Adorno e Kafka - verlaine.pro.br

Transcrição

Adorno e Kafka - verlaine.pro.br
Ricardo Timm de Souza
ADORNO & KAFKA:
Paradoxos do singular
Passo Fundo
IFIBE
2010
·sUMÁRIO
Apresentação
!9
Prefácio
111
Introdução
ou: contra o escapismo em filosofia
!15
Preâmbulo
A pulsação da vida no envoltório do frenesi, ou:
'da diferença entre respiração e estertor !19
O univer so de referência - agonia de uma era?·
A composição profunda do século XX ·
filosófico-cultural: aproximações
135
A Escola de Frankfurt e o contexto de seu sur gi mento:
Inquietações éticas no coração dos
dilemas de uma época
I 53
Estética como anti-i dolat ria
187
A asfixia do não-idêntico:
Kafka, leitor do século XX
1 107
Adorno, leitor de Kafka, leitor do mundo
"só há uma expressão para a verdade:
o pensamento que nega a injustiçà'
1161
Referências bibliográficas
1 1 77
APRESENTAÇÃO
Paulo César Carbonari
·
O livro Adorno & Kafka: paradoxos do singular, do pro­
fessor Ricardo Timm de Souza leva adiante a tradição de diá­
logo da filosofia com a literatura. Ao tomar Kafka como inter­
locutor de Adorno, apresenta questões que o subtítulo da obra
resume enfaticamente. Não me atrevo a comentar o belíssimo
material que a Editora IFIBE faz chegar às mãos dos leitores e
das leitoras. Fico apenas em algumas considerações que pre­
tendem não mais do que expressar gratidão ao autor por con­
fiar sua vigésima obra solo ao nosso trabalho editorial.
O professor Timm é conhecido pela ousadia das reflexões
que propõe, visto que tocam o extremo da realidade e esticam
audaciosamente os limites da racionalidade. Seus escritos de­
sacomodam as racionalidades prontas e desafiam os lugares­
-comuns do pensamento e da prática. Mais do que instigar a
conhecer o legado da tradição, provoca para que a tradição
- seja literária ou filosófica - sirva de subsídio para recolher
sentidos que os interstícios do mundo põem àqueles e aquelas
que insistem em não sucumbir ao dado, simplesmente. Ser9
ve de inspiração para todos quantos querem fazer da filosofia
uma atividade e uma atitude, mais do que um protocolo.
Os textos reunidos nesta obra fazem com que a emergên­
cia dos paradoxos do singular desafie os universalismos para­
doxais. Contra posturas que tomam estes últimos por vestais
da unidade e da coerência e aqueles por insignificantes ou des­
prezíveis, indica que nem uns e nem outros são aceitáveis. Os
escritos fazem com que a racionalidade não se acomode ao
que a massificação recomenda: o silêncio e o descompromis­
so, tanto sobre o singular quanto sobre o universal. Servem de
antídoto ao cinismo que professa a falência de toda crítica e
também fazem uma terapia da crítica que só parece hipocrita­
mente crítica, mas que rigorosamente não é.
Por isso, é um convite a desacomodar-se e a fazer da fi­
losofia um exercício de construção da reflexão comprometida
com a radicalidade que imerge nas contradições e, acima de
tudo, propõe construir possibilidades que estejam a serviço da
mobilização da pluralidade que abre para que as singularida­
des sejam, apareçam e se manifestem.
10
PREFÁCIO
Leite negro de manhã nós te bebemos ao entardecer/
nós te bebemos ao meio-dia nós te bebemos à noite/
nós bebemos e bebemos.
Paul CELAN
Quem escolhe hoje por ofício o trabalho filosófico
tem de renunciar desde o princípio à ilusão com que partiam
anteriormente os projetos filosóficos: a de que seria possível abranger
a totalidade do real porforça do pensamento. Nenhuma Razão
legitimadora saberia voltar a encontrar-se em uma realidade cuja
ordem e configuração derrota qualquer pretensão de Razão;
a quem busque conhecê-la, só se apresenta como realidade total
na condição de objeto de polêmica, enquanto unicamente
em vest{gios e escombros perdura a esperança de que
algum dia chegue a ser uma realidade correta e justa.
Theodor ADORNO. Atualidade da Filosofia
A potência geradora de categorias do pensamento filosó­
fico - das quais derivam, a rigor, todos os conceitos dos campos
epistêmicos que se multiplicam infinitamente e, por derivação
evidente, de todas as artes e ciências, quando trazem à luz a
verbalidade da linguagem que os habita é simultaneamente
sua grandeza e a possibilidade de seu fracasso. A inteligência
filosófica tem como papel central modular a capacidade con-
11
ceitualizante, de tal forma que esta nem se perca em alturas
insondáveis, nem se torne rasa e presa fácil de operatividades
estratégicas e instrumentais que nada têm a ver com sua ori­
gem e seu sentido.
Conceitos que conhecem sua potência e seus limites me­
recem o nome de categorias filosóficas. Uma das mais notáveis,
que recebe muitos nomes, mas que age continuamente como
referência de calibragem do pensamento referido ao que dá o
que pensar filosoficamente, ou seja, ao real - tome este termo
a conotação que se quiser -, é a de Não-idêntico. Ela já provoca
em seu próprio enunciado, com a negatividade intrínseca que
extravasa da palavra que a constitui, sua solidão e in confundi­
bilidade. Ela remete, em Adorno, a uma base implícita de sus­
tentação de extraordinárias reflexões e cadeias argumentativas
cuja explicitação é, justamente, o conjunto de sua obra.
Todavia, o retorno analítico a essa categoria, por si só,
encontra o limite da própria ideia de análise. Neste sentido, o
contraponto da proliferação de sentidos que uma tal catego­
rià pode propiciar, em sua afirmatividade como singularidade,
com a alta literatura - ou seja, a literatura que, uma vez vinda
à luz, sobrevive à corrosão da história e a seus detratores, no
caso, aspectos de Kafka - é condição de extravasamento do
discurso argumentativo para a expressão de linguagem, sem
que o argumento nela se dilua.
O objetivo deste despretensioso opúsculo é, assim, des­
de uma determinada situação muito específica que não pode
ser nunca olvidada, pontuar alguns momentos dessa trajetória
contrapontística entre Adorno e Kafka, na interlocução com
algumas obras do escritor tcheco que dizem o que a letra adorniana explícita. Não se trata, portanto, absolutamente, de um
exame hermenêutica dessa categoria, no âmbito de algo seme­
lhante a um tratado filosófico ou de análise literária, ou ain­
da do arrolamento de suas incidências significativas e de suas
conseqüências no pensamento filosófico, mas tão-somente de
12
i
um conjunto de pequenos ensaios de compreensão do nível de
significação - a que profundidade abissal o levar a sério esta
categoria pode conduzir.
Que não se espere, portanto, do presente livro mais do
que ele pode oferecer; mas que se investigue, nessa categoria,
tudo o que ela pode vir a signific ar, é o único desejo do autor.
-
Porto Alegre, fevereiro de 201 O.
13
INTRODUÇÃO
ou: contra o escapismo em filosofia
O que faz, pois, a escrevinhação de nossos filosofastros su­
mamente pobre de pensamentos e, portanto, torturantemen­
tefastidiosa é, em última análise, a pobreza de seu espírito,
porém, antes de mais nada, o fato de que sua exposição se
mova, do começo ao fim, por conceitos altamente abstratos,
gerais e excessivamente amplos, e que por isso caminhe sole­
nemente, quase todo tempo por expressões indeterminadas,
vacilantes e desbotadas. Mas são forçados a esse movimento
acrobático e têm de evitar tocar a terra, como lugar onde
eles, chocando-se com o real, o determinado, o singular e o
claro, encontrariam recifes altamente perigosos, nos quais
suas escunas de palavras poderiam naufragar.
Arthur SCHOPENHAUER
O insidioso poder de homogeneização do mundo con­
temporâneo, a voragem quantificadora que experimentamos
e na qual temos de sobreviver, tem um alimento favorito, que
lhe dá forças para elucubrar sempre novamente formas e ar­
timanhas de se impor à qualidade, ao particular, ao singular,
ao diferente, ao não-idêntico. Tal se constitui, essencialmente,
no uso abusivo e irresponsável de conceitos, despindo as cate­
gorias filosóficas de sua credibilidade pelo desabrido desenraiza­
mento de suas inquietações de origem. É um artifício antigo como
15
a própria filosofia, porque adequado à camuflagem: finge-se
que se está pensando profundamente quando, na verdade,
está-se escapando à responsabilidade que o pensamento sig­
nifica; finge-se que se está meditando a aspereza· do ainda­
-não-pensado quando se está a elucubrar vernizes encobri­
dores para aquilo que representa o perigo. Em lugar de deixar
em aberto um espaço para o ainda-não, para o imponderável
que chega do já pensado e obriga o pensamento a reconsi­
derar continuamente seu estatuto de validade, esta lógica de
escapismo, astutamente, investe no caminho contrário: satura
o universo intelectual com pretensas significações profundas
e retóricas labirínticas, quando tudo o que quer é, justamente,
evitar as significações comprometedoras que possam assomar
das sombras das profundidades. O pensamento verdadeiro
nunca é inofensivo: abre sempre as portas do inusitado, es­
cancara a verdadeira face da hipocrisia, escapa e denuncia a
mediocridade, pois significa o seu reverso. Dadas essas suas
três características, entre muitas outras, não é absolutamente
de se admirar que seja, em regra, sistematicamente afastado,
pelos paladinos do poder, do ambiente no qual se movem os
espíritos inquietos que o procuram em todas as eras e lugares.
Oferece-se, em troca, o banal, a proliferação patológica de jar­
gões e imagens, as pretensas cores de um mundo originalmen­
te empalidecido pelas contradições nas quais navega, até mes­
mo a loucura. Tudo vira objeto de compra e venda; tudo vira
quantidade. Assim, o pensamento, que nasce do choque que a
Diferença lhe significa exatamente no nascedouro do intelecto,
é neutralizado exatamente pela neutralização da Diferença, na
estranha esteira de um paradoxo ardiloso (Cf. Souza, 2000b,
p. 189-208).
São inúmeras as possibilidades de abordar essa espan­
tosa metamorfose, e temos, em vários de nossos trabalhos,
tido a pretensão exatamente de expô-la em seus constitutivos
16
variados. 1 O presente conjunto de pequenos ensaios - alguns
retomando e ampliando textos antigos, outros inéditos - que
se constitui em mais uma dessas tentativas, abordando, no
caso presente, aspectos relevantes para a desconstrução deste
Odradek monstruoso que povoa sem tréguas o imaginário co­
letivo como fungos espantosamente proliferantes e adaptáveis,
desde a inspiração precípua de um dos pensamentos mais po­
tentes da história da filosofia ocidental: o de Theodor Wiesen­
grund Adorno, em contraponto com a potência singular de
exposição de exemplos da obra de Franz Kafka. Sua novidade
em relação a outros escritos nossos relativamente aos autores
abordados é o específico entrelaçamento que o presente con­
junto de escritos propõe.
O livro tem, então, esta finalidade: mostrar como, a par­
tir de Adorno e Kafka, é possível não apenas desentranhar a
amálgama espantosamente complexa que sustenta um pen­
samento sem conteúdo crítico, como também expor aqueles
elementos dispersos por muitas instâncias de construção de
linguagem que, justamente, imunizam a crítica contra sua
própria inércia, pela desconfiguração radical do estilo mental
da quimera que significa qualquer promessa de neutralidade
em filosofia como em qualquer arte, literatura ou ciência.
Tal presente intróito traz consigo já uma promessa de
estilo: não se trata de um conjunto de textos necessariamen­
te para especialistas, repitamos, mas de um simples convite a
1
Ver, entre outros, nossos livros Totalidade & Desagregação - sobre as fronteiras
do pensamento e suas alternativas; O tempo e a Máquina do Tempo -estudos de
filosofia e pós-modernidade; Metamorfose e Extinção -sobre Kafka e a patologia
do tempo; Razoes plurais-itinerários da racionalidade ética no século XX: Adorno,
Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig; Fontes do humanismo latino -A condição
humana no pensamento filosófico moderno e contemporâneo; Sentidos do Infinito A categoria de "Infinito" nas origens da racionalidade ocidental, dospré-socráticos a
Hegel; Em torno à Diferença -aventuras da alteridade na complexidade da cultura
contemporânea; Justiça em seus termos -dignidade humana, dignidade do mundo;
Kafka, a Justiça, o Veredicto e a Colônia Penal, além de artigos e textos inéditos.
,
Ver referências bibliográficas completas ao final do livro.
17
mentes inquietas, inclusive, eventualmente, de especialistas;
assume, portanto, uma dimensão narrativa própria que rom­
pe com pretensões didáticas que ignora consciente e frontal­
mente limites epistemológicos em nome de uma linguagem, a
qual, parodiando o próprio Adorno, "liberada da maldição da
hipocrisia, possa finalmente repousar no seu objeto".
18
PREÂMBULO
A pulsação da vida no envoltório do frenesi, ou:
da diferença entre respiração e estertor
Dasperennierende Leiden hat soviel Recht aufAus­
druck wie der gemarterte zu brüllen; darum mag es
falsch gewesen sein, nach Auschwitz liesse sich kein
Gedicht mehr schreiben.
Theodor ADORNO
I. Derrota e loucura2
Na verdade, não consigo acreditar em
mais nada. Nem mesmo possuo a centelha
da fé que se precisa para ser cético
Dr. Beeber, personagem de Isaac B. SINGER. Um amigo de Kafka
No notável A derrota do pensamento, o filósofo francês
Alain Finkielkraut ousa circunscrever alguns temas difíceis do
mundo contemporâneo. Longe de mergulhar freneticamente
no fluxo contínuo da informação a fim de esmiuçar sua (i)lógica
2
Esta seção retoma e atualiza texto originalmente publicado em Souza, 1998.
19
ou de flagrar no inusitado do dia-a-dia anúncios de uma nova
frente de (in)compreensão do atropelar-se dos fatos, prende­
-se a um tema, mas a um tema difícil: fixar elementos que per­
mitam o desnudamento das aparências da cultura hegemônica
contemporânea. Pois, como diz Daniel Fresnot na contracapa
da obra, "as aparências enganam': e enganam muito. Falar, hoje
em dia, de "racionalidade", "pensamento', "culturà: não trai ne­
cessariamente uma nostalgia restauradora de tempos menos
ágeis, ou um conservadorismo saudosista, nem significa por
si só a anti-lucidez de hipotecar a confiança na inteligibilidade
do presente a algum termo démodé; pode significar, antes, um
caminhar em contra-fluxo, contra as expectativas do óbvio e as
sugestões de um colorido espírito de massa.
É isto que faz Finkielkraut nesta sua obra de 1 987, que
mantém toda sua atualidade. Trata da transformação do pen­
samento e da cultura em "quinquilharias" (Finkielkraut, 1 988,
p. 1 59 ), mas não com tédio ou de forma a dar a impressão exata
de que flutua sobranceiramente por sobre os fatos: antes objeti­
vando-os ao assumir sua visceral equivocidade. Atém-se ao que
é dito - e, desde o dito, tira continuamente conclusões. Mas
não conclusões que convidem o leitor a abandoná-las continu­
amente em favor de suas irmãs mais novas. Finkielkraut ( 1988,
p. 1 3 1 - 1 32) diz:
O ator social pós-moderno aplica na sua vida os princípios que
os arquitetos e pintores usam em seu trabalho: substitui, como
eles, os antigos exclusivismos pelo ecletismo; recusando a bruta­
lidade da alternativa entre academicismo e inovação, mistura so­
beranamente os estilos; no lugar de ser isto ou aquilo, clássico ou
vanguarda, burguês ou boêmio, une à sua maneira as predileções
mais disparatadas, a inspirações mais contraditórias; leve, móvel
e não preso a um credo e paralisado em um domínio, gosta de
passar sem obstáculos de um restaurante chinês a um clube anti­
lhano, do cuscuz ao cassoulet, do jogging à religião ou da literatura
à asa-delta.3
3
20
Ver também, a respeito da contínua flutuação das referências da contemporanei­
dade, a obra de Marc AUGÉ, Não-Lugares (1994), e de Zygmunt BAUMAN, Mo­
dernidade e Holocausto ( 1998).
Eis aí a cultura da profusão, da modernidade líquida de
Bauman, da intercambiável variedade de super-estimulações:
tudo é estimulante e, de tão estimulante, tudo é igualmente vá­
lido; a validez pula de espaço cultural em espaço cultural como
uma ave pula de galho em galho da árvore na floresta, à pro cu­
ra de pequenos vermes compensadores para tanto esforço. O
artista, o ator cultural tem, assim, a oportunidade de se enfas­
tiar sem se dar conta disso; como em um moderno programa
de computador, tão repleto de recursos que a ninguém é dado
esgotá-lo em suas possibilidades e, não obstante, transmite
uma estranha impressão de racionalidade saturada a quem o
aborda, dá-se um tempo repleto de virtualidades e absoluta­
mente vazio de referências que não sejam a impossibilidade
de assumir algo externo como referência. Trata-se, em suma,
de uma excitada dialética da saturação estatuída em ideal de
existência:
Brilhar é a palavra de ordem desse novo hedonismo que rejeita
tanto a nostalgia quanto a auto-acusação. Seus adeptos não aspi­
ram a uma sociedade autêntica, na qual os indivíduos viveriam
confortáveis em sua identidade cultural, mas a uma sociedade po­
limorfa, a um mundo matizado que colocaria todas as formas de
vida à disposição de cada indivíduo (Finkielkraut, 1988, p. 132).
Assim, este brilho, estas cores, esta variedade de estímu­
los têm como pressuposição absoluta a abundância de disponi­
bilidades; que deles não se aproxime quem não pode escolher
entre uma miríade de possibilidades! Mas estas possibilidades,
estas disponibilidades infinitas são, em realidade, apenas isto:
possibilid<:tdes. Como potências eternamente falhas em sua pas­
sagem à condição de ato, traem em sua essência: não passam
de fantasmagorias flutuantes, miragens que se interpenetram
continuamente e reivindicam seu átimo de brilho. Falando do
pretenso apreço pelas culturas estranhas, o filósofo se aproxi­
ma da verdadeira essência de suas manifestações:
21
Uma vez que para eles [os atores pós-modernos, R.T.S.] multicul­
tural significa bem-abastecido, não são as culturas enquanto tais
que apreciam, mas sua versão edulcorada, a parte delas que po­
dem testar, saborear e descartar após o uso. Consumid�res e não
conservadores das tradições existentes, é o "cliente-rei" que neles
tripudia diante dos obstáculos postos ao reino da diversidade pelos
ideólogos vetustos e rígidos (Finkielkraut, 1988, p. 1 32).
Reproduzem ali neste meritório campo, portanto, o que
veem ao seu redor, ou melhor, o que não veem, mas mesmo
assim existe: a hegemonia de uma determinada racionalidade.
Como crianças aprendendo a falar, repetem o que ouvem, mas
repetem à sua maneira, sob a forma de desajeitados balbucios,
todos investidos em discursos modelares, já que a validez é
universal. A fronteira entre a consciência e a inconsciência foi
rompida pelas cores dos estímulos infinitos. Consume-se, dan­
do a impressão de que se produz algo, e algo de valor - pelo
menos de tanto valor quanto qualquer outra coisa, qualquer
outro momento que se suceda hipnoticamente no desvario dos
dias. Como aceitar as formas, se estas não se confundem com
os conteúdos? A propaganda invertida em absoluto e despida
das necessidades do convencimento. O flutuante ator pós-mo­
derno não necessita mais do que de si mesmo para se conven­
cer de sua inquestionável auto-legitimação: nenhuma justifi­
cativa é necessária para um universo que se apresenta, em si,
como uma infinita sucessão de justificativas e do qual o ator,
ao assumir a validez, faz parte desde sempre. Uma feição de
"niilismo", mas a quem a menção ao termo "niilismo" é abso­
lutamente estranha: não pode haver niilismo em um espaço
de referências completamente saturado de vali dez " [ . ] este
niilismo classificador dá lugar, no pensamento pós- moderno,
a uma mesma admiração pelo autor do Rei Lear e por Charles
Jourdan. Com a condição de que traga a assinatura de um
grande estilista, um par de botas equivale a Shakespeare"
(Finkielkraut, 1988, p. 1 34). Mas não é só isso: tudo equivale a
tudo. "O jogador de futebol e o coreógrafo, o pintor e o costu­
reiro, o músico e o roqueiro são, da mesma maneira, criadores"
-
22
.
.
(Finkielkraut, 1 988, p. 134). Para quem pode escolher, tudo é
facultativo; e qual poderia ser o sonho da humanidade e de
cada indivíduo, senão se transformar em epicentro da órbita
infinita das escolhas?
Vivemos o momento dos feelings: não há mais nem verdade nem
mentira, nem estereótipo nem invenção, nem beleza nem feal­
dade, mas uma miríade de prazeres, nem diferentes nem iguais
[ .. ] nenhuma autoridade transcendente, histórica ou majoritária
pode modificar as preferências do sujeito pós-moderno ou dirigir
seus comportamentos. Munido na vida de um telecomando como
diante de seu aparelho de televisão, ele compõe seu programa com
o espírito sereno sem se deixar mais intimidar pelas hierarquias
tradicionais (Finkielkraut, 1988, p. 1 38).
.
Pois sejamos realistas: para que modificar preferências,
se todas em realidade se equivalem, ou seja, se a questão é de
quantidade, e não de qualidade? A capitulação final: a realida­
de já está decidida, e não é a favor de sua exploração ou de sua
descoberta, mas a favor de sua transformação em um pretexto
para o fastio, para a absoluta in -diferença que assume a para­
doxal - quase folclórica no pior sentido do termo - aparência
de respeito pela Diferença. As aparências enganam. E a cultura
contemporânea é este jogo de espelhos que, ao refletir todas as
imagens umas nas outras, esvazia toda imagem de consistên­
cia; ao indiferenciar o concreto, transforma-o em uma função
de uma vontade onipresente, de uma preferência particular.
Não há mais pensamento, apenas a sua sombra a se refugiar da
vergonha de não ser descartável.
Sejamos claros: essa dissolução da cultura no todo cultural não
acaba com o pensamento nem com a arte [ . ] as obras existem,
mas, uma vez que as fronteiras entre a cultura e o divertimento
não são mais claras, não há lugar para acolhê-las e dar-lhes sen­
tido. Elas flutuam, pois, absurdamente, em um espaço sem coor­
denadas ou balizas. Quando o ódio pela cultura torna-se ele pró­
prio cultural, a vida com o pensamento perde todo o significado
(Finkielkraut, 1 988, p. 1 39).
.
.
23
Pois o significado consiste em deixar de questionar os
sentidos infindos e flutuantes que o significado da preferên­
cia particular se atribui, sem que mais nada realmente conte.
Para que esforço pela sobrevivência para aquele a quem é dado,
kafkianamente, viver por inércia? Pois no aburguesamento da
lógica da vida, outra inversão indiferente tem lugar:
[ ] o hedonismo põe a razão burguesa contra o burguês: o pen­
sar calculante sobrepuja seus antigos vetos, descobre a utilidade
...
do inútil, cerca metodicamente o mundo com apetites e praze­
res e, depois de ter rebaixado a cultura à categoria das despesas
improdutivas, eleva agora toda distração à dignidade cultural:
nenhum valor transcendente deve poder frear ou mesmo condi­
cionar a exploração dos lazeres e o desenvolvimento do consumo
(Finkielkraut, 1 988, p. 1 42).
Mais uma vez, as aparências enganam o observador in­
cauto; em um mundo que promete o paraíso a quem prometer
não pensar, o reverso, nunca dito, é sempre infinitamente mais
concreto; pois, no mundo contemporâneo, o inferno será as­
peramente experimentado por todo aquele a quem a lógica da
obviedade não satisfizer. Eis aí a real violência, nada virtual, dos
tempos que correm, o que realmente decide as ações por trás
de toda liberdade anunciada. À infinita virtualidade das pos­
sibilidades aos que rezam pelo credo da indiferença, a extrema
punição aos que hesitam em meramente escolher. Mais um pa­
radoxo, e não das mais fáceis: o infinito espectro de possibi­
lidades abertas tem, na realidade, limites extremamente sen­
síveis, e que em nenhuma hipótese podem ser transgredidos
sem retaliação - ainda que esta retaliação, por uma particular
desordem do pensamento reduzido pela hegemonia à inofen­
sividade, permaneça em muitos casos na órbita da radical in­
consciência, face visível da indiferença. Eis aí um inebriante
((ópio dos intelectuais" - em outros tempos,
24
[ ... ] os homens da cultura combatiam a tirania do pensamento
calculante taxando-o de bobagem, ao passo que sua extensão pós­
-moderna não suscita praticamente protestos [ ... ] Pensando no
cinema americano, Hannah Arendt escrevia nos anos cinqüenta:
«Muitos dos grandes autores do passado sobreviveram a séculos
de esquecimento e abandono, mas é questão pendente saber se
serão capazes de sobreviver a uma versão divertida do que têm a
dizer, (Finkielkraut, 1 988, p. 142- 1 43).
Pois tudo pode ser divertido, inclusive a violência e exe­
cuções de todos os tipos, a tortura e o linchamento, quando a
lógica da indiferença assim o prescreve. Se tudo é igual, tudo
é in-diferente: tudo é igualmente divertido, tudo é igualmente
irrelevante, e a ninguém será dado emitir juízos de valor. Pois
a essência do mundo contemporâneo em sua profundidade
é a violência mQdulada; é a expressão mais amadurecida da
Totalidade.
Ora, no momento mesmo em que a técnica, pela interposição da
televisão e dos computadores, parece capaz de introduzir nos lares
todos os saberes, a lógica do consumismo destrói a cultura [ . ]
Doravante, é o princípio de prazer - forma pós-moderna do in­
teresse particular- que rege a vida espiritual [ .. ].Conglomerado
desembaraçado de desejos passageiros e aleatórios, o indivíduo
pós-moderno esqueceu que a liberdade é diferente do poder de
mudar de prisão e que a própria cultura é mais que um impulso
saciado (Finkielkraut, 1988, p. 145-146).
..
.
Mais uma vez as aparências enganam.
Há pouco cego ao totalitarismo, o pensamento é agora cegado por
ele. Os crimes do Ocidente colonizador ocultaram por muito tem­
po as monstruosidades cometidas em nome da revolução. Dora­
vante, é Big Brother que serve de álibi para a dispersão da cultura
no Ocidente [ . ] a intrusão violenta do poder na vida privada jus­
tifica, pelo contraste, a agressão sorridente da música ambiente
e da publicidade; o embriagamento forçado das massas dá aos
dilemas do indivíduo, atraído por tudo e nada na Disneylândia
. .
25
da cultura, a forma de um exercício soberano de autonomia, e,
assim, o universo do telecomando vem a nós como o melhor dos
mundos possíveis (Finkielkraut, 1 988, p. 147).
Leibniz redivivo? De qualquer forma, sem a auréola das
Luzes. Estas há muito se transmutaram em mercadoria e refu­
giaram-se no ocaso sombrio das utopias clássicas. No passado
pouco se encontra que possa ajudar a compreender o presen­
te, quanto mais opor-se-lhe uma alternativa (Cf. Souza, 1 996,
p. 22ss). Esta é uma tarefa que pressupõe bem mais do que
alguma espécie de simples reordenamento de forças - pois,
como bem mostra Finkielkraut, existe mais realidade por trás
de inofensivas aparências do que gostariam de supor os arau­
tos do reformismo infinito. A obsessão pelo estático é muito
intensa, ocupa as consciências agora travestidas em fugaci­
dade do efêmero; violentamente hipnótica, ela reflete-se em
todos os nichos, ocupa os espaços, todos os espaços disponí­
veis, oferece-se impudicamente à compra a um preço módico: a
inação - e metamorfoseia-se em aparência de movimento e de
vida multifacética. A esta insinuante metamorfose do Mesmo
em infinita In diferenciação, a esta inércia dispersiva podería­
mos, na esteira deste aluno de Levinas, denominar Derrota.
* * *
No livro de Hans Magnus Enzensberger de título Medio­
cridade e loucura e outros ensaios ( 1995), aparece um ensaio
brilhante que empresta o nome à obra: ((Mediocridade e lou­
cura: uma proposta conciliatórià: Tratando nominalmente da
sociedade alemã contemporânea, o conteúdo do texto, fiel à
sua época, derrama-se naturalmente para fora de quaisquer
fronteiras políticas e penetra em uma esfera global de valida­
de, tangenciando o núcleo de todo um modelo contemporâ­
neo de existência, toda uma Weltanschauung que - assumindo
embora muitas nuances particulares - reivindica pelo menos
26
tanta abrangência mundial quanto a ideologia da informação
ilimitada. Trata-se de uma conformação particular de existên­
cia, um modus vivendi massivamente coletivo que traduz todo
um Zeitgeist, um Espírito do(s) Tempo(s) que se estabelece
como o resultado de um desencanto profundo para com a su­
gestão de uma existência apaixonada, desencanto esse alimen­
tado - literalmente - por uma cultura da superabundância de
coisas, imagens, cores e estímulos. Ocorre a crença no feérico,
desde que este seja suficientemente moderado para não em­
bargar os apetites nem correr o improvável risco de acutilar
alguma consciência ainda não suficientemente amortecida.
É o contraponto existencial daquilo que chamamos em ou­
tras oportunidades uma cultura de "meios-tons intelectuais"
(Souza, 1 996, p. 1 0 1 ) ; embora essencialmente violenta, estabe­
lece continuamente uma situação de vácuo entre sua realidade
profunda e o jogo de imagens a que se entrega continuamente,
sugerindo assim a inexistência de tensões ou conflitos ou, pelo
menos, aureolando-os com a eterna ameaça de transgressão
de margens de razoabilidade muito claras, embora não explí­
citas. É este vácuo o habitat próprio de grandes massas bem
alimentadas da sociedade pós-industrial e de camadas privile­
giadas de países pobres. É este, também, o alvo da pena privi­
legiada de Enzensberger.
O termo ((nós': despido de impulsos teleológicos, traduz
antes de tudo um statu quo: "Quando digo 'nós', estou me re­
ferindo à nossa civilização, ou seja, à 'sociedade desenvolvida,
pós-industrial e de informação': nomes curiosos que demos
a nós mesmos. Eles revelam menos as limitações dos termos
que as tortuosas frases do embaraço" (Enzensberger, 1 995, p.
142) - pois a ninguém é dado, na amálgama inqiferenciada em
que se condensam os instáveis blocos sociais contemporâneos,
distinguir com clareza as individualidades ativas em meio às
infinitas sobreposições de aparências e imagens virtualizadas.
Neste contexto, as opiniões sociais e políticas assumem a con­
dição de inofensividade - ((Como já disse o poeta, diquerda e
27
esreita tlocam-se com faciridade. Isto é válido também nesse
contexto. Por exemplo, qual é a situação em relação ao ho­
mem das massas?" (Enzensberger, 1995, p. 144)4 essa estra­
nha criatura execrada pela tradição e, não obstante, multiplica­
da infinitamente em legião no indiferentismo pós-moderno? A
despeito de todas as profecias e de todos os temores, as massas
nunca conseguiram se ver a si mesmas como atores de algum
tipo: "manipuladas por forças sinistras, as massas trabalha­
doras se transformaram num bando de idiotas consumistas"
(Enzensberger, 1 995, p. 144), totalmente indiferentes aos
-
[ .. ] filósofos da imbecilidade da moda (que) com uma perseve­
.
rança que seria digna de algo melhor, (continuaram) ano após ano
proclamando a morte do indivíduo ou, para usar o jargão atual,
a ''morte do sujeito" [como se a expressão ideológica de limites
muito claros do agir viesse de ((lugar nenhum': e não de alguém ou
de grupos que os dizem com uma clareza mais do que suficiente
para ser entendida- R.T.S.]. Com o tempo, isso resultou numa
estranha concordância por parte dos teóricos de direita e de es­
querda, com uma única diferença: os tradicionalistas se especiali­
zaram em mugir lamentações, ao passo que os reformadores cul­
tivavam um quê de zombaria que foi crescendo até se transformar
num urro de triunfo [ ... ] Enquanto os marxistas ortodoxos ficaram
decepcionados com as massas [ ... ] os pós-estruturalistas e outros
pós-funcionários da teoria davam a impressão de sentirem uma
enorme satisfação com o fato de o importuno sujeito finalmen­
te ter sumido. A capitulação deve ser um verdadeiro prazer, mas
somente para aquele que se considera seu profeta (Enzensberger,
1995, p. 144-145).
Todos ingênuos: os fatos precipitam-se a uma velocidade
que não conseguem acompanhar. Há uma Razão, que repousa
exatamente na anjibologia dessa palavra. A essência da ques­
� ão: os fenômenos não são o que parecem; como a eloquente
4
28
O trocadilho inspira-se na frase original de Ernst JANDL: "manche meinen/lechts
und rinks/kann man nicht/velwechsern/werch ein illtum!" (Cf. Enzensberger,
1995, p. 165).
mão visível do mágico que executa sua magia, não servem senão
pára distrair a atenção de seu movimento interno real. A dis­
cussão acaba por se confundir com seu conteúdo; o que pode
ser mais estéril e maçante - ou masoquisticamente gratificante
- do que bebericar intelectualmente conceitos insossos e com
eles elucubrar teorias mirabolantes, cuja funcionalidade con­
siste em, ardilosamente, ofuscar o concreto? E não obstante, a
isso se dedicam compulsivamente os apóstolos da indiferença
- os funcionários das teorias da "razoabilidade, -, na esperan­
ça que a rotação de seus cérebros possa acabar emprestando
realidade à fugacidade das belas ilusões. Talvez em nenhum
outro momento da história do pensamento do ocidente, sua
forma pensante e seu conteúdo ilusório tenham se acoplado de
maneira tão cabal: é improvável que se possa flagrar, em algum
período detectável da história, uma tal horda de ideólogos tra­
vestidos de intelectuais, revestindo sua racionalidade com as co­
res hegemônicas oferecidas a preços modestos em cada esquina.
Mas eis que aparece o inusitado sob a forma da verdadei­
ra essência das massas, aqui intercambiável com a verdadeira
essência do indiferentismo, expresso sob a forma de uma me­
lancólica falência da teorização:
Os indivíduos que elas [as teorias, R.T.S.] tanto se esforçam para
suprimir as ignoram totalmente. Apática como é, a maioria silen­
ciosa continua a imaginar que as pessoas que a compõem, todas e
cada uma por si, são sempre elas mesmas. Elas simplesmente não
querem acreditar que se transformaram em zumbis, marionetes
ou fantasmas [ . ] Uma ingratidão digna de nota! Uma surdez es­
tranha! (Enzensberger, 1 995, p. 145).
.
.
Autoviolência mas, acima de tudo, um fato real - tão real
que se teve de sofrer uma espécie de reorganização concep­
tual, à qual com alegria ora nos entregamos: "Esta sociedade
é medíocre [ ... ] esta constatação tem algo de redentor [ .. ].
Finalmente existe uma correspondência entre o conceito
.
29
e a aparência [ .. ]" (Enzensberger, 1995, p. 149). O caso agudo
da Alemanha parece retomar continuamente este jargão, não
obstante todo o ranço classificatório que se lhe possa atribuir: é
como se a sociedade não suportasse transbordar dessa moldura.
.
A educação e a cultura, com ou sem aspas, estão acessíveis a quase
todos, mas o ingresso nessas esferas é voluntário; quem não quer
se envolver com essas coisas pode muito bem viver sem elas, uma
opção feita com prazer por milhões de pessoas( ... ] Desempenhos
extraordinários, seja na natação ou na física dos corpos sólidos,
são permitidos, mas poucos estão ansiosos por imitá-los. A prin­
cipal função das "celebridades" não é a de estabelecer um parâ­
metro qualquer; o que importa é seu valor em termos de diversão
(Enzensberger, 1 995, p. 152-15 3).
Ocorreu a grande "Disseminação': oferece-se à observa­
ção uma infinita variedade de manifestações, todas mais ou
menos contidas em limites mais que razoáveis: ((No lugar do
caminhante solitário ou do idiota da aldeia, do excêntrico ou
do esquisito, surge agora o dissidente médio que, em meio a
milhões como ele, já deixou de chamar a atenção [ ... ] O médio
não é apenas um postulado de lazer, mas a chave do sucesso"
(Enzensberger, 1995, p. 155) - em um verdadeiro "paradoxo
lógico: a mediocridade exagerada, a normalidade hiperbólica"
(Enzensberger, 1995, p. 156). A flutuação do sentido. É apenas
porque o sentido real da Violência do presente é extremamente
sólido, que os intelectuais embasbacados pelo hedonismo esté­
tico podem se dar ao luxo de cultivar sua absoluta inutilidade
enquanto intelectuais: um jogo de compensações.
Não importa quantos milhões sejam gastos- está cada vez mais
difícil encontrar alguém para desempenhar o papel principal de
gênio. No seu lugar surge a estrela, o profissional, ou seja, aquele
que consegue fornecer mercadorias medíocres em grande es­
cala. Andy Warhol tornou-se o ícone desse modo de produção
(Enzensberger, 1 995, p. 1 60).
30
Em uma tal massividade, a ninguém é permitido inquie­
tar-se em sã consciência: apenas a consciência insana como
a das ondas terroristas na Alemanha de 1977 pode sugerir a
intrusão, no conjunto da massa compacta, da loucura extrava­
gante. É extravagante tudo o que não encontra meramente em
-
-
si as razões de sua existência, bem como o que não aceita como
inevitável a congênita moderação dessas razões. Mas até ali se
estabelece, em uma sociedade a tal ponto supermoderna, uma
estranha complementaridade, a suprema capitulação:
A mediocridade e a loucura se relacionam de modo complemen­
tar; sua aparente oposição dissimula uma concordância profun­
damente enraizada. Não será possível encontrar qualquer espaço
social fora desse emaranhado. Num equilíbrio mais ou menos pre­
cário, em padrões mais ou menos variáveis, esse entrelaçamento
paradoxal ocorre em cada um de nós. A República da Mediocri­
dade não tem uma opinião muito boa de si: estranhamente sa­
tisfeita e loucamente normal, seu único problema é não estar à
vontade consigo mesma (Enzensberger, 1995, p. 1 65).
A sinceridade é envolta pelo jogo de espelhos; a radicali­
dade das causas, quando percebe, já não é mais do que vestí­
gio de si mesma refletido na grande lógica triunfante. Não há
cidade com pretensões de pós-modernidade que não reserve
aos seus outsiders uma pequena praça confortável; ali podem
chocar as consciências o quanto quiserem: permanecerão ab­
solutamente inofensivos à marcha obsedante do prazer e do
conforto egoístas. Mas que não tentem atirar alguma pedra na
vitrine de uma loja: a ira do Deus absconditus da supermoder­
nidade voltar-se-á imediatamente contra eles, sob a forma de
represália por parte de algum aparelho ideológico do estado.
Consequência mais do que previsível em meio à promessa tola
de imprevisibilidade que cada objeto inútil no balcão de' uma
loja de departamentos parece oferecer a seu feliz comprador.
Eis a essência da questão, aquilo que quer ser repetido
ad nauseam: nem tudo é como parece. No grande e colorido
universo da indiferença, nem tudo é indiferente; em meio às
31
promulgações da inelutável neutralidade, nada é realmente
neutro. A sociedade supermoderna e suas caricaturas terceiro­
-mundistas conservam em si, como seu segredo mais reserva­
do, exatamente a mesma essência dos períodos mais·obscuros
da história. A mediocridade, a infinita disseminação, a massa
(Cf. Souza, 201 0), a multiplicação aparente do vazio, a trans­
formação contínua, maquínica, de qualidade em quantidade,
não é mais do que a ardilosa e supremamente inteligente ex­
pressão que a hegemonia da violência naturalizada - a Tota­
lidade - encontrou para preservar seu verdadeiro núcleo de
olhares indiscretos.
11.
Desconstruir a naturalidade do mundo
Porém, uma tal violência só pode se desenvolver de forma
não auto-destrutiva no interior de algum abrigo, carapaça ou
blindagem que a proteja de suas próprias invectivas. Como
vivemos, talvez mais do que em qualquer outro período da
história, uma época intrinsecamente violenta, a tal ponto que
nos acostumamos a suportar o in-suportável, como se o insu­
portável não o fosse, numa contradição da própria lógica que
sustenta nossos argumentos em todos os níveis ( Cf. Souza,
2010), este abrigo, blindagem ou carapaça tem de ser inusita­
damente firme e bem conectado em seus constitutivos, ou se
desagregaria imediatamente.
A primeira tarefa filosófica é, portanto, ver como se cons­
trói a naturalização de uma tal estrutura de violência - sempre,
de algum modo, negação da alteridade, do diferente, do não­
-idêntico (Cf Souza, 2008)5 - que se esconde por detrás de algum
tipo de aceitabilidade blindada, para que se possa empreender
a desconstrução da lógica que a sustenta, habitando-a e recons5
32
Especialmente o capítulo "Três teses sobre a violência - Violência e Alteridade no
contexto contemporâneo: algumas considerações filosóficas".
truindo continuamente o arcabouço teórico-cognitivo que a
faz perdurar e que se confunde com esta própria perduração.
É de se notar então, previamente, que uma tal natura­
lização da violência pode se constituir, a rigor, apenas atra­
vés de um complexo itinerário, a saber: retirando da vida que
constitui a significação dos acontecimentos sua característica
própria de vida, ou seja, domesticando-a em sua espontanei­
dade temporal. Pois, por «vida", não se entende em nenhuma
tradição filosófica ou científica algo outro que dinamismo vi­
tal. A vida se move, a vida vive - e quando «a vida não vive",
como dizem alguns dos clássicos desse século, é que se chegou
ao momento de contradição máxima - e não uma contradição
dialética, mas paralisada e paralisante: uma espécie de deten­
ção do tempo dos acontecimentos, um respiro - ou estertor
- de Odradek.
Dá-se o caso, portanto, de perguntar se o período em que
estamos não é, como tão bem viu e anteviu Kafka, um período de
grave doença da temporalidade (Cf. Souza, 2000a). Naturalmente,
tudo parece dizer em contra essa análise. Nunca se deram tem­
pos tão frenéticos como os que ora vivemos, tempos da ace­
leração, da virtualidade, do imediatismo, das simultaneidades
que parecem levar a ideia de tempo justamente ao seu limite de
realização. E, não obstante, toda essa procissão imagética pra­
ticamente indescritível pode estar sendo permeada, movimen­
tada, confundida, exatamente pelo seu contrário; não é abso­
lutamente implausível que esta agitação que, por definição,
decorre em superfícies, denuncie o imobilismo pesado e iner­
cial da movimentação espontânea das coisas, tal como, num
dia sem vento, seria a imagem de árvores balançando não por
efeito do vento, mas por algum mecanismo que agitasse seus
troncos. O excesso de movimentação, longe de ser testemunho
de exuberância, trai justamente o abismo de sua ausência. O
que aparenta ser dinamismo não passa de frenetismo obses­
sivo e circular, de irrelevância vital pelo sufocamento daquilo
que faz com que se possa chamar de vivo ao que está vivo, con­
fundindo a simples respiração com o estertor do moribundo.
33
Quando proliferam as dinâmicas virtuais que poupam aos que
se veem o incômodo de se encontrarem, é o caso de se per­
guntar se a própria ideia de encontro ainda é possível. O que
significa: é a vida possível?
A obra de Adorno, em seu conjunto e em suas inumerá­
veis variâncias, consiste essencialmente num imenso e genial
esforço de trazer à luz da racionalidade eticamente investida,
ou seja, eticamente constituída ( Cf. Souza, 2004b ), aqueles ele­
mentos que, submersos por pretensas totalidades de sentido (Cf.
Souza, 1996), permanecem a ponto de sucumbir aos escombros
da proliferação da não-vida. Ou seja, em opor à doença do tem­
po que vivemos uma cura vital: Adorno encontra Kafka.
O fato é que, para Adorno, os mecanismos repressivos da
modificação das condições humanas e sociais existentes - se
é que não podemos, para todos os efeitos do presente estudo,
sinonimizar tais expressões - configuram-se a partir de uma
espessa teia de aceitabilidade que se tece por sobre a superfí­
cie dinâmica dos fatos, de tal forma a, pretensamente, trans­
formar tal dinâmica numa mera expressão estática do desde­
-sempre dado, do meramente existente, do consolidado, do
consolado. Uma espécie de envoltório que tem, exatamente na
sua superficialidade que não resistiria a um embate dialético
verdadeiro, ou seja, não-totalizante, negativo, a sua força: a
promessa de totalidade completa do estabelecido que comporta
a positivação contínua, pela negação da singularidade, do fa­
ticamente já existente.
Pensar filosoficamente consistiria assim, para Adorno,
essencialmente na perfuração aguda - ou na corrosão arguta
- dessa estrutura de proteção das entranhas reais daquilo que
se apresenta como realidade, através da dialética negativa que
explora toda a potência que habita cada conceito que, segundo
ele, no conhecido dito, significa os pensamentos <<que não se
compreendem a si mesmos': Pensamentos que, ao encontrarem
- nos mais variados sentidos deste termo - a literatura kafkia­
na, assumem com plenitude a espantosa dimensão de sua ur­
gência.
·
34
O UNIVERSO DE REFERÊNCIA
- AGONIA DE UMA ERA?
A COMPOSIÇÃO PROFUNDA
DO SÉCULO XX FILOSÓFICO-CULTURAL:
Aproximações6
[. .. ] para a filosofia, a experiência da guerra e da
totalidade não coincidem com a experiência e a
evidência em si mesmas? [ . ]
Emmanuel LEVINAS. Totalité et Infini.
.
.
O nome da história não deve ser pronunciado,
pois aquilo que seria história, o outro, ainda não se iniciou.
Theodor AD ORNO. Anotações sobre Kafka.
Introdução
A necessidade da integração e da síntese deveriam acom­
panhar todo o labor filosófico com pretensão de real penetra­
ção nos estratos culturais sequestrados pela indústria cultural
em suas mais diferentes e, por vezes, disfarçadas modalidades.
6
Este texto retoma, atualiza e amplia o capítulo "O século XX e a desagregação da
totalidade" (Souza, 1996, p. 1 5-29).
35
É somente na síntese intensamente auto-reflexiva que uma
determinada visão de conjunto pode-se dar à compreensão
que supera as contingências lábeis, as perspectivas estreitas, as
precariedades acríticas, as racionalidades ardilosas; é somente
pelo imperativo da responsabilidade inaudita da linguagem
que a irresponsabilidade da disseminação acrítica de pensa­
mentos que cintilam com a duração de fogos de artifício pode
ser depurada e decantada em sua gestação de sentidos canse­
quentes em oposição à lógica do desespero.
Uma tal tarefa sintética supõe, por sua vez, um imenso
esforço integrativo. A compreensão do fato de que, muitas ve­
zes, não é no corpo da filosofia explícita que se pode dar sua
' "hermenêuticà: mas no seu contexto subjacente, no seu "mun­
do" particular, na sua "consciêncià' contemporânea para além
de "escolas'' particulares - ainda que tal pareça evidente a in­
telectuais e filósofos da cultura em geral, a compreensão desde
dado não é, de forma alguma, das mais fáceis.
Neste texto, far-se-á o esforço de tentar captar, por detrás
das obviedades explícitas da transmissão filosófica acadêmi­
ca em suas diversas escolas, elementos que permitam a per­
cepção daquilo que constitui o que se poderia denominar de
alguns dos níveis da composição profunda do século XX - o
século do qual vivemos -, em sua «ancoragem" no passado,
níveis estes imprescindíveis para a compreensão do mundo no
qual não apenas Adorno e Kafka se movem, mas igualmente,
todos nós herdeiros de suas inquietudes.
Por uma história não-fracionada da Filosofia:
o passado do Ocidente
O pensamento filosófico se instaura no mundo ocidental
no momento em que a necessidade da abstração se coloca no
âmbito da potencialidade máxima da linguagem, ou seja, no
36
instante em que a raiz estritamente conceptual da linguagem
''gregà' - o Iogas - perde qualquer ingenuidade pragmática e
se torna alvo de atenção detida em termos de organização e
aplicação teórico-procedimental. É evidente que já o discurso
dos poemas cosmológicos contém a pretensão e o núcleo de
enunciados amplos, de juízos de realidade e de verdade - ou
não haveria sentido em escrevê-los - o que se vai sistemati­
zar a partir do pensamento tradicionalmente concebido como
clássico. A procura obsessiva, a um tempo proto-metafísica e
já metafísica, pela arché da realidade - exercício de poder do
lagos - corresponde a um aprofundamento abstrativo e a uma
sofisticação crescentes, que culminam gloriosamente na ldeia
platônica e na Metafísica aristotélica.
Ao factum do impulso abstrativo cujos testemunhos nos
chegaram - ou seja, o que é, na tradição, considerado e tratado
como sendo o impulso filosófico por excelência - corresponde
um horizonte de sentido, por assim dizer, que permite imbri­
car indelevelmente, já neste estágio, o pensamento e seu con­
texto circundante: o respectivo "mundo humano" (no dizer de
W Luipjpen, em Introdução à fenomenologia existencial, pas­
sim) em que o pensamento que passa à tradição hegemônica
como genuinamente filosófico é gestado, e isso segundo um
modelo compreensivo aqui apresentado de modo dual.
Em primeiro lugar, está-se a traduzir fielmente a raiz do
modus operandi da reflexão e da linguagem ocidentais. Esta
linguagem e este pensamento são eminentemente, como sa­
bemos desde a origem do próprio termo Iogas, classificató­
rios, ''especificadores': determinantes - interessados, acima de
tudo, na referência semântica tão unívoca quanto possível e
na máxima precisão da ideia expressa, a qual não se deveria
poder confundir, a rigor, com nenhuma outra. Este modelo de
linguagem (ao qual se poderia opor, por exemplo, um outro,
no qual a abertura e reabertura de camadas de significação
pertence à própria essência da linguagem, antes do que a pre-
37
cisão e a univocidade da interpretação de certa forma "única"
pela sua pretensão de unicidade) é o modelo básico corrente
da filosofia que nos foi legada e recebida como merecendo o
estatuto que seu nome designa, em suas inúmeras variações, e
da ciência que, a certa altura, dela se separa.
E, em segundo lugar - fato menos erudito e mais impor­
tante - está-se iniciando a tradução de um determinado impul­
so vital do Ocidente, uma potência, algo que habita os tempos
mais remotos da cultura ocidental e que se dissemina crescen­
temente ao longo da história do pensamento e da história da
humanidade: a tendência sempre renovada de reduzir o Dife­
rente ao Mesmo, intelectualmente ou faticamente expresso.7
Um exemplo é aqui necessário:
Para a cultura grega, aquilo que se veio consagrar na his­
tória do pensamento com o nome de Infinito era algo intolerá­
vel (Cf. Souza, 2005). O apeíron (literalmente: i-limitado, entre
outras significações que aqui não abordaremos), ao opor-se de
algum modo a uma pretensão de kosmos (literalmente: ordem
e beleza, igualmente entre outras significações que aqui não
abordaremos), aparecia como repugnante ao intelecto, princí­
pio de caos e de desordem, fundamento inquietante de inde­
terminabilidade. Para um pensamento que iniciava suas pos­
tulações maduras, a um tempo deslumbrado com seu poder de
abrangência e com seus sucessivos acoplamentos à realidade,
que amoldava à sua figuração - que conhecia crescentemente - o
apeíron significava, fundamentalmente, e não obstante Anaxi­
mandro, a ameaça do desconhecido.
Muitos séculos após, o pensamento moderno afirmará
a infinitude do Universo. 8 O que se está dizendo junto a esta
7
8
38
Ver o capítulo "Da neutralização da diferença à dignidade da Alteridade: estações
de uma história multicentenárià' (Souza, 2000b, p. 189-208).
É muito interessante observar o sentido extraordinário da ousadia intelectual que
subjaz a esta postulação. Enquanto até Copérnico o mundo era finito, embora im­
mensum, Nicolau de Cusa constata a impossibilidade de determinar os limites do
mundo, e Giordano Bruno afirma a infinitude do mundo de forma inédita, e com
suficiente paixão para, entre outras, morrer por ela (Cf. Koyré, 1987, p. 39 e 47).
afirmação? Simplesmente, que de alguma forma também o in­
telecto é infinito, ou não poderia afirmar a infinitude de algo.9
A distância que medeia entre a aparente timidez original
grega e a ousadia moderna é a tradução do impulso original
do espírito ocidental em processo de trofismo: a redução do
des-conhecido ao conhecido, do diferente que se torna uma
espécie entre outras espécies: modelo que, ínsito à origem, cla­
ro na Modernidade, aponta para uma determinada direção do
futuro. A História do Ocidente tem consistido, em suas linhas
mais amplas, na história dos processos utilizados para neutra­
lizar o poder desagregador do Diferente; e a História da Filo­
sofia ocidental tem sido, quase sempre, a maneira de favorecer
e legitimar intelectualmente esta busca da neutralização.10 A
esta busca de neutralização chamamos totalização, e à cons­
trução dialética, imanente e com pretensão de auto-compre­
ensão e auto-legitimação - em que convergem os resultados
deste esforço de totalização, temos chamado Totalidade. 11
Assim, o não-fracionamento da compreensão do passa­
do filosófico do Ocidente permite a percepção de uma linha
de desenvolvimento extremamente clara: a que conduz, em
um paralelismo que supera realmente qualquer distinção aca­
dêmica entre teoria e prática, de um impulso original à preÉ muito sugestivo que o mesmo pensamento que afirma com inaudita potência a
infinitude do mundo seja o mesmo que, rememorando "Solamos & Pythagoras':
faça $CU o pensamento famoso do "nada de novo sob o sol" (Cf. Bruno, 1 984, p.
XLVIII, especialmente o autógrafo: ''Quid est quod est? Ipsum quod fuit. Quid est
quod fuit? Ipsum quod est. Nihil sub sole novum").
10 É inviável, nas limitações deste texto, estudar detidamente os argumentos a fa­
vor desta tese; temos feito tal em vários de nossos trabalhos, principalmente O
9
Infinito para além do infinito - Estudo sobre a questão
filosófica de Infinito de
Emmanuel Levinas e seu sentido para o pensamento contemporâneo. Porto Alegre:
PUCRS. Dissertação de Mestrado. 1991 e na primeira parte de Wenn das Unen d­
liche in die Welt des Subjekts und der Geschichte einfiillt - Ein mctaphiinomenolo­
Emmanuel Levinas. Freiburg i.
B. Tese de Doutorado. 1994.
Um trabalho pouco conhecido de Levinas, o verbete da Encyclopédie Universel­
le "Totalité et Totalisation" (Paris, l973ss, Vol. XVI, p. 192-194), apresenta este
conceito de forma particularmente aguda.
gischer Versuch über das ethische Unendliche bei
11
39
tensão de sua realização em um contexto hegeliano ou nietzs­
cheano. Todas as distinções teóricas entre a teoria e a prática
são secundárias ante a originariedade dos fatos determinantes
da história ocidental: o exercício concreto da totalização e
sua correspondente legitimação filosófica. Não se trata de ne­
nhum jogo de conceitos, mas do grande jogo da realidade, tal
como determinado pelas ''forças de determinação" maduras
do espírito ocidental, que atingem sua plena potência e·spe­
cialmente a partir da modernidade. Afora isto, e com exceções
raras e marcantes, o que se tem na história ocidental, seja em
suas' dimensões factuais, sejam em suas dimensões reflexivas
como história da cultura ou da filosofia, até pelo menos bem
avançado o século XIX, são episódios mais ou menos signifi­
cativos para este grande movimento, claramente hegemônico,
de totalização. Este é o passado com o qual a filosofia tem de
conviver, sua história e, de uma ou de outra forma, o peso com
que se terá de ver a filosofia contemporânea nesses séculos XX
e XXI que não são senão herdeiros desse passado e trazem
definitivamente à luz os seus frutos.
Por uma história heterodoxa da Filosofia: o século XX
Poucos momentos da história ocidental apresentam um
tal acúmulo de fatos significativos como a transição entre os
séculos XIX e XX transição esta que se dá completamente,
ao nosso ver apenas ao fim da segunda guerra mundial. 1 2 Esta
-
12
40
Entre as inúmeras obras de cunho histórico e de grande interesse sobre este periodo,
encontram-se entre as filosoficamente mais significativas: JANIK, A.; TOULMIN,
S. A Viena de Wittgenstein (1991); GAY, Peter. A cultura de Weimar (em que
pese a precariedade da tradução) (2002); KONDER, Leandro. História do Fas­
cismo ( 1 979); SCHORSKE, Carl. Viena .fin-de-siecle - política e cultura ( 1 988);
RICHARD, Lionel (Org.) Berlim, 1919-1 933 - a encarnação extrema da moder­
nidade ( 1 993); SANTNER, Eric L. A Alemanha de Schreber - a paranóia à luz de
Freud - Kajka - Foucault - Canetti - Benjamin { 1 997), etc.
transição se inicia na flexibilização de uma série de parâme­
tros culturais, a partir de meados do século XIX.
Na ciência matemática, por exemplo, a geometria euclidia­
na, vigente como única durante muitos séculos, perde seu posto
absoluto desde as descobertas de Riemann e Lobatchewski; os
números transfinitos de Cantor a um tempo ampliam e re-pro­
blematizam a noção de número. A física acelera seus avanços
que culminarão na superação da teoria atomística clássica pela
física quântica e da ampliação do universo newtoniana pe­
las descobertas einsteinianas. Nunca na história, como neste
momento, revoluções científicas (no sentido de Kuhn) se im­
bricaram de forma tão densa, a ponto de impedirem a visão
da unidade: apenas o movimento parecia ser visível. Tanto no
macrocosmo galáctico como no microcosmo subatômico as
verdades lógicas da tradição - inclusive de lógicas não-dualistas
- são incisivamente relativizadas, sem esperanças de concilia­
ção com o bem-ordenado mundo do passado. Na indefinição
entre onda e partícula estava muito mais do que umá querela
científica parcial: a própria noção de ciência, tal como a tradi­
ção a ditava, está também sendo colocada em questão.
O darwinismo questiona implicitamente o posto privi­
legiado do sujeito pensante na ordem da evolução - como o
fizeram espacialmente, no início da era moderna, as desco­
bertas copernicanas - e, isto, apesar da insuficiência óbvia do
conceito de ciência que celeremente se deslocou para as bases
teóricas do evolucionismo (embora tal tenha obviamente a
ver muito mais com Haeckel ou Spencer do que com Darwin
em sua reconhecida prudência de generalizações).13 Está-se
às voltas, �qui, com a relativização de algumas caras balizas
metafísicas da ocidentalidade, embora, muito provavelmente,
não tanto aquelas que se julgaram então atacadas - como cer­
tos dogmas eclesiásticos - mas, sim, a capacidade de transpo13
Ver a crítica de Bergson à concepção rígida de evolução, na Introdução de A
evolução criadora onde critica, paralelamente, a noção de ciência do século
XIX em sua rigidez anacrônica.
-
41
sição intelecto-realidade, ou seja, finalmente, a capacidade de
representação de um mundo, 14 um certo otimismo racionali­
zante, que só iria ruir completamente nas cinzas da Segunda
Guerra Mundial.
A psicanálise, por sua vez, relativiza o domínio consciente
dos atos humanos; suas descobertas, em verdade, são por de­
mais significativas para permanecerem circunscritas ao modelo
de ciência utilizado por Freud. As sistematizações freudianas,
assim, acabam por contribuir para a própria implosão episte­
mológica então em curso. Para além da clínica e das individua­
!idades, a própria cultura torna-se passível de um procedimen­
to psicanalisante, e não apenas segundo o modelo freudiano.
No domínio das artes, os cânones estéticos mais ou me­
nos hegemônicos do passado dão lugar, em um processo lento,
porém constante, à variedade contemporânea de escolas, es­
tilos e concepções. Não é por acaso que, na virada do século,
proliferam com tal vitalidade os movimentos que acabam por
colocar em questão a própria noção de arte - e, tanto nas ar­
tes plásticas (com o abstracionismo e o cubismo, por exem­
pio, mas não somente: também no expressionismo) quanto na
música (com o serialismo, o dodecafonismo, o concretismo
de n1eados deste século e a música aleatória - e até mesmo, a
despeito de Adorno, em certos aspectos do neoclassicismo) e
em outras expressões artísticas, percebe-se a tendência a uma
crescente objetivação das formas e materiais artísticos, uma
autonomia da criação, que faz com que qualquer classificação
soe falsa. Como classificar propriamente a obra de Franz Marc
ou Kirchner, Otto Dix ou Grosz, Munch ou Max Ernst, Klee
ou Kandinski com seus ''pontos" geradores de vida, ou como
enquadrar artificialmente em um universo de sentido pré­
-explicativo a Guernica ou as Figuras na praia de Picasso? Da
mesma forma, onde se situa propriamente o pós-romantismo
carregado de Pfizner ou Reger, testemunhas do ocaso de um
mundo, apesar das intenções dos autores? A diluição da tona14
42
Ver o capítulo "Status quaestionis" em Souza, 2008.
lidade - expressão musical do sujeito moderno, que advém
com Palestrina e chega a seu crepúsculo através da arte tão di­
ferente entre si de Mahler e Debussy - significa muito mais do
que apenas interessa aos músicos: significa a terminalidade de
todo um universo de sentido. Tal remete, no fundo, à questão
da decadência de cânones e padrões: à decadência da socieda­
de, no seio da qual, desde há algum tempo de forma aguda,
latejava a degradação. Na literatura, o exemplo de Kafka é sufi­
ciente para a percepção da fragmentação de um mundo - tan­
to quanto em Joyce ou Proust - fragmentação que chegará aos
cumes artísticos na Montanha Mágica de Thomas Mann, con­
trapartida intelectual dos Buddenbrooks, enquanto seu irmão
Heinrich colocava a nu alguns elementos menos desejáveis da
sociedade bismarkiana no notável Der Untertan.
Na política europeia, a tradição ao período neocolonial
não se dava sem exacerbações colonialistas em seus restaura­
cionismos desvairados - veja-se o exemplo da Bélgica, as atro­
cidades do Congo e o famoso dito de seu imperador Leopoldo:
"não existem nações pequenas, existem mentalidades taca­
nhas': O recrudescimento vigoroso do conservadorismo, por
cujas veias corre o "novo" sangue do racismo e da intolerância,
dos medos ocultos e manifestos, é provocado por movimentos
libertários, como as abortadas revoluções de 1 905 na Rússia
e 1 9 1 8 na Alemanha. O fato é que o século XX se desvela,
realmente, apenas na Primeira Guerra Mundial. Conflito de
interesses há longo tempo gestado, a conflagração exporá a
verdadeira face do mundo contemporâneo. Nunca o imperia­
lismo foi, a um tempo, tão conservador e tão violento: por isto,
a guerra foi mundial.
Mas é na Segunda Guerra Mundial que o mundo tão lon­
gamente gestado revelará sua verdadeira face. Culminância ló­
gica dos Totalitarismos, a Guerra é também a culminância da
lógica do Ocidente. O que é o Nazismo: a menos hipócrita das
doutrinas, ao afirmar que o Ser é o Mesmo, o Bom, a Totali­
dade, enquanto o que a isto não pertence, o Não-ser, o Outro,
43
o Diferente, é ou deve ser Nada. É apenas no Nazismo - no
momento da violência institucionalizada e da aniquilação per­
feitamente planejada, racional, iluminada, do Diferente - que a
Totalidade ocidental pode finalmente encontrar seus verdadei­
ros impulsos constitutivos, aqueles que, em Heráclito, se davam
no combate e na guerra e, em Parmênides, definiam de uma
vez para sempre que o ser é e o não-ser não é. Na Shoah, como
na Bomba Atômica, o ser foi e o não-ser não foi: pertencem
ambos, grande extermínio e bomba exterminadora, ao mesmo
lado, embora uma certa história que privilegia as contingên­
das geopolíticas tente ensinar o contrário. A grande Razão que
culmina na mítica realização, simultaneamente absolutamente
abstrata e absolutamente concreta, "monumento máximo de
cultura que se mostra monumento máximo de barbárie": dois
lados de uma mesma moeda totalizante, dois momentos do
metabolismo de um mesmo e único modelo trófico hegemôni­
co de um determinado espírito e de uma forma de compreen­
der o mundo e o universo como "gigantescos campos de caça':
O contexto da filosofia
Com o Idealismo absoluto - especialmente com Hegel a Totalidade se auto-compreende e se auto-legitima de forma
acabada. A dialética é seu motor e sua vida, arte acabada de
transmutação do Diferente no Mesmo (Cf. Souza, 2005). Com
Nietzsche, e por trás de todas as suas nuances interpretativas,
a totalidade festeja a si mesma em seu futuro ainda não-reali­
zado, sem meias-palavras ou hesitações estratégicas: ali, o bom
é o forte, e a realidade deve ser a realidade do forte.15 O século
15
44
Ver o capítulo "Nietzsche e a festa da Totalidade" (Souza, 1996). É esta percep­
ção de não-hipocrisia que levará Adorno e Horkheimer a afirmar preferirem 'as
filosofias sem compaixão" às "filosofias dos lacaios morais da burguesia" (Adorno;
Horkheimer, 1 97 1 ).
século de Otimismo oficialmente iniciado em 1 789, dá
completude ao grande arco espiritual do Ocidente. Mas já en­
tão as provocações de Marx, Schopenhauer, Kierkegaard - e
também, certamente, do último Schelling - deveriam ter dado
ainda mais a pensar do que então se percebeu.
A inauguração do novo século é cercada por uma frag­
mentação de pensamento que sugere uma grave desagregação
- crise que traz aos espíritos realmente sensíveis, antes de
mais nada, inquietude.
Todos os filósofos da época percebem uma atmosfera de
desconforto, de perigo, de desinstalação. As direções a seguir
são geralmente duas: ou uma certa "arqueologia restauradorà'
- Husserl e Heidegger16 - ou a proposição de alternativas di­
versas. Husserl julga perceber na insuficiência de radicalida­
de do Cogito cartesiano a raiz do grande desvio cultural que
culminará na decadência. Sua obra é também uma tentativa
nostálgica e preocupada de retomada dos parâmetros da mo­
dernidade sobre bases de maior consistência. Esperança na
correção de rumos da stultifera navis na qual se havia trans­
formado o Ocidente culto e civilizado. Heidegger, por sua vez,
pretende retornar às nascentes do Ocidente, para corrigir e
evitar os desvios causados pelo esquecimento do Ser. É prova­
velmente o primeiro filósofo a compreender a grande história
do pensamento em suas conexões internas. Sua hermenêutica
existencial, por seu lado, desnuda a facticidade do finito no
pólo de percepção possível da Totalidade: o Dasein, doravante
condenado, enquanto mônada, à percepção e ao assumir de
sua própria indigência. A precariedade do Dasein é a preca­
XIX,
-
riedade do pólo de referência da Totalidade ocidental e, por
extensão, é a marca indelével da precariedade desta Totalidade
mesma. (É, por outro lado, extremamente interessante obser­
var a ressonância da consciência da finitude em dois grandes
pensadores extremamente diversos: Heidegger e Rosenzweig.
16
Ver o capítulo "Husserl e Heidegger - motivações e arqueo-logias" (Souza, 1998).
45
Para Heidegger, a finitude é o fato radicalmente terminal, mo­
mento de completação autofágica da Totalidade do Dasein, exis­
tencial intrínseco e imanente. Para Rosenzweig, a morte é o
que impede a Totalidade de chegar à sua completaçao, aquilo
que a confronta com o que, em sentido mais radical possível e
levando em conta todas as suas potências, não é ela mesma. 1 7
A finitude é o fim da filosofia, o fim da "determinação de ser':
Estas diferenças entre os pensadores significam, evidentemente,
muito mais do que distinções acadêmicas).
As proposições alternativas, por sua vez, sem renegar, a
rigor, o passado, se dirigem à raiz da decadência para tentar
fundamentalmente superá-la. (Isto não significa, obviamente,
que todos os autores importantes da época tivessem alguma
inclinação "utópicà: embora muitos a tivessem; significa, antes,
que o sentido geral do filosofar se transloca de forma muito in­
cisiva da construção sistemática, categoria! ou conceptual para
a crítica do sistema, do conceito, da linguagem e da filosofia
mesma). O seu movente geral, em um tempo de poucas espe­
ranças, é o futuro, ou que se puder dele salvar - mesmo que
isto não esteja explícito em suas obras.
Wittgenstein desloca para a questão dos enunciados e
da linguagem em geral o pólo crítico do pensamento. A ideia
do "calar-se ao não poder sobre algo falar", o princípio dos
jogos de linguagem e a percepção da ética como não-dizível
apontam para algumas das insuficiências desveladas nos oti­
mismos sistemáticos e nos construtos bem-acabados; reivin­
dicam prudência no trato da realidade. Lukács intenta, em sua
obra madura, o compartilhamento da verdade ontológica para
além de um foco de sentido, no processo de desdobramento
ontológico em camadas com propriedades e particularidades
não-intercambiáveis, em última análise não-interpenetrantes
nem inter-substituíveis, dadas no múltiplo meta-conceptual:
17
46
"Vom Tode, von der Furcht des Todes, hebt alies Erkennen des All an. Die Angst
des Irdischen abzuwerfen, den Tod seinen Giftstachel, dem Hades seinen Pest­
hauch zu nehmen, des vermisst sich die Philosophie" (Rosenzweig, 1996, p. 3).
tentativa de re-colocação das concretudes mediatizantes na
lógica do ser em ex-planação. Buber expressa a esperança no al­
çar da comunhão como categoria filosófica. Provindo de uma
outra tradição, procura introduzir na obviedade filosófica oci­
dental, no modelo tão bem traduzido pelo Descartes ao pé
da lareira, modelo per definitionem solipsista e egologista à
Husserl, a não-obviedade de sua constituição comunitária,
ou a possibilidade da constituição da verdade como questão a
envolver, no mínimo, mais do que um ator.18 Esperança vã de
que o espírito de comunidade reenvie a racionalidade a seus
limites congênitos?
Bergson desvela a rigidez dos esquemas normais de pen­
sarnento - esboça mesmo uma "crítica da razão rígida" - e pro­
põe o filosofar enquanto "inversão da ordem natural do pen­
sarnento", na intuição objetivante que procura reaproximar
os conceitos da vida desde dentro, desde seus impulsos pré­
-racionais, para além dos esquemas pesados e que, em última
análise, chegam sempre tarde demais em relação às realidades
intuídas (Cf. Souza, 2004b). Bloch trabalha uma intuição úni­
ca, dos dezoito aos noventa e dois anos de idade: aquela que
aponta a densidade ontológica não na sincronia do presen­
te, na tautologia do resolvido no ser paralisado, mas, sim, na
aproximação da realidade à sua própria densidade, no Noch­
-nicht, no Ainda-não corretivo de cada momento em vias de
fechamento. No fora-do-tempo e fora-de-lugar - no utópico
- está a realização que a totalização do presente nega à reali­
dade: pulsão viva do futuro que a racionalidade do presente
não pode compreender. Bachelard revisita a Epistemologia e a
"contamina" com estranhas imponderabilidades; poetiza indi_
18
Nem a concepção pré-socrática-heideggeriana de verdade como Aletheia, nem
a formulação aristotélica da verdade como "adaequatio rei et intellectus': neces­
sitam, a rigor, de mais de um participante pensante para se darem; apenas na
concepção hebraica de verdade como "Emunah': como confiança temporal na ex­
pressão da realidade a outrem, é necessário mais do que um interlocutor para que
se dê a verdade: fundamental questão que envolve uma outra Weltanschauung, a
expressão de um outro núcleo ético-mítico no sentido de Dussel (1969).
47
retamente, ao fim de seu percurso, a ciência. À continuidade
do Todo auto-resolvido, propõe a descontinuidade das provas
da realidade, a que somente uma "razão surrear' pode fazer
justiça. Rompimento com a razão auto-compreensiva por um
pensamento que procura o Outro para além do Mesmo?
Scheler intenta fenomenologicamente 'solidificar" ou
perceber a solidez - (de) realidades outras que aquelas a que
normalmente se atribui peso e solidez: valores e atribuições
normalmente percebidos como acessórios da essência. Algo
mais se reapropria de seu valor intrínseco, ou à realidade
pertence algo mais do que o dado na obviedade da ontologia
clássica. A pessoa como ens amans, a vida como ars amatoria:
traição da fixidez conceptual na qual o único valor real é o ser
definido em si mesmo? Traição do ser?
Ortega y Gasset de certo modo inaugura a fenomenologia
existencial ao precisar a inseparabilidade entre um Eu e as cir­
cunstâncias nas quais este Eu se dá; Mareei reconduz a filosofia
à questão da profundidade do que pergunta pela profundida­
de da realidade, à questão da indefinição e indefinibilidade ra­
dicais da existência em um universo pretensamente de-finido.
Sartre se vê às voltas com a "ambiguidade da percepção, do
diferente; na flutuação entre o Ser e o Nada, se imiscui a coisa
sem nome, a Heteronomia, raiz da náusea.19 Merleau-Ponty ex­
põe as ilusões da ideia de uma consciência não "ancoradá' em
uma substancialidade que constitui esta consciência mesma e
que lhe é, por conseguinte, prévia. Camus eleva ao nível de
categoria filosófica aquilo contra o que a filosofia mais tinha
lutado, em termos conceptuais, até então: o absurdo, que é o
mesmo absurdo que advém da combinação entre a desorienta­
ção e a falência real de uma confiança, na totalidade da guerra.
Por sua vez, a Escola de Frankfurt intenta, desde motiva­
ções outras que as normais da tradição, criticar a totalidade da
construção ocidental em seus constitutivos mais profundos e
-
19
48
Ver nosso texto "Sartre e a ambigüidade da percepção" (Souza, 1996).
em sua estruturação.20 Adorno expressa, com Benjamin, con­
tra Hegel, todo o espírito que pretende a recolocação do centro
de decisão filosófica, o deslocamento do sentido totalizador
dos sistemas para os fragmentos do que sobrou da constru­
ção teórica ou real da Totalidade: "verdadeiro é o que não é o
todo", e a verdade do pensamento não está nele mesmo, mas
no que ele ((em si não compreende".
Poderíamos - deveríamos - seguir muito além neste rol
de inovações filosóficas inquietantes, culminando na atualida­
de de Rosenzweig, Derrida, Agamben; tal o fizemos, aliás, em
muitos outros trabalhos; para o momento, portanto, basta­
-nos, a título de exemplo, o já exposto. Pois o que nos importa
é chegar ao ponto de ruptura, de irrupção da Alteridade, aquele
ponto em que, segundo Kafka, '(já não há qualquer possibili­
dade de retorno".
A ruptura
-
condições
A cultura ocidental no século XX, desde seus centros de
definição, está assim às voltas, em suas múltiplas facetas, não
com uma questão de razão, mas com um fato dado, a preci­
pitação do processo de rompimento e desagregação de uma
Totalidade fática e de sentido. O século XX é o século no qual
a Totalidade e os otimismos do passado se puderam e se po­
dem realmente perceber no espelho da contemporaneidade,
nas cinzas e fumaça de Auschwitz - espantoso processo de
Aufhebung material do estranho -, na aniquilação perfeita
do diferente em Hiroshima, na preservação espantosamente
violenta do Mesmo contra as ameaças externas nos porões da
história em geral e das pequenas histórias em particular. A
20
Ver o texto "A Escola de Frankfurt e o contexto de seu surgimento: inquietações
éticas no coração dos dilemas de uma época': neste livro.
49
estas alturas, não se pode mais julgar que tais fatos sejam meros
acidentes de percurso de um trofismo sadio: eles são, em verdade,
expressões do real metabolismo interno da Totalidade, ou do que
tem restado dela. Trata-se do doloroso testemunho do fracasso
de uma promessa. A transformação do mundo em um "gigan­
tesco juízo analítico'' e do universo em um "gigantesco campo
de caçà' (Adorno; Horkheimer, 1971, p. 285) prossegue célere,
apesar da desagregação, na edificação da metafísica da acu­
mulação e do consumo infinitos - consequência lógica da pro­
mulgação do universo infinito sustentada teoricamente pelas
-
ideologias do "fim da histórià'21 e dos liberalismos redentores.
O esgotamento ético-ecológico óbvio de tais modelos, no
máximo a médio prazo - e as ideias de "desenvolvimento sus­
tentável" representam a aceitação tácita deste fato até mesmo
pelos centros de decisão -, conduz necessariamente a um es­
tágio de ruptura.
Conclusões: a ruptura - o futuro
Assim como as flores dirigem sua corola para
o sol, o passado, graças a um misterioso
heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol
que se levanta no céu da história.
Walter BENJAMIN. Obras Escolhidas 22
À desagregação interna de todo um sistema de sentido e de
valores, necessita corresponder um modelo de inteligibilidade
para além da subserviência à tradição em falência. É necessá­
rio levar às últimas consequências o processo de desconst.rução
21
22
50
Ver nosso texto "O fi m da história, a totalidade rediviva e a metafísica do consu­
mo infinito" (Souza, 1996, p. 1 0 1 - 1 16).
Trata-se da 4a Tese "Sobre o conceito de Histórià' ( 1 987, p. 224). Esta intuição
benjaminiana se apresenta, no contexto da hermenêutica crítica e ampla do sé­
culo XX, como a mãe de todas as intuições utópicas.
da Totalidade, para que a reconstrução da história verdadeira,
aquela citável a cada passo e, portanto, julgável em seu verda­
deiro sentido (Cf. Benjamin, 1987, p. 223), possa ser iniciada.
A intuição de fundo de Rosenzweig, a que percebe no século
XX a oportunidade final da re-situação da filosofia, significa o
penetrar fundo no ser da contemporaneidade, perceber o sen­
tido real de ser, o que verdadeiramente se dá na ontologia, nos
moldes dos pouco ingênuos Heráclito e Parmênides. Somente
no século XX e em sua herança gigantesca é possível uma tal
abrangência de conjunto e a percepção de sua história real,
para além das palavras bem-construídas.
O sentido real do ser deixado ((a si mesmo", em seu trofis­
mo natural, somente pode ser percebido de forma contrastiva,
no momento em que a Ontologia é destituída de seu sentido
absoluto de prima philosophia. A transmutação levinasiana
de valores - a Ética como filosofia primeira - é a condição
para a percepção de um futuro que traga em si mais do que o
resultado da pulverização de um universo de sentido. É ape­
nas ali, neste novo modelo de inteligibilidade do universo, da
realidade, baseado na singularidade e na não-quantificação
da qualidade, que se pode realmente iniciar a construção do
sentido não-totalizante, da história como um drama ético que
se desenrola no gigantesco palco universal no qual o mundo
e todas as suas virtualidades se constitui temporalmente. A fi­
losofia, em fins e início de século e de milênio, só tem sentido
enquanto crítica da Totalidade que se exerce em nome da crí­
tica da violência contra o singular. Pois - e bem o aprendemos
no rastro de Adorno e Kafka - o passado habita na tautologia;
é apenas no futuro, para além do tempo paralisado em sua
mera representação, que habita qualquer esperança.
51
A ESCOLA DE FRANKFURT
E O CONTEXTO DE SEU SURGIMENTO:
Inquietações éticas no coração
dos dilemas de uma época23
Introdução
Só há uma expressão para a
verdade: o pensamento que
nega a injustiça
Theodor ADORNO e
Max HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento.
Pensar em penetrar no corpo filosófica e historicamente di­
nâmico da Escola de Frankfurt para tentar dela extrair um deter­
minado ccsentido" unívoco apresenta-se, não apenas pela infinita
complexidade da tarefa, um verdadeiro contra-senso. Poucos
grupos de pensadores foram tão extraordinariamente variados,
ativos, inquietos como aquele formado por intelectuais que de­
cidem, na década de 1920, se reunir para empreender uma crí23
Este capítulo amplia, atualiza e modifica substancialmente o texto original
"Estética e restos da história" de nosso livro Totalidade & Desagregação ( 1 996,
p. 31 -64).
53
tica radical da sociedade sua contemporânea,24 via exame dos
pressupostos e condições objetivas desta sociedade. Jovens de
variada procedência intelectual,25 porém com a mesma inquie­
tação perante o statu quo social e cultural, decidem conjugar
seus esforços intelectuais em um bloco crítico mais ou menos
homogêneo, que se vai construindo ao longo de muitos anos de
profícua atividade a partir da sustentação material oferecida por
Felix Weil, e isso em um momento e lugar críticos, no sentido de
decisivo, da cultura do século XX.26 Sua produção é tão rica e va­
riada como o mundo que os autores vivenciam em seus consti­
tutivos profundos, na particularidade de seus locais epistemoló­
gicos de origem e na universalidade de suas preocupações; cada
um elabora discurso particular, consoante sua personalidade
própria e suas peculiaridades de formação e interesse, e no con­
junto destes discursos pontificam os mais variados campos da
atividade pensante, que logo iriam transcender completamente
a ideia de um centro de estudos marxistas.
A difícil penetração neste universo crítico pode ser, contu­
do, reorganizada no sentido da investigação mais precisa de suas
motivações originais, ou seja, uma instância da qual a própria
discursividade irá haurir seu vigor filosófico-cultural. A nossa
preocupação neste breve estudo será evidenciar a linha mestra
24
25
26
54
"[ . . . ] Um grupo de homens, interessados em teoria social e formados em escolas
diferentes, agruparam-se em torno à convicção de que a formulação do negativo
na época de transição era mais importante do que as carreiras acadêmicas. O que
os uniu foi a aproximação crítica da sociedade existente" (Horkheimer, 1974, p.
9). Também ver "Seus membros estavam interessados na integração de filosofia
e análise social" (Jay, 1974, p. 85).
Neste texto meramente introdutório a um determinado espírito motívador do
pensamento serão enfocados autores também como Benjamin e outros, mais ou
menos afastados do núcleo central da Escola de Frankfurt, devido à convergên­
cia de seus interesses críticos e à importância que tiveram não só para a vida da
Escola e da sociedade, como também para a filosofia contemporânea em geral.
Para uma historiação bastante exaustiva da Escola é indispensável Rolf WIGGER­
SHAUS, A Escola de Frankfurt (2000), e também Susan BUCK-MORSS, Origen
de la dialéctica negativa (ênfase em Adorno e Benjamin) ( 1 98 1), além do já clás­
sico livro de Martin JAY, La imaginación dialéctíca (1974), são obras importan c
tes. Basear-nos-emos, nesse texto, especialmente em análises pontuais dos dois
últimos autores.
de motivação destes pensadores originais - tanto no sentido de
"fundadores'' como de "heterodoxos, ou simpatizantes -, aquilo
que faz com que o resultado de seus esforços tenha sido e per­
manecido absolutamente pertinente e seu legado extremamente
importante para a filosofia, e isso ainda hoje, quase um século
após a fundação do Institutfür Sozialforschung. Pois, ao contrá­
rio do que se quis acreditar em alguns momentos do final do sé­
culo XX, muitas das categorias gestadas no seio da reflexão desse
variado grupo de pensadores permanece não apenas atual, mas
torna -se até mesmo imprescindível para a compreensão desse
início de século e de milênio em termos geopolíticos e culturais
tanto amplos, no ocorrer do atual estágio da globalização, quanto
específicos para o próprio pensamento de campos diversos da
compreensão das errâncias culturais que nos devastam em seu
frenetismo quantificador. Expressões tais como <<indústria cultu­
ral" são mais atuais do que nunca em seu significado interpreta­
tivo para os fenômenos que vivenciamos diuturnamente; quem
não compreende isso, provavelmente não chega a compreender
os reais impasses do mundo em que vive (Cf. Duarte, 2003).
A motivação radical da E scola de Frankfurt
Assim, não obstante toda a complexidade histórica do mo­
mento de nascimento desse singular movimento cultural, não é
muito difícil, a partir de uma leitura atenta de textos representa­
tivos dos principais pensadores da Escola e dos itinerários que
se configuraram historicamente aos seus membros individual­
mente considerados e ao grupo como um todo - ainda que clas­
sificações sejam sempre problemáticas neste quesito -, perceber
claramente o delineamento de uma estrutura de motivação de
referência de origem que assegure a consistência destas pesqui-
55
sas: sua motivação radical. 27 Pois, cada um a seu modo, cada pen­
sador deixa transparecer ao leitor atento o que realmente constitui
a medula e o foco gerador de sua particular discursividade, ou
seja, o que dá sentido aos seus esforços discursivos, sua motiva­
ção básica. Trata-se de uma inquietação ética radical, tão profunda
quanto descontente com as reais condições do universo que a sen­
sibilidade particular deste grupo de pensadores conseguia captar.
Esta "sensibilidade filosófica: que lhes permite a percepção do real
estado de uma sociedade já naquele ponto insuportavelmente do­
ente, antes que estes sintomas se transformassem, por si mesmos,
em consenso "externo'' com a nova guerra,28 foi-se traduzindo, ao
longo dos anos, de acordo com o particular talento de cada um,
em suas respectivas obras. O que nunca deixou de aparecer foi
uma sólida ancoragem de suas reflexões naquilo que, propria­
mente e em última análise, justificava os esforços despedidos, e
que seria a única coisa a dar verdadeiro sentido a estes esforços:
uma penetração tão profunda nas mazelas da modernidade que
esta seria como que ((desnudada'' em seus mais íntimos recônditos,
abrindo-se finalmente, por entre seus espaços dilacerados, o espa­
ço de uma dignidade humana não violentada. É este, simplesmen­
te, o sentido original da crítica frankfurtiana. Aos fundadores da
27
Historiadores e analistas da história da Escola costumam muitas vezes descurar
o fato de que, sem a percepção e o cuidado de manter continuamente à vista essa
estrutura motivacional básica, à qual tudo o demais é subordinado, as contradi­
ções entre os membros e as categorias que utilizam para interpretar o mundo,
as aparentemente arbitrárias escolhas de referências teóricas, que se modificam
constantemente ao longo do tempo segundo autor e lugar, enfim, as idiossincra­
sias evidentes e aparentemente inexplicáveis do movimento - que não cansam
de denunciar - são simplesmente ínínteligíveis. A pouca clareza por parte dos
analistas dessa motivação básica aqui apresentada faz com que quaisquer análi­
ses de cunho exclusivamente epistemológico acabem por passar bastante longe
do alvo, não obstante serem motivadas exatamente pela obsessão por clareza. A
questão profunda da Escola de Frankfurt não é o conhecimento, no sentido de que
não é ao melhor ou mais aprimorado conhecimento da realidade que seus esforços
se dirigem, mas àquilo a que o melhor ou mais aprimorado conhecimento pode
ou não conduzir. Um exemplo claro de tal linha interpretativa "epistemológica"
é sinteticamente apresentada no prefácio da tradutora francesa de A Escola de
Frankfurt, de RolfWIGGERSHAUS e Lyliane DEROCHE-GURCEL, por sua vez
28
56
igualmente traduzida e incluída na tradução brasileira da obra.
"Em síntese, havia consenso universal acerca da ruína da cultura burguesa"
(Buck-Morss, 1981, p. 26).
Escola - como a toda uma geração de jovens inquietos da época, e
de todas as épocas - lhes era insuportável o purofato da ocorrência
da injustiça, 29 como também o era o refúgio do pensamento em
um corpo sofismático, idealista ou de outro teor, que acabasse por
justificar, de alguma forma, o ilegitimável. O ponto de partida da
crítica é, portanto, a absoluta insatisfação dos pensadores para com
um estado de coisas dado; a esta motivação ética radical segue-se a
articulação crítica de um pensamento que se volta, desde sempre,
para fora de si mesmo, ou seja, não se resolve em si mesmo, "não
se compreende a si mesmo"; alimenta -se da multifacetada empiria
circundante, da exuberância de fatos que se dão à observação ar­
guta de inteligências não apenas diferenciadas, mas bem formadas
em termos da cultura clássica, e esta é sua verdadeira razão de ser.
A seguir, serão examinadas algumas das mais representati­
vas proposições filosóficas destes autores, e também de outros que
com suas motivações comungavam. Será dada especial atenção,
neste momento, aos pressupostos categoriais gerais sobre os quais
a crítica se erige e se constitui em um corpo de ideias coerente.
A compreensão da Dialética do Esclarecimento
Se eu tivesse conhecido a tempo a Escola de
Frankfurt, muito trabalho me teria sido poupado.
Eu não teria dito tantas tolices, teria evitado muitos
rodeios tentando não me enganar, quando a Escola
de Frankfurt já havia aberto o caminho.
Michel FOUCAULT
A obra conjunta de Adorno e Horkheimer Dialética do
Esclarecimento constitui-se em uma das elaborações filosófi­
cas centrais do século XX, imprescindível não somente à sua
29
Adorno sobre Horkheimer: "[ ... ] em você a questão básica foi a indignação
frente à injustiçà' (apud Buck-Morss, 1 9 8 1 , p. 147). Ainda: '�dorno incorporou
cedo a preocupação de Horkheimer pelas injustiças do sofrimento humano"
(Buck-Morss, 1981, p. 149).
57
compreensão, mas à compreensão da história que nele cul­
mina. Em poucos outros momentos, como ali, a indignação
ética, temperada pela atmosfera de decadência de pós-guerra
e por uma singularíssima capacidade de penetração ·crítica, se
articula de modo filosoficamente tão luminoso, ao retirar do
indeterminado da cultura (ainda) contemporânea vários de
seus mais elementares constitutivos, expondo-os á análise de
quem souber - ou suportar - lê-los.
O que é o "Esclarecimento, para Horkheimer e Adorno?
Esta é uma síntese do que dizem estes autores a respeito, em
suas próprias palavras:
No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclare­
cimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens
do medo e investi-los na posição de senhores [ ... ] seu programa
era o desencantamento do mundo [ ... ] . O que os homens querem
aprender da Natureza é como empregá-la para dominar comple­
tamente a ela e aos homens [ ...] . O que não se submete ao critério
da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito [ . . . ] . O escla­
recimento é totalitário [ . .. ] e só reconhece como ser e acontecer
o que se deixa captar pela unidade ( ... ] ele torna o heterogêneo
comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas ( ... ] . ((Unidade"
continua a ser a divisa, de Parmênides a Russel30 [ ] o ser se re­
solve no logos [ . .. ] o despertar do sujeito tem por preço o reco­
nhecimento do poder como o princípio de todas as relações [ .. . ] à
identidade do espírito [ . .. ] sucumbem as múltiplas qualidades [ . . .]
as múltiplas afinidades entre os entes são recalcadas pela única
•••
30
58
Percebe-se aqui uma meridiana consciência da insuficiência da totalidade filosófica
para o mundo que de certa forma já não se entende, e não é pequeno mérito (nem
exclusivo destes pensadores) perceber a conexão clara "de Parmênides a Russel"
(poderia ser lido como o "de Jônia a Jena': de Rosenzweig); evidencia-se aqui
uma grande lucidez filosófica, que ousa pensar adiante das palavras da própria
filosofia, tal como foi elaborada, e chegar à sua essência dinâmica. Esta lucidez é
que permite que questões do tipo: "mas não foi a época do Esclarecimento que
permitiu a liberdade de que hoje gozamos, até de atacar o Esclarecimento?': pois
mostra que esta fase obedece a uma continuidade maior, onde o permitir da
liberdade é possibilitar a dinâmica da totalidade; em outras palavras, o que se
fazia antes sem liberdade passa a ser feito agora com as vantagens da liberdade
conquistada, a facilitação, por exemplo, da acumulação e a justificação da
ideologia do infinito progresso.
relação entre o sujeito doador de sentido e o objeto sem sentido,
entre o significado racional e o portador ocasional de significado
[ ... ] a insossa sabedoria para a qual não há nada de novo sob o sol
[ . .. ] o que seria diferente é igualado [ ... ] o poder mítico elimina o
incomensurável [ ...]. O "eu, [ . . . ] não demorou a identificar a ver­
dade em geral com o pensamento ordenado r ( ... ] nada mais pode
ficar de fora, porque a simples idéia do "forà' é a verdadeira fonte
de angústia ( ... ] o mundo como um gigantesco juízo analítico [ . .. ]
(Adorno; Horkheimer, 1985, p. 1 9ss).31
Este longo excerto é suficientemente claro desde si mes­
mo. Talvez pela primeira vez na história da filosofia - e já bem
avançado o século XX - há uma explicitação a tal ponto clara
da incompatibilidade radical entre ((Totalidade" - a dinâmica
31
Também das páginas referidas da mesma obra: " [ . .. ] destruídas as distinções,
o mundo é submetido ao domínio dos homens [ . . . ] a natureza desqualificada
torna-se a matéria caótica para uma simples classificação, e o eu todo poderoso
torna-se o mero ter, a identidade abstrata [ ... ] . A 'confiança inabalável na possi­
bilidade de dominar o mundo', que Freud anacronicamente atribui à magia, só
vem corresponder a uma dominação realista do mundo graças a uma ciência
mais astuciosa que a magia. Para substituir as práticas localizadas do curandeiro
pela técnica industrial foi preciso, primeiro, que os pensamentos se tornassem
autônomos em face dos objetos, como ocorre no ego aj u stado à realidade [ ... ]
até mesmo aquilo que não se deixa compreender, a indissolubilidade e a irra­
cionalidade, é cercado por teoremas matemáticos [ . .. ] a fatalidade com que os
tempos pré-históricos sancionavam a morte ininteligível passa a caracterizar a
realidade integralmente inteligível [ . . . ] os homens aguardam que este mundo
sem saída seja incendiado por uma totalidade que eles próprios constituem e
sobre a qual nada podem [ .. . ] com a difusão da economia mercantil burguesa, o
horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos
raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie [ . .. ] os atrasados não
representam meramente a inverdade. O espírito torna-se de fato o aparelho da
dominação e do auto-domínio, como sempre havia suposto erradamente a filo­
sofia burguesa [ ... ] é da imaturidade dos dominados que se nutre a hipermatu­
ridade da sociedade. Quanto mais complicada e refinada a aparelhagem social,
econômica e científica, para cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo
sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências de que ele é capaz
[ . .. ] o pensamento é negado pelos próprios dominadores como mera ideologia.
Nenhum indivíduo é capaz de penetrar a floresta de cliques e instituições que,
dos mais altos níveis de comando da economia até as últimas gangues profissio­
nais, zelam pela permanência ilimitada do status quo [ ... ] a forma burguesa de
esclarecimento [ .. . ] jamais foi imune à tentação de confundir a liberdade com a
busca de auto-conservação':
59
efetiva de domínio de todo o "externo': de redução do Outro
ao Mesmo, do múltiplo ao uno, que se anuncia já nos alvores
do pensamento ocidentaP2 - e '1\.lteridade" - a "diferençà' que
resiste, enquanto tal e desde sua própria dignidade, à sua ab­
sorção em um corpo unitário de realidade portadora e doadora
de sentido. A filiação "hegelianà' dos autores é tumultuada pela
provocação daquilo que, irredutível às soluções da subjetividade
filosoficamente onipotente e do desenvolvimento da totalidade,
muito importa do ponto de vista ético. Há aqui uma clara rup­
tura com qualquer tipo de Aufhebung de índole idealista. É, ain­
da, talvez por vez primeira na história do pensamento filosófico
ocidental que intelectuais tomam com tal clareza um determi­
nado partido da realidade, nítida e irrecorrivelmente o partido
do pequeno e do fraco, do extra-sistemático como tal, e que vale
e chama exatamente desta forma, e não enquanto elemento a ser
com-preendido por uma Totalidade de sentido, por uma espé­
cie de polarização em torno a um "eu" cujo conteúdo é dado
por sua capacidade de Sinngebung ao que não é ele mesmo. 33
Com a acentuação retórica desses dados, os autores penetram
. em uma das estruturas últimas constituintes da contemporaneidade, em seu cerne e na fonte dinâmica de sua a um tempo
antiquíssima e sempre renovada energia.34 As análises críticas
subsequentes destes e de outros pensadores ligados à escola vão
sempre mais somando dados interpretativos que permitem a
32
33
Ver o capítulo "O contexto - agonia de uma era? A composição profunda do
século XX filosófico: aproximações" deste livro.
"A frase de Espinosa: 'c onatus sese conservandi primum et unicum virtutis est
fundamentum', contém a verdadeira máxima de toda a civilização ocidental,
onde vêm se aquietar as diferenças religiosas e filosóficas da burguesia. O eu
que, após o extermínio metódico de todos os vestígios naturais como algo de
mitológico, não queria mais ser corpo, nem sangue, nem alma e nem mesmo um
eu natural, constitui, sublimado num sujeito transcendental ou lógico, o ponto
de referência da razão, a instância legisladora da ação [ . J o instinto enquanto tal
seria tão mítico quanto a superstição; servir a um Deus não postulado pelo eu,
tão insano quanto o alcoolismo [ . ]" (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 4 1 ) .
"Durante milênios, os homens sonharam com o domínio ilimitado da natureza e
com a transformação do cosmo num infinito campo de caçà' (Adorno; Horkheimer,
1 985, p. 231).
.
.
34
60
.
.
cada passo uma sólida desmontagem de um mundo de relações
aparentemente "contestatórias': mas, na verdade, grotescamente
ideologizadas, porque extremamente hábil em substituir cele­
remente a qualidade pela quantidade (Cf. Souza, 201 O). Com a
análise do sentido profundo do Esclarecimento em sua comple­
xa dialética relativamente ao seu Outro (e de suas metamorfoses
ao longo da história), chega-se à possibilidade de uma crítica
extremamente arguta da sociedade, não em termos cronológi­
cos, porém ontológicos, no sentido em que se pode partir para a
edificação de um corpo crítico coerente que não traia, por sua
filiação profunda, seus fundamentos e conquistas - mas que
se espraie fecundamente ao longo de sua própria formulação
conceitual. Aí se embasam, ao menos em intenção, as análises
empíricas do Instituto, já em sua fase norte-americana (estudos
sobre a família e a autoridade, etc.); as análises sociológicas de
Marcuse; as psicológicas-psicanalíticas de Fromm (apesar de
tudo sempre coerente com as motivações originais da Esco­
la); as análises estéticas de Adorno - e também aquilo que se
constitui em um corpo de ideias em princípio avesso a qualquer
caracterização: as análises filosófico-culturais de Benjamin. Há
um elo que une indissoluvelmente toda esta variedade de dife­
rentes pensamentos, elo este que se divide em, pelo menos, dois
momentos igualmente relevantes: em primeiro lugar, tem-se a
já referida "indignação" ética perante o statu quo, "mola mestrà'
das pesquisas empreendidas, não como mero ideário teórico ou
carta de princípios, mas como trabalho dos acontecimentos; e,
por outro lado, a captação e organização de alguns elementos
conceituais fundamentais que, difusos embora, vão-se manten­
do e dando logicidade aos esforços críticos empreendidos.
A seguir, enfocaremos alguns destes elementos, via aná­
lise de alguns dos principais trabalhos de membros da Escola
e pensadores afins. 35
35
Para uma análise específica das diversas seções constituintes da obra (Cf. Tiburi;
Duarte, 2009)
61
Adorno e a negatividade do total
Para (Adorno), [ .. ] a filosofia da história de uma civi­
lização fracassada tornava-se a base de uma paradoxal
teoria multiforme do não-idêntico, em outras palavras,
das formas nas quais, de uma maneira paradoxal, o não
idêntico encontrava seu lugar. Adorno representava um
pensamento simultaneamente micrológico e messiânico ...
Rolf, WIGGERSHAUS. A Escola de Frankfurt.
.
A figura de Adorno é, fora de dúvida, um dos principais
esteios de sustentação e desenvolvimento da Escola de Frankfurt.
Adorno concentrou sua capacidade intelectual, a partir das mo­
tivações já referidas, ao redor de diversos pontos nodais de
interligação e conjugação dos mais variados campos do co­
nhecimento. Sua habilidade em penetrar as mais complexas
teias sócio-culturais é ímpar. Suas obras se constituem, de um
modo geral, na negação da linearidade discursiva; são, antes,
mosaicos extremamente burilados que espelham, também por
sua estrutura, aquilo a que fazem referência. Em seus livros, os
mais variados dados do pensamento crítico convivem não-li­
nearmente. Para compreender as linhas gerais do pensamen­
to deste autor, faz-se mister que o leitor aceite a ocorrência
da "asperezà' e do atrito filosófico - expressões palpáveis de
uma escrita dialética - como constituintes da filosofia mes­
ma. Em suma, pode-se dizer que o pensamento adorniano é
tudo menos leve e fácil, por uma simples razão: nada tinha
de leve e fácil o mundo no qual vivia o pensador. Trata-se de
um intrincado microcosmo filosófico infinitamente variado,
elaborado em estilo singular, e que não se deixa diminuir por
alguma redução de seus tecidos e de sua dinâmica a qualquer
instância ideal. Pode-se dizer que a própria vida se faz ali
presente, simplesmente porque em cada momento "Adorno
pretendia demonstrar [ ... ] a preeminência da realidade sobre
62
o pensamento'' (Buck-Morss, 198 1 , p. 1 6). Este é o movente
fundamental do pensamento de Adorno: o pensamento que
não esquece seus próprios condicionamentos, de suas origens
e motivações originais, quase obsessivamente fixado em seus
próprios limites, e que não suporta nenhum tipo de sublima­
ção hipócrita em qualquer nível.
Todavia, neste mundo complexo, dá-se com clareza a
chave para a compreensão de alguns de seus constitutivos fun­
damentais em termos de intuições traduzidas em conceitos,
mesmo que provisórios e precários em sua definitiva e pro­
gramática não-congruência com a realidade estrita. Trata-se
daquilo que Adorno percebe em sua análise, daquilo com o
que sua sensibilidade filosófica o confronta, e que sua obra,
em sua intrincação constelacional, mostra que foi percebido
- aquilo que em realidade faz com que seu pensamento se ar­
ticule como o faz. A percepção de tais elementos, porém, de­
manda um certo desprendimento filosófico e uma capacidade
de absorção do provisório e daquilo que, em Adorno, ocupa
o lugar da centralidade gerativa do pensamento: a consciência
da diferença como constituinte mais real da realidade, ou seja,
da potência crítica da negatividade, do Não-idêntico. Desse
modo, deve-se deixar que sua própria obra se mostre desde
seus referenciais mais íntimos, muito embora muitas vezes
não explícitos, pelo menos não em linguagem filosófica tra­
dicional. É preciso, para uma mínima compreensão, que se
perceba onde cada expressão, pensamento, intuição, efetiva­
mente se apóia; de onde retira sua peculiar energia. Em ou­
tros termos: é necessária a consciência dessa categoria-chave
- não-identidade - sempre na proximidade imediata de cada
reflexão em particular, pois é desde aí que se pode pretender
ver a riqueza da linguagem que se cria e recria a si mesma, em
si e para além de si. 36
36
Ver p capítulo "Adorno e a razão do Não-idêntico" (Souza, 2004b).
63
Este movente original, este eixo condutor das análises,
apresenta também a dimensão da repugnância pelo total.
A obra de Adorno é uma tentativa de caracterizar à Totali­
dade seus próprios limites, não ao lhe contrapor uma outra
totalidade, mas ao corroer filosoficamente, inelutavelmente,
suas raízes.
A referência crítica de Adorno:
concepção de história e dialética
Nenhuma história universal leva da selvageria ao
humanismo, mas há uma história universal que leva
da funda à bomba atômica.
Theodor ADORNO
O agudo e conhecido dito de Adorno que encabeça esta
seção é, em nosso entender, bastante esclarecedor no que diz
respeito ao que pensava o filósofo sobre qualquer otimismo de
índole historidsta. 37 O tempo simplesmente não era para oti­
mismo.38 Quando Adorno dizia que "a história está na verda­
de, a verdade não está na história" ( apud Buck-Morss, 1981, p.
108) superava totalmente a ideia de uma totalidade histórica
teleologicamente redentora. 39 É neste sentido que é válido di­
zer, por exemplo, que "a teoria crítica da escola [ . . . ] tanto deu
37
38
39
64
"Um certo ceticismo em relação a todas as interpretações da história como pro­
gresso foi um ponto de acordo fundamental entre Adorno e seus colegas intelec­
tuais" (Buck-Morss, 1 98 1 , p. 109).
"Visto que a história enquanto correlato de uma teoria unitária, como algo de
construtível, não é o bom, mas justamente o horror" (Adorno; Horkheimer,
1985, p. 209).
"Para Adorno [ ... ] não havia 'lei' dialética alguma da história ou da natureza que
funcionasse independentemente das ações humanas e garantisse o progresso na
direção de uma sociedade racional sem classes" (Buck-Morss, 1981, p. 13). Isto
porque ele, como Horkheimer, "[ ... ] se recusou a fazer da dialética um fetiche,
como se fosse um processo objetivo fora do homem" (Jay, 1988).
continuidade como minou sutilmente o marxismo hegeliano
de Lukács e Korscn' (Jay, 1988, p. 1 7).40
Por outro ângulo, pode-se dizer também que o pensa­
mento de Adorno, bem como o de outros membros da Escola,
tinha na dialética sua referência metodológica principal. Mas
é fundamental que se note desde já que, nesta tradição, ins­
creve-se a obra adorniana a partir de parâmetros totalmente
diversos, onde o marxismo não é absolutamente uma cosmo­
logia ou uma explicação suficiente da realidade, mas um itine­
rário interpretativo, do qual o pensamento dialético constitui
a medula.41 Isto porque " [ ... ] a dialética, uma vez limpa do fer­
mento crítico, se presta tanto ao dogmatismo como em outro
tempo a imediatez da intuição intelectual schellinguiana [ .. ] "
(Adorno, 1981. p. 23). Para Adorno, a única "dialética'' que se
poderia considerar como propriamente tal seria aquela aber­
ta, irredutível a uma "resolução" superior, negativa em relação
à positividade da totalidade.
.
A ideia de uma Dialética Negativa
"Es liegt in der Bestimmung negativer Dialektik, dass sie
sich nicht hei sich beruhigt, als wãre sie total; das ist ihre Ge­
stalt von Hoffnung" (Adorno, 2003, p. 398). A dialética ne40
A respeito da crítica de Adorno à teoria de identidade de Hegel, comenta Susan
Buck-Morss que este pensador acreditava, como Benjamin, na "pequena" história,
aquela feita das "sobras" da grande História Universal: "a história não garantia a
identidade entre razão e realidade. A história se desenrolava nos espaços entre
sujeitos e objetos, homens e natureza, cuja não-identidade era precisamente a
força motora da história" ( 1981, p. 109). Pois, contra o espaço sempre "central"
ocupado pelo filósofo tradicional, " [ . . ] a obra de Adorno desenha o incessanll'
peregrinar da consciência desventurada" (Rius, 1985, p. 1 3) .
"A teoria crítica não considerava o marxismo uma cosmologia, e sim como mé­
todo, e o pensamento dialético seria a medula deste método - assim como consi­
derava a dialética uma ferramenta para a análise crítica da sociedade e não para a
construção de um sistema metafísico" (Buck-Morss, S. 1 98 1 , p. 1 1 ) .
.
41
65
gativa, como se percebe, é aquela que não se contenta com
seu íntimo movimento, aquela cuja razão mesma de ser não
está nela própria, mas que se aproxima a cada momento da
não-identidade. 42 A própria ideia de "identidade" é vista por
Adorno como uma aparência a ser desmistificada pela contra­
dição real da realidade - "Der Widerspruch [ . . ] ist Index der
Unwahrheit der Identitãt" (Adorno, 2003, p. 1 7) que não se
deixa enganar pelas "artimanhas" do pensamento que, em sua
dinâmica tautológica, pretende se justificar e, permanecendo
em si, ir mais além de si. 43 Por isso diz Adorno que [ ... ] die
Entzauberung des Begriffs ist das Gegengift der Philosophie"
(Adorno, 2003, p. 24). A filosofia dos conceitos não provados
pela realidade é a suprema ideologização da atividade filo sófi­
ca, e a saída para um tal impasse não poderá ser senão a ((pre­
ponderância" absoluta do que, pela objetividade, acaba por
realmente resistir a qualquer tipo de violentação conceitual;
permanece como objeto em relação àquilo que a ele se refere e
que lhe é, por conseguinte, secundário.44 Um dos dados mais
característicos dos escritos de Adorno é que estes não permi­
tem, realmente, que o pensamento repouse em si mesmo e
muito menos que se contente consigo mesmo. Os "objetos" de
referência do pensamento são os que se vão descobrindo ao
.
-
«
42
43
44
66
"Havia [ ... ] a simpatia de Adorno com relação à não-identidade como um fim em
si mesmo" (Jay, 1988, p. 80). Ainda, "[ ... ] o mecanismo essencial do método críti­
co de Adorno é... um processo de dialética sem identidade" (Buck-Morss, 198 1 ,
p . 1 30). O próprio pensador diz: "Dialektik ist das konsequente Bewusstsein von
Nichtidentitat [ ... ] zu ihr treibt den Gedanken seine unvermeidliche Insuffizienz,
seine Schuld an dem, was er denkt" (Adorno, 2003, p. 1 7). Sobre a não aceitação
in toto de totalidades "hermenêuticas" ver Rouanet, 1986, p. 69ss.
"Durch die Formei von der 'Gleichheit mit sich', der reinen Identitat, enthüllt
sich das Wissen des Objekts als Gaukelei, weil dies Wissen gar nicht mehr das
des Objekts ist, sondem die Tautologie einer absolut gesetzen nóesis noéseos"
(Adorno, 2003, p. 163).
"Uma dialética genuinamente negativa reconhece aquilo que Adorno denomina
'preponderância do objeto: irredutível a [ ... ] uma subjetividade ativa" (Jay, 1988.
p. 59). Ainda, "[A dialética de Adorno] [ ... ] é uma dialética materialista, porque
concede prioridade ao objeto" (Rius, 1985, p. 57). Observe-se aqui a boa carac­
terização do "materialismo" de Adorno.
longo da pertinaz procura adorniana de elementos materiali­
zados no discurso, estranhos porém intensamente presentes. 45
Adorno e a Totalidade
Não é difícil inferir, a partir do que foi dito, que Adorno
foi sempre - em princípio e por plena convicção - avesso a
quaisquer concepções de Totalidade legítimas e redentoras.
Para este filósofo, a história sempre foi mais vigorosa que o
historicismo, e a ideia de uma totalização histórica estava, pela
própria história, reduzida à sua original falta de sentido: "esta
visão da história em movimento em direção a uma unidade
sintética, à ressurreição da totalidade perdida, era urn aspec­
to do marxismo de Luckács que Adorno rejeitava categorica­
mente. Em sua conferência inaugural de 193 1 , Die Aktualiti:i.t
der Philosophie, escreveu que o próprio conceito de totalidade
estava irremissivelmente perdido na passagem da história"
(Buck-Morss, 1981, p. 1 07).46 Para Adorno, a totalidade é sim­
plesmente a antítese de uma "humanidade libertadà': "ele in­
sistia que <uma liberdade não pode, de forma alguma, ser uma
totalidade"' (Jay, 1988, p. 9 1 ). Estes trechos são suficientemen­
te eloquentes para dar uma ideia exata do parecer adorniano
com relação às filosofias que têm na Totalidade sua razão de
45
46
"Adorno insistia no poder daqueles fragmentos heterogêneos que se insinuam de
maneira sub-reptícia na rede conceitual, rejeitando toda filosofia da identidade
( ... ]" (Eagleton apud ]ay, 1988, p. 22). Veja-se ainda: '1\dorno sugere uma 'lógica
da deslocação', que se apresenta como uma reabilitação do não-idêntico e do
negativo" (Assoun, 1989, p. 30).
Desde cedo tinha já Adorno uma ideia clara do sentido do heterogêneo para sua
filosofia: "Se a filosofia deve aprender a renunciar à totalidade, tal implica que
deve aprender a se conduzir sem a função simbólica, na qual durante muito
tempo, pelo menos no idealismo - o particular parecia representar o geral j . . . j"
(Adorno, apud Buck-Morss, 1981, p. 1 59). O que Adorno sempre desej o u foi o
"particular" enquanto somente se define por sua particularidade.
-
67
ser - e não é por aí, portanto, que se poderia rotular Adorno
de "idealista'' ou "hegeliano". É apenas em relação à Estética
que o termo "Totalidade" assume, para Adorno, um sentido
de positivação ética.
Adorno e a Estética
"Adorno [ ... ] combinou uma mente filosófica rigorosa
com uma sensibilidade mais estética do que científica" ( Jay,
1988, p. 54) pode-se verificar a procedência desta análise
de Jay a partir de obras como a póstuma Teoria estética, que
deixa entrever a capacidade de ((recepção" estética do autor.47
Na verdade, é pela obra de arte real que o pensador entrevê a
possibilidade alternativa à totalidade dominante, ao "mundo
administrado". No campo estrito da realidade da arte, termos
como "totalidade': "identidade: assumem, como anteriormente
referido, conotação totalmente diversa daquela até agora exami­
nada. O termo "identidade': por exemplo, é usado em sentido
exatamente oposto ao usual na obra adorniana: "a identidade
estética deve defender o não-idêntico que a compulsão à iden­
tidade oprime na realidade" (Adorno, 1988, p. 15). "Identida­
de" equivale aqui a "unidade de sentido':48 Isto porque na arte
se dá verdadeiramente a paz: "o belo na arte é a aparência do
que é verdadeiramente pacífico" (Adorno, 1988, p. 289); por
isso, a arte é fundamentalmente estranha ao mundo: "a estra­
nheza ao mundo é um momento da arte; quem não percebe
a arte como estranha ao mundo de nenhum modo a percebe"
-
47
48
Aliás, uma das maiores dificuldades de quem se aproxima do pensamento de
Adorno é compreender o quanto de estético constitui seu pensamento.
É por isso que Adorno fala em uma "totalidade estética": "A totalidade estética é
a antítese da totalidade não-verdadeira" (Adorno, 1988, p. 320). A negação desta
unidade e autonomia de sentido seria aquilo que se poderia chamar de "obra
medíocre": " [ . ] a obra medíocre sempre se ateve à semelhança com outras, isto
é, no sucedâneo da identidade" ( 1 988, p. 123).
..
68
(Adorno, 1 988, p. 208). A obra de arte, repositório de verdade
em meio ao turbilhão ideológico que banaliza esta categoria,
contradiz verdadeiramente a lógica da totalização, porque é
expressão da verdade do diferente que não se reduz ao "mes­
mo": "só compreende uma obra de arte aquele que a compre­
ende como complexão de verdade" (Adorno, 1988, p. 293). E a
verdade é o que não está dito desde sempre, como algo intempo­
ral ou meramente conceitual: "a ideia de uma obra de arte con­
servadora contém algo de absurdo" (Adorno, 1988, p. 20 1 ); daí
se deduz que, efetivamente, "a missão da arte, hoje, é introduzir
o caos na ordem" (Adorno, 1988, p. 224), porque disso depende
a subsistência do não-idêntico. Afinal, hoje mais do que nunca,
"todas as obras de arte, e a arte em geral, são enigmas; isso desde
sempre irritou a teoria da arte" (Adorno, 1988, p. 140). A arte é
enigma, porque a substância da realidade, diferentemente do que
acredita certo gênero de filosofia analítico-totalizante, permane­
ce estranha à sua violentação em conceitos e teleologias. Arte é
des-ideologização por excelência, por isso é perigosa e precisa ser
domesticada em comportadas salas de concerto ou assépticas ga­
lerias. "A grandeza das obras de arte reside tão-só em seu poder
de permitir que sejam ouvidas as coisas que a ideologia ocultà'
(Adorno apud Jay, 1988, p. 1 39). E são também, de certa forma, a
prova cabal da existência do, para a totalidade violenta, não-existente:
[ ... ] o facto de as obras de arte existirem mostra que o não-ente pode­
ria existir. A realidade (Wirklichkeit) das obras de arte dá testemunho
da possibilidade do possível" (Adorno, 1988, p. 153). Descobre-se
por ela o enigma do próprio ente: "Quanto mais compactamente
os homens cobriam o que é diferente do espírito subjetivo com
a rede de categorias, tanto mais profundamente se desabituaram
da admiração perante este outro e, com familiaridade crescente, se
frustraram de estranheza'' (Adorno, 1 988, p. 147). "As obras de
arte sintetizam momentos incompatíveis, não-idênticos, que
têm entre si pontos de fricção [ . . . ] " (Adorno, 1 988, p. 200) .
Todas as obras de arte " [ ... ] são polêmicas a priorf' (Adorno,
1988, p. 20 1 ), porque sua própria existência é resistência aos
''
69
esforços empreendidos para que se reduza ao silêncio nebu­
loso da ideologia dominante. 49 Para a arte, o diferente não é
mal-vindo: "A unidade estética é a síntese do disperso que ela,
no entanto, conserva como aquilo que é, na sua divergência e
nas suas contradições, e eis porque ela é efetivamente um des­
dobramento da verdade" (Adorno, 1988, p. 165). Mas a arte e o
belo estão hoje em situação de perigo: ((na época atual, a fatali­
dade de toda e qualquer arte é ser contaminada pela inverdade
da totalidade dominadora" (Adorno, 1988, p. 72). O belo lem­
bra a quem o vê aquilo que, apesar de tudo, ainda existe, embora
ameaçado e feio: ''a dor nascida do belo é a nostalgia do que é
interdito ao sujeito pelo bloco subjetivo [ ... r' (Adorno, 1 988, p.
297). Paradoxalmente, o belo enquanto tal não despreza, como
pensavam as correntes estéticas idealistas, o feio enquanto tal50
ao menos se por feio se entende aquilo que "sobrou" ao longo
do altaneiro desfile da grande história. Pois a arte é por essên­
cia viva, e "a sacralidade do vivente [ ... ] reflete-se até mesn1o no
mais feio e disforme" (Adorno, 1993, p. 75); assim, "que seria
-
49
Este é o motivo pelo qual obras ideologicamente comprometidas geralmente
fracassam; negam a sua autonomia, e este servilismo é duramente castigado:
"Pode duvidar-se que as obras de arte se empenhem politicamente l . ] se elas
se esforçam por tal, costumam desaparecer sob seu conceito [ ... ] (o efeito social
da obra) é altamente indireto" (Adorno, 1 988, p. 271). Ademais, e isto é muito
importante, como adverte Jay, "[ ... ) tanto em música como em arte, o realismo
socialista, advertia Adorno, era quase tão reacionário como o objetivismo
neoclássico" (Jay, 1974, p. 302). Em suma, o poder desagregador da arte efetiva­
se para além de toda a manietação que a ele se queira aplicar.
"Se a estética tradicional, incluindo Hegel, sabia celebrar a harmonia do belo
natural, ela projetava a auto-satisfação da dominação sobre o dominado"
(Adorno, 1 988, p. 1 8 1 ) "[ ... ] [Adorno possuía] conduta estética. [Esta tem a
característica da} distância respeito à objetividade, mas já não só à objetividade
externa, e sim, também, àquela que o próprio sujeito havia criado" (Rius, 1 985,
p. 1 5 - o último grifo é nosso). Observe-se o contraste da concepção de estética
adorniana - distanciamento, valorização do objeto estético para além das
determinações do sujeito criador - com o "subjetivismo" estético hegeliano:
"Só a interioridade sem objecto, a subjetividade abstrata se deixa exprimir pelos
sons. Subjetividade abstrata que é um eu na sua simplicidade, a pessoa sem outro
conteúdo que ela mesma. A missão principal da música consiste [ ... ] em fazer
ressoar o eu mais íntimo [ ... ] a sua alma ideal [ . ] O seu conteúdo é o subjetivo
em si [ ... ] é uma comunicação que, em lugar de ter um apoio sólido, é sustentada
apenas pela interioridade [ .. ]" (Hegel, 1964, p. 1 82 - 1 83).
.
50
.
.
70
.
.
da arte enquanto historiografia, se ela se desembaraçasse da
memória do sofrimento acumulador' (Adorno, 1 988, p. 291).
Por isso, não é anti-natural ou anti-artístico, como poderia pa­
recer a estetas que confundem arte com idealização-ideologi­
zação totalizadora, que "atualmente não há nenhuma música
que não tenha em si algo da violência do momento histórico"
(Adorno, 1 974, p. 149).
A arte é, para Adorno, uma instância da verdade que, em
princípio e por definição, se situa para além de toda possibili­
dade da ideologia que a quer manietar (poderíamos acrescen­
tar que é por isso que a música, por exemplo, é cercada geral­
mente de um grande aparato formal, quando de sua execução
pública: esta é uma tentativa de mantê-la dentro dos limites
de uma determinada "aceitabilidade" ideológica). Por isso,
também, a arte só é "interpretável pela lei de seu movimen­
to, não por invariantes" (Adorno, 1988, p. 13). E sua verdade
não advém de um sentido que um sujeito lhe possa atribuir,
pois isso seria sua própria falência: "o conceito de gênio é fal­
so, porque as obras não são criações e os homens criadores"
(Adorno, 1 988, p. 1 94) - a obra aparece, enquanto obra como
autonomia "heterônoma" em relação a quem leva o título de
seu autor: "ao final, o escritor não poderá nem mais habitar
em seu� escritos [ ... ]" (Adorno, 1993, p. 86). Isto porque, para
o frankfurtiano, "a experiência da arte enquanto experiência
de sua verdade ou inverdade é mais do que uma vivência sub­
jetiva: é a irrupção da objetividade na consciência subjetivà'
(Adorno, 1 988, p. 274) alguma coisa chega à consciência
rigorosamente de fora de seus esquemas. Ou a arte é efetiva­
mente "objetiva" em relação ao sujeito, ou não é arte. "Webern
(e nós poderíamos dizer: a imensa maioria dos verdadeiros
artistas contemporâneos) [ ... ] compreendeu a insuficiência do
próprio sujeito" (Adorno, 1 974, p. 92).5l
-
51
Ver ainda a interpretação de Martin Jay: "A música de Schõnberg despreza a
ornamentação falsamente consoladora da arte precedente, para mostrar, despi­
do de tudo, um mundo do qual o calor humano fugira" (Jay, 1988, p. 135).
71
Após séculos de onipotência subjetiva, o sujeito "artísti­
co': pela arte, começa em si mesmo a se dar conta da insufici­
ência de seus esforços no sentido de se fazer o absoluto foco
de verdade referencial, em substituição à "subjetivídade" da
qual extraiu até mesmo seu sentido enquanto sujeito. A pura e
desconhecida "coisa" inclassificada começa a aparecer.
A ressonância da coisa
"A sensibilidade do artista é essencialmente a capacida­
de de proporcionar uma ressonância à coisa, de ver com os
olhos da coisa" (Adorno, 1 988, p. 298). Aquilo que Adorno
afirma com relação ao artista, poderia ser estendido ao filó­
sofo: também este necessita, para Adorno, negar sua condição
de subjetividade doadora de sentido para que a realidade vá
falando desde si mesma, em um processo que não se resolve
no que se poderia chamar uma ''instância superior". A filo­
sofia, para Adorno, é o livre roçar do pensador e do pensado
um no outro, quando "só são verdadeiros os pensamentos que
não se compreendem a si mesmos",52 ou seja, que não se têm
como pólo absoluto de referência da realidade do real, que
não esgotam pretensamente o real em sua identidade con­
ceitual. O verdadeiro enquanto tal pura e simplesmente es­
capa à sua "promulgação': porque preserva, apesar de tudo,
sua "objetividade': O verdadeiro nega (e esta ênfase é muito
importante) , contra Hegel, a totalidade: "O todo é o não-ver­
dadeiro'' (Adorno, 1993, p. 48). Esta é a intuição fundamental
adorniana, que expressa assim, de uma maneira audível à sua
contemporaneidade e ao seu locus sócio-intelectual, a tradu­
ção filosófica da original inquietação ética que compartilhava,
como já dito, com muitos colegas. Isto é o que dá propriedade
52
72
"Wahr sind nur die Gedanken, die sich selber nicht verstehen".
à sua filosofia. Dadas as contingências da tradição filosófica,
da ambiência cultural do pensador, este não poderia radica­
lizar absolutamente esta constatação, e extrair dela todas suas
consequências. Porém emerge em sua filosofia, de maneira
inequívoca, o incisivo clamar daquilo que a sistemas filosóficos
não se reduz - e talvez esteja aí um dos elementos de dificul­
dade maior para a compreensão do pensamento adorniano.
Adorno definitivamente enxergou seu mundo, e percebeu o
que nele não tinha, simplesmente, ex-plicação.
Estranha religiosidade profana
Como as coisas resistem aos olhares ...
Walter BENJAMIN
Aquilo com que Adorno se debatia, a presença da hetero­
nomia, do Não-idêntico, que ele não desejava de nenhuma for­
ma trair e que acabava dando a seus trabalhos sua caracterís­
tica intrincação e densidade, era tratado por Benjamin como
que com a mais absoluta naturalidade. Com a liberdade típica
dos grandes poetas,53 este pensador deixava correr sua pena de
uma tal maneira que as mais complexas circunvoluções erudi­
tas, os mais carregados matizes filosóficos e as trepidações dos
tempos acabavam por se colocar de uma maneira por assim
dizer "fluidà' - e, portanto, aparentemente "fácil" - ao leitor.
Suas afirmações mais inusitadas nunca são chocantes, porque
mantêm um campo próprio de validade onde são absolutamente reais, apesar do que a respeito se possa dizer; os objetos
53
·
"Como aquele que se despede é mais facilmente amado! Porque a chama por
aquele que se distancia queima mais pura, alimentada pela fugitiva tira de pano
que acena do navio ou da janela do trem. O distanciamento penetra como maté­
ria corante naquele que desaparece e o embebe de suave ardor" (Benjamin, 1 987).
73
têm, definitivamente, vida. "O pensamento de Benjamin ( ... ) é
conduzido não somente a despertar a vida congelada nos ob­
jetos petrificados - como na alegoria - mas também a forçar as
coisas viventes a apresentar-se como antigas, <proto:.históricas:
e a liberar abruptamente seu sentido" (Adorno apud Buck­
-Morss, 198 1 , p. 1 29). O espectro do interesse benjaminiano
é o mais variado possível, a negação mesma da compactação
da vida e da cultura em uma totalidade pelo desentranhar,
do corpo da cultura, de seus elementos mais "desprezíveis";
pode-se dizer que "Benjamin [ ... ) se apaixona precisamente
pelo que a cultura tem de fossilizado, de prescrito, de caduco
e até de morto. Quanto mais enigmático [ .. . ] quanto menos
<humano' em sua aparência de pura coisa, mais o objeto cul­
tural seduzirá o crítico [ . . . r (Merquior, 1969, p. 1 04), porque
"os escritos de Benjamin são um ensaio no sentido de fazer
filosoficamente fecundo, mediante enfoques sempre novos, o
não-determinado pelas grandes intenções" (Adorno, 1993, p.
1 52). Em Benjamin, o pensamento se espanta com o que não
é ele mesmo: a obra benjaminiana é a contínua busca de ex­
pressão para este espanto, e esta busca configura, conforme a
possibilidade, um mundo literário ou filosófico. 54 Daí advén1
a ideia de sua famosa "teologia profanà: 55 E é a partir daí que
Benjamin afirma que "a tarefa da futura teoria do conheci­
menta consiste em achar a esfera de neutralidade total em re­
lação aos conceitos de Objeto e Sujeito; em outras palavras,
determinar a esfera original, autônoma, na qual este conceito
de nenhum modo significaria a relação entre entidades me­
tafísicas'' (Benjamin apud Jay, 1974, p. 332, grifo nosso), por�
54
55
74
"Tudo o que Benjamin disse e escreveu soa como se o pensamento recolhesse
as promessas dos contos e livros infantis, em vez de recusá-las com despectiva
maturidade de adulto ( ... ] o que fica desde o princípio recusado em sua topografia
filosófica é a renúncià' (Adorno apud Jay, 1974, p. 296).
Benjamin se inclina àquele materialismo extremo, que converge para a teologia
pelo desenvolvimento de seus próprios pressupostos: "Mit der Theologie kommt
er (o "materialismo") dort überein, wo er am materialistischesten ist. Seine Sehn­
sucht ware die Auferstehung des Fleisches; dem Idealismus, dem Reich des ab­
soluten Geistes, ist sie ganz fremd" (Adorno, 1988, p. 207).
que o conhecimento se dará de uma forma por assim dizer
propriamente ((estética" (em todos os sentidos dessa palavra,
ressaltando sua própria etimologia), via recepção do que se
mostra desde si mesmo.
A aura e seu desaparecimento
aura, então, nos adverte que as
coisas são o que são e não o que
nós [.. ] nos habituamos a pensar
que elas sejam...
Leandro KONDER. Walter Benjamin
A
.
Walter Benjamin esclarece da seguinte forma este con­
ceito tão importante no contexto de sua obra:
Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de
elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa
distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso,
numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou
um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a
aura destas montanhas, deste galho [ ] (Benjamin, 1 987, p. 1 70).
...
As coisas, simplesmente, nos trazem seu tempo e espa­
ço próprios, nos trazem sua realidade com propriedade, se
oferecem desde si mesmas; sua realidade pode, por seu ((apa­
recimento", como que criar um tempo no qual sua realidade
tenha plena evidência. O pólo principal da cognoscibilidade
da coisa não está no sujeito ditador de regras, mas na intimi­
dade da novidade "distante, por mais próxima que ela esteja"
- sua realidade é assim tão real como múltipla em seus focos
de ocorrência que não dependem do aval de uma totalidade
previamente dada para definitivamente existirem. O modelo
cognitivo utilizado por Benjamin para descrever a aura, cor75
retamente percebido, rompe ((desde forà' as cadeias que man­
têm a própria consciência cognoscente aferrada à sua própria
dinâmica tautológica.
O esquema da aura benjaminiana - em seu processo de
percepção, desaparecimento e idiossincrásico luto, tal como
se dá em sua obra - é um dos primeiros momentos realmen­
te não-destrutivos de testemunho da implosão da totalidade
ocidental, implosão cuja percepção ele muito bem herda de
Rosenzweig e se positiva na construção de linguagem em suas
obras finais, especialmente as sintéticas ((Teses" Über den Be­
griffder Geschichte;56 mas é possível que muito tempo se passe
até que se perceba o que isto realmente significa.
A filosofia do pequeno
Benjamin é não apenas um filósofo e um crítico da cul­
tura, especialmente da literatura, mas também um poeta no
melhor sentido do termo, aquele que não exclui a possibilida­
de de ele ser também um rigoroso observador de sua época,
imune às tendências oligopolizadoras de qualquer tipo de his­
toricismo ingênuo. Também ele se deixa, sem medo, ((roçar"
pelo maciço da realidade circundante. Sua vida e sua filosofia
são a expressão do incômodo que este desagradável contato
messiânico porque não suavizado por messianismos (leia-se:
historicismos) totalizantes lhe causava. A matéria, o objeto,
-
-
a realidade, a história não se transmudam em algo mais ima­
teria!, mais apetecível à consciência dos tempos, porque estão
onde a consciência triunfante não chega, ou já deixou para trás
- no pequeno e na sujeira mesma da história, seus ((restos"
(Cf. Souza, in Ruiz, 2009). Os textos benjaminianos mostram
continuamente a eterna novidade do ((ainda não conhecido",
56
76
Para uma análise detalhada das "Teses" ver Souza, 2010.
porque "a faculdade da fantasia é o dom de interpolar no in­
finitamente pequeno, descobrir para cada intensidade, como
extensiva, sua nova plenitude comprimida [ . . ]" (Benjamin,
1987, p. 4 1 ) . A filosofia é, então, "elevadà' ao nível não do puro
conceito, mas da fantasia consciente, e sua tarefa é não ade­
quar o universo a seus esquemas, mas descobrir novos univer­
sos na improbabilidade mesma de suas existências.
É assim, na condição de verdadeiro poeta à procura da
realidade em seu recôndito - que não coincide com os bra­
dos de triunfo da grande história e de seus porta-vozes - que
Benjamin se entrega às coisas mesmas e permite que elas assu­
mam sua identidade e a precedência absoluta em seu discurso
filosófico; na condição de um homem que "esperà' estetica­
mente para então registrar. O discurso benjaminiano se retrai,
e por sua pena pode surgir o que a si mesmo "se considerà'
objetivo; e onde os coadjuvantes são, por exemplo, as crianças,
não contaminadas por nenhum tipo de onipotência subjetiva
que violente definitivamente o que não é elas, para além da
pedagogia do mundo. A criança pode perceber o que se passa
fora dela: "A (criança escondida) está encerrada no mundo da
matéria. Ele se torna descomunalmente claro para ela, chega­
-lhe perto sem fala; assim, somente alguém que é enforcado
toma consciência do que são corda e madeira [ . . ] (Benjamin,
1987a, p. 39-40, grifo nosso). E se ainda pudesse restar alguma
dúvida a respeito do papel atribuído por Benjamin à exterio­
ridade como constituinte fundamental da realidade e da re­
-polarização anti-totalitária efetuada por ele na mais simples
"gnoseologià: este trecho se encarregará de dissipá-la, toman­
do exatamente as crianças como testemunhos:
.
.
''
Elucubrar pedantemente sobre a fabricação de objetos [ . ] que
fossem apropriados às crianças, é tolice [ ] A terra está repleta
dos mais incomparáveis objetos de atenção e exercícios infantis
[ .] as crianças [ ] sentem-se irresistivelmente atraídas pelo resí­
duo que surge da construção [ ] em produtos residuais reconhe­
cem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e
. .
...
..
...
...
77
para elas unicamente. Com isto, as crianças formam para si seu
mundo de coisas [ ] seria preciso ter em mira as normas deste
pequeno mundo de coisas, se se quer criar deliberadamente para
as crianças e não se prefere deixar a atividade própria, com tudo
aquilo que nela é requisito e instrumento, encontrar por si só o
caminho que conduz a elas (Benjamin, 1 987a, p. 19).
...
Os resíduos da construção são os resíduos da história, da
grande História Universal. A fabricação de objetos: a pedante
articulação e rearticulação de conceitos explicativos com pre­
tensão explícita ou implícita de autossuficiência. O rosto que
o mundo volta para elas não é o rosto que só olha para frente; o
filósofo é a criança envolvida no contato com seus detritos. E
o angelus novus, seu atormentado anjo da guarda.
Erich Fromm, psicanálise e rede cultural
Quando Fromm,. membro apenas durante algum tem­
po da Escola, mas que nunca se desviou de suas motivações
básicas, afirma que o "amor fraterno'' - este ideal tão grato à
humanidade - inicia de "fora para dentro" (e não ao contrário
- a partir de um pequeno núcleo, familiar ou outro - como
normalmente se julga) - uma espécie de contraposição à tra­
dição milenar da fi lia - está de fato traduzindo em termos
psicológicos a percepção, compartilhada com os companhei­
ros, de respeito ao que a partir de si somente não se define e
não se sustenta, a saber, uma relação verdadeira, seja em ter­
mos humanos - uma verdadeira "inter-subjetividade" - seja
em termos cognitivos. Está, em suma, traduzindo a crítica à
totalidade vigente desde um parâmetro nuclear, psicologica­
mente definido. Por trás de suas (psico)análises da sociedade
sua contemporânea está assim a consciência de que esta confi,
78
gura um complexo processo de pensamento e totalização, que
se reflete em todos os seus níveis. 57 ((A espécie de 'divisão de
trabalho', como a chama W ]ames, pela qual alguém ama sua
família mas não tem sentimentos pelo 'estranho' é um sinal
de incapacidade básica de amor" (Fromm, 1966, p. 87). Esta
falta de amor que é característica geral de uma sociedade a
um tempo narcisística e autofágica cujas excrescências mais
visíveis são a destrutividade ["a destrutividade é o produto
da vida não vivida" (Fromm, 1981 , p. 149) ] , a ânsia de poder
["a ânsia de poder não se origina da força mas da fraqueza"
(Fromm, 1 98 1 , p. 133)] - da fraqueza de quem só se tem a si
mesmo para se sustentar: os outros são, por definição, inimi­
gos) e o mercantilismo universal, legitimado pela ideologia da
acurhulação infinita: "o homem não só vende mercadorias: ven­
de a si mesmo e considera-se uma mercadorià' (Fromm, 1981,
p. 1 02). Os hotnens se vão transformando em autômatos, 58 "que
não se podem amar; podem trocar seus 'fardos de personali­
dade' e esperar um bom negócio" (Fromm, 1 966, p. 1 1 8). Na
melhor das hipóteses, "forma-se uma aliança de dois contra
o mundo, e este egoísmo a dois é enganosamente tomado por
amor e intimidade" (Fromm, 1966, p. 1 19) - ou seja, nada mais
do que a internalização e reprodução da neurose social solip­
sista, a totalização monádica, raiz de todos os medos e fobias,
pois tudo lhe é estranho, exceto ela mesma e sua aparente segu­
rança, fruto de sua própria rigidez medrosa, onde o diferente
não pode ter vez, sob pena de desestruturar a própria ideia de
estrutura que esta estrutura patológica construiu desde si. Esta é
a essência da mentalidade pequeno-burguesa - "as pessoas via­
jam sobre pneus de borracha, rigorosamente isoladas umas das
outras" (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 206) - ventre no qual
57
58
"A vida não tem meta exceto a de movimentar-se, nem princípio a não ser o de
boa troca, nem satisfação que não seja a de consumir" (Fromm, 1966, p. 138).
"O homem moderno pensa que perde alguma coisa - o tempo - quando não faz
as coisas rapidamente; todavia, ele não sabe o que fazer com o tempo que ganha
- a não ser matá-lo" (Fromm, 1966, p. 144).
79
se gesta todo tipo de paranóia e preconceito (Cf. Souza, 2008).
Esta a mentalidade que se constitui no substrato psicológico
da sociedade contemporânea em suas linhas gerais, e que se
arvora em dar a esta sociedade o direito de classificar os indi­
víduos no grupo dos "sãos'' - os que se curvam à degeneres­
cência amorosa vigente, e contribuem para sua manutenção
também tautológica - ou no dos "neuróticos" - os que, como
diz Fromm, "não se dispôs (dispuseram) a entregar os pontos
completamente na luta por seu ego" (Fromm, 1 98 1 , p. 1 1 6).59
Assim, também os que resistem à ideia de se tornarem uma
engrenagem na máquina delirante do mercantilismo univer­
sal, credor de concepções totalitárias de infinito; ou os que
reagem - muitas vezes patologicamente à devoradora pato­
logia social e cultural, são muito suspeitos de haverem perdido
a razão. E realmente a perderam, se por "razão" não se conse­
guir conceber outra coisa que uma racionalidade calculadora,
estratégica, ardilosa.
Em suma, Fromm, psicólogo de grande sensibilidade,
traduz ao nível do retículo das relações humanas a dinâmica
constatada em nível mais abstrato do macrocosmo cultural
estudada e criticada por outros pensadores ligados à Esco­
la, bem como por muitos outros deste século das trevas, nos
quais a lucidez consegue preponderar sobre o amalgamento
in diferenciado de uma filosofia chamada - contraditoriamen­
te - de "neutrà' (como se a "neutralidade" não fosse já uma
clara "posição").
-
59
80
Este esquema simplificador de Fromm, tal como aqui apresentado, soa obvia­
mente incompleto. Na verdade, o que está por trás destas reflexões é a subjacente
concepção de felicidade que se segue: a uns, é prometida a felicidade pelo alcan­
çar do mundo aceito pelos não-neuróticos e pelo renunciar ao menos justificável
mundo dos neuróticos; e, a quem se rebela contra estes esquemas mesmos, surge
a noção de felicidade como algo que se constrói no processo do descobrir - por
vezes com risco de sua própria vida e sanidade mental - o que escapa a estes
modelos ou, melhor dito, o ponto de fuga da proposta equação da felicidade.
A Libertação na ordem do dia: Herbert Marcuse
O Inimigo (da sociedade administrada)
não é o mesmo que o comunismo ou
capitalismo atual - é {...] o espectro real
da libertação
Herbert MARCUSE. A ideologia da sociedade industrial
[. .. ] a Filosofia é [...] o contrário do empreendimento (procla­
mado por Wittgenstein) que deixa "tudo como é". E a Filoso­
fia desconhece 'descoberta' mais inútil do que aquela que "dá
paz à filosofia, de modo que ela não é mais atormentada por
perguntas que põe ela própria em questão" (WITTGENS­
TEIN, Philosophical Investigations). E não existe mote mais
anti-filosófico do que o pronunciamento de B. Buttler que
adorna a Principia ethica de G. E. Moore: "Tudo é o que é,
e não outra coisa" - a menos que '(?' seja entendido como se
referindo à diferença qualitativa entre aquilo que as coisas
realmente são e aquilo quefazem que elas sejam.
Herbert MARCUSE. A ideologia da sociedade industrial
Sem polemizar neste momento a respeito do pensamen­
to wittgensteiniano, o fato é que esta longa citação é suficiente
para dar uma ideia bastante clara da motivação geral de Mar­
cuse e de sua aversão sempre reiterada ao conformismo filosó­
fico que outra coisa não faz senão legitimar as ideologias que
de um já dado estado de coisas se utilizam. Marcuse mostrou,
principalmente em termos sociológicos, a dinâmica de ''totali­
zação práticà' nas desenvolvidas sociedades contemporâneas,
com seus óbvios desdobramentos extra-fronteiras - e o grau
de insuportabilidade que estas sociedades vão assumindo inclusive para si mesmas. O pensador levou analiticamente os
fatos até o confronto com as concepções que deles normal­
mente se tinha; foi neste sentido compreendido como uma es­
pécie de "profeta do presente': postulador de uma utopia que
se baseava no retorno à razão como se na própria ideia de
-
razão geral não houvessem os germes da totalidade que ele com­
batia. Todavia, sua grandeza consistiu na percepção de que
81
a ruptura dos esquemas de totalidade é a verdadeira raiz da
recepção da novidade "que todos almejam':
Marcuse como que "aplicà' em termos de amplas análi­
ses sócio-políticas - com o compromisso político em· seu cer­
ne - as percepções e conclusões de outros autores mais sutis,
porém menos abrangentes.
Arnold Schõnberg e a cultura
Basta um breve contato com um igualmente breve teste­
munho de Schõnberg para perceber até que ponto, de um modo
ou outro, ele comunga com os princípios da Escola, tais como
os temos apresentado nesse texto. O próprio Schõnberg diz:
Você se queixa da falta de cultura neste mundo protegido pelos
entretenimentos. O que diria você - então - no mundo no qual
eu praticamente morro de desgosto [ ] Como exemplo, veja este
anúncio que há aqui: mostra o retrato de um homem que cor­
re para a criança que está morrendo sob os pneus de seu carro.
Em desespero, e com a cabeça entre as mãos crispadas, ele não diz
nada do gênero «meu Deus! O que foi que eu fiz [ . ]"; porque há a
seguinte legenda: SINTO MUITO, AGORA É TARDE PARA PRE­
...
..
OCUPAÇÕES - ADQUIRA SUA APÓLICE NA COMPANHIA DE
SEGUROS X ENQUANTO É TEMPO! (Schonberg apud Leibowitz,
1981, p.
20).60
Apenas uma acentuada estreiteza de visão poderiam nos
impedir a compreensão da efetiva ligação do músico-pintor
com os membros da Escola, para além de circunstâncias aces­
sórias e em comunhão com o cerne da motivação ética, que se
choca ao perceber uma tragédia reificada brutalmente e deca­
ída a um capítulo do mercantilismo universal.
60
82
Em carta de Schonberg a Kokoschka, Los Angeles, 3/7/1946.
O próprio Adorno - músico também e abalizado ana­
lista schõnberguiano, apesar do parecer em contrário de
Schõnberg ( Cf. Jager, 2003, p. 1 82ss) - testemunha a con­
vergência da atividade do músico em direção a profundas
disposições dos frankfurtianos: " ( ao passo que) Strawinski
furta-se ao doloroso movimento da coisa, ao tratá-la como
regisseur, [ ... ] Schõnberg é obrigado (a tentar) chegar a uma
objetividade sensível sui generis - o construtivismo dodeca­
fônico)) (Adorno, 1974, p. 163 - 1 64). Também o testemunho de
Susan Buck-Morss ( 1 98 1 , p. 44), que dizia que "Schõnberg [ . ]
acreditava que a música expressava a verdade, mas afirmava
que esta verdade era mais objetiva do que subjetivà: confirma
que na raiz das pesquisas metodológicas schõnberguianas es­
tava presente o mesmo tipo de crítica e motivação criativa que
os pensadores da Escola - aqueles formal ou informalmente a
ela ligados - tentavam traduzir discursivamente.
A música de Schõnberg, aqui entendida como modelo
estético afeito à motivação original da Escola -, é o seu tem­
po, que não faz concessões a suavidades e não se refugia por
entre os sons, mas espreita a história e re-produz interstícios
na totalidade.61
..
61
É preciso que se note, contra o juízo geral de Adorno, que também Strawinski,
tradicional "inimigo" de Adorno enquanto "neoclássico", estava muito profun­
damente penetrado pela decadência do tempo entre-guerras. Adorno não res­
salta suficientemente o extraordinário poder de certas obras de Strawinski, a
despeito do que se diga desta personalidade, de "puxar para fora" da tessitura
musical a degenerescência da sociedade no qual elas foram concebidas. Um bom
exemplo é o Concerto para violino e orquestra (193 1), principalmente em seus
últimos movimentos, onde a "artificialidade" se mostra encantadoramente na­
tural, sem decair em reacionarismo. A "riqueza intrínsecà' de que fala Adorno
a respeito desta obra (Adorno, 1 974, p.l 60) deve-se justamente ao fato de que a
obra como que absorve a atmosfera sua contemporânea e a condensa em uma
unidade expressiva autônoma. E, de fato, pode-se dizer que o "Neoclassicismo"
musical teve uma grande importância para a "des-hipocritização'' do mundo no
qual apareceu. Isto inclui Prokofiev e sua sutilíssima ironia e também Ravel em
suas aristocráticas construções, entre muitos outros exemplos - provas de que,
de fato, o dado artístico real se insurge contra classificações prévias, e prova que
seu conteúdo não é unívoco, e sim tão complexo como o mundo no qual surge
e que o sustenta.
83
Algumas conclusões
Desde G. Simmel, que "foi o primeiro, apesar de todo seu
idealismo psicológico, a realizar (o) retorno aos objetos concre­
tos'' (Adorno apud Buck-Morss, 1981, p. 163), até as recentes
pesquisas filosóficas que cada vez mais se reorientam em relação
à realidade que fica fora do campo próprio do sujeito em evidên­
cia e do campo de ação de uma dialética mecânica, medeia lon­
go tempo filosófico. Ingentes foram os esforços para concreti­
zar a ruptura que, consciente ou inconscientemente, percebiam
como necessária e desejavam os membros da Escola - e natu­
ralmente não só eles. Da utópica formulação de Bloch ("aquilo
que não é pode ser verdadeiro') (apud Marcuse, 1979, p. 21) à
seca constatação adorniana de que "o todo é o não verdadeiro:
estende-se uma ampla malha crítica, que se esforça em tradu­
zir a doença e o horror da sociedade para ela mesma, tentando
abrir caminho para a superação da patologia e irrupção de uma
nova humanidade. A teoria crítica certamente avança em seus
esforços62• Tanto Benjamin63 como Adorno,64 por exemplo,
têm segurança sobre o sentido mais profundo do seu filosofar,
62
63
64
"No coração mesmo da Teoria Crítica havia uma aversão aos sistemas filosóficos
fechados [ ... ]. Não foi acidental que Horkheimer (como outros membros da Escola)
escolhesse articular suas ideias em ensaios e aforismos antes que em tomos
volumosos tão característicos da filosofia alemã" (Jay, 1974, p. 83). Talvez em
decorrência disto, Adorno definia a filosofia como "[ ... ] o pensamento que não se
deixa travar" (Adorno, 1988, p. 293). De qualquer forma, "devemos voltar nossa
atenção [ . .. ] para os notáveis esforços empreendidos por Adorno no sentido de
detectar o fraco pulsar da utopia em meio à ensurdecedora cacofonia da cultura
contemporânea" (Jay, 1988, p. 100).
"Só por amor pelos desesperados conservamos ainda a esperança'' (Benjamin
upud Jay, 1 988, p. 1 8 1 ) .
"O pensamento aberto aponta para além de si mesmo" (Adorno apud ]ay,
1988, p. 5 1 ) . Além disso: ''Adorno [ . . ] continuou a defender a importância do
pensamento crítico como 'garrafas atiradas ao mar' para futuros destinatários,
cuja identidade ainda era desconhecida" (Jay, 1988, p. 5 1 ) . E o próprio Adorno
acaba por se dar conta de que "o único modo que ainda resta à filosofia de
responsabilizar-se em vista do desespero é tentar ver as coisas tal como aparecem
desde a perspectiva da redenção" (Adorno, 1993, p. 250).
.
84
de sua precariedade. E já Marcuse se dá conta de que ((a teo­
ria crítica da sociedade não possui conceito algum que possa
cobrir a lacuna entre o presente e seu futuro; não oferecendo
promessa alguma e não ostentando êxito algum, permanece
negativà' (Marcuse, 1 979, p. 235). A própria filiação dos pen­
sadores da Escola, apesar de tudo, a uma marcada tradição
intelectual, cujas linhas principais lhes são comuns; sua for­
mação, que se funde com uma extrema sensibilidade recepti­
va que faz com que nada do século lhes permaneça estranho
ou indiferente; a percepção clara de que a ruptura necessária
lhes seria ainda, de alguma forma, vedada; a compreensão, no
exemplo de Adorno, de que, apesar da mobilização no sen­
tido de "deixar a coisa falar", ainda há um excesso de peso
da tradição e de preconceitos gnoseológicos a respeito (tra­
duzidos ou pela tentativa de retornar a uma totalidade da
razão - Marcuse - ou pela de "abrir" um processo dialetica­
mente negativo - Adorno) - tudo isto acaba por mergulhar
estes filósofos numa atmosfera mais sombria que alegre, pois
que ainda não têm motivos para se alegrar: " [ .. . ] à diferença
dos socialistas mais ortodoxos, escreveram obras permeadas
mais por um sentido de perda e decadência que de expecta­
tiva e esperançà' (Jay, 1974, p. 470) .65 Não quiseram ser hi­
pócritas, em um tempo que não poderia aceitar otimismos
fáceis. De qualquer modo, as energias foram empenhadas e
as garrafas filosóficas lançadas às águas negras deste tempo
de "fim" de utopias.
Permanecem todavia, ainda, em um esquema gnoseoló­
gico que não pode deixar de ser tradicional, e que acaba em
certo sentido por trair os melhores esforços destes filósofos,
artistas, poetas; estes inevitáveis preconceitos gnoseológicos
tradicionais - kantianos ou hegelianos, algumas vezes até nos­
talgicamente historicistas - impedem-nos, em última análise,
uma observação extra-sistêmica desde um ponto de vista por
65
Leandro Konder fala, a respeito de Benjamin, de "Marxismo da melancolia':
85
assim dizer desde a Alteridade como realidade que porta sua
própria vida. Apenas em poucos momentos esta consciência
está presente: quando, por exemplo, o velho Horkheimer per­
cebe a necessidade do absolutamente diferente "a religiosida­
de de Horkheimer no fim da vida não é apenas um refúgio de­
siludido: é, segundo nos parece, a (re)presentação do problema
da alteridade [ .. ]" (Assoun, 1 989, p. 1 15). Benjamin abordaria
também o problema da história desde um ponto de vista da
Alteridade (Assoun, 1 989, p. 1 1 5). Que resuma esta impressão
este texto de Benjamin, em sentido estético: "Pareceu- me que
compreender um quadro - até onde isto se dá - não se trata,
de maneira alguma, de penetrar em seu espaço, mas, muito
mais, do avanço deste espaço - ou de pontos bem determina­
dos ou diferenciados dele - sobre nós" (Benjamin, 1989, p. 53).
O legado da Escola é simples: a filosofia chega, neste
fim do segundo milênio e início do terceiro, a um impasse
de ímpar gravidade: ou ela reconhece sua função definitiva­
mente - aquela de crítica da Totalidade multiforme e hegemô­
nica - ou ela participa, por o missão, comodismo, escapismo
ou desconhecimento da ideologia do progresso infinito e das
apologias do fim da história, e deve, portanto, preparar, des­
de já, o discurso a ser irradiado desde as ruínas sobrantes de
um desastre ecológico universal ou de uma convulsão social
sem absolutamente nenhum precedente. Mas, certamente,
os pensadores de Frankfurt já nada mais terão a dizer nesta
segunda hipótese.
-
.
86
ESTÉTICA COMO ANTI-IDOLATRIA
Introdução66
Se à estética67 se tem muitas vezes reservado um lugar
subalterno na hierarquia das ciências filosóficas, isto se deve a
mais das vezes à ignorância pura e simples de seu poder sin­
tetizador de épocas e vivências. Esta ignorância não surge por
acaso: ela responde geralmente a uma necessidade ideológica
de inofensibilizar aqueles elementos dispersos ao longo das
manifestações da arte verdadeira que se desdobram pela his­
tória, em seu poder subversivo do presente.
Uma outra preocupação pode, porém, se fazer presente
nesta atitude: trata-se do zelo com que se trata a questão da
66
67
Este texto revisita, amplia e atualiza o Capítulo "Estética, sombras e história", de
nosso livro Totalidade & Desagregação - sobre asfronteiras do pensamento e suas
alternativas, de 1996.
Compreende-se por "Estética", neste texto, principalmente o exame crítico de
manifestações artísticas concretas - obras - em seu teor mais contemporâneo, e
não, obviamente, especulações ao estilo das realizadas pela tradição da l;ilosofia
da Arte. Esta conotação, se por um lado renuncia a muitos sentidos desta
disciplina que, aliás, desenvolvemos alhures - como aquele em que a cstét ica
ocupa um lugar central na própria hermenêutica existencial do ser humano -,
por outro lado facilita a delimitação do tema.
87
substituição, por exemplo, de pessoas por obras. Se há uma
tendência clara neste sentido - e isto é especialmente evidente
na hegemonia da compra e venda como metafísica universal,
pois ainda é relativamente menos escandaloso comprar aber­
tamente obras de arte do que pessoas, redundando em uma
óbvia hierarquização valorativa não muito favorável aos seres
humanos denegridos nesta escolha comercial - este não é se­
não um aspecto de uma ampla cosmovisão idolátrica. Nesta
cosmovisão, tudo tem seu preço; felizes dos que tem seu preço
expresso em milhões, como certos quadros: geralmente são
muito bem tratados e vivem mais dignamente que a maior
parte da humanidade. A arte cora então de vergonha e se re­
fugia em sua interioridade mais recôndita, permitindo apenas
que alguns de seus reflexos e fantasmas - ídolos no sentido
original do termo - se integrem ao grande jogo especulativo,
ao jogo de imagens universal. Que se tome isto por arte plena:
que diferença faz para a metafísica das profundidades comer­
ciais? O respirar do grande negócio segue em seus estertores.
Nunca como agora as negatividades foram tão necessá­
rias para iluminar, contrastivamente, as positividades legíti­
mas. Em um tempo sem suavidades, repleto de mosaicismos
entediados ou de perversões elevadas ao "status" de arte,68 o
que se apresenta como suave repertório de amenidades tem de
ser incisivamente provocado.
Neste espírito, tanto a explícita anti-estética negativa e
anti-idolátrica de Levinas quanto à estética negativa e anti-to­
talitária de Adorno têm algo a dizer. Vozes clamantes no deser­
to, escolhem o que de mais feio a arte pode conter e expressar
68
Ver o famoso caso do "artista'' que amarrou recentemente, em Bienal Internacio­
nal de Artes, um cão faminto ao canto de uma sala, e cuja "instalação" consistiu
em uma reflexão sobre a morte durante os estertores do animal que, efetivamen­
te, morreu de inanição. A pergunta pela razão de o artista não haver amarrado
a si mesmo e se exposto como objeto de observação - ou porque esse momento
não foi alcançado na execução da "obra" é relevante em inúmeros sentidos,
mas o que aqui nos interessa é perceber a que ponto a capacidade de confundir
"arte" com "patologia dos tempos" se tornou metafisicamente comercial, ou seja,
idolátrica em qualquer sentido desse termo: intercambiável.
-
88
para mostrar, ainda que ·via negationis, que quase em nenhum
campo como aqui o repouso satisfeito não pode conviver com
os fatos. A circunscrição de um conceito pouco ingênuo de
arte é talvez dedutível desde suas concepções. O estudo deste
tema é a proposta deste breve trabalho.
A realidade e sua sombra vida e morte na estética
-
levinasiana69
Emmanuel Levinas não é, em princípio, um filósofo da
estética; a antropologia, a fenomenologia e sua superação, o
humanismo do outro homem, a subjetividade que se consti­
tui como resposta ao traumático encontro com a Alteridade,
se constituem em seus temas essenciais, aos quais devotou o
melhor de seus esforços. Seus assuntos têm como moldura
um amplo desencantamento da impessoalidade mágica; a sua
concepção de realidade, em tonalidades judaicas, reporta seu
sentido em um cruzamento antropológico, na subjetividade
ética reconstituída, pós-estruturalista, pós-cogitante e pós­
-fragmentação pós-moderna, e na exterioridade ética para
além do ser e de suas determinações e de sua linguagem. To­
davia, Levinas de modo algum negligenciou este tema central
da cultura (Cf. Castro, 2007; Mattuella, 2009). Para os fins
que aqui nos interessam, porém, a análise de seu texto clássi­
co e mais conhecido sobre o assunto é suficiente; a visão algo
unilateral que ali se apresenta - diferentemente dos textos
sobre temas estéticos em sua obra magna Autrement qu'être
ou au-delà de l'essence, por exemplo, muito mais nuançados nos ajuda a elucidar a tese geral de Levinas a respeito da ideia
69
Para aprofundamentos da relação entre o pensamento levinasiano e a questão
estética, ver, entre outros, meu artigo "Levinas e a arte': em Haddock-Lobo, 2010
e as obras de Castro, 2007; Mattuella, 2009; Farias, 2007; Franck, 1985; Huizing,
1988; Ciglia, 1982; Armengaud, 1990.
89
de idolatria, e permite o estabelecimento de profícua articula­
ção com as teses adornianas.
De fato, no texto ((La réalité et son ombre': testemunho
eloquente de um momento histórico de grandes inquietações
- o imediato pós-Segunda Guerra MundiaF0 -, Levinas apre­
senta como que uma espécie de anti-estética, que, compreen­
dida na sua melhor expressão como estética anti-idolátrica,
resume uma variedade de elementos que se constituem no
intento de, como diz o prefaciador, " [ . . . ] définir l'art comme
l'étrange tentative de procurer une pseudo-présence du monde
[ .. . ]" ( 1 948, p. 769) e que ''remet à une critique philosophique
le soin de récupérer l'art pour la verité, de renouer des liens
entre la pensée 'dégagée' et l'autre, entre le jeu de l'art et le sé­
rieux de la vie" ( 1 948, p. 770). Pois, segundo a áspera análise
de Levinas nesse texto, "Le procédé le plus élémentaire de l'art
consiste à substituer à l'objet son image. Image et non point
concept. Le concept est l'objet saisi, lhbjet intelligible. Déjà
par l'action, nous entretenons avec l'objet réel une relation
vivante [ ... ] . L'image neutralise cette relation réelle" ( 1 948, p.
774). Aqui já se expressa o Leitmotiv da crítica levinasiana:
ou a arte propõe, à vida real, a alternativa de uma semi-vida
inspirada, à escuta das musas, imagi(em)nária, ou esta, menos
delicadamente, conquista o terreno da realidade e instala ali
seu fetiche sombrio. O campo de possibilidades da arte flu­
tua entre a semi-vida da suavidade inspirada e a não-vida das
sombras de realidade. Um elemento de toda arte, o ritmo, é
nesta flutuação paradigmático: "De la réalité se dégagent des
ensembles fermés dont les éléments s'appellent mutuellement
comme les sylabes d'un vers, mais qui ne s'appellent qu'en
s'imposant à nous. Mais ils s'imposant à nous sans que nous
les assumions" ( 1 948, p. 774). Eis aí os elementos da sedução
e da conquista. A sedução da ordem fácil, da fragmentação
70
90
Aparecido originalmente em Les temps modernes 3 ( 1 948). Citaremos a partir da
primeira publicação.
artificial da realidade em elementos suficientemente pequenos
para serem compreendidos em seu marchar e em seu saudar­
-se mutuamente, esta sedução conquista terreno e se impõe
à revelia da vontade organizada, pois a própria vontade não
mantém sua integridade, não permite mais o assumir algo.
Também no ritmo a musa canta mais alto, ou seja, quando se
pensa que se está tratando com a base de todo um processo,
este processo inteiro já está ali presente. Esta conquista de es­
paço é a passagem "do si mesmo ao anonimato" ( 1 948, p. 775),
um enfeitiçamento desumanizador, habitante do limbo entre
a consciência e a inconsciência, sonho claro demais para ser
só sonho, mas irresponsável como todo sonho ( 1 948, p. 775).
Não é consciente, pois não pode ser conscientemente assumi­
do; não é inconsciente, porque se presentifica constantemente
em seu desenrolar-se. "L'automatisme particulier de la marche
ou de la danse au son de la musique est un mo de detre ou rien
n'est inconscient, mais ou la conscience, paralysée dans sa li­
berté, joue, toute absorbée dans ce jeu" ( 1 948, p. 775). Desper­
sonificação do eu, coisificação bem-acabada da subjetividade:
((il (o sujeito) est parmi les choses, comme chose, comme fai­
sant partie du spectacle, extérieur à Iui-même [ . . ] extéríorité
de l'intime, en vérité" ( 1 948, p. 775). Intimidade exteriorizada
em automatismo.
O ritmo conduz à sua mais óbvia aparição, à música, arte
mais destacada da realidade ( 1 948, p. 776). O som, fora de
qualquer objeto, qualidade mais descolada do objeto ( 1948,
p. 776), é a impessoalidade pura - não fala, apenas acontece
sonoramente, musicaliza-se em musicalidade. E "insister sur la
musicalité de toute image, cest voir dans l'image son détache­
ment à legard de lobjet, son independance à l'égard de la cate­
gorie de substance [ ]" ( 1 948, p. 776). A imagem de conteú­
dos de-substancializados flutua no mundo sonoro, oferece um
substitutivo fácil para a dificuldade do trato da sub-stância da
realidade. O jogo se inicia e se multiplica: imagens se sucedem
.
...
91
a imagens, levezas se seguem a levezas, em uma espécie de
leviana embriaguez inspirada. Vê-se suavidade onde ela não
existe, vê-se uma caricatura do peso de realidade onde ele não
está. A arte como demiurgia de sensações, habilidàde de de­
sencarnação da realidade ( 1 948, p. 777), não-objetividade do
objeto - ou melhor, "desconteudização" dos conteúdos obje­
tais na diafaneidade de uma projeção. O mundo real, ''coloca­
do entre parênteses" ( 1 948, p. 777), pulveriza seu peso em seu
reflexo, em sua imagem que é "alegoria do ser" ( 1 948, p. 779).
Trata-se de um processo de inversão da consciência que
procura as coisas mesmas, como se as coisas mesmas deixas­
sem seu espaço a coisas outras que, adornadas de objetividade,
retorcem a ideia de intencionalidade. "Le tableau a, dans la vi­
sion de l'objet représenté, une épaisseur propre: il est lui même
objet du regard. La conscience de la représentation consiste à
savoir que lobjet n'est pas là" ( 1 948, p. 779). Consciência que
trai suas mais profundas intenções e, ingenuamente, pousa so­
bre as flutuações de uma realidade fraca, fruto de um jogo de
espelhos. Em lugar de indicar a realidade propriamente dita,
a imagem impede o acesso a ela - pedra no caminho que con­
duz ao mundo, ((essência fantasmática" que não diz a verdade
( 1 948, p. 780). Mentira.
Mas esta mentira é refinada, propõe atrativos, porta ade­
reços sinuosamente sedutores, que se compõe naquilo que se
conhece por "beleza", ao menos na arte figurativa realista. A
beleza é, nesta reflexão, o ser em processo de dissimulação de
sua caricatura, na dialética de sua sombra ( 1 948, p. 78 1 ) , pro­
cesso este que culmina na edificação do ídolo, ídolo estético,
protótipo da imagem perfeita - estátua. Toda arte é, em fim de
contas, o processd de soerguimento de estátuas ( 1 948, p. 782).
Mas o que é uma estátua? Levinas responde com uma
frase notável, muitíssimo citada: "La statue réalise le paradoxe
d'un instant qui dure sans avenir" ( 1 948, p. 782). Uma estátua
é a materialização de uma paralisia do tempo. A eternidade
92
fora da duração, o instante eterno que não se desdobra - a
morte revestida de adereços artísticos ( 1 948, p. 782), fingindo
que é vida. Futuro eternamente abortado, presente que nunca
cumpriu sua tarefa de presente, cccomme si la réalité se retirait
de sa propre réalité et la laissait sans pouvoir" ( 1 948, p. 782).
O artista deu à estátua uma vida sem vida ( 1948, p. 782).
No romance, o drama dos personagens nunca acaba, dura
ainda, mas não avança ( 1 948, p. 784). Fixação não-dialética,
revolver-se de boas intenções e de intenções de liberdade. Li­
berdade não-livre, caricatura do mundo. Intervalo eterno do
correr do mundo, suspensão de sentido, expectativa de algo
que não virá, e cuja não-vinda já se encontra na própria ex­
pectativa. "La durée etérnelle de l'intervalle ou s'immobilise
la statue differe radicalement de l'éternité du concept - elle
est l'entretemps, jamais fini, durant encare - quelque chose
d'inhumain et de monstrueux" ( 1 948, p. 786).
A inumanidade e a monstruosidade do intervalo eterno,
porém, remetem para seus fundamentos. Estes fundamentos
da realidade paralisada se constituem em umafuga da realida­
de propriamente dita, que chama à responsabilidade. Uma de­
terminada dimensão de evasão ( 1 948, p. 787), desengajamen­
to, recusa à iniciativa, pulsa sob a morte feita vida. Esta grande
substituição original - da vida por sua caricatura morta - su­
gere uma outra substituição mais empírica - onde ((le monde à
achever est remplacé par l'achevement essentiel de son ombre.
Ce n'est pas le désintéressement de la contemplation, mais de
l'irresponsabilité, ( 1 948, p. 787). Constrói-se um mundo per­
feito para não se ter de haver com as imperfeições do mundo
real. Exílio na imponderabilidade das sombras. Fecham -se as
fronteiras da autojustificação.
A arte feita idolatria autoidolatria é para Levinas nes­
te texto a obliteração dos possíveis pontos de saída da tautolo­
gia da Totalidade. A hipocrisia reinante na fuga triunfal que se
corporifica materialmente em um determinado intervalo de
-
-
93
tempo paralisado ou na obsedante desumanidade do ritmo hipocrisia, ardil racional, porque pretende justamente que esta
paralisia não seja percebida como tal, e sim como uma glorifi­
cação da vida - consiste na condescendência do Mesmo com
suas excrescências, em uma comédia que se desenrola à som­
bra da realidade e da possível liberdade - e do sofrimento do
mundo. Feição apaziguada da violência, violência ornada de
boas intenções, todo o contato com o Outro é abortado, pois a
arte porta em si mesma seu sentido. Espécie de subjetividade
purificada de contingências humanas, demiurgia pretensiosa
do tempo que não lhe pertence, a caricatura da vida fascina por
seus poderes aparentes. Apresentando-se como situada para
além da realidade imediata, na verdade posta-se aquém de
qualquer realidade assim propriamente chamada. Seu mundo
não é o mundo que ela promulga, seus interesses não são o
tempo, a realidade e a verdade: ideologia imoral.
A arte iluminando as sombras da história
- a estética adorniana e a ruptura da Totalidade
na Teoria Estética
Um dos grandes paradoxos do pensamento de Adorno é
que este se debate em meio a uma Totalidade faticamente em
ruínas - mesmo que ruínas evanescentes como a fumaça que
sai das chaminés de Auschwitz ou da Hiroshima destruída - e
que tenha, ao mesmo tempo, de combater a fênix totalitária
que pretende a reconciliação do ocidente com seus impulsos
mais primigênios apesar do passado, através de seu processo
traduzido em hegemonia capitalista instrumentalizada ideo­
logicamente na pretensão de suavidade de promessas de um
otimismo condescendente. A percepção desta missão comba­
tiva da racionalidade não-totalitária, o embate com a tradição
94
apesar da tradição, a cata à verdade que não é o todo, configu­
ram o característico mosaicismo filosófico adorniano. A inver­
são da ordem do pensamento, como diria Bergson, faz-se aqui
necessário como nunca - mesmo que esta inversão conduza à
desordem do mais fundamental. Vita brevis, ars longa: Ador­
no teve de trabalhar como se dispusesse de todo o tempo do
mundo, examinando fragmento por fragmento, colecionando
os restos da história, pulando de pedra em pedra, como tão
magistralmente soube fazer seu amigo Benjamin - mas, dife­
rentemente deste, de forma menos poética, menos agilmente
hábil, menos pontualizada lampejos de magistral intuição e
mais por picos sintéticos de inteligência, eternamente perse­
guida pela potência dialética da negatividade. Mais uma vez o
paradoxo: um tempo limitado para uma perscrutação infini­
ta, uma tarefa sintética ilimitada, onde subsistem as garrafas
atiradas ao mar de Horkheimer sem ao menos um envoltório
sólido, onde a mobilização de inteligibilidades, sua prontidão
quase sem esperanças é sua única esperança pós-desencanto.
Mas cada seixo no fundo do rio da história, desta história da
cultura que é uma história de barbárie, refulge com reflexos
próprios, detém e1n si seu sentido não-totalitário. Microsenti­
dos em um microcosmo não-totalizante, à espera de uma filo­
sofia feita micrologia, que possa se haver com a falta de vontade
da realidade em ser descoberta em suas excrescências, que pos­
sa conviver com a falta de hábito da hesitação filosófica radical,
onde cada momento constitui sua melhor e mais pragmática
síntese, e que, apesar de tudo, esteja em cada momento aureo­
lado de todo rigor possível. Engrenagem difícil, sem o óleo da
ideologia, com o atrito da realidade mais bruta possível que
pode ser mediada pelo pensamento, onde este atrito mesmo é
o tema de sua superação, em uma retorção dialética reticente
às tentações da tautologia ardilosa. ((Retorno às coisas mesmas':
A realidade pós-totalidade autocompreensiva é múltipla,
e múltiplos são seus fragmentos, transformados em problemas
95
para a reflexão. Como esta realidade ampla, também a realida­
de artística tem de legitimar sua pretensão à existência - esta a
primeira frase da Teoria Estética.71 A arte porta assim um alar­
gamento extremo de possibilidades que, mesmo podendo vir a
se metamorfosear em um estreitamento (ÀT, p. 9), reconduz à
sua refração original em ser abrangida por qualquer fórmula.
A arte torna-se, em sua realidade própria meta-sistemática, um
Outro - para além da naturalidade que, pensava-se, constituía
seu fundamento e que foi ao solo no estertor contemporâneo.72
A arte e o consolo de qualquer tipo - leia-se condescendência
com o statu quo e suas justificativas - são como nunca mutua­
mente repulsivos. Os tecidos da arte são agora preenchidos de
tempo como nunca antes, e ela vale propriamente por aquilo
em que ela se tornou ou pode vir a se tornar, e é "interpretável
apenas pela lei de seu próprio movimento, e não por invarian­
tes" (ÀT, p. 1 2). A arte tem, como nunca, vida própria.
Esta vida própria toma as rédeas de sua própria con­
dução, nem que esta condução signifique a negação de suas
origens.73 "Pinta-se um quadro, e não o que ele representa",
no dizer de Schõnberg (ÀT, p. 14), pinta-se a identidade do
quadro consigo mesmo, esta identidade que é a inteligibili­
dade que ele mesmo porta - sua vida sui generis, que não se
reduz ao sentido externo (ÀT, p. 1 4). A pulsação desta vida,
esta identidade pulsante, conduz à primeira grande intuição
expressa na Teoria Estética: "A identidade estética deve defen­
der o não-idêntico que, na realidade, é oprimido pela com71
72
Asthetische Theorie, doravante ÃT. "Zur Selbstverstãndlichkeit wurde, dass nichts,
was die Kunst betrifft, mehr selbstverstandlich ist, weder in ihr noch in ihrem
Vcrhaltnis zum Ganzen, nicht einmal ihr Existenzrecht" (ÃT, p. 9).
"Jndem sie angreift, was die gesamte Tradition hindurch als ihre Grundschicht
garantiert dünkte, verandert sie sich qualitativ, wird ihrerseits zum Anderen.
Sie vermag es, weil sie die Zeiten hindurch ihrer Form ebenso gegen das bloss
Daseiende, Bestehende sich wendete [ . ] So wenig ist sie auf di e generelle Formei
des Trostes zu bringen wie auf die von dessen Gegenteil" (ÃT, p. 10- 1 1 ) .
"[ ] fraglos indessen sind die Kunstwerke nur, indem sie ihren Ursprung ne­
gierten, zu Kunstwerken geworden" (ÃT, p. 12).
.
73
96
...
.
pulsão à identidade" (ÃT, p. 14).74 A arte não tem um poder
glorificador do fático, e, sim, preservador do que nunca pôde
chegar ao estado de fático. Eis aí um grande momento de con­
flito com determinadas tradições artísticas que, instrumenta­
lizando de forma aberta ou velada o factum artístico, de certa
forma tentam sequestrar para si o poder eminentemente sub­
versivo da arte. Subversivo, porque potencialmente negador
da auto-legitimação da totalidade dos vencedores, que a arte
porta enquanto "antítese social da sociedade" (AT, p. 19) , não
dedutível diretamente desta, e que se subtrai aos argumentos
da auto-conservação (da sociedade), o que a sociedade bur­
guesa nunca perdoou, e transforma as tentativas de sua mani­
pulação comercial forçada em uma caricatura dela mesma.75
A arte participa da decomposição da contemporaneida­
de através da decomposição de seus próprios materiais - pre­
sença da alteridade em sua identidade/6 A felicidade da arte,
quando existe, é de fuga e não de gozo auto-suficiente (AT, p.
30), fuga da totalidade sem-saída da violência do fático. Por
isso, a felicidade da arte é fugidia, ao contrário do que tentam
fazer crer as galerias, museus e salas de concerto bem-com­
portados. Dolorosa feli cidade, aceleração do tempo que se
desejaria em processo de paralisação, e que o reacionarismo
não suporta em seus ímpetos desagregadores. Mas este tem­
po é duração de fragmentos; e, pela duração, "a obra protesta
contra a morte; a eternidade a curto prazo da obra de arte é
alegoria de uma eternidade que não aparece. Arte é a apa­
rência daquilo que a morte não alcança". 77 Arte é aparência
74
75
76
77
''Ã.sthetische Identitãt soll dem Nichtidentischen beistehen, das der Identitats­
zwang in der Realitãt unterdrückt" (ÂT, p. 14).
"Ist schon die Kunst für den Betrieb der Selbserhaltung unnütz - gan z verzeiht
ihr die bürgerliche Gesellschaft das niemals -, soll sie sich we n ig st ens dure h cinc
Art von Gebrauchswert bewãhren [ . . . ]" (ÃT, p. 28).
"Der Zerfall der Materalien ist der triumph ihres Fü rand ersscins" (Ã'C p. 3 1 ).
"Durch Dauer erhebt Kunst Einspruch gegen den Tod ; dic ku rzfristigc Ewigkeit
der werke ist Allegorie einer scheinlosen. Kunst ist Schcin dcsscn, woran der Tod
nicht heranreicht" (ÃT, p. 48).
97
daquilo que sobra depois do esboroamento da totalidade fi­
nita, alegoria do não-integrado, não-sincronizado, primeira
antevisão do não-ser. 78 Por isso sua vida é sui generis: não
pertence às determinações da vida vitoriosa - é tristeza que
porta os fragmentos absolutizados e isolados das essências
outrora integradas e que decaíram com o desmoronamento
da totalidade (Cf. ÃT, p. 49).
Como sobra, a arte não pode ser bela, quer dizer ordena­
da, auto-harmonizante. Sua feiúra contemporânea não é mais
do que a expressão de sua repugnância às ofertas de recon­
ciliação harmonizante da história - pois toda reconciliação
neste contexto porta algo do cinismo absurdo da reconcilia­
ção entre torturadores e torturados, entre carrascos e vítimas,
traz em si algo do fingimento essencial e da falsidade na crença
pretensa da possibilidade do esquecimento cínico da realidade
tal como esta foi e é. Intransigência absoluta nesta repulsa à
reconciliação, a arte mantém viva a esperança da utopia ( Cf.
ÃT, p. 55-56) que nunca se deu na história, apesar de qualquer
possível promulgação do fim da história. A arte tem de ser feia
porque o tempo é feio.
78
98
Cf. "Anotações sobre Kafkà' (Adorno, 1988, p. 261 -262). Sobre a forma como
Kafka edifica sua obra a partir de uma espécie de radicalização desse "desvio':
que faz com que certas obras kafkianas se aproximem de certos quadros de ani­
mais irreais - ou habitantes de uma outra realidade - e pacíficos do expressionis­
ta Franz Marc: "Kafka salva a idéia do expressionismo não ao se esforçar em
vão para escutar os sons primordiais, mas ao transferir para a literatura os
procedimentos da pintura expressionista. Ele se relaciona com essa pintura
da mesma maneira que Utrillo com os cartões-postais, que teriam servido de
modelo para suas ruas cobertas de gelo. Diante do olhar de pânico que retira
dos objetos toda carga afetiva, estas ruas s e petrificam em algo diferente:
nem sonho, que se deixa apenas falsear, nem macaqueamento da realidade,
mas sim a imagem enigmática dessa realidade, composta de seus fragmentos
dispersos. Várias passagens decisivas de Kafka podem ser lidas como se fos­
sem descrições minuciosas de pinturas expressionistas jamais pintadas. No final
de O processo, o olhar de JosefK. incide 'sobre o último andar da casa situada no
limite da pedreira. Como uma luz que tremula, as folhas de uma janela abriram­
-se ali de par em par, uma pessoa que a distância e a altura tornavam fraca e
fina inclinou-se de um golpe para a frente e esticou os braços mais para a frente
ainda. Quem era? Um amigo? Uma pessoa de bem?"'.
Mas a arte é também paciência. ((Die grossen Werke
warten'' (ÂT, p. 67). Algo de sua verdade as mantém eloquen­
tes (Cf. ÃT, p. 67). Algo de seu conteúdo não se deixa formu­
lar na lógica da domesticação do diferente, do subversivo.
A arte permanece como repositório das feiúras reais, ainda
que re-harmonizadas em sua própria lógica; sua dimensão
mimética, se por um lado nega-se a referendar a falsidade
intrínseca do cinismo, por outro não se pode furtar à repre­
sentação da inverdade onipresente.79 Há tempo para tudo,
até - e principalmente - para o irremediavelmente ((feio". Há
tempo para a reintrodução do caos na ordem do falso, ou na
falsa ordem (Cf. ÃT, p. 144).
Porém, qual a modalidade deste caos de denúncia? O
caos consiste também na não-condescendência com o modus
operandi normal do espírito, consiste em não delegar a última
palavra à violência de toda obra de cultura que também é de
barbárie; o que menos aliena a obra de arte - apesar desta estar
condicionada pela alienação universal - é o fato de que, nela,
passou tudo pelo espírito e se humanizou sem violência.80 A
arte é o paradoxo do espírito não-violento, o enigma de uma
contradição sobrevivente, jogo de mostrar e esconder (C f. ÃT,
p. 1 82). A arte fala de menos, não se explica, não vive a explicar
o ser, ponto de interrogação que se nega à síntese81, escrita cuja
ausência de codificação é a melhor codificação de seu conteú­
do (Cf. ÃT, p. 1 89). Singular paradoxo, paradoxo do singular.
Este paradoxo, esta estranheza, advém do caráter de
compromisso da arte para com a irresolução não-violenta. A
arte procura brechas na colcha conceitual que abafa as dife79
80
81
"Es ist die Fatalitat einer jeglichen kunst im gegenwartigen Zeitalter, das..o.; sie vo n
der Unwahrheit des herrschenden Ganzen angesteckt wird" ( A'J: 9 1 ).
"So sehr Kunst von der universalen Entfremdung gezcichnet u n d gestcigcrl
wird, darin ist sie am wenigsten entfremdet, dass alies an i h r d u rdt dcn (;eisl
hindurchging, vermenschlicht ist ohne Gewalt" (À'I� p. 1 73).
"Mit den Ratseln teilen die Kunstwerkc dic ZwicschHichtigkcit dcs Bcstimmlcn
und des Unbestimmten. Sie sind Fragczeichnen, cindcutig nicht cinmal durch
Synthesis" (ÂT, p. 188).
99
renças, colcha estendida pela boa vontade racional dos con­
ceitos: "Quanto mais espessamente os seres humanos cobriam
o diferente do espírito subjetivo com a rede categoria!, mais
profundamente se desacostumaram do espanto perante o Ou­
tro [ .. ] . A arte procura, debilmente, como em um gesto que se
fatiga rapidamente, reparar isto" (ÀT, p. 191).82 Na arte respira
necessariamente a utopia: nela se dá a enigmática intersec­
ção entre o inacessível e o realizável (ÃT, p. 1 94). Eis uma das
maiores traduções de seu "conteúdo de verdade': verdade que
o discurso não alcança, assim como a historiografia não alcan­
ça a utopia, pois pertencem a ordens diferentes de realidade.
Mas utopia ten1, aqui, um sentido muitíssimo amplo. Uto­
pia é, também, o processo de sedimentação de realidades em
nichos estreitos, em recônditos fora das engrenagens da grande
cultura, embora eventualmente por ela envolvidos. É esta rea­
lidade mesma que escapa da determinação prévia, atemporal,
de realidade. É a realidade às margens do ser, as sobras, o dife­
rente, o diverso, realidade que vem do diverso sem violência.83
Mas que diverso, que diferente, que outro é este? Com o que
lida a arte que é a "síntese não-violenta do disperso: que ela con­
serva como "o que é, em sua divergência e em suas contradições
[ . ] um desdobramento da verdade"?84 Que verdade é esta que se
desdobra no disperso, que se dá não na unidade integradora da to­
talidade não-verdadeira, mas na integração não-violenta do dife­
rente que se integra desde si mesmo e que fala sua própria língua?
Em outros termos, de que realidade se trata aqui, propriamente?
.
.
.
82
83
84
100
"Je dichter die Menschen, was anders ist als der subjektive Geist, mit dem ka­
tegorialen Netz übersponnen haben, desta gründlicher haben sie das Staunen
über jenes Andere sich abgewõhnt, mit steigender Vertrautheit ums Fremde sich
betrogen. Kunst sucht, schwach, wie mit rasch ermündender Gebãrde, das wie­
dergutzumachen" ( AT, 191).
"Die asthetische Einheit des Mannigfaltigen erscheint, als hãtte sie diesem
keine Gewalt angetan, sondem wãre aus dem Mannigfaltigenselbst erraten"
(ÁT, p. 202).
"Sie ist die gewaltlose Synthesis des Zertreuten, die es doch bewahrt als das, was
es ist, in seiner Divergenz und seinen Widersprüchen, und darum tatsãchlich
eine Entfaltung der Wahrheit" ( AT, p. 216).
A realidade presente na arte é a realidade que não pode
ser real na não-arte da facticidade histórica do preponderante
e do hegemônico. A arte é a testemunha viva de uma realida­
de diferente. Uma realidade que não é, que não teve tempo
para ser, paradoxo no seio do ocidente: o Não-ente, aqui en­
tendido em seu máximo conteúdo de realidade. Não a impos­
sibilidade afirmada do para-além-do-possível na dinâmica
da totalidade auto-suficiente, mas a possibilidade do possível
que, à revelia de postulados autônomos de sentido, vibra ex­
centricamente em relação ao hábito ocidental de dotação de
sentido: o não-ser. "Que a obra de arte existe, significa que o
não-ente poderia existir. A realidade das obras de arte tes­
temunha a possibilidade do possível".85 A arte é o postulado
de Parmênides, do ser do ser e do não-ser do não-ser, posto
em questão, apesar do levar a sério da constatação heradi­
teana do ser da totalidade que se vem dando em combate;
sua impotência frente a uma realidade é o questionamento
desta realidade. A sua potência advém do reconhecimento
de sua impotência - "a arte quer confessar sua impotência
com relação à totalidade do capitalismo tardio e inaugurar
sua supressão'� 86 O jogo da totalidade não é aceito. A arte sabe
que, "se hoje nada mais é coerente, é porque a coerência de
outros tempos era falsa'' (ÃT, p. 236). A falsa harmonia do
passado, o pretenso equilíbrio do belo "natural': são desmisti­
ficados como exercício de violência sobre o fraco e o diferente
- "Se a estética tradicional - Hegel inclusive - soube celebrar
a harmonia do belo natural, isto se dava porque ela projetava
a auto-satisfação da dominação sobre o dominado"87 e não
85
86
87
"Dass aber die Kunstwerke da sind, deutet darauf, dass das Nichtseiende sei n
kõnnte. Die Wirklichkeit der Kunstwerke zeugt für die Mõglichkeit des Miigli­
chen'' (ÃT, p. 200).
"Kunst will ihre Ohnmacht gegenüber der spãtkapitalistischen Totalitiit ci ng<!­
stehen und deren Abschaffung inaugurieren'' (ÃT, p. 232).
"Wusste die traditionelle Âsthetik, Hegel inbegriffen, Harmonic am Nat ursdlil­
nen zu rühmen, so projizierte sie die Selbstbefriedigung von HcrrsdHtlt auCo;
Beherrschte'' (ÃT, p. 2 38 ) .
101
porque aquele fosse algum mundo de paz ou algum paraíso
perdido. Melhor para a arte, se esta pretensa harmonia veio
abaixo junto com o que ela pregava: a arte é poupada a partir
de agora da tentação de hipocrisias suavizantes.
A arte não serve para celebrar os vencedores, ou para re­
produzir a dinâmica fática do desenrolar da história ocidental
como totalidade: "Nenhuma obra é aquilo celebrado pela esté­
tica idealista tradicional, a saber, totalidade" ;88 pelo contrário,
a arte é uma das poucas realidades anti-totalitárias que tem,
de uma forma ou de outra, ainda podido respirar, ainda que
manietada em galerias assépticas ou salas de concerto pedan­
tes. A arte é uma instância de legitimação do não-ser, do não­
-ser contaminado a priori pelo ser definidor. A arte é uma das
mais reiteradas tentativas de, de uma forma fraca, mimética,
impotente - mas sincera - tentar salvar aquilo que a Totalida­
de vem destinando aos esgotos da história.
Conclusões
por uma Estética não idolátrica e suas sugestões
A dinâmica da Totalidade consiste em, perpetuamen­
te, desmobilizar o que se move na direção de suas bases de
sustentação; tal qual a ideologia mais grosseira, que se trai ao
perceber em seus reflexos as mais profundas ameaças a suas
promessas falsas, a Totalidade se defende com unhas e dentes
da antevisão de seus limites.
O grande paradoxo da estética consiste no fato de que, em
cada momento, a arte - ainda aquela 1nais hermética, desde que
verdadeira - conspirou contra as promessas de harmonia que
ela, enquanto filha da história, sempre necessariamente portou.
88
"Kein einzelnes Werk ist, was die traditioneHe idealistische Asthetik rühmt, To­
talitat" ( AT, p. 3 1 1 )
.
102
A arte e a harmonia da falsa conciliação do Mesmo e do Outro
- embora inimigas mortais - foram de certa forma obrigadas a
conviver em uma certa lógica de inteligibilidade, pois este era
o mal menor, necessário para que a Totalidade pudesse se refu­
giar de sua própria insuportabilidade e incoerência lógica que
só se sustenta enquanto fruto de ardis racionais.
Que isto a partir de certo ponto se torna insuportável, é
fato patente, que independe de seu reconhecimento por inte­
ligências canhestras; a degeneração da arte - e esta é a grande
intuição de todos que, em qualquer tempo, organizaram ex­
posições de "arte degenerada" - indica de forma totalmente
inequívoca a degeneração do pacto realista ou naturalista ou
harmônico celebrado nos primórdios da estética idealizante:
a degeneração de um determinado mundo, de uma determi­
nada era e de suas crenças.89 A arte é reconduzida, por sua de­
composição, à sua realidade precípua: não poder fingir indife­
rença junto ao não-indiferente, ao Outro, ou melhor, junto ao
seu esmagamento e opressão. Seus fragmentos provocantes, a
desagregação dos elementos que costumam chancelar na arte
uma promessa unificadora e condescendente, alinhavam uma
visão repugnante à Totalidade: a visão de que o Não-ser possa,
afinal de contas, existir. A verdadeira obra de arte contempo­
rânea é a quebra de um pacto, um pacto que, de certa forma,
já foi quebrado desde que a primeira obra de arte veio à luz. O
mundo se afoga em falsidade: a arte utiliza-se desta falsidade
para sustentar-se no mundo, reúne energias ao perceber sua
própria falsidade social refletida na pretensa sincronia de sua
essência com a essência da violência totalitária, e alça -se para
além dos limites estritos que esta falsidade promulga: eis uma
dinâmica inaceitável para a Totalidade.
Levinas denuncia na arte feita falsidade a idolatria da
arte totalizada, espelho fiel da Totalidade fática: automatismo
89
"Quando a construção de um mundo desaba, são soterrados soh as r u i nas tam­
bém as ideias que o conceberam e os sonhos que o penetraram" ( Roscnzwci g ,
2008, p. 596).
103
e neutralidade, contaminação da humanidade com a desper­
sonalização dos fantasmas e das sombras da realidade nunca
percebida como tal. Em um mundo falso, a possibilidade de
uma falsidade com a mais plástica aparência de verdade: eis o
que tem de ser combatido. Eis a essência da idolatria, ou, o que
dá no mesmo, o núcleo de toda violência, dada à luz no parto
da história, na história pano-de-fundo da Totalidade que es­
tende suas asas consoladoras por sobre os restos da realidade
violentada, tentando convencer que a violência não existe pro­
priamente, apenas o desconsolo do que não se inclina à mera
lógica do ser e do não-ser. Neste sentido, o estudo da Totalida­
de - inclusive aquele realizado pela arte - é a quintessência da
crítica. Crítica é o estudo da negação da Alteridade.
Adorno vê na aparência de verdade a maior das não-ver­
dades, a melhor das sombras que se dá no melhor dos mundos
possíveis para a Totalidade não-verdadeira. Que esta grande
hipocrisia possa ser analisada apesar de sua grande crise destes
séculos XX e XXI, apesar das idas e vindas da racionalidade
sequestrada por sonhos de grandeza; que nos interstícios des­
ta grande realidade racional e compacta ainda possa pulsar o
não-idêntico, o diferente, e que a este diferente, a este disper­
so e diverso, ainda se possa achegar de forma essencialmente
não-violenta: eis o mistério da inteligibilidade própria de uma
estética que respeita as obras como tais sem reduzi -las a vari­
áveis de espécie alguma, ou seja, que não cultiva as aparências
de pretenso equilíbrio num mundo cuja marca mais notável é,
exatamente, a do desequilíbrio em todos os planos possíveis, do
psíquico ao ecológico, do social e econômico ao onírico e ar­
tístico: frutos maduros da reificação da consciência. Encontrar,
apesar da postulação da vida da Totalidade, o que restou de
vida verdadeira para além - ou aquém - das possibilidades da
vida da Totalidade: eis a imensa tarefa desta estética negativa,
um outro nome para a ética do não-idêntico ( Cf. Souza, 2004b ).
A percepção é a mesma em ambos: o verdadeiro é o que
não é o todo da Totalidade. A obra de arte deve vir a ser um
1 04
posto avançado nesta reconquista da credibilidade pelo Não­
-ser. Sua urgência é a urgência do sofrimento. A mais aguda
das racionalidades não pode ignorar este outro lado da his­
tória; este reverso da pretensa credibilidade da violência do
neutro. A racionalidade ético-estética mais aguda acaba por
perceber que a realidade possui infinitas dimensões. E esta
percepção é um bom começo.
1 05
A ASFIXIA DO NÃO-IDÊNTICO:
Kafka, leitor do século XX
Era um homem e um artista de consciência
tão escrupulosa que ainda se mantinha alerta
onde os outros, os surdos, já se sentiam seguros.
Milena TESENSKÁ
O que pode acontecer quando a mais alta literatura, ex­
pressão da mais sofisticada inteligência, encontra o nervo expos­
to do século XX, após a falência de historicismos e otimismos
acríticos de toda ordem? Seguramente, algo grandioso. Eis Ka­
fka, intérprete de sua época - a época da corrosão da totalidade
(Cf. Souza, 1996), da crise radical do sentido (Cf Souza, 1998),
do escancarado desmoronamento de uma certa ideia de razão e
de história,90 da falência final do otimismo da representação (Cf.
Souza, 2004b) e do tempo patológico (Cf. Souza, 2000a).
90
"O veredito histórico resulta da dominação disfarçada, que assim se configura
como mito, como violência cega que se reproduz infinitamente. Em sua fase
mais recente, a do controle burocrático, Kafka reconhece sua fase inicial, reto­
mando como história primitiva o que ela descarta. As rupturas e deformações
da modernidade são para ele vestígios da idade da pedra, as figuras de giz no
quadro-negro de ontem, que ninguém apagou, parecem-lhe os verdadeiros de­
senhos das cavernas" (Souza, 1998, p 257).
107
O fato é que Kafka é um autor cuja grandeza costuma se
refugiar habilmente de seus intérpretes; todavia, interpretá-lo
é apesar de tudo necessário - sem Kafka, não se entende abso­
lutamente o século XX, a profunda desordenação feita opaci­
dade que o acompanha, nem sua grande crise: a provavelmente
maior crise civilizatória da história da humanidade ocidental.
Sem Kafka, todo um espectro de novidade permanece na obs­
curidade da má-compreensão. Com Kafka, o mundo se agudi­
za até um ponto visceralmente insuportável, mas necessário.
Filosoficamente considerada, a arte de Kafka poderia ser
aproximada de uma concepção de literatura extremamente
concreta, em um sentido diferente daquele que normalmente
se considera como sendo a forma especificamente literária de
concretude, ou seja, a realidade ínsita à literatura enquanto tal.
Pois a concretude aqui reverbera estranhamente apesar da li­
teratura, ou seja, deixa de dizer-se no momento em que a letra
elaboradamente a circunscreve e principia seu tenso, incom­
parável discurso, no instante exato em que a literatura chega a
seu termo próprio, seja em termos formais, seja em termos de
quaisquer intenções que lhe pudessem ser atribuídas. Muitas
literaturas têm na singularidade e na criatividade agressiva a
sua bandeira; mas a arte de Kafka é uma das poucas em que o
extrapolar por excelência do comedimento das palavras tor­
na-se seu verdadeiro tecido: nenhuma de suas palavras atrai
para si a atenção, nenhuma pretende enfeitiçar a qualquer
pretexto e, apesar disso, não podem, a contragosto, deixar de
fazer tal, e de tal forma fazem isso, que o mundo se revela
verdadeiramente e sua segurança se distorce, a complexidade
artificial da vida apresenta-se em sua dimensão de ilogicida­
de original com ares de uma infinita naturalidade, apesar do
discurso estranhamente neutro, um irritante naturalismo de
evidências que contraria e supera magistralmente, incompa­
ravelmente, qualquer naturalismo artificial, qualquer pretensa
elaboração metafísica prévia, qualquer indecisão no acopla­
mento às camadas fundas da realidade. Um grande paradoxo
1 08
kafkiano: da indecisão para além dela, e sempre retornando,
incomodamente, a ela, a um fundamentum inconcussum de
estranheza e proximidade, de Ser, da real perplexidade - <<após
qualquer interpretação, o que sobra de incompreensível em
Kafka - e é muita coisa - repousa sobre uma base tão inaba­
lável quanto de difícil acesso. Eis porque seus escritos, com
todo seu poder de criar a perplexidade, não deixam ao mesmo
tempo nenhuma dúvida sobre a sua 'verdade interior"' (Heller,
1 976, p. 28). ((Verdade interioe': incapacidade de sucumbir à
condescendência das palavras, de suavizar a irredutibilidade
do real a um todo harmonioso e bem -construído: espelho do
tempo. Ao contrário do que muitas vezes se pensa a partir
de parâmetros ((realistas", a perplexidade, em Kafka, não é o
alvo principal do discurso, apenas um corolário incômodo da
hiper-realidade desvelada (origem de qualquer realidade des­
crita no naturalismo), a qual não finge ser de outra forma. É a
esta «hiper-realidade" que o discurso se dirige, ou seja, esta é a
sua realidade própria.91
A pretensa «incompreensibilidade" da obra kafkiana re­
pousa talvez sobre uma certa precariedade original de compre­
ensão, um involuntário vício «realista" - mas realista de menos
, uma tendência de iluminação racional, tentação de sua e de
nossa época - a qual não costuma aceitar nichos escuros no
bloco do que supõe ser a ((realidade': É de ousar-se dizer que a
realidade mais densa concebida nestes moldes é ainda muito
-
91
Hiper-realidade: realidade que condensa em si uma multiplicidade de sentidos
complementares ou contraditórios e uma variedade de vivências e existências; se
à realidade se pode eventualmente contrapor a "fantasià' e o "sonho': a memória
e as dimensões de contraste entre um indivíduo e um mundo social, a hiper­
-realidade não poderia ser concebida sem cada um destes aspectos em sua espe­
cificidade e plenitude, em sua vida própria, em um todo que tomará em certos
momentos a aparência do mero absurdo (Cf. Souza, 2000a, p. 31ss). Em Lição
de Kafka, Modesto Carone refere a conhecida expressão de Anatol Rosenfeld,
segundo a qual "Kafka descreve a realidade, a nossa realidade, mas com o olhar
de quem estivesse despertando"; essa afirmação é extremamente profunda em
termos de enquadramento da obra kafkiana, e compartilhamos dela completa­
mente (Cf. Carone, 2009, p. 134).
1 09
fraca, excessivamente parcial, seja para sustentar a estrutura
interna das obras, seja para servir de parâmetro comparativo a
uma determinada elucidação da teia do discurso literário. Em
Kafka, toda tentação de suavizar a realidade de suas· arestas
mais incômodas, de aliviá-la de sua incomodidade, tem de ser,
naturalmente, rapidamente abandonada - mas isto é apenas
uma pálida dimensão da questão e não é simplesmente sufi­
ciente: há que se perceber o quão pouco a cronologia da reali­
dade cotidiana, o correr compassado dos instantes sucessivos
e prenhes de pequenas promessas, pode acompanhar a hiper­
-realidade concentrada desta literatura, a qual é, em um sen­
tido muito preciso deste termo, ((anti-literária': Franz Kafka é
um homem às voltas com um volume excessivo de elementos,
de realidade, um bloco de incomodidade, e que não se pode
desfazer deste peso, ainda que mergulhando profundamente
em algum delírio ou sonho, os quais se revelam, na unicidade
e solidão do Ser, nada mais do que apenas uma outra face,
uma face obscura e neutramente cruel, real sempre, deste Ser
repleto: ainda as mais diáfanas, as mais distantes imagens são
reais demais, excessivamente presentes à indeclinável presen­
ça kafkiana, como Fraulein Bürstner afastando-se lentamente
ao final de O Processo. 92
O tempo de Kafka, ao qual ele, em sua vida, com tanta
inabilidade não consegue se integrar (Cf. Heller, 1 976, p. 50),
é um tempo saturado de presente e de presenças, ele existe em
função do ser parmenideano, é uma artística face deste Ser, e
92
Em termos filosóficos, poder-se-ia dizer: não há necessidade do estabelecimento
de todo um corolário de circunstâncias descritas a fim de não deixar dúvidas
a respeito da específica "realidade" dos personagens e da história: estes são já,
em si mesmos, em sua generalidade, perfeitamente reais. Em outros termos: no
universo hiper-real de Kafka, os adereços realísticos normais são excessivamente
fracos-
a realidade suavizada do dia-a-dia, a qual não se dá em bloco, como em
seus romances, é excessivamente diáfana portanto, todo artifício destinado, na
-
literatura "normal': a carregar de cores os personagens descritos, são dispensá­
veis quando extrapolam a mera característica de
cunstâncias e das paisagens em um
inscrição das figuras, das cir­
determinado mundo repleto e que não dá
explicações de sua essência nem de sua existência.
1 10
ser no presente do indicativo, repleto e onipresente, de des­
dobramento frenético, sufocado de sobras, ao mesmo tempo
guerra hiper-concentrada dos espaços no qual este mesmo Ser
se dá, como já intuíra Heráclito. Esta luta perfeitamente surda,
pesadamente silenciosa, urbana, de gabinete, (em contrapon­
to com os grandes estrépitos dos canhões da guerra aberta), é
sentida por Kafka como um a estranha luta interior, a qual ele
é e na qual perecerá (Cf. Heller, 1976, p. 50). Um espantoso
descompasso entre o interior e o exterior do Ser - eis o epi­
fenômeno desta luta: ((os relógios não estão iguais: o interior
avança alucinadamente num ritmo diabólico, demoníaco, ou,
na melhor das hipóteses, anti-humano; o exterior, prossegue
em seu ritmo habitual. Que mais pode ocorrer, senão uma se­
paração violenta; e é isto o que ocorre, ou ao menos, eles se
chocam de um modo terrível" (Kafka apud Heller, 1976, p. 52).
Eis o seu tempo, simultaneamente de sua vida e de sua morte,
vida de um ocaso e morte de uma era.
Os espantosos mundos de Kafka são o resultado de uma
tensão extrema, que culmina assim em neste espectro de hi­
per-realidade, de concentração de Ser, para a qual os parâme­
tros normais, sejam da realidade cotidiana ou interpretada,
sejam da fantasia e da loucura, sejam da concretude literária
e da recorrente normalidade de criação de mundos sucessivos
de sentido, são simplesmente insuficientes. Todos os mundos
dão-se ao mesmo tempo: trata-se de uma literatura visceral­
mente anormal - não dá, nem à intuição nem à razão, razões
para crer que possam vir a captar sua essência e, talvez por
isso, exerça um tal poder de sedução sobre espíritos inquietos,
por sua vez imersos em tensão. Tensão absoluta, não admite
relatividades sem, porém, utilizar-se de quaisquer argumentos
para declinar desta admissão: chancelas e contra-chancelas
são aqui, simplesmente, fracas demais. O turbilhão é excessi­
vamente forte, plastificado embora na sucessão das palavras; o
milagre é que as palavras consigam, apesar da intensidade que
pulsa sob elas, permanecer razoavelmente conectadas. A arte
111
literária de Kafka é uma arte improvável: nada, nenhuma aná­
lise prévia, poderia prever algum tipo de sucesso nesta tarefa
ingrata à qual o autor se propôs - des-neutralizar a realidade,
neutralizando a expressão em uma lógica excessivamente in­
teligível - desde que sejam abandonados os parâmetros nor­
mais, mornos, razoáveis, medíocres, de inteligibilidade.
As raízes desta tensão hiper-concentrada, desta incômo­
da criatividade em contínua transmutação na direção de uma
embriagadora estranheza, desta hiper-realidade, interessam
sobremaneira à filosofia que pretende se aproximar dos cons­
titutivos e das raízes profundas do século XX. E isto porque
exatamente este é o século XX: o mundo das realidades su­
focadas, onde os triunfos esmagam as sementes abortadas do
novo. Kafka descobre o Ser presente em sua presença plena e,
portanto, perfeitamente indiscutível; excesso de concentração
de um Ser essencialmente não triunfante, mas antes incomo­
damente espalhado ao longo da infinidade dos instantes, ex­
cessivamente opaco. Cada palavra com uma auréola de discri­
ção, sugerindo muitíssimo mais do que diz - a obra kafkiana
destila um humor muito particular, tão particular que não
tem espaço cativo no circo da história: tem de criar seu pró­
prio espaço nos poucos interstícios do bloco de realidade que
continuamente traduz. A obra de Kafka: uma grande, incom­
parável descoberta - o desvelamento do hiper-realismo antes
e depois de qualquer realismo e idealismo.
A
espantosa solidão
Esta descoberta, porém, não é simplesmente reproduzí­
vel. Ela tem como condição a situação de extremada solidão
do autor, a solidão pertinaz que o perseguiu desde a infância, a
mesma espantosa solidão de Gregor Samsa ao se perceber im­
pessoalmente excluído da comunidade humana, do Artista da
1 12
Fome em sua jaula, dos desencontrados segmentos da Muralha
da China, do assustado animal da Construção ou de Joseph K.
em todos os momentos de sua vida ao longo do Processo, não
obstante os diálogos e as mulheres. Em Kafka, o coletivo real
não existe, a não ser talvez como desejo distante de humanida­
de - como quando Karl Rossmann observa não sem expectati­
va a multidão no porto, ou como sombra amorfa, automática,
em Josefina, a cantora; não existe a inter-humanidade, ape­
nas a humanidade solitária, que ao renunciar à coletividade
renuncia também aos vícios coletivos; humanidade expres­
sa de uma vez para sempre em figuras dela sobrecarregadas,
repletas de uma carga não intersubjetivamente compartilhá­
vel - um tempo pesado, uma figura da essência dos tempos
modernos, um presente que é, antes de tudo, um estranho
passado não-correspondido. Uma solidão cuja obviedade nos
personagens é intensa, chocante, de realidade indubitável, e
que dispensa completamente circunvoluções explicativas, ate­
nuações semânticas condescendentes, que pudessem iludir o
leitor levando-o a pensar que a realidade não é tão intensa
quanto aparece. É esta solidão que permite o verdadeiro corte
vertical nas estruturas da realidade executado por Kafka. A
solidão, a espantosa solidão em sua crueza e ausência de malí­
cia estética, conta-se no rol das mais profundas das realidades
do mundo, e a mais bem captada por Kafka, trazida por ele
- sem eufemismos à consciência de uma época perdida. 93
-
93
"A igualdade, ou intrigante semelhança, de um enorme número de objetos é um
dos mais persistentes motivos de Kafka. Todas as espécies de seres híbridos pos­
síveis aparecem sempre aos pares, muitas vezes com a marca do infantil e
do bobo, oscilando entre a bondade
e
a crueldade, como os selvagens nos
livros infantis. A individuação tornou-se tão difícil para os homens,
c
é ainda
hoje tão incerta, que eles são tomados por um susto mortal assim que se levanta
um pouco o seu véu. Proust estava familiarizado com o leve mal-estar suscitado
pelo reconhecimento da semelhança com um parente longínquo. Em Kafka, o
mal-estar se transforma em pânico. O reino do
déjà
vu
é povoado de sósias,
revenants, bufões, dançarinos hassídicos, meninos que imitam o professor e de
repente adquirem o aspecto de anciãos arcaicos. Em certa passagem,
o
agrimen­
sor [de O castelo, R. T. S.] duvida que os seus auxiliares estejam realmente vivos"
(Adorno, 1998, p. 249).
113
Esta solidão se apresenta, por outro lado, de forma "purà':
não há espaço para intimidades ou muros bem -construídos
em torno a uma mônada especial, escolhida para simbolizar
todas as outras - aliás, toda sua obra assemelha-se a um desa­
bar sincopado de muros e muralhas de todo tipo que aparen­
temente permanecem inabaláveis.
Em seu trabalho não há símbolos privados, como nas obras simbo­
listas, nenhum fragmento cristalizado de sensações íntimas carre­
gadas de misterioso significado; nem há nele, à maneira dos expres­
sionistas, qualquer ensaio de novas atitudes da alma, mais de acordo
com o novo ritmo da sociedade moderna. Em vez de tudo isso, o
leitor defronta-se com o espetáculo chocante de uma alma mira­
culosamente sensível, incapaz de ser razoável, cínica, resignada ou
rebelde ante a perspectiva da eterna danação (Heller, 1976, p. 1 00).
Todos estes adereços, estes fragmentos de explicação,
são desnecessários. Nenhum eufemismo, ainda que "negati­
vo" (exagerando nas cores do trágico, acentuando-as a ponto
de destacá-las definitivamente dos tecidos da coloquialidade),
pode ser utilizado; neste mundo, há apenas a realidade, um
mundo "torturadoramente familiar". Heller diz,
[ ] inquestionavelmente semelhante ao do próprio leitor: um cas­
telo que é simples castelo e "simboliza" apenas o que todos os cas­
telos simbolizam: poder e autoridade; uma burocracia que se afo­
ga num dilúvio de fórmulas e fichas; uma obscura hierarquia de
funcionalismo que torna impossível encontrar a pessoa devida­
mente autorizada a cuidar de um caso determinado; funcionários
que fazem horas extraordinárias e não chegam a coisa alguma;
inumeráveis audiências que elidem o assunto; estalagens onde os
camponeses se reúnem, e garçonetes que servem os funcionários
(Heller, 1 976, p. 1 00).
...
A este elenco se poderia juntar as infinitas precauções de
segurança do animal de A construção, ao final inverificáveis e
inúteis; o esquecimento que o Povo dos Camundongos devotará
1 14
a Josefina, a cantora, quando sua voz se calar definitivamente;94
a inutilidade dos ingentes esforços do Artista da Fome na
busca solene da auto-perfeição e da tolerabilidade da sobre­
vivência, a indefinição entre a vida e a morte do Caçador
Graco - tudo isso configura um maciço ancestral, no qual
cada palavra �em excesso é um pecado imperdoável porque
inútil. Em todos os casos, não há espaços para artifícios retóri­
cos ou para sutilezas literárias: a realidade simplesmente ocu­
pa todos os espaços, é una, intensa e indiferente. A realidade
de Kafka é a solidão - os termos "solidão" e "realidade" sofrem
de uma quase convertibilidade. Vida excessivamente concen­
trada em um determinado pólo de auto-referência solitária,
um ponto focal que não gostaria de assumir tal responsabili­
dade, mas a assume, a bem da interpretação dos tempos, e in­
terpretação extremadamente sincera, da qual a mediocridade
não ousa se aproximar: toda mediocridade recai no ridículo,
na evidência de seu vazio, ao simplesmente ousar tentar inte­
ligir um ritmo que definitivamente não é o seu. Esta foi a vida
do autor Franz Kafka em seu insuportável escritório burocrá­
tico: o ter de traduzir o quanto a mediocridade do mundo lhe
é estranha, sabendo, não obstante, que tal explicitação é em
si impossível e destinada lamentavelmente ao fracasso - pois
pertence à essência da mediocridade entender-se não-estra­
nha, nem a si mesma, nem a nada, de tal forma invade os es­
paços, como o odor da decomposição que se dissemina pelos
espaços e que narizes pouco sensíveis ou já acostumados nem
ao menos percebem mais; quem nunca experimentou o que é
vida não aguenta evadir-se do estado de morte. Kafka f areja a
decomposição dos tempos. Sua vida, sua solidão, foi ter de li­
dar com esta incomodidade; sua arte, oferecer, de forma extra­
ordinariamente indubitável, esta incomodidade à posteridade.
94
"Possivelmente, portanto, não sentiremos muita falta, mas Josefina, redimida da
canseira terrena - a seu ver preparada para os eleitos - se perderá alegremente na
incontável multidão de heróis do nosso povo e em breve - uma vez que não cultiva­
mos a história- estará esquecida, como todos os seus irmãos, na escalada da reden­
ção'' [de "Josefina a Cantora ou O Povo dos Camundongos" (Kafka,
1995, p. 58)).
1 15
A figura de Kafka se insere com clareza na última gera­
ção razoavelmente caracterizável como pertencente ao grande
movimento de assimilação judaico-alemã em sua última fase
- um movimento histórico extremadamente complexo - mes­
mo sendo o contexto do escritor considerado precisamente
em suas particularidades. Este movimento de assimilação,
remontando aos tempos do Iluminismo alemão e tendo em
Moses Mendelssohn um de seus inspiradores mais diretos,
significava, por si só, uma situação de extrema tensão que se
inscrevia no cruzamento entre vidas particulares e contextos
históricos coletivos. Os pais, as gerações imediatamente ante­
riores em processo de assimilação, haviam construído, apro­
veitando a disponibilidade histórica relativa e com grandes es­
forços, seu espaço social; o que é válido para Hermann Kafka
o era também provavelmente para muitas famílias com filhos
menos conhecidos:
Filho de um açougueiro do interior, seu pai (de Kafka) foi criado
como checo e, após anos de labuta, por esforço próprio, tornara­
-se próspero negociante, passando-se para o lado dominante, o
dos alemães, sem, no entanto, chegar ao domínio completo da lín­
gua escrita destes - "foi capaz de sobrepujar os checos, depois os
alemães, logo os judeus [ ...] não seletivamente, mas em todos os
aspectos e, no final, restou apenas ele" (Heller, 1976, p. 18).
O que foi válido para Kafka, e que ele precisou com tal
clareza - que os filhos mantinham "as patas traseiras atoladas
no judaísmo paterno, enquanto as dianteiras não se conse­
guiam firmar em terreno novo. O desespero daí resultante era
sua inspiração" (apud Heller, 1976, p. 1 8 - 1 9) - é provavelmen­
te um lugar comum para todas as grandes produções judaico­
-alemãs da época, mas também para a simples sobrevivência
em meio ao tumulto dos tempos e à incerteza geral reinante,
que não era, naturalmente, apanágio de um determinado con­
texto particular, mas penetrava a cultura como um todo.
1 16
Mas esta particularidade cultural não permanece fecha­
da em si mesma; ela sugere a possibilidade de pensá -la como
parâmetro interpretativo da tensão cultural em geral. O que se
dá é que, ali, os frutos desta tensão criativa floresceram corn
intensidade inusitada. As tensões individuais produtivas da
época, das quais Kafka é uma instância paradigmática, tinham
lugar porque se davam em uma cultura, ela mesma, tensio­
nada ao extremo, repleta de pontos de contato internos e ex­
ternos entre diversas dimensões, pontos de contato que eram,
também, pontos de atrito, e atrito forte. Assim, Kafka não pode
ser entendido se não o for no fulcro criado exatamente por
esta excessiva aproximação do diferente: culturas diferen­
tes, línguas, individualidades e cosmovisões profundamen­
te diferentes. Sem isso, sem estes incômodos e estes choques
dilacerantes, teria permanecido um escritor excessivamente
circunstanciado para passar, com tal autoridade, à universa­
lidade do sentido. Em outros termos: é porque existe a tensão
que existe a construção. São termos mutuamente referentes e,
poder-se-ia adiantar, até certo ponto generalizáveis. O certo
é, porém, que nenhum momento de intensa tensão cultural
deixou de dar à luz a produções que podem levar a re alida­
de a coincidir consigo mesma, ou seja, que podem permitir
o rompimento localizado ou mais generalizado do envoltório
ideológico - do envoltório de insustentabilidade real - da To­
talidade, das hegemonias bem-pensantes.
Dessa forma, as camadas em processo final de assimila­
ção concluída (acontecimento sobremaneira raro, e cuja ra­
ridade se deve, também à infinidade das variáveis envolvidas
para além das vontades pessoais) ou abortada (situação mais
comum e dolorosa, mais tensa e profícua) eram depositárias
de vários níveis de tensão potencialmente produtiva, ou pro­
dutiva em níveis inusitados. Além da tensão particular a que se
viam compelidas por seu próprio status de indefinição, encar­
navam também a esperança de objetivação da tensão reinante
além do mundo de suas particularidades, ou seja, na cultura
1 17
europeia em geral, em estado de indefinição e profundo mal­
-estar na situação de virada de século e de sonhos já a estas al­
turas mais ou menos destroçados. Não detinham, obviamente,
o monopólio da criatividade, mas esta se exprimia, ali, de for­
ma particularmente dolorosa, terrivelmente intensa e impos­
tergável, muitas vezes sufocante e desesperançada, outras vezes
cuidadosamente sublimada e "bem organizadà' - mas sempre
penetrante, penetrante no mundo do consenso tolo e da im­
previsão, desnudando definitivamente o rei que "já está nu':
Esta criatividade se traduz, em Kafka, sobre a forma de
um estranho e incisivo já referido corte vertical nas sucessivas
camadas da realidade, até que nenhum disfarce mais sobrevi­
va: nenhuma meia-palavra poderá, a partir de então, ocupar o
espaço da palavra inteira; nenhuma amplidão, nenhum hori­
zonte sedutor se substitui ao bloco que ocupa o espaço. E, por
isso, é Kafka um autor definitivo.
A
tensão e a condenação à vida: "Primeira dor"
A intensidade da escrita kafkiana, sua densidade pe­
netrante, pouco compassada, pouco moderada, que não faz
concessão de nenhuma espécie a interpolações explicativas e
circunstancialismos atenuantes, naquilo que se pode enten­
der como a realidade, a literatura despida do desnecessário
esta particular intensidade pode ser percebida em alguns
contos tardios do autor, como, por exemplo, em "Primeira
dor'', escrito entre janeiro e fevereiro de 1 922 e pertencen­
do, portando, ao conjunto das últimas obras do escritor já
há tempos manifestamente doente (C f. Carone apud Kafka,
1 995). Trata-se de uma bela e concisa fábula; em cerca de
quatro páginas se descreve com extrema intensidade e suti­
leza o processo de inserção de uma determinada <<subjetivi­
dade" l)a vida, um atrito doloroso, amadurecedor, inelutável,
-
118
dominado pelo tempo; e, ao longo da descrição, o discurso
- nota característica do Kafka maduro - permanece a uma
prudente distância do leitor.
Um artista do trapézio - como se sabe, esta arte que se pratica no
alto da cúpula dos grandes teatros de variedades é uma das mais
difíceis entre todas as acessíveis aos homens - tinha organizado sua
vida de tal maneira, primeiro pelo esforço de perfeição, depois peJo
hábito que se tornou tirânico, que enquanto trabalhava na mesma
empresa permanecia dia e noite no trapézio[ .. .] (Kafka, 1 995, p. 9).
Eis que o artista constrói seu mundo, um mundo que lhe
é próprio, bem organizado, campo de exercício da perfeição de
sua arte, alimento de sua sobrevivência, um mundo particular
modesto, mas seguro e bem ordenado, otimamente constituí­
do. O mundo externo participa de certa forma da manutenção
deste mundo particular, circunscrito, porém pacífico, ajuda a
manter a ordem - "Todas as suas necessidades, aliás bem ínfi­
mas, eram atendidas por criados que se revezavam [ ... ] " (Kafka,
1995, p. 9). A este artista "extraordinário e insubstituível" era
concedido o direito a uma tal excentricidade, e mesmo quan­
do o olhar do público, quando da execução de outros núme­
ros, se voltava para ele, escapava à ira dos diretores.
O artista dó trapézio mantinha assim a perfeição de sua
arte, em um âmbito de existência humana restrito, porém
dentro dos limites da tolerabilidade, do equilíbrio, congruente
com seu mundo; com exceção de algum colega ou funcioná­
rio, que com ele conversava ou lhe dirigia a palavra em tom
((respeitoso mas pouco inteligível" ( Kafka, 1 995, p. 1 0), pou­
co era o contato do trapezista com outros seres - uma vida
penetrada pelo silêncio, pela calma das significações claras e
bem-controladas:
[ . .. ] o silêncio o cercava; algumas vezes um funcionário qua]quer,
que porventura errava à tarde pelo teatro vazio, erguia o olhar
para a altura- que quase fugia à vista- onde o artista do trapézio,
sem poder adivinhar que a1guém o observava, exercia sua arte ou
descansava (Kafka, 1995, p. 1 0).
1 19
Ninguém observava propriamente o seu mundo; seu
mundo não pertencia à ordem das realidades observáveis. Pos­
tava-se alto demais para a interpenetração com mundos estra­
nhos: era ali que transcorria sua vida, inacessível a olhos· baixos.
Mas a paz, a vida tranquila do trapezista, é perturbada;
as viagens inevitáveis do circo, os deslo� amentos na direção
de novas praças de apresentação, tudo isso, não obstante os
esforços do dono do circo, se constituía em perturbação da
harmonia interna do artista do trapézio "Por mais bem suce­
didas que essas viagens fossem para o empresário, cada nova
excursão lhe era penosa, pois a despeito de tudo perturbavam
seriamente os nervos do trapezistà' (Kafka, 1995, p. 11).
Esta paz relativa, esta sobrevivência tolerável, não está
destinada a durar. Em uma das viagens, o trapezista segreda
ao empresário, que o acompanhava, que dali em diante neces­
sitaria sempre de dois trapézios, e não de apenas um, para a
realização de seu número. Em nenhuma hipótese concorda­
ria em trabalhar o artista com apenas um trapézio - "parecia
estremecer só com a ideia de que isso acontecesse novamen­
te" (Kafka, 1 995, p. 1 1 ) - não obstante as promessas e a co­
miseração do empresário. Tudo foi inútil, porém; o ritmo se
intensifica - todas as promessas do empresário tinham sido
inúteis para abordar a solidão e a intensidade do sentimento
do trapezista.
De repente o artista do trapézio começou a chorar. Profundamen­
te assustado, o empresário deu um salto e perguntou o que havia
acontecido; por não receber resposta, subiu no assento, acariciou­
-o e apertou o rosto dele contra o seu, de tal modo que as lágri­
mas do trapezista lhe escorreram sobre a pele. Mas só depois de
muitas perguntas e palavras de carinho o artista do trapézio disse
soluçando: "Só com esta barra na mão, como é que posso viver?"
Agora era mais fácil para o empresário consolar o artista; prome­
teu telegrafar da primeira estação para o lugar da apresentação
seguinte, pedindo o segundo trapézio [ .. .] Foi assim que o em­
presário pôde aos poucos acalmar o artista e voltar ao seu canto
(Kafka, 1995, p. 11-12).
120
Não há o que penetre no desconsolo do trapezista, o que
o justifique e o anule, uma vez acontecido: unicidade espanto­
sa e definitiva do indivíduo, percepção de indigência; apenas
a exaustão humana se sobrepõe, em termos muito relativos, à
dor humana. Trata-se de uma espécie de protótipo perfeito do
nascimento. Nenhuma linguagem cicatriza o ferimento vital, a
ninguém é dado anulá-lo para sempre - a inscrição no tempo
e no espaço, no decorrer indiferente dos fatos, dos sucessivos
aconteceres, esta inscrição incômoda e real é definitiva, pois a
condição humana não pressupõe gradações. Assim, nenhum
consolo é definitivo, nenhum consolo é propriamente real;
bem o sabe o empresário, o qual, mais experiente, mais realis­
ta, não guarda ilusões de redenção: a cadeia de pensamentos
o cerca, envolvendo-o na realidade presenciada, em sua gravi­
dade. Lúcido, embora não excessivamente lúcido, o empresá­
rio compartilhava da preocupação:
Mas ele mesmo não estava tranqüilo e com grave preocupação
examinava secretamente o trapezista por cima do livro. Se pen­
samentos como esse começassem a atormentá-lo, poderiam ces­
sar por completo? Não continuariam aumentando sempre? Não
ameaçariam sua existência? E de fato o empresário acreditou ver,
no sono aparentemente calmo em que o choro tinha terminado,
como as primeiras rugas começavam a se desenhar na lisa testa de
criança do artista de trapézio (Kafka, 1 995, p. 12).
Está iniciada a tensão vital, deu-se a solitária e definitiva
inscrição na vida; todo o resto pertence ao campo improvável
das linguagens justificadoras, sempre atrasadas em relação aos
fatos, às expressões sucessivas do peso da realidade. Não há
nenhuma esperança de o artista do trapézio voltar ao estado
anterior, ou seja, quando ainda não havia experimentado a
Primeira Dor; a dor primigênia que é também, de certo modo
a dor final; a dor efetiva da inserção na realidade, este parto ao
contrário, é única e definitiva - ela caracteriza a tensão vital
que se expressa na sobrevivência apesar dela, ainda antes dela,
121
definitivamente existente sem surpresa excessiva, sem descon­
tentamentos inúteis, sem existencialismos -: apenas consigo
mesma - solitária.
Um Kafka al modo riverso, com espaço para a preocupa­
ção genuína de alguém por outrem? Não, apenas um Kafka hi­
permaduro, de uma sobriedade absoluta que faz justiça a uma
intensidade absoluta.
O ser e o frenetismo de ser:
o tempo sem espaços de "Uma mulherzinha"
'�i de mim!" Exclamou o camundongo, "o mundo está
ficando cada vez menor. De início era tão grande,
que eu me apavorava. Vivia correndo para lá e para cá,
e só me tranqüilizava quando via porfim, paredes
bem distantes à esquerda e à direita. Mas o espaço entre essas paredes
estreitou-se tão rapidamente que já me encontro
na última câmara, e vejo ali no canto a ratoeira onde de certo esbarrarei".
"Ora, basta-lhe escolher outro caminho', disse o gato", antes de engoli-lo.
Franz KAFKA. Uma fabulazinha
Este conto, exercício de extremo virtuosismo narrativo
(uma das últimas obras do autor), mantém da primeira à úl­
tima linha um ritmo frenético, completo, sem hesitações nem
espaços. A banal história da mulherzinha incomodada pela
existência do narrador acaba por se revelar ao fim uma anti­
-fábula, sem espaços para metáforas, respirações ou pausas
revitalizantes. O notável deste texto é exatamente que ele não
possui pausas em nenhum sentido, não possui espaços abertos
para considerações, nenhuma construção é plurívoca. As pa­
lavras dizem apenas o que dizem, e no ritmo infernal em que
dizem. Os acontecimentos têm o mesmo peso que as conside­
rações do autor, o exame das possibilidades que se lhe suge­
rem para poder lidar com o incômodo da mulherzinha: é que
122
tudo, neste texto, tem o mesmo valor, um mesmo sentido de
repleção e asfixia num tempo e espaço infinitamente estrei­
tos, refletido na infinita estreiteza mental da mulherzinha que,
exatamente por isso, é absoluta..
Pois a pequena mulher invade todos os espaços com sua
presença; toda ela é frenesi e sua presença é já pura tensão, ou,
pelo menos, notável retesamento; denota uma definitiva in­
comodidade emoldurada por uma agilidade que garante que
nada, nenhum nicho da realidade, lhe escapa; está, sempre,
prestes a devassar todos os escaninhos da existência.
É uma mulher pequena; embora esbelta por natureza, anda muito
espartilhada [ . . ]. Apesar do espartilho seus movimentos são ágeis,
.
naturalmente ela exagera essa mobilidade, gosta de conservar as
mãos nos quadris e vira a parte superior do corpo para o lado com
um arremesso surpreendentemente rápido (Kafka, 1995, p. 13).
Mas a incomodidade não permanece neutra:
Ora, essa mulherzinha está muito insatisfeita comigo, sempre tem
algo a censurar em mim, diante dela estou sempre errado e irrito-a
a cada passo; se fosse possível dividir a vida em partes mínimas e
cada partícula pudesse ser julgada em separado, certamente qual­
quer pedacinho da minha vida seria um aborrecimento para ela
(Kafka, 1995, p. 1 3 - 1 4).
Eis aí o início de uma situação penosa; a mulherzinha não
pode ignorar a existência do narrador, com que tudo acabaria
- permanece na obsessão do sofrimento irresolvido: [ ... ] todo
esse (meu) padecimento não é nada em comparação com sua
dor" (Kafka, 1995, p. 14). Esse sofrimento se enraíza também no
fato de que a mulherzinha desenvolveu uma ideia fixa: "Mas mi­
nha evolução também não a preocupa; ela não se preocupa con1
outra coisa que não seja o seu interesse pessoal, isto é: vingar-se
do tormento que provoco nela e impedir o tormento que, vindo
de mim, a ameaça no futuro, (Kafka, 1995, p. 1 4). O mundo
"
123
da mulherzinha é sem virtualidades nem possibilidades novas,
pois tem como sinônimo uma ide ia fixa; todo o seu sentido
deu-se de uma vez, inteiramente, no incômodo extremo e no
·
sofrimento particulares, no presente infinito. Presente, passado
e futuro resumem-se nisso: incômodo sofrimento e apreensão
advinda da continuidade desse sofrimento. O narrador nada
pode contra isso; sua ação é inútil e sem sentido: "Já tentei uma
vez apontar-lhe o melhor caminho para pôr um fim a esse dissa­
bor permanente, mas com isso levei-a a uma comoção tamanha
que não repetirei mais a tentativa" (Kafka, 1995, p. 14). Não há
tempo para tentativas ou apaziguamentos, para a racionalida­
de ou a ponderação bem -comportada: o tempo está completa­
mente ocupado, repleto até o seu último instante dolorosamente
contraído no presente, preso absolutamente a si mesmo.
É tão intenso o frenetismo do aborrecimento, tão com­
pleta a carência de alternativas, que o narrador quase cede à
tentação de uma espécie de paranóia particular " [ . . ] suspei­
to até que ela - pelo menos em parte - só se põe doente para,
desse modo, dirigir a suspeita do mundo contra mim" (Kafka,
1 995, p. 1 5). Talvez, nesse espectro extremo, um esforço con­
siderável, por parte do narrador, pudesse conduzir a um alívio
do estado de tensão presente. Mas os esforços de modificação
do narrador, na tentativa de aplacar ou minimizar a irritação
da mulherzinha, não têm nenhuma esperança de êxito - "ne­
nhum êxito me foi concedido" (Kafka, 1 995, p. 1 8). Pois a
questão é anterior, realmente primordial (( [ . ] é uma questão
de princípio; nada pode suplantá-la, nem mesmo a supressão
de minha pessoa; a notícia de meu suicídio, por exemplo, pro­
vocaria nela acessos de fúria sem limites" (Kafka, 1 995, p. 1 8).
O tempo nunca nasceu, antes deu-se, de uma vez para sempre,
sem passado nem futuro, paralisado em si mesmo. Não há ne­
nhuma possibilidade de retomar o caminho celeremente per­
corrido, assim como não há a menor possibilidade de a racio­
nalidade intervir no caso com felicidade - «Ora, não posso
imaginar que uma mulher tão aguda não enxergue tão bem
-
-
124
.
.
.
como eu tanto a falta de perspectiva de seus esforços, quanto
a minha inocência e a minha incapacidade para correspon­
der, mesmo com a melhor das vontades, às suas exigências,
(Kafka, 1 995, p. 18). Por nenhum lado, desde nenhuma pers­
pectiva, é possível romper o círculo diabólico do frenetismo;
trata-se de um redemoinho monstruoso, um mundo perfei­
tamente fechado, totalmente sem camadas subjacentes àquilo
que dele é apreensível, ao seu epifenômeno total - sem inters­
tícios, em uma paradoxal transparência perfeitamente opaca.
A irracionalidade franca do caso impede que se expresse
com clareza seu real conteúdo; o amigo consultado a respeito che­
ga a sugerir um conselho disparatado, aconselhando o narrador
a viajar por algum tempo - mas nenhuma racionalidade externa
penetra na carapaça do auto-referente (Kafka, 1995, p. 19). Ora, o
caso não é de viagem; em que qualquer viagem poderia contribuir
para amenizar a intensidade da situação? Na verdade, esta intensi­
dade já está dada de modo completo, em plena completude de Ser
que se afoga em si mesmo, não podendo nem se atenuar, nem se
exacerbar, podendo, apenas, sufocar-se em si mesma.
Ocorrem, sim, mudanças; mas essas mudanças nada têm
a ver com a essência da questão - apenas com a percepção des­
ta por parte do narrador, onde este já reserva um espaço para
a intrusão de um crescente nervosismo que se insinua no todo
Como mostram reflexões mais precisas, as mudanças que a ques­
tão parece ter sofrido no correr do tempo não são alterações do
assunto em si, mas apenas um avanço na visão que tenho dele, na
medida em que essa visão se torna, em parte, mais serena, mais
máscula, mais próxima do cerne e, em parte também, adquire um
certo nervosismo sob a influência insuperável dos contínuos aba­
los, por mais leves que estes sejam (Kafka, 1995, p. 1 9-20).
É o início de um contraponto complexo - de um lado,
uma crescente serenidade no trato da difícil questão; de ou­
tro, e apesar desta serenidade, uma inquietação visceral, de
origem irracional, logo superada, mas que, de algum modo,
125
acaba deixando algum tipo de vestígio atrás de si, uma seque­
la, em uma espécie de antevisão. A sua superação, porém, não
advém de seu enfrentamento; é a ausência de enfrentamento,
a manutenção do quase-insuportável, que se faz presente no
dia-a-dia de modo mais suportável, não para o narrador ou
um ator qualquer, mas para a situação como um todo - situa­
ção preenchida por irritação e sua manutenção, em um ritmo
sem desvios de sua lógica - "fico mais calmo diante da coisa
quando creio reconhecer que uma decisão, por mais próxima
que pareça estar, não virá [ ... ] nada de decisões, nada de expli­
cações [ ... ] o mundo não tem tempo para prestar atenção em
todos os casos" (Kafka, 1 995, p. 20). Nada no mundo é capaz
de conduzir à inelutabilidade de uma decisão, quando todos
os atores potenciais, mergulhados na anomia, alimentam-se
de sua própria inutilidade, inutilidade para romper a estrutura
rítmica compacta e para inserir, no corpo da questão, a mais
leve sugestão de uma mudança real:
No fundo porém sempre foi assim, sempre houve esses especta­
dores inúteis das esquinas e esses inúteis consumidores de ar, que
sempre desculparam sua proximidade de modo superastuto [ ]
sempre tiveram o nariz cheio de faro, mas o resultado disso tudo é
que apenas continuam aí. A única diferença é que aos poucos fui
conhecendo e distinguindo as suas caras; antes eu acreditava que
viessem de todos os lados, sucessivamente, que as dimensões do
caso aumentavam e forçariam por si mesmas a decisão; hoje julgo
saber que estavam todos ali desde sempre e que nada ou muito
pouco têm a ver com a chegada da decisão (Kafka, 1 995, p. 20-21).
...
Não há atividade de nenhuma espécie em termos reais;
apenas uma passividade doentia, excessivamente presente, que
avaliza com sua existência o grande movimento da engrena­
gem, desproporcional às dimensões reais do caso, de toda for­
ma ((pouco tendente a me intranquilizar" (Kafka, 1 995, p. 2 1 ) .
Mas o todo é, de certa forma, intranquilizador; a ausên­
cia absoluta de linguagem, a obsedante rotação do caso em
1 26
torno ao seu próprio eixo, a pertinácia infernal da irritação
da mulher, sua irracionalidade extrema que se alimenta de si
mesma, sua anti-discursividade autodestrutiva, a falta de no­
vidades reais a questionar esse todo compacto, tudo isso não
pode deixar de inquietar - ainda que o narrador, humana­
mente, tente eufemizar a intensidade dessa inquietação:
Não tem nada a ver com o sentido real da coisa o fato de que com
os anos me tornei um pouco inquieto [ ...]. Mas em parte trata-se
apenas de um sintoma da idade[ ... ] mesmo que alguém, quando
jovem, tenha tido um olhar um tanto à espreita, isso não é leva­
do a mal, não é notado nem por ele próprio; mas o que sobra na
velhice são resíduos e cada um deles é necessário, nenhum é reno­
vado, todos ficam sob observação [ . . ]. Mas também aqui não se
trata de uma piora real e efetiva (Kafka, 1 995, p. 21-22).
.
A condução final do texto, o último parágrafo, é sua sín­
tese: o surdo diapasão da insolubilidade de um todo auto-re­
ferente, sua adimensionalidade insignificante porém presente,
sempre presente, um caminho pré- traçado, invisível, abafa­
do, anti-eloquente em sua rotatividade desumana, que habita
exatamente as fronteiras entre uma consciência incompleta e
uma inconsciência apesar de tudo auto-complacente: um con­
vite suicida à inamovibilidade do movimento dos dias, o suave
rosnar de uma situação sem saída, a sedução em que se consti­
tui a ausência, no horizonte, da possibilidade de um espasmo
libertador- apenas inércia, mas inércia pesada, infinitamente
real, recorrente, habitante, como o caçador Graco, dos limites
imprecisos entre a vida e a morte:
Portanto, de onde quer que observe este pequeno caso, evidencia­
-se sempre - e nisso me apego - que, se eu o mantiver tapado com
a mão, mesmo que seja bem de leve, poderei prosseguir ainda por
muito tempo, calmamente, sem ser importunado pelo mundo, na
vida que tenho levado até agora - a despeito de toda a fúria dessa
mulher (Kafka, 1995, p. 22).
127
***
Afinal, que frenetismo é esse, tão completo, sem espe­
ranças de ruptura em sua mortificante solidez, em seu rede­
moinho incansável? Um fragmento das seis horas da tarde em
qualquer grande cidade do mundo? Um navio repleto de refu­
giados, sem tempo de decidir o rumo a tomar e, não obstante,
com os motores a toda máquina? Um conluio de políticos cor­
ruptos e tecnocratas ávidos por dinheiro? Um hospital lotado,
uma maternidade lotada, em seu frenesi de sobrevivência, em
sua vida palpitante, em sua semi-vida espasmódica? Um sis­
tema econômico suicida? O infinito das tensões que se criam
entre indivíduos tão próximos uns dos outros que nada mais
são - nada mais podem ser - do que massa, uma massa pós­
-moderna talvez, mas sempre massa? (Cf. Souza, 2010) O ar
irrespirável, repleto de partículas excessivamente próximas
umas das outras, em um atropelo apocalíptico? Talvez tudo
isso, no mesmo espaço e ao mesmo tempo, em uma sincronia
absurdamente perfeita, porque total? Ser demais?
Talvez, se o mundo contemporâneo pudesse ser dividido
em mínimas partes, como a vida do narrador, talvez a maio­
ria destas partículas fosse já demasiado ontológica, demasiado
pesada, tivesse como elemento de realidade a mesma intolerá­
vel espessura de insuportabilidade que caracteriza a irritação
da mulher. Talvez o frenesi descontrolado das imagens exces­
sivas, dos estertores mortais, do dinheiro em turbilhão virtu­
al, da adoração do consumo, nada mais seja do que o aflorar,
na superfície do inteligível, destas sementes em que se cons­
tituem tais partículas. Talvez a resignação e a inércia do fas­
tio desconsolado da "modernidade líquida" de Bauman nada
mais seja do que uma morna consciência destes fatos, expe­
rimentada desde seu lado mais suave: aquele que "tapa com
a mão, mesmo que seja bem de leve", os verdadeiros consti­
tuintes da "realidade" transformada então, na medida em que
se constitua em um dos pólos de inteligibilidade do real, em
128
um foco de tensão real e insuportável, hiper-real, de ruptura
da auto- inteligibilidade do bloco maciço em que se constitui a
Totalidade. Pois, para perseguir o todo auto-referente em sua
inesgotável capacidade de metamorfose, somente uma inte­
ligência de índole tão lúcida como a de Kafka, que o capta
pela dimensão da - paradoxal, para quem sabe do que a To­
talidade é capaz - insignificância desta mesma Totalidade. É
exatamente aí, neste ponto específico de captação, que Kafka,
ao nos ((prometer" a luz, nos conduz, em realidade, à sombra
mais luminosa e colorida que possamos conceber - aquela do
auto-apaziguamento da crítica na eternidade do presente: ver­
dadeira atemporalidade mortal, agora sem nenhuma possibi­
lidade de refúgio nem eufemismo possível: (auto)retrato de
um tempo perfeitamente asfixiado em si mesmo, legítima e
etimológica a-gonia.
Ser e a repleção de ser:
a Totalidade maquínica de "Na colônia penal"95
Corno esclarecimento desta narrativa acrescento
apenas que não só ela é penosa, mas que o nosso
tempo em geral e o meu em particular também o são.
Franz KAFKA a seu Editor, sobre Na colônia penal
A colônia penal gira em torno ao aparelho de execução:
"- É um aparelho singular, disse o oficial ao explorador, percor­
rendo com um olhar até certo ponto de admiração o aparelho
que ele no entanto conhecia bem" (Kafka, 1998, p. 3 1 ). É uma
máquina, mas uma máquina especial, poderosa, que traduz
de forma fiel as intenções do antigo comandante, seu inventor,
95
Para uma análise pormenorizada desse conhecido texto kafkiano desde o ponto
de vista de categorias como "justiça" e "linguagem'�
129
onipresente embora morto, sempre certo, a um tempo "solda­
do, juiz, construtor, químico, desenhista" (Kafka, 1998, p. 39);
embora inanimada, está animada por uma intensa dimensão
de humanidade, mas uma humanidade despida de ·humano:
o antigo comandante, já falecido, ali não está para apreciar a
intensidade e a sofisticação de sua invenção - apenas o novo
oficial, subalterno mas soberano, nomeado juiz na Colônia
Penal, pode assumir a responsabilidade de acionar um apa­
relho tão perfeito, uma máquina tão incomparável. Uma vez
posta a caminho, nada deterá a Máquina; nenhuma lógica que
não a sua prevalecerá.
Mas a Máquina não está apenas no aparelho de metal;
está também na própria estrutura que ocasionará seu funcio­
namento. O condenado terá a sentença - "honrarás a teu su­
perior" inscrita na própria carne: nenhum tecido é imune à
Verdade, pois ela atravessa a totalidade da realidade e é sempre
Justa: "O princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é
sempre indubitável" (Kafka, 1998, p. 4 1 ) . Trata-se de uma cul­
pa limpa, asséptica, sem hesitações, considerações ou resíduos
de nenhum tipo - assim como a execução em si é limpa, pois
o sangue do condenado e a água da limpeza "são depois con­
duzidos aqui nestas canaletas e escorrem por fim para a cana­
leta principal, cujo cano de escoamento leva ao fosso" (Kafka,
1998, p. 44). Um Processo perfeito - nada sobra de impurezas,
nem da Justiça, nem da Injustiça, nem da Máquina: o impuro
é subsumido na perfeição do ato realizado, irretocável, de uma
vez para sempre inscrito no rol infinito dos acontecimentos.
Bem estava o explorador interessado em entender a es­
crita que seria inscrita no corpo do condenado, "mas enxer­
gava apenas linhas labirínticas, que se cruzavam umas com
as outras de múltiplas maneiras e cobriam o papel tão den­
samente que só com esforço se distinguiam os espaços em
branco entre elas" (Kafka, 1998, p. 46). O interior da Máquina
é sempre infinitamente complexo, ninguém sabe o que diz
exatamente (pelo menos não em um ato de inteligência clara
130
e simples), nem o que realmente expressa, nem como fun­
ciona, de onde afinal provém seu discurso, mas todos devem
saber que funciona. A penetração em sua inteligibilidade é di­
ficílima: "Não é caligrafia para escolares. É preciso estudá -la
muito tempo. Sem dúvida o senhor também acabaria enten­
dendo" (Kafka, 1998, p. 46) - como bem explica o oficial ao
explorador. Sua Essência, porém, é apesar de tudo penetrável,
uma vez separada do in essencial: "É preciso [ ... ] que muitos
floreios rodeiem a escrita propriamente dita; esta só cobre o
corpo numa faixa estreita; o resto é destinado aos ornamen­
tos" (Kafka, 1998, p. 47). A Máquina, seus produtos, têm uma
estrutura; mas esta estrutura não é o que parece - é infinita­
mente mais complicada e ornamentada.
Nem tudo, porém, são flores. Ainda a mais perfeita Má­
quina tem pontos de atrito entre suas delicadas partes cons­
titutivas internas. Durante a demonstração da máquina feita
pelo oficial ao explorador, ela range, apesar de toda sua per­
feição - '(Tudo entrou em movimento. Se a engrenagem não
rangesse seria magnífico" (Kafka, 1998, p. 4 7).
A sentença dá-se ao longo de um longo tempo, corres­
pondente à sua gravidade e à justeza de sua aplicação. Apenas
a partir da sexta hora que decorre desde que o condenado pas­
sou a receber sua sentença em .seu corpo, ele principia final­
mente a entender - momento glorioso:
Mas como o condenado fica tranqüilo na sexta hora! O entendi­
mento ilumina até o mais estúpido [ . . . ] o homem simplesmente
começa a decifrar a escrita [ . ] o senhor viu como não é fácil de­
cifrar a escrita com os olhos, mas o nosso homem a decifra com
seus ferimentos. Seja como for exige muito trabalho; ele precisa de
seis horas para completá-lo. Mas aí o rastelo o atravessa de lado a
lado e o atira no fosso, onde cai de estalo sobre o sangue mistura­
do à água e o algodão. A sentença está então cumprida e nós, eu e
o soldado, o enterramos (Kafka, 1998, p. 48-49).
..
131
Mas é, como já dito, uma inteligibilidade difícil - "O ex­
plorador tinha inclinado o ouvido para o oficial e, as mãos no
bolso da jaqueta, observava o trabalho da máquina. O con­
denado também olhava, mas sem entender" (Kafka, 1998, p.
49) e este seu não-entendimento expõe sua nudez e sua im­
potência perante a Máquina: [ .. ] o soldado, com uma faca,
lhe cortou por trás a camisa e as calças, de tal modo que elas
caíram; o condenado ainda quis segurar a roupa para cobrir
a nudez, mas o soldado o levantou no ar e arrancou dele os
últimos trapos" (Kafka, 1998, p. 49).
Uma correia da máquina rebenta, no momento em que
ela é posta em movimento; mas o oficial não deseja que tal
fato possa pôr em questão a excelência do conjunto, princi­
palmente quando se leva em conta sua infinita complexidade
- cc- A máquina é muito complexa, aqui e ali alguma coisa
tem de rebentar ou quebrar; mas não se deve por isso chegar
a um falso julgamento do conjunto" (Kafka, 1998, p. 50). Afi­
nal, os recursos para a manutenção da máquina são cada vez
mais limitados. O passado sempre foi melhor, e esta consta­
tação é sempre um bom pretexto para a intrusão do patético
e do desconsolo na desordem que testemunha a decadência
do presente:
"
.
- Tanto o procedimento como a execução que o senhor está ten­
do a capacidade de admirar não têm no momento mais nenhum
adepto declarado em nossa colônia. Sou seu único defensor e ao
mesmo tempo o único que defende a herança do antigo coman­
dante. Não posso mais cogitar de nenhuma expansão do processo,
dispendo todas as energias para preservar o que existe. Quando
o antigo comandante vivia, a colônia estava cheia de partidários
seus; tenho em parte a força de convicção dele, mas me falta intei­
ramente o seu poder [ . . ] (Kafka, 1998, -p. 53).
.
Eis a oportunidade da grande questão, o grito lancinante
que denuncia a traição de uma grandeza: "E agora eu lhe per­
gunto: será que por causa desse comandante e das mulheres
1 32
.
que o influenciam deve perecer a obra de toda uma vida, como
esta? - e apontou para a máquinà' (Kafka, 1 998, p. 53-54).
Antigamente, as execuções eram acontecimentos públicos de
imenso significado e alcance:
Como era diferente a execução nos velhos tempos! [ ... ] A máqui­
na, polida um pouco antes, resplandecia ( ... ]. Diante de centenas
de olhos [ . . . ] o condenado era posto sob o rastelo pelo próprio
comandante [ ... ] . E então começava a execução! Nenhum som
discrepante perturbava o trabalho da máquina. Muitos já nem
olhavam mais, ficavam deitados na areia com os olhos cerrados;
todos sabiam: agora se faz justiça ( ... ] . Como captávamos todos a
expressão de transfiguração no rosto martirizado, como banháva­
mos as nossas faces no brilho dessa justiça finalmente alcançada
e que logo se desvanecia! Que tempos aqueles, meu camarada!
(Kafka, 1 998, p. 54-55).
Tal constatação de decadência não exige por si só justiça?
Não é esta exigência de justiça por si só, e um argumento racio­
nal, para a necessidade de preservação da Máquina? (([ ... ] Não
é preciso tentar até o inexeqüível para conservar este procedi­
mento?" (Kafka, 1998, p. 60). Afinal de contas, a mudez relati­
va do explorador é encorajadora, terá este provavelmente sido
também tocado pela Grandeza, e pertence a uma convicção de
tonalidades meta-racionais do oficial, a um pensamento maior,
que o explorador, em uma leitura de profundidade, aprova e
admira a Máquina - " [ ... ] o senhor não chamou o meu pro­
cedimento de desumano, pelo contrário, de acordo com a sua
percepção mais profunda, o senhor o considera o mais humano
e o mais digno de todos, o senhor também admira este maqui­
nismo" (Kafka, 1998, p. 58).
Mas o explorador se nega a ajudar o oficial a defender a
máquina perante o comandante. O oficial percebe, então, ha­
ver chegado a hora de fundir-se com a Justiça: instalar-se-á na
máquina e deixara que esta lhe injete a mensagem: ((seja justo,;
mas esta mensagem é, conforme apresentada em sua caligrafia
complexa, indecifrável para o explorador. Quando o oficial per­
cebe esta dificuldade, tenta ajudar o explorador - " [ ... ] seguiu as
1 33
linhas com o dedo mínimo, a uma altura bem distante do papel,
como se não pudesse de forma alguma tocar a folha, para desse
modo facilitar a leitura do explorador [ ... ] - Seja justo, é o que
consta aqui, disse outra vez o oficial. - Pode ser, disse· o explora­
dor. - Acredito que sim:' (Kafka, 1998, p. 67-68).
O oficial inicia então sua auto-imolação. Para surpresa
do explorador, até os rangidos que ouvira anteriormente desa­
pareceram: homem e Máquina haviam finalmente se fundido
em uma Unidade perfeita. O condenado estava fascinado com
a perfeição e a suavidade da máquina - " [ . . ] as engrenagens
literalmente o fascinavam, estava sempre querendo agarrar
uma, ao mesmo tempo conclamava o soldado a ajudá-lo, mas
retirava a mão com medo, pois logo aparecia outra engrena­
gero, que pelo menos enquanto começava a rodar o assustavà'
(Kafka, 1 998, p. 73). A Máquina é uma figuração perfeita do
Eterno Retorno, saudade eterna da tautologia.
Esta suavidade interessante, porém, não dura muito; logo
inicia a máquina a descontrolar-se, vibra excessivamente, de­
sencontra-se, acabando por dilacerar o oficial, o que somente
deveria se dar à décima-segunda hora. E este não encontrara a
paz que certamente esperava:
.
Estava como tinha sido em vida; não se descobria nele nenhum
sinal da prometida redenção; o que todos os outros haviam en­
contrado na máquina, o oficial não encontrou; os lábios se com­
primiam com força, os olhos abertos tinham uma expressão de
vida, o olhar era calmo e convicto, pela testa passava atravessada a
ponta do estilete de ferro (Kafka, 1998, p. 75).
O oficial foi, assim, subsumido pela Máquina: entre­
gou a ela sua essência e sua existência. Caso se pensasse que
a máquina dependia do oficial, estaria tudo acabado; mas a
Máquina ressurge ainda que de forma inusitada. Em verdade,
no assoalho da casa de chá, onde o antigo comandante estava
enterrado, o explorador acompanhado do soldado e do con­
denado pôde ler esta profecia:
1 34
Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, que agora não podem
dizer o nome, cavaram-lhe o túmulo e assentaram a lápide. Existe
uma profecia segundo a qual o comandante, depois de determi­
nado número de anos, ressuscitará e chefiará seus adeptos para a
reconquista da colônia. Acreditai e esperai! (Kafka, 1 998, p. 77).
A Máquina domina o tempo e torna o impossível possí­
vel. Suas engrenagens infinitas se reconstroem à medida em
que se destroem ou são destruídas. Penetra na realidade e
faz dela função sua: auto-legitima-se em seu crescimento. As
possibilidades de evasão de seu controle são inexistentes pe­
las vias normais - "(O soldado e o explorador) provavelmente
queriam forçar o explorador a levá-los consigo. Enquanto o
explorador negociava com o barqueiro a travessia até o navio
a vapor, os dois desceram a escada a toda pressa, sem dizer
nada, pois não ousavam gritar. Mas quando chegaram embai­
xo, o explorador já estava no barco, indo embora - e, apesar
de seus esforços, não conseguiram que ele os levasse junto': É
praticamente impossível, sej a de que ângulo for, subtrair-se ao
domínio da Máquina.96
Blumfeld e a condenação do Não-idêntico (Kafka e seus
dois ajudantes)
É recorrente, em Kafka, a famosa aparição de ajudantes
inúteis que surgem como que do nada e se acoplam de modo
incontornável à vida do personagem. Talvez os mais conhe­
cidos sejam os ajudantes de K. em O castelo, mas em muitos
outros textos ocorre o surgimento dessas figuras, quase sem96
Conforme Adorno, em Kafka
"
[ ] cada frase traz a marca de um espírito seguro
...
de si, mas também foi anteriormente arrancada da zona da loucura na qual todo
conhecimento deve se aventurar para se tornar de fato conhecimento, principal­
mente em uma era na qual o sadio bom senso apenas contribui para reforçar o
ofuscamento universal" ( 1 998, p. 249).
1 35
pre em duplas quase robóticas, ao mesmo tempo ridículos,
patéticos e obtusos em sua extraordinária esperteza. E, em sua
recorrência, tais personagens encarnam o eterno _fantasma
do indiferenciado que, desprezível, não deixa de atormentar
a quem seguem; não fazem nada útil, nada significam, pra­
ticamente não existem, mas atravancam a vida e a racionali­
dade do personagem ao qual seguem de forma exasperante,
no constante relembrar, por suas presenças, da onipresença da
mediocridade. Personificam a irracionalidade espantosamen­
te racional do indiferenciado, que os controla como que por
via remota; variam sua dança persecutória e seu cínico sor­
riso apenas para deixarem clara a extensão de sua argúcia. E
surgem em contextos que, exatamente, sugerem alguma pos­
sibilidade remota de individuação por parte do personagem
a quem seguem, ou ao menos por ocasião da possibilidade
de um encontro desse personagem com alguém ou algo que
o arranque da estreita fresta existencial no qual se acha e que
crescentemente o asfixia.
Um dos mais virtuosísticos textos de Kafka, exemplar na
apresentação rítmica desses duplos, é Blumfeld, um solteirão de
meia-idade (Cf. Kafka, 2002, p. 30-63). É a ele que recorrere­
mos para fechar o arco de pequenas análises da obra kafkiana
desse capítulo.
I
Blumfeld, um solteirão já meio idoso, subia uma noite ao seu apar­
tamento, o que era uma tarefa cansativa, pois morava no sexto an­
dar. Enquanto subia, ia pensando - como fazia com freqüência
nos últimos tempos - que aquela vida totalmente solitária era bas­
tante penosa, que agora tinha de subir os seis andares em absoluto
segredo para chegar, lá em cima, aos seus aposentos vazios; uma
vez ali, outra vez em completo silêncio, vestir o roupão, acender o
cachimbo, ler um pouco a revista francesa que, fazia anos, tinha
1 36
assinado, bebericar enquanto isso a aguardente de cereja prepara­
da por ele mesmo e finalmente, meia hora depois, ir para a cama,
não sem antes precisar arranjar de novo, de cabo a rabo, a roupa
de cama que sua empregada, refratária a toda instrução, dispunha
de qualquer jeito, seguindo sempre o seu humor. Qualquer acom­
panhante, qualquer espectador dessas atividades teria sido muito
bem-vindo a Blumfeld. Já havia pensado se não devia adquirir um
cachorrinho. Um animal como esse é engraçado e principalmente
grato e fiel; um colega de Blumfeld tinha um cachorro assim; ele
não se dá com ninguém a não sei com o dono e se passa alguns
instantes sem vê-lo recebe-o logo com grandes latidos, com os
quais evidentemente quer expressar sua alegria por ter encontra­
do o dono, esse benfeitor extraordinário (Kafka, 2002, p. 30-31).
Blumfeld é uma das características figuras de Kafka,
exaustas de existência, que acabam por perceberem que, com
um pequeno rearranjo, poderiam temperar sua vida com algo
mais de tolerabilidade, porém que até mesmo tal rearranjo
lhes está vedado; figuras de gostos modestos, relativamente
enclausuradas, em sua vida privada, em quartos confortá­
veis em andares altos de pensões conduzidas por estranhos
(a semelhança de Blumfeld com Joseph K. é patente nesse
teor); solitários, sem por isso se mortificarem, gostariam de
alterar, ainda que levemente, o ritmo rotineiro de seu existir.
Um cachorrinho significaria uma novidade considerável; uma
companhia engraçada e fiel, uma alteração clara na rigidez de
gestos e rotinas quase mecânicos que devoram, pelo menos
quando está em seus aposentos, os dias de Blumfeld.
Porém a breve tentação da mudança é logo interrom­
pida; considerações as mais diversas, de ordem prática e
do desconforto que a própria alteração da rotina por si só
significaria, acabam por povoar compactamente os pen­
samentos do solteirão ((já meio idoso";97 especialmente a
97
É clássico, em Kafka, comparar essas figuras solitárias, e especialmente Blumfeld,
a Kafka mesmo, aceitando-se que já se achava "meio idoso" aos trinta e poucos
anos; não são essas comparações desprovidas de fundamento, pois, mesmo na
casa paterna, Kafka viveu sempre de modo passavelmente recluso.
1 37
figuração de sua própria decadência refletida no olhar do
animal j á velho parece decisiva para a manutenção do soli­
tário statu quo do presente:
É certo, no entanto, que um cão também oferece desvantagens.
Por mais que seja mantido limpo, vai sempre sujar a casa. É uma
coisa que não se pode evitar; não é possível, toda vez que vai en­
trar no quarto, lavá-lo com água quente, e sua saúde tampouco
agüentaria isso. Mas Blumfeld, por seu turno, não suporta sujei­
ra no quarto; a limpeza da casa é algo imprescindível para ele;
várias vezes por semana discute com sua empregada, que neste
ponto infelizmente, não é muito escrupulosa. Como é meio sur­
da, ele habitualmente a arrasta pelo braço aos lugares onde há
algo a objetar quanto à limpeza. Por conta dessa severidade ele
conseguiu que a ordem na peça corresponda mais ou menos aos
seus desejos. Com a introdução de um cachorro, porém, ele iria
levar sujeira por conta própria justamente ao cômodo até então
cuidadosamente protegido. Pulgas, as eternas companheiras dos
cães, também compareceriam. Mas, uma vez instaladas ali, não
estaria distante o momento em que Blumfeld deixaria o quarto
confortável ao cachorro e procuraria outro. A sujeira, no entanto,
era apenas uma desvantagem dos cães. Eles ficam doentes e de
enfermidades de cães na verdade ninguém entende. O animal fica
agachado num canto, coxeando de lá para cá, gane, tem uma tos­
sinha, sufoca por causa de alguma dor; envolvem-no numa cober­
ta, assobiam-lhe qualquer coisa, empurram-lhe leite - em suma:
tratam-no com a esperança de que seja, o que também é possível,
um mal passageiro; mas em vez disso pode ser uma doença séria,
repulsiva e contagiosa. E, mesmo que o cachorro permaneça sa­
dio, chega o dia em que ele sem dúvida envelhece e a pessoa deve
tomar a decisão de se desfazer dele em tempo, e vem a ocasião
em que a própria idade dela a olha através dos olhos lacrimejan­
tes do cão. É preciso, aí, atormentar-se com o animal meio cego,
fraco dos pulmões, quase imóvel em virtude da gordura e com
isso pagar caro as alegrias que o cachorro deu antes. Por mais que
Blumfeld gostasse agora de possuir um cão, prefere sem dúvida
subir mais trinta anos a escada a suportar mais tarde um cão velho
desses, que, gemendo mais alto do que ele, se arrasta ao seu lado
de degrau em degrau (Katka, 2002, p. 3 1-32).
1 38
Acima de tudo, a sujeira que atualmente é a muito cus­
to afastada se tornaria inevitável; Blumfeld tem, como muitos
personagens kafkianos, o hábito maníaco da assepsia (reflexo
do Kafka naturista?), e viver consiste para ele, em boa medida,
em tornar-se e se manter existencialmente tão asséptico quanto
possível, como que flutuando num mundo que passa velozmen­
te. Sabemos que seus personagens costumam pagar caro por
essa sua obstinação por limpeza; passar incólume por um mun­
do contaminado é praticamente impossível; e Blumfeld, com
sua vida bem arranjada, já não desejaria surpresas e tumultos
em seus domínios que, com imenso custo, faz manter limpo ao
seu feitio. E, não obstante, apesar de afastar a ideia de ter um
cão, tal ideia retorna recorrentemente: é a tentação da vida:
De modo que Blumfeld permanecerá só; não alimenta os apetites
de uma velha solteirona que deseja ter perto de si um ser vivo
subalterno qualquer, ao qual deve proteger, com o qual pode ser
carinhosa e atender continuadamente, de tal maneira que, para
alcançar essa finalidade, bastam um gato, um canário ou até pei­
xinhos dourados. E, se isso não for possível, contenta-se inclusive
com flores na janela. Blumfeld, pelo contrário, só quer um acom­
panhante, um animal com quem não tenha necessidade de se pre­
ocupar bastante, a quem não prejudique um pisão ocasional, que
em caso de força maior possa também pernoitar na rua, mas que,
caso Blumfeld o exij a, esteja à disposição, de imediato, com lati­
dos, saltos, lambidas na mão. É a alguma coisa assim que Blumfeld
aspira, mas que, como ele próprio percebe, não pode conseguir
senão com desvantagens muito grandes, por isso renuncia a ela;
entretanto, de tempos em tempos, como nesta noite, segundo a
base de sua natureza e temperamento, volta aos mesmos pensa­
mentos (Kafka, 2002, p. 32-33).
Esse itinerário especulativo, porém, à chegada nos aposen­
tos, é interrompido pelo inusitado que se anuncia. Duas entida­
des de difícil classificação vêm exigir atenção; nada que alguém
possa entender ou esperar é a mensagem que sua despreocupa­
da existência saltitante traduz. As tentativas de Blumfeld de ali-
139
nhar o que infere apenas pela audição, esse arranjo normal da
racionalidade que é apresentada ao absolutamente estranho,
acabam por se provarem logo vãs:
Quando está lá em cima, diante da porta de entrada, tira a chave do
bolso; percebe um ruído que vem de dentro: é um rumor especial,
de guizos, muito vivaz, muito regular. Como Blumfeld tinha aca­
bado de pensar em cães, o barulho lembra-lhe o que produzem as
patas dos animais, quando batem alternadamente no chão. Mas não
há patas que imitem o chacoalhar de guizos: não se trata de patas.
Abre às pressas a porta e acende a luz elétrica. Porém não estava
preparado para aquela visão. É uma bruxaria - duas pequenas bolas
de celulóide, brancas, com estrias azuis, saltam sobre o assoalho,
uma ao lado da outra e de cá para lá; quando uma bate no solo, a
outra está no alto e assim, incansáveis, executam o seu jogo. Cer­
ta vez, no curso secundário, Blumfeld viu, durante uma conhecida
experiência elétrica, bolinhas saltarem de forma semelhante, mas
em comparação com aquelas, são esferas relativamente grandes;
elas saltam no aposento livre e ninguém está realizando um expe­
rimento elétrico. Blumfeld agacha-se para observá-las melhor. São
sem dúvida bolas comuns, provavelmente contêm em seu interior
outras menores e são estas que produzem o barulho de guizos. Blu­
mfeld passa a mão no ar para verificar se elas não pendem, por aca­
so, de fios; não, elas se movem com completa autonomia. Pena que
Blumfeld não seja um menino, duas bolas assim teriam sido uma
alegre surpresa para ele, ao passo que agora tudo aquilo lhe causa
uma impressão acima de tudo desagradável (Kafka, 2002, p. 33-34).
As pequenas bolas não pendem do teto, não estão ligadas
a nada; saltitam prisioneiras apenas do ritmo que se auto-im­
põem; nada as explica, e sua atividade consiste na sua própria
existência; o retorno ao universo pueril, quando uma "bruxa­
ria" seria considerado apenas uma "maravilhà: é interditado;
nunca há, em Kafka, caminho para trás ou espaço e tempo para
retorno. "São sem dúvida bolas comuns": ligá -las a alguma pre­
tensão de causalidade não causa senão desconforto; tal como
Odradek, aparecem sem estardalhaço, apenas com seu ruído
compassado e não exagerado. Enfim, existências que causam a
Blumfeld uma impressão ((acima de tudo desagradáver'.
140
Segue a racionalização; algum elemento de paranóia, de
verdadeira "vergonha existencial': está sempre presente nesta
como em geral nas obras de Kafka, mas as bolinhas simples­
mente estão lá, em sua atividade contínua e sem sentido. Mas
as bolinhas trazem consigo a puerilidade em sua forma mais
elementar: ao que parece, querem brincar.
Certamente não é totalmente sem valor viver como um solteirão
ignorado, mas em segredo; agora alguém, não importa quem seja,
ventilou esse segredo e introduziu em sua vida essas duas ridícu­
las bolas. [ .. ) Blumfeld quer agarrar uma delas, mas as duas se
desviam, recuando, e o atraem a persegui -las pelo aposento. "É
estupidez demais" - pensa ele - "correr atrás das bolas desse jeito";
fica parado e segue-as com o olhar, enquanto elas, uma vez que a
perseguição parece ter cessado, também permanecem no mesmo
lugar. [ . ] "Mas eu tenho, apesar de tudo, de tentar pegá-las" volta ele a pensar e corre em direção a elas. [ . . ] Imediatamente
as bolas fogem; Blumfeld, no entanto, com as pernas abertas, as
impele para um canto da peça e, diante da mala que ali se encon­
tra, consegue agarrar uma bola. Ela é fria e pequena e gira em sua
mão, evidentemente ansiosa para escapulir. A outra bola, como
se visse a aflição de sua companheira, salta mais alto que antes
c alarga os saltos até roçar a mão de Blumfeld; desfere um golpe
contra ela; bate com saltos cada vez mais rápidos, muda os pon­
tos de ataque; depois, uma vez que não consegue nada contra a
mão que encerra a outra bola por completo, pula mais alto ainda,
querendo provavelmente atingir o rosto de Blumfeld, que poderia
também agarrá-la e prender as duas em algum lugar; mas no mo­
mento parece-lhe aviltante tomar medida como essa contra duas
pequenas bolas (Kafka, 2002, p. 34).
.
.
.
.
"No momento parece-lhe aviltante tomar medida como
essa contra duas pequenas bolas'': Blumfeld retorna à raciona­
lidade que ainda possui, e que não é desprovida de tudo aquilo
que essa existência maquínica das bolas parece dispensar: sen­
tido de proporção, sentido de realidade mais ou menos forte,
razoabilidade, enfim. As bolas, com seu ruído ilocalizável, um
murmúrio de coisas sólidas envolto pela tênue cobertura de
141
celulóide, o obrigam a tentar com toda a racionalidade dispo­
nível, sem frestas, num anúncio típico de Kafka de um deses­
pero com sordina, achar um sentido, ainda que insignificante
ou desprezível, para tudo aquilo:
Pois afinal é divertido possuir duas bolas como aquelas; elas tam­
bém vão logo ficar cansadas, rolar para baixo de um móvel e dar
sossego. A despeito dessa reflexão, porém, Blumfeld lança com
uma espécie de raiva a bola de encontro ao solo: é um milagre que
nesse ato a cobertura quase transparente de celulóide não quebre.
Sem transição, as duas esferas recomeçam seus saltos anteriores,
baixos, sincronizados por oposição (Kafka, 2002, p. 34-35).
Assim, as bolinhas não apenas não substituem, com sua
caricatura de vivacidade, qualquer ser vivo - como o sonha­
do cachorrinho ou uma outra companhia qualquer - como
sua existência é uma espécie de atestado obsedante, reitera­
do, de ausência de vida; seu remexer-se, seus espasmos, sua
sincronia sem sentido porém perfeitamente funcional em sua
funcionalidade simétrica em alternância, conseguem apenas
exasperar quem as tenta entender ou com elas se relacionar
de algum modo. E - importante - por trás de sua aparente
fragilidade, nada têm de frágeis; o tosco material de que apa­
rentam ser feitas trai - até ele - qualquer expectativa racio­
nal que Blumfeld ainda pudesse alimentar. As bolinhas não
são amigas nem inimigas - são só um estorvo à mera ideia de
ordem ou de razão, assemelhando-se, ao fim dos esforços de
Blumfeld, muito mais a uma paralisia automática da própria
ideia de racionalidade, invadida e como que aniquilada agora
por essa existência pura, gemelar e saltitante. Sua forma - seu
frenetismo ritmo - é seu conteúdo inteiro. Nisso consiste sua
essência mais profunda: em jogar um jogo idiota, uma contra­
dança sem sentido, e cujo próprio ((sem sentido' vai como que
sugando as energias, não apenas racionais, mas existenciais,
de Blumfeld:
1 42
Blumfeld se despe calmamente, arruma as roupas no armário; cos­
tuma verificar sempre se a empregada deixou tudo em ordem. Uma
ou duas vezes olha por cima do ombro para as bolas, que agora,
livres da perseguição, parece até que o perseguem; avizinharam-se
e saltam bem atrás dele. Blumfeld coloca o roupão e faz menção
de ir até a parede do lado oposto para apanhar um dos cachimbos
que estão pendurados ali num suporte. Involuntariamente, antes
de se voltar, dá uma passada para trás com um dos pés, mas as
bolas conseguem se desviar e não são atingidas. Quando então
vai buscar o cachimbo, as bolas logo o acompanham; ele arrasta
as chinelas, realiza passos irregulares mas cada passo, quase sem
pausa, é seguido por um golpe das bolas, que acertam a marcha
com ele. Blumfeld vira-se inesperadamente para ver como elas se
comportam. Mas mal havia se virado as bolas descrevem um se­
micírculo e já estão de novo atrás dele; isso se repete todas as vezes
que ele se volta. Como se fossem acompanhantes subalternos, pro­
curam não se deter diante de Blumfeld. Até esse momento, ao que
parece, ousaram somente apresentar-se, mas agora já entraram em
serviço. [ ... ] Até o presente Blumfeld, em todos os lances excepcio­
nais, nos quais suas forças não foram suficientes para dominar a
situação, escolheu o expediente de agir como se não notasse nada.
Muitas vezes isso ajudou e na maioria dos casos pelo menos me­
lhorou a situação. [ ... ] Agora também procede assim: pára diante
da grade de cachimbos, escolhe um levantando os lábios, carrega­
-o meticulosamente, tirando o tabaco da bolsa, preparado para
a ocasião e, ignorando as bolas, deixa-as saltar, despreocupado,
atrás de si. Só hesita para ir até a mesa, pois ouvir os pulos coor­
denados e os próprios passos quase lhe causa dor. Por isso estaca,
carregando o cachimbo por um tempo desnecessariamente longo
e calcula a distância que o separa da mesa. Finalmente, porém,
vence a própria fraqueza e percorre o trecho batendo os pés de tal
forma que não escuta absolutamente as bolas. Seja como for, uma
vez sentado, elas continuam a saltar atrás de sua cadeira de modo
tão perceptível quanto antes (Kafka, 2002, p. 35-36).
Assim, dado o incontornável do existente, não resta a Blumfeld
senão ensejar esforços para suavizar ao máximo a estranha dor
e o opaco desconforto que a situação lhe causa; seu cérebro está
1 43
exausto de procurar saídas para a situação configurada à revelia
de sua vontade e de tudo o que pudesse conceber ou entender, não
obstante, como fica evidente no detalhismo descritivo, Blumfeld
não deixa escapar nada de razoável em sua observação· e nada
tem, em princípio, de néscio; é momento do aprendizado relativo
à difícil convivência conviver com ela. Afinal, o que aparentou
fragilidade trai quem o observa e mostra sua verdadeira força;
a existência do inusitado é testemunho de seu próprio poder, e
sobre isso nada pode razão alguma:
Está na espreita: de repente, de modo completamente inesperado,
sua imobilidade cede e ele se volta, num solavanco, com a cadeira.
Mas as bolas estão vigilantes de forma correspondente ou seguem,
sem pensar, a lei que as domina e, ao mesmo tempo que Blumfeld
gira na cadeira, elas também mudam de lugar e se escondem atrás
dele. Agora Blumfeld está sentado de costas para a mesa, o ca­
chimbo frio na mão. As bolas saltam sob a mesa e como ali há
um tapete só podem ser pouco ouvidas. É uma grande vantagem;
produzem-se apenas ruídos muito fracos e abafados, é preciso
prestar muita atenção para ainda percebê-los com o ouvido. Blu­
mfeld no entanto mantém-se bem alerta e as ouve perfeitamente.
lvlas apenas agora é assim, num instante é provável que não se­
rão mais de maneira alguma escutadas. Para Blumfeld parece um
grande sinal de fraqueza das bolas só poderem ser percebidas tão
pouco sobre tapetes. Basta colocar um deles por baixo, talvez dois,
para torná-las quase impotentes. Seja como for, é por um período
determinado de tempo; além do mais, sua existência já significa
um certo poder (Kafka, 2002, p. 37-38).
A tentação da vida retorna, após o quase-mergulho no
sem-sentido mecânico do jogo de perseguição e das sensa­
ções que se sucedem sem obter êxito algum. O cachorro seria
agora fundamental para acabar com as bolas - ao que parece,
Blumfeld não percebe que há uma incompatibilidade total e
mutuamente excludente entre aquilo que nasce, cresce, vive e
morre e aquilo que, como as bolas, simplesmente existe:
1 44
Agora Blumfeld bem que poderia fazer uso de um cachorro - um
animal jovem, selvagem, acabaria logo com as bolas; imagina-o cor­
rendo atrás das duas para caçá-las com as patas; como as expulsa
dos seus postos. Como as persegue de um extremo a outro do
aposento e finalmente as prende entre os dentes. É bem provável
que dentro em breve arranje um cachorro. [ ... ] Mas no momento
as bolas têm de temer apenas Blumfeld, e agora ele não está com
vontade de destruí-las, talvez para isso lhe falte poder de decisão.
Chega cansado, à noite, do trabalho, e justo nessa hora, quan­
do necessita de repouso, fazem-lhe essa surpresa. Só agora sente
como está realmente cansado. Sem dúvida irá destruir as bolas, na
verdade o mais breve possível, mas não nesse instante, provavel­
mente só no dia seguinte. Quando se considera a questão impar­
cialmente, aliás, as bolas se comportam com bastante modéstia.
[ .. ] Poderiam, por exemplo, saltar para a frente de tempos em
tempos, mostrar-se e regressar ao seu lugar, ou poderiam pular
mais alto, para bater na tábua da mesa e desse modo se ressarcir
do amortecimento do tapete. Mas não o fazem, não querem irri­
tar Blumfeld sem necessidade, limitam-se evidentemente ao que é
estritamente preciso (Kafka, 2002, p. 38-39).
.
"Fazem -lhe essa surpresa" - indeterminação absoluta.
Quem faz o quê? O que sobra da mais inútil das perguntas é o
mais pesado dos cansaços, o cansaço vital, o cansaço que obriga
a adiar a vida - temática kafkiana recorrente - o momento de
destruição das bolas - para o "dia seguinte': Retorna a racio­
nalidade, agora em outro feitio: moderada, afundada em sua
própria impotência e inutilidade ante a opacidade dos aconte­
cimentos, contenta -se em constatar que tudo poderia ser ainda
pior, caso as bolinhas realmente tivessem má intenção. O próxi­
mo passo é a inteligência se rebaixar ao fulcro do instante onde
algo pode ser obtido e uma intenção completada, sem absolu­
tamente nenhuma esperança de transcender as contingências:
É verdade, que essa exigência basta para amargurar a perrnanên­
cia de Blurnfeld à mesa. Só fica alguns minutos lá e já pensa em ir
dormir. Um dos motivos para isso é que ali não pode fumar, pois
1 45
deixou os fósforos em cima do criado-mudo. Teria, portanto, de
ir buscá-los, mas, uma vez que está perto do criado, é com certeza
melhor ficar por lá e deitar-se. Atrás disso existe uma segunda in­
tenção: acredita, na verdade, que as bolas, no seu afã cego ficarem
sempre atrás dele, vão saltar sobre a cama e, uma vez ali, quando
ele se deitar, irá esmagá-las, querendo ou não. Rejeita a objeção de
que os restos das bolas também seriam capazes de ficar saltando.
Até o inusitado precisa ter limites. Bolas inteiras saltam também
em outras ocasiões, embora não ininterruptamente; pedaços de­
las, ao contrário, nunca saltam, e neste caso também não irão dar
pulos (Kafka, 2002, p. 39).
Até mesmo os atos se tornam passivos: Blumfeld alimen­
ta a esperança de se livrar das bolas esmagando-as, mas sim­
plesmente ao deitar-se, sem nenhuma ação além disso; vai
esmagá-las sem vontade, "querendo ou não". A mediocrida­
de rítmica dos saltos exauriu sua condição de ter vontade,
após haver reduzido sua racionalidade ao mais elementar ato
de lidar com contingências do cotidiano - a tal ponto pare­
cem chegar as potências do medíocre. Agora, chega a acre­
ditar que suas esperanças serão realizadas, o que, no tempo
de homem racional, não lhe era absolutamente provável - e,
assim, ordena às bolas que façam o que deseja, para obter a
finalidade que pretende:
- Para cima! - brada, tornando-se quase imprudente com essa
reflexão; dirige-se para a cama em passos pesados com as duas
esferas outra vez atrás dele. [ ... ] Suas esperanças parecem con­
firmar-se: quando se põe deliberadamente bem perto da call).a,
imediatamente uma das bolas salta sobre o leito. Pela via contrá­
ria, porém, entra em ação o inesperado - a outra bola se coloca
debaixo da cama. Blumfeld não havia absolutamente pensado na
possibilidade de que as bolas pudessem também saltar para baixo
da cama. Está indignado com a bola embora sinta como isso é
injusto, uma vez que, com esse salto, a bola talvez realize ainda
1 46
melhor sua tarefa do que a bola em cima do leito. Tudo então
depende do lugar pelo qual as bolas se decidam, pois Blumfeld
não crê que elas possam trabalhar separadas por muito tempo.
Com efeito, no instante seguinte a bola de baixo também pula
para cima da cama. 'l\gora elas são minhas': pensa Blumfeld, ar­
dente de alegria, e arranca o roupão do corpo para se lançar sobre
o leito. Mas justamente nesse momento a mesma esfera volta a
saltar para baixo da cama. Sobremaneira decepcionado, Blumfeld
literalmente desmorona. É provável que a bola tenha apenas dado
uma olhada em cima e não gostando do que viu. Aí a outra a segue
e naturaln1ente permanece de baixo, pois ali é melhor. 'l\gora vou
ter esses dois batedores de tambor a noite inteira aqui': pensa Blu­
mfeld, morde os lábios e balança a cabeça. Está triste, sem saber
propriamente como as bolas poderão prejudicar-lhe a noite. Seu
sono é excelente, irá superar com facilidade o pequeno rumor. Para
ficar totalmente seguro disso, empurra por baixo delas dois tape­
tes - segundo a experiência feita. É como se tivesse um pequeno
cachorro para o qual preparasse uma caminhada macia. Porque as
bolas talvez estejam cansadas e com sono, seus saltos são mais bai­
xos e vagarosos do que antes. Quando Blumfeld se ajoelha diante
da cama e ilumina a parte de baixo com o abajur do criado-mudo,
julga por vezes que as bolas vão permanecer para sempre sobre os
tapetes, por caírem tão debilmente, rolarem tão devagar mais um
curto trecho (Kafka, 2002, p. 39-4 1 ) .
"Blumfeld literalmente desmorona: Nenhum recurso é
possível contra o ardil da esperteza que se esconde por detrás
da máquina obtusa. Agora são as bolinhas que adquirem al­
gum tipo de vida, "talvez estejam cansadas e com sono': talvez
algo da vitalidade que sugaram, pelo seu incômodo existir, de
Blumfeld. É o momento exato em que sonho e realidade se
fundem para Blumfeld; ou, talvez melhor dito, em que a rea­
lidade se transforma em cacofonia, em susto, ao qual só pode
responder um "bocejo mudo": o instante prévio à queda que,
1 47
de algum modo, já é o do desmoranamento.98 Aqui surge, por
detrás do ridículo episódio, uma outra sua face, um manto
ameaçador que segue a limpidez das formas perfeitamente
esferoidais, com cores bem definidas, o azul e branco; agora
é a intranquilidade, o sobressalto que nunca se configura em
ameaça palpável, pois se confunde com a noite e o sono; o inu­
sitado foi apenas anúncio, ao que parece, de algo maior que
entrará pela porta, que nela baterá sem delicadeza nem pue­
rilidade alguma. E não obstante, tal situação se repete em um
número ((monstruoso' de vezes, o que o desanima até mesmo
a arrolar as vezes que acontece o sobressalto, seguido por algo
,
((pequeno e repulsivo' , batidas que constituem a escolta de
algo poderoso. De qualquer modo, ainda que desejasse tomar
alguma atitude, vê-se na mesma situação de Gregor Samsa ao
acordar certa noite de sonhos intranquilos: era tarde demais
para pegar o trem certo, e mesmo que se esforçasse loucamente,
talvez não conseguisse nem ao menos apanhar o trem atrasa­
do. Para Gregor então, como para Blumfeld agora, é simples­
mente ((tarde demais":
Claro que depois se erguem de novo de acordo com o seu dever.
Mas é bem possível que quando Blumfeld olhar de manhã debai­
xo da cama irá encontrar duas silenciosas e inofensivas bolas de
criança. [ ... ]. Desiste com prazer até de fumar, vira-se de lado e
adormece logo. Porém não permanece tranqüilo; como de cos­
tume, também desta vez tem um sono sem sonhos, mas muito
intranqüilo. Inúmeras vezes, durante a noite, se sobressalta com
98
"Tudo o que se equilibra no auge do instante, como um cavalo empinado so­
bre as patas traseiras, é fotografado como se a cena devesse ser preservada para
sempre. O exemplo mais terrível disso encontra-se em O processo: Josef K. abre
a porta do quarto de despejo, no qual no dia anterior seus guardas haviam sido
espancados, e encontra fielmente reproduzida a mesma cena, inclusive com a in­
vocação dele próprio. "Imediatamente, K. fechou a porta e bateu nela com os pu­
nhos como se desse modo ela ficasse fechada mais firmemente." Este é o gesto da
própria obra de Kafka, que, como já ocorria por vezes em Poe, se afasta das cenas
mais extremas, como se nenhum olho pudesse sobreviver àquela visão. Nela se
mesclam o efêmero e a mesmice. Titorelli pinta sempre e repetidamente essa an­
tiquada paisagem de gênero, repleta de campos" (Adorno, 1 998, p. 247-248).
148
a ilusão de que alguém bate à porta. [ ... ] Sabe sem dúvida que
ninguém bate, pois quem iria à noite bater à porta - justamente na
sua, a de um solteirão solitário? Mas, por mais que tenha consci­
ência disso, acorda assustado sem cessar e por um momento olha
tenso para a porta, a boca aberta, os olhos arregalados e os tufos
de cabelo sacudindo sobre a fronte úmida. Tenta contar quantas
vezes é despertado, mas, aturdido com as cifras monstruosas que
resultam desse cômputo, cai outra vez no sono. Supõe saber de
onde vêm as batidas, não são da porta, mas de outra parte qual­
quer; porém, na atrapalhação do sono, não consegue se lembrar
em que se baseiam suas suposições. Sabe somente que muitas ba­
tidas, pequenas e repulsivas, se juntam, antes da batida grande e
poderosa. Suportaria toda a repugnância dos pequenos golpes se
pudesse evitar essa batida, mas por algum motivo é tarde demais,
neste caso não pode intervir, é uma parada perdida, não tem nem
mesmo palavras, a boca só se abre para um bocejo mudo; furioso
com isso afunda o rosto nos travesseiros. E assim passa a noite
(Kafka, 2002, p. 4 1 -42).
* **
II
A manhã seguinte chega a um Blumfeld que, transtorna­
do pela noite mal-dormida (mau sono que Blumfeld atribui ao
fato de não haver fumado nem bebericado seu licor antes de
adormecer), antes de seguir ao trabalho ainda tem que enfren­
tar um longo périplo de percalços, o incômodo de esconder as
ridículas bolas da empregada algo surda, tentar oferecê-las ao
filho da empregada, infelizmente obtuso demais para enten­
der até mesmo o que Blumfeld lhe diz e, finalmente, liberar
seu quarto para que as cjuas filhas do zelador, espertíssimas
meninas, apanhem as bolinhas. Finalmente põe-se a caminho
ao local de trabalho, estreito e comprimido em todos os senti­
dos possíveis dessa palavra:
1 49
No caminho para a fábrica de roupas de baixo em que Blumfeld
está empregado os pensamentos acerca do trabalho aos poucos
prevalecem sobre tudo o mais. Acelera o passo e, a despeito do
atraso de que o menino é culpado, chega ao escritório em pri­
meiro lugar. É um espaço cercado por vidros, contém uma escri­
vaninha para Blumfeld e duas carteiras de tampa reclinável para
os aprendizes subordinados a Blumfeld. Do mesmo modo que as
carteiras são tão pequenas e estreitas como se fossem destinadas
a escolares, no escritório tudo é muito estreito, e os aprendizes
não podem sentar-se porque caso contrário não haveria mais es­
paço algum para a poltrona de Blumfeld. Por isso ficam o dia
inteiro premidos contra suas carteiras. Sem dúvida é muito des­
confortável para eles, mas desse modo fica difícil para Blumfeld
vigiá-los. Com freqüência comprimem-se com fervor na carteira,
não porventura para trabalhar, mas para cochichar entre si ou até
para tirar uma soneca. Blumfeld se irrita muito com eles, que nem
de longe o auxiliam o suficiente no gigantesco trabalho que lhe é
imposto. A tarefa consiste em manejar todo o movimento de mer­
cadorias e dinheiro com as trabalhadoras da casa, incumbidas pela
fábrica da produção de certas peças mais finas. Para poder julgar a
magnitude desse trabalho é preciso ter uma visão mais precisa do
conjunto. Mas desde que morreu o superior imediato de Blumfeld,
alguns anos antes, ninguém mais possui esta visão, por isso nem
mesmo ele é capaz de conceder a quem quer que seja o direito de
emitir um julgamento sobre seu trabalho (Kafka, 2002, p. 5 1 -52).
Lá es�ão, portanto, as formas gêmeas à espera de Blumfeld,
na figura de um par de aprendizes inúteis e cheios de artima­
nhas - o que não impede Blumfeld, num característico diver­
sionismo desses personagens devastados pelo peso do mundo,
de pensar em o quanto seu trabalho é desvalorizado por seu
superior, bem como é menosprezado por todos os demais em­
pregados, exatamente devido à desvalorização de seu superior.
O industrial, senhor Ottomar, por exemplo, subestima osten­
sivamente o trabalho de Blumfeld; naturalmente ele reconhece
os méritos que Blumfeld acumulou na fábrica no curso de vinte
anos, não só porque tem de fazê-lo, mas também porque aprecia
I SO
Blumfeld como pessoa fiel, digna de confiança; seja como for, su­
bestima seu trabalho, acreditando, inclusive, que poderia ser or­
ganizado de modo mais simples e, nesse aspecto, mais vantajoso
em todos os sentidos do que a maneira como Blumfeld o realiza.
Dizem, certamente não é algo destituído de verdade, que só por
isso Ottomar aparece tão raramente na seção de Blumfeld - para
se poupar da irritação que lhe causa ver os métodos de trabalho de
Blumfeld. [ .. ] Com certeza é triste para Blumfeld não ser reconhe­
cido dessa maneira, mas para isso não há remédio, pois não pode
forçar Ottomar a permanecer, por exemplo, por um mês ininter­
rupto, na seção de Blumfeld, estudando as múltiplas formas dos
trabalhos que ali devem ser executados, fazendo valer seus pró­
prios métodos supostamente melhores, e deixar-se por fim con­
vencer da razão que assistia a Blumfeld com a conseqüência, no
caso inevitável, do colapso da seção. [ ] Se o chefe subestima al­
guém, então é natural que os empregados procurem ultrapassá-lo,
nesse aspecto, o máximo possível. Daí que todos menosprezam o
trabalho de Blumfeld; ninguém considera necessário à sua forma­
ção trabalhar um tempo na seção dele e, quando são admitidos
novos empregados, nenhum, por iniciativa própria, é destinado
ao departamento de Blumfeld. É em conseqüência disso que lhe
falta renovação do pessoal (Kafka, 2002, p. 53-54).
.
...
Assim, Blumfeld necessita de um auxiliar. Todavia, o tra­
balho para convencer o senhor Ottomar de tal necessidade é
desmedido, e significa para Blumfeld o caminho de sua des­
graça - em vez de um, recebe dois ajudantes inúteis - apren­
dizes, auxiliares, que agora aprontarão suas inofensivas traves­
suras na estreiteza do espaço de que Blumfeld já dispõe, que é
tudo o que ele dispõe:
Foram semanas da luta mais árdua quando Blumfeld, que até
então havia cuidado de tudo na seção completamente sozinho,
ajudado apenas por um servente, solicitou a contratação de um
auxiliar. Quase todos os dias Blumfeld aparecia no escritório de
Ottomar e lhe explicava, de uma forma tranqüila e pormenoriza­
da, por que precisava de um auxiliar na seção. Ele não era necessá­
rio, certamente, porque Blumfeld queria se poupar; Blumfeld não
151
queria se poupar, cumpria sua tarefa mais que abundantemente
e não cogitava em deixar de fazê-lo; queria apenas que o senhor
Ottomar refletisse como, no decurso do tempo, o negócio se de­
senvolvera e todas as seções foram aumentadas de modo corres­
pondente; só a de Blumfeld era sempre esquecida. E de que modo
o trabalho ali aumentara! [ ... ] a despeito de tudo vai-se aferrar ao
seu posto enquanto de algum modo isso for possível; de qualquer
maneira tem razão e, por mais que às vezes demore, a razão final­
mente tem de encontrar reconhecimento. Assim é que, de fato,
Blumfeld no fim recebeu até mesmo dois ajudantes - mas que aju­
dantes! (Kafka, 2002, p. 54-55)
Aí estão, portanto, os dois clássicos ajudantes kafkianos.
Nessa versão, expressões abertas da puerilidade irresponsável,
porém ardilosa - sua fraqueza, sua palidez doentia tão carac­
terística desse universo kafkiano, é exatamente sua força extre­
ma; nem ao menos pequenos movimentos conseguem realizar
a contento, é seu lado infantil e inofensivo - inútil e estorvan­
te, inadequado, porém ocupando espaço precioso e indo além
do que parece e aparece a algum observador incauto - e, por
outro lado, portadores da figuração mais terrível da ameaça,
aquela capaz de trair qualquer boa intenção. Imensa fragili­
dade que é, em si imensa, ardilosa força destrutiva, recolhida
em corpos franzinos, pele aparentemente tão frágil quanto era
aparentemente frágil o celulóide de que eram feitas as insidio­
sas bolas que haviam penetrado de modo tão despudorado na
intimidade do quarto de Blumfeld.
Crianças pálidas, frágeis. Por seus documentos já deviam ter atin­
gido a idade pós-escolar, mas na realidade não era possível acre­
ditar nisso. Não era desejável confiá-los nem mesmo a um mestre,
de tal modo era nítido que ainda permaneciam nos braços da mãe.
Ainda não conseguiam se mover razoavelmente, ficar em pé por
muito tempo os cansava de modo incomum, especialmente nos
primeiros dias. Se ninguém os vigiava, dobravam-se logo de fraqueza, punham-se num canto tortos e curvados. [ . ] . Incumbir os
.
..
1 52
ajudantes de um pequeno movimento era uma coisa ousada: certa
vez um deles quis transportar algo apenas uns passos, excedeu­
-se na velocidade e feriu o joelho na carteira. A sala estava cheia
de costureiras, as carteiras cheias de mercadorias, mas Blumfeld
teve de largar tudo, levar o ajudante que chorava ao escritório e ali
aplicar-lhe uma pequena atadura (Kafka, 2002, p. 56-57).
E, não obstante toda essa infantilidade e fragilidade, sa­
bem se ver mais do que bem com as costureiras; por trás da
aparente prontidão e servilismo que publicamente demons­
travam, j aziam intenções aparentemente nada boas, porém
provavelmente credoras de sua imaturidade irresponsável: en­
ganar Blumfeld, que, por sua vez, exatamente devido à infan­
tilidade e à fragilidade evidentes dos ajudantes, não poderia
nem ao menos puni -los como mereciam. Tinha de continuar
a padecer de sua presença e de seus ardis:
Mas esse zelo dos auxiliares era só aparente; como verdadeiras
crianças que eram, queriam destacar-se uma ou outra vez, mas
com mais freqüência ainda, ou antes; quase sempre, desejavam
somente desviar a atenção do superior e enganá-lo. N�m momento
em que o trabalho era dos maiores, Blumfeld passou correndo,
pingando de suor, pelos dois e observou como eles, entre far­
dos de mercadorias, trocavam selos. Sua vontade foi descarregar
os punhos sobre suas cabeças - para um comportamento como
aquele teria sido a única punição possível; mas eles eram crianças,
Blumfeld não podia desferir um golpe mortal sobre elas. E desse
modo continuou a se torturar com os dois ajudantes. A princípio
imaginou que os auxiliares o ajudariam em pequenos serviços na
época em que a distribuição das mercadorias exigia tanto esforço
e atenção. [ ... ] Aplicadas a esses ajudantes, eram esperanças com­
pletamente vãs; Blumfeld logo percebeu que não podia de modo
algum deixá-los falar com as costureiras. Com efeito, desde o
início, isso não era viável com muitas delas, porque tinham an­
tipatia ou medo deles; em relação a outras, pelo contrário, pelos
quais eles tinham preferência, muitas vezes saiam correndo até a
porta para recebê-las. A estas levavam tudo o que desejassem e,
1 53
mesmo que as costureiras tivessem direito a elas, apertavam-lhes
a mão com uma espécie de mistério; para essas prediletas junta­
vam numa estante vazia diversos retalhos, restos sem valor, mas
também miudezas ainda utilizáveis; acenavam-lhes de longe com
estas, felizes, pelas costas de Blumfeld e, como recompensa, elas
os presenteavam com bombons que lhes enfiavam na boca (Kafka,
2002, p. 57-58).
Um outro tema clássico em Kafka é aqui reencontrado:
as furtivas aproximações, os furtivos flertes, para os quais os
ajudantes, "que nem ao menos poderiam ser confiados a um
mestre': eram mais do que capazes, e hábeis; tudo ocorre em
um universo de signos por assim dizer "paralelo': inabordável
diretamente por Blumfeld, "por suas costas"; significações ex­
tremamente espertas, sem necessidade de palavras para serem
entendidas, trocas de favores, pequena desordem que, porém,
obriga Blumfeld a tomar atitudes às quais os ajudantes respon­
dem com a característica raiva muda de palavras porém caco­
fônica, ruidosa, típica de um universo desabitado de linguagem
e, todavia, extremamente elo quente, dessa linhagem de auxi­
liares kafkianos:
Obviamente Blumfeld pôs fim, logo, a essa anomalia e, quando as
costureiras chegavam, forçava os auxiliares a irem para seu canto.
Mas por muito tempo eles consideraram essa atitude uma gran­
de injustiça: resistiam, quebravam de propósito as canetas e várias
vezes - sem apesar de tudo ousar erguer a cabeça - batiam forte
nos vidros para chamar a atenção das costureiras para o mau trata­
mento que - na opinião deles - Blumfeld os fazia suportar (Kafka,
2002, p. 58).
Tudo converge, ao fim e ao cabo, àquilo que parece haver
estado desde sempre escrito: os auxiliares permanecerão em
sua aparente infância eterna, e por detrás dela e de sua fragi­
lidade, surge a ameaça velada e simultaneamente explícita de
1 54
quem sabe fazer valer seus direitos "reais ou aparentes": é uma
das expressões kafkianas igualmente clássicas na descrição do
despudor de um mundo definitivamente medíocre, habitado
essencialmente por figuras estreitas em todos os sentidos99 e
que, inobstante, portam um virtual poder desagregador de in­
suspeitadas proporções, como seu olhar firme nos olhos ela­
ramente denuncia:
- Os dois para o trabalho! E sem mais um pio! - brada Blumfeld
apontando com o braço estendido, aos auxiliares, o caminho para
suas carteiras. [ . ] Eles obedecem logo, mas não, entretanto, en­
vergonhados e de cabeça baixa; ao contrário, giram rígidos quan­
do passam por Blumfeld e o fitam firme nos olhos, como se desse
modo quisessem demovê-lo de bater neles. Certamente estão
sabendo, por experiência suficiente, que Blumfeld por princípio
nunca bate. Mas são excessivamente medrosos e sempre sem o
menor tato procuram fazer valer seus direitos reais ou aparentes
(Kafka, 2002, p. 63).
..
A questão que sobra é, então: em que se diferenciam os
ajudantes de Blumfeld , essas silhuetas incomodativas, das bo­
linhas gêmeas e maquínicas com suas brincadeiras idiotas?
Onde acabam uns e iniciam os outros?100 Tratar-se-á de uma
Ver, a respeito, Adorno: "O sistema é lógico do início ao fim e, como qualquer
sistema, desprovido de sentido. Tudo o que Kafka narra pertence à mesma or­
dem. Todas as suas histórias desenrolam-se no mesmo espaço sem espaço, e to­
dos os buracos são tão perfeitamente tapados que as pessoas levam um susto
quando se menciona algo que não caberia ali, como a Espanha e o Sul da França,
evocados em uma passagem de O castelo" (Adorno, 1998, p. 252-253).
1 00 " A fronteira entre o humano e o mundo das coisas -torna-se tênue. Esta
é a razão de seu muito comentado parentesco com Klee. Kafka chamava
sua maneira de escrever de 'rabisco'. O reifi.cado torna-se signo gráfico, os
homens proscritos não agem por si mesmos, mas como se cada um tivesse
caído em um campo magnético. É exatamente essa definição externa de
personagens interiorizadas que confere à prosa de Kafka a aparência ines­
crutável de uma objetividade sóbria. A zona na qual não se pode morrer é
ao mesmo tempo a terra de ninguém entre o homem e a coisa: nessa terra
Odradek, visto por Benjamin como um anjo no estilo de Klee, encontra­
-se com Gracchus, a modesta imitação de Nimrod" (Adorno, 1998, p. 260).
99
155
mesma forma dupla, espelhada indiferenciada que habita
todos os espaços que a vontade de alguém ocupa? As bolas
não são procuradoras dos inúteis ajudantes sob forma huma­
na que se encarregam de exasperar Blumfeld até mesmo no
recôndito de seu lar: são os próprios ajudantes, apenas sob ou­
tra forma, são sua esperteza com outra configuração; são, re­
lativamente a eles, igualmente indiferenciadas, existência des­
prezível que não obstante não só se faz agressivamente notar,
mas que constitui o mundo no qual Blumfeld está condenado
a viver. Afinal, o cachorrinho, que poderia ser uma espécie de
elo de ligação entre Blumfeld e a vida, permanecerá ausente.101
O universo de Kafka se modifica levemente a cada obra,
mas permanece, essencialmente, o mesmo: um mundo sem tem­
po assim se pode denominar uma temporalidade mortalmen­
te doente, ou uma dialética entre esses dois estados de c9isas
( Cf. Souza, 2000a) no qual restolhos humanos claudicantes
-
-
-
-
têm de se confrontar continuamente com expressões dessa au­
sência de temporalidade que assumem forma aparentemente
humana e expressam exatamente, nos mínimos detalhes, cada
aspecto da mediocridade do mundo que representam. Essa é a
condenação eterna.
101
1 56
Não é demais lembrar a que ponto os animais são importantes na obra de
Kafka, no sentido de respiração da existência. Ver igualmente, a respeito,
Adorno: "Assim como seu compatriota Gustav Mahler, Kafka fica do lado
dos desertores. Em vez da ideia de dignidade humana, conceito supremo
da burguesia, aparece em Kafka a ideia da salutar semelhança do homem
com o animal, presente em grande parte de suas narrativas. O mergulho
no interior da individuação, que se completa nessa reflexão, depara com o
princípio da própria individuação, aquele 'colocar-se a si mesmo' sancio­
nado pela filosofia: a teimosia mítica. A reparação é procurada na medida
em que o sujeito deixa de lado a teimosia. Kafka não glorifica o mundo pela
subordinação, antes resiste a ele pela não-violência. Diante dela, o poder
deve reconhecer-se como aquilo que realmente é. Kafka conta com isso. O
mito deve se prostrar diante da própria imagem no espelho. Os heróis de O
processo e de O castelo tornam-se culpados não por sua própria culpa - eles
não têm nenhuma -, mas porque procuram trazer a justiça para o seu lado"
(Adorno, 1 998, p. 268-269).
·
Como conclusão:
Kafka e a vida danificada
Velho e nu, exposto aos infortúnios deste desafortunado
mundo, vejo-me andando a esmo num carro
indiscutivelmente real, puxado
por cavalos indiscutivelmente sobrenaturais
Franz KAFKA. Um médico da aldeia
Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de
sonhos intranqüilos, encontrou-se em sua cama
metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava
deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao
levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado,
marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo
do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal
se sustinha. Suas inúmeras patas, lastimavelmente
finas em comparação com o volume do resto do corpo,
tremulavam desamparadas diante de seus olhos.
- O que aconteceu comigo ? pensou
Franz KAFKA. A metamorfose
A sugestão do absurdo penetra o primeiro parágrafo de
A Metamorfose; cúmulo do desconforto, sugere-se o início de
um conto fantástico, afastado das possibilidades do real, do lei­
tor, da normalidade - a estranheza apresenta-se. É a porta de
entrada do mundo. Mas um mundo percebido inicialmente
como estranho, inusitado, anti-natural, excessivamente bem
ordenado, excessivamente literário.
- Que tal se eu continuasse dormindo mais um pouco e esqueces­
se todas essas tolices? Pensou, mas isso era completamente irre­
alizável, pois estava habituado a dormir do lado direito e no seu
estado atual não conseguia se colocar nesta posição [ . . ] Tentou
[ . ] e só desistiu quando começou a sentir do lado uma dor ainda
não experimentada, leve e surda (Kafka, 2001 , p. 8).
.
.
.
A relativa normalidade da reação sugere uma certa nor­
malidade nos fatos. Gregor Samsa gostaria de dormir e não
157
perceber o quão real, o quão normal é a Metamorfose; tal, po­
rém, é impossível - a impossibilidade da evasão é uma ((dor
ainda não experimentada" (Kafka, 1 993).
O mundo segue: um estranho contraponto tem início. Em
posição de inseto, sem que algo se tenha alterado ou que sua
aparência se tenha modificado minimamente em direção a
uma morfologia mais normal, Gregor Samsa inicia uma pe­
quena meditação sobre sua condição totalmente humana:
- Ah, meu Deus, pensou. - Que profissão cansativa eu escolhi.
Entra dia, sai dia - viajando. A excitação comercial é muito maior
que na própria sede da firma e além disso me é imposta essa can­
seira de viajar, a preocupação com a troca dos trens, as refeições
irregulares e ruins, um convívio humano que muda sempre, ja­
mais perdura, nunca se torna caloroso. O diabo carregue tudo isso!
(Kafka, 1993, p. 8-9).
Está dado assim, no quinto parágrafo da obra, o contra­
ponto definitivo, perfeita tradução da tensão original: o absur­
do não é tão absurdo quanto parece, assim como o normal não
é tão naturalmente normal quanto se apresenta - desde que
nenhuma de suas dimensões, do ((absurdo" como do ((normal",
seja suavizada em uma inteligibilidade parcial, ou seja, por
uma indiferenciação. O bloco da realidade, a hiper-realida­
de, comporta todas estas dimensões (e ainda outras), e estas
dimensões se tornaram ou tendem a se tornar crescentemente
indisfarçáveis no tempo presente, o tempo da crescente quan­
tificação em detrimento da qualidade. Este é o contraponto
vital, tal como é vivido no desatino do tempo contemporâneo,
da globalização ilimitada e do frenesi das imagens. Setenta
anos antes, Kafka já se enfrenta com os desafios de um mundo
((virtual" - que, na verdade, nada mais é do que a outra face da
realidade maciça e humanamente intolerável, pois essencial­
mente indiferenciado - o que é intrinsecamente insuportável ao
humano, pois esse se distingue exatamente por sua diferença
em relação a todo o resto, por sua qualidade de singular, irre1 58
dutível singularidade. A obra de Kafka, antecipando em de­
cênios os arroubos da "virtualidade, ilimitada e da violência
asséptica, controlada remotamente e invadindo a profundida­
de das intimidades e dos corpos na expressão da "vida nua, "nacktes Leben': é a história desta indisfarçabilidade, o ponto
de partida desta indisfarçabilidade, a entrada real no mundo
real da contemporaneidade em suas cores mais próprias: a
vida - semimorta, semi-viva - danificada. 102 O mesmo mundo
que Adorno, não por acaso, em uma de suas mais conhecidas
obras, assim classifica em seu subtítulo: Mínima moralia - re­
flexões desde a vida danificada (beschãdigt). A seguir, aborda­
remos alguns aspectos do modo como o autor frankfurtiano
reflete filosoficamente sobre esse universo sufocado no qual o
sentido humano de racionalidade está ausente, por mais que
configure um universo perfeitamente racional.
102
Onde há vida em Kafka? "Ele se apega à salvação das coisas, daqueles obje­
tos que não estão mais envolvidos na rede de culpa, que não podem mais
ser trocados, que são inúteis. O sentido mais profundo do obsoleto na obra
de Kafka refere-se a estas coisas. O seu mundo de ideias - como no "Tea­
tro natural de Oklahomà' - assemelha-se a u m mundo de saldos de lojas:
nenhum teologoumenon adaptar-se-ia melhor a ele do que o título de um
cinema americano de comédia: Shopworn angel. Enquanto no interior das
casas, onde as pessoas moram, há desgraça, nos cantos e nas escadas onde
brincam as crianças há esperança. A ressurreição dos mortos deveria ter
lugar no cemitério de automóveis. A inocência do inútil é o contraponto
ao parasitário: 'O ócio é o início de todo vício, e a coroação de todas as
virtudes'. Segundo o testemunho da obra de Kafka, toda positividade, toda
contribuição, poder-se-ia mesmo dizer que todo trabalho que reproduz a
vida apenas promove o intrincamento" (Adorno, 1998, p. 269).
1 59
ADORNO, LEITOR DE KAFKA,
LEITOR DO MUNDO
"só há uma expressão para a verdade:
O pensamento que nega a injustiça"
Hélcio era biscateiro e morava na rua Campo Grande. As
16 horas daquele dia de janeiro de 1 982 ele saltou do trem
vindo do trabalho em Madureira. Ninguém sabe porque
foi preso por quatro homens que se diziam policiais, que
o colocaram num Opala preto. Seis horas depois, na rua
Coronel Tamarino, quem passasse pelo local ia achar que
o povo fazia festa. Gritos, gargalhadas, corre-corre geral,
até fogos de artifício foram soltos na folia acompanhada
pela criançada. O biscateiro Hélcio acabava de morrer
linchado por 200 pessoas [ . ] - Mas Hélcio não roubava ­
diz Durvalina (sua mãe), amparada pelo filho Paulo.
Carlos Alberto LUPPI. Malditos frutos de nosso ventre.
. .
Essa paródia moderna, pós-moderna, hipermoderna, con­
cisa e precisa - a ponto de nos fazer lembrar o borgiano Pierre
Menard, autor del Quijote de O processo contém, em sua elo­
quência comprimida em palavras exatas, exatamente o mesmo
conteúdo daquela obra magna kafkiana, apenas que adapta­
do ao ritmo dos tempos que correm. Ali estão: a prisão sem
motivo aparente, a razão que não alcança os motivos, a massa
-,
161
tornada indivíduo para realizar um ato - o linchamento -, os
atores que prendem, que nem ao menos se sabe se são quem
dizem ser - e que se mostram em dose dupla em relação ao
par de ajudantes e funcionários kafkianos -, e talvez até mes­
mo, num acréscimo compreensível, por empréstimo, o coral
infantil de "O médico rural": a combinação kafkiana perfeita
do sórdido com o burlesco em suas mais sutis tonalidades. Al­
guma mera coincidência?
Ora, uma das principais questões que a obra kafkiana põe
a seus leitores, como toda grande obra literária, é o tema da li­
nha interpretativa a seguir. Bibliotecas inteiras têm sido escri­
tas procurando elucidar uma modalidade interpretativa geral
que permita a compreensão das premissas maiores da escrita
do escritor tcheco. O fruto desses esforços de gerações de crí­
ticos são as inúmeras chaves de leitura que foram sendo pro­
postas - a religiosa, mais ou menos especificamente judaica, a
psicanalítica, a histórica, a sociológica e muitas das filosóficas
são testemunhos de tais tentativas.
E, não obstante, a obra permanece, porque o concreto per­
manece; há uma espécie de enigma infinitamente repetido, e
ante este enigma se recorre às ferramentas da tradição - ou
das mais diversas tradições - para tentar esclarecê-lo desde um
ponto de vista como que "externo, ao mundo da vida, confi­
nado ao cérebro e à criatividade do crítico ou a alguma condi­
ção de eternidade imutável.
O que temos proposto, numa leitura radicalmente anti­
-enigmática de tal obra (C f. Souza, 2000a e 200 1 ) , é exatamente
o contrário: o único enigma de Kafka é que sua obra continue
a atrair a perspicácia dos leitores como se flutuasse a anos-luz
da terra real, em um passado remoto ou em um futuro ine­
fável, ou na terra do absurdo, e não como realmente se dá: na
palpabilidade imediata das horas, minutos e segundos que se
sucedem naquilo a que chamamos mundo, o cotidiano da ci­
vilização ocidental com todos os seus paradoxos. Em outras
1 62
palavras: que a obra de Kafka permaneça "enigmática, é que
se apresenta, para nós, não somente como índice de sua atua­
lidade, mas como denúncia de uma cegueira.
Tal posição tem em Adorno um precursor muito abali­
zado. De fato, em seu famoso texto '}\notações sobre Kafkà'
(Adorno, 1 998, p. 239-270) , o filósofo caracteriza desde o iní­
cio aquilo no que se apresenta, de algum modo, como o mote
do estudo: trazer Kafka e sua obra à consideração imediata do
vivido e de suas contradições.
O texto, que será aqui analisado brevemente em alguns de
seus aspectos relevantes, inicia exatamente por esta via - a da
denúncia do pretenso hermetismo kafkiano e de sua transfor­
mação em bizarra curiosidade no circo das letras - e se utiliza
da solidez eloquente de uma tessitura intelectual extremamen­
te tensa, característica de Adorno, para mostrar a que ponto
tal compreensão - o inverso do quietismo ante o que Kafka
mostra é necessária.
-
A popularidade de Kafka, o conforto no desconfortável que o re­
baixa a escritório de informações sobre a condição eterna ou atual
do homem, removendo com desenvolta familiaridade justamente
o escândalo pretendido pela obra, desperta resistências à idéia de
colaborar com isso ao alinhar outra opinião, por mais divergente
que seja, às opiniões correntes. Mas justamente essa falsa fama,
variante fatal do esquecimento que Kafka teria seriamente deseja­
do para si mesmo, obriga à insistência diante do enigma (Adorno,
1998, p 239)
.
.
A obra de Kafka "pretende um escândalo': ela não é um
escândalo: pensar que ela, nela mesma, se constitua em algum
tipo de escândalo, é um arranjo mental para escapar daquilo
que ela simplesmente diz, ou seja, escamotear a letra e o sen­
tido que se insinua com a letra, apesar da letra, no trabalho
espantosamente árduo que a confecção de sua obra significou
para ele:
1 63
Kafka é enquadrado em uma corrente de pensamento estabeleci­
da, em vez de se insistir nos aspectos que dificultam o enquadra­
mento, e que por isso mesmo requerem interpretação. Como se o
trabalho de Sísifo de Kafka não tivesse sido necessário, como se a
força de maelstrom de sua obra pudesse ser explicada caso ele ti­
vesse dito apenas que o homem perdeu a salvação, que o caminho
para o absoluto lhe foi negado, que sua vida é obscura, confusa ou,
como se diz hoje em dia, está contida no nada, e que teria restado
ao homem apenas cumprir humildemente e sem muita esperan­
ça seus deveres imediatos, integrando-se a uma comunidade que
espera exatamente isso, uma comunidade que Kafka de maneira
alguma precisaria ter afrontado se concordasse com ela. Explicar
as interpretações desse tipo com o argumento de que Kafka obvia­
mente não disse isso com palavras tão secas mas, enquanto artista,
se esforçou em traduzi-Ias em um simbolismo realista é admitir
a insuficiência dessas formulações, mas não muito mais que isso
(Adorno, 1998, p.239-240).
Transformar a obra de Kafka, por sua leitura, em "símbo­
lo" de algo, como se ela desde sempre não fosse um eloquente
símbolo de si mesma, por sua vez, é cair na tentação de realocá­
-la em lugar mais controlável, onde sua precisão absoluta ao
dizer o que diz pudesse ser inofensibilizada pela multiplicação
de interpretações que se lhe seguem, onde se desvanece o que
é sólido e se solidifica o devaneio, eis que esses são os hábitos
mentais mais correntes em nosso estágio civilizatório.
Pois uma representação ou é realista, ou é simbólica; não importa
quão densamente organizados possam estar os símbolos, seu peso
específico de realidade não prejudica em nada o caráter simbólico.
A Pandora de Goethe não é menos rica em configuração sensível
do que um romance de Kafka, mas apesar disso não pode haver
dúvida quanto ao simbolismo do fragmento, mesmo que a força
dos símbolos - por exemplo, o de Elpore, que personifica a espe­
rança - transcenda a intenção imediata do autor. Se o conceito de
símbolo tem alguma pertinência na estética, âmbito no qual ele é
suspeito, ela se deve unicamente à afirmação de que os momentos
individuais de uma obra de arte remetem, em virtude da força que
os conecta, para além deles mesmos: a totalidade dos momentos
1 64
converge em um sentido. Nada, porém, seria mais inadequado no
que diz respeito a Kafka. Mesmo em criações como a de Goethe,
que joga tão profundamente com os momentos alegóricos, esses
momentos só transmitem seu sentido ao movimento do todo gra­
ças ao contexto no qual se encontram. Na obra de Kafka, porém,
tudo é o mais duro, definido e delimitado possível; assim como
nos romances de aventuras, conforme a máxima que James Fenni­
more Cooper escreveu no prefácio ao Corsário vermelho: ''A ver­
dadeira idade de ouro da literatura só surgirá quando as obras se
tornarem tão meticulosas em sua impressão quanto um diário de
bordo - e tão granuladas em seu conteúdo quanto um relatório de
vigià' (Adorno, 1998, p. 240).
Assim, não há em Kafka nenhum recurso a nada que não
seja a literalidade da escrita não envolta por uma aura de sim­
bolismos, mas com esses em luta constante, pois os sabe capcio­
sos, incorporando-os e desincorporando-os no próprio ritmo
da narrativa, na qual tudo cabe é o que temos denominado,
na falta de termo melhor e correndo o risco da falsa interpre­
tação, ((hiper-realidade" (Cf. Souza, 2000a). Isso basta para que
a obra se sustente não obstante a mútua repulsão daquilo que
a constitui e que abre mão de qualquer recurso de linguagem
que não seja o simplesmente dito, tal como a breve narração
aposta como epígrafe a este capítulo meramente diz o que diz:
nada há ali do teor de um expressionismo forçado, mas tudo,
plenamente ocupando seus limites, de exatidão.
-
Em nenhuma obra de Kafka a aura da idéia infinita desaparece
no crepúsculo, em nenhuma obra se esclarece o horizonte. Cada
frase é literal, e cada frase significa. Esses dois aspectos não se mis­
turam, como exigiria o símbolo, mas se distanciam um do outro,
e o ofuscante raio da fascinação surge do abismo que se abre en­
tre ambos. Apesar do protesto de seu amigo, a prosa de Kafka se
alinha com os proscritos também por buscar antes a alegoria do
que o símbolo. Benjamin a definiu com razão como parábola. Ela
não se exprime pela expressão, mas pelo repúdio à expressão, pelo
rompimento. É uma arte de parábolas para as quais a chave foi
roubada; e mesmo quem buscasse fazer justamente dessa perda a
165
chave seria induzido ao erro, na medida em que confundiria a tese
abstrata da obra de Kafka, a obscuridade da existência, com o seu
teor (Adorno, 1998, p. 240-24 1).
A "tese abstratà' se dá quando se abstrai (d)aquilo que é
a espessura que se faz palavra no texto kafkiano; se entender­
mos, no rastro da etimologia e da tradição, "abstração" como
uma espécie de possibilidade ou modalidade de subsunção, nes­
te caso estaremos em maior distância do próprio texto kafkiano
na exata proporção em que nos julgarmos mais próximos pois é exatamente a interdição maciça a toda e qualquer possi­
bilidade de sin1ples abstração ou subsunção que constitui sua
obra, pois em certo sentido, e de modo muito forte, ela assume
mesmo o teor de uma denúncia da abstração.
Cada frase diz: "interprete-me"; e nenhuma frase tolera a interpre­
tação. Cada frase provoca a reação "é assim", e então a pergunta:
de onde eu conheço isso? O déjà vu é declarado em permanência.
A violência com que Kafka reclama interpretação encurta a dis­
tância estética. Ele exige do observador pretensamente desinteres­
sado um esforço desesperado, agredindo-o e sugerindo que de sua
correta compreensão depende muito mais que apenas o equilíbrio
espiritual: é uma questão de vida ou morte. Um dos pressupostos
mais importantes de Kafka é que a relação contemplativa entre o
leitor e o texto é radicalmente perturbada. Os seus textos são dis­
postos de maneira a não manter uma distância constante com sua
vítima, mas sim excitar de tal forma os seus sentimentos que ela
deve temer que o narrado venha em sua direção, assim como as
locomotivas avançam sobre o público na técnica tridimensional
do cinema mais recente (Adorno, 1998, p. 24 1). 103
103
1 66
Segue: "Essa proximidade física agressiva interrompe o costume do leitor de
se identificar com as figuras do romance. Graças a esse princípio, o surrealis­
mo pode com razão reclamar Kafka como um de seus representantes. Ele é
Turandot tornada escritura. Quem percebe isso e prefere não fugir correndo
deve arriscar a cabeça, ou então tentar derrubar a parede com a própria cabeça,
correndo o risco de não ter uma sorte melhor que a de seus antecessores. Como
num conto de fadas, o destino dos que falharam em resolver o enigma, em vez
de assustar, serve de incentivo. Enquanto a palavra do enigma não for encon­
trada, o leitor permanece preso" (Adorno, 1998, p. 241).
Se na obra de Kafka deve-se temer que o narrado venha
na direção do leitor, é porque na realidade os acontecimentos
vêm na direção de quem existe. Mais uma vez, de modo re­
novado, surge o tema: o que faz com que a obra kafkiana seja
considerada misteriosa ou fantástica? Tal pergunta tem como
resposta agora evidente: o medo de ser atingido por ela. Pois
normalmente são relegados ao reino do fantástico ou do fan­
tasmagórico aquilo que é excessivamente real para ser suporta­
do em sã consciência, à luz do dia; se alguém não entende que
hoje, por exemplo, milhões e milhões de pessoas ajam como
maquinismos dirigidos por via remota, ou se transformem
voluntariamente em massa amorfa, dificilmente entenderá ,
- ou melhor: suportará , sem sofisticados mecanismos de
defesa psíquica, uma figura como Odradek, o herói das "Preo­
cupações de um pai de famílià: na medida que este representa
exatamente essa configuração, comprimida, como Blumfeld,
por todos os lados, ao mesmo tempo em que, como "Uma mu­
lherzinha': nega-se a ao menos tentar entender a razão desse
aviltante estado de coisas.
-
As criações de Kafka se protegem do erro artístico mortal que con­
siste em crer que a filosofia que o autor injeta na obra seja o seu
teor metafísico. Se fosse assim, a obra teria nascido morta: ela se
esgotaria naquilo que diz e não se desdobraria no tempo (Adorno,
1998, p. 242).
Qual, então, a forma como Kafka evita que seu trabalho
se apresente como mero reflexo de um estado dado de coisas?
Exatamente, como bem detecta Adorno, na evitação daquilo
que tantos críticos julgaram perceber na obra: uma significa­
ção metafísica qualquer. E isso porque, como fica patente a
cada exame, o tempo de Kafka não é um tempo de vida, e
esse não-ser constitui praticamente a sua essência. Nenhuma
obra é a mera duplicação de seu tempo, ou seria não somente
inútil, como inconcebível; qualquer obra é tempo feito obra,
ainda que tempo feio e doente (Cf. Souza, 2000a); a pequena
1 67
dialética que se cria entre a anulação do tempo na realidade por exemplo, na realidade de uma execução de Hélcio ou de
Joseph K., execução sem volta significando um presente eter­
no, fixado em si mesmo -, e um tempo patológico, em rotação,
que atravessa e é atravessado por todas as obras - parábolas
- de Kafka, é o que se constitui no mínimo suficiente para que
tal obra não apenas exista, mas sobreviva a seu próprio nas­
cimento.
Para se prevenir contra o curto-circuito causado pelo sentido pre­
maturo já visado pela obra, a primeira regra é tomar tudo literal­
mente, sem recobrir a obra com conceitos impostos a partir de
cima. A autoridade de Kafka é a dos textos. Somente a fidelidade à
letra pode ajudar, e não a compreensão orientada. Em uma escrita
que continuadamente obscurece e esconde o que quer dizer, todo
enunciado determinado contrabalança a cláusula geral da inde­
terminação (Adorno, 1998, p. 242).
A salvação da escrita é aquilo que todo escapismo quer
desesperadamente evitar: a literalidade. Entender que os sim­
bolismos e a discussão acerca deles é, em Kafka, não apenas
inútil, mas obliterante, é entender que somente através da letra
seca é Kafka abordável.
O princípio da literalidade, sem cuja medida o ambíguo certamen­
te se diluiria no indiferente, condena a tentativa usual de associar
na interpretação de Kafka a pretensão de profundidade com a au­
sência de rigor. Cocteau ressaltou com razão que a introdução do
estranho como um elemento onírico faz com que a obra perca o
gume. O próprio Kafka, para impedir esse mau costume, retirou
de O processo uma passagem decisiva, que tinha o caráter de um
sonho - a peça, verdadeiramente monstruosa, foi publicada em
Um médico rural -, sublinhando assim que pelo contraste com
este sonho todo o resto é confirmado como realidade. Também
poderiam ser lembradas as passagens oníricas que se encontram
às vezes em O castelo e em América, construídas de maneira tão
tenebrosa que o leitor tem medo de nunca mais acordar do pe­
sadelo. Entre os momentos do choque não é o mais fraco aquele
1 68
que faz com que os sonhos sejam tomados à Ia lettre. Tudo o que
se assemelha ao sonho e a sua lógica pré-lógica é eliminado, e por
isso o próprio sonho é eliminado (Adorno, 1998, p. 243).
A aparência de sonho, tão presente em tantas obras de
Katka, é exatamente uma forma que o discurso estatui para
liberar-se de seu elemento onírico; não fosse assim, e o excesso
de realidade que perpassa a obra katkiana - tão palpável quanto
o linchamento de Hélcio - daria azo a uma "onirização)) esca­
pista. Essa apenas, e não outra, é a razão pela qual
Não é o monstruoso que choca, mas sua naturalidade. Logo após
o agrimensor ter expulsado de seu quarto os inoportunos auxi­
liares, estes voltam a entrar novamente pela janela, sem que o
romance dedique ao episódio mais do que a mera comunicação
do fato: o herói está cansado demais para expulsá-los novamente
(Adorno, 1998, p. 243).
O excesso de realidade e sua percepção têm como efeito
inescapável o cansaço, o esgotamento, o adiamento. Os relógios
só aparecem, em Kafka, quando são absolutamente imprescin­
díveis; em todos os outros momentos, o próprio decorrer dos
acontecimentos é mais tirânico do que o mais tirânico dos re­
lógios concebíveis, pois é ali que acontece o "monstruoso" - e
"não é o monstruoso que choca, mas sua naturalidade". 104 Por
104
Ver o final do capítulo anterior, como tal se dá numa das mais "monstruosas"
obras de Kafka, A metamorfose. Ver ainda: "Quem quisesse entender como se
chega a experiências tão fora do comum como as descritas por Kafka deveria
presenciar um acidente numa cidade grande: inúmeras testemunhas se apre­
sentam e declaram conhecer a pessoa acidentada, como se toda a comunidade
tivesse se reunido para assistir ao instante no qual o poderoso ônibus se lançou
sobre o velho e frágil táxi. O permanentemente déjà vu é o déjà vu de todos. Por
isso o sucesso de Kafka, que se transforma em traição apenas no momento em
que o universal é destilado, poupando-se o esforço da reclusão mortal. Talvez o
objetivo oculto de sua arte seja a disponibilização, a tecnificação e coletivização
do déjà vu. O melhor, sempre esquecido, é relembrado e colocado em uma
garrafa, como a sibila de Cumas. Mas com isso o melhor se transforma no pior
possível. 'Quero morrer', mas isso lhe é negado. O efêmero, ao ser perpetuado,
é atingido por uma maldição" (Adorno, 1998, p. 248).
1 69
isso, suportar ainda um momento depende completamente
que se consiga desviar o suficiente o ângulo de percepção
para que todo o esperado se torne inesperado, e o ines pera­
do esperado; ainda que sem maiores garantias, a linguagem
que decorre dessa distorção - na qual os discursos pomposos
e geralmente insanos se inserem como contraste suficiente é expressão da única esperança de que a própria linguagem
sobreviva ao choque com as coisas, ainda que em uma espé­
cie, muitas vezes, de combinação com um determinado gesto,
configurando uma língua nascitura. O que, em um mundo
menos doente, pareceria uma fabulação inofensiva, adquire
aqui uma importância mortal, decisiva para a continuidade
do próprio mundo: desviar em pouquíssimos graus o ângulo
de abordagem, de modo que aquilo que nunca seria visto de
outro modo agora o seja.
O leitor deveria se relacionar com Kafka da mesma forma como
Kafka se relaciona com o sonho, ou seja, deveria se fixar nos pon­
tos cegos e nos detalhes incomensuráveis e intransparentes. O fato
de que os dedos de Leni estejam ligados por uma membrana ou
que os executores pareçam tenores são coisas mais importantes do
que as digressões sobre as leis (Adorno, 1998, p. 243).
Kafka constrói sua linguagem nesse interstício entre o no­
vum do nunca dito e o ancestral, o pré-original, o primevo que
transborda sobriamente de qualquer forma pré-dita, numa ante­
rioridade por assim dizer - numa referência indireta a Levinas
anterior à própria ideia de anterioridade, de antiguidade,
numa língua que se funde com um gesto, numa imagem que
se amalgama com uma sentença, num verbo paralisado no
tempo sem nunca se metamorfosear em substantivo.
-
É o mais novo estado de uma língua que enche a boca dos que a
falam, é a segunda confusão babilônica, à qual a dicção sóbria de
Kafka resiste, forçando-o a inverter a relação histórica entre con­
ceito e gesto, como num espelho. O gesto é o ((assim e: A língua-
1 70
gem, cuja configuração deveria ser a verdade, torna-se inverdade
quando distorcida. "O senhor deveria também ser mais reservado
ao falar; quase tudo o que disse antes poderia ser deduzido do seu
comportamento, ainda que tivesse dito apenas algumas palavras;
além disso, não foi nada de extremamente favorável ao senhor."
Às vezes, as experiências sedimentadas nos gestos seguirão a in­
terpretação que deveria reconhecer na sua mímese um universal
reprimido pela consciência humana. "Pela janela aberta se via
outra vez a velha senhora, que com uma curiosidade verdadeira­
mente senil agora havia passado para a janela que ficava defronte
para continuar vendo tudo", lemos na cena da prisão no início
de O processo. Quem já não se sentiu observado da mesmíssima
forma pelo vizinho em uma pensão qualquer; quem já não teve a
intuição de um destino repugnante, incompreensível e inevitável?
O leitor que conseguisse decifrar tais cenas saberia mais de Kafka
do que quem encontra nele uma ilustração da ontologia (Adorno,
1998, p. 246-247).
Por outro lado, ao haver acertado precocemente as contas
com a psicanálise, em O veredicto, Kafka pode se dar a liberda­
de de lidar com esta como que "ao pé da letrà: desenvolvendo­
-a e levando suas consequências a pontos inimagináveis, ra­
dicalizando-a ad absurdum, como só à literatura é dado fazer
em seu encontro com a carne do humano, 105 e tornando, nessa
radicalização, o simbólico e o psíquico tão fisicamente palpá­
veis como qualquer objeto que se tome com a mão: "Ele aceita
a psicanálise na medida em que ela desmascara a aparência da
cultura e do indivíduo burguês; e a explode na medida em que
a toma mais literalmente do que ela próprià' (Adorno, 1998,
p. 247). Não se trata mais, em suma, de uma questão de inter­
pretação, em qualquer sentido que se tome esta categoria, ainda
1 05
"Por isso seus pequenos discursos, sobretudo os do agrimensor, têm algo
de tolo, idiota e ingênuo: o seu bom senso aumenta o ofuscamento contra o
qual eles se levantam. Kafka quer, através da reificação do sujeito, exigir da
de antemão pelo mundo, sobrepujar, na medida do possível, essa reificação:
o mortal torna-se mensagem da paz sabática. Este é o avesso da teoria de
Kafka acerca da morte fracassada: que a criação danificada não possa mais
morrer é a única promessa de i mortalidade" (Adorno, 1998, p. 269).
171
os mais sutis e refinados; trata-se de um choque de realidade,
como um objeto físico que, ao chocar-se com outro, fosse des­
viado de seu curso de forma quase obscena, tal como teria
aparecido, a um desavisado, menos escolado nos labirintos
da realidade (uma criança, talvez), a execução de Joseph K., o
aparecimento de Gregor Samsa em um idílico recôndito fami­
liar ou o linchamento de Hélcio em plena luz do dia.
Entende-se melhor a relação entre o pesquisador do inconsciente
e o parabolista da impenetrabilidade quando se lembra que em
Freud cenas arquetípicas como a do assassinato do pai pela horda
primordial, a narração ancestral de Moisés ou mesmo a observa­
ção pelas crianças da relação sexual dos pais não são entendidas
como sínteses da fantasia, mas como eventos reais. Nessas excen­
tricidades, Kafka segue Freud até o absurdo, com uma fidelidade
digna de Eulenspiegel. Ele arranca a psicanálise do âmbito da psi­
cologia. Na medida em que deduz o indivíduo a partir de impul­
sos amorfos e difusos, o Ego a partir do Id, a psicanálise já se opõe,
em certo sentido, ao especificamente psicológico. A personalidade
se transforma de entidade substancial em mero princípio organi­
zatório de impulsos somáticos. Tanto em Freud como em Kafka, a
vigência da alma é cancelada; Kafka, na verdade, a ignorou desde
o início. Ele se distingue de Freud, mais velho e com espírito cien­
tífico, não por uma espiritualidade mais delicada, mas sim por um
ceticismo ainda mais radical em relação ao Ego. É para isso que
serve a literalidade de Kafka. Como se conduzisse uma experiên­
cia, Kafka estuda o que aconteceria se os resultados da psicanálise
não fossem corretos apenas metafórica e mentalmente, mas tam­
bém fisicamente (Adorno, 1 998, p. 247).
As conclusões de um tal mergulho se tornam mais e mais
claras na leitura de Adorno; reconhecendo uma espécie de im­
pulso benjaminiano no todo, lê este mundo kafkiano como
um precipitar-se sem volta na crise, nos escombros e ruínas,
da qual é preciso sair com os elementos que a própria crise - e
nada mais - é capaz de fornecer. Desmoronadas as falácias
da promessa de uma sociedade bem-arranjada pela realidade
1 72
que agride mortalmente quem acredita em tais falácias, sobra
a ruína dessa miragem que, todavia, é tão concreta como só os
entulhos podem ser.
A imagem da sociedade vindoura não é esboçada imediatamente
- pois Kafka, assim como toda grande arte, se comporta as cetica­
mente diante do futuro -, mas montada a partir do entulho que o
novo, em processo de formação, elimina do presente que se torna
passado. Em vez de curar a neurose, ele procura nela mesma a
força que cura, a força do conhecimento: os estigmas com que a
sociedade marca o indivíduo são interpretados como indícios da
inverdade social, são lidos como o negativo da verdade (Adorno,
1998, p. 247).
Pois, de fato,
A força de Kafka é a da demolição. Diante do sofrimento incomen­
surável, ele derruba a fachada acolhedora, cada vez mais submeti­
da ao controle racional. Nesse processo de demolição - e nunca
este conceito foi tão popular como no ano da morte de Kafka -, ele
não se detém, como a psicologia, diante do sujeito, mas alcança a
matéria em estado bruto, o mero ente que emerge na esfera subje­
tiva através do colapso total de uma consciência alienada, que re­
nuncia a qualquer auto-afirmação. A fuga atravessa o homem até
chegar ao desumano - esta é a trajetória épica de Kafka (Adorno,
1998, p. 247).
Já que toda esperança repousa sobre um sistema, e "não
há sistema sem resíduo" (Adorno, 1 998, p. 253 ) , além do fato
de que
Em sua obra, tudo se dirige a um instante crucial, onde os homens
tomam consciência de que não são eles mesmos, são coisas. As
longas e fatigantes seções desprovidas de imagens têm por obje­
tivo, desde a conversa com o pai em O veredito, demonstrar aos
homens o que nenhuma imagem seria capaz de fazer: sua falta de
identidade, o complemento de sua similaridade copiada (Adorno,
1998, p. 25 1 ).
1 73
** *
Fazer o negativo é o nosso dever: o positivo já nos foi dado
Theodor ADORNO. Anotações sobre Kafka
As conclusões são evidentes: a obra de Kafka permanece
extraordinariamente enigmática porque corresponde exatamente
ao mundo no qualfoi gestada, e que é o nosso, que se suporta em
sua insuportabilidade, quando não em nome dela. Ou seja: esta
obra permanece enigmática porque não guarda enigma algum:
o único enigma é que não se perceba o quão espantosamente
real, experienciável no dia-a-dia, ela é: seu enigma, essencial­
mente, é a ínfima distância que guarda com relação à realidade
que diuturnamente experimentamos. A incapacidade que se
tem de ver no coditiano de uma determinada época exatamen­
te aquilo que a caracteriza é exatamente o que realoca a obra
kafkiana em um presente tão íntimo que surpreende sempre
a pequena distância que se estabelece, pelo alento literário in­
comparável dos escritos, entre o mundo que a si não percebe
em seus constitutivos mais reais - o mundo kafkiano - e os
escritos que o espelham de modo absolutamente magistral. lo6
Num mundo pleno de vida, sem duplicações mecânicas, sem
transformação contínua da qualidade em quantidade, sem au­
tomatismos de infinitos tipos e violência fria tornada lugar co­
mum, no qual o insuportável fosse realmente insuportável, um
mundo no qual o Outro, o singular, não pudesse ser, em nenhu­
ma hipótese, termo incógnito de uma determinada equação, a
obra kafkiana teria realizado seu papel: pertenceria à história
da literatura. Num mundo como o nosso, porém, no qual a es­
perança é o horizonte mais distante e, simultaneamente, aquilo
pelo qual ainda vale a pena viver, a obra de Kafka está excessi­
vamente próxima, poderíamos dizer: terrivelmente próxima,
pois Hélcio e toda a multidão infinita de singularidades de106
1 74
Ver, por exemplo, a questão da realização da justiça (Souza, 2010).
vastadas continuam gritando aos nossos ouvidos como quem
sussurra; obra próxima demais para que possamos dispensá-la
por um segundo que seja - ela nos assombra a cada momento
com a urgência do que nela lateja, e transforma o ininteligí­
vel na inteligibilidade absoluta do opaco que renasce de seus
destroços. E, por isso, não podemos senão dizer com Adorno,
A filosofia, segundo a única maneira pela qual ela
ainda pode ser assumida responsavelmente em face do desespe­
ro, seria a tentativa de considerar todas as coisas tais como elas se
apresentariam a partir de si mesmas do ponto de vista da reden­
ção. O conhecimento não tem outra luz além daquela que, a partir
da redenção, dirige seus raios sobre o mundo: tudo o mais exaure­
-se na reconstrução e permanece uma parte da técnica. Seria pro­
duzir perspectivas nas quais o mundo analogamente se desloque,
se estranhe, revelando suas fissuras e fendas, tal como um dia,
indigente e deformado, aparecerá na luz messiânica. Obter tais
perspectivas sem arbítrio nem violência, a partir tão-somente do
contato com os objetos, é a única coisa que importa para o pen­
samento. É a coisa mais simples de todas, porque a situação cla­
ma irrecusavelmente por esse conhecimento, mas ainda, porque
a perfeita negatividade, uma vez encarada face a face, se consolida
na escrita invertida de seu contrário. Mas é também o inteiramen­
te impossível, porquanto pressupõe um ponto de vista afastado ainda que só um pouquinho - do círculo mágico da existência, ao
passo que todo conhecimento possível não só deve ser extorquido
do que existe, de modo a chegar a ser obrigatório, mas se vê por
si mesmo marcado pela mesma deformação e pela mesma indi­
gência que pretende se subtrair. Quanto maior é a paixão com o
que pensamento se fecha contra seu condicionamento por amor
ao incondicionado, tanto mais inconsciente, e por isso mais fatal,
é o modo pelo qual ela fica entregue ao mundo. Até mesmo sua
própria impossibilidade tem que ser por ela compreendida, a bem
da possibilidade. Mas diante da exigência que a ele se coloca, a
própria pergunta pela realidade ou irrealidade da redenção é qua­
se que indiferente (Adorno, 1993, p. 2 1 5-216).
Para terminar.
-
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