos corpos e das almas, das ações e dos
sonhos, do possível e do ideal, era balizado pela potência disciplinar, tão
claramente denunciada por Michel Foucault (2000) em Vigiar e Punir, cujos
efeitos se manifestavam em detrimento do desejo e da perversão da liberdade
individual idealmente exaltada. Sejam livres, mas na medida razoável do
previsível, sem surpresas e sem escolhas. Nós, assim como Kafka, somos
filhos dos mesmos ideais e das mesmas contradições.
Entretanto, os nossos últimos trinta ou quarenta anos nos deram a
possibilidade de avançar na escrita de uma carta ao Pai. Cabe-nos indagar que
tipo de denúncia seremos capazes de formular. Somos filhos da modernidade,
mas avançamos, numa inspiração kafkiana, na posição de “conspira-dores” na
relação com nosso Pai?
De fato, temos sido filhos infelizes e insatisfeitos com a ordem das
sucessões em que fomos postos. Os últimos trinta ou quarenta anos,
apontam para o esforço sem precedentes de subverter a norma
exaustivamente calculada pelo projeto moderno de sociedade. Vivemos na
corda bamba entre os resquícios (ainda fascinantes) desse mundo ordenado
pela ilusória certeza metódica das coisas e pelo fracasso em perpetuar o
ordenamento moderno apontado pelas contradições de nossa herança.
Tornarmo-nos contemporâneos de Kafka, significa, como nos
convida Agamben (2009) em seu ensaio sobre o contemporâneo, fitar o
próprio tempo com um olhar anacrônico e poder enxergar no que ele contém
de escuridão “como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo
que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele”. (p. 64). Ou
seja, ser contemporâneo de Kafka é empreender o mesmo exercício feito por
ele: enxergar o escuro por entre as luzes incandescentes do Pai.
Em outros termos, para Agamben, olhar o próprio tempo com um
olhar anacrônico significa, num só movimento, pertencer irrevogavelmente a
ele e tomar distância, estranhar-se nele, odiá-lo sabendo que dele não pode
fugir. Essa relação com o próprio tempo como se estando dissociado dele,
permite tomar a distância necessária para fixar o olhar a fim de melhor
enxergá-lo naquilo em que não se entrega as evidências mais manifestas.
Ainda, enxergar o escuro do próprio tempo não deve ser concebido enquanto
negatividade, mas como “uma atividade e uma habilidade particular que, no
nosso caso, equivalem a neutralizar as luzes que provêm da época para
descobrir as trevas, o seu escuro especial, que não é, no entanto, separável
daquelas luzes”. (AGAMBEM, 2009, p. 63).
Não deixar-se cegar pelas luzes. Eis o desafio para o contemporâneo.
Assim como Kafka, somos herdeiros de muitas luzes: o brilhantismo da
ciência, a ofuscante verdade jurídica, a suposta claridade do pensamento
fundado no método cartesiano. Ainda, somos perpetuadores dessa herança
nos termos da técnica cada vez mais apurada dos softwares, dos gadgets, da
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onipresença do universo virtual. Até que ponto somos contemporâneos de
nosso tempo? Até que ponto nos permitimos a inspiração de Kafka no seu
endereçamento ao pai? Nossas luzes nos ofuscam ou podem ser suspensas
para nos permitir enxergar o escuro de nossas próprias contradições herdadas
e perpetuadas na ordem das sucessões?
Kafka põe em curso na redação desse testamento o apelo estético
como possibilidade de fuga e reinvenção da vida, uma espécie de
compromisso com uma nova aurora nos ditames presenciais do
desencantamento do mundo que estava nas mediações do ocidente como os
desastres que haviam acontecido: a Primeira Guerra Mundial, e, ainda, os
desvelos de algo ainda pior, o holocausto, a guerra fria, e os totalitarismos
alcançando o novo mundo, a falencia das instituições, etc. A carta é uma
antecipação, redigida não apenas para o pai imaginário, porém alcançando o
pai tirano e déspota que havíamos construído em nosso projeto de
modernidade. Ou seja, cabe em Carta ao Pai muito mais o lugar do epitáfio do
que as epifanias em que Kafka monta o quebra cabeças da modernidade.
Decerto Nietzsche encontraria nesse texto a presença ululante das
consequências das nossas escolhas montadas através de uma moral caduca
que privilegiou as castas ocidentais ostentando o pai enquanto a figura
emblemática. A legitimação do texto kafkiano não é a conformidade para
com o seu tempo, mas a resistência ao que estava ainda para chegar, por isso,
trata-se de um texto contemporâneo, pois ainda sentimos em pleno século
XXI as suas ressonâncias.
Inspirado no poema “O século” que Osip Mandel’stam escreveu em
1923, Agamben (2009) chama atenção para o fato de que os filhos
(contemporâneos) do seu tempo fixam o olhar num ponto de sutura entre as
vértebras de dois séculos, entre tempos distintos – o coletivo e o individual.
Aqui, pensamos na herança dos nossos pais enquanto filhos que foram, e na
herança transmitida aos filhos que somos, nós, enquanto contemporâneos do
nosso tempo. Hoje, temos os pés em dois séculos, mas, também em duas
vidas, a geração dos nossos pais e a nossa, anacrônica a esta. Kafka também
vivia esse duplo atravessamento.
De fato, ser contemporâneo de Kafka significa ser interpelado pelas
próprias origens, colocando-se nessa dobra dos tempos, como ponto de
sutura que permita um voltar-se para o passado com a distância necessária
para enxergá-lo e, paralelamente, poder vislumbrar o futuro, inventando-o.
Passado e futuro são, pois, conjugados no presente, colocados em xeque pelo
contemporâneo em nós. É interessante observar que a metáfora das
vértebras, no poema analisado por Agamben (2009), sugere uma estrutura
dorsal, um eixo onde se sustenta o século. Na ordem da sucessão, está o
ponto de fratura, mas, também, de sutura, entre o passado e o futuro, entre a
herança e seu destino. “O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é
aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que
deve suturar a quebra.” (Agambem, 2009, p. 61).
Diante disso, segundo Deleuze e Guattari (1977), a obra de Kafka é
toda ela um lugar de toca, onde há entradas e saídas que se revelam pelos
rizomas e as suas possibilidades de romper as barreiras do seu tempo se
transmutando para um vir a ser. Logo, o embate de Kafka com o pai
evidencia os embates dos filhos de cada tempo nos seus endereçamentos aos
pais de todos os tempos. O filho Kafka, no sentido literário do texto, é todos
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e cada um de nós. Por isso, ao sermos tomados pela carta, colocamo-nos na
posição de filhos contemporâneos à Kafka, fazendo-nos interrogar os
caminhos que trilhamos: aqueles deixados pelos nossos pais, aqueles que
acreditamos serem nossos e aqueles que se precipitam até nós como surpresa
e puro mistério, seja porque dizem respeito ao futuro que mal podemos
entrever, seja porque não se dão por escolha consciente da nossa marcha
ligando passado, presente e futuro. E, aqui, vale lembrar ainda o sentido
apontado por Agamben (2009) de que o contemporâneo é aquele que,
dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de
colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito
a história, de ‘citá-la’ segundo uma necessidade que não provém de
maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não
pode responder.(p. 72).
“O que sabem os filhos hoje?” Como os filhos de hoje podem
transformar seu tempo ao olhar para trás vislumbrando o legado paterno?
Assim como Kafka, temos o hábito do leitor moderno de tentar justificar as
agruras presentes buscando respostas no passado através da atribuição de culpa
aos pais. Na carta, somos interpelados por essa ambigüidade de um filho que
parece penitenciar-se pelos erros do pai e, ao mesmo tempo, rebelar-se, indo
na contramão da herança.
Em outras cartas, as Cartas Luteranas de Pasolini (1997), mais
precisamente, na sua introdução, intitulada Juventude Infeliz, temos a
oportunidade de fazer o exercício de enxergar nosso próprio escuro. Nesse
texto, Pasolini discute magistralmente a questão da responsabilidade de pais e
filhos no curso das gerações e coloca em cena esse movimento que,
responsabilizando os pais (e, portanto, o passado) pelos males dos filhos
(dando redenção ao presente), a modernidade nos ensinou a escamotear as
contradições de nossa herança. Segundo ele, existe, na verdade, uma
responsabilidade partilhada porque “não há filhos inocentes”. Cada filho deve
liberar-se da culpa dos seus pais, assumindo e reinventando o próprio futuro.
El lector moderno ha vivido efectivamente una experiencia que le
vuelve, final y trágicamente, capaz de comprender la afirmacíon –
que parecía tan ciegamente irracional y cruel – del coro
democrático de la antigua Atenas: que los hijos deben pagar las
culpas de los padres. Pues los hijos que no se liberan de las culpas
de los padres son infelices, y no hay signo más decisivo e
imperdonable de la culpa que la infelicidad. Sería demasiado fácil,
e inmoral en sentido histórico y político, que los hijos quedaran
justificados – en lo que hay en ellos de sucio, de repugnante y de
inhumano – por el hecho de que sus padres se hayan equivocado.
Una mitad de cada uno de ellos puede estar justificada por la
negativa herencia paterna, pero de la otra mitad son responsables
ellos mismos. No hay hijos inocentes. Tiestes es culpable, pero sus
hijos también lo son. (PASOLINI, 1997, p. 14).
Ao colocar em questão a dita infelicidade dos jovens, Pasolini nos
conduz aos pontos cegos do nosso tempo, àquilo que, sendo escuro, não se
revela a nós ofuscados que somos pelas nossas luzes. E que luzes são essas?
Quais as luzes que nos fascinam ao ponto de não localizarmos em nós e em
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nosso próprio tempo responsabilidades na condição do destinar-se? Pasolini
nos coloca frente às luzes claras e ofuscantes do consumo, do imperativo ao
consumo, como via do existir em nosso tempo. Suas cartas foram escritas em
1975, justamente nesses últimos trinta ou quarenta anos dos quais somos
filhos. Visionário texto, na medida em que apontava o futuro de outrora que
atualizamos hoje. Num só golpe nos vemos contemporâneos de Kafka dos
anos 1920, de Pasolini dos anos 1970, em pleno século XXI à época apenas
aclamado como vindouro. De repente, nos vemos nas dobras do tempo e
experimentamos o esforço que o contemporâneo nos impõe na inspiração
manifesta de Agamben (2009).
Schèrer (2009) nos conduz a essa reflexão sobre o mal-estar
contemporâneo inspirado em Pasolini e suas cartas. E nos lembra o quanto é
importante podermos assumir nossas responsabilidades apesar de nossas
heranças. De fato, não somos filhos inocentes. Herdamos a escolha pelo
fascínio do consumo, mas temos compactuado com ele. Somos forçados a
concordar com Pasolini e Schèrer de que o ideal do progresso e do
desenvolvimento nos conduz à cegueira frente às nossas responsabilidades
com o tempo presente. Temos, de fato, recorrido (cegamente) a uma
unificação consumista. Temos, de fato, nos conformado com o mesmo
modelo, uma mesma cultura, o mesmo, o idêntico. Não há mais pobres e
burgueses como disse Pasolini. O que há é o signo do desenvolvimento que a
todos iguala na categoria de consumidores. Sustentados pela ilusão do
desenvolvimento e da diversidade, exaltamos o igual e o empobrecimento da
cultura reduzida à única – o consumo.
Ora, essa realidade sendo o aspecto desolador de uma juventude
que se lança às cegas no capitalismo de consumo, não se pode
ficar indiferente ao seu envolvimento responsável numa “falta”
que não cabe somente aos pais, mas que os filhos compartilham
com eles. (SCHÈRER, 2009, p. 19).
Pensar o destino exige de nós, herdeiros do tempo, a partilha de
responsabilidades com nossos pais, do mesmo modo, filhos do tempo e da
História. Exige a renúncia das perguntas sem respostas. Exige a invenção do
futuro e o desapego pela culpabilização trágica do passado. Concordamos com
Schèrer de que essa partilha das responsabilidades diante da herança, ou seja,
diante da gestão da relação entre pais e filhos, envolve muito mais do que
conexões causais, culpas e perdões. Qual o destino do consumo, da produção,
das figuras toxicômanas que tentam preencher as faltas que atribuímos à
modernidade? Seria nos fazer acreditar que a dimensão ética do cuidado de si
(dos outros) está falida em proveito das taras agenciadas pelo fetiche da
mercadoria? Qual via de fuga poderemos trilhar diante da herança que nos
acostumou a culpar nossos ancestrais?
É preciso fugir da ordem do julgamento e da Lei para afirmar o
direito ao desejo, que não consiste em possuir e consumir
mercadorias sempre novas, mas em construir, com os outros, com
a natureza, consigo mesmo, se compreeendemos bem Deleuze,
novos agenciamentos. Os agenciamentos do desejo opostos aos
dispositivos mortais da civilização. (SCHÈRER, 2009, p. 22).
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Kafka, ao mesmo tempo em que nos aponta quem somos na marcha
civilizatória das sucessões culpabilizadas, parece nos desafiar a uma travessia:
rebelar-se para inventar o futuro e destinar-se, suturando as vértebras do
tempo.A sua escrita tracejada através da pauta familiar tem a tinta de uma
imersão ao apelo estético que possibilita nossa recriação no mundo, mas sem a
garantia da filiação que posiciona a todos nós num lugar de dívidas e buscas de
uma suposta garantia das coisas. Sair da posição do registro geracional é, talvez,
o lugar que mais se coaduna com a presente obra literária e, por conseguinte,
Deleuze e Guattari (1977, p.07) se colocam muito bem quando nos
aproximamos da obra de Kafka: “Como entrar na obra de Kafka? Trata-se de
um rizoma, de uma toca.” Assim, Carta ao Pai nos responsabiliza, também,
perante a nossa travessia: não sucumbir diante da nossa filiação ao pai.
REFERÊNCIAS
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