INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA: o
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INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA: o
INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA: o reconhecimento da origem genética à luz do princípio da dignidade da pessoa humana MIRIA SOARES ENEIAS1 PRISCILLA ALVES SILVA2 RESUMO: Este trabalho tem o intuito de apresentar um estudo sobre o direito à investigação da origem genética dos filhos oriundos da técnica de reprodução assistida heteróloga, frente ao princípio da dignidade da pessoa humana. Será abordado o direito do filho, se ele, mesmo já possuindo um estado de filiação socioafetivo, ainda assim poderá ter direito ao reconhecimento de sua identidade genética, ainda que implique na quebra do anonimato do doador do sêmen. Serão apresentadas razões que mostram porquê o filho tem direito de saber sua identidade genética, mesmo que não haja a vontade de se reconhecer a paternidade ou estabelecer qualquer tipo de vínculo familiar. PALAVRAS CHAVES: Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; Inseminação Artificial Heteróloga; Identidade Genética; Investigação de Paternidade. INTRODUÇÃO Com a evolução da ciência e com o surgimento de diversas técnicas permitiuse que os casais que não podem ter filhos tenham a possibilidade de tê-los. Contudo, o direito não acompanhou a ciência, deixando de criar normas para legislar sobre tais assuntos. Ficando muitas vezes o legislador sem saber o que fazer para resolver determinadas questões que envolvam, por exemplo, direitos como a investigação de paternidade frente ao direito do doador de sêmen, na reprodução assistida heteróloga. 1 Mestre em Direito das Relações econômicas empresarias pela Universidade de Franca – UNIFRAN. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Uberlândia. Professora da disciplina Direito Processual Civil na Universidade Presidente Antônio Carlos, campus Araguari-MG. Advogada. 2 Bacharela em Direito pela Faculdade Regional de Araguari, do Centro Universitário Presidente Antônio Carlos. 2 No Brasil, ainda não há lei para regulamentar a prática da reprodução humana assistida, o que pode afetar a seriedade de alguns centros que se dedicam a esta tarefa, já que a Resolução nº 1.957/2010, editada pelo Conselho Federal de Medicina com o objetivo de regular eticamente a matéria, além de não possuir força legal, não prevê a aplicação de sanções penais no caso de prática ilícita3. A filiação é um direito previsto a todos, sendo assim a investigação de paternidade é o caminho adotado por aqueles que ainda não tem a sua filiação firmada. Mas, quando se trata de casos como o de reprodução assistida heteróloga, onde temos, além da intervenção médica, material genético de outrem, fora da relação familiar, a investigação de paternidade se torna meio ineficaz para tal fim, tendo em vista que o doador do gameta tem sua identidade protegida, com base na resolução do CFM nº 1.957/2010. Mas frente a este caso questiona-se: não teria a criança, fruto da reprodução assistida heteróloga, com base no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e do direito de filiação, direito ao reconhecimento de sua origem genética? Sabemos que apesar do Conselho Federal de Medicina trazer tal resolução, este tema ainda não está legislado, não havendo, portanto, uma norma que determine qual o procedimento correto em situações como esta, onde de um lado temos o direito do reconhecimento da origem genética e do outro o direito do doador ao anonimato, um direito, que não podemos esquecer, lhe foi garantido no momento da doação do sêmen. Vários doutrinados tratam do assunto e por ser um tema ainda muito divergente, utilizam dos Direitos Fundamentais para justificarem as posições adotadas. Há aqueles que defendem sua posição com base no princípio da inviolabilidade do corpo humano, quando há a recusa do doador em se submeter ao exame de DNA. Outros já fazem menção ao princípio da dignidade da pessoa humana, quando se trata do reconhecimento da origem genética, mesmo que não haja intenção de estabelecer laços familiares com o doador. 3 VIEIRA, Tereza Rodrigues. AMATO, Eliana Zamarian. Adoção, Bioética e o Direito de conhecer a própria origem. Revista Jurídica Consulex – Ano XIV – nº 322 – 15 de junho/2010. 3 Este trabalho vem tratar destes assuntos, levando em consideração o princípio da dignidade da pessoa humana com relação ao direito do reconhecimento da origem genética versos o direito do doador ao anonimato, além de apresentar um capítulo sobre a reprodução assistida, explanando brevemente sobre a reprodução assistida homóloga e aprofundando mais no assunto mestre do trabalho, que é a reprodução assistida heteróloga. CAPÍTULO I – INVESTIGAÇÃO DA ORIGEM GENÉTICA E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 1 – PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Diante da omissão da lei quanto a investigação de paternidade, nos casos de inseminação artificial heteróloga há uma necessidade de se verificar a importância e definição do princípio da dignidade da pessoa humana. O mesmo é defino por Alexandre de Moraes como: Um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos4. Já, segundo João Carlos Gonçalves Loureiro “a dignidade da pessoa humana significa um valor intrínseco que cada ser humano detém, bem como uma obrigação geral de respeito da pessoa”5. A Constituição Federal da República do Brasil, logo em seu artigo 1º, já faz menção ao princípio da dignidade da pessoa humana, notando-se assim o seu papel fundamental nas relações sociais e de direito. Tal princípio encontra-se explícito em outros artigos da nossa Carta Magna, tais como: art. 226, §7º, que trata da 4 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Atlas AS, 2004, p. 52. LOUREIRO, João Carlos Gonçalves. O Direito à identidade genética do ser humano. Editora Coimbra, 1999, p. 281. 5 4 paternidade responsável; e art. 227, que se refere aos direitos da criança, do adolescente e do jovem, sendo que dentre eles temos o direito à dignidade. Com a evolução histórica, permitiu-se que as pessoas criassem uma consciência moral da sociedade no sentido de proteger os valores considerados essenciais para elas, sendo que entre esses valores temos a dignidade como principal, fazendo com que protejam o corpo humano para que não seja comercializado como se fosse um objeto. Por isso, afirma-se que a reprodução assistida tem afinidade com os direitos fundamentais pelo fato de envolver a vida e a saúde das pessoas, porque as intervenções da ciência na reprodução humana trazem consigo numerosos problemas que repercutem na própria concepção de ser humano e na proteção de sua dignidade, além de envolverem direitos personalíssimos como a identidade e a proteção do corpo humano6. O princípio da dignidade da pessoa humana impõe limites à atuação do Estado, de modo que o poder público não pode praticar atos que a violem e deve ter meta a promoção de uma vida digna para todas as pessoas. Por outro lado, impõe também limites nas relações entre os particulares, coibindo comportamentos interrelacionais que violem a dignidade7. Desta forma, assevera-se que o princípio da dignidade da pessoa humana excede os limites éticos e morais, passando a ser uma norma jurídica que orienta os direitos no homem. No Brasil, a CF/88 fundamentou a dignidade da pessoa humana como base da nossa República e os direitos que surgem dela e da sua afirmação e proteção foram adotados como fundamentais. O princípio da dignidade da pessoa humana, por seu enorme valor, impõe aos médicos e pesquisadores que respeitem sempre o ser humano diante das técnicas de reprodução assistida, vez que tal procedimento mexe com a vida mais íntima de todo e qualquer ser envolvido nesta situação. Diante disto afirma-se que não se 6 BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Reprodução Humana Assistida e Anonimato de Doadores de Gametas: o direito brasileiro frente às novas formas de parentalidade. In: Ensaios de Bioética e Direito. Tereza Rodrigues Vieira (org). Brasília: Consulex, 2009, p. 30. 7 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 37. 5 pode tratar a pessoa como meio para lucrar financeiramente, uma vez que o procedimento da reprodução assistida vai além da experiência laboratorial, sendo este um meio de se alcançar o sonho daqueles que não podem ter filhos da forma convencional, já que sendo o embrião um projeto de vida ou uma futura pessoa, ele tem sua dignidade e de qualquer modo merece respeito. Segundo Guilherme Calmon Nogueira da Gama: A dignidade humana é valor próprio e extrapatrimonial da pessoa, especialmente no contexto do convívio na comunidade, como sujeito moral, sendo assim não há dúvida que todos os interesses têm como centro a pessoa humana, a qual é foco principal de qualquer política pública ou pensamento, sendo necessário harmonizar a dignidade da pessoa humana ao progresso científico e tecnológico, porquanto este deve tender sempre a aprimorar e melhorar as condições e a 8 qualidade de vida das pessoas humanas, e não o inverso . Por ser o princípio da dignidade da pessoa humana essencial para o biodireito, este precisa ser harmonizado com os demais princípios garantidores da proteção da pessoa humana, para que, não apenas na atual geração, mas também nas futuras, possam aprimorar o desenvolvimento da pessoa humana, independentemente de sua origem ser pela reprodução assistida. A dignidade da pessoa humana não deve ser respeitada apenas quando a ordem jurídica assim determinar, sendo assim, mesmo que não exista previsão expressa sempre deverá ser assegurada a dignidade da pessoa humana, por ser ela de valor essencial e fundamental para a ordem social. 2 – DIREITO FUNDAMENTAL AO RECONHECIMENTO DA ORIGEM GENÉTICA A inseminação artificial heteróloga, aquela onde se utiliza material genético de um terceiro, estranho a relação familiar, traz a discussão a respeito da criança gerada através deste procedimento conhecer a sua origem genética. 8 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 131. 6 O direito à busca pela identidade genética destes não está de forma expressa na Constituição Federal, apesar dele ser um direito fundamental, já que o direito à origem genética insere-se no grupo dos direitos da personalidade, além de ser fundamentado na dignidade do ser humano. Segundo Silvio Rodrigues, “os direitos da personalidade são inatos, de forma que não se pode conceber um indivíduo que não tenha direito à vida, à liberdade física e intelectual, ao seu nome, ao seu corpo, à imagem e àquilo que ele crê ser sua honra”9. O direito à identidade pessoal do ser humano, segundo Ana Claudia Brandão apud Jubert Olga Krell, “compreende tudo aquilo que identifica cada pessoa como indivíduo singular, seja a sua história genética (dados biologicamente genéticos), seja sua história pessoal (dados sociais, identidade civil de ascendentes e descendentes)”10. Segundo Ana Claudia Brandão, o reconhecimento da origem genética, Consiste em saber sua origem, sua ancestralidade, suas raízes, de entender seus traços (aptidões, doenças, raça, etnia) socioculturais, conhecer a bagagem genético-cultural básica. Conhecer sua ascendência é um anseio natural do homem, que busca saber, por suas origens, suas justificativas e seus possíveis destinos. Não há como negar o direito a conhecer a verdade biológica, pela importância enquanto direito de personalidade11. Portanto, a identificação desta é um direito de cada ser humano, uma vez que conhecer sua origem genética se faz necessário para uma construção sociocultural do indivíduo. Mesmo que o direito ao reconhecimento da origem genética não seja um direito previsto de forma taxativa, ele trata de um direito da personalidade, não se pode, portanto, negar ao indivíduo, gerado pela reprodução assistida heteróloga, o direito de investigar e ter acesso a sua origem. 9 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. V. 1. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 61. In. Reprodução humana assistida e suas conseqüências nas relações de família (p. 126) 10 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 132 11 Ibid, p. 133. 7 Uma parte da doutrina defende que somente aqueles direitos que estejam tipificados na legislação merecem proteção, o que significa que todo e qualquer direito que não esteja mencionado de forma expressa estará desprotegido. Porém, há outra parte que defende que os direitos da personalidade, mesmo que não mencionados, por sua enorme importância não podem ser reduzidos apenas àqueles expressos, uma vez que é difícil haver uma previsão que acoberte todo e qualquer direito necessário à personalidade do homem. Dessa forma, embora nossa Constituição não tenha dispositivo específico destinado a origem genética, tal direito é reconhecido através do princípio da dignidade da pessoa humana, que trata-se de uma base geral de tutela dos indivíduos. Tudo isso tem como base o art. 5°, §2° da CF/88, que menciona o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamental, prevendo a não exclusão de outros direitos e garantias, mesmo não expressos, que decorram dos princípios adotados por nossa Carta Magna. Sendo assim, os diferentes direitos devem ser tutelados, ainda que não previstos de forma expressa. O conhecimento da origem genética se faz necessário tendo em vista a indispensável necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos, para prevenir problemas de saúde genéticos e para os casos de doenças em que somente são solucionáveis através de compatibilidade consanguínea, além de evitar os enlaces matrimoniais, tal como, o casamento ou uniões entre ascendentes e descendentes ou entre irmãos. Segundo ensinamentos de Ana Claudia Brandão: Na maioria das vezes, pretende-se ter acesso à origem genética por questões psicológicas, pela necessidade de se conhecer. Em certos casos concretos, o fato de não se saber de onde veio, do ponto de vista biológico, pode comprometer a integração psíquica da pessoa12. Reconhecer a origem genética é de fundamental importância para a pessoa, tanto dos pontos de vista psicológico, sociológico, médico, como o jurídico. Reconhecendo o direito à origem genética faz-se prevalecer a dignidade da pessoa humana. 12 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 134 8 Apesar da maioria da doutrina brasileira reconhecer o direito de saber a origem genética, ao indivíduo gerado por inseminação artificial heteróloga, ainda há certa confusão quanto aos efeitos que este reconhecimento irá gerar para a filiação. Muitos são os posicionamentos a favor do reconhecimento da origem genética, sendo que em sua maioria são embasados no princípio da dignidade da pessoa humana, como se vê na opinião de Gabriela de Borges Henriques: Ainda que não conste de modo expresso o direito a investigação da origem biológica em casos de reprodução assistida, em especial a inseminação artificial heteróloga, com fulcro no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana é concebível a investigação da origem genética no direito brasileiro, numa extensão do que seria o direito à identidade genética, ainda que já se tenha o estado de filiação estabelecido13. Negar ao indivíduo o direito de conhecer a sua origem genética seria extremamente lesivo ao princípio da dignidade da pessoa humana e a própria pessoa, uma vez que faz-se necessário a todo e qualquer ser humano saber a sua origem, mesmo que ele já tenha um estado de filiação determinado, o direito à identidade genética deve ser respeitado e permitida a sua busca. Os motivos para a busca da origem genética podem ser vários, dependendo de cada indivíduo, uma vez que a identidade genética é sinônimo de individualidade genética. Sendo assim, ainda que se questione o quanto influenciará na vida do indivíduo tomar conhecimento de sua origem genética, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao prever em seu art. 27 a possibilidade do adotado conhecer os dados de seus pais biológicos, possibilitou o direito à pesquisa da identidade genética também dos filhos provenientes de inseminação artificial heteróloga, fazendo-se analogia e com embasamento no princípio da dignidade da pessoa humana. Vale lembrar, que este conhecimento da origem genética não mudará o estado de filiação civil da criança, sendo este apenas um meio de se distinguir suas origens. 13 HENRIQUES, Gabriela de Borges. Inseminação artificial heteróloga e o direito fundamental ao conhecimento da origem genética. Disponível em: <www.advogadobr.com/comentarios-aoCPC/monografia_03122008.PDF>. Acesso em: 25 ago. 2011. 9 Com base no art. 2° do Código Civil, todo homem é capaz de direitos e obrigações. Sendo assim, a partir do nascimento com vida da pessoa, esta passa a ter todos os direitos por lei reconhecidos, sendo que aqueles que são implícitos mas são essenciais para a realização da pessoa, são direitos da personalidade. Vários projetos de Lei foram criados com o intuito de regulamentar a reprodução assistida e em todos eles é resguardado o direito da criança em conhecer sua origem genética, quando há vontade neste sentido. Contudo, nenhum projeto de Lei previu qual ação seria utilizada para se buscar este conhecimento, apenas o projeto nº 120/03 trouxe a ação cabível para estas questões, que é a ação de investigação de paternidade, sendo que o posicionamento da doutrina é majoritário também neste sentido. Porém, essa ação não deverá ter efeitos próprios da investigação de paternidade, eis que já se encontra estabelecida a paternidade e não existem motivos para descaracterizá-la, a ação deverá ter efeitos limitados ao conhecimento da origem genética14. 3 – DIREITO FUNDAMENTAL À CONVIVÊNCIA FAMILIAR Segundo Paulo Lôbo, a convivência familiar se define como sendo: A relação afetiva diuturna e duradoura entretecida pelas pessoas que compõem o grupo familiar, em virtude de laços de parentesco ou não, no ambiente comum. É o ninho no qual as pessoas se sentem recíproca e solidariamente acolhidas e protegidas, especialmente as crianças15. Portanto, o afeto entre pais e filhos, não originam da relação biológica, mas sim da convivência familiar estabelecida entre eles. Tanto o art. 227 da Constituição Federal, como o art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, fazem menção ao direito à convivência familiar saudável que a criança, o adolescente e o jovem possuem, sendo este um direito fundamental. 14 CÂNDIDO, Nathalie Carvalho. Reprodução medicamento assistida heteróloga: distinção entre filiação e origem genética. Disponível em: < http://jus.com.br/revista/texto/10171/reproducaomedicamente-assistida-heterologa/4>. Acesso em 07 nov. 2011. 15 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.52. 10 Deve-se observar que a obrigação imposta nos artigos acima mencionados, se refere a um dever da família e não apenas dos pais. Com isso observamos que atualmente admitem-se diversas formas de entidades familiares, como, por exemplo, a monoparental, formada apenas por mãe e filho. Dessa forma, as obrigações disciplinadas também são conferidas aos membros de todos os modelos de família. A obrigação de proteger o direito à convivência familiar, estabelecido por princípios e regras impostos, no que diz respeito, principalmente, a criança e ao adolescente, é dirigido a todos os membros da família, além de ao Estado e à sociedade como um todo. Sendo assim, o direito a convivência familiar ultrapassa o exercício do poder familiar. Nos dizeres de Danielle Diniz: A convivência familiar assegurada é aquela espontânea, baseada no afeto, salutar para os seus componentes, principalmente para as crianças. Ao colocar a convivência familiar como dever da família, não desejou o legislador impor uma relação que não existe. Não se pode aqui olvidar que a família hodierna é aquela construída a partir da afetividade, sendo a convivência familiar fundamental para a formação da criança16. O direito à convivência familiar não se esgota na chamada família nuclear, composta apenas pelos pais e filhos. O Poder Judiciário, em caso de conflito, deve levar em conta a abrangência da família considerada em cada comunidade, de acordo com seus valores e costumes17. Portanto, mesmo que os pais estejam separados, o filho menor tem direito à convivência familiar, com ambos, apenas com exceção quando o direito da criança assim não o quiser. É um grande erro relacionar o dever de convivência familiar com a pura relação familiar, uma vez que assume deveres parentais todos aqueles que exercem o papel de pai ou mãe, seja essa relação de origem biológica ou afetiva. Vale ressaltar que na origem genética se enquadram, também, todas aquelas decorridas de inseminação artificial heteróloga. 16 DINIZ, Danielle Alheiros. A impossibilidade de responsabilização civil dos pais por abandono afetivo. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/12987/a-impossibilidade-de-responsabi lizacao-civil-dos-pais-por-abandono-afetivo>. Acesso em: 6 set. 2011. 17 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.53. 11 A convivência familiar, protegida pela Constituição Federal, é aquela originada em uma relação de afetividade, pois se assim não fosse a forçosa convivência familiar poderia fazer mal a criança, já que a mesma não estaria vivendo em um ambiente de amor. Sendo que, este direito defende o melhor interesse da criança, já que um pai ou uma mãe que não convive com o filho não merece ter sobre ele qualquer direito. CAPÍTULO II – FILIAÇÃO E A INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE 1 – FILIAÇÃO Filiação vem do latim “filiatio” e significa liame entre um indivíduo e seu pai ou sua mãe, com caráter de dependência, de parentesco. Sendo que, no mundo jurídico, filiação abrange mais do que a simples relação entre pais e/ou mães biológicos, uma vez que aqueles filhos não biológicos também se enquadram na caracterização de filiação. Pois, segundo Paulo Lôbo, “filiação é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascida da outra, ou adotada, ou vinculada mediante posse de estado de filiação ou por concepção derivada de inseminação artificial heteróloga”18. Até pouco tempo, era reconhecida para o Direito Brasileiro apenas a filiação oriunda do casamento, a chamada filiação legítima e apenas estes filhos eram protegidos. Presumia-se que os filhos havidos na constância do casamento eram do marido da mãe, desprezando, desta forma uma possível verdade diversa. Esta presunção tinha o intuito de admitir que a procriação ocorre-se apenas no casamento, tanto que aqueles filhos havidos fora deste não eram considerados merecedores de proteção, eram os chamados filhos ilegítimos19. 18 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.195. FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 95. 19 12 Contudo no Brasil, desde a Constituição Federal de 1988, não se admite discriminações ou adjetivações com relação a filiação, sendo a mesma biológica ou não biológica, mas sempre de conceito único, não havendo diferença entre os filhos independentemente de sua origem (art. 227, §6º). A nossa Carta Magna apresentou o princípio da igualdade entre os filhos, proibindo qualquer discriminação aos filhos, qualquer que seja sua origem, confirmando, desta forma, o princípio da proteção integral da criança e do direito à convivência familiar. Tal preceito se observa de forma clara também no art. 1.596 do Código Civil, in verbis, onde determina que: “os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Apesar do artigo não mencionar a reprodução assistida heteróloga, por analogia, aplica-se a mesma, uma vez que a mesma é mencionada no art. 1.597, V do CC. Sendo assim, o direito de todos os filhos deverá ser reconhecido, sem que haja qualquer discriminação contra aqueles que são frutos dos relacionamentos extramatrimoniais. Em suma, filiação é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, onde uma é considerada filha e a outra pai ou mãe. “O estado de filiação é a qualificação jurídica dessa relação de parentesco, atribuída a alguém, compreendendo um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados”20. Segundo José Roberto: Ser pai ou mãe, atualmente, não é apenas ser a pessoa que gera ou a que tem vínculo com a criança. É, antes disso, a pessoa que cria, quem ampara, que dá amor, carinho, educação, dignidade, ou seja, a pessoa que realmente exerce as funções de pai ou de mãe em atendimento ao melhor interesse da criança21. A filiação é classificada, apenas didaticamente, como matrimonial e extramatrimonial, uma vez que a Constituição Federal de 1988, como já 20 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao Estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/4752/direito-ao-estado-de-filiacao-edireito-a-origem-genetica>. Acesso em: 06 set 2011. 21 FILHO, José Roberto Moreira. Direito à identidade genética. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/ revista/texto/2744/direito-a-identidade-genetica>. Acesso em: 06 set. 2011. 13 mencionado, não permite que se faça distinção entre os filhos havidos ou não no casamento. Tais classificações serão abordadas nos tópicos seguintes. A contestação da filiação é uma ação privativa do pai, sendo que terceiros não podem contestá-la (art. 1.601, CC) A atual família brasileira, segundo Ana Claudia Brandão: Passa a priorizar os laços afetivos. A troca de afeto, de cuidado e a solidariedade entre os membros como meio de se realizarem como pessoa humana adquire mais relevância do que o tipo de entidade familiar no qual tal realização se concretizará. Portanto, seja qual for a espécie de entidade familiar, o indivíduo é o centro em torno do qual gravitam todos os direitos, a fim de que a pessoa se realize sentimentalmente no grupo familiar em que está inserida22. Daí a afirmação de que a paternidade/maternidade passou a ter um significado mais relevante do que de fato a verdade biológica, esta está sendo construída com base no amor, no afeto, no carinho, pouco importando a origem da filiação, mas apenas o livre desejo de ser pai ou mãe. Neste sentido, Ana Claudia Brandão apud Rolf Madaleno explica que, “a paternidade real não é a biológica, mas sim a cultural, fruto dos vínculos e das relações de sentimento que vão sendo cultivados durante a convivência com a criança”23. O fato de o caráter socioafetivo prevalecer sob a filiação biológica recebe o nome de desbiologização e João Baptista Villela foi um dos primeiros juristas no país a tratar deste tema, em um artigo de 1979, “defendendo que são verdadeiramente mães ou pais aqueles que melhor defendem os interesses da criança”24. Uma forma de demonstrar que o biologismo não é mais importante na filiação se faz com a presunção de paternidade do marido que autoriza a inseminação artificial heteróloga em sua mulher, baseada apenas na verdade afetiva25. O reconhecimento da filiação socioafetiva não importa no desprezo da filiação biológica. Não há qualquer hierarquia entre elas, eis que apenas no caso concreto 22 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 96. 23 Ibid, p. 96. 24 Ibid, p. 96. 25 Ibid, p. 98. 14 será possível determinar o critério a ser utilizado, o biológico ou o socioafetivo, para se estabelecer a filiação que melhor concretize os interesses da criança, buscando sempre como finalidade a dignidade da pessoa humana. Com tudo, conclui-se que é o afeto a base de uma entidade familiar e não apenas os laços biológicos, apesar de ser, na maioria das vezes, o fator decorrente. 1.1 – Filiação Matrimonial Segunda Maria Helena Diniz, “a filiação matrimonial é a concebida na constância do matrimônio, seja ele válido, nulo ou anulável, ou, em certos casos, antes da celebração do casamento, porém nascida durante a sua vigência, por reconhecimento dos pais”26. Com referência a concepção na constância do casamento, se a criança for concebida antes e vier a nascer após a celebração do casamento, também será considerada como uma filiação matrimonial, desde que esteja dentro do prazo estabelecido pelo art. 1597, incisos I e II do Código Civil, vez que este já estabelece quando começa e quando termina a presunção. A inseminação heteróloga é definida como uma filiação matrimonial, vez que o Código Civil estabelece em seu artigo 1597, inciso V, que presumem-se nascidos na constância do casamento filhos havidos da inseminação heteróloga, quando há a anuência do marido. Além destas presunções já mencionadas, também está presente no art. 1597 do Código Civil, que presumem-se concebidos na constância do casamento, os filhos havidos de inseminação homóloga, mesmo que o marido já tenha vindo a óbito (inciso III) e aqueles havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga (inciso IV). 26 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. Vol.5. 24.ed. reformulada. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 457. 15 A filiação matrimonial se estabelece, basicamente, pelo parto da criança, onde há a incidência da presunção legal da paternidade conferida ao marido da parturiente. Sempre levando-se em conta as possibilidades previstas no art. 1597, do CC. Segundo os arts. 1.600 e 1.602 do CC, não basta o adultério e nem apenas a confissão da mulher sobre a paternidade da criança para que o marido venha a negar esta. É necessário que se produza provas, como o exame de DNA, por exemplo. Esta confissão, a que se referem tais artigos, servirá apenas como um elemento na ação negatória de paternidade, não sendo suficiente para o não reconhecimento do filho como seu. A contestação da paternidade não prescreve, como mostra o art. 1.601 do Código Civil, in verbis: “art. 1.601 – Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível”. A ação negatória da paternidade terá como réu o filho, que sendo menor será assistido por sua mãe, devendo o Ministério Público ser oficiado do mesmo. A sentença referente a este processo será averbada na certidão de nascimento do filho. Da mesma forma, a ação de prova de filiação, que compete ao filho, não prescreve, vez que esta pode ser impetrada enquanto viver, passando a ação aos herdeiros se este morrer menor ou incapaz (art. 1.606, CC). Lembrando que a certidão de nascimento registrada no Cartório de Registro Civil faz prova de filiação (art. 1.603, CC), sendo que a mesma só poderá ser alterada se ficar provado erro ou falsidade do registro (art. 1.604, CC). 1.2 – Filiação Não-Matrimonial A filiação não-matrimonial ou extramatrimonial, também é estabelecida pelo parto em regra quanto à linha materna, mas depende do reconhecimento espontâneo ou judicial do pai. 16 Esta é definida por Maria Helena Diniz, como aquela “decorrente de relações extramatrimoniais, sendo que os filhos durante elas gerados classificam-se didaticamente em: naturais e espúrios”27. As classificadas como naturais, são aquelas que derivam de pais que não havia impedimento matrimonial no momento da concepção. Já a classificação a que se dá o nome de espúrios, se origina de pais entre os quais havia impedido matrimonial no momento da concepção. Esta classificação ainda se subdivide em: adulterinos e incestuosos. O primeiro se refere aos filhos nascidos de um casal com impedimento no momento da concepção por um deles possuir matrimônio no momento da concepção. O segundo, porém, diz respeito a criança gerada por um casal com impedimento matrimonial por possuírem parentesco natural, civil ou afim. Os filhos descendentes de casal separado não são classificados como adulterinos, mas sim como naturais, uma vez que não possuem mais impedimento matrimonial, apesar de também não possuírem casamento ou união estável entre si. É a partir do reconhecimento da filiação que se estabelece o parentesco entre pai e mãe e seu filho, havido fora do matrimônio. Se o filho já tinha uma filiação reconhecida anteriormente, esta precisa ser anulada por erro ou falsidade, para que o novo reconhecimento de filiação seja estabelecido e válido. O reconhecimento da filiação pode ser a partir da livre manifestação da vontade dos pais ou de um deles, neste caso estará ocorrendo a manifestação voluntária. Outra hipótese é o reconhecimento derivado da ação de investigação de paternidade, onde o filho demanda a ação, a sentença desta ação irá declarar que o autor é filho do investigado, neste caso estará ocorrendo o reconhecimento forçado ou judicial. Em ambos os casos, o reconhecimento da filiação produzirá os mesmos efeitos jurídicos (art. 1.616, CC). 27 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. Vol.5. 24.ed. reformulada. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 478. 17 Assim como determina os arts. 1.609 e 1.610, ambos do Código Civil, o reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento não pode ser revogado. Qualquer pessoa pode contestar a ação de investigação de paternidade, desde que tenha motivos justos para isto (art. 1615, CC). O filho havido de relacionamento extramatrimonial e que tenha a filiação reconhecida, só poderá residir no lar conjugal se o cônjuge do pai ou mãe assim autorizar (art. 1.611, CC). 2 – O DIREITO QUANTO À INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE Todo ser que nasce é filho de alguém e, como tal, sujeito de direitos que deverão, necessariamente, ser imputados a um pai. Maria Helena Diniz define a ação de investigação de paternidade da seguinte forma: A investigação de paternidade processa-se mediante ação ordinária promovida pelo filho ou seu representante legal, se incapaz, contra o genitor ou seus herdeiros ou legatários, podendo ser cumulada com a de petição de herança, com a de alimentos, que passarão a ser devidos a partir da citação e com a de retificação ou anulação de registro civil28. O antigo Código Civil fazia previsão de quando poderia ocorrer a investigação de paternidade (art. 263, CC de 1916), porém o novo Código Civil não faz tais exigências. Sendo que, sempre que houver a dúvida quanto à filiação, o interessado deve ingressar em juízo para investigar sua paternidade biológica, vez que possui o direito de saber sua identidade genética. A ação de investigação de paternidade se faz diferente da ação de investigação da origem genética, apesar de se usar o termo paternidade quando se refere a investigação da origem genética. 28 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. v.5. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 494. 18 Investigar a origem genética, nada mais é do que buscar pelo seu genitor, biológico. O objetivo de conhecer a origem genética é assegurar o direito de personalidade, enquanto conhecer a paternidade é um estado de filiação. Na investigação de paternidade, julgado procedente o pedido, já estará o pai obrigado a direitos e obrigações decorrente deste estado de filiação, até com a consequente alteração do registro civil. Já na investigação da origem genética, não se tem tais efeitos, pois aqui apenas se declara a origem biológica a alguém, não tendo o fim de gerar obrigações pessoais, como a alteração do registro civil, e obrigações patrimoniais, como o direito a alimentos e herança. Na ação de investigação da origem genética apenas declara a ascendência com estes efeitos, estando tal fato totalmente alheio a uma relação de família. No entendimento de Maria Berenice Dias, a ação de investigação da origem genética, nada mais é do que uma ação de investigação de paternidade, com conteúdo meramente declaratório, sem efeitos jurídicos29. Conforme posicionamento de Ana Claudia Brandão: Uma vez estabelecida a filiação socioafetiva com os pais não biológicos, não mais caberia investigar a paternidade ou a maternidade, para a produção dos efeitos típicos da relação de filiação, tais como: nome, alimentos, direitos sucessórios etc. em relação ao doador do sêmen, mas, apenas, na esfera do direito da personalidade30. A filiação não deve ser confundida com o reconhecimento da origem genética, uma vez que a certeza deste não é suficiente para fundamentar a filiação, pois com as mudanças da atualidade formaram-se outros valores que passaram a dominar as relações de família. Portanto, a função de pai não se confunde com a de ascendente biológico. A ação que declara a origem genética, não tem o poder de produzir vínculo parental entre o indivíduo que já tem uma família socioafetiva e a pessoa que está 29 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 363. 30 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 139. 19 sendo investigada. Mesmo porque, não podemos esquecer, que nos casos de inseminação artificial heteróloga, quando há doação do sêmen, a mãe é biológica. Hoje não se reconhece a filiação apenas em face do vínculo biológico, sendo que, pelas atuais modificações no cenário do direito, a filiação socioafetiva prepondera sobre o biologismo. Após a Constituição Federal de 1988 e a essencial criação do Código Civil de 2001 ficou definido que o descendente tem direito de investigar sua paternidade sem restrição alguma, uma vez que o princípio da igualdade entre os filhos alicerça isto, não podendo tratar os filhos de forma diferente, apenas por serem oriundos de relações extramatrimoniais. 3 – O DIREITO DO DOADOR AO ANONIMATO As clínicas de reprodução assistida buscam ocultar a identificação dos doadores de sêmen que serão utilizados em inseminação heteróloga e, com isso, visam impossibilitar à investigação de paternidade e a reivindicação de alimentos e de herança. Os fundamentos para a proteção do anonimato dos doadores estão em considerar que a existência de um projeto parental para o embrião formado com os gametas de um doador, insere a criança em uma família. A proteção ao interesse superior da criança estaria assegurada na medida em que ela fará parte de uma família tanto de modelo biparental ou monoparental, o que, para tanto, não necessitaria conhecer o seu doador. Verifica-se que há poucos doadores de sêmen, isso significa que com uma possível quebra da identidade civil do doador a quantidade de doadores diminuiria ainda mais, levando a uma possível crise nas clínicas de reprodução humana. No direito francês foi adotada uma postura restritiva no que se refere ao fornecimento de dados para se reconhecer a identidade do doador do sêmen. Não se permite fornecer nenhuma informação que possa levar a identificação do doador, 20 o mesmo serve para o caso do doador querer conhecer o filho, o que também não é permitido pelo ordenamento francês. Tal legislação apenas admiti que se faça o levantamento da identificação para fins terapêuticos, mas as informações ficarão restritas aos médicos do doador e do receptor. O fornecimento da identificação, no Direito Francês, caracteriza crime punido pelo Código Penal, com pena de prisão de dois anos e multa, como nos ensina Guilherme Calmon31. Ao contrario do direito francês, o direito sueco prevê direito à obtenção de informação sobre o doador do sêmen, ou seja, assim que o filho tiver maturidade suficiente poderá requerer informações sobre seu doador, sem, contudo, que tal conhecimento gere qualquer vínculo parental. Nas palavras de Guilherme Calmon, “a lei sueca reconhece, desse modo, o direito da pessoa à sua historicidade biológica”32. Cada doutrinador apresenta uma visão quanto ao anonimato do doador de sêmen, sendo que cada um possui um fundamento para posição adotada. Há aqueles que são contrários à revelação da identidade, mas favoráveis ao conhecimento da história pessoal e condições de nascimento da criança, estes defendem o acesso aos dados não identificadores. Para tanto, seria necessário uma lei que regulamentasse as condições e a quais informações teria o filho direito ao acesso. Outros, também contrários à revelação da identidade, defendem que o anonimato do doador se faz necessário para permitir que a criança se integre totalmente a sua família. Assim, os princípios do sigilo do procedimento e do anonimato do doador têm como finalidades essenciais a proteção e a acesso dos melhores interesses da criança ou do adolescente, impedindo qualquer tratamento detestável no sentido da discriminação e estigma à pessoa fruto de procriação assistida heteróloga33. Ainda há outros que fundamentam no sentido de que diante de alguns fatos que poderiam vir a ocorre, a identidade do doador do sêmen, assim como a do filho e a dos pais, deveriam ser mantidas anônimas, para manterem a proteção destes. 31 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 902. 32 Ibid, p. 902. 33 Ibid, p. 903. 21 Como exemplo34, no caso do doador do sêmen descobrir que a criança ficou órfã e se tornou herdeira de uma grande fortuna, sendo que o doador poderia se aproveitar desta situação e requerer a adoção desta criança alegando ser seu filho legítimo, eis que doou o sêmen, mas com o verdadeiro intuito de aproveitar-se da situação financeira. Até aqueles doutrinadores que consideram que o anonimato deve ser em caráter absoluto, alegam que este fato deve ceder a interesses maiores, como nos casos de risco concreto de doenças hereditárias ou genéticas que podem ser prevenidas ou mais bem tratadas quando se tem conhecimento da origem genética. Portanto, não há como permitir que o anonimato do doador prevaleça perante um risco de lesão à vida da pessoa que foi gerada com material genético de um doador. Mesmo que o anonimato seja fundamentado com base no direito á intimidade e privacidade do doador, tal direito não pode se sobrepor ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana com fundamento, neste caso, no direito à vida. Diante destas afirmações, até as próprias leis da França, que são rígidas quanto ao sigilo da identidade do doador e da criança, abrem exceções para casos de indicações terapêudicas, como já mencionado anteriormente, demonstrando, desta forma, a clara prevalência do direito à vida e saúde em detrimento com o direito à privacidade e intimidade do doador. Segundo Maria Helena Diniz, “o anonimato do doador do material fertilizante traz em si a perda da identidade genética do donatário, a possibilidade de incesto e de degeneração da espécie humana”35. 4 – A RECUSA DO INVESTIGADO EM SUBMETER-SE AO EXAME DE DNA Muitas vezes quando se busca reconhecer a paternidade o filho encontra obstáculos, como o fato do suposto pai recusar-se a realizar o exame de DNA, uma 34 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 900. 35 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 6.ed. revista, aumentada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 546. 22 vez que este é meio de prova mais eficaz para comprovar tal fato. Este geralmente fundamenta tal atitude com embasamento no direito à intimidade, à honra, à vida privada e à inviolabilidade do próprio corpo. O fato do pai não ser obrigado a realizar o exame de DNA traz um grande conflito entre direitos fundamentais, o direito à identidade genética e à investigação de paternidade da criança versus o direito à privacidade e à intangibilidade corporal do suposto pai. Esta é uma questão bastante delicada, principalmente quando as partes fazem uso de princípios e prerrogativas para embasar suas vontades. Aqui cabe pesar qual direito deverá prevalecer, se o da criança em busca pela sua origem biológica, ou do investigado na manutenção de sua identidade. Portanto, entende-se que reconhecer a origem é um direito superior se comparado ao do suposto pai em negar-se ao exame de DNA, eis que aquele não pode ser frustrado em detrimento deste. Contudo, deve-se analisar os direitos do suposto filho em confronto com os do réu, uma vez que os direitos daquele devem ser considerados superiores ao deste, eis que o direito ao reconhecimento da origem biológica é um direito fundamental, levando-se em consideração a dignidade da pessoa humana. Segundo Maria Helena Diniz, “o suposto pai pode negar-se a fazer o teste, por ser um atentado à sua privacidade, imagem científica e intangibilidade corporal. Com sua recusa imotivada, o juiz basear-se-á em presunção juris tantum de paternidade”36. Isto se confirma com o descrito na Súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça, a saber: “em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade”, ou seja, admite-se a possibilidade de prova em contrário, a partir dos fatos narrados pelo autor em face 36 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. Vol.5. 24.ed. reformulada. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 507. 23 de instrução, não cabendo a prova ao filho que solicitou o exame, mas ao pai que se recusou em fazer37. O Código Civil determina que a recusa do investigado em submeter-se ao exame de DNA não deverá ser aproveitado em seu favor (art. 231), eis que isso tornaria a recusa como uma facilidade ao réu quando o mesmo não tem interesse no reconhecimento da filiação. Com relação ao art. 232, também do Código Civil, o mesmo seria aplicado na demanda da ação de investigação de paternidade, nos casos em que o juiz entender que a recusa do investigado em não se submeter a exame com a finalidade de se buscar a paternidade, estaria ele se recusando por acreditar que possa ser o pai ou por ter fortes indícios de que seja. Contudo, fazer presunção da paternidade a partir da negação do réu em realizar o exame de DNA é uma violação aos princípios constitucionais, uma vez que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. O réu se recusando a submeter-se ao exame de DNA, sob a alegação do direito à liberdade e de sua integridade física, ele não pode ser constrangido a fazêlo sem sua vontade. O suposto pai não pode ser obrigado a realizar o exame, porém de acordo com o art. 130 do CPC, o juiz tem legitimidade para determinar a realização de qualquer prova que entender necessária à elucidação da verdade. Contudo, deve-se observar o princípio do contraditório para não ferir qualquer direito do suposto pai. CAPÍTULO III – INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA 1 – EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA 37 BEZERRA, Larissa Cavalcante. Ação de Investigação de paternidade e o direito personalíssimo da criança em confronto com o direito do suposto pai. Disponível em: <http://www.jurisway.org.br/v2/ dhall.asp?id_dh=2534>. Acesso em: 17 out. 2011. 24 Desde os primórdios que os cientistas buscam técnicas para realização de fecundação fora do ato sexual. Com a evolução da ciência e a dedicação deles tal feito se tornou possível, sendo que em 1799 um médico inglês realizou e teve sucesso pela primeira vez na história com a fecundação da reprodução assistida em seres humanos. Já em 1884, com uma evolução maior, um médico, também inglês, realizou pela primeira vez a inseminação artificial heteróloga. Porém, só em 1940 que surgiram os chamados “bancos de sêmen” nos Estados Unidos. Tais técnicas versavam basicamente na intervenção da medicina no processo de criação natural, possibilitando que pessoas estéreis ou inférteis pudessem realizar o sonho de ser pai ou mãe. Nos anos 70, os estudos acerca da fertilização in vitro foi intensificado, os pesquisados passaram a analisar a formação de óvulos e espermatozóides fora do corpo humano, para que posteriormente pudessem ser implantados no corpo da mulher. No Brasil, o primeiro bebê de proveta foi Ana Paula Caldeira, que ocorreu em 07 de outubro de 1984, cerca de 6 anos após o nascimento do primeiro caso que ocorreu no mundo, a inglesa Louise Brown. Até o momento a reprodução assistida no Brasil está sendo gerenciada sob o plano prático por meio de critérios definidos pelos próprios médicos. Como orientação para essa prática foi adotada uma resolução formulada recentemente pelo Conselho Federal de Medicina, a Resolução de nº 1.957 de dezembro de 2010, que veio revogando a Resolução nº 1.358/92. Atualmente, as principais técnicas de reprodução empregadas no mundo são as de inseminação artificial, que pode ser homóloga, heteróloga ou post mortem; a fecundação in vitro e as “mães de substituição”, também chamadas de “barriga de aluguel” ou de “mãe sub-rogada”. As técnicas de reprodução humana assistida surgem como forma de concretizar o desejo de ter filhos para aqueles que sofrem com a esterilidade38. Se faz oportuno uma distinção entre esterilidade e infertilidade, eis que estes termos 38 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 41. 25 são usados de forma aleatória como se não houve uma distinção entre eles. A Infertilidade é caracterizada como um problema temporário, ou seja, que possui condições de ser tratado e revertido. Já a esterilidade é um termo usado para determinar a incapacidade permanente e irreversível de ter filhos. 2 – INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA Em breves palavras, definimos a inseminação artificial como sendo uma técnica que importa na substituição da relação sexual, onde ocorre a fecundação artificial dos gametas feminino e masculino, dando origem a um ser humano. Na inseminação artificial a inoculação do sêmen na mulher ocorre de forma interna, ao contrário da fertilização in vitro, que se concretiza pela retirada do óvulo da mulher para fecundar com sêmen de seu marido ou outro homem, para após a fecundação ser introduzido no seu útero ou no de outra mulher, este último conhecido como gestação de substituição, chamada também de “barriga de aluguel” ou “útero sobrogado”. A inseminação artificial homóloga ocorre quando os espermatozóides introduzidos na mulher, no seu período fértil, pertence ao seu marido ou companheiro39. Esta pode ocorrer durante a vida do marido ou companheiro ou após sua morte. Esta técnica de reprodução não gera muitos problemas jurídicos, tendo em vista que o material genético usado será do marido e da esposa, ambos coniventes com a realização da técnica. O próprio Código Civil prevê a filiação para os casos de inseminação homóloga, como no art. 1.597, em seus incisos III e IV40. 39 Ibid, p. 44. Art. 1.597 – Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga. 40 26 Segundo Paulo Lôbo, “o uso do sêmen do marido somente é permitido se for de sua vontade e enquanto estiver vivo, por ser exclusivo titular de partes destacadas de seu corpo”41. Contudo, há a possibilidade da fecundação ocorrer após a morte do marido, mas para tanto deve o marido ter deixado anuência expressa para isto ocorrer, não podendo, portanto, a mulher fazer uso do material genético, uma vez que este não é caracterizado como objeto de herança. Admiti-se a utilização do sêmen após a morte sem o consentimento apenas nos casos de doador anônimo, eis que este não implica atribuição de paternidade. Há no artigo 1.597, inciso II presunção da paternidade se o filho tiver nascido até trezentos dias após a morte do marido, sendo assim, ocorrendo a fecundação, mesmo após a morte, presumir-se-á a filiação em razão do marido falecido. Desta forma, entende-se que não há necessidade de autorização do marido, pois no entendimento deste inciso acima mencionado, a cláusula “mesmo que falecido o marido”, deve ser interpretado para fins do estabelecimento da paternidade, observando apenas o prazo de 300 dias42. Paulo Lôbo faz menção ao enunciado da I Jornada de Direito Civil, do Conselho de Justiça Federal, 2002, no que diz respeito ao inc. III do art. 1597, CC, a saber: Interpreta-se o inciso III do art. 1.597 do Código Civil para que seja presumida a paternidade do marido falecido, que seja obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja ainda na condição de viúva, devendo haver ainda autorização escrita do 43 marido para que se utilize seu material genético após a morte . O fato do marido ter deixado o sêmen não presumi que estes possam ser utilizado após sua morte. “O princípio da autonomia da vontade condiciona a utilização do material genético ao consentimento expresso a esse fim”.44 Por não se 41 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.200. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.334. 43 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.201. 44 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.334. 42 27 tratar de objeto de herança, a viúva não pode requerer a clínica que lhe entregue todo material genético do marido falecido, sem que este tenha deixado de forma expressa autorização para utilização do mesmo. Não havendo esta autorização, o sêmen deve ser destruído. No que tange aos direitos sucessórios, os filhos concebidos por inseminação artificial homóloga terá direito à sucessão, desde que tenham sido nascidos ou concebidos no momento da abertura da sucessão. O maior problema com referência a sucessão é no caso dos embriões congelados que são implantados no corpo da mulher após a morte do marido, neste caso há uma divergência entre os doutrinados, aqueles que entendem que o filho não terá direito à sucessão embasam na regra estabelecida no art. 1.798 do CC, os outros que são favoráveis à sucessão defendem que ao mencionar na lei “pessoas já concebidas”, não requer que tenha sido implantado no corpo da mulher. Com relação aos embriões excedentários, entendem que não tem qualquer possibilidade de ter direito à sucessão, por não estar nem implantado não havendo nem possibilidade de considerá-lo como nascituro antes da transferência para o útero materno. Contudo, segundo Maria Berenice Dias, Ainda que não tenha sido concebido ao tempo da morte do genitor, terá direito sucessório na hipótese de ter o proprietário do sêmen expressamente manifestado seu consentimento para que a fertilização possa ocorrer depois de sua morte, [...] contando que nasça até dois anos após a abertura da sucessão45. 3 – INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA A inseminação artificial heteróloga ocorre quando o material genético introduzido na mulher não pertence ao seu marido ou companheiro, mas sim a um doador, cujo anonimato em regra é preservado e o material genético encontrado em um banco de sêmen de clínicas especializadas neste tipo de procedimento. Esta técnica de reprodução assistida é buscada pelos casais quando um dos dois é infértil, ocorrendo na maioria das vezes com relação a infertilidade do marido 45 Ibid, p.335. 28 ou companheiro. Mas também, apesar de pouco mencionado entre os doutrinadores, outra hipótese que faz os casais buscarem pela reprodução assistida heteróloga é quando um ou outro possui uma doença genética que pode ser transmitida para a criança. Ou seja, não é apenas a infertilidade o motivo para a realização da inseminação em estudo. Para ocorrer a inseminação artificial heteróloga o marido ou companheiro deve consentir com tal procedimento, não necessitando este consentimento ser escrito, bastando ser prévio, para que assim o filho nascido seja considero seu com base no art. 1.597, inciso V. Este procedimento ainda pode ocorrer de forma bisseminal, que se dá quando o material genético masculino utilizado pertence a duas pessoas diversas, ao marido ou companheiro e ao doador anônimo. Isto se dá devido ao sêmen do marido ou companheiro ser insuficiente, sendo que são misturados ao do doador para realizar a introdução na mulher46. Maria Helena Diniz se mostra desfavorável a técnica de inseminação artificial heteróloga ao mencionar que esta deveria ser coibida, para se evitar possíveis riscos de origem física e psíquica para a descendência, além da incerteza sobre a sua identidade47. A reprodução heteróloga é proibida na Itália, além de ser considerada pela Igreja Católica como prejudicial à criança que concebida desta maneira e uma forma de infidelidade. Segundo Maria Berenice Dias, a paternidade na fecundação heteróloga gera presunção juris et de jure, pois não há possibilidade de ser impugnada, já que a manifestação do cônjuge corresponde a uma adoção antenatal do filho, sem possibilidade de retratação no desejo de ser pai48. Se pudesse ser impugnada, 46 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 44. 47 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 6.ed. revista, aumentada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 546. 48 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.335. 29 estaríamos diante de uma paternidade incerta, eis que o doador do sêmen tem sua identidade protegida. De acordo com opiniões de doutrinadores, o consentimento do pai não admite retratação após a implantação do óvulo no ventre da mãe, eis que já se encontra em andamento a gestação. O que poderia ocorrer é o questionamento quanto a filiação ser oriunda de reprodução assistida, nos casos em que o marido desconfiar de infidelidade conjugal. Há que se fazer uma interpretação extensiva com relação a certos aspectos da adoção que serão aplicados na reprodução assistida heteróloga, como por exemplo, no que diz respeito a atribuição da condição de filho desligando-o de qualquer vínculo com os parentes consangüíneos, exceto quanto aos impedimentos matrimoniais e também no que diz com o estabelecimento dos vínculos de parentesco49. Mesmo havendo proibição para se identificar o doador do sêmen, devemos levar em consideração a possibilidade do filho requerer tal reconhecimento, com a finalidade de identificar sua origem genética, mesmo que tal feito não implique em efeitos registrais. Com isso, deve-se analisar a real necessidade de se identificar tal origem, eis que o reconhecimento da identidade genética trata-se de direito da personalidade protegido pela dignidade da pessoa humana. A inseminação heteróloga, que pode ocorrer com homens e mulheres, ocorre mais frequentemente com mulheres, ou seja, no caso em que seu marido ou companheiro não tem condições de fornecer sêmen para ser utilizado nas técnicas conceptivas50. Nesta inseminação heteróloga a questão polêmica é com relação ao vínculo da criança com o pai, eis que esses não possuem nenhum vínculo biológico, contudo com relação a mãe não possui dúvidas, já que neste caso há presença do vínculo biológico. Por não haver vínculo paterno, deverá ser verificado se houve consentimento do marido ou companheiro para a realização da inseminação heteróloga. Uma vez 49 Ibid, p.336. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 735. 50 30 que o vínculo não será estabelecido pelo biologismo, mas sim pela afetividade, há plena necessidade de ter este consentimento. Contudo, Guilherme Calmon entende que havendo o nascimento da criança na constância do casamento, mesmo sem autorização do marido, estará havendo presunção de paternidade, no entanto, esta presunção é relativa, eis que poderá ser afastada se o marido provar que não houve vontade manifesta de consentir com a mulher para realização da inseminação51. Contudo, se o há consentimento do marido a presunção passa a ser absoluta. O fornecimento de sêmen, óvulo e embrião para a prática de inseminação heteróloga, em hipótese alguma poderá ser feito mediante efetivação de pagamento. Em alguns Estados norte-americanos, por valores culturais e morais no local, há a permissão de remuneração para os doadores de gametas. Segundo Guilherme Calmon: Para a realização da inseminação heteróloga é indispensável que o casal preencha o requisito que se encontra previsto no art. 226, §7º da CF/88, ou seja, possua e desenvolva seu projeto parental que permita aferir a legitimidade do interesse de ambos os cônjuges ou companheiros em ter acesso à técnica de reprodução assistida heteróloga. [...] não se pode admitir a procriação assistida heteróloga em favor do casal que não tenha por exemplo condições de oferecer ambiente familiar adequado52. 3.1 – Estado de Filiação derivado da inseminação artificial heteróloga Conforme já informado neste trabalho, com o avanço da medicina e a evolução das técnicas de reprodução assistida passou a ser possível a concepção sem que haja relação sexual. Contudo, tais inovações trouxeram várias consequências para o Direito de Família, principalmente no que tange a filiação e a paternidade. O Código Civil faz menção em seu art. 1.597, V, sobre a inseminação artificial heteróloga, porém tal menção é ineficaz para legislar a respeito destas técnicas e de suas consequências para o Direito. 51 52 Ibid, p. 737. Ibid, p. 810. 31 Com isso, afirma-se que o estado de filiação na inseminação artificial heteróloga é uma questão complexa, vez que envolve duas possíveis paternidades. Sendo que uma é a paternidade biológica, aquela decorrente do homem que cedeu o sêmen e a outra é a paternidade legal, aquela do homem que assentiu com a inseminação de sua mulher. Contudo, se há a possibilidade da manifestação livre e consciente da vontade do marido, esta prevalece sobre o caráter biológico, o qual, se fosse questionado, levaria a analise de outra paternidade. A resolução nº 1.957/2010 do Conselho Federal de Medicina estabelece que a autorização do marido deve ser expressa e escrita, contudo o Código Civil nada estabeleceu sobre o assunto. Por sua vez, a doutrina majoritária entende que deve ser expressa e escrita, para que possa evitar qualquer tipo de impugnação da paternidade que vier a ocorrer posteriormente. Porém, há uma parte minoritária da doutrina que afirma não ser necessário anuência escrita, uma vez que a lei não exige esta forma, podendo, portanto, ser apenas verbal. Diante desta questão, o Conselho de Justiça Federal, por iniciativa do Superior Tribunal de Justiça, elaborou um enunciado tratando do assunto. A saber: Enunciado nº 104 do Conselho de Justiça Federal: no âmbito das técnicas de reprodução assistida envolvendo o emprego de material fecundante de terceiros, o pressuposto fático da relação sexual é substituído pela vontade (ou eventualmente pelo risco da situação jurídica matrimonial) juridicamente qualificada, gerando presunção absoluta ou relativa de paternidade no que tange ao marido da mãe da criança concebida, dependendo da manifestação expressa (ou implícita) de vontade no curso do casamento53. Portanto, frente a este enunciado, verificamos que aceita-se a manifestação implícita da vontade no curso do casamento. Os filhos que têm origem na inseminação artificial heteróloga, desde que haja prévia autorização do marido, presumem-se serem filhos havidos na constância do casamento, de acordo com o art. 1.597, V do Código Civil. 53 GONÇALVES, Fernando David de Melo. A paternidade decorrente de Inseminação Artificial Heteróloga, segundo o Código Civil de 2002. Disponível em: <http://www.revistaautor.com/index.php? option=com_content&task=view&id=435&Itemid=63> Acesso em: 23 set. 2011. 32 Se a esposa se submete a uma inseminação deste tipo sem a prévia autorização do marido, poderíamos estar diante de uma causa para separação judicial por injúria grave, pois a paternidade forçada atinge a integridade moral e a honra do marido54. O art. 1597, V, do Código Civil estabelece a presunção de nascimento no casamento dos filhos nascidos da reprodução humana assistida com recurso de doador, desde que o marido tenha autorizado previamente sua esposa a realizar tal técnica para engravidar, caso contrário, teria ele direito de contestar a paternidade que lhe fosse imputada. Este artigo faz prova da inovação no campo da filiação, mostrando mais uma vez que a filiação biológica não mais prevalece sobre a não-biológica, eis que com a autorização do marido para que sua mulher utilize sêmen de terceiro este coloca em primeiro lugar a vontade da família em ter um filho, independentemente do vínculo biológico que haverá com outra pessoa. A manifestação de vontade se faz necessária, uma vez que o marido e a mulher estão associados na vontade de ter filhos, portanto a escolha não pode ser de apenas um, exceto nos casos de família monoparental. Ana Claudia Brandão apud Silmara Juny Chinelato afirma que: A presunção de paternidade, nos casos de inseminação heteróloga, é absoluta, em face do sigilo do doador, que poderia importar em negação ao filho do direito de filiação. Trata-se, portanto, de 55 presunção juris et de jure . O marido não pode impugnar a paternidade, eis que não pode se voltar contra ato próprio, pois o venire contra factum proprium é repelido por nosso ordenamento jurídico56. Neste sentido, Maria Helena Diniz afirma que: 54 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. Vol.5. 24.ed. reformulada. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 462. 55 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 106. 56 Ibid, p. 106. 33 A impugnação da paternidade conduzirá o filho a uma paternidade incerta, devido ao segredo profissional médico e ao anonimato do doador do sêmen inoculado na mulher. Ao se impugnar a fecundação heteróloga consentida, estar-se-á agindo deslealmente, uma vez que houve deliberação comum dos consortes, decidindo que o filho deveria nascer. Esta foi a razão do art. 1.597, inc. V, que procurou fazer com que o princípio de segurança nas relações jurídicas prevalecesse diante do compromisso vinculante entre cônjuges de assumir paternidade maternidade, mesmo com componente genético estranho, dando-se prevalência ao elemento institucional e não biológico57. A presunção de paternidade citada no art. 1.597, inc. V, serve apenas para os casos em que há casamento e união estável, não cabendo, portanto, nos casos de compromissos eventuais ou quando o casal se encontre em situação de separação de fato, sendo que neste último caso deve-se observar os prazos estabelecidos nos incisos I e II do mesmo artigo. Segundo Ana Claudia Brandão apud Zeno Veloso “a inseminação artificial consentida pelo marido deve conferir o estado de filho matrimonial. A paternidade, no caso, não tem base biológica, mas possui um fundamento moral, prestigiando-se a relação socioafetiva”58. Ana Cláudia Brandão: Na reprodução humana assistida, o desejo de ter um filho e assumir todas as consequências da paternidade e da maternidade é muito mais forte do que qualquer traço genético que une os pais ao filho, assim como ocorre na adoção, assumindo a afetividade papel de destaque”59. A impugnação da paternidade não é muito aceita pelos doutrinados quando o marido consentiu de forma livre e expressa. Esta impugnação pode ser considerada como uma deslealdade do marido ou companheiro para com sua esposa ou companheira e seu filho, eis que estes decidiram em conjunto com o nascimento desta criança. 57 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. Vol.5. 24.ed. reformulada. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 462. 58 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 108. 59 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 109. 34 Repita-se: no caso da mulher realizar a inseminação artificial heteróloga sem o consentimento do marido. Nestes casos, a maioria dos doutrinadores entendem que se trata de injúria grave, uma vez que ofende a honra, o respeito e a dignidade do cônjuge, não podendo se falar em adultério por não ter havido relação sexual. Sendo isto motivo para ocorrer o divórcio do casal. Neste mesmo sentido, em se tratando de impugnação da paternidade, a mesma não pode ser questionada se for de presunção absoluta, ou seja, se manifestou sua vontade não poderá se negar a paternidade e as consequências dela decorrentes. Contudo, se o marido foi levado ao erro, Ana Claudia Brandão apud Belmiro Pedro Welter entende que “pode haver impugnação da paternidade pelo marido ou convivente levado a erro, ao registrar o filho, desde que ainda não tenha se estabelecido o estado de filho afetivo, ou a chamada posse de estado de filiação”60, o mesmo se aplica nos casos em que o cônjuge não deu autorização. Não havendo autorização, ocorrendo a impugnação da paternidade, devemos verificar como ficará a filiação da criança. Há, neste caso, um problema referente a quem seria determinada a filiação, seria ao marido da mãe, que mesmo não autorizando a inseminação estabeleceu laços socioafetivos com o filho, ou caberia a filiação ao doador do sêmen, que tem sua identidade resguardada pela Resolução nº 1.957 do CFM? Neste caso, a situação que deverá prevalecer é do filho, eis que este tem a garantia de uma convivência familiar, devendo o anonimato do doador ou a impugnação da paternidade com laços socioafetivos ser analisada em um patamar inferior ao da criança. O estado de filiação derivado da inseminação artificial heteróloga recebe o nome de filiação socioafetiva, onde a crença da condição de filho fundada em laços de afeto prevalece sobre o real estado de filiação biológico, eis que a afeição tem valor jurídico. Conforme faz presunção o art. 1.593 do Código Civil, o parentesco pode se dar de forma natural ou civil, sendo que a natural é relativa da consanguinidade e a 60 Ibid, p. 110. 35 civil do estado de afetividade, assim, falar em filiação civil é o mesmo que falar em filiação socioafetiva. 3.2 – Direito de filiação em relação à inseminação artificial heteróloga do gameta do Pai Diante das diversas problemáticas encontradas a partir da utilização da inseminação artificial heteróloga, uma das mais polêmicas é com relação ao direito da criança provinda desta prática requerer que o doador do sêmen seja reconhecido como seu pai, mudando a constância do registro civil e gerando todos os direitos inerentes da paternidade. Observamos que tal direito é incontestável, uma vez que o homem ao doar o sêmen o faz com o intuito de ajudar uma família, que ele nem conhece, a realizar o sonho de ter um filho. A partir daí, o mesmo não quer nenhum vínculo com esta família, nem com a criança que é seu filho biológico. Como já mostrado nos capítulos anteriores, a criança poderia sim requerer que se faça conhecer a sua origem genética, mas este reconhecimento em nada tem a ver com a relação de filiação, eis que este reconhecimento tem o intuito único de saber sua origem, sua ancestralidade, apenas para ter conhecimento e não para criar vínculos entre doador e filho. Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2000, reconheceu o direito do filho adotivo, maior de idade, de ter acesso às informações e identidades dos genitores, mas com a ressalva de que a adoção permaneceria e que estaria proibida qualquer demanda contra os genitores. Com esta decisão e aplicando a analogia ao caso da inseminação heteróloga, constata-se que poderia o filho, atingindo maioridade, reivindicar em juízo o acesso às informações que dizem respeito ao doador, inclusive sua identidade, mas não estabelecer vínculos paternos com o doador. Até o presente momento, não se tem noticia de nenhuma ação que tenha sido impetrada com esse intuito no Brasil. 36 No Brasil as informações sobre os doadores ficam em poder das clínicas responsáveis pela inseminação, sendo que há um critério que defina como estas informações são preservadas, uma vez que, não há uma legislação que regularize tal questão. No caso da criança ter acesso a identidade do doador e estes quiserem estabelecer a filiação, muitos doutrinadores entendem que não poderia ser revogada a filiação socioafetiva antes estabelecida, além de haver uma impossibilidade jurídica de ter-se mais de um “pai registral”. Mesma situação para os casos de família monoparental, onde a mãe não poderá atribuir paternidade ao doador do sêmen pelo fato de não haver um “pai” a criança. Entende-se que a criança poderá apenas investigar sua ancestralidade. Daí as críticas à utilização de técnicas de reprodução assistida por mães solteiras, por estar sendo negado ao filho o direito à convivência familiar dupla61. O pai biológico não tem ação contra o pai não-biológico, marido da mãe, para impugnar sua paternidade. O pai biológico somente pode impugnar a paternidade se houver ruptura da paternidade-filiação. Contudo, se apesar da ruptura os laços de paternidade afetiva forem mais fortes e for melhor para a criança manter a filiação com esse, nenhuma pessoa e nem mesmo o Estado poderá impugnar a filiação biológica. Muitas divergências são encontradas com relação a inseminação artificial heteróloga, muitos são os problemas decorrentes desta prática de reprodução assistida e, sem dúvida, a maioria dos problemas são estabelecidos pela falta de uma legislação que regulamente todas as possíveis problemáticas que venham a surgir desta prática. Já foram criados vários projetos de leis para regulamentar as práticas de reprodução humana assistida, tais como o Projeto de Lei nº 3.638/97, criando pelo Deputado Luiz Moreira, o Projeto de Lei nº 90 de 1999, feito pelo Senador Lúcio Alcântara, o Projeto de Lei nº 1.184/03, apresentado pelo Senador José Sarney, o Projeto de Lei nº 120/03, escrito pelo Deputado Roberto Pessoa e, posteriormente, o 61 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 111. 37 Projeto de Lei nº 4.685/04, do Deputado José Carlos Araújo. O Projeto de Lei nº 1.184/03, de autoria do Senador José Sarney, é apenas uma reprodução do substitutivo de 2001 do Projeto de Lei nº 90/99 do Senador Lúcio Alcântara62. Outro problema encontrado com relação ao direito de paternidade do filho com o doador do sêmen se insere no contexto dos direitos sucessórios, afinal se a criança tiver direito de estabelecer um vínculo paterno também terá direito de requerer os direitos sucessórios após a morte do doador. É claro e majoritário que não é possível haver tal direito, eis que o doador, que já praticou a doação no intuito de ser a mesma anônima, além de não ter intenção de ter vínculo paterno com a criança não é sujeito de deveres para com essa criança. Muitos doutrinadores, que são contra o reconhecimento da filiação tanto quanto do reconhecimento da origem genética, entendem que o anonimato estabelecido para a doação e o recebimento do sêmen, serve para evitar que tanto o doador quanto a criança procurem estabelecer relações com vistas a obtenção de qualquer vantagem, até mesmo econômicas. O entendimento doutrinário é amplamente majoritário no sentido de que não se deve aplicar ao reconhecimento da origem genética os efeitos da paternidade, eis que o doador não tem deveres com relação a criança nascida a partir do seu sêmen doado. O único efeito que deve ser aplicado são aqueles inerentes aos impedimentos matrimoniais. Uma vez que a doutrina entende que o vínculo de filiação não deve existir entre doador e criança gerada a partir do seu material genético, também conclui-se que a criança não terá, em hipótese alguma, direito sucessório. Mesmo que haja o reconhecimento da origem genética, esta em nada modificará as relações jurídicas, inclusive no que tange a direitos patrimoniais, eis que não há parentesco entre o doador do sêmen e a criança, também não tendo que se falar em obrigação alimentar entre eles. 62 CÂNDIDO, Nathalie Carvalho. Reprodução medicamente assistida heteróloga: distinção entre filiação e origem genética. Disponível em: < http://jus.com.br/revista/texto/10171/reproducaomedicamente-assistida-heterologa/4>. Acesso em 08 nov. 2011. 38 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nota-se que muitas são as problemáticas decorrentes das técnicas de reprodução humana assistida, devendo ser criadas leis que regulamentem tais práticas para facilitar a solução de conflitos entre os indivíduos que praticam este tipo de reprodução e posteriormente venham a ter problemas com ela. Tendo como ponto norteador o princípio da dignidade da pessoa humana onde se busca uma solução para o conflito entre doador do sêmen e indivíduo gerado a partir deste material genético, tal princípio se mostra eficaz para embasamento de todas as conclusões obtidas com este trabalho. Partimos da premissa de que o princípio da dignidade da pessoa humana é uma égide do direito ao reconhecimento da origem genética, eis que este direito deve ser estabelecido e garantido a todo e qualquer cidadão que queira saber sua ancestralidade. A Constituição Federal garantiu a todos os indivíduos direitos fundamentais que devem sempre ser respeitados, porém quando há conflitos entre garantias constitucionais fundamentais, deve-se observar qual prevalecerá, eis que em cada caso concreto será estabelecido um patamar que demonstre ser um ou outro direito mais relevante e, portanto merecedor da garantia. No caso em tela, nota-se que o princípio da dignidade da pessoa humana se sobrepõe ao direito ao anonimato, no que se refere ao reconhecimento da origem genética, eis que o doador do sêmen apesar de ter feito a doação com a expectativa de ter seus dados pessoais mantidos em sigilo, não terá seu direito sustentado quando houver confronto entre este e o direito ao reconhecimento da origem genética. Contudo, o doador não será obrigado a submeter-se a exame de DNA, com base no princípio da inviolabilidade do corpo humano, porém tal recusa, assim como nas investigações de paternidade, gerará presunção juris tantum de paternidade. A ação de investigação de paternidade, usada para se buscar a origem genética, não gera os mesmos efeitos de uma ação de investigação de paternidade 39 comum, onde de busca o reconhecimento da filiação, eis que filiação e origem genética são coisas bem distintas. Portanto, o reconhecimento da origem genética em nada trará vínculo parental entre doador e receptor, uma vez que apesar de serem biologicamente pai e filho, não possuem convivência e afetividade, eis que esta foi formada pelo pai que criou a criança. Sendo assim, este reconhecimento em nada gerara para o judiciário, já que nunca tiveram qualquer vínculo de parentesco e afetividade, eis que a filiação socioafetiva é levada muito em consideração para se determinar a guarda e os direitos de uma criança nos dias hoje em nosso mundo jurídico. O anonimato dos doadores é protegido pela Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.957/10 e tem o intuito de buscar ocultar a identificação dos doadores de sêmen para impossibilitar uma possível investigação de paternidade, bem como reivindicação de alimentos e herança, além de querer assegurar que a criança se desenvolva em seu lar familiar sem a pretensão de querer se vincular a outra família, que possua apenas vínculos biológicos e não afetivos. Contudo, a meu ver, o anonimato deve ser mantido até que o indivíduo, resultado da prática de inseminação artificial, venha a requerer dados sobre sua origem genética. Vindo a requerer, o mesmo deverá ter seu direito resguardado, eis que conhecer a origem biológica trata-se de direito fundamental de todo ser humano. Fez-se necessário demonstrar uma distinção entre estado de filiação e direito de filiação, decorrentes da inseminação artificial heteróloga. Pelo estado de filiação entende-se aquele estabelecido no art. 1.597, inc. V do Código Civil, onde o marido ou companheiro da mãe que pratica a inseminação confere o seu consentimento para a prática de tal ato, tornando pai da criança gerada desde a sua gestação. O direito de filiação é aquele decorrente da busca pela origem genética e pelo requerimento de se formar um ato de filiação com o doador do sêmen, resultando na prática de alteração do registro civil, direito a alimentos e até mesmo a herança. Contudo, observou-se que a filiação prevista no art. 1.597, V do CC estará em perfeitas condições se houve consentimento, mesmo que não seja por escrito, do marido ou companheiro. Porém, no que se refere a uma possível filiação com o doador do sêmen, esta é totalmente descartada pela doutrina brasileira, eis que o doador não pode ser sujeito de direitos e deveres para com uma criança que não 40 teve convivência e que apenas ajudou na procriação da mesma, para uma família que não possuía condições de ter um filho sem ajuda de terceiros. Não há norma determinando que não possa haver direito de filiação da criança com o doador do sêmen, contudo fazendo-se analogia ao estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente sobre adoção, onde a criança adotado terá direito de conhecer sua ancestralidade, mas não terá direito a filiação, bem como a herança ou alimentos em face dos pais biológicos, chega-se a conclusão que a criança oriunda da inseminação artificial heteróloga também não terá. Diante de tudo exposto, conclui-se que todo e qualquer indivíduo tem direito de conhecer sua origem genética, para saber sua ascendência, bem como conhecer suas raízes e buscar evitar problemas de doenças hereditárias e genéticas, além de impedir que ocorra incesto. Contudo, este indivíduo não terá direito a requerer alimentos, bem como a herança, além de não poder exigir que se reconheça a filiação em face do pai biológico e, com isso, ocorra a alteração do registro civil, eis que a filiação estabelecida com o pai afetivo não pode ser descartada, e mesmo em casos de família monoparental, o indivíduo não poderá requerer o reconhecimento da filiação em face do doador apenas por não lhe ser reconhecido alguém como pai. HETEROLOGOUS ARTIFICIAL INSEMINATION: the recognition of genetic origin in the light of the human dignity principle. ABSTRACT: This paper has the purpose of presenting a study about the right to investigatethe genetic origin of the children from the heterologous assisted reproduction technique, against the principle of human dignity. Will be approached the right of a child, if he, even having a membership status socio affective, even so he can the right to acknowledge his genetic identity, even if it involvesbreaking the anonymity of the donor of the semen. Reasons that show why the child has the right to know his genetic identity will be given, even though there is no will of recognizing the paternity or establish any kind of family ties. Key words: Principle of Human Dignity; Heterologous Artificial Insemination; Genetic Identity; Paternity Investigation. 41 REFERÊNCIAS GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A Nova Filiação: O Biodireito e as Relações Parentais – de acordo com o novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. KRELL, Olga Jubert. Reprodução humana assistida e filiação civil: princípios éticos e jurídicos. Curitiba: Juruá, 2007. FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011. 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O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, alterada pela Lei nº 11.000, de 15 de dezembro de 2004, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e 43 CONSIDERANDO a importância da infertilidade humana como um problema de saúde, com implicações médicas e psicológicas, e a legitimidade do anseio de superá-la; CONSIDERANDO que o avanço do conhecimento científico permite solucionar vários dos casos de reprodução humana; CONSIDERANDO que as técnicas de reprodução assistida têm possibilitado a procriação em diversas circunstâncias, o que não era possível pelos procedimentos tradicionais; CONSIDERANDO a necessidade de harmonizar o uso dessas técnicas com os princípios da ética médica; CONSIDERANDO, finalmente, o decidido na sessão plenária do Conselho Federal de Medicina realizada em 15 de dezembro de 2010, RESOLVE Art. 1º - Adotar as NORMAS ÉTICAS PARA A UTILIZAÇÃO DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA, anexas à presente resolução, como dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos. Art. 2º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se a Resolução CFM nº 1.358/92, publicada no DOU, seção I, de 19 de novembro de 1992, página 16053. Brasília-DF, 15 de dezembro de 2010 ROBERTO LUIZ D’AVILA HENRIQUE BATISTA E SILVA Presidente ANEXO ÚNICO DA RESOLUÇÃO CFM nº 1.957/10 NORMAS ÉTICAS PARA A UTILIZAÇÃO DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA Secretário-geral 44 I - PRINCÍPIOS GERAIS 1 - As técnicas de reprodução assistida (RA) têm o papel de auxiliar na resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham se revelado ineficazes ou consideradas inapropriadas. 2 - As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível descendente. 3 - O consentimento informado será obrigatório a todos os pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida, inclusive aos doadores. Os aspectos médicos envolvendo as circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, assim como os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico. O documento de consentimento informado será expresso em formulário especial e estará completo com a concordância, por escrito, das pessoas submetidas às técnicas de reprodução assistida. 4 - As técnicas de RA não devem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo (sexagem) ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer. 5 - É proibida a fecundação de oócitos humanos com qualquer outra finalidade que não a procriação humana. 6 - O número máximo de oócitos e embriões a serem transferidos para a receptora não pode ser superior a quatro. Em relação ao número de embriões a serem transferidos, são feitas as seguintes determinações: a) mulheres com até 35 anos: até dois embriões); b) mulheres entre 36 e 39 anos: até três embriões; c) mulheres com 40 anos ou mais: até quatro embriões. 7 - Em caso de gravidez múltipla, decorrente do uso de técnicas de RA, é proibida a utilização de procedimentos que visem à redução embrionária. II - PACIENTES DAS TÉCNICAS DE RA 45 1 - Todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja indicação não se afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das técnicas de RA desde que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre o mesmo, de acordo com a legislação vigente. III - REFERENTE ÀS CLÍNICAS, CENTROS OU SERVIÇOS QUE APLICAM TÉCNICAS DE RA As clínicas, centros ou serviços que aplicam técnicas de RA são responsáveis pelo controle de doenças infectocontagiosas, coleta, manuseio, conservação, distribuição, transferência e descarte de material biológico humano para a paciente de técnicas de RA, devendo apresentar como requisitos mínimos: 1 - um diretor técnico responsável por todos os procedimentos médicos e laboratoriais executados, que será, obrigatoriamente, um médico registrado no Conselho Regional de Medicina de sua jurisdição. 2 - um registro permanente (obtido por meio de informações observadas ou relatadas por fonte competente) das gestações, nascimentos e malformações de fetos ou recém-nascidos, provenientes das diferentes técnicas de RA aplicadas na unidade em apreço, bem como dos procedimentos laboratoriais na manipulação de gametas e embriões. 3 - um registro permanente das provas diagnósticas a que é submetido o material biológico humano que será transferido aos pacientes das técnicas de RA, com a finalidade precípua de evitar a transmissão de doenças. IV - DOAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES 1 - A doação nunca terá caráter lucrativo ou comercial. 2 - Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa. 3 - Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador. 46 4 - As clínicas, centros ou serviços que empregam a doação devem manter, de forma permanente, um registro de dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores. 5 - Na região de localização da unidade, o registro dos nascimentos evitará que um(a) doador(a) venha a produzir mais do que uma gestação de criança de sexo diferente numa área de um milhão de habitantes. 6 - A escolha dos doadores é de responsabilidade da unidade. Dentro do possível deverá garantir que o doador tenha a maior semelhança fenotípica e imunológica e a máxima possibilidade de compatibilidade com a receptora. 7 - Não será permitido ao médico responsável pelas clínicas, unidades ou serviços, nem aos integrantes da equipe multidisciplinar que nelas trabalham participar como doador nos programas de RA. V - CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES 1 - As clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozoides, óvulos e embriões. 2 - Do número total de embriões produzidos em laboratório, os excedentes, viáveis, serão criopreservados. 3 - No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados em caso de divórcio, doenças graves ou falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los. VI - DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO DE EMBRIÕES As técnicas de RA também podem ser utilizadas na preservação e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias, quando perfeitamente indicadas e com suficientes garantias de diagnóstico e terapêutica 1 - Toda intervenção sobre embriões "in vitro", com fins diagnósticos, não poderá ter outra finalidade que não a de avaliar sua viabilidade ou detectar doenças hereditárias, sendo obrigatório o consentimento informado do casal. 47 2 - Toda intervenção com fins terapêuticos sobre embriões "in vitro" não terá outra finalidade que não a de tratar uma doença ou impedir sua transmissão, com garantias reais de sucesso, sendo obrigatório o consentimento informado do casal. 3 - O tempo máximo de desenvolvimento de embriões "in vitro" será de 14 dias. VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO) As clínicas, centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética. 1 - As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina. 2 - A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial. VIII – REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM Não constitui ilícito ético a reprodução assistida post mortem desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente. ANEXO B – PROJETO DE LEI Nº 90, DE 1999 PROJETO DE LEI Nº 90, DE 1999 Autor: Senador Lúcio Alcântara Dispõe sobre Reprodução Assistida O CONGRESSO NACIONAL decreta: SEÇÃO I 48 DOS PRINCÍPIOS GERAIS Artigo 1º Constituem técnicas de Reprodução Assistida (RA) aquelas que importam na implantação artificial de gametas ou embriões humanos no aparelho reprodutor de mulheres receptoras com a finalidade de facilitar a procriação. § 1º Para os efeitos desta Lei, atribui-se a denominação de: I - embriões humanos aos produtos da união in vitro de gametas humanos, qualquer que seja a idade de seu desenvolvimento; II - usuários às mulheres ou aos casais que tenham solicitado o emprego de RA com o objetivo de procriar; III - criança ao indivíduo nascido em decorrência do emprego de RA; IV - gestação ou maternidade de substituição ao caso em que uma doadora temporária de útero tenha autorizado sua inseminação artificial ou a introdução, em seu aparelho reprodutor, de embriões fertilizados in vitro, com o objetivo de gerar uma criança para os usuários. Artigo 2º A utilização da RA só será permitida, na forma autorizada pelo Poder Público e conforme o disposto nesta Lei, para auxiliar na resolução dos casos de infertilidade e para a prevenção e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias, e desde que: I - tenha sido devidamente constatada a existência de infertilidade irreversível ou, caso se trate de infertilidade inexplicada, tenha sido obedecido prazo mínimo de espera, na forma estabelecida em regulamento; II - os demais tratamentos possíveis tenham sido ineficazes ou ineficientes para solucionar a situação de infertilidade; III - a infertilidade não decorra da passagem da idade reprodutiva; IV - a receptora da técnica seja uma mulher capaz, nos termos da lei, que tenha solicitado ou autorizado o tratamento de maneira livre e consciente, em documento de consentimento informado a ser elaborado conforme o disposto no artigo 3º; V - exista probabilidade efetiva de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para a mulher receptora ou a criança; 49 VI - no caso de prevenção e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias, haja indicação precisa com suficientes garantias de diagnóstico e terapêutica. SEÇÃO II DO CONSENTIMENTO INFORMADO Artigo 3º - O consentimento informado será obrigatório e extensivo aos cônjuges e companheiros em união estável, em documento redigido em formulário especial, no qual os usuários manifestem, pela aposição de suas assinaturas, terem dado seu consentimento para a realização das técnicas de RA e terem sido esclarecidos sobre o seguinte: I - os aspectos técnicos e as implicações médicas das diferentes fases das técnicas de RA disponíveis, bem como os custos envolvidos em cada uma delas; II - os dados estatísticos sobre a efetividade das técnicas de RA nas diferentes situações, incluídos aqueles específicos do estabelecimento e do profissional envolvido, comparados com os números relativos aos casos em que não se recorreu à RA; III - a possibilidade e probabilidade de incidência de acidentes, danos ou efeitos indesejados para as mulheres e para as crianças; IV - as implicações jurídicas da utilização da RA, inclusive quanto à paternidade da criança; V - todas as informações concernentes à licença de atuação dos profissionais e estabelecimentos envolvidos; VI - demais informações definidas em regulamento. § 1º O consentimento mencionado neste artigo, a ser efetivado conforme as normas regulamentadoras que irão especificar as informações mínimas a serem transmitidas, será extensivo aos doadores e seus cônjuges ou companheiros em união estável. § 2º No caso do parágrafo anterior, as informações mencionadas devem incluir todas as implicações decorrentes do ato de doar, inclusive a possibilidade de a identificação do doador vir a ser conhecida pela criança e, em alguns casos, de o 50 doador vir a ser obrigado a reconhecer a filiação dessa criança, em virtude do disposto no artigo 12. § 3º O consentimento deverá refletir a livre manifestação da vontade dos envolvidos, vedada qualquer coação física ou psíquica, e o documento originado deverá explicitar: I - a técnica e os procedimentos autorizados pelos usuários; II - o destino a ser dado, no caso de divórcio ou separação do casal, aos embriões excedentes que vierem a ser preservados na forma do §4º do artigo 9º; III - as circunstâncias em que os doadores autorizam ou desautorizam a utilização de seus gametas e embriões. § 4º No caso de utilização da RA para a prevenção e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias, o documento deve conter a indicação precisa da doença e as garantias de diagnóstico e terapêutica, além de mostrar claramente o consentimento dos receptores para as intervenções a serem efetivadas sobre os gametas ou embriões. § 5º O consentimento só será válido para atos lícitos e não exonerará os envolvidos em práticas culposas ou dolosas que infrinjam os limites estabelecidos nesta Lei e em seus regulamentos. SEÇÃO III DOS ESTABELECIMENTOS E PROFISSIONAIS Artigo 4º - Cabe a clínicas, centros, serviços e demais estabelecimentos que aplicam a RA a responsabilidade sobre: I - o recebimento de doações, a coleta, o manuseio, o controle de doenças infectocontagiosas, a conservação, a distribuição e a transferência do material biológico humano utilizado na RA, vedando-se a transferência a fresco de material doado; II - o registro de todas as informações relativas aos doadores desse material e aos casos em que foi utilizada a RA, pelo prazo de vinte e cinco anos após o emprego das técnicas em cada caso; 51 III - a obtenção do consentimento informado dos usuários de RA, doadores e respectivos cônjuges ou companheiros em união estável, na forma definida no artigo anterior. Parágrafo único. As normas para o cumprimento do disposto neste artigo serão definidas em regulamento. Artigo 5º - Para obter sua licença de funcionamento, clínicas, centros, serviços e demais estabelecimentos que aplicam RA devem cumprir os seguintes requisitos mínimos: I - funcionar sob a direção de um profissional médico, devidamente licenciado para realizar a RA, que se responsabilizará por todos os procedimentos médicos e laboratoriais executados; II - dispor de recursos humanos, técnicos e materiais condizentes com as necessidades científicas para realizar a RA; III - dispor de registro permanente de todos os casos em que tenha sido empregada a RA, ocorra ou não gravidez, pelo prazo de vinte e cinco anos; IV - dispor de registro permanente dos doadores e das provas diagnósticas realizadas no material biológico a ser utilizado na RA com a finalidade de evitar a transmissão de doenças e manter esse registro pelo prazo de vinte e cinco anos após o emprego do material. § 1º A licença mencionada no caput, obrigatória para todos os estabelecimentos e profissionais médicos que pratiquem a RA, será válida por dois anos e renovável ao término de cada período, podendo ser revogada em virtude do descumprimento de qualquer disposição desta Lei ou de seus regulamentos. § 2º O profissional mencionado no inciso I não poderá estar respondendo, na Justiça ou no órgão de regulamentação profissional da categoria, a processos éticos, civis ou penais relacionados ao emprego de RA. § 3º O registro citado no inciso III deverá conter, em prontuários, elaborados inclusive para a criança, e em formulários específicos, a identificação dos usuários e doadores, as técnicas utilizadas, os procedimentos laboratoriais de manipulação de 52 gametas e embriões, a ocorrência ou não de gravidez, o desenvolvimento das gestações, os nascimentos, as mal-formações de fetos ou recém-nascidos e outros dados definidos em regulamento. § 4º Em relação aos doadores, o registro citado no inciso IV deverá conter, em prontuários individuais, a identidade civil, os dados clínicos de caráter geral, uma foto acompanhada das características fenotípicas e uma amostra de material celular. § 5º As normas para o cumprimento deste artigo serão definidas em regulamento. SEÇÃO IV DAS DOAÇÕES Artigo 6º - Será permitida a doação de gametas e embriões, sob a responsabilidade dos estabelecimentos que praticam a RA, vedada a remuneração dos doadores e a cobrança por esse material, a qualquer título. § 1º Os estabelecimentos que praticam a RA estarão obrigados a zelar pelo sigilo da doação, impedindo que doadores e usuários venham a conhecer reciprocamente suas identidades, e pelo sigilo absoluto das informações sobre a criança nascida a partir de material doado. § 2º Apenas a criança terá acesso, diretamente ou por meio de um representante legal, a todas as informações sobre o processo que a gerou, inclusive à identidade civil do doador, nos casos autorizados nesta Lei, obrigando-se o estabelecimento responsável pelo emprego da RA a fornecer as informações solicitadas. § 3º Quando razões médicas indicarem ser de interesse da criança obter informações genéticas necessárias para sua vida ou sua saúde, as informações relativas ao doador deverão ser fornecidas exclusivamente para o médico solicitante. § 4º No caso autorizado no parágrafo anterior, resguardar-se-á a identidade civil do doador, mesmo que o médico venha a entrevistá-lo para obter maiores informações sobre sua saúde. § 5º A escolha dos doadores será responsabilidade do estabelecimento que pratica a RA e deverá garantir, tanto quanto possível, semelhança fenotípica e compatibilidade imunológica entre doador e receptor. 53 § 6º Com base no registro de gestações, o estabelecimento que pratica a RA deverá evitar que um mesmo doador venha a produzir mais de duas gestações de sexos diferentes numa área de um milhão de habitantes. § 7º Não poderão ser doadores os dirigentes, funcionários e membros de equipe do estabelecimento que pratica a RA ou seus parentes até quarto grau. Artigo 7º - Fica permitida a gestação de substituição em sua modalidade não remunerada conhecida como doação temporária do útero, nos casos em que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na usuária e desde que haja parentesco até o segundo grau entre ela e a mãe substituta ou doadora temporária do útero. Parágrafo único. A gestação de substituição não poderá ter caráter lucrativo ou comercial, ficando vedada sua modalidade remunerada conhecida como útero ou barriga de aluguel. SEÇÃO V DOS GAMETAS E EMBRIÕES Artigo 8º Na execução de técnica de RA, poderão ser transferidos no máximo quatro embriões a cada ciclo reprodutivo da mulher receptora. Artigo 9º Os estabelecimentos que praticam a RA ficam autorizados a preservar gametas e embriões humanos, doados ou depositados apenas para armazenamento, pelos métodos permitidos em regulamento. § 1º Não se aplicam aos embriões originados in vitro, antes de sua introdução no aparelho reprodutor da mulher receptora, os direitos assegurados ao nascituro na forma da lei. § 2º O tempo máximo de preservação de gametas e embriões será definido em regulamento. § 3º O número total de embriões produzidos em laboratório durante a fecundação in vitro será comunicado aos usuários para que se decida quantos embriões serão transferidos a fresco, devendo o restante ser preservado, salvo disposição em 54 contrário dos próprios usuários, que poderão optar pelo descarte, a doação para terceiros ou a doação para pesquisa. § 4º Os gametas e embriões depositados apenas para armazenamento só poderão ser entregues ao indivíduo ou casal depositante, sendo que, neste último caso, conjuntamente aos dois membros do casal que autorizou seu armazenamento. § 5º É obrigatório o descarte de gametas e embriões: I - doados há mais de dois anos; II - sempre que for solicitado pelos doadores; III - sempre que estiver determinado no documento de consentimento informado; IV - nos casos conhecidos de falecimento de doadores ou depositantes; V - no caso de falecimento de pelo menos uma das pessoas que originaram embriões preservados. Artigo 10º - Ressalvados os casos de material doado para pesquisa, a intervenção sobre gametas ou embriões in vitro só será permitida com a finalidade de avaliar sua viabilidade ou detectar doenças hereditárias, no caso de ser feita com fins diagnósticos, ou de tratar uma doença ou impedir sua transmissão, no caso de ser feita com fins terapêuticos. § 1º A pré-seleção sexual de gametas ou embriões só poderá ocorrer nos casos em que os usuários recorram à RA em virtude de apresentarem hereditariedade para gerar crianças portadoras de doenças ligadas ao sexo. § 2º As intervenções autorizadas no caput e no parágrafo anterior só poderão ocorrer se houver garantias reais de sucesso. § 3º O tempo máximo de desenvolvimento de embriões in vitro será definido em regulamento. SEÇÃO VI DA FILIAÇÃO DA CRIANÇA Artigo 11º - A criança terá assegurados todos os direitos garantidos aos filhos na forma da lei. 55 Parágrafo único. Ressalvados os casos especificados nos §§ 2º e 3º do art. 12, os pais da criança serão os usuários. Artigo 12º - A criança nascida a partir de gameta ou embrião doado ou por meio de gestação de substituição terá assegurado, se assim o desejar, o direito de conhecer a identidade do doador ou da mãe substituta, no momento em que completar sua maioridade jurídica ou, a qualquer tempo, no caso de falecimento de ambos os pais. § 1º A prerrogativa garantida no caput poderá ser exercida, desde o nascimento, em nome de criança que não possua em seu registro civil o reconhecimento de filiação relativa a pessoa do mesmo sexo do doador ou da mãe substituta, situação em que ficará resguardado à criança, ao doador e à mãe substituta o direito de obter esse reconhecimento na forma da lei. § 2º No caso em que tenha sido utilizado gameta proveniente de indivíduo falecido antes da fecundação, a criança não terá reconhecida a filiação relativa ao falecido. § 3º No caso de disputa judicial sobre a filiação da criança, será atribuída a maternidade à mulher que deu à luz a criança, exceto quando esta tiver recorrido à RA por ter ultrapassado a idade reprodutiva, caso em que a maternidade será outorgada à doadora do óvulo. § 4º Ressalvado o disposto nos §§ 1º e 3º, não se aplica ao doador qualquer direito assegurado aos pais na forma da lei. SEÇÃO VII DOS CRIMES Artigo 13º - É crime: I - praticar a RA sem estar previamente licenciado para a atividade; Pena: detenção, de seis meses a dois anos, e multa. II - praticar RA sem obter o consentimento informado dos receptores e dos doadores na forma determinada nesta Lei, bem como fazê-lo em desacordo com os termos constantes do documento de consentimento assinado por eles; Pena: detenção, de seis meses a dois anos, e multa. 56 III - envolver-se na prática de útero ou barriga de aluguel, na condição de usuário, intermediário, receptor ou executor da técnica; Pena: detenção, de seis meses a dois anos, e multa. IV - fornecer gametas ou embriões depositados apenas para armazenamento a qualquer pessoa que não seja o próprio depositante, bem como empregar esses gametas e embriões sem a autorização deste; Pena: detenção, de seis meses a dois anos, e multa. V - intervir sobre gametas ou embriões in vitro com finalidade diferente das permitidas nesta Lei; Pena: detenção, de seis meses a dois anos, e multa. VI - deixar de manter as informações exigidas nesta Lei, na forma especificada, ou recusar-se a fornecê-las nas situações previstas; Pena: detenção, de seis meses a dois anos, e multa. VII - utilizar gametas ou embriões de doadores ou depositantes sabidamente falecidos; Pena: detenção, de dois a seis meses, ou multa. VIII - implantar mais de quatro embriões na mulher receptora; Pena: detenção, de dois a seis meses, ou multa. IX - realizar a pré-seleção sexual de gametas ou embriões, ressalvado o disposto nesta Lei; Pena: detenção, de dois a seis meses, ou multa. X - conservar gametas ou embriões doados por período superior a dois anos ou utilizar esses gametas e embriões; Pena: detenção, de dois a seis meses, ou multa. § 1º No caso de gametas ou embriões depositados por casal, incide no crime definido no inciso IV a pessoa que os fornecer a um dos membros do casal isoladamente. 57 § 2º A prática de qualquer uma das condutas arroladas neste artigo acarretará a perda da licença do estabelecimento de reprodução assistida e do profissional responsável, sem prejuízo das demais sanções legais cabíveis. SEÇÃO VIII DAS DISPOSIÇÕES FINAIS Artigo 14º - O Poder Público editará os regulamentos necessários à efetividade da Lei, inclusive as normas especificadoras dos requisitos para a execução de cada técnica de RA, concederá a licença aos estabelecimentos e profissionais que praticam a RA e fiscalizará a atuação de ambos. Artigo 15º - Esta Lei entrará em vigor cento e oitenta dias após sua publicação. JUSTIFICAÇÃO Reprodução Assistida (RA) é a tecnologia que importa na implantação artificial de espermatozóides ou embriões humanos no aparelho reprodutor de mulheres receptoras com a finalidade de facilitar a procriação. Basicamente, as técnicas de RA pertencem a duas modalidades: aquelas em que se introduz no aparelho reprodutor da mulher o esperma, genericamente denominadas inseminação artificial (IA), e a fertilização in vitro (FIV), na qual o óvulo e o esperma são juntados em um tubo de proveta e posteriormente se introduzem alguns embriões no aparelho reprodutor da futura mãe. A inseminação artificial subdivide-se em inseminação intrauterina (IIU), em que o esperma é colocado no útero, transferência intrafalopiana de gametas (IFTG), em que os espermatozóides são introduzidos nas trompas de falópio, e inseminação intraperitoneal (IIP). Na implementação dessas técnicas, pode-se utilizar sêmen e/ou óvulo homólogo (pertecente ao marido ou à própria mulher, respectivamente) ou heterólogo (doado por terceiros). Conforme a origem dos espermatozóides, portanto, a IA pode ser classificada em inseminação artificial intra-conjugal (IAC) e inseminação artificial com doador de esperma (IAD). 58 Há também o caso da gestação ou maternidade de substituição, em que uma mulher é contratada para dar à luz uma criança para outra mulher e que pode ocorrer tanto por IA, caso em que o óvulo pertence à mulher contratada (que, conseqüentemente, se torna a mãe genética e gestacional do bebê), quanto por FIV, com óvulo e/ou sêmen do casal contratante ou de terceiros. Se o acordo envolver retribuição financeira, o caso é conhecido por "útero de aluguel" ou "barriga de aluguel". Senão, trata-se de uma "doação temporária de útero". Diante de todas essas possibilidades, a grande questão surgida a partir do desenvolvimento da RA diz respeito exatamente a suas conseqüências para o estado de filiação da criança. Verificam-se os malefícios da RA, de forma bastante clara, em situações tais como o caso apresentado em artigo de revista, no qual uma menina de dois anos veio a ser declarada "criança sem pais" por um juiz do Tribunal Superior de Justiça da Califórnia. Segundo o artigo, a garota, "fruto de um processo de fertilização artificial, obtido a partir de espermatozóides e óvulos de doadores anônimos", foi "gestada por uma mãe de aluguel", contratada por um casal no qual o homem apresentava baixa contagem de espermatozóides e a mulher, por sofrer de endometriose, não conseguia liberar os óvulos para fecundação e nem podia levar a termo uma gestação. O texto informa que, um mês antes do nascimento da criança, o homem decidiu separar-se da mulher e, para "livrar-se dos encargos com a pensão alimentícia", "disse que nunca quis ter um filho dessa maneira e passou a repudiar qualquer responsabilidade paterna". "A Justiça, em princípio, aceitou o argumento". A mulher que desejou a criança foi autorizada a adotá-la, mas quer "obrigar o exmarido a cumprir o contrato assinado por ocasião da concepção artificial". O resultado disso é um ser humano que, "como não tem nenhum vínculo genético com o casal, nem com a mãe de aluguel", e descende de pais biológicos anônimos, "existe numa espécie de vácuo". Sobre o caso, médico brasileiro ouvido pela revista declarou que o casal deveria ter recorrido a uma adoção, em vez de se utilizar desse arranjo "antinatural" firmado em contrato, uma vez que nenhum dos dois envolvidos transmitiria seus genes ao bebê, nem a mulher poderia vivenciar a gestação. 59 Tudo bem que a situação acima descrita corresponda a um caso de utilização da RA com final infeliz. Porém, mesmo em casos com final feliz, a conseqüência normal do emprego dessa tecnologia é o surgimento de situações anômalas que, até então, ou não poderiam ocorrer, ou, quando ocorriam, eram consideradas infortúnios para os envolvidos. Referimo-nos aqui às situações de "criança sem pai" (em alguns casos mais raros, "criança sem mãe), "criança com duas mães" e "criança com dois pais". O emprego da RA pode originar uma "criança sem pai" em dois casos: quando o pai genético, do qual foi retirado esperma, morre antes da concepção ou quando uma criança nasce na ausência legal de um pai, como, por exemplo, o filho gerado como "produção independente" de uma mulher solteira fecundada com esperma doado (mais raramente, tem-se observado a situação de "criança sem mãe", quando dois homens contratam uma mulher para gerar uma criança que será cuidada apenas por eles dois). Em relação ao primeiro caso, situação similar pode acontecer por "meios naturais" quando um homem morre deixando grávida sua esposa. Um acontecimento como esse - considerado, via de regra, uma tragédia para a criança que nascerá postumamente - origina uma situação nunca desejada por qualquer pessoa. Já o segundo caso, até há pouco tempo considerado bastante desagradável para a criança (o filho "bastardo" de mãe solteira que nascia rejeitado pelo pai), deixou, em certos círculos da sociedade urbana ocidental, de representar um acontecimento perturbador e passou até a ser desejado por algumas mulheres que consideram o nascimento de uma criança um evento a ser reservado só para a mãe. A "criança com duas mães" - verificada na gestação de substituição - possui uma mãe genética (que doou seu óvulo para a obtenção do embrião in vitro) e uma mãe gestacional (que recebeu o embrião em seu útero e deu à luz a criança). É nessa modalidade que mais se evidencia a artificialidade das técnicas, pois tal situação nunca ocorre por meios naturais. A última situação refere-se à "criança com dois pais", que nasce quando um homem infértil - pai legal - autoriza a inseminação artificial de sua mulher com esperma de um doador - pai genético - , caso freqüente no universo de utilização da 60 RA. Nesses casos, os interesses da criança relativos à filiação permanecem parcialmente preservados, uma vez que ela tem como pais um casal legalmente constituído. Considerando a possibilidade de utilização da RA, chega-se então à seguinte questão: é correta a criação deliberada dessas situações? A resposta a essa pergunta só poderia ser afirmativa se viesse embasada na hipótese de que para uma criança, ou para as crianças em geral, é melhor não ter um dos genitores ou ter mais de um genitor do mesmo sexo, do que ter só um pai e uma mãe da forma como ocorre naturalmente. É muito difícil tentar avaliar a correção dessa hipótese com base em fatos objetivos ou experiências que não sejam somente individuais, ou com base em postulados científicos (apesar de já haver evidências consistentes, baseadas em pesquisas disponíveis, que contrariam a hipótese de que é melhor ter somente mãe, por exemplo). Porém, ainda que faltem esses postulados científicos ou constatações que possam ser estendidas para toda uma sociedade, é possível proceder a uma análise dos riscos a que se submetem as crianças nascidas com o emprego de RA. Isso requer seja adotado o pressuposto de que nada do que o homem vem considerando como progresso até hoje permanecerá obrigatoriamente aceitável no futuro, sem uma avaliação concomitante sobre os riscos aos quais esse progresso expõe a humanidade e sem o aperfeiçoamento dos instrumentos científicos e tecnológicos idealizados para compensar totalmente esses danos. Assim sendo, da mesma forma como ocorre com um levantamento de impacto ambiental, se a avaliação relativa ao emprego da RA trouxer à luz a possibilidade de sérios riscos para a criança - mesmo que esses riscos possam estar acompanhados de possíveis vantagens - então deve-se recusar autorização ou idealizar mecanismos para desencorajar o recurso à RA. Acreditamos ser preciso fazer pelas crianças do futuro o que hoje já se faz a respeito de qualquer inovação que se deseje implementar no ambiente: se existem sérios riscos, então as mudanças não serão feitas, mesmo que algumas pessoas as creiam vantajosas. Quem quer que se proponha a uma análise como essa, constata facilmente que a técnica de maternidade dividida e o modelo do genitor de um único sexo 61 acarretam riscos sérios o bastante para invalidar essas modalidades perante uma análise de impacto ambiental. É, portanto, um ser humano como todas essas crianças, "sem genitor" ou "com dois genitores" do mesmo sexo, o balizador das escolhas que precisaram ser feitas no âmbito do projeto, definidas com o objetivo de tentar implementar a proteção que a criança requer em cada situação específica. Quanto aos instrumentos existentes para impedir ou desencorajar as pessoas a recorrerem às práticas passíveis de trazer grandes riscos para a criança, observamos preliminarmente que nenhum instrumento poderia impedir totalmente essas práticas. Na cultura ocidental de hoje prevalece a assertiva da onipotência dos desejos individuais. Entre esses desejos está o de ter um filho a qualquer custo e em qualquer condição que o sujeito determine, sem que outra pessoa possa interferir. É um desejo muito forte e tende a prevalecer sobre a lei e sobre o respeito à criança que irá nascer. Outra observação constatou que ameaças de natureza penal terão utilidade restrita aos casos específicos em que os envolvidos venham a buscar na Justiça a solução para seus conflitos. Essas ameaças dificilmente serão vistas com bons olhos pela sociedade e provavelmente não irão ter o alcance necessário para desencorajar o recurso às técnicas, uma vez que, como a RA oferece a oportunidade para que usuários e médicos realizem seus desejos recíprocos de procriar e permitir a procriação, o quadro provável é o estabelecimento de um pacto de silêncio entre eles. Recomenda-se, portanto, definir também outros mecanismos de dissuasão, sobretudo aqueles que vinculem efeitos de natureza civil, no âmbito do Direito de Família, aos atos do cidadão. A idéia é produzir efeitos judiciais diferentes daqueles que o sujeito estaria disposto a sofrer em decorrência de seu comportamento. Assim, foram propostos os seguintes dispositivos para restringir e desencorajar, especificamente, cada uma das situações claramente indesejáveis para a criança. Em relação aos casos que envolvam o desejo de utilizar material biológico em geral esperma - de pessoas mortas para gerar uma criança, há que se distinguir entre duas situações: 62 - a do homem que torna disponível seu esperma para permitir a uma mulher (normalmente sua esposa) ter um filho seu mesmo após sua morte; - a do doador anônimo que deposita seu esperma em um banco de sêmen e depois morre. No que se refere à segunda situação, determinou-se ao banco de sêmen que não utilize gametas de um doador sabidamente morto. Porém, esse dispositivo não é suficiente para garantir que o gameta a ser utilizado não seja o de uma pessoa falecida, já que é impossível para o estabelecimento manter registro do que ocorre com cada pessoa após a doação. Assim, estabeleceu-se também uma outra coerção: proibir a conservação de esperma por tempo maior do que dois anos. Já para evitar a primeira situação, o projeto proíbe o banco de gametas de entregar o material depositado a qualquer pessoa que não seja o próprio depositante. A regra decisiva, porém, é aquela que exclui a atribuição de paternidade ao morto. É verdade que essa regra incrementa ainda mais o dano à criança, uma vez que ela, além de nascer "sem pai", não poderá reclamar descendência daquele que é seu pai biológico. Porém somente uma dissuasão assim tão forte pode ser capaz de evitar o emprego dessa prática prejudicial aos interesses das crianças do futuro. Além disso, mesmo que se outorgasse, exclusivamente à criança e à partir de uma idade mínima, o direito de obter o reconhecimento de sua filiação’, ainda assim teriam de persistir excluídas tanto as conseqüências relativas aos bens - herança, por exemplo - quanto à formalização de laços com os demais parentes do falecido. De fato, essa é a interpretação de Álvaro Villaça Azevedo, jurista brasileiro, que entende ficar o eventual nascituro excluído da herança, tanto por não poder competir com os herdeiros de seu pai morto previamente a sua concepção, quanto por não ser possível falar em retroação de efeitos, uma vez que eles não podem existir antes da concepção. Em relação à utilização de gameta de um doador anônimo para possibilitar o nascimento de uma criança legalmente sem pai - ou, mais raramente, sem mãe - , o projeto propõe um meio efetivo de dissuasão: possibilitar à criança que vier a nascer que exerça o direito de exigir do doador o reconhecimento de paternidade, direito esse que também deve ser estendido ao doador que queira reclamar a paternidade 63 da criança. Apesar da evidente dificuldade inerente a qualquer tentativa de rastrear e encontrar os doadores, a mera possibilidade de isso vir a acontecer pode servir para desencorajar as pessoas a recorrerem à prática. Para se restringir a ocorrência de "dupla maternidade", em primeiro lugar determinou-se que a utilização da RA só será permitida como tratamento para os casos de infertilidade e para prevenção e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias, quando haja indicação precisa e com suficientes garantias de diagnóstico e terapêutica. Com esse dispositivo, busca-se evitar a gravidez artificialmente produzida em mulheres que ultrapassaram a idade reprodutiva ou o recurso à prática do "útero de aluguel" por mulheres que não desejam, por qualquer motivo, viver a experiência da gravidez e do parto. A única exceção permitida de gestação de substituição ou doação temporária do útero aplica-se aos casos em que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética e desde que haja parentesco até o segundo grau entre ela e a doadora temporária do útero (essa gestação não pode ter qualquer fim comercial ou lucrativo). Como a Constituição Federal proíbe o comércio de órgãos, tornou-se obrigatório vedar o "útero de aluguel" (assim como o comércio de gametas e embriões), ainda que se saiba, como dito anteriormente, que o dispositivo será certamente desobedecido. Porém, apesar de haver uma quase unanimidade mundial no sentido de proibir o "útero ou barriga de aluguel", é preciso não se iludir de que ela possa ser totalmente abolida. Isso é especialmente verdadeiro para o Brasil, onde a precária situação sócio-econômica da maior parcela da população certamente propicia a existência de mulheres dispostas a se oferecer para gerar filhos de outras mulheres em troca de remuneração. Em decorrência disso, foi necessário também estabelecer claramente quem deve ficar com a criança em caso disputa. A legislação francesa optou por atribuir a maternidade à mãe gestacional, enquanto a jurisprudência americana vem consolidando a solução oposta. Este projeto, seguindo a linha francesa, determina que a mãe será aquela que deu à luz a criança, exceto no caso de mulheres que ultrapassaram a idade reprodutiva. 64 Dessa forma, ao mesmo tempo em que se determinou um mecanismo para desencorajar mulheres, tanto as de meia-idade quanto aquelas que não sofram de infertilidade, de recorrerem à RA pela vaidade de ter um filho fora da idade reprodutiva ou de não se submeter aos efeitos indesejados de uma gravidez, estabeleceu-se também a proteção para uma outra categoria: a mãe substituta. Consideramos mais justo proteger as mulheres que se dispuserem a alugar seu útero por dinheiro em detrimento das que se dispuserem a pagar por ele, independentemente das sanções legais a que os dois grupos sejam submetidos por desobedecerem à lei. Pois bem, além de tentar desencorajar a utilização da RA para gerar situações potencialmente danosas para a criança, o projeto cuidou também de tentar resguardar seu direito à filiação. Para resolver os questionamentos de filiação originados de situações em que se utilizou a RA, alguns países optaram por determinar, em lei ou nas decisões proferidas em juízo, a preponderância da paternidade artificial sobre a genética ou biológica, o que, além de solucionar a situação, constituiu uma maneira de fomentar a utilização e disseminação da RA. Esse caminho, entretanto, gerou situação paradoxal, uma vez que se utilizam dois pesos e duas medidas para as diferentes situações. No caso, por exemplo, de casais que recorram à RA com a utilização de esperma de doador anônimo, atribuise a paternidade da criança ao homem do casal, ignorando-se o papel dos genes do pai verdadeiro. Já no caso de "aluguel de útero" em que o óvulo provenha da mulher contratante, atribui-se-lhe a maternidade da criança, priorizando o papel de seus genes sobre a função exercida pela mulher geratriz. Além dessa observação, faz-se necessária, neste ponto, uma breve menção sobre os direitos da personalidade humana, especialmente o direito de filiação. Sobre o assunto, reportamo-nos a Álvaro Villaça Azevedo: O estado de filiação, como direito da personalidade, está vinculado à própria natureza do homem, que, descendendo, ex iure sanquinis, existe, nesse estado, desde sua concepção até sua morte, como um fato natural, independentemente de lei, que há de respeitá-lo, por inserir-se no âmbito do Direito Natural. 65 Ora, o respeito à situação natural da paternidade, da maternidade e da filiação é inerente ao Direito Natural, devendo preservar-se, como a própria natureza, prevalecendo sobre situações artificiais, humani iuris. Reafirme-se, portanto, que, quando se cuida de direitos da personalidade, como o estado da pessoa, mormente o de filiação, a indispensabilidade dos princípios de Direito Natural. Dessa forma, o direito à filiação, que inclui o conhecimento da filiação genética e biológica e se confunde com o direito à identidade, deveria ser respeitado independentemente de estar disposto em lei, a qual não deveria nunca torná-lo dispensável ou obstruir seu exercício. Cabe enfatizar aqui - ainda que não seja necessário esse direito estar previsto em lei para que seja protegido - o disposto nos artigos sete e oito da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, de 20 de novembro de 1989: Artigo 7º 1. A criança será registrada imediatamente após seu nascimento e terá direito desde o momento em que nasce, a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer seus pais e a ser cuidada por eles. 2. Os Estados Partes zelarão pela aplicação desses direitos de acordo com sua legislação nacional e com as obrigações que tenham assumido em virtude dos instrumentos internacionais pertinentes, sobretudo se, de outro modo, a criança se tornaria (sic) apátrida. Artigo 8º 1. Os Estados Partes se comprometem a respeitar o direito da criança de preservar sua identidade, inclusive a nacionalidade, o nome e as relações familiares, de acordo com a lei, sem interferências ilícitas. 2. Quando uma criança se vir privada ilegalmente de algum ou de todos os elementos que configuram sua identidade, os Estados Partes deverão prestar assistência e proteção adequadas com vistas a restabelecer rapidamente sua identidade. 66 Assim sendo, todas as nações deveriam salvaguardar à criança gerada o direito de ter uma filiação definida. Por esse motivo, e para evitar casos como o da criança considerada "sem pais" narrado anteriormente, o projeto dispõe que a criança nascida em decorrência do emprego de RA terá assegurados todos os direitos garantidos aos filhos na forma da lei e determina que os pais, salvo nos casos especificados, serão os usuários que tenham solicitado o emprego das técnicas para gerar a criança. Do mesmo modo, as nações deveriam resguardar o direito da criança de conhecer sua filiação genética ou biológica. Por isso, estabelecemos, neste projeto o direito de a criança conhecer a identidade de seus pais genéticos no momento em que atinja a maioridade jurídica (esse direito também é garantido na Suécia), ou a qualquer tempo, diante do falecimento de seus pais. Observe-se que o estabelecido acima se estende a qualquer caso em que tenha ocorrido RA com o emprego de gameta heterólogo, indiscriminadamente. No caso de criança legalmente sem pai - ou, mais raramente, sem mãe - , o projeto possibilita-lhe, além de conhecer a identidade do doador, exercer o direito de exigir do doador o reconhecimento de paternidade, direito esse que também é estendido ao doador que queira reclamar a paternidade da criança. Apesar da evidente dificuldade inerente a qualquer tentativa de rastrear e encontrar os doadores, a mera possibilidade de isso vir a acontecer pode servir para desencorajar as pessoas a contribuírem para originar esse tipo de situação que não atende aos interesses da criança. Há que se ressaltar que, pela lei brasileira atual, em casos assim tanto a criança - no papel de filho - , quanto o doador, - no de pai - , já têm o direito de "pedir alimentos", consoante o Código Civil, em virtude de serem parentes consangüíneos. Assinale-se também que esse dispositivo se coaduna com o princípio da "paternidade responsável" erigido pela Constituição Federal de 1998 e corroborado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que determinam que "os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação". Espera-se, assim, que o projeto tenha o efeito de desencorajar a doação inconseqüente e o emprego irresponsável de gametas humanos e, portanto, a 67 proliferação de casos que atentem contra o direito de filiação da criança e seu senso de identidade. O terceiro grupo para o qual se buscou instituir proteção legal é o dos usuários das técnicas, que inclui todos os casais e mulheres que adquirem os serviços e produtos - gametas e embriões - dos estabelecimentos e profissionais de reprodução assistida. Essa proteção é requerida para se equilibrar essa relação comercial que apresenta, em uma ponta, indivíduos dispostos a tudo para realizar seu desejo de procriação, e, na outra, profissionais detentores unilaterais do conhecimento médico e remunerados substancialmente por seus serviços. A desigualdade dessa relação é agravada não só pelo envolvimento emocional dos candidatos a pais, que podem por isso mesmo ser facilmente engendrados em acertos indesejados, mas também pela pressão econômica exercida pela indústria de tecnologia médico-farmacêutica, sempre pronta a patrocinar e incentivar as atividades de seu interesse. Em relação aos usuários das técnicas, o principal objetivo do projeto foi zelar para que suas ações sejam tomadas de forma consciente, minimizando suas possibilidades de serem engendrados em situações das quais possam vir a se arrepender. Isso porque, além das conseqüências físicas para as mulheres e das conseqüências jurídicas relacionadas à paternidade da criança - que o projeto busca tornar vigentes - , existe ainda a questão da baixa efetividade das técnicas, contra seu alto custo em termos financeiros, psicológicos e biológicos. Os dados sobre a efetividade dos tratamentos apresentam taxas de sucesso de 20 a 35%, quatro a sete vezes maior do que a taxa de 5% obtida no início dos anos 80, mas ainda assim muito baixas, sobretudo ao se considerar o sofrimento físico e psicológico por que passam os usuários das técnicas. Na FIV, a mulher é submetida, em média, a quatro tentativas (uma por mês) até a gravidez. Se esta nunca sobrevém e o casal não está adequadamente preparado, assiste-se a um quadro de profunda depressão. Assinale-se que a escolha dos principais objetos de proteção da lei da forma acima explicitada orientou a redação dos demais dispositivos do projeto. Isso porque a qualidade da lei que busque regular a RA depende não só das distintas opções que se adotem diante das alternativas que se apresentam, mas também da 68 coerência dessas opções (se o corpo de um projeto de lei apresentar escolhas feitas sem a menor coerência entre si, limitando de um lado aquilo que permite de outro, na prática, a lei originada não regulamentará nada). Algumas das matérias abrangidas no projeto são bastante polêmicas, como a destinação a ser dada aos embriões excedentes. As diferentes possibilidades doação para terceiros, doação para pesquisas, preservação ou descarte - esbarram nas divergentes opiniões sobre o status existencial do embrião, opiniões que se baseiam em critérios éticos, religiosos ou filosóficos de cada pessoa. Alguns autores consideram que os embriões já são gente ou seres humanos em desenvolvimento, o que inviabilizaria o descarte, a doação para pesquisa e mesmo a criopreservação. Porém, conforme estatui magistrado membro da Associação Internacional de Magistrados para Assuntos de Menores, Turim, Itália, em artigo, já citado, que analisa as conseqüências da reprodução artificial sobre os direitos das crianças, as questões levantadas em relação à RA costumam ser abordadas de vários pontos de vista éticos ou religiosos. Isso, em sua opinião, não parece ser suficiente, pois ele considera que o papel do legislador não é fazer lei com base naquilo que alguns considerem estar de acordo com a vontade de Deus, nem no que a maioria dos cidadãos considerem estar de acordo com seus próprios princípios éticos. Quando as leis são feitas, elas devem também, e talvez principalmente, refletir o que parece ser útil para a totalidade de uma certa sociedade humana ou mesmo para toda a humanidade. Seguindo a linha até aqui adotada de escolher as opções menos danosas para as crianças do futuro, consideramos que o descarte dos embriões excedentes implica menores riscos do que a doação para terceiros ou para pesquisas. Além disso, como o projeto já propõe um tempo máximo de preservação permitido, não há outra alternativa senão o descarte - a não ser que se pretenda proibir a criação de embriões excedentes ou obrigar o emprego desses embriões na inseminação de terceiros ou em pesquisas, alternativas de difícil regulamentação e fiscalização. Outrossim, se proibíssemos a criação de embriões excedentes, estaríamos prejudicando os usuários, uma vez que se limitariam suas oportunidades de se submeterem novamente à técnica de RA, no caso de insucesso na primeira tentativa. 69 Não se pode esquecer, no entanto, que o Código Civil Brasileiro resguarda, desde o momento da concepção, os direitos do nascituro. Por essa razão, o projeto determina também que não se aplicam aos embriões fertilizados in vitro, antes de sua introdução no aparelho reprodutor da mulher receptora, os direitos garantidos ao nascituro na forma da lei. Chamamos mais uma vez a atenção para o fato de que, ao escolher a linha mestra de proteger a criança, este projeto fortalece o princípio da paternidade responsável erigido na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Não podemos nos esquecer, entretanto, que a tarefa de regulamentar a RA corresponde, de certa forma, a plagiar o Criador no momento em que Ele concedeu ao ser humano a capacidade de reproduzir-se espontânea e naturalmente. Assim, diante de tal responsabilidade, conclamamos nossos Pares a aperfeiçoar este projeto, com o intuito de buscarmos contribuir decisivamente para a qualidade de vida das crianças do futuro. Senador LÚCIO ALCANTARA ANEXO C – PROJETO DE LEI N° 1.184 DE 2003 PROJETO DE LEI Nº 1184, DE 2003 Dispõe sobre a Reprodução Assistida. O CONGRESSO NACIONAL decreta: CAPÍTULO I Dos Princípios Gerais Artigo 1° - Esta Lei regulamenta o uso das técnicas de Reprodução Assistida (RA) para a implantação artificial de gametas ou embriões humanos, fertilizados in vitro, no organismo de mulheres receptoras. Parágrafo Único. Para os efeitos desta Lei, atribui-se a denominação de: 70 I – embriões humanos: ao resultado da união in vitro de gametas, previamente à sua implantação no organismo receptor, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento; II – beneficiários: às mulheres ou aos casais que tenham solicitado o emprego da Reprodução Assistida; III – consentimento livre e esclarecido: ao ato pelo qual os beneficiários são esclarecidos sobre a Reprodução Assistida e manifestam, em documento, consentimento para a sua realização, conforme disposto no Capítulo II desta Lei. Artigo 2° - A utilização das técnicas de Reprodução Assistida será permitida, na forma autorizada nesta Lei e em seus regulamentos, nos casos em que se verifique infertilidade e para a prevenção de doenças genéticas ligadas ao sexo, e desde que: I – exista indicação médica para o emprego da Reprodução Assistida, consideradas as demais possibilidades terapêuticas disponíveis, segundo o disposto em regulamento; II – a receptora da técnica seja uma mulher civilmente capaz, nos termos da lei, que tenha solicitado o tratamento de maneira livre, consciente e informada, em documento de consentimento livre e esclarecido, a ser elaborado conforme o disposto no Capítulo II desta Lei; III - a receptora da técnica seja apta, física e psicologicamente, após avaliação que leve em conta sua idade e outros critérios estabelecidos em regulamento; IV – o doador seja considerado apto física e mentalmente, por meio de exames clínicos e complementares que se façam necessários. Parágrafo único Caso não se diagnostique causa definida para a situação de infertilidade, observar-se-á, antes da utilização da Reprodução Assistida, prazo mínimo de espera, que será estabelecido em regulamento e levará em conta a idade da mulher receptora. Artigo 3° - É proibida a gestação de substituição. CAPÍTULO II Do Consentimento Livre e Esclarecido 71 Artigo 4° - O consentimento livre e esclarecido será obrigatório para ambos os beneficiários, nos casos em que a beneficiária seja uma mulher casada ou em união estável, vedada a manifestação da vontade por procurador, e será formalizado em instrumento particular, que conterá necessariamente os seguintes esclarecimentos: I – a indicação médica para o emprego de Reprodução Assistida, no caso específico, com manifestação expressa dos beneficiários da falta de interesse na adoção de criança ou adolescente; II – os aspectos técnicos, as implicações médicas das diferentes fases das modalidades de Reprodução Assistida disponíveis e os custos envolvidos em cada uma delas; III – os dados estatísticos referentes à efetividade dos resultados obtidos no serviço de saúde onde se realizará o procedimento de Reprodução Assistida; IV – os resultados estatísticos e probabilísticos acerca da incidência e prevalência dos efeitos indesejados nas técnicas de Reprodução Assistida, em geral e no serviço de saúde onde esta será realizada; V – as implicações jurídicas da utilização de Reprodução Assistida; VI – os procedimentos autorizados pelos beneficiários, inclusive o número de embriões a serem produzidos, observado o limite disposto no art. 13 desta Lei; VII – as condições em que o doador ou depositante autoriza a utilização de seus gametas, inclusive postumamente; VIII – demais requisitos estabelecidos em regulamento. § 1º O consentimento mencionado neste artigo será também exigido do doador e de seu cônjuge ou da pessoa com quem viva em união estável e será firmado conforme as normas regulamentadoras, as quais especificarão as informações mínimas que lhes serão transmitidas. § 2º No caso do § 1º, as informações mencionadas devem incluir todas as implicações decorrentes do ato de doar, inclusive a possibilidade de a identificação do doador vir a ser conhecida. CAPÍTULO IIII 72 Dos Serviços de Saúde e Profissionais Artigo 5° - Os serviços de saúde que realizam a Reprodução Assistida são responsáveis: I – pela elaboração, em cada caso, de laudo com a indicação da necessidade e oportunidade para o emprego da técnica de Reprodução Assistida; II – pelo recebimento de doações e pelas fases de coleta, manuseio, controle de doenças infecto-contagiosas, conservação, distribuição e transferência do material biológico humano utilizado na Reprodução Assistida, vedando-se a transferência de sêmen doado a fresco; III – pelo registro de todas as informações relativas aos doadores e aos casos em que foi utilizada a Reprodução Assistida, pelo prazo de 50 (cinqüenta) anos; IV – pela obtenção do consentimento livre e esclarecido dos beneficiários de Reprodução Assistida, doadores e respectivos cônjuges ou companheiros em união estável, na forma definida no Capítulo II desta Lei; V – pelos procedimentos médicos e laboratoriais executados; VI – pela obtenção do Certificado de Qualidade em Biossegurança junto ao órgão competente; VII – pela obtenção de licença de funcionamento a ser expedida pelo órgão competente da administração, definido em regulamento. Parágrafo único. As responsabilidades estabelecidas neste artigo não excluem outras, de caráter complementar, a serem estabelecidas em regulamento. Artigo 6° - Para obter a licença de funcionamento, os serviços de saúde que realizam Reprodução Assistida devem cumprir os seguintes requisitos mínimos: I – funcionar sob a direção de um profissional médico, devidamente capacitado para realizar a Reprodução Assistida, que se responsabilizará por todos os procedimentos médicos e laboratoriais executados; II – dispor de equipes multiprofissionais, recursos técnicos e materiais compatíveis com o nível de complexidade exigido pelo processo de Reprodução Assistida; III – dispor de registro de todos os casos em que tenha sido empregada a Reprodução Assistida, ocorra ou não gravidez, pelo prazo de 50 (cinqüenta) anos; 73 IV – dispor de registro dos doadores e das provas diagnósticas realizadas, pelo prazo de 50 (cinqüenta) anos após o emprego do material biológico; V – encaminhar relatório semestral de suas atividades ao órgão competente definido em regulamento. § 1º A licença mencionada no caput deste artigo será válida por até 3 (três) anos, renovável ao término de cada período, desde que obtido ou mantido o Certificado de Qualidade em Biossegurança, podendo ser revogada em virtude do descumprimento de qualquer disposição desta Lei ou de seu regulamento. § 2º O registro citado no inciso III deste artigo deverá conter a identificação dos beneficiários e doadores, as técnicas utilizadas, a pré-seleção sexual, quando imprescindível, na forma do art. 15 desta Lei, a ocorrência ou não de gravidez, o desenvolvimento das gestações, os nascimentos, as malformações de fetos ou recém-nascidos e outros dados definidos em regulamento. § 3º Em relação aos doadores, o registro citado no inciso IV deste artigo deverá conter a identidade civil, os dados clínicos de caráter geral, foto acompanhada das características fenotípicas e uma amostra de material celular. § 4º As informações de que trata este artigo são consideradas sigilosas, salvo nos casos especificados nesta Lei. § 5º No caso de encerramento das atividades, os serviços de saúde transferirão os registros para o órgão competente do Poder Público, determinado no regulamento. CAPÍTULO IV Das Doações Artigo 7° - Será permitida a doação de gametas, sob a responsabilidade dos serviços de saúde que praticam a Reprodução Assistida, vedadas a remuneração e a cobrança por esse material, a qualquer título. § 1º Não será permitida a doação quando houver risco de dano para a saúde do doador, levando-se em consideração suas condições físicas e mentais. § 2º O doador de gameta é obrigado a declarar: I – não haver doado gameta anteriormente; 74 II – as doenças de que tem conhecimento ser portador, inclusive os antecedentes familiares, no que diz respeito a doenças genético-hereditárias e outras. § 3º Poderá ser estabelecida idade limite para os doadores, com base em critérios que busquem garantir a qualidade dos gametas doados, quando da regulamentação desta Lei. § 4º Os gametas doados e não-utilizados serão mantidos congelados até que se dê o êxito da gestação, após o quê proceder-se-á ao descarte dos mesmos, de forma a garantir que o doador beneficiará apenas uma única receptora. Artigo 8° - Os serviços de saúde que praticam a Reprodução Assistida estarão obrigados a zelar pelo sigilo da doação, impedindo que doadores e beneficiários venham a conhecer reciprocamente suas identidades, e pelo sigilo absoluto das informações sobre a pessoa nascida por processo de Reprodução Assistida. Artigo 9° - O sigilo estabelecido no art. 8º poderá ser quebrado nos casos autorizados nesta Lei, obrigando-se o serviço de saúde responsável pelo emprego da Reprodução Assistida a fornecer as informações solicitadas, mantido o segredo profissional e, quando possível, o anonimato. § 1º A pessoa nascida por processo de Reprodução Assistida terá acesso, a qualquer tempo, diretamente ou por meio de representante legal, e desde que manifeste sua vontade, livre, consciente e esclarecida, a todas as informações sobre o processo que o gerou, inclusive à identidade civil do doador, obrigando-se o serviço de saúde responsável a fornecer as informações solicitadas, mantidos os segredos profissional e de justiça. § 2º Quando razões médicas ou jurídicas indicarem ser necessário, para a vida ou a saúde da pessoa gerada por processo de Reprodução Assistida, ou para oposição de impedimento do casamento, obter informações genéticas relativas ao doador, essas deverão ser fornecidas ao médico solicitante, que guardará o devido segredo profissional, ou ao oficial do registro civil ou a quem presidir a celebração do casamento, que notificará os nubentes e procederá na forma da legislação civil. § 3º No caso de motivação médica, autorizado no § 2º, resguardar-se-á a identidade civil do doador mesmo que o médico venha a entrevistá-lo para obter maiores informações sobre sua saúde. 75 Artigo 10 - A escolha dos doadores será de responsabilidade do serviço de saúde que pratica a Reprodução Assistida e deverá assegurar a compatibilidade imunológica entre doador e receptor. Artigo 11 - Não poderão ser doadores os dirigentes, funcionários e membros de equipes, ou seus parentes até o quarto grau, de serviço de saúde no qual se realize a Reprodução Assistida. Parágrafo único. As pessoas absolutamente incapazes não poderão ser doadoras de gametas. Artigo 12 - O Titular do Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais fica obrigado a comunicar ao órgão competente previsto no art. 5º, incisos VI e VII, até o dia 10 de cada mês, o registro dos óbitos ocorridos no mês imediatamente anterior, devendo da relação constar a filiação, a data e o local de nascimento da pessoa falecida. § 1º No caso de não haver sido registrado nenhum óbito, deverá o Titular do Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais comunicar esse fato ao referido órgão no prazo estipulado no caput deste artigo. § 2º A falta de comunicação na época própria, bem como o envio de informações inexatas, sujeitará o Titular de Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais a multa variável de R$ 636,17 (seiscentos e trinta e seis reais e dezessete centavos) a R$ 63.617,35 (sessenta e três mil, seiscentos e dezessete reais e trinta e cinco centavos), na forma do regulamento. § 3º A comunicação deverá ser feita por meio de formulários para cadastramento de óbito, conforme modelo aprovado em regulamento. § 4º Deverão constar, além dos dados referentes à identificação do Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, pelo menos uma das seguintes informações relativas à pessoa falecida: I – número de inscrição do PIS/Pasep; II – número de inscrição do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, se contribuinte individual, ou número de benefício previdenciário - NB, se a pessoa falecida for titular de qualquer benefício pago pelo INSS; III – número do CPF; 76 IV – número de registro de Carteira de Identidade e respectivo órgão emissor; V – número do título de eleitor; VI – número do registro de nascimento ou casamento, com informação do livro, da folha e do termo; VII – número e série da Carteira de Trabalho. CAPÍTULO V Dos Gametas e Embriões Artigo 13 - Na execução da técnica de Reprodução Assistida, poderão ser produzidos e transferidos até 2 (dois) embriões, respeitada a vontade da mulher receptora, a cada ciclo reprodutivo. § 1º Serão obrigatoriamente transferidos a fresco todos os embriões obtidos, obedecido ao critério definido no caput deste artigo. § 2º Os embriões originados in vitro, anteriormente à sua implantação no organismo da receptora, não são dotados de personalidade civil. § 3º Os beneficiários são juridicamente responsáveis pela tutela do embrião e seu ulterior desenvolvimento no organismo receptor. § 4º São facultadas a pesquisa e experimentação com embriões transferidos e espontaneamente abortados, desde que haja autorização expressa dos beneficiários. § 5º O tempo máximo de desenvolvimento de embriões in vitro será definido em regulamento. Artigo 14 - Os serviços de saúde são autorizados a preservar gametas humanos, doados ou depositados apenas para armazenamento, pelos métodos e prazos definidos em regulamento. § 1º Os gametas depositados apenas para armazenamento serão entregues somente à pessoa depositante, não podendo ser destruídos sem sua autorização. § 2º É obrigatório o descarte de gametas: I – quando solicitado pelo depositante; 77 II – quando houver previsão no documento de consentimento livre e esclarecido; III – nos casos de falecimento do depositante, salvo se houver manifestação de sua vontade, expressa em documento de consentimento livre e esclarecido ou em testamento, permitindo a utilização póstuma de seus gametas. Artigo 15 - A pré-seleção sexual será permitida nas situações clínicas que apresentarem risco genético de doenças relacionadas ao sexo, conforme se dispuser em regulamento. CAPÍTULO VI Da Filiação da Criança Artigo 16 - Será atribuída aos beneficiários a condição de paternidade plena da criança nascida mediante o emprego de técnica de Reprodução Assistida. § 1º - A morte dos beneficiários não restabelece o poder parental dos pais biológicos. § 2º - A pessoa nascida por processo de Reprodução Assistida e o doador terão acesso aos registros do serviço de saúde, a qualquer tempo, para obter informações para transplante de órgãos ou tecidos, garantido o segredo profissional e, sempre que possível, o anonimato. § 3º - O acesso mencionado no § 2º estender-se-á até os parentes de 2º grau do doador e da pessoa nascida por processo de Reprodução Assistida. Artigo 17 - O doador e seus parentes biológicos não terão qualquer espécie de direito ou vínculo, quanto à paternidade ou maternidade, em relação à pessoa nascida a partir do emprego das técnicas de Reprodução Assistida, salvo os impedimentos matrimoniais elencados na legislação civil. Artigo 18 - Os serviços de saúde que realizam a Reprodução Assistida sujeitam-se, sem prejuízo das competências de órgão da administração definido em regulamento, à fiscalização do Ministério Público, com o objetivo de resguardar a saúde e a integridade física das pessoas envolvidas, aplicando-se, no que couber, as disposições da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). 78 CAPÍTULO VII Das Infrações e Penalidades Artigo 19 - Constituem crimes: I – praticar a Reprodução Assistida sem estar habilitado para a atividade: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa; II – praticar a Reprodução Assistida sem obter o consentimento livre e esclarecido dos beneficiários e dos doadores na forma determinada nesta Lei ou em desacordo com os termos constantes do documento de consentimento por eles assinado: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa; III – participar do procedimento de gestação de substituição, na condição de beneficiário, intermediário ou executor da técnica: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa; IV – fornecer gametas depositados apenas para armazenamento a qualquer pessoa que não o próprio depositante, ou empregar esses gametas sem sua prévia autorização: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa; V – deixar de manter as informações exigidas na forma especificada, não as fornecer nas situações previstas ou divulgá-las a outrem nos casos não autorizados, consoante as determinações desta Lei: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa; VI – utilizar gametas de doadores ou depositantes sabidamente falecidos, salvo na hipótese em que tenha sido autorizada, em documento de consentimento livre e esclarecido, ou em testamento, a utilização póstuma de seus gametas: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa; VII – implantar mais de 2 (dois) embriões na mulher receptora: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa; 79 VIII – realizar a pré-seleção sexual de gametas ou embriões, ressalvado o disposto nesta Lei: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa; IX – produzir embriões além da quantidade permitida: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa; X – armazenar ou ceder embriões, ressalvados os casos em que a implantação seja contra-indicada: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa; XI – deixar o médico de implantar na mulher receptora os embriões produzidos, exceto no caso de contra-indicação médica: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa; XII – descartar embrião antes da implantação no organismo receptor: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa; XIII – utilizar gameta: a) doado por dirigente, funcionário ou membro de equipe do serviço de saúde em que se realize a Reprodução Assistida, ou seus parentes até o quarto grau; b) de pessoa incapaz; c) de que tem ciência ser de um mesmo doador, para mais de um beneficiário; d) sem que tenham sido os beneficiários ou doadores submetidos ao controle de doenças infecto-contagiosas e a outros exames complementares: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. Parágrafo único. Ao aplicar as medidas previstas neste artigo, o juiz considerará a natureza e a gravidade do delito e a periculosidade do agente. Artigo 20 - Constituem crimes: I – intervir sobre gametas ou embriões in vitro com finalidade diferente das permitidas nesta Lei: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa; 80 II – utilizar o médico do próprio gameta para realizar a Reprodução Assistida, exceto na qualidade de beneficiário: Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa; III – omitir o doador dados ou fornecimento de informação falsa ou incorreta sobre qualquer aspecto relacionado ao ato de doar: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa; IV – praticar o médico redução embrionária, com consentimento, após a implantação no organismo da receptora, salvo nos casos em que houver risco de vida para a mulher: Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos; V – praticar o médico redução embrionária, sem consentimento, após a implantação no organismo da receptora, salvo nos casos em que houver risco de vida para a mulher: Pena – reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos. Parágrafo único. As penas cominadas nos incisos IV e V deste artigo são aumentadas de 1/3 (um terço), se, em conseqüência do procedimento redutor, a receptora sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, pela mesma causa, lhe sobrevém a morte. Artigo 21 - A prática de qualquer uma das condutas arroladas neste Capítulo acarretará a perda da licença do estabelecimento de Reprodução Assistida, sem prejuízo das demais sanções legais cabíveis. CAPÍTULO VIII Das Disposições Finais Artigo 22 - Os embriões conservados até a data de entrada em vigor desta Lei poderão ser doados exclusivamente para fins reprodutivos, com o consentimento prévio dos primeiros beneficiários, respeitados os dispositivos do Capítulo IV. Parágrafo único. Presume-se autorizada a doação se, no prazo de 60 (sessenta) dias, os primeiros beneficiários não se manifestarem em contrário. 81 Artigo 23 - O Poder Público promoverá campanhas de incentivo à utilização, por pessoas inférteis ou não, dos embriões preservados e armazenados até a data de publicação desta Lei, preferencialmente ao seu descarte. Artigo 24 - O Poder Público organizará um cadastro nacional de informações sobre a prática da Reprodução Assistida em todo o território, com a finalidade de organizar estatísticas e tornar disponíveis os dados sobre o quantitativo dos procedimentos realizados, a incidência e prevalência dos efeitos indesejados e demais complicações, os serviços de saúde e os profissionais que a realizam e demais informações consideradas apropriadas, segundo se dispuser em regulamento. Artigo 25 - A Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 8º-A: “Art. 8º-A. São vedados, na atividade com humanos, os experimentos de clonagem radical através de qualquer técnica de genetecnologia.” Artigo 26 - O art. 13 da Lei nº 8.974, de 1995, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso IV, renumerando-se os demais: “Art. 13... IV – realizar experimentos de clonagem humana radical através de qualquer técnica de genetecnologia;...” (NR) Artigo 27 - Esta Lei entra em vigor 180 (cento e oitenta) dias a partir da data de sua publicação. Senador José Sarney Presidente do Senado Federal ANEXO D – PROJETO DE LEI N° 120 DE 2003 PROJETO DE LEI Nº 120, DE 2003 Autor: Deputado Roberto Pessoa Dispõe sobre a investigação de paternidade de pessoas nascidas de técnicas de reprodução assistida. 82 O CONGRESSO NACIONAL decreta: Artigo 1° - Esta Lei trata da investigação de paternidade de pessoas nascidas de técnicas de reprodução assistida. Artigo 2° - A Lei 8560, de 29 de dezembro de 1992 passa a vigorar com o acréscimo do seguinte Art. 6º A: “Art. 6º A - A pessoa nascida de técnicas de reprodução assistida tem o direito de saber a identidade de seu pai ou mãe biológicos, a ser fornecido na ação de investigação de paternidade ou maternidade pelo profissional médico que assistiu a reprodução ou, se for o caso, de quem detenha seus arquivos. Parágrafo único A maternidade ou paternidade biológica resultante de doação de gametas não gera direitos sucessórios.” Artigo 3° - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. JUSTIFICATIVA As técnicas de fertilização assistida se sofisticam a cada dia, e tal matéria não tem sido objeto de preocupação do legislador pátrio. Embora as discussões sobre o tema já estejam bem avançadas na área médica, sempre sob a óptica da bioética, os juristas ainda não se debruçaram realmente sobre um tema que, potencialmente, poderá gerar inúmeros conflitos no futuro. Teria o nascido da doação de gametas alguma relação civil com sua família biológica? Poderia usar o nome de seus genitores biológicos? Teria direito à herança? E nesse caso, como ficaria sua relação com a família da mãe que o carregou no útero e o criou? Poderia a pessoa nascida dessas técnicas ter duplicidade de direito ao nome de cada família? Teria que optar? Em que ocasião? Haveria algum direito civil do ovo congelado em laboratório, como se nascituro fosse? Todas essas questões e muitas outras permanecem sem resposta. Este Projeto não visa solucionar todas essas questões, mas se debruça sobre um tema 83 que é essencial para a solução de todas as outras: a garantia de que a pessoa nascida de técnicas de fertilização assistida tem direito de conhecer seus pais biológicos. Tal tema não pode estar acobertado pelo direito à privacidade, uma vez que gera outra pessoa, e não há como se optar por quem tem mais direitos: se o filho gerado ou o pai biológico. Por ser uma proposição que, acreditamos, seja um marco na tentativa de legislar sobre tão importante matéria, pedimos aos Nobres Pares a aprovação deste Projeto. Sala das Sessões, em 2003 Deputado Roberto Pessoa ANEXO E – PROJETO DE LEI N° 4.686 DE 2004 PROJETO DE LEI Nº 4686, DE 2004 Autor: Deputado José Carlos Araújo Introduz art. 1.597-A à Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil, assegurando o direito ao conhecimento da origem genética do ser gerado a partir de reprodução assistida, disciplina a sucessão e o vínculo parental, nas condições que menciona. O CONGRESSO NACIONAL decreta: Artigo 1º - Esta lei acrescenta artigo 1597-A ao Capítulo II, do Subtítulo II, do Livro IV, do Código Civil, de forma a assegurar o direito ao conhecimento da origem genética ao ser humano gerado por técnicas de reprodução assistida (RA) e define o direito sucessório e o vínculo parental, nas condições que menciona. Artigo 2º - A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 1597-A: “Art. 1597- A. As instituições de saúde, detentoras de licença de funcionamento concedidas na forma da lei, que realizarem Reprodução Assistida, e os profissionais responsáveis pela execução dos procedimentos médicos e laboratoriais pertinentes, 84 estarão obrigadas a manter em arquivo sigiloso, e zelar pela sua manutenção, todas as informações relativas ao processo, às identidades do doador e da pessoa nascida por processo de inseminação artificial heteróloga, de que trata o inciso V, do artigo anterior. § 1º. À pessoa nascida pelo processo a que alude este artigo é assegurado o acesso, a qualquer tempo, diretamente ou por meio de representante legal, e desde que manifeste sua vontade, livre e consciente, a todas as informações sobre o processo que a gerou, inclusive a identidade civil do doador e mãe biológica, obrigando-se o serviço de saúde responsável a fornecer as informações solicitadas, mantidos os segredos profissionais e de justiça. § 2º A maternidade ou paternidade biológica resultante de processo de reprodução assistida heteróloga não gera direitos sucessórios. § 3º O conhecimento da verdade biológica impõe a aplicação dos artigos 1521, 1596, 1626, 1628 (segunda parte) deste Código.” Artigo 3º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. JUSTIFICAÇÃO Os progressos da engenharia genética revolucionaram o Direito de Família, sobretudo no que concerne às questões da paternidade e maternidade. Diante desta realidade, demonstra-se de forma contundente que não se pode ignorar o avanço da pesquisa científica a possibilitar as várias formas de reprodução humana. As profundas mudanças sociais que estas técnicas produzem geram efeitos pessoais, jurídicos, morais, éticos e psicológicos no indivíduo e nas relações familiares. Nesse sentido, o conhecimento da verdade biológica a respeito da origem do indivíduo gerado nestas condições mostra-se imprescindível, já que com o avanço inconteste da Engenharia Genética é possível saber com segurança a identidade genética do ser humano. Entendemos, deste modo, que não deve ser negada a revelação da origem genética aos indivíduos concebidos pelas técnicas de reprodução humana. 85 Busca-se, com tal direito, a compreensão das características físicas, psíquicas e comportamentais, até então desconhecidas, permitindo ao ser concebido nessas condições conviver com o imenso amor que os fez filhos afetivos e definitivos de quem desejou o seu nascimento, superando suas próprias limitações, preconceitos e resistência do grupo social.. Entendemos que a possibilidade de o ser conviver com a verdade decorrente do conhecimento de sua origem genética representa uma forma de proteção muito mais digna do que uma existência fundada na mentira ou negação da verdade, suscetível de produzir lesão ao indivíduo. A Constituição Federal estabelece que constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, ( artigo 3º, inciso IV) e também, no seu artigo 5º, inciso XLI, assegura que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. Assim, em consonância com este princípio tais informações genéticas devem ser transmitidas ao ser concebido quando este tiver maturidade suficiente para entender tal situação, e também quando tiver condições para suportar psicologicamente a realidade ou quando isto se fizer necessário para preservação de sua saúde e integridade física. Esse direito, também, pode ser conveniente se o filho vier a sofrer alguma enfermidade vinculada a herança genética, ou então, queira prevenir tais doenças. É importante também esclarecer que o conhecimento da identidade biológica, embora de suma importância, não poderá estabelecer nenhum vínculo parental entre o ser concebido e a pessoa do doador. Tal possibilidade poderá ainda contribuir para a aplicação do artigo 1521, inciso I, II, III, IV e V do Código Civil, que dispõem sobre os impedimentos matrimoniais Da mesma forma, também não poderá, nestas condições, haver casamento entre o doador de gametas e filhos de seu próprio matrimônio ou em virtude de doações, a fim resguardar a eugenia das raças e da coletividade A procriação assistida heteróloga confere aos pais civis a autoridade parental do filho. E como titulares deste direito, os pais terão os deveres de assistir material e 86 moralmente os filhos menores na criação e educação, conforme artigos 1630 e seguintes do Código Civil, eo 229 da Constituição Federal. Além disso, os indivíduos concebidos por técnica de reprodução assistida heteróloga não poderão ter direito a alimentos em relação aos seus pais biológicos mesmo sabendo quem são, pois para o direito pátrio seus pais civis são quem possuem o pátrio poder e o vínculo paterno- filial. Ou seja, entre pais e filhos não deverá haver nenhum vínculo, nem paternal, nem patrimonial, bem como direito sucessório entre a pessoa concebida por técnica medicamente assistida heteróloga e o doador de gametas. O conhecimento da origem genética não modifica em nada as relações jurídico-familiares que tal indivíduo possui com seus pais e sua família afetiva. Enfim, negando-se a origem genética, nega-se a dignidade ao filho concebido por técnica medicamente assistida, confrontando assim a nossa Carta Magna, já que o respeito à pessoa humana é fundamento do Estado Democrático de Direito, instaurado como princípio constitucional no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal. Em suma, a pessoa tem o direito de saber quem são seus pais biológicos, mesmo que não venha a ter nenhuma relação paterno-filial com os mesmos. É com esse objetivo que submeto à consideração dessa Casa o presente Projeto de Lei, esperando assim estar contribuindo para o aperfeiçoamento do ordenamento jurídico brasileiro. Sala das Sessões, em 15 de dezembro de 2004. Deputado José Carlos Araújo Deputado Federal
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