Pesquisa na internet: considerações metodológicas (PDF

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Pesquisa na internet: considerações metodológicas (PDF
XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE
E PRÉ-ALAS BRASIL
04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI
Grupo de Trabalho: GT 14 – Mídia, cultura e sociedade
Pesquisa na internet: considerações metodológicas
Micheline Dayse Gomes Batista (UFPE)
[email protected]
Pesquisa na internet: considerações metodológicas
Micheline Dayse Gomes Batista1
Enquanto nova mídia, a internet vem atraindo cada vez mais o interesse de
pesquisadores. Seja para buscar conhecer quem são e o que fazem os usuários da
rede mundial de computadores, seja utilizando a Web como plataforma para acessar
informantes em pesquisas de temas tradicionais. Mas, ao contrário do que muita
gente pensa, fazer pesquisa na internet não é fácil. De fato, esse tipo de pesquisa
não demanda muito tempo nem grandes investimentos, seja adotada uma
perspectiva quantitativa ou qualitativa. No entanto, a experiência tem mostrado que
não basta conhecer e transpor técnicas e métodos da pesquisa tradicional para o
ambiente
online.
É
preciso,
antes de
tudo,
adaptá-las considerando
as
peculiaridades desse universo, sua cultura, enxergar seus potenciais e limitações a
fim de encontrar novos caminhos. Neste trabalho, pretendemos abordar, ainda que
de forma sintética, a utilização da internet para coleta de dados e os desafios
metodológicos da pesquisa qualitativa online, utilizando um exemplo empírico. A
título de introdução, falaremos um pouco sobre o que é a internet e como ela vem
revolucionando a sociedade contemporânea sob os mais diversos aspectos2.
Como nos explica Lemos (2004), a internet nasce na Advanced Research and
Projects Agency (ARPA) no fim dos anos 1960. Essa rede, a ARPANet, tinha como
objetivo conectar as bases militares do Departamento de Defesa dos Estados
Unidos. Com a invenção do microcomputador, na década de 1970, a internet foi
além dos muros das organizações militares, miniaturizando uma parafernália de
equipamentos que chegavam a ocupar salas inteiras. Em meados dos anos 1990
veio o boom da internet, com sua roupagem gráfica e comercial – a World Wide
Web, ou www – disseminando uma nova relação entre a informática e a sociedade.
Até então, a internet estava restrita ao uso acadêmico e militar – era uma espécie de
correio contendo apenas mensagens de texto, a exemplo dos BBS (Bulletin Board
System) e do Minitel francês (Cf. CASTELLS, 1999).
Castells (1999:414) compara o atual momento tecnológico em que vivemos à
revolução provocada pela invenção do alfabeto na Grécia antiga. “Uma
1
Jornalista e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE).
2
O trecho a seguir desta introdução deriva de parte do capítulo 2 do meu estudo de mestrado
(BATISTA, 2010).
transformação tecnológica de dimensões históricas similares está ocorrendo 2.700
anos depois, ou seja, a integração de vários modos de comunicação em uma rede
interativa”. Para o autor, esse novo sistema eletrônico de comunicação e
interatividade potencial “está mudando e mudará para sempre nossa cultura”. A
internet integra num mesmo sistema modalidades importantes da comunicação
humana – escrita, oral e audiovisual – através de hipertextos que, segundo Lévy
(1993), podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou partes de gráficos,
sequências sonoras, documentos.
A noção de hipertexto trazida por Lévy é fundamental para entendermos a
velocidade dos tempos atuais e as significações que começam a fazer parte desse
jogo. “A estrutura do hipertexto não dá conta somente da comunicação. Os
processos sociotécnicos, sobretudo, também têm uma forma hipertextual, assim
como vários outros fenômenos” (LEVY, 1993:25). O autor apresenta o hipertexto,
tecnicamente descrito como “um conjunto de nós ligados por conexões”, como uma
possível metáfora para todas as esferas da realidade.
“Uma coisa é certa: vivemos hoje em uma destas épocas limítrofes na
qual toda a antiga ordem das representações e dos saberes oscila para
dar lugar a imaginários, modos de conhecimento e estilos de regulação
social ainda pouco estabilizados. Vivemos um destes raros momentos
em que, a partir de uma nova configuração técnica, quer dizer, de uma
nova relação com o cosmos, um novo estilo de humanidade é
inventado.” (LÉVY, 1993:17)
A Web, sem dúvida, criou um espaço inédito de informação sem fronteiras,
dando um novo impulso ao processo de globalização do planeta. Uma das
consequências disso foi a superexposição de individualidades, sobretudo no que se
refere às redes sociais (Orkut, Facebook, MySpace), nas quais os indivíduos
compartilham informações pessoais, fotos, vídeos, trocam mensagens com amigos.
Nunca se esteve tão perto e tão distante ao mesmo tempo. Nos blogs, ou diários
virtuais, surge um local para a manifestação de opiniões, principalmente para
anônimos. Com o Twitter, serviço de microblog criado em 2006 e que virou febre a
partir de 2009, esse espaço foi radicalizado. Mensagens curtas, de até 140
caracteres, atualizam o status das pessoas onde quer que elas estejam – no ônibus,
na rua, em casa, na escola, no trabalho – e são publicadas instantaneamente nas
páginas de seus seguidores. Basta ter um dispositivo conectado a internet, seja um
PC, notebook, tablet ou celular. Vivemos a era da hiperconectividade.
Para o estudioso das mídias Roger Silverstone,
“novas tecnologias, novas mídias, cada vez mais convergentes pelo
mecanismo da digitalização, estão transformando o tempo e o espaço
sociais e culturais. Esse novo mundo não pára: 24 horas de noticiário,
24 horas de serviços financeiros. Acesso instantâneo, em todo o globo,
à World Wide Web. Comércio interativo e sociabilidade interativa em
economias e comunidades virtuais. Uma vida a ser vivida on-line.”
(SILVERSTONE, 2005:46).
O autor observa que, apesar da “nova mídia” ter sido construída sobre as
bases da velha (imprensa, telégrafo, telefone, rádio, TV), caracterizando-se apenas
como uma nova maneira de produzir e transmitir significados, ainda não dá para
saber que consequências ela terá na vida social, econômica ou política. Por isso é
preciso tratar o tema da pesquisa na internet com cuidado. Tudo é muito novo e nos
leva a um caminho que, apesar de se mostrar aparentemente fácil, pode se revelar
espinhoso. Mesmo porque todo o campo da pesquisa social passa por uma profunda
mudança desde a década de 1970, abrangendo tanto a dimensão epistemológica
quanto metodológica e, mais diretamente, as técnicas de pesquisa (MELUCCI,
2005). Essa mudança está associada a processos típicos de sociedades complexas
onde os indivíduos se tornam altamente diferenciados, reflexivos e “são abastecidos
de recursos para conceberem-se e para agirem como sujeitos autônomos de ação”.
A utilização da internet para coleta de dados
Passadas quase duas décadas do surgimento da Web – o primeiro
navegador, o Netscape, foi lançado em dezembro de 1994 –, a maioria das
pesquisas online que encontramos ainda são levantamentos quantitativos,
questionários enviados por e-mail ou enquetes baseadas na Web. Ou seja, a rede
mundial de computadores vem sendo mais frequentemente utilizada como uma
ferramenta a mais de pesquisa, para aplicação de questionários tradicionais
idênticos àqueles que circulam offline. As primeiras abordagens eram voltadas à
análise dos números e das experiências de usuários da internet (MITRA & COHEN
apud FLICK, 2009:239), mas hoje encontramos pesquisas que versam sobre os
mais diversos temas. Segundo Flick (2009:240), tem crescido o uso de técnicas
qualitativas como a entrevista online, a observação participante, a etnografia virtual e
os grupos focais. De acordo com o autor, alguns desses métodos podem ser
transferidos e aplicados com alguma facilidade à Web, com pequenas modificações.
Depois de decidir pelo tipo de abordagem da pesquisa a ser realizada pela
internet, se quantitativa ou qualitativa, e que técnicas pretende utilizar (enquete,
entrevista, grupo focal etc.), o pesquisador deve escolher os métodos que vão
conduzir seu estudo. Bryman (2008a) nos oferece duas “distinções cruciais” entre os
métodos existentes de pesquisa na internet. A primeira delas se refere ao ambiente
de coleta de dados, que pode ser baseado na Web (web-based) ou baseado na
comunicação (communication-based). O primeiro diz respeito aos dados que são
coletados através da internet, como os questionários online que os participantes são
convidados a completar. O segundo está relacionado à utilização de meios de
comunicação online, como o correio eletrônico e, acrescento, as plataformas de
mensagens instantâneas (chats) como o MSN Messenger e o GTalk.
A segunda distinção metodológica feita pelo autor é a opção entre métodos
síncronos ou assíncronos. O primeiro método é aplicado em tempo real, como no
caso dos chats, onde o entrevistador pergunta e o entrevistado responde
imediatamente, uma vez que se encontra online. Já o método assíncrono não é em
tempo real, portanto, nesse caso, não há resposta imediata. Um exemplo é o
questionário enviado por e-mail. A resposta pode levar dias, talvez até semanas,
para ser enviada.
Não são poucas as vantagens apontadas quando se opta pela pesquisa
online, seja de cunho quantitativo ou qualitativo. Bryman (2008a) nos apresenta
quatro delas: a) é mais econômica, tanto em relação ao tempo de realização quanto
em termos de custos; b) pode alcançar facilmente um grande número de pessoas; c)
a distância não se constitui um problema, pois os participantes precisam apenas ter
acesso a um computador; e d) os dados podem ser coletados e colados
rapidamente. Ou seja, já que não há necessidade de transcrição, os dados são
processados mais facilmente.
Por outro lado, existem as desvantagens. Entre elas, ainda segundo Bryman,
a) o acesso à internet ainda não é universal, então certas pessoas ainda são
inacessíveis; b) convites para responder uma pesquisa podem ser vistos apenas
como lixo eletrônico; c) perde-se o toque pessoal – há uma lacuna entre
entrevistadores e entrevistados, perde-se o contato visual; e d) há uma preocupação
entre os participantes acerca da confidencialidade das respostas e medo de fraudes
e ataques de hackers.
Flick (2009) também aponta a perda dos elementos não-verbais (como a
intensidade do olhar) ou paralinguísticos, difíceis de transportar e de integrar, como
uma das desvantagens da pesquisa online. Por outro lado, podemos lançar mão de
uma série de elementos intertextuais comumente utilizados na comunicação online,
como os emoticons (risadas, choro, raiva, piscadelas etc). Coisas que a literatura
atual sobre o assunto ainda não considera, ou pelo menos ainda não considera
amplamente. Sem falar na possibilidade de utilização de chat com vídeo (webcam),
capaz de proporcionar o contato visual entre entrevistador e entrevistado.
Outra questão que se coloca quando se fala em pesquisa online diz respeito à
confiabilidade dos dados demográficos (sexo, idade, localização etc.) repassados
pelos informantes (FLICK, 2009). Isso pode trazer, por exemplo, problemas de
amostragem, já que na pesquisa feita remotamente não é possível checar essas
informações. Entretanto, como na pesquisa censitária do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), onde a raça é autodeclarada, creio que na pesquisa
online é necessário considerar o que as pessoas declaram, sem se preocupar com o
fato da informação ser verdadeira ou não. Obviamente, a tensão entre o real e o
virtual – e as mentiras e fantasias que podem decorrer dessa relação – nunca deixa
de existir. Mas Castells (2003) ilustra com bastante propriedade como alguns
estudos distorcem a imagem da prática social que ocorre na internet. Para este
autor, a sociabilidade online é uma extensão da vida real, mesmo que envolva a
representação de papéis, simplesmente porque o que há por trás de toda tela de
computador são pessoas de carne e osso. Vejamos:
a proliferação de estudos sobre esse assunto distorceu a percepção
pública da prática social da Internet, mostrando-a como terreno
privilegiado para as fantasias pessoais. O mais das vezes, ela não é
isso. É uma extensão da vida como ela é, em todas as suas dimensões
e sob todas as suas modalidades. Ademais, mesmo na representação
de papéis e nas salas informais de chat, vidas reais (inclusive vidas
reais on-line) parecem moldar a interação on-line. (CASTELLS,
2003:99-100)
Também Bryman (2008a) coloca que as distinções online/offline estão se
tornando menos significativas, senão desaparecendo, já que as pessoas estão
crescendo com a internet e passando cada vez mais tempo online. Arrisco-me a
dizer que o “véu da virtualidade” traz, pelo menos, uma vantagem: o anonimato.
Para Flick (2009:243), isso pode proteger os informantes de qualquer revelação de
suas identidades tanto durante a pesquisa quanto na divulgação de seus resultados.
Já as questões éticas que eventualmente se levanta sobre a pesquisa na
internet, a meu ver, são as mesmas da pesquisa tradicional. Coletar dados apenas
para um objetivo específico e legítimo, proteção contra o mau uso e acesso não
autorizado, obtenção de consentimento, garantia de anonimato etc. Flick (2009: 252)
não considera legítimo “espreitar” chats ou salas de bate-papo, mas como situamos,
nesse caso, a etnografia na internet? Se o desenvolvimento da pesquisa online está
apenas começando, algumas questões ainda seguem sem resposta. Sem dúvida, há
uma “netiqueta” a seguir, mas fica evidente que o código de ética tradicional precisa
ser revisto de modo a contemplar essas novas questões, possibilidade que Bryman
(2008a), por exemplo, já considera.
Pesquisa qualitativa na internet: desafios metodológicos
As transformações mencionadas por Melucci (2005) que estariam ocorrendo
no campo da pesquisa social desde a década de 1970 têm como principal motor
uma maior valorização da experiência individual. Para este autor, essa experiência
“não pode ser enfrentada em termos cognoscivos unicamente com os instrumentos
da pesquisa quantitativa”. Isso estaria gerando não apenas o interesse, mas a
necessidade de desenvolver e adotar métodos do tipo qualitativo.
Da mesma forma, a crescente valorização da vida cotidiana enquanto espaço
onde os indivíduos podem construir ativamente o sentido da própria ação também
tem apontado para a necessidade de uma abordagem qualitativa, pois expõe as
dimensões culturais da ação humana. Ainda de acordo com Melucci, essa mudança
de perspectiva estaria diretamente relacionada a contribuições teóricas importantes
para as ciências sociais, como a virada linguística, a hermenêutica e os estudos de
gênero e culturais, entre outras. Em termos epistemológicos, esses processos têm
nos levado, por exemplo, a colocar a linguagem em um lugar central e a refletir
sobre o papel do observador no campo. O observador não está mais isolado – ele
interage com o observado e com o campo e nessa interralação são produzidos
novos sentidos, novos conhecimentos. Trata-se de uma relação contingente, onde
toda observação é já uma intervenção.
Segundo Bryman (2008b:366),
a pesquisa qualitativa possui quatro
características básicas: i) uma visão indutiva da relação entre teoria e pesquisa,
onde a teoria é gerada fora do campo empírico; ii) uma posição epistemológica
interpretativista, significando que o entendimento do mundo social é obtido através
da interpretação do mundo por seus participantes (incluindo observador e
observado); e iii) uma posição ontológica descrita como construcionista, na qual as
propriedades sociais são resultado das interações entre indivíduos. Um ponto de
partida interessante para pensarmos a pesquisa qualitativa, adotado, por exemplo,
por Gaskell (2002:65), “é o pressuposto de que o mundo social não é um dado
natural, sem problemas: ele é ativamente construído por pessoas em suas vidas
cotidianas, mas não sob condições que elas mesmas estabeleceram.”
A pesquisa qualitativa tem um significado diferente em cada um desses
momentos. No entanto, pode-se oferecer uma definição genérica,
inicial: a pesquisa qualitativa é uma atividade situada que localiza o
observador no mundo. Consiste em um conjunto de práticas materiais
e interpretativas que dão visibilidade ao mundo. Essas práticas
transformam o mundo em uma série de representações, incluindo as
notas de campo, as entrevistas, as conversas, as fotografias, as
gravações e os lembretes. Nesse nível, a pesquisa qualitativa envolve
uma abordagem naturalista, interpretativa, para mundo, o que significa
que seus pesquisadores estudam as coisas em seus cenários naturais,
tentando entender, ou interpretar, os fenômenos em termos dos
significados que as pessoas a eles conferem. (DENZIN & LINCOLN,
2006:17).
O momento atual da pesquisa qualitativa, que estaria em vigor desde o ano
2000, é descrito por alguns autores como sendo marcado pela dúvida e pela recusa
em privilegiar qualquer método ou teoria. A ideia é a de que não precisamos ter uma
visão fechada. Existem muitas formas de contar histórias e nenhuma delas pode ser
considerada a forma “correta” ou “verdadeira”. Tudo depende da perspectiva que se
adota e da interpretação que vai sendo construída no campo e fora dele. Se
adotamos o paradigma construtivista,
de inspiração pós-moderna
e pós-
estruturalista, rejeitamos a adoção de “qualquer padrão permanente, invariável (ou
'fundacionalista') por meio do qual a verdade pode ser conhecida universalmente”
(LINCOLN & GUBA, 2006:182). Os acordos sobre o que é verdadeiro ou não
surgem a partir de diálogos, o que também nos leva a buscar inspiração no
paradigma participativo, cuja ontologia diz que a realidade é subjetiva e objetiva ao
mesmo tempo – ou seja, é intersubjetiva. Em termos metodológicos, esse novo
paradigma faz uso da linguagem baseado no contexto experimental compartilhado.
Todas essas preocupações devem ser levadas em conta por aqueles que planejam
uma pesquisa na internet.
Second Life: um estudo empírico
No meu estudo de mestrado (BATISTA, 2010), optei por triangular
observação participante e entrevistas em profundidade. A triangulação é uma forma
de expor, simultaneamente, realidades múltiplas, utilizando diversas perspectivas
teóricas, fontes de dados e metodologias (Cf. BRYMAN, 2008b:379). Seria uma
maneira de checar, validar e tornar os dados mais confiáveis. No caso da
observação participante, elegi como “lugar” o Second Life (SL), objeto empírico da
pesquisa, plataforma da internet considerada ora um jogo ora uma rede social.
Segundo Flick (2009:246), a rede mundial de computadores pode ser considerada
uma ferramenta para estudar pessoas, através de entrevistas individuais e grupos
focais, mas também um lugar ou um modo de ser.
A etnografia virtual requer que se passe algum tempo observando o que os
participantes fazem online e o que eles dizem que fazem. “Isso se assemelha ao
modo como os etnógrafos tornam-se participantes e observadores em comunidades
do mundo real e em culturas. A diferença é que a etnografia virtual é situada em um
ambiente técnico em vez de um ambiente natural” (FLICK, 2009:246). Flick
argumenta que alguns elementos da etnografia podem ser transpostos para o meio
virtual sem problemas, enquanto outros precisam ser reformulados. A presença do
etnógrafo no campo é exigida nos dois casos, mas no virtual a própria noção de
“lugar da interação” ou “lugar do campo” é questionada, porque não há limites.
Muitas vezes, “o lugar” só se torna claro no decorrer do estudo.
Tenho adotado nas minhas pesquisas um modelo misto de observação.
Primeiro, torno-me nativa e observo clandestinamente. “Segundo esta lógica, a
dissimulação do papel do pesquisador e sua plena participação lhe possibilitariam o
acesso a informações privilegiadas, incluindo aquela que ele recebe de sua própria
experiência” (CAPLOW, 1970, apud JACCOUD & MAYER, 2008:264). Observo,
pois, o que eu própria vivencio e acredito que isso enriquece bastante o material.
Numa segunda etapa, escolho alguns observados para revelar minha identidade de
pesquisadora e faço um convite à entrevista individual. O trabalho de observação –
agora de forma direta – continua durante e depois das entrevistas com os indivíduos
selecionados. Jaccoud & Mayer colocam que a observação direta tem lá suas
vantagens, “tais como a redução das tensões ligadas às questões éticas, uma maior
mobilidade física e social do pesquisador e um questionamento mais sistemático e
exaustivo”.
Quando iniciei meu estudo de mestrado, em 2008, transformei meu avatar,
Micheline Beerbaum, em um avatar-pesquisador. Passei, então, a registrar as
observações em um diário de campo, fazendo anotações a cada vez que entrava no
jogo, descrevendo os locais visitados, as pessoas encontradas pelo caminho e
transcrevendo alguns diálogos eventuais. Conduzi o estudo etnográfico circulando
anonimamente por diversas “ilhas” do SL (pedaços de terra que simulam lugares
reais ou imaginários como ruas, parques, shoppings, cidades), abordando e
entabulando conversas com usuários. Também realizei dezenas de registros
fotográficos. Como jogadora, pude vivenciar ativamente as possibilidades de
ressignificação corporal e de experimentações identitárias existentes no jogo.
Constatei que ali o jogador pode vestir muitas máscaras de forma fluida,
descompromissada, pode vivenciar fantasias que não são possíveis ou que não se
quer viver no mundo offline.
Abaixo, um trecho pinçado do relatório que ilustra como coletei e analisei os
dados da observação participante. Descrevo o personagem encontrado a partir da
imagem que capturei e o diálogo que tivemos, analisando o fato à luz da teoria:
Em uma das vezes que voltei à Ilha Copacabana, em maio de 2008,
encontrei um tipo malhado, corpo bronzeado, passeando de sunga e
descalço pelo calçadão. Ele usava asas negras que se destacavam na
paisagem, o que logo me chamou a atenção. Ao mesmo tempo em que
reproduzia um certo padrão de beleza, Kallikrates queria fugir do
convencional.Travamos o seguinte diálogo:
Micheline Beerbaum: olá
Micheline Beerbaum: td bem?
Kallikrates: ... tudo em ordem ... “relativa ordem” ao menos ... rs
Micheline: tava aqui observando suas asas
Kallikrates: ... são lindas, não ? ^^
Kallikrates: ... adoro asas !
Micheline Beerbaum: pq vc as usa?
Kallikrates: ... porque passam a idéia de algo fora do convencional
... ; )
Kallikrates: ... um anjo ou um demônio
Kallikrates: ... ou algo entre os dois ... rs
Figura 17 – Avatar alado na Ilha Copacabana
No SL é possível fantasiar, portanto, que somos anjos. Ou demônios.
Ou algo entre os dois, como propõe Kallikrates. Temos a liberdade de
ser quem quisermos, podendo usar a imaginação e a criatividade para
vivenciar uma nova situação sem o “peso do real”, em que temos que
escolher ser uma coisa ou outra – embora em muitos casos os padrões
prevaleçam. (BATISTA, 2010:114-115)
Paralelamente à observação participante, realizei entrevistas em profundidade
com 16 usuários do SL, no período de maio de 2009 a janeiro de 2010. Para acessar
os informantes utilizei minha rede de contatos dentro do próprio jogo, construída
desde 2007 (amostragem intencional), esperando que os primeiros entrevistados
pudessem indicar outros usuários, ou seja, por acessibilidade (snowball). E foi o que
ocorreu em alguns casos. Em outros, fui realizando as entrevistas no decorrer do
próprio jogo, na medida em que ia perambulando pelas ilhas e encontrando as
pessoas.
Todos os entrevistados estavam cientes de que participavam de uma
pesquisa e permitiram o registro fotográfico de seus avatares. Para preservar a
identidade dos usuários, utilizei apenas o primeiro nome do avatar na identificação
dos depoimentos. Das 16 entrevistas, 11 foram feitas online, através de chats. Os
diálogos foram copiados e levados para um processador de textos (MS Word). Duas
dessas abordagens foram realizadas com voz e posteriormente transcritas. Abaixo,
um trecho da análise de uma entrevista realizada com voz, através do Skype.
O que sempre prevalece nas respostas dadas pelos entrevistados é a
sensação de poder realizar desejos, controlar sua conduta e fazer
coisas que de outra maneira não seriam possíveis, como voar e
teletransportar-se, e de poder mudar sua configuração corporal a todo
instante, sem precisar dar satisfações sobre seus atos.
Lá eu posso voar, na RL [Real Life, ou vida real em português] eu
não posso. Quem não queria voar? Se teletransportar... Acho
super interessante as pessoas que são gordas e querem ser
magras lá... Querem ter tatuagem, cabelo verde, azul... Às vezes
você quer ter e a sociedade não permite, a esposa não gosta,
devido a sua profissão, o meio que você convive. Aí você tem
vontade de usar uma roupa, mas não usa. Aí você vai lá e usa.
Logan, 27 anos
Aqui começamos a ter uma ideia de como os jogadores do SL
“corporificam” simbolicamente suas experiências. É como se eles
abrissem em suas vidas uma nova janela de espaço e de tempo, e ali
pudessem viver de maneira hiperreal, misturando realidade e fantasia.
O sentimento de corporeidade, ou seja, a simulação do corpo
desejado, é a realização do próprio jogo, é o que transforma o jogo em
realidade para essas pessoas. (BATISTA, 2010, p. 130)
As cinco entrevistas restantes foram feitas de forma presencial, com usuários
residentes na cidade do Recife, frequentadores da Ilha Recife Digital (simulação da
cidade do Recife no SL). Todos eu conheci durante e a partir de um encontro
promovido em maio de 2009 pelo proprietário da ilha em um shopping da capital
pernambucana. As entrevistas foram realizadas posteriormente em locais públicos
da cidade (shoppings e livraria), registradas em gravador digital e depois transcritas.
A seguir, um trecho da análise de uma entrevista feita presencialmente.
Pedimos aos entrevistados que descrevessem seus avatares
comparando-os com seus corpos “reais”. A maioria (nove entre os 16)
acredita ter um corpo real “diferente” do virtual, pois vê no SL a
possibilidade de experimentar novas configurações. Eles procuram
moldar o avatar seguindo o “padrão SL”, revelando como eles
desejariam ser caso pudessem “editar” seus corpos. De um modo
geral, procura-se fazer compensações – pessoas baixas criam avatares
altos; pessoas gordas, avatares magros. Mas a busca pela perfeição
sempre predomina.
Ela está linda [risos]. Ela é mais ou menos o que eu não sou.
Magrinha, tem os cabelos lisos... Pode trocar de roupa direto...
(...) A única coisa que ela tem em comum comigo são os olhos e o
fato de ser branca. Ela não é tão alta. Nem é como a maioria dos
avatares femininos, com aqueles peitões, bundão... Já é
menorzinho... Aquele estilo popozuda não tem a ver comigo não...
[risos] Ela é mais normal, não é tão como as outras, mas é aquele
normal perfeitinha. Tentei deixar ela perfeitinha, mas não aquilo
avantajado.
Rafaelle, 19 anos
Figura 25 – Rafaelle, 19 anos: “ela é mais ou menos o que eu não sou”
Como a entrevista com Rafaelle foi feita de forma presencial, pude
confrontar suas respostas com a realidade que se apresentava à minha
frente. Pessoalmente, a jogadora de fato é de cor branca, tem cabelos
claros não tão lisos, seios pequenos e está ligeiramente “acima do
peso”. No SL, ela pode criar um avatar mais magro sem que seja
necessário fazer sacrifícios ou dietas, eliminar as espinhas típicas da
idade e ao mesmo tempo “turbinar” um pouco mais os seios. A
jogadora diz que procurou não exagerar, pois não se identifica com “a
maioria dos avatares femininos, com aqueles peitões, bundão” – ela
não quer ser uma “mulher-fruta”. (BATISTA, 2010, p. 136-137)
Meu objetivo ao optar pelos dois tipos de entrevista – presencial e remota –
era verificar se haveria diferenças substanciais entre as respostas obtidas. É sabido
que as entrevistas feitas pessoalmente têm o poder de captar elementos como
expressão corporal, tonalidade da voz e a ênfase dada a determinadas respostas.
Considerei, pois, o elemento face a face como um plus da pesquisa, uma vez que
ele não alterou significativamente os resultados. Apesar disso, é importante destacar
que as entrevistas feitas presencialmente renderam mais porque pude obter
respostas mais completas. Quando algo não ficava suficientemente claro, sempre
era possível retornar àquela questão, enquanto que nos chats por vezes precisei
abreviar a entrevista porque os informantes demonstravam inquietação para se
dedicar a outras atividades, no jogo ou fora dele.
Outra vantagem das entrevistas presenciais foi poder confrontar as respostas
obtidas com a cena que eu vislumbrava dentro do jogo, como, por exemplo, quando
pedia para que o entrevistado descrevesse seu avatar e apontasse que
semelhanças ele teria ou não com seu tipo físico. Nas entrevistas remotas, tive que
confiar nas descrições, fossem reais ou fantasiosas, sem o benefício da visualização
direta. Essa comparação me ajudou a identificar até que ponto os jogadores
estavam levando características corporais suas para seus avatares e vice-versa.
Fora isso, não encontrei diferenças substanciais nas respostas dadas on ou offline.
O roteiro semiestruturado utilizado nas entrevistas foi elaborado a partir de um
pré-teste realizado em maio de 2009. Todos os temas do pré-teste foram mantidos
no roteiro definitivo, mas algumas questões que implicavam em respostas
redundantes foram eliminadas. Com essas mudanças, o número de questões caiu
de 29 para 16 e o tempo de entrevista, de 1h30, foi encurtado para cerca de 1h. Já
os registros fotográficos foram feitos no próprio ambiente do jogo mediante a
utilização da tecla PrtScn (Print Screen) e salvas sem qualquer manipulação por
meio de um editor de imagens (Photoshop), exceto alguns registros que foram feitos
com o recurso de tirar fotografias que o próprio jogo oferece.
Para Poupart (2008:216), os argumentos que se aplicam à defesa dos
métodos qualitativos servem igualmente à entrevista. São três os que merecem
destaque na opinião do autor. O primeiro, de cunho epistemológico, defende a
necessidade de uma exploração em profundidade da perspectiva dos atores,
essencial para uma completa apreensão e compreensão das condutas sociais. O
segundo, de ordem ética e política, é calcado no fato de que a entrevista abre a
possibilidade de compreender e conhecer os dilemas e questões enfrentadas pelos
indivíduos. Por fim, Poupart aponta, sob o ponto de vista metodológico, que essa
ferramenta é capaz de “elucidar as realidades sociais”. Ele vê a entrevista como um
“instrumento privilegiado de acesso à experiência dos atores”, uma maneira de
explorar melhor o mundo da vida dos informantes.
De acordo com Gaskell (2002:66), o roteiro semiestruturado, que ele chama
de “tópico guia”, deve funcionar como um lembrete, um sinal de que há uma agenda
a ser seguida, e também um meio de monitorar o andamento do tempo da
entrevista. Não deve ser visto, pois, como uma “camisa de força”, algo inflexível.
Além disso, esse roteiro, enquanto esquema preliminar, vai nos ajudar na análise
das transcrições. Entendendo, desde sempre, que toda transcrição é já uma
interpretação. O material que surge a partir das entrevistas pode ser considerado
uma co-construção, envolvendo tanto o entrevistado quanto o entrevistador (Cf.
POUPART, 2008). Indo mais além e adotando uma postura mais reflexiva, podemos
dizer que tanto o pesquisador quanto o pesquisado são eles mesmos transformados
nesse processo.
Considerações finais
Estamos na infância da pesquisa da internet. A literatura existente sobre o
assunto ainda é insuficiente para aclarar os caminhos que devem ser seguidos e
não dá conta de toda a complexidade desse ambiente, um terreno fértil para o
estudo dos indivíduos e das relações sociais no mundo contemporâneo. Entretanto,
como dissemos ao longo deste trabalho, o momento atual da pesquisa social pede
uma abertura. O pesquisador que pretende empreender um estudo na rede mundial
de computadores deve ter em mente que seu método será construído no campo e
fora dele, a partir de sua própria experiência e da interrelação que surgirá com os
pesquisados. Não existe uma cartilha, e mesmo que existisse ela não deveria ser
considerada, pelo menos não em sua totalidade.
Nos últimos anos, a internet tem se revelado um campo muito rico para a
pesquisa qualitativa, em especial para os estudos etnográficos. Perambular por sites
da web, observando discursos e ações, tal como faziam os etnógrafos clássicos em
sociedades remotas, parece ser um caminho bastante promissor. No caso das
entrevistas e grupos focais, ainda que se perca o elemento do contato visual e as
expressões faciais, ganha-se na espontaneidade das respostas. É fato que as
fronteiras on e offline estão se dissolvendo. A utilização da internet cresce em todo o
mundo e com ela crescem os desafios metodológicos. Resta aos sociólogos
acreditar no seu potencial e construir seus próprios caminhos.
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