Psicologia e Educação

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Psicologia e Educação
Anais V CIPSI - Congresso Internacional de Psicologia
Psicologia: de onde viemos, para onde vamos?
Universidade Estadual de Maringá
ISSN 1679-558X
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AS EMOÇÕES NA LITERATURA DE CLARICE LISPECTOR – UM OLHAR DA
PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL
Aproximações entre a psicologia e a arte literária: abrindo possibilidades
O presente trabalho trata da intersecção entre psicologia e literatura, mais
especificamente da teoria vigotskiana das emoções e a literatura de Clarice Lispector, sendo
resultado da pesquisa de conclusão do curso de Especialização em Teoria Histórico-Cultural.
Posto o desafio de estudar e sistematizar os trabalhos sobre as emoções na obra de
Vigotski, encontramos na arte literária, enquanto produção humana que não se esgota em sua
técnica, uma via de acesso à compreensão do homem, que propicia “o entendimento dos fatos
sociais e fornecem subsídios a respeito da diversidade humana, favorecendo a compreensão
de como os homens constroem suas relações e as quais necessidades estas relações atendem”
(Silva, 2004, p. 6). Em outras palavras, a literatura é fonte rica que possibilita profundidade e
critérios de análise, permite a observação das intenções do autor, além de vislumbrar para “a
perspectiva histórica da transformação dos indivíduos, que se processa pelas lutas humanas
que dão vida aos criadores e aos seus personagens” (Barroco, 2007, p. 72).
Serão expostos dois momentos principais, sendo que o primeiro baseia-se na
sistematização da teoria das emoções proposta por Vigotski e seus continuadores, seguida de
aspectos relativos à vida e obra de Clarice Lispector. O segundo momento do trabalho pautase na discussão e interlocução entre as emoções no seu desenvolvimento ontogenético, afeto à
Psicologia Histórico-Cultural, com os textos selecionados de Clarice Lispector.
Objetivos
O trabalho busca contribuir para a sistematização do conhecimento acerca das
emoções na Psicologia Histórico-Cultural, em seu desenvolvimento ontogenético, por meio da
análise do texto clariceano sustentado à luz do referido aporte teórico. Nesse sentido,
elencamos as seguintes questões que orientarão a realização da pesquisa: como a arte literária
pode contribuir para o entendimento da teoria das emoções por meio do desenvolvimento
ontogenético, ao revelar o homem e seus processos de formação da consciência? Como se dá
a relação entre o desenvolvimento das emoções e a obra literária de Clarice Lispector,
partindo-se dos estudos da Psicologia Histórico-Cultural?
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Método
A presente pesquisa bibliográfica, de natureza teórica conceitual, baseia-se em um
exercício metodológico a partir da Psicologia Histórico-Cultural, na qual a metodologia a ser
utilizada para compreender a literatura de Clarice Lispector assume a perspectiva do
materialismo histórico dialético, que busca envolver os fenômenos humanos a partir da
perspectiva de sua materialidade, contradições e totalidade. A seleção e delimitação dos
escritos clariceanos examinados foram determinados a partir das idades da vida, para que
fosse possível estudar o desenvolvimento ontogenético das emoções.
Sobre a teoria das emoções na psicologia histórico-cultural
Este sistema teórico, elaborado pelos soviéticos Lev Semenovich Vigotski (18961934), Alexander Romanovich Luria (1902-1977) e Alexei Nicolaievich Leontiev (19031979), nas primeiras décadas do século XX, estava comprometido com o contexto sóciopolítico-econômico da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em meio ao
clima revolucionário na Rússia. Partindo do pressuposto de que “na objetividade, nas
necessidades que a realidade impõe, de acordo com a organização dos homens, que é possível
entender as ideias, suas limitações e contradições” (Tuleski, 2002, p. 56), o projeto era o da
formulação e consolidação de uma nova psicologia que compreendesse o homem como um
ser complexo e dinâmico, tendo sua forma de agir e ser no mundo decorrente das relações
estabelecidas com o meio social.
Esta psicologia, com o objetivo de ser a Psicologia Geral, tem como um dos aspectos
mais importantes a compreensão da formação do psiquismo humano como totalidade em um
processo histórico e social, sendo científica a partir dos princípios filosóficos do materialismo
histórico dialético. Devido a sua constituição social, o psiquismo humano não poderia ser
entendido como dado a priori, mas tem sua natureza humana mutável conforme o decorrer do
desenvolvimento histórico. Nesse sentido, a consciência é uma função que se constrói
historicamente na direção interpsicológica para a intrapsicológica, ou seja, o que é coletivo
passa a constituir a experiência individual por meio da apropriação (Vigotski, 1996).
Dessa maneira, podemos compreender o movimento transitório das funções
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elementares para as funções psicológicas superiores como decorrente do caráter mediatizado
da atividade humana. Por meio da inserção da criança na cultura, esta se reequipa e
transforma seu comportamento, suas funções psicológicas, um salto qualitativo interno que é
provocado pelo meio externo, no qual o indivíduo de controlado passa a controlar essas
funções de forma consciente. Conforme Tuleski (2002), as funções psicológicas superiores
permitem o autocontrole e o autodomínio do comportamento.
Outro aspecto importante relaciona-se ao “caráter sistêmico [do psiquismo] e à
impossibilidade de dissociar afetivo e cognitivo nesse processo de constituição” (Gomes,
2008, p. 114), na conversão do natural em processo cultural. Nesta perspectiva, as emoções
possuem o caráter de função cultural internalizada e não mais como um subcomponente
instintivo, como considerada pela ciência de ordem metodológica positivista e naturalista.
Vigotski procura estruturar a investigação para uma teoria das emoções em sua obra
intitulada Teoría de las emociones: estudio histórico-psicológico (1933/2004), um dos seus
últimos trabalhos, escrito entre 1931 e 1933, que ficou inacabado devido a morte prematura
do autor. Segundo Toassa (2009), o autor “esboça um elenco de problemas fundamentais
sobre o desafio da relação entre corpo e mente, enunciando alguns aspectos que considerava
importantes para uma nova teoria das emoções em sua época” (p. 149). Nesta obra, baseado
no filósofo holandês Baruch de Espinosa (1632-1677), o autor faz uma análise crítica da
natureza da psicologia das emoções, predominantemente organicista, ao buscar a raiz dos seus
pressupostos filosóficos e metodológicos, além de demonstrar a complexa rede de relações
que esta psicologia estabelecia com os postulados cartesianos.
Conforme Vigotsky (1933/2004), a teoria desenvolvida pelo filósofo e psicólogo
norte-americano William James (1842-1910) e pelo anatomista dinamarquês Carl Georg
Lange (1834-1900), de forma independente uma da outra, constituem, na verdade, uma só,
uma vez que apoiam-se na base metodológica organicista, criada pelo filósofo francês René
Descartes (1596-1650). James e Lange são considerados discípulos involuntários de
Descartes.
A teoria organicista das emoções empenha-se a considerar as reações corporais como a
fonte das emoções e, dessa forma, a teoria James-Lange afirma que as emoções provocam e
determinam as expressões físicas, sendo impossível existir sem elas. Os autores relacionam à
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parte emocional da vida psíquica fontes diferentes, uma vez que para James as responsáveis
pelas emoções são as reações viscerais e, por sua vez, Lange atribui às modificações das
funções do aparato vasomotor a base essencial de todo o processo emocional. James e Lange
acoplaram as emoções aos órgãos mais invariáveis, mais baixos no desenvolvimento histórico
da humanidade, separando-as da consciência. Os autores excluíam “por completo a
possibilidade de fornecer a gênese das emoções humanas, do aparecimento de quaisquer
emoções novas no processo da vida histórica do homem” (Vigotski, 1932/1998, p. 87).
Desse modo, a teoria organicista reduz as emoções a processos periféricos que são
refletidos no cérebro, criando um abismo entre as emoções e o resto da consciência: as
emoções são relativas à periferia, e o resto da consciência tem se concentrado no cérebro. O
estudo da consciência está mais relacionado aos processos mentais cognitivos do que aos
emocionais, o que cria uma cisão no desenvolvimento do psiquismo entre as esferas afetivas e
cognitivas. Há um dualismo aberto na interpretação da natureza das emoções superiores e
inferiores, uma vez que só é emoção quando tem excitação corporal e origem periférica
(Vigotsky, 1933/2004).
Nesse sentido, o dualismo cartesiano entre afeto e cognição, corpo e alma, é
fortalecido na teoria James-Lange, que evidencia a tendência a-histórica das emoções, “a
hipótese da natureza sensorial e reflexa da reação emocional e a da negação da sua relação
com os estados intelectuais” (Vigotsky, 1933/2004, p.139). Além disso, exclui-se por
completo qualquer possibilidade de uma história das emoções humanas, por considerar
impossível qualquer perspectiva de desenvolvimento das emoções, mas, ao contrário, sua
regressão contínua até a morte.
Conforme Gomes (2008), Vigotski não nega a existência concreta das modificações
corporais durante as emoções, mas coloca em questão a relação existente entre essas
modificações, o conteúdo psíquico e a estrutura das emoções. O autor considera também o
resultado funcional, uma vez que as emoções possuem um significado biológico que não se
relaciona tanto com as emoções em si, mas com suas consequências funcionais, ou seja, a
preparação do organismo para uma atividade que resulta da emoção.
Segundo Vigotsky (1933/2004), a teoria espinosana é o giro decisivo de toda a história
da psicologia e de seu desenvolvimento futuro, por poder proporcionar uma ideia do homem
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que sirva de modelo da natureza humana. Gomes (2008) afirma que Vigotski encontra “na
teoria espinosista alguns elementos que permitam avançar em direção à constituição de uma
perspectiva materialista das emoções humanas” (p. 64).
Espinosa baseia-se na relação existente entre o pensamento e o afeto, o conceito e a
paixão, a partir de uma concepção materialista do mundo, sob a perspectiva vigotskiana, o que
faz com que sua doutrina dos afetos chegue à premissa de que tudo o que ocorre no corpo é
percebido pela alma e, dessa maneira, “não há estado emocional sem efeitos corporais e
mentais. […] o corpo humano é um todo composto” (Toassa, 2009, p. 179).
De acordo com Silva (2011), Espinosa supera a concepção naturalista dos afetos, que
são “determinados pelos fatores sociais e pelo desenvolvimento da inteligência, ou seja, este
autor considera a relação direta entre emoção, cognição e consciência, as quais se estabelecem
a partir da atividade humana” (p. 151). Esta afirmação aponta a implicação psicológica deste
postulado, ao assinalar para a dependência entre as condições objetivas de vida e a formação
da consciência, formulação da Psicologia Histórico-Cultural na defesa da materialidade dos
processos psicológicos superiores.
Vigotsky (1933/2004) defende a mudança do modelo filosófico, ao descartar o
dualismo francês e instituir o monismo espinosano no entendimento das emoções. O autor
buscava a criação da Psicologia Geral, na qual os conceitos contemplassem o que é próprio do
humano, por meio de uma teoria das emoções que explicasse desde as emoções inferiores das
crianças até as emoções superiores dos adultos. Nesse sentido, os pressupostos vigotskianos
caminham para a formulação da emoção como função da personalidade, histórica e cultural.
Ao propor uma nova maneira de pensar o afetivo, Vigotski (1996) defende o
desenvolvimento histórico das emoções, alterado em função das conexões ocorridas com
outras funções psicológicas, assim como com os conceitos. Nas palavras do autor, “esse
sentimento é histórico, que de fato se altera em meios ideológicos e psicológicos distintos
apesar de que nele reste sem dúvida um certo radical biológico, em virtude do qual surge essa
emoção” (p. 127). Dessa maneira, temos a tese da historicidade do sentimento, que mantém
sua raiz biológica, sobre a qual tem seu surgimento, na qual as emoções complexas aparecem
no decorrer da história como a combinação que se dá no percurso de seu desenvolvimento.
Nesse sentido, o referido autor é pontual ao afirmar que as emoções dependem do
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desenvolvimento cultural e, portanto, constituem-se no transcurso da vida histórica. Outro
aspecto decorrente deste entendimento refere-se “à indissociabilidade entre as diferentes
funções psicológicas ou, dito de outro modo, as emoções estão inseridas numa complexa
trama conceitual, o que faz com que elas sofram alterações qualitativas em função do
desenvolvimento de outras funções psicológicas” (Gomes, 2008, p. 113).
A partir de estudos recentes (Gomes, 2008; Toassa, 2009 & Silva, 2011) podemos
afirmar que as emoções inscrevem-se no campo das funções psicológicas superiores, embora
Vigotski não tenha declarado de maneira literal tal entendimento. Dessa maneira, as emoções
são “funções mentais cujas formas e conexões biológicas, inferiores, são transformadas pela
vida social e cultural” (Toassa, 2009, p. 283). Conforme Silva (2011), as emoções permeiam
todo o desenvolvimento humano, dependendo da maneira e da qualidade das mediações, que
possibilitam a apropriação dos instrumentos e signos culturais, para seu desenvolvimento, “na
direção de um aumento da capacidade de autocontrole das reações emocionais inatas,
impulsivas e instintivas, fazendo parte da consciência, mediada pelo pensamento verbal e
conceitual” (p. 240).
Diante dessas considerações, entendemos como o desenvolvimento das funções
psicológicas superiores está atrelado às relações do indivíduo com o mundo social. Nesse
sentido, o desenvolvimento emocional acompanha essa historicidade, pelas especificidades de
cada idade transformadas de acordo com os momentos históricos, ou seja, devido à relação
entre as mudanças históricas na sociedade e na vida material, que produzem mudanças na
consciência e no comportamento humano.
Por fim, Silva (2011) ressalva a importância do conhecimento produzido pelo homem
ao longo de sua história social, refletido na educação e nas diversas formas de expressão
artística, constituindo-se de fatores que contribuem para o desenvolvimento emocional. Em
concordância, Toassa (2009) afirma que as emoções são constituídas por meios culturais,
sendo os principais a arte e a linguagem. Nesse processo de formação psíquica, a atividade
humana concentra-se na cultura e, por meio de apropriações, o homem passa a ter a
linguagem e a produzir a arte, como forma de expressão humana em uma dada sociedade,
constituídos e representados de uma ou outra maneira.
A linguagem tem importância no desenvolvimento humano por promover o grande
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salto qualitativo do biológico ao histórico nas funções psicológicas, tendo importância,
principalmente, na formação da consciência devido a sua capacidade de penetrar em todos os
campos da atividade consciente do homem, o que introduz mudanças na reorganização da
vivência emocional, elevando a outro nível os processos psíquicos (Luria, 1991).
A arte, ao ocupar um dos lugares centrais da culturização das emoções humanas, tem o
papel de organizá-las de certa forma. Além disso, de acordo com Barroco (2001), “enquanto
produção que contém as relações sociais nas quais se caracterizam os sentimentos, consegue
objetivar, isto é, apreender e tornar mais visível as questões subjetivas, intrinsecamente
conectadas às situações sociais, que oferecem momentos de dificuldade ou prazer” (p. 11).
Outra questão que envolve a obra de arte e a emoção relaciona-se à ação daquela sobre
o homem, em um sistema de estímulos que desencadeiam uma reação estética, ou seja, o
impacto catártico no qual a arte produz uma emoção específica no homem. No entanto, como
um dos desafios levantados por Vigotski (1925/1999), o trabalho e análise da arte devem
incidir no fato de que ela não é somente a reação estética, mas uma atividade humana que
permite o revelar desse homem, pontuando a relação arte e vida, arte e socialização.
Temos aqui, portanto, a possibilidade de interlocução da Psicologia Histórico-Cultural
com a arte literária no entendimento de como o homem concreto revela-se e se humaniza por
meio das produções artísticas, fincadas às determinadas condições e transformações históricas
e sociais. A escolha pela escritora Clarice Lispector justifica-se pelo conhecimento de grande
parte de sua obra assim como, principalmente, pela relativa ausência de investigações
históricas acerca de suas obras. Nesse sentido, na literatura clariceana encontramos o que é
próprio do homem traduzido pelo drama de seus personagens, próximos às pessoas
contemporâneas com suas aflições e necessidade de se tornarem humanas.
Considerada como parte integrante do modernismo na literatura brasileira, Clarice
Lispector (1920–1977) nasceu em território russo durante a guerra civil (1918-1921), em
Tchechelnik, uma aldeia ucraniana povoada quase exclusivamente por judeus. O nascimento
aconteceu na época em que sua família emigrava rumo ao continente americano, afastando-se
dos maus tempos pós-primeira guerra mundial, assim como do clima difícil causado pelas
constantes guerras civis e perseguições aos judeus (pogroms).
A família Lispector muda-se para o Brasil, onde já viviam alguns familiares judeus,
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vivendo em Maceió, Recife, onde sua mãe falece precocemente, e Rio de Janeiro, cidade onde
a família instala-se permanentemente. Após ingressar na Faculdade de Direito, Clarice
trabalhou como jornalista no DIP, órgão criado para propagar o governo de Getúlio Vargas, a
única voz autorizada no país, onde conheceu jovens nomes da literatura e do jornalismo da
época, o que possibilitou suas primeiras publicações de contos (Moser, 2009).
A estreia de Clarice na literatura brasileira com o romance Perto do Coração
Selvagem desestabilizou o cenário cultural brasileiro, no qual a literatura apoiava-se
principalmente na produção ficcional regional, o Romance de 30. Como defendem Brasil
(1969) e Rosenbaum (2002), ao trazer algo novo na literatura brasileira, percebemos que a
revolução acontece no nível da linguagem, que exerce um obscurecimento do fio narrativo,
um desmascaramento da dita "naturalidade" dos papéis sociais, construídos histórica e
culturalmente. Desse modo, a escritora trouxe inovações no romance, recolhendo novas
conquistas para a ficção, ao trazer o esforço constante em penetrar na consciência humana,
pela sondagem psicológica por meio de uma narrativa intimista, introspectiva e subjetiva,
tanto quanto era exploradora de temas de natureza social e histórica em suas obras,
desconfiando da aparência dos fenômenos e contestando os acontecimentos de sua época
(Medeiros, 2002).
Este primeiro romance foi escrito em 1943 e publicado no ano seguinte, quando
Clarice já estava formada em Direito e casada com um diplomata, que logo foi enviado para o
exterior, devido à participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. A escritora vive, de
1944 a 1959, no exterior (Itália, Suiça, Inglaterra e Estados Unidos) acompanhando o marido
no serviço diplomático, onde se encontrou com pessoas de origem diferentes, teve acesso a
um amplo e importante acervo cultural e artístico. Essas condições objetivas e a mudança ao
exterior trouxeram para sua vida e literatura fatos tão difíceis quanto compensadores,
marcando-as de forma expressiva.
Ao separar-se do marido, retorna ao Rio de Janeiro, dividindo-se entre a literatura e o
cuidado dos filhos, além da colaboração em alguns periódicos brasileiros, com crônicas e
entrevistas. Clarice faleceu em 1977, dona de uma obra significativa que revolucionou a
literatura brasileira, composta de romances, contos, crônicas, traduções de outros autores,
entrevistas e obras traduzidas em vários idiomas (Gotlib, 2008; Moser, 2009).
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Clarice Lispector usou e abusou de suas produções para provocar em seus leitores uma
reflexão mais profunda acerca da vida, do mundo, da sociedade e das relações humanas.
Diferencia-se de outros autores da literatura brasileira por fazer com tamanho cuidado e
sutileza essa ida aos emaranhados caminhos da realidade, ao revelar o retorno, em um grau
elevado, às vivências emocionais complexas, visitadas pelo leitor, dos personagens e seus
processos de formação da consciência inseridos em uma determinada realidade concreta.
Dessa forma, reconhecer o humano em Clarice Lispector, a partir de suas
determinações dos condicionantes sociais, descortina um campo fértil ao entendimento do
desenvolvimento do psiquismo do homem, em sua unidade afetivo-cognitiva, por meio de sua
materialidade e de processos de humanização e de alienação presentes nas sociedades
capitalistas.
Assim como Medeiros (2002) apresenta o comprometimento de Clarice Lispector com
o momento no qual viveu, Vigotski (2009) defende que por muito individual que pareça, toda
criação encerra em si um coeficiente social. A obra clariceana é marcada, predominantemente,
pela ênfase no individual, o que não significa que a escritora despreze o meio social no qual
vive o indivíduo e no qual ele se constitui, uma vez que interioriza as carências e os dilemas
sociais a partir de seus personagens. Tal afirmação pauta-se no posicionamento da Psicologia
Histórico-Cultural de que não há invenções individuais no sentido estrito da palavra, uma vez
que em todos há sempre alguma colaboração anônima – social até no que é criação individual.
As idades da vida: Clarice Lispector e os estudos soviéticos
Diante deste quadro, procuraremos discutir e analisar a obra de Clarice Lispector sob
esse olhar, trabalhando com a linguagem e as possibilidades de acesso à consciência de seus
personagens no caminho rumo à humanização, defesa maior da teoria que embasa este
trabalho, no entendimento de como se dá o desenvolvimento das emoções. Para a análise das
questões levantadas, não se pretende uma análise literária, mas a interlocução entre os
pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural e a arte literária, no entendimento dos
fenômenos humanos.
Por meio das mudanças nos processos afetivos conforme o desenvolvimento humano,
podemos justificar o critério de análise baseado na escolha, dentro do universo literário da
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obra clariceana, de textos que retratam as idades da vida. A partir da tese de que o homem vai
se desenvolvendo conforme as atividades que o relacionam ao meio social, foram escolhidos
três textos de Clarice Lispector que, vistos em determinada sequência, estabelecem o percurso
ontogenético: a infância e a adolescência com o conto Os desastres de Sofia; juventude e
idade adulta com o romance A hora da estrela e, por fim, a velhice vista pelo conto Feliz
aniversário.
O período da infância é retratado pela análise do conto Os desastres de Sofia, que abre
o segundo livro de contos de Clarice Lispector, A Legião Estrangeira, de 1964. Narrado em
primeira pessoa, o referido conto retrata as recordações de fatos significativos que ocorreram
na infância da endiabrada e esperta Sofia, recriada pela memória da Sofia adulta, quando
recebe a notícia do falecimento de um antigo professor. A narradora conta sobre o
relacionamento e os sentimentos de criança em relação ao seu professor quando tinha 9 anos e
depois aos 13 anos, quando volta a ter notícias dele, e as implicações que tais fatos têm em
sua vida adulta.
A notícia do falecimento trouxe-lhe todas as lembranças, em conjunto e misturadas, e
os motivos de ter escrito a composição mandada pelo professor em uma de suas aulas. A partir
de uma história contada por ele, os alunos deveriam recriar outra com suas próprias palavras
e, conforme terminassem, poderiam ir para o recreio. A menina, como sabia usar somente as
suas palavras, achou simples a tarefa e rapidamente terminou, indo brincar no campo do
parque. Como estava aprendendo a tirar a moral das histórias, Sofia escreveu uma
composição com a moral oposta a do professor, ou seja, escreveu levianamente sobre o
tesouro que se disfarça, que precisa ser descoberto, pois está onde menos se espera, ao invés
daquela de que o trabalho árduo é o único modo de se alcançar a riqueza. A história, voltada
para o reverso do estabelecido, provocou o professor, “não consigo imaginar com que
palavras de criança teria eu exposto um sentimento simples mas que se torna pensamento
complicado” (Lispector, 1964/1999, p. 18), diz Sofia já adulta, ainda próxima
emocionalmente da cena relembrada.
Quando Sofia voltou à sala para buscar algum objeto esquecido, deparou-se com o
professor olhando-a, os dois sozinhos na sala, pela primeira vez. Quando questionada sobre
onde ouvira sobre o tesouro que se disfarça, a menina disse que ela mesma havia inventado.
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No entanto, o medo do professor não desaparecia, uma vez que o ele fitava-a, sem cólera, o
que trazia novas ameaças, as quais ela desconhecia, além de certo importuno, maior do que a
brutalidade que temia anteriormente, “e meu estômago encheu-se de uma água de náusea.
Não sei contar” (Lispector, 1964/1999, p. 22).
Depois da reação de surpresa e satisfação do professor, que tinha nos olhos lágrimas
orgânicas, “um homem com entranhas sorrindo” (Lispector, 1964/1999, p. 22), que havia
gostado de sua composição, Sofia, com o coração desiludido, as batidas aceleradas e
descontroladas, saiu correndo da sala em direção ao parque, pensando no que o professor
pensava dela, se um tesouro escondido. Sofia tentava entender o que havia acontecido,
enquanto corria sem parar no grande campo do parque, mas acredita que sua ignorância
naquele momento a impedia de compreender o que sentia e pensava naquela ocasião.
A infância é retratada neste conto como um momento do desenvolvimento psíquico
permeado por contradições, limitações e potencialidades, vinculadas à consciência da menina
e, portanto, à relação entre emoção e pensamento. Durante a retomada das memórias, a Sofia
adulta demonstra, o tempo todo, como a Sofia menina estava limitada e era guiada por sua
própria ignorância, ao passo que as palavras a ultrapassavam, sem que ela as tivesse dito. Era
uma criança confusa em relação aos seus pensamentos, à linguagem, às emoções, às
intenções, o que parece ter sido superado por ela, enquanto adulta, visto que por meio da
linguagem consegue lidar com essas lembranças e sentimentos de forma mais elaborada.
Podemos reconhecer aqui o processo de formação da consciência, inicialmente social,
interpsicológico, que no decorrer de processos de aprendizagem e desenvolvimento, passam a
ser apropriados pela criança, que “começa a utilizar consigo mesma os meios e formas de
comportamento que, no princípio, eram coletivos” (Vigotski, 1996, p. 113). Nesse sentido,
houve o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, a formação de conceitos, o
autocontrole e autodomínio de seu comportamento, como também o desenvolvimento da
linguagem e da atividade criadora em outro patamar, isto é, não mais ligado ao cotidiano e ao
imediato, mas com o caráter intencional e voltado ao futuro. Este salto qualitativo é percebido
no relato de toda a história, pela Sofia adulta, que consegue falar, conceituar e imaginar de
forma superior a da Sofia criança.
O segundo texto de Clarice Lispector selecionado para análise, que abarca a idade
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adulta, refere-se ao romance A hora da estrela, publicado em 1977, que conta a história
simples de Macabéa, uma personagem captada no cotidiano irônico e cruel do Rio de Janeiro,
na feira nordestina de São Cristóvão. O narrador Rodrigo S.M. afirma que “é antes de tudo
vida primária que respira, respira, respira” (Lispector, 1977/1998, p. 13).
A pessoa de quem falará mal tem corpo para vender e anda de leve na rua devido a sua
esvoaçada magreza, onde ninguém a vê. Trata-se de uma moça alagoana de 19 anos, pobre,
semi-alfabetizada até o terceiro ano primário e ignorante. Absolutamente desajustada à vida
da grande cidade, vive em um lugar todo feito contra ela. Seus pais morreram, devido a uma
febre ruim do sertão de Alagoas, sendo criada pela tia beata durante a infância, que por meio
de maus-tratos justificava a preocupação em fazê-la uma moça decente.
Como resultado dessa criação, restou-lhe a cabeça baixa. Depois que a tia morreu,
passou a dividir um quarto com quatro moças balconistas, que mal conhecia, em um velho
sobrado no Rio de Janeiro. Em condições precárias, dormia mal, geralmente com fome e nariz
entupido, vestida com uma suja combinação de brim.
Macabéa emprega-se num pequeno escritório como datilógrafa, mas errava demais e
sujava os papéis, recebendo menos do que o salário mínimo. A moça era feia, raquítica herança do sertão -, ingênua, virgem e profundamente solitária, até o início de seu namoro
com o paraibano Olímpico, que a troca pela sua colega de escritório, Glória. Rodrigo S. M.
descreve-a como “incompetente para a vida. Faltava- lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente
tomava conhecimento da espécie que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se
exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim” (Lispector, 1977/1998, p. 24).
Glória, talvez como uma forma de recompensa pelo roubo do namorado, aconselhou
Macabéa a procurar a cartomante Madama Carlota, para que esta lhe pusesse as cartas. Na
consulta, Macabéa tinha pela primeira vez um destino, ao mesmo tempo em que percebia,
espantada, o quanto sua vida havia sido miserável até então. A cartomante, dizendo ter
grandes notícias para dar a Macabéa, trouxe um destino iluminado de riqueza, com a
promessa de que a vida da nordestina mudaria completamente. Impressionada, “Macabéa
nunca tinha tido coragem de ter esperança” (Lispector, 1977/1998, p. 76).
Ao sair da consulta, sentindo-se "grávida de futuro" (Lispector, 1977/1998, p. 79),
Macabéa era outra pessoa ao atravessar a rua: sua vida havia sido mudada por palavras, a
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cartomante havia lhe dado uma sentença de vida. O destino entra em cena quando, ao dar o
passo de descida da calçada para atravessar a rua, Macabéa é atropelada por um MercedesBenz amarelo, o mundo que não foi feito para ela. Inerte após ter batido a cabeça no meio-fio,
descansava das emoções e pensava que este era o primeiro dia de sua vida, enquanto a chuva
começava a cair em cima dela. As pessoas aglomeravam-se ao seu redor, e agora tinha
existência e “não passava de um vago sentimento nos paralelepípedos sujos” (Lispector,
1977/1998, p. 83). No momento de sua morte, Macabéa teve consciência de que era, não
tendo tempo para saber o quê. A morte salva a personagem, ao mesmo tempo em que marca a
impossibilidade de superação desta situação.
Assim como o narrador expressa, não saber fazia parte da vida de Macabéa e, em um
mundo onde alguns têm e outros não, a nordestina fazia parte do segundo grupo: não tinha
passado, futuro, memória, conhecimento, um lugar; tinha somente a si mesma em um mundo
fora de si. Nesse sentido, percebemos que a protagonista não passou pelo processo de
humanização, uma vez que, sendo a consciência uma função social, que se constrói
historicamente na direção interpsicológica para a intrapsicológica, vemos em Macabéa que o
que foi construído socialmente não foi apropriado por ela. Sua experiência individual
permaneceu em um nível elementar de desenvolvimento: tudo é interpsicológico e Macabéa
encerra-se em si mesma, semelhante aos animais, como o narrador afirma em certo momento.
Macabéa, a mais trágica e, provavelmente, a personagem mais conhecida de Clarice
Lispector, nada sabe de si nem do mundo em que vive, no qual estabeleceu vínculos sociais
empobrecidos e se apropriou somente do que lhe possibilita o seu “viver ralo”. Rodrigo S. M.,
conduzido pela escrita, dá forma e um destino à sobrevivência quase inumana de Macabéa,
uma vez que para tudo o que se sente e deseja, não dispõe de palavras para expressar.
Macabéa quase não sentia e, quando o fazia, era muito elementar.
O desenvolvimento de suas funções psicológicas superiores, atreladas à apropriação da
cultura, está comprometido e não permite à Macabéa ordenar a si mesma, pensar no futuro,
sentir e humanizar-se. A moça adaptava-se passivamente ao mundo, e não de forma ativa
como é próprio do ser humano. Vivia sob aspectos ligados ao aparato biológico, que não
foram superados pela apropriação do social, para que pudesse desenvolver o autodomínio, o
autocontrole, a capacidade reflexiva, a formação de conceitos e, como percebemos no
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decorrer de toda a história, as emoções.
Por fim, a velhice é analisada por meio do conto Feliz aniversário, publicado pela
primeira vez em 1960, no livro Laços de família, grande obra de contos da literatura
brasileira. O conto retrata o aniversário de 89 de dona Anita, e as relações familiares da classe
média carioca presentes nessa comemoração, com a presença de seus filhos, noras, netos.
Escrito na década de 50, expõe a hipocrisia e o esvaziamento das relações familiares,
principalmente numa data ritualística como o aniversário, além do silenciamento, isolamento
e exclusão social da velhice.
Desde às duas horas da tarde sentada à cabeceira da mesa, pois a filha a arrumara antes
para adiantar o expediente, dona Anita era dona de um mutismo intencional. Não se
manifestava, seus músculos do rosto não a interpretavam, “de modo que ninguém podia saber
se ela estava alegre. Estava era posta à cabeceira. Tratava-se de uma velha grande, magra,
imponente e morena. Parecia oca” (Lispector, 1960/2009, p. 56). A aniversariante não falava
ou esboçava reação alguma, não tendo a atenção de nenhum convidado, permanecendo com
seus próprios pensamentos, a mesa imunda, o barulho dos filhos e o bolo ainda inteiro.
Após cantarem os parabéns, a aniversariante ouve ordens para cortar o bolo. Para o
espanto, horror ou agradável surpresa dos convidados, dona Anita corta o bolo com certa
agressividade, “deu a primeira talhada com punho de assassina […] como se a primeira pá de
terra tivesse sido lançada [...]” (Lispector, 1960/2009, p. 59).
O desprezo pela família é marcado objetivamente quando os convidados percebem
uma reação em dona Anita, diferente da percebida até então daquele ser imóvel, apático e
quase inexistente, quando a protagonista vira a cabeça e com uma força insuspeita cospe no
chão, ato que é prontamente reprovado por seus familiares, mas pensado por eles como se
fosse um comportamento infantil expresso por dona Anita. O próximo comportamento da
matriarca, desagradável para os familiares, marca-se por uma sequência de xingamentos, uma
resposta dela quando não queria lhe dar um vinho para beber.
O sinal de término da festa dá-se quando a aniversariante dá seu último bocado no
bolo e sem se erguer, fica mais dura e alta na cadeira. Sendo a mãe de todos, observa-os com
os olhos piscando, impotente à cadeira e despreza-os, esses que não passavam de carne de seu
joelho, seres opacos, egoístas e sem nenhum valor de ouro. Estes eram pensamentos de Dona
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Anita, apresentados pelo narrador, que denunciam certo rancor em relação a sua família. A
aniversariante foi, cautelosamente, beijada por cada um “como se sua pele tão infamiliar fosse
uma armadilha” (Lispector, 1960/2009, p. 63).
A escritora retrata essa visão estigmatizada da velhice que é decorrente de um determinado contexto histórico e social, principalmente pela não participação direta nos modos de
produção, que atribuem aos velhos à inutilidade, incapacidade, dependência, falta de autonomia e ausência de desenvolvimento psíquico. Ligada ao fim da vida, a velhice retratada por
Clarice, nos anos 50, esboça um momento em que nada mais se pode fazer.
Por meio do conto percebemos que, embora a velhice seja um momento de declínio
biológico, que pode comprometer diversas funções psicológicas, a personalidade passa por
mudanças nas quais suas funções psicológicas atuam em um nível superior, tanto no
autocontrole e autodomínio de seu comportamento, quanto na indignação e descontentamento
expressados pela agressividade de sua fala, ao perceber a falsidade e hipocrisia criada por
aqueles que eram seus filhos. Mesmo não sendo reconhecida sua humanidade, dona Anita
estava presente em sua festa e, apesar de calada e imóvel, seus pensamentos e sentimentos
guiavam seu olhar perscrutador.
Pelos retratos trazidos por Clarice, percebemos que fisicamente a aniversariante não
expressava emoção alguma, estava em um silêncio intencional e descontente com a situação,
mas somente ela sabia. Enquanto narrador onisciente, Clarice nos revela os sentimentos, as
impressões e os pensamentos de dona Anita que, aos familiares, não existiam, pela ausência
de reações corporais. Dessa maneira, após as outras etapas de seu desenvolvimento,
percebemos que dona Anita lidava de forma mais elaborada com seus sentimentos e
pensamentos, ao contrário do que imaginavam os familiares, comparando-a com uma criança,
ainda ligada às funções psicológicas elementares.
Conclusão
Com os dois caminhos entrelaçados, a obra da escritora Clarice Lispector e a
Psicologia Histórico-Cultural, localizamos algumas possibilidades da arte literária na
contribuição do entendimento da teoria das emoções por meio do desenvolvimento
ontogenético, ao revelar o homem e seus processos de formação da consciência nas diferentes
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idades da vida. O presente estudo, junto ao entendimento histórico do desenvolvimento do
psiquismo, confirma a humanização da emoção, pela evidência de sua transformação, no
processo pelo qual a função psicológica superior, cultural, supera por incorporação a função
psíquica elementar, ligada às reações orgânicas e às necessidades básicas do indivíduo.
No estabelecimento da unidade entre o afetivo e o cognitivo na formação da
consciência, buscando retratar a constituição dos processos afetivos na superação das
dicotomias, das abordagens individualizantes e do modelo subjetivista que ainda sobrevive na
ciência psicológica, foi possível reconduzir o entendimento das emoções para o núcleo das
demais funções psicológicas superiores, na análise das vivências dos personagens, conforme
as idades da vida.
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