ENTRE O ENIGMA E O NOIR - revista Icarahy

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ENTRE O ENIGMA E O NOIR - revista Icarahy
Revista Icarahy
Edição n.04 / outubro de 2010
ENTRE O ENIGMA E O NOIR: O ROMANCE POLICIAL
DE LUIZ ALFREDO GARCIA-ROZA
Marcio Rezende Siniscalchi Júnior1
RESUMO: Os romances policiais de Luiz Alfredo Garcia-Roza mesclam as características
de duas vertentes do gênero, conhecidas como “enigma” e noir, fazendo com que a
produção contemporânea mantenha vínculos com a tradição da literatura policial. Além de
ter uma personalidade errante, o protagonista Espinosa possui tanto o raciocínio lógicodedutivo dos investigadores das narrativas de “enigma” quanto a impulsividade dos
detetives da série noire, permitindo uma leitura comparativa entre os romances de GarciaRoza e alguns clássicos do gênero policial.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura policial; violência; Garcia-Roza, Luiz Alfredo.
ABSTRACT: Luiz Alfredo Garcia-Roza’s detective novels mixes the features of two
slopes of the genre known as "enigma" and noir. This contemporary production dialogues
with the tradition of detective fiction. Besides having an erratic personality, the protagonist
Espinosa has both the logical-deductive reasoning of researchers from the narratives of
"enigma" as the impulsiveness of noire detective series, allowing a comparison between
Garcia-Roza’s novels and some classics of the genre.
KEYWORDS: Detective fiction; violence; Garcia-Roza, Luiz Alfredo.
1
Mestrando em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura pela Universidade Federal Fluminense.
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Na evolução do gênero policial, é possível observar que, desde os primeiros contos
de Edgar Allan Poe – “Assassinatos na rua Morgue” (1841), “O mistério de Marie Roget”
(1842) e “A carta furtada” (1845) –, no século XIX, as narrativas sempre estiveram
atreladas ao desenvolvimento das grandes metrópoles. Poe descreve misteriosos crimes
num momento em que a multidão ganhava as ruas e a criminalidade começava a aparecer
nas páginas dos jornais.
O romance policial é, antes de tudo, um fenômeno da urbanização, o que permite a
pergunta: como a literatura policial contemporânea se relaciona com a genealogia do
gênero? Algumas respostas podem ser encontradas nos romances policiais de Luiz
Alfredo Garcia-Roza. Neles, ganha destaque a figura do detetive Espinosa, permitindo
entender de que forma a produção contemporânea dialoga com o cânone do gênero.
Para tanto, é preciso primeiro definir os dois principais modelos da narrativa policial: os
romances de enigma e os romances noir.
Na obra de Edgar Allan Poe, por exemplo, o cerne das narrativas não é a violência
generalizada. O investigador Auguste Dupin resolve os casos de dentro de seu escritório,
juntando pedaços de informações e antecipando-se aos acontecimentos. As narrativas
privilegiam ocorrências nas quais o enigma oriundo da sagacidade dos criminosos cria a
atmosfera ideal para o trabalho da “máquina de raciocinar”.
Os crimes que Dupin investiga acontecem dentro da alta sociedade que o próprio
frequenta. É bom lembrar que os exercícios lógico-dedutivos são facilitados pelas boas
relações que ele mantém com seus informantes. No conto “A carta furtada”, por exemplo,
uma correspondência comprometedora é roubada de maneira engenhosa por um homem
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reconhecido na sociedade, que pretende fazer chantagens e tirar proveito com a posse do
documento. O homem, denominado Ministro D***, foi visto no ato do furto, quando
maliciosamente depositou uma carta próxima a vários papéis, e, ao despedir-se de seus
interlocutores, trocou as correspondências sem a mínima hesitação.
Para o detetive Dupin, trata-se de um caso “simples e esquisito”, apesar de a perícia
técnica da polícia parisiense revelar-se incapaz de solucionar o caso. A residência do
Ministro D*** é vasculhada em todos os lugares possíveis e imagináveis, o próprio
suspeito é revistado na rua (ele poderia carregar a carta consigo, pensam os policiais), mas,
mesmo assim, nada é encontrado.
Ao final, Dupin consegue recuperar o documento e, após receber pelos serviços
prestados, explica como fez para chegar até a carta: era preciso pensar como o criminoso e
atuar com a mesma tática, o que o obrigou a agir em dois momentos. Primeiro, ele fez uma
visita informal ao ministro D*** e observou o que estava às claras; depois, tendo
reconhecido o documento em algum local óbvio (ou seja, em algum lugar parecido com
aquele onde o ministro o roubou), Dupin o possuiu do mesmo modo que o criminoso fez,
trocando papéis similares enquanto o despistava.
Apesar de reconhecer que o trabalho da polícia foi meticuloso, o investigador
salienta que, para um homem como o ministro D***, só uma mente sagaz e lógico-dedutiva
seria capaz de descobrir onde o documento estava escondido:
Quando eu quero descobrir até que ponto alguém é sensato, ou estúpido, ou bom, ou perverso,
ou quais são seus pensamentos no momento, componho a expressão de meu rosto, tão
cuidadosamente quanto possível, de acordo com a expressão dele, e então espero ver que
pensamentos ou sentimentos são despertados na minha mente ou no meu coração, como para
se equiparar ou corresponder à ‘minha fisionomia’ (POE, 1997: 180).
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Há, no conto, uma crítica evidente aos trabalhos da polícia, que, na opinião de
Dupin, é incapaz de destrinchar enigmas por estar tão atrelada à materialidade dos crimes.
Frequentemente, o detetive tece elogios à lógica e desconsidera os procedimentos técnicos
em voga, para os quais a descoberta de pistas é vista como único meio possível de se chegar
ao criminoso. Poe estabelece, também, alguns padrões que foram seguidos por vários
autores do gênero policial: o narrador é um amigo/discípulo do investigador; a reflexão
predomina sobre a ação; o final precisa surpreender o leitor.
Do ponto de vista da técnica, a solução apresentada por Poe é das mais eficazes: ao
centrar o foco narrativo em uma personagem secundária, que acompanha a sequência de
eventos e reflexões do detetive, ele simula a colocação de uma câmera que acompanha os
passos do detetive e registra os acontecimentos e discussões, dando ao leitor a sensação de
que está “jogando limpo” e de que a resolução do problema estaria também ao alcance dele.
É possível entender o trabalho do detetive como uma espécie de leitura, na qual a
decodificação dos dados subliminares relacionados ao contexto depende da acuidade do
raciocínio daquele que lê. No caso de Dupin, o raciocínio lógico é seu maior diferencial,
pois, com ele, o detetive consegue desvendar o que não está disponível para todos: sem
depender unicamente das pistas e indícios, ele consegue deduzir as razões dos crimes e
revelar detalhes insondáveis para uma mente comum. Dupin é, afinal, um gênio.
A influência de Poe sobre os demais escritores de narrativas policiais fez com que
um conjunto de textos fosse classificado como romance “de enigma”. A característica
principal desses textos reside, primeiro, na capacidade que os detetives têm de solucionar
crimes sem necessariamente arriscar suas vidas. Os exemplos mais conhecidos são
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Sherlock Holmes, criado por Arthur Conan Doyle, e Hercule Poirot, no caso de Agatha
Christie. Nessas obras, os crimes costumam acontecer entre a alta sociedade da época e
obrigam o investigador a elaborar um intrincado jogo de raciocínios e deduções para
solucioná-los. Com o tempo, no entanto, tal técnica revelou-se insuficiente, levando o
detetive ao questionamento de suas próprias conclusões e obrigando-o a sair para as ruas
em busca de pistas e testemunhas.
No final dos anos 1920, nos EUA, acontece uma guinada no perfil da ficção
policial. Dashiell Hammett cria a figura do detetive durão, mulherengo, de humor corrosivo
e moral menos rígida. Os textos, por sua vez, são escritos de modo seco e ambientados
muitas vezes nos recantos mais pobres e violentos da cidade. Os contos e cinco romances –
principalmente O Falcão Maltês (1930) e Sam Spade, seu protagonista – mostram que o
universo do crime pode ser sujo.
A investigação deixa de ser um passatempo de gabinete e torna-se uma atividade
perigosa. Os detetives profissionalizam-se e sofrem ameaças quando saem às ruas em busca de
pistas e suspeitos. O gênio absoluto e racionalista dá lugar ao investigador mais humano e cheio
de incertezas. Metidos em ternos puídos e fumando incontáveis cigarros, os detetives criados por
Hammett querem desbancar todos, seduzir as mulheres que vão à agência denunciar um
assassinato e sonham em chegar à casa – o mais rápido possível – para afundar-se numa garrafa
de gim.
Conhecidos como noir, os romances policiais norte-americanos apresentam
evoluções quando comparados ao romance de enigma, principalmente no que diz respeito à
elaboração dos temas e das personagens. Há avanços, também, nas construções temporais,
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que geralmente fundem as duas histórias – a do crime e a do relato dele – em benefício da
ação no tempo presente, aguçando o suspense e suscitando maior curiosidade no leitor 1.
Os temas não se restringem mais à atmosfera do insondável, pois estão carregados
das vicissitudes do modo de vida urbano, cada vez mais marcado pela violência imoral e
por cargas explosivas de sexo. Tais dramas cotidianos atingem também o investigador, que
abandona o status de máquina pensante para aproximar-se dos fatos do dia, vivenciando
perseguições, lutas, ameaças e traições.
Por isso, comparando os romances da série noire às narrativas de enigma, é
possível dizer que os primeiros transgridem certos parâmetros, como a onipotência do
pensamento e a lógica imbatível das personagens encarregadas de proteger a
normalidade da vida burguesa. O romance noir possuiria uma forma “selvagem”, em
que provas dos fatos passíveis de interpretação seriam possibilitadas apenas pela
própria experiência do detetive.
Além disso, a incerteza contamina todas as relações do investigador, que age
sozinho e rechaça uma corrupção que está onipresente. Ao afastar-se de todos, ele tenta
manter sua integridade, evitando relações mais íntimas com supostas vítimas ou
testemunhas. Mesmo assim, o detetive durão é presa fácil de mulheres fatais, como
Brigid 0'Shaughnessy, que, em O Falcão Maltês (1930), é uma das supostas assassinas.
Já no final do romance, quando não tem mais como escapar, ela abusa do charme para
tentar desnortear o detetive Sam Spade:
Ela levou as costas da mão à testa. — Oh, por que você me acusa de uma coisa tão terrível... ?
— Quer parar com isso? — perguntou ele em voz baixa e impaciente. — Este não é o lugar
próprio para se fazer de menina de escola. Escute. Nós dois estamos sentados sobre o
cadafalso.
Então agarrou-lhe os pulsos, e obrigou-a a ficar ereta na sua frente.
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— Fale!
— Eu... eu... Como você sabe que...! — ela lambeu os lábios e olhou.
Spade teve uma risada áspera.
— Eu conhecia Miles. Mas não faça caso disso. Por que você o matou?
Ela retorceu os pulsos soltando-os dos dedos de Spade e rodeou-lhe a parte posterior do
pescoço com as mãos, puxando-lhe a cabeça para baixo, até que toda a sua boca ficasse unida
à dela. Seu corpo colava-se ao dele, desde os joelhos até o peito. As pálpebras franjadas de
pestanas escuras estavam semicerradas sobre olhos de veludo. A voz saiu baixa, palpitante:
— A princípio eu não queria fazer isso. Não queria mesmo. Meu plano era o que lhe contei,
mas quando vi que Floyd não podia ser amedrontado eu... (HAMMETT, s.d.: 99).
Hammett revelou a ambiguidade moral da sociedade em que vivia. Antes dele, os
homens que desvendavam crimes na literatura procuravam manter as mãos limpas, tecendo
silogismos entre uma xícara de chá e outra. Hammett, por sua vez, levou o crime para as
sarjetas. O autor abriu novos caminhos na ficção norte-americana. Criou um tipo
inesquecível – o investigador cínico e durão – e fixou a fisionomia de todo um período, o
das décadas de 20 e 30: a insegurança e o pessimismo reinantes no período entreguerras
serviram como matéria-prima para o romance noir, cujas narrativas transitam entre o texto
jornalístico e o romance de enigma.
A correlação entre os avanços da narrativa policial e a modernização da sociedade
provocou mudanças tanto no trabalho de investigação quanto na composição das tramas.
Aos poucos, as cidades ficaram ainda mais populosas e inseguras, e é justamente esse
cenário que propiciará uma variedade maior de crimes, ainda mais presentes em notícias e,
paralelamente, em romances que relatam o submundo das grandes cidades
Muitos críticos acreditam que, em decorrência das diferenças entre essa tradição
“dura” e a anterior, elas não devam ser misturadas, mas o fato é que Raymond Chandler –
talvez o principal autor da linhagem noir – mistura as características de ambos os “estilos”
ao narrar as desventuras de Philip Marlowe, o detetive dos seus romances. Em vez de
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ruptura, observa-se, acima de tudo, em suas narrativas, uma particular modificação. Tratase ainda de crime, investigação e desfecho; mas, agora, há dúvidas, sexo, dinheiro, fracasso,
sangue, morte e uma novidade narrativa: o investigador conta sua própria história. O leitor
vê o que ele vê, além de conhecer a subjetividade da personagem, suas impressões,
temores, riscos.
Em Adeus, minha adorada (1940), o detetive está cuidando de um caso de adultério
quando presencia o assassinato de um negro num bar do subúrbio. Imediatamente, ele se
interessa pelo caso, tornando-se um dos alvos preferenciais dos criminosos que estão
apavorando um bairro habitado por gente pobre.
— Negros. Outro assassinato de negro. É isso que eu valho após dezoito anos neste
departamento de polícia. Nenhuma fotografia, nenhum espaço, nem mesmo quatro linhas na
seção de anúncios classificados.
Eu não disse nada. Ele apanhou meu cartão, leu-o outra vez e largou-o.
— Philip Marlowe, Investigador Particular. Um desses caras, hein? Jesus, você parece duro
bastante. O que é que você ficou fazendo aquele tempo todo?
— Que tempo todo?
— O tempo todo em que este Malloy estava torcendo o pescoço deste negro.
— Oh, isso aconteceu em outra sala — disse eu. — Malloy não havia me prometido que ia
partir o pescoço de ninguém.
— Zombe de mim — disse Nulty, com amargura. — Está bem, vá em frente e zombe de mim.
Todo mundo faz isso. O que importa mais um? Pobre Nulty. Vamos continuar e fazer algumas
brincadeiras com ele. Sempre bom para se rir dele, o Nulty (CHANDLER, 1997: 11).
Diante das singularidades manifestadas por cada autor (e da enorme variedade de
contextos criados por cada narrativa), fica difícil criar critérios definidores do gênero 2,
principalmente se forem levados em consideração os romances policiais contemporâneos.
O escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza, por exemplo, aproveita-se das características de
ambas as “escolas” do gênero, ora utilizando-se da racionalidade do romance de enigma,
ora usufruindo a agilidade do romance noir. Por isso, não só a narrativa como também o
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detetive são, ao mesmo tempo, previdentes e impulsivos, por mais paradoxal que, à
primeira vista, isso possa parecer.
Os procedimentos de Espinosa ao buscar esclarecer um determinado crime estão
próximos das formas de atuação dos detetives do romance policial de enigma, pois ele
sempre utiliza métodos racionais de investigação. Apesar de um pouco cínica, a
personagem é basicamente gentil – praticamente nunca recorre à violência física.
Entretanto, Espinosa não interpreta os dados que obtém com o calculismo de um Auguste
Dupin, o detetive de Poe.
A especificidade da personagem consiste no fato de que, apesar de ser um detetive
dedutivo-racional, ele não pode ser classificado como um gênio ou uma infalível máquina
de raciocinar. Trata-se apenas de um sujeito de habilidades medianas esforçando-se para
acertar no seu trabalho. Espinosa é apenas um funcionário público como outro qualquer:
Era policial como poderia ser professor numa escola secundária. Mas uma coisa era o que eu
pensava de mim e de minha profissão, outra coisa era a representação que o social fazia do
tira (...) Policial só frequenta a sociedade para fazer sindicância (GARCIA-ROZA, 2005:
126).
Muitas vezes, o detetive cumpre mecanicamente suas funções, alimentando-se de
um tédio que lhe transmite a desagradável sensação de que viver como policial é algo
monótono. Ele só é detetive porque, um dia, quando ainda era casado, fez o concurso de
admissão e foi aprovado.
A cada dia ficava mais claro para Espinosa o quanto a rotina do trabalho policial se tornaria
definitivamente insuportável, e não tardaria muito. Não sabia quanto tempo mais, sabia apenas
que não era uma questão quantitativa. Podiam ser dez anos como podiam ser dez dias; tratavase de não atingir aquele ponto em que o cotidiano nos anestesia e transforma dores, angústias
e sofrimentos num tédio permanente que não mais distingue dias e noites, trabalho e descanso,
amor, ódio, indiferença. Muitas vezes pensara em deixar a polícia, só que nas primeiras vezes
a ideia era provocada por conflitos de natureza ética, enquanto nas cogitações mais recentes o
móvel era a repetição monótona dos dias (GARCIA-ROZA, 2001: 140).
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Sua vulnerabilidade aos imprevistos inerentes ao exercício da profissão o aproxima
dos detetives dos romances noir: Espinosa sente atração pelas mulheres envolvidas nos
crimes (sejam as viúvas ou, mesmo, as supostas assassinas), convive com o desassossego e,
às vezes, encarna uma tristeza persistente.
Outro ponto marcante, até natural em se considerando a trajetória anterior de Luiz
Alfredo Garcia-Roza (ele era professor de Teoria Psicanálitica na UFRJ), é o investimento
numa vertente mais propriamente psicologizante da narrativa policial. A exploração do
espaço interior das personagens não recusa, mas, antes, articula-se à crítica social.
Espinosa é volúvel, não segue à risca o protocolo detetivesco, é extremamente
autocrítico e, quando erra, sente-se um fracassado. Seus conflitos interiores espelham a
dubiedade (no limite, a hipocrisia) não só dos valores sancionados pelo senso comum,
como também a própria estrutura social no qual os mesmos se apóiam. Tal e qual a
sociedade em que está inserido, Espinosa é extremamente paradoxal:
Uns são contemporâneos de um tempo que ainda está por vir, podem portanto esperar; outros
são contemporâneos de um tempo que já passou; esses nada mais podem fazer além de viver
de lembranças. Espinosa achava que tinha uma complicação adicional: seu corpo, seu gosto,
seu modo de vestir-se, sua visão de mundo eram perfeitamente contemporâneos à época em
que vivia, mas o sistema de sinais – o código com o qual se orientava no mundo – pertencia a
um tempo já passado (GARCIA-ROZA, 1998: 101-102).
É admitindo uma lacuna intransponível entre o si e o mundo que Espinosa torna
impossível o estabelecimento de conclusões ou a descoberta das intenções dos criminosos.
Tudo resulta num exercício de interpretação, na qual sobressai sua flânerie:
Sabia intimamente, sem nenhum critério objetivo, quando tinha chegado perto da verdade ou
quando tinha deparado com alguém cujo ser lhe escapava inteiramente. Dependendo da
ocasião, chegava a elaborar biografias fantasticamente minuciosas. Sentia-se como um
ficcionista cujos personagens eram as pessoas reais que encontrava nos restaurantes, nas lojas
e na rua. Às vezes fazia isso consigo próprio. Imaginava, por exemplo, que em determinado
ponto de sua vida, em vez de ter feito tal coisa, tinha feito tal outra. Como teria sido esse
outro caminho? E num ponto desse outro caminho, imaginava uma outra escolha e um outro
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caminho distinto do anterior. Às vezes ia tão longe por essas bifurcações que rompia o nexo
com a pessoa original a ponto de fazê-la perder a identidade (GARCIA-ROZA, 2001: 36).
São os sentimentos que nascem do embate com o “outro” que guiam seus atos.
Espinosa reconhece na ação de outrem aquilo que ele poderia ser, e é desse confronto entre
o que ele é e o que os outros são que surge o desconforto do detetive. Sua insatisfação
constante é resultado das escolhas mal-sucedidas que tomou na vida, a começar pela
profissão de policial.
Espinosa é um sujeito educado e culto inserido numa instituição habituada à
truculência; apesar de sua integridade, ele convive com a sujeira da corrupção e reconhece
na atitude ilícita dos colegas os mesmos desejos que o habitam (que, no entanto, são
reprimidos por sua moral inabalável).
Considerava a polícia uma instituição que opera num espaço de fronteira entre a ordem social
e o crime, assim como o hospital psiquiátrico opera na região que separa e articula a sanidade
e a loucura. (...) Loucura e crime não são originários de um mundo estrangeiro, mas de
potências internas ao próprio homem. Ambos são nossos íntimos. (...) Como instituição de
confronto, a polícia mantém uma perigosa intimidade com o crime (GARCIA-ROZA: 1998,
91-92).
O confronto entre sua noção do que é certo e sua apurada visão de mundo é a força
motriz de muitas das reflexões, quase sempre marcadas por uma certa amargura. A
consciência crítica de que, no Brasil, a instituição policial é responsável por falcatruas e
crimes abomináveis o deixa com a sensação de profundo abandono.
Em O Silêncio da Chuva (1996), romance de estréia de Garcia-Roza, a segunda
parte do relato é narrada no presente por Espinosa, em primeira pessoa, seguindo o padrão
narrativo do policial noir, mas as demais partes do livro são narradas no passado, em
terceira pessoa, aproximando o romance do policial enigma. O protagonista procura
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solucionar o que parece ser o assassinato de um executivo, ocorrido em pleno dia e sem
testemunhas, na garagem do prédio onde trabalhava. No decorrer da investigação, outros
cadáveres surgem, relacionados de alguma forma ao crime inicial, ampliando os mistérios e
aumentando as dúvidas de Espinosa.
Paralelamente a essa trama, ele tem outros dilemas, como o de encontrar lugar para
seus livros, ou como lidar com a atração que sente pela viúva da vítima. Entretanto, o que
mais o angustia é a consciência de que, apesar de sua honestidade, dificilmente ele será
visto como alguém ético, pois, para o senso comum, todo policial é corrupto.
‘Preferia não fazê-lo’, repetia tranquila e pacificamente Bartleby, o escrivão, para seu patrão e
protetor. Também eu, preferia não fazê-lo. Preferia, numa segunda-feira de manhã, não ter que ir à
delegacia, não ter que assistir pela enésima vez a liberação dos bêbados arruaceiros, travestis,
punguistas, valentes e brigões, prostitutas e drogados. Preferia não ter que preencher formulários
inúteis ou fazer relatórios, que eram expressão da incompetência policial. Preferia não ter que
assistir à cena da velha senhora com os dedos cortados à tesoura. Preferia, ao me encontrar com
uma bela mulher, não ter que proferir a frase fatídica: ‘sou o inspetor Espinosa, da 1ª DP’
(GARCIA-ROZA, 2005: 130).
No romance Uma janela em Copacabana (2004), por sua vez, o mote das
investigações são justamente as mortes de três policiais que, supostamente, estavam
desviando o dinheiro arrecadado com propinas. Espinosa monta um grupo para investigar
a própria polícia, acreditando que três tiras em quem confia manterão o sigilo das
informações coletadas. O detetive torna-se um justiceiro em defesa da lei e da ordem:
Quero ressaltar que, independentemente da origem e dos fins, não há boa propina.
Propina não é complemento salarial. Propina é suborno. Quem aceita suborno, assim
como quem suborna, é corrupto. E corrupção, além de ser um problema legal, é um
problema ético. (...) Não sei quem entre vocês recebe propina, nem pretendo me
transformar em corregedor, mas não vou permitir que as coisas continuem como suspeito
que estejam (GARCIA-ROZA, 2001: 197).
Espinosa procura adotar uma atitude ética e equilibrada na hora de interpretar os
atos de seus colegas de profissão e a sucessão dos acontecimentos. Como ele tem
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consciência da impossibilidade de se chegar a uma verdade, apresenta apenas as
suposições, deixando claro que tudo não passa de uma interpretação. O delegado reconhece
que o trabalho de averiguar dados e consultar testemunhas é parcial e não encerra
conclusões necessariamente acertadas.
Ao conversar com sua namorada, Irene, sobre o fim das investigações das mortes
dos três policiais, Espinosa relativiza as conclusões a que chegara a partir do jogo de
investigações e deduções, reportando a ela o papel interpretativo que cabe ao detetive. A
certeza resta como algo íntimo e subjetivo que não condiz com o que se denomina
“verdade”:
Nada é definitivo, muitos pontos precisam ser esclarecidos e as lacunas da história, que são
muitas, foram preenchidas pela minha imaginação, o que torna esse relato uma obra de ficção.
Minha esperança é que algum dia essa ficção possa ser substituída pela versão verdadeira
(Idem: 220).
Observa-se, assim, que o detetive funda seus critérios de investigação em dois
mecanismos diferentes: enquanto deduz a partir de indícios e busca um criminoso ideal
para as ocorrências, ele reage às intempéries de seu trabalho, fazendo da coleta de dados e
do processo investigativo atividades subjetivas e paradoxais.
O próprio detetive Espinosa define-se como alguém contraditório, metade razão
metade emoção, quando, muitas vezes, vê-se dividido entre seguir sua intuição ou respeitar
os raciocínios intrincados que sua mente elaborou. Há, portanto, no investigador, a
confusão entre os dois modelos de detetives já sacramentados pela literatura: os detetives
frios e calculistas comuns aos romances de enigma, tidos como “máquinas de pensar”, e os
investigadores do romance noir, vítimas das emoções e expostos aos perigos da
impulsividade.
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Na atualidade, não há limites confiáveis que permitam diferenciar o bem do mal,
como nos romances de enigma. Por isso, o romance policial contemporâneo não apresenta
soluções nem culpados, ou seja, há uma nítida relativização de tudo, contrariando uma das
características fundamentais do gênero, que apresentava os investigadores como figuras do
bem e criminosos como representantes do mal.
Espinosa é um homem comum que, apesar de íntegro, falha durante as
investigações, o que o leva a ser visto como um homem que aceita seu destino, a sua
solidão, os seus medos. O que ele relata é decorrência de uma interpretação de si diante das
experiências que vivencia. E a verossimilhança, enfim, é resultado de uma lógica interna:
Pensar, para Espinosa, não era articular conceitos logicamente, mas um enfrentamento mortal
entre a racionalidade pura e o imaginário sem limites (...). Entre o racionalista frio e o
fantasista semidelirante, ele situava a si mesmo entre os segundos, embora aparentasse o
oposto (GARCIA-ROZA, 1998: 268).
Persegue-se uma motivação; faz-se um exercício racional; submete-se o leitor ao
medo; no final, entretanto, as expectativas são frustradas, já que pouco é revelado. As
ambiguidades são inerentes à vida, e, devido à necessidade de verossimilhança típica do
romance policial, foram incorporadas às narrativas atuais.
No plano do enunciado, o detetive busca resolver o caso, ao mesmo tempo em que,
no da enunciação, o narrador problematiza o percurso traçado pelo investigador. Como diz
o próprio Espinosa, ao final da investigação em Uma Janela em Copacabana (2004),
quando, ao conversar com Irene, parece estar se dirigindo ao leitor:
Mas, veja bem, essa foi a história que contei para você. Ela é em grande parte feita de
suposições; uma pequena parte é fruto da dedução, mas não disponho de provas quanto ao
ponto de partida dessas deduções; tem ainda uma boa parte que é feita da fantasia com a qual
preenchi as lacunas, talvez a maior parte. (...) É exatamente o que tenho: certeza íntima. Por
isso estou conversando com você. Toda certeza, como você disse, é íntima, subjetiva. Certeza
não é verdade (GARCIA-ROZA, 2001: 223-224).
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O romance policial torna-se, assim, objeto privilegiado para investigar as relações
da literatura com temas contemporâneos, trazendo à tona tanto a subjetividade problemática
do homem pós-moderno quanto uma caracterização do espaço urbano enquanto local dos
contrastes e da violência. Bem e mal são categorias individuais, e cabe ao leitor defini-las
de acordo com suas experiências e opiniões próprias.
Recebido em setembro de 2010
Aprovado em outubro de 2010
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHANDLER, Raymond. Adeus, minha adorada. Porto Alegre: L&PM, 1997.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Achados e perdidos. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
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HAMMETT, Dashiel. O falcão maltês. São Paulo: Círculo do Livro, s.d.
MAGDALENO, Renata. “A solidão do detetive: uma reflexão a partir de Luiz Alfredo
Garcia-Roza” In Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, no 33. Brasília: UnB,
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MANDEL, Ernest. Delícias do crime: história social do romance policial. São Paulo:
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Odisséia Editorial, 2007.
TODOROV, Tzvetan. “Tipologia do romance policial” In As estruturas narrativas. Trad.
Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1979.
1
O noir dificilmente se apresenta sob a forma de memórias, já que o detetive atua diante dos acontecimentos
e sua vida corre perigo.
2
Para Todorov, o que pode ser definido, afinal, como característica fundamental do gênero é a existência de
três elementos: um detetive principal, um culpado e, no mínimo, uma vítima. Além disso, a maior diferença
entre os romances de enigma e a variante noir está na caracterização do detetive, que, nos primeiros, é imune
às peripécias dos investigados e, na última, sofre as consequências de seus atos no mesmo instante em que
eles acontecem. Vide TODOROV, Tzvetan. “Tipologia do romance policial” In As estruturas narrativas.
Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1979, pp. 93-104.
Revista Icarahy
Edição n.04 / outubro de 2010

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