miragens na etimologia galego-portuguesa de base latina

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miragens na etimologia galego-portuguesa de base latina
MIRAGENS NA ETIMOLOGIA
GALEGO-PORTUGUESA
DE BASE LATINA
por Higino Martins Estévez
DONDE O ADVÉRBIO ALIÁS?
Erudito ou popular? Miragem típica.
CORAÇOM-CORAÇÃO
Etimologia impossível? Talvez nom.
ESTOURAR
Com efeito, o rei vai espido. Etimologia de estourar-estoirar.
UIVAR, OUVIAR-OUVEAR, OULAR e BURLAR
Pesquisas etimológicas sobre oular, aular, oulear, uivar,
ouviar, ouvear, oviar-uviar “chegar, alcançar a”, burlar,
burla, bulha e ular “aturujar”.
MIRAGEM CERTA: O QUE FOI DAS JÃS?
Etimologias de jã, antarujã, antarujaira, jaira, *jairo, -a.
DE PRATOS E PRATAS
Etimologias de prato, prata “argento” e prata “dinheiro”.
DONDE O ADVÉRBIO ALIÁS?
No dicionário etimológico de José Pedro Machado leio que o advérbio aliás viria do
lat. aliās. A. Geraldo da Cunha repete-o, e coincide em que teria entrado por via erudita. Aliās por via popular teria dado certamente o paroxítono *alhas.
Quanto ao sentido, em latim era advérbio de tempo, “outra vez, noutro tempo”;
depois na fala popular passou a ser também de lugar, “noutro sítio”, e desde Plínio o
Antigo, podia ser de modo, “de outra maneira”.
Ora bem, neste dossiê há algũas circunstâncias obscuras:
1) Se chegou por via erudita, o valor deveria ser geralmente o clássico, o temporal,
mas o uso constante, desde as primeiras documentações, é claramente de modo.
2) A anomalia do deslocamento do tom é indissimulável, mas nom se lhe tem buscado explicações. Se palavra erudita, talvez nascesse entre estudantes –competentes
em latim–, mas nada nos autoriza a supor que lhe dessem, nem faceciosamente nem a
sério, ũa fingida pronúncia francesa.
É justo revisar essas apressadas opiniões. E deveremos andar outras vias no intuito
de formular hipóteses mais firmes, sem medo das equivocações.
COMECEMOS DE NOVO
É útil situar a palavra no tempo. A primeira documentaçom, no séc. XVI, deixa supor
que surgisse entre a renascença e esse século, congruentemente com o cariz culto dos
utentes do advérbio. Esse século é também o que regista as últimas documentações de
muitas palavras arcaicas, do período galego-português. Essa encruzilhada de períodos
brinda-nos ũa hipótese que talvez atine no étimo: A locuçom seria
al hi hás,
quer dizer, “outra cousa aí tens”, Esta locuçom triplamente arcaica –logo desprezada–
teria atingido subitamente o salvo-conduto para sobreviver nũa etimologia “erudita”,
etimologia popular de cunho letrado. Os cultos, ao nom reconhecer ou nom querer reconhecer a locuçom popular, em ouvindo-a crerom ver nela o latino aliās.
Al (do lat. antigo e popular alid, clássico aliud) invisibiliza-se depois do séc. XVI,
bem que surja às vezes nos adágios e conheçamos a subsistência latente nos dialetos,
por caso no galego, onde seria viçoso no XVII, soa no XVIII e chega a ler-se no final
do Conto Galego de Rosalia de Castro. No castelhano, o rechaço de Juan de Valdés,
no Diálogo de la Lengua, adverte-nos sobre o cariz rústico que o acompanhava.
I ou hi (do lat. ibī cruzado com hīc) chega ao mesmo século XVI, e o verbo haver
com o valor do nosso ter (verbo principal qual em latim) também chega ao séc. XVI.
Todas essas palavras (al, i e hás por “tens”) já eram entom arcaicas, de saibo rústico, sem brilho nem prestígio. E arcaico, ou escassamente apolíneo, era o uso do tratamento familiar por tu, da segunda pessoa singular, fora do âmbito íntimo. O disfarce latino varria o desprestígio e permitia o uso em qualquer contexto.
O tempo varreu os ecos a vibrar em pronunciando e escuitando essas três palavras,
mas podemos imaginar, bem que palidamente, os abismos linguísticos que separavam
os níveis de falantes.
CORAÇOM-CORAÇÃO
O étimo de coraçom-coração e cast. corazón (ant. coraçon) é ignoto. Hipóteses nom
faltam: CâR}TIÆ, -ÆNIS e variantes, inviável semântica e foneticamente; *COR}TIÆ,
-ÆNIS nom explica o -Ç-; *CORICIÆ, -ÆNIS, também nom o explica. Escuso a crítica
miúda e remito às fontes, sobretudo o DCECH de Coromines, sub corazón. Todos
esses étimos em castelhano antigo dariam formas com -Z-, ausentes de todo antes da
sua grã mutaçom de sibilantes recolhida na reforma ortográfica do séc. XVIII. Aí a só
forma é coraçon, de -Ç- surdo, depois interdentalizado e ao cabo grafado com Z.
èa sugerência de Coromines, que ele nom aproveitou, fijo-me cismar e imaginei a
história que dou na ordem cronológica. Os celtas hispânicos obrigados a falar latim,
como todos os falantes de duas línguas próximas, tentavam adequar os conteúdos novos nos vasos do idioma anterior, escolhendo dos sinónimos da língua nova os similares aos da própria, mesmo fazendo palavras novas se o novo sistema o permitia. Em
céltico “coraçom” era *KRADION (Pedersen) ou *KRIDION (Thurneysen, Pokorny),
neutro tema em O. A primeira vogal pouco dá; mas o I ou iode e o O do final som
certos. O clássico cor, cordis punha dificuldades. O vulg. cor, *coris prevaleceu nos
domínios francês, catalam e italiano, e talvez tenha corrido entre os celtas hispanos.
Mas ao cabo entre estes venceu outra forma, de novo cunho: *CORDIÆ, CORDIÆNIS,
de ar mais familiar, ao manter intato o tema cord-, e, com acréscimo da desinência
latina de *RNIÆ, RNIÆNIS “rim”, recuperar o encontro vocálico da forma céltica.
Além disso, a palavra –tecnicismo médico?–, notava melhor o vínculo com inúmeros
derivados da mesma família, com vēcordia, socordia, *concordium (Meyer-Lübke),
discordia. misericordia, praecordia, prāvicordia, torticordius, verticordia.
Esse *CORDIÆ, CORDIÆNIS passou para *corçom, tanto na nossa língua quanto
no protocastelhano. Quanto a este passo, veja-se o Manual de Gramática Histórica
Española de M. Pidal, ' 53. Eis delida a dificuldade das outras hipóteses! Até aqui
todo hipotético, verossímil mas reconstruído. Haverá elos documentados? Sinto nom
ter um dicionário histórico português para comprovar a antiguidade do vocábulo que
creio testemunho indireto de *corçom: descorçoar, talvez crido síncope indigna de
atençom, e que nesta hipótese vem ser precioso arcaísmo pasmosamente preservado.
*Corçom, qual se sente pronunciando o -Ç- africado, sofreu anaptixe trás o -R-.
Ausente do latim escrito, era de deriva fácil. A vogal neutra a surgir (*corəçom) tomaria o timbre das vogais vizinhas, firmando a harmonia vocálica existente: *coroçom.
Este testemunha-o descoroçoar, que se cria deturpaçom de *descoraçoar. Mas este
só pode sair por analogia, como em castelhano, que nom tem aquelas formas antigas.
Estes fósseis projetam-se a par na tela sincrónica e a sequência temporal, por verossímil que seja, só cabe conjeturá-la. Mas continua a aproximar-nos da congruência o moçarábico qūruŝûn “erva do coraçom”, que Coromines cita de Asín, editor do
glossário moçarábico hispalense de arredor do 1100. Nom é galego-português e dá
algo incerto pola transcriçom do alfabeto árabe, mas isso nom nos descorçoa.
O câmbio culmina no abrir total da vogal anaptíctica. Curso inverso do anterior que
impunha foneticamente o -R-. Ao passar o O átono a aberto, foi obrigado dissimilá-lo
das foneticamente fechadas vogais laterais, tanto por adequar o sistema fonológico
das vogais átonas quanto por analogia, em contexto isolado, dos dous sufixos coligados -aço e -om. Rápido aparece por toda a parte a forma histórica coraçom. Partindo
de coraçom, nom se vê étimo satisfatório para as duas línguas hispânicas.
ESTOURAR
Outro coco da etimologia galego-portuguesa é estourar, qualificado “de origem incerta”, “ignota” ou “obscura”. Quando de passagem se emitiu hipótese, recorreu-se a
construções difíceis, dando por certo que a soluçom nom podia ser imediata. Mas a
resposta a meu ver é tam insolitamente fácil que penso que estamos a ver a nudez do
rei e ninguém quer confessá-lo.
Estourar vem do lat. instaurare, como ensinam os manuais de gramática histórica.
A moderna frequência do erudito instaurar, a sua trivialidade, tolhem ver que o conteúdo semântico do instaurare latino nom era o do moderno reflexo erudito.
Para Ernout-Meillet a origem do lat. īnstaurāre é incerta. No latim anterior ao Império era “renovar, recomeçar, reparar, restaurar”. Parece ter sido velho termo ritual
religioso-pagão, voz técnica, cujo sentido original na fala dos sacerdotes era “substituir, renovar (cerimónia, sacrifício malogrado)”. Na linguagem comum, como se deduz das glosas •vαvεοà e renovat, o sentido cabe cifrá-lo na voz renovar. Depois, no
Império, esse sentido pareceu inconciliável com o prefixo in-, e formou-se restaurāre
(cf. instituō, restituō), que o substitui para “renovar (cerimónia religiosa malograda)”.
Nesse momento instaurare passou a ser “oferecer (por vez primeira), estabelecer”.
Tal o valor do nosso instaurar erudito. Mas, no latim galeco, procedente da Bética,
velho latim republicano, o sentido era o primitivo naquela língua comum, “renovar”.
Aferremo-nos à língua comum mais antiga: instaurare = “renovar”.
Cabe dizer mais? A deriva semântica, inda que longa, é clara. Na língua antiga, o
termo podia-se aplicar ao início do ciclo anual dos vegetais, tal qual para nós renovar
coincide com rebentar. Instaurare, na língua popular, como renovar entre nós, era
“deitar novos rebentos ou renovos os vegetais”. Rebentar (< lat. *REPENT}RE “sair
de repente”) primeiro fora o mesmo, mas, na imaginaçom campesina, tal brotar ostentava éa força, um viço, ũa potência, quase numinosa. Além disso, tal brotar às vezes
tem precisamente as características físicas dum estalo. Estourar passaria polas três
etapas, ancorando ao cabo na última: “renovar” > “rebentar” > “estalar”.
Se non è vero, è ben trovato. Rebentar, pedra angular do processo semântico, com
a sua polissemia tende a ponte para entendermos como se produziu o longo percurso.
Quanto à variante estoirar, presente nalguns falares portugueses, convém destacar
que é desenvolvimento secundário de estourar, cuja precedência vem assegurada
nom só por Camões, mas também polo uso vivo e único de estourar em galego, que,
qual se sabe, nom comuta os ditongos ou-oi, fora ũas poucas excepções de explicaçom pontual, como louro-loiro e mesmo soidade-saudade, frutos dũa difusom antiga.
UIVAR, OUVIAR, OULAR e BURLAR
Etimologias de oular, aular, aulear, oulear, uivar, ouviar, ouvear, oviar-uviar “chegar, alcançar a”,
e as de burlar, burla, bulha, ular “aturujar”
Nem todo é ululare, nem todo rasto românico de ululare está onde se supõe. Possível
é que as opiniões a emitir tenham sido propostas antes; se assim, suplico indulgência.
Custa crer nom se vissem antes alguns factos óbvios. Vejamo-los ordenadamente.
1. É oular lídimo vocábulo galego-português?
Este verbo foi pouco atendido, talvez por homólogo do cast. aullar, que lança sombras no seu carácter genuíno. Em Portugal nom o vejo registado, mas deveu existir;
aulido, que se tem por castelhanismo, provavelmente é um rasto. A ser castelhanismo
oular, a presença seria mais ou menos uniforme por toda a Galiza. Em câmbio, vemolo nũa zona compacta, a do galego mais oriental. Nom é castelhanismo, sim extensom
dũa isoglossa léxica comunicada com o hispano-românico central. Oular é galego de
Astúrias, aular do Caurel, aulear de Verim, oulear de Sárria. Em Fonsagrada coexistem oular, ouviar e bouviar. No Zebreiro há oular e aular. Tal flutuar do ditongo é
fenómeno dialetal do sueste lucense. Em aulido, antes que castelhanismo, há recriar
do valor fonossimbólico do vocalismo, apagado na maioria do domínio português
pola simplificaçom de OU. Quanto a -ear de aulear-oulear, virá de ouvear.
2. Etimologia de oular.
Aceita-se o cast. aullar vir do lat. ululāre, de origem imitativa. O cariz onomatopeico
explicaria a incoerência na evoluçom para o românico. Concretamente, ululāre tinha
U breves e as palavras que estamos a ver supõem étimo com U primeiro longo. Além
disso, mostram A- protético, que também serviu a acentuar o efeito imitativo da voz
dos cânidas. Há outra diferença, de aparência leve: ululāre era de bufos, mouchos e
corujas, só depois estendido a homens e animais em geral. Mas oular (e aullar) nom
é de homens e animais; só de cânidas, domésticos ou selvagens. A semântica nom
tem fruído de suficiente atençom nas pesquisas etimológicas do nosso campo, com
assinaladas excepções; e cuido que agora é tempo de cambiar.
Que será se mudamos critérios e rumos? Invertendo os termos e reconstruindo o
étimo a partir do românico, faremos um monstro, mas aclararemos ideias. Por tal via
se chega a *ADŪLLĀRE, de ar próximo do lat. adūlārī (adūlor, adūlāris) “afagar; adular, louvaminhar”, do que se nos diz que nom deixou rastos românicos. Ernout diz ser
dantes próprio dos cães, que, para demonstrar alegria ou para afagar o dono, se achegam (ad-) movendo o rabo (-ūlo-; cf. scr. vālah, vārah “rabo, cauda”, lituano valaĩ
“rabo de cavalo”). Bem mirado, o único escolho no corpo fónico que separa o monstro de adūlārī é o LL geminado. É pouco, havida conta do valor da geminaçom no
indo-europeu antigo. Mas nom nos deixemos levar do entusiasmo. Adūlārī subsistiria no velho latim republicano galeco, mas se neste oular nos chegou foi cruzado com
ululāre. Este prestava o factor sonoro (só tácito em adūlārī) e o harmónico lúgubre e
agoireiro que já lhe era próprio (adulari era festivo) e tanto quadra às vozes de lobos
e cães, julgadas de agoiro funesto. Logo proponho partir do vulg. *ADâLL}RE “latir
(cânidas)”, que cruzará adulari e ululare. Aquele, tomado no seu valor mais antigo,
brindava quase toda a matéria fónica, o segundo quase todo o sentido. Oular sofreu
depois a atraçom dos ditongos decrescentes e desfijo o hiato que o castelhano conserva nas formas rizotónicas: aúlla, aúllan.
3. Som independentes uivar e ouvear?
A voz comum nos falares galegos para “uivar” é ouvear, também de Trás-os-Montes,
onde soa ouviar. Ouviar em Fonsagrada é “desejar ardentemente”, cf. Aníbal Otero.
Será a mesma palavra com outro curso semântico. Ouvear vem em Sarmiento. Nom
lhe sei hipóteses etimológicas. Coromines tira-o de *ULULIZĀRE, e para uivar subscreve a opiniom de Cornu, isto é, ululāre. O nexo entre uivar e ouvear-ouviar é certo.
Uivar virá de *uviar, e ouviar também, com ditongo inicial de funçom onomatopeica,
que provavelmente virá do oular já visto. A metátese vocálica em uivar nom oferece
dúvidas, sobretudo ao se justapor as formas aparentadas. Certo que nom contamos de
documentos de *uviar com este significado, mas a seguir veremos a que se deve.
4. Etimologia de uivar e ouviar.
Cuido que Coromines atinou unindo-os nas origens. Ora bem, o étimo a custo será
ululāre: daria *oar ou *ovar; e *uar ou *uvar, se o U- fosse longo.
Descobrindo o protótipo da comparaçom uivar-ouviar-ouvear talvez teremos luz.
Primeiro cumpre optar entre ouviar e ouvear. Este lembra dialetalismos galegos qual
cambear e ravear “raivar”. É abusivo estender-se aqui. Aparecer no arcaico e isolado
Trás-os-Montes (talvez na Fonsagrada) robora o critério. Deve preferir-se ouviar.
Uivar virá certamente de *uviar, como o aludido raivar vem de raviar (séc. XIII).
O mais antigo documento de uivar (e de uivo) é o Livro de Falcoaria, séc. XIV. Justamente desse século som os últimos testemunhos do medieval oviar, (h)uviar “chegar
(em auxílio), chegar a, conseguir, alcançar a”, que vem do lat. obviāre “sair ao encontro”. Esta voz chega ao séc. XIV e esvai-se, justo ao emergir uivar “latir; ulular (cânidas)”, de forma idêntica. Porque a forma é idêntica: o vocábulo medieval é quase
sempre uviar, com variantes: oviar (nas Cantigas de Santa Maria, que também tem
uviar), uvar (na Crónica Galega de inícios do séc. XIV, onde predomina huviar),
(h)uvear (Crónica Troiana, códice galego!) e oivar (G. Estória e Crónica Troiana, do
séc. XIV). Pasma estes casos nom ter suscitado curiosidade. Certo que o problema
consiste em tender a ponte semântica. Mas, a meu ver, nom é caso árduo.
O vocábulo medieval já andava ferido e o uso pegaria a estereotipar-se em frases
feitas. Lembre-se que obviāre, tardo no latim, já significava “sair ao encontro” e também “ir adiante”, tal qual se deduz do advérbio obviam, que o origina. Estes sentidos
deviam estar vivos nos usos orais de uviar-oviar, cujos testemunhos escritos veem
das classes letradas, nas que é possível supor usos especializados de leve, mas divergentes do eixo semântico tradicional. Como acontece no latim vulgar, a língua popular sói ficar mais próxima do cariz arcaico e tradicional que os testemunhos formais
intermédios. Ao decair uviar, os transmissores ingénuos ouviriam, em contextos narrativos, frases como “uivavam-uviavam-uveavam os lobos”. A perda de energia da
voz decadente desaparecia ao prender fortemente na imaginaçom de moços que já
nom sabiam o significado exato. A presença dos lobos chega aos mais polo ouvido e
é justamente tal presença velada e misteriosa a que mais capta o ânimo. Diziam-lhes,
no contexto emocional de narrações contadas nas noites de inverno arredor do lume,
que “os lobos chegavam ou iam adiante do viageiro solitário”. A memória dos ouvintes a respeito dos lobos, mormente auditiva, interpretava a palavra opaca polo valor
contextual e fonossimbólico: “davam vozes prolongadas, guturais, de mau agoiro e
péssima premoniçom”. O contexto é suposto; o valor fonossimbólico de uivar, óbvio.
O asterisco de *uviar convém só a “dar vozes os lobos”: uviar “sair ao encontro”
sai em documentos. Nom só; esse sentido tem as variantes formais oivar e uvear.
Volvamos ao valor fonossimbólico de uivar. Este finca mormente no ditongo inicial.
Ouviar-ouvear surgiu na variante sem metátese, cruzada com oular, para lograr o
valor expressivo. Ora bem, o ditongo OU evoca mais o latir dos cães que o ulular de
lobos. De qualquer jeito, as fronteiras excediam-se num sentido e outro. Estilisticamente, aproveita a conservaçom de toda a tradiçom, com matizes especiais em cada
caso. Quanto à forma a preferir de ouviar-ouvear, de dar certa esta hipótese, deverá
ser ouviar, o que nom supõe violência nos usos dada a labilidade vocálica do idioma,
sempre dócil e resistente.
5. Terá algo que ver com isto burlar?
Burlar (também bulrar) fijo cismar muito e talvez em vão. Para uns é castelhanismo,
mas a mesma incerteza etimológica tira sustento à mera impressom. A meu ver, também aqui se esqueceu a semântica. Desde o início veem juntas as acepções “enganar”, “escarnecer” e “rir (de)”. Há frequente riso, mas riso deliberadamente agressivo,
escarninho. O riso sempre desvaloriza o objeto, mas aqui é deliberado. Mesmo pode
nom haver diversom e haver burla. Em português hoje quase predomina a nota de
“engano”. Ao invés, em castelhano “engano” antiquou-se e dela só ficam rastos estereotipados em frases feitas. No centro está hoje “zombar, rir (de)”. Em catalam subsiste o complexo.
Existiu junto dessas acepções outra esvaída: “arremedar; fingir; criar ficçom artística”, nom ausente ou possível junto das outras. O que dos documentos velhos surge é
a possível independência desse sentido. Assim, em castelhano temos esse valor em J.
Ruiz, no verso 114 do Livro de Bom Amor, ediçom de Coromines: “trobar burla”. R.
Lapa achou tal valor nũa cantiga de escarnho de Gonçal' Eanes do Vinhal (CV 1001;
CEM 169), na que uns “infanções... entran nosco en dõas cada dia/ e jantan e cean a
gran perfia/ e burlan corte, cada u chegamos.” Quer dizer, nom zombam, na companhia do rei procuram fingir serem homens de corte.
A meu ver, burla procede do vulg. *urulare, suposto polo fr. hurler, it. urlare e
romeno urlà. Nestes nom era claro o timbre longo da primeira vogal. Em burla vê-se
a origem do câmbio. É *urulare mais buu!”, onomatopeia infantil dos sons guturais
dos animais agoireiros e logo de espíritos e fantasmas. Buu! mais *urulare deu burlar
“fazer buu!”. Do escárnio infantil, ou, o que é o mesmo, do arcaico arremedo de bufos, corujas e fantasmas, procede “enganar escarninhamente” e “zombar (de)”. E também “arremedar (bufos, corujas, fantasmas)”, que passou a “arremedar (em drama)”.
Este último era o menos carregado de conotações e pronto decaiu, enquanto os outros
se constituírom em vozes básicas do idioma pola carga expressiva.
Também existiu o valor mais neutro, menos conotativo, o de mero “ulular”, mas
quase nom ficam rastos. Quase, pois se dá em Juan Ruiz, verso 1425d: “al leon despertaron con su burla tamaña”. Nom é possível nenhũa zomba nem engano; tampouco arremedo inocente. É perfeito equivalente de bulha; este é que é entre nós vocábulo vindo do castelhano. O cast. bulla nom vem de bullīre, como se tem dito, senom de
buu! mais ululare (nom *urulare), que terá dado *bullar, do qual bulla é deverbal.
Antes de deixá-lo, é próprio aduzir outra forma local e bem nossa, bem que pouco
conhecida, talvez vinda de ululare. Refiro-me ao ular “aturujar, dar gritos os moços
nas romarias ou no monte”, que assinala Aníbal Otero em Valedouro (Rizal, Lagoa,
Alfoz, Norte de Lugo). O étimo preciso será um uu! mais ululare, quer dizer, ūl'lare.
O QUE FOI DAS JÃS?
(jã,
antarujã, antarujaira, jaira, jarela, *jairo, -a)
1. Sabe-se que o lat. Diana deu o vulg. Jana, do que veem muitas formas românicas.
No folclore passou de grã deusa da natureza virgem e dos animais selvagens a “fada
noturna” (Du Cange), “fada das fontes” (NO hespérico), “fada que fia de noite” (Algarve), etc. Um pouco por todas as partes cobrou também o sentido de “bruxa”, com
a típica ambivalência dos produtos da psique profunda. Na Galiza chegou a confundir-se algures com a companha ou estantiga1. O nome (nom o mitologema) entrou na
sombra na Galiza, substituído por dona, senhora, moura, etc. O declínio de jã, pelo
breve corpo fónico, a par sofreu, mercê do plural, confusom com a companha. As jãs
eram primeiro a turba feérica, o coro das ninfas ou pequenas fadas vegetais, ũa constelaçom de luzinhas vistas ou imaginadas na noite. A companha primitiva foi também
ũa turma de luzes aéreas, à margem da interpretaçom consciente que das visões coletivas se fazia já no séc. XVIII2. Ao cabo, luzes na noite, já fascinantes, já terríveis. O
que interessa mais seria discernir as causas que produzirom a passagem de “luzes das
fadas noturnas” para “luzes da hoste diabólica”, e depois “fantasmas dos defuntos”.
Talvez a história da cultura aproveite pronto estes dados, para cuja análise ainda nom
forjou cabalmente o instrumento da psicologia profunda coletiva.
2. Fortuna diversa mostram os derivados de jã. Antarujã (e antarujaira) “bruxa”3 une
jã a ũa palavra enigmática que Coromines julga deturpaçom de untura, com apoios
semânticos oportunos. A opacidade do primeiro membro produziu alterações paretimológicas várias, ao cabo tam caducas como o mesmo antarujã. Também nom é claro o processo de composiçom e a figura que esconde: untura de jã?, jã de untura?
Importa mais jaira, que está no composto antarujaira (antaruxaira no P. Sarm.) e
que isolada é “estantiga noturna” (Sarm., CaG, 182r). Foi o lat.-vulg. *janaria (clássico dianāria) através de *jãaira (nom de *jãeira, que dera *jeira. O jeira que existe
é de diāria), como chaira ou avelaira de planāria e abellānāria. Tem aqui valor coletivo: cabe pôr um (turma) dianāria. Palavra e mito acusam grande antiguidade, mas
no outro milénio nom era “estantiga” mas “turma de Diana”, depois “turma feérica”.
1
M. Sarmiento, em CaG, 163r (“Jâns, as jans. Dícese hacia Orense: fulano vio as jans, y es lo mismo que
ver la compaña o hueste”).
2
A companha, hoste, estantiga, primeiro sem dúvida bando diabólico e aéreo de longa tradiçom, como acusam os próprios nomes, foi interpretada no contexto cristão recente como procissom de defuntos. Mas a especulaçom cristã popular ocupava um lugar semelhante ao da racionalizaçom materialista posterior, e o fenómeno alucinatório era-lhe independente. Em The Bible in Spain de Borrow, temos testemunho tam importante ou mais do que os do P. Sarmiento. O mais explícito é o do cap. 29, no que o guia lhe descreve a Borrow a
Estadea e depois lha explica. Cumpre separar descriçom de explicaçom. “Levantou-se ũa névoa muito espessa. De pronto começarom a brilhar por riba de nós, entre a névoa, muitas luzes; havia mil ao menos. Ouviuse um chio tremendo, e as mulheres caírom de bruços gritando: Estadea! Estadea! Eu também caía e gritava:
Estadinha! Estadinha!” A seguir o guia considera-se obrigado a explicar: “A Estadea som as almas dos mortos que andam por cima da névoa com luzes nas mãos.” A separaçom é clara e, a meu ver, a autenticidade da
experiência alucinatória coletiva está assegurada por esse chio tremendo, característico de certas imagens arquetípicas aparentadas (Veja-se o Wotan de C.G. Jung). Além da racionalizaçom, a visom da cavalgada do
bando aéreo diabólico em forma pura vê-se no testemunho do cap. 27, in fine: “De crermos aos galegos, os
demos das nuvens perseguirom os ingleses na sua fuga e atacarom-nos com trovões e golpes de água quando
pugnavam por remontar as reviradas e empinadas vereias de Foncevadom.”
3
M. Sarm., CaG, 182r. “Antaruxá y antaruxairas. Creo llaman allí [Ourense] a las bruxas” Alhures diz ser
nome de Monte-rei.
3. Dianāria podia modificar nomes nom coletivos, como deduzimos do jaira que nos
chegou vivo: “mulher aloucada, coquete, garrida” (em Padrom, cf. Crespo Pozo). A
entender melhor o sentido deste jaira pode servir um derivado: jarela e jarelo, -a.
Mais frequente que o positivo, já aparece em F. X. Rodríguez, donde o toma Cuveiro
Pinhol: “la mujer respondona, descarada y alborotadora”. Eládio Rodríguez Gonçález
define xarelo “pessoa descarada, pouco formal no falar, de pouco critério”, aclara
aplicar-se mais amiúde às mulheres. Por fim, Isaque A. Estravis define jaira: 1º) dizse da mulher que anda trás os homens, 2º) mulher descarada, atrevida, 3º) borracheira, bebedeira (tomar ũa jaira). Jarelo é em geral “pessoa que fala ou obra com desvergonha”. Fonicamente, é claro o vínculo de jarela com jaira. O ditongo átono reduz-se. Em data românica imprecisa incorporou-se a desinência de diminutivo, com
deslocamente do tom.
4. Interessa destas palavras o perfil que surge da integraçom das diversas definições.
Documenta a noçom pola qual ũa pessoa –nomeadamente ũa mulher– participa da
natureza do nume feminino “Diana”. A pessoa possuída manifesta-se “ligeira de casco; coquete, garrida” e, conforme a definiçom de jarelo, “sem vergonha”. Dito desenvolvidamente, “o que está isento da impronta moral judeu-cristã, particularmente no
que diz respeito à conduta sexual” ou “o que está livre das ataduras da condiçom social comum”.
Jairo, -a, abstratamente “feérico”, é um adjetivo bonito, digno de restaurar-se, mas
é jaira, e jarela, o que aí corre, com saibo a transgressom subterrânea, às tradições
pagãs do feminismo vegetal e resistente de sempre.
DE PRATOS E PRATAS
1. O étimo sabe-se há muito tempo, mas a sequência semântica dista de estar clara.
Digamos, na ordem cronológica, todos vir do gr. πλατύς “ancho, largo; chão”, através
do lat.-vulg. *plattus, com geminaçom expressiva, como notam os frutos românicos:
fr., prov., cat. e reto-românico plat, it. piatto, gal.-port. prato, cast. plato. Os sentidos
de adjetivos destes coincidem em geral. Como sói afirmar-se que o gal.-port. prato se
tomou do fr. plat, é preciso destacar que este, como substantivo, nom é “prato”, mas
“bandeja, salva”. O empréstimo parece afirmaçom inconsistente.
Além dessas vozes, ainda há o adjetivo port. e cast. chato, com o tratamento popular nestas línguas do grupo inicial. A marcada vulgaridade, nomeadamente no sentido
“de nariz achatado”, determinou as primeiras documentações serem extremamente
tardias: 1705 e 1605, respetivamente.
Aqueloutras formas, prato e plato, como diz Coromines, apresentam nesse grupo
a pronúncia das classes podentes, que usavam tais peças no serviço de mesa, entanto
que as classes populares usavam escudelas e concas.
2. A acepçom “vaso chão do serviço de mesa” vem decerto de (ferculum) *plattum,
que significa justo isso, literalmente “(vaso do serviço de mesa) chão”. Eis que prato
é, como substantivo, o primeiro elo da cadeia que estamos a estudar. A geminaçom
de *plattum talvez aconselhe traduzir “chatinho”.
ferculum *plattum “vaso de mesa chatinho”
> *plattum “prato para comer”
> prato
3. Como foi que surgiu prata “argento”? Trás um longo confronto, argentum (ou ecos
obscuros: *aregentu-?, *arentu-?) cedeu o campo a prata “metal” e postergarom-se
arenço, arento e arente. Eis a parte do processo que apresenta maior obscuridade.
A meu ver, é preciso partir do plural de valor coletivo fercula *platta “serviço de
mesa”. Apesar de esses vasos também poder ser de argila ou outros metais, é sabido
que o material principal dessas alfaias era a prata, o argentum. Amiudam os testemunhos e seria excessivo acumulá-los. Chega destacar que ainda hoje na nossa língua
existe a que suponho é o primeiro passo no significado a estudo: “baixela”.
A par, já no lat.-vulg., (fercula) platta passou a valer, ao menos como harmónico
necessário, “riqueza mobiliária (familiar)”, praticamente “enxoval”. Desta acepçom
fica claro testemunho na locuçom portuguesa governar-se com a prata da casa, que
significa “governar-se com os recursos próprios, com o próprio património”.
(fercula) platta “serviço de mesa”
> prata “baixela” e prata “riqueza mobiliária (familiar)”
4. Só resta um passo. Donde o uso americano de prata (e plata) para “dinheiro”? Pois
claramente da recém-vista acepçom “riqueza mobiliária, património”, que foi de toda
a península na Idade Média, e que subsiste no português do Brasil e no castelhano
americano geral. A acepçom ainda corria na Europa no século XVII, e é semanticamente paralela à do francês argent “dinheiro”.

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