ENTRE O ENIGMA E O NOIR - revista Icarahy
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ENTRE O ENIGMA E O NOIR - revista Icarahy
Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 ENTRE O ENIGMA E O NOIR: O ROMANCE POLICIAL DE LUIZ ALFREDO GARCIA-ROZA Marcio Rezende Siniscalchi Júnior1 RESUMO: Os romances policiais de Luiz Alfredo Garcia-Roza mesclam as características de duas vertentes do gênero, conhecidas como “enigma” e noir, fazendo com que a produção contemporânea mantenha vínculos com a tradição da literatura policial. Além de ter uma personalidade errante, o protagonista Espinosa possui tanto o raciocínio lógicodedutivo dos investigadores das narrativas de “enigma” quanto a impulsividade dos detetives da série noire, permitindo uma leitura comparativa entre os romances de GarciaRoza e alguns clássicos do gênero policial. PALAVRAS-CHAVE: Literatura policial; violência; Garcia-Roza, Luiz Alfredo. ABSTRACT: Luiz Alfredo Garcia-Roza’s detective novels mixes the features of two slopes of the genre known as "enigma" and noir. This contemporary production dialogues with the tradition of detective fiction. Besides having an erratic personality, the protagonist Espinosa has both the logical-deductive reasoning of researchers from the narratives of "enigma" as the impulsiveness of noire detective series, allowing a comparison between Garcia-Roza’s novels and some classics of the genre. KEYWORDS: Detective fiction; violence; Garcia-Roza, Luiz Alfredo. 1 Mestrando em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura pela Universidade Federal Fluminense. Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 Na evolução do gênero policial, é possível observar que, desde os primeiros contos de Edgar Allan Poe – “Assassinatos na rua Morgue” (1841), “O mistério de Marie Roget” (1842) e “A carta furtada” (1845) –, no século XIX, as narrativas sempre estiveram atreladas ao desenvolvimento das grandes metrópoles. Poe descreve misteriosos crimes num momento em que a multidão ganhava as ruas e a criminalidade começava a aparecer nas páginas dos jornais. O romance policial é, antes de tudo, um fenômeno da urbanização, o que permite a pergunta: como a literatura policial contemporânea se relaciona com a genealogia do gênero? Algumas respostas podem ser encontradas nos romances policiais de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Neles, ganha destaque a figura do detetive Espinosa, permitindo entender de que forma a produção contemporânea dialoga com o cânone do gênero. Para tanto, é preciso primeiro definir os dois principais modelos da narrativa policial: os romances de enigma e os romances noir. Na obra de Edgar Allan Poe, por exemplo, o cerne das narrativas não é a violência generalizada. O investigador Auguste Dupin resolve os casos de dentro de seu escritório, juntando pedaços de informações e antecipando-se aos acontecimentos. As narrativas privilegiam ocorrências nas quais o enigma oriundo da sagacidade dos criminosos cria a atmosfera ideal para o trabalho da “máquina de raciocinar”. Os crimes que Dupin investiga acontecem dentro da alta sociedade que o próprio frequenta. É bom lembrar que os exercícios lógico-dedutivos são facilitados pelas boas relações que ele mantém com seus informantes. No conto “A carta furtada”, por exemplo, uma correspondência comprometedora é roubada de maneira engenhosa por um homem Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 reconhecido na sociedade, que pretende fazer chantagens e tirar proveito com a posse do documento. O homem, denominado Ministro D***, foi visto no ato do furto, quando maliciosamente depositou uma carta próxima a vários papéis, e, ao despedir-se de seus interlocutores, trocou as correspondências sem a mínima hesitação. Para o detetive Dupin, trata-se de um caso “simples e esquisito”, apesar de a perícia técnica da polícia parisiense revelar-se incapaz de solucionar o caso. A residência do Ministro D*** é vasculhada em todos os lugares possíveis e imagináveis, o próprio suspeito é revistado na rua (ele poderia carregar a carta consigo, pensam os policiais), mas, mesmo assim, nada é encontrado. Ao final, Dupin consegue recuperar o documento e, após receber pelos serviços prestados, explica como fez para chegar até a carta: era preciso pensar como o criminoso e atuar com a mesma tática, o que o obrigou a agir em dois momentos. Primeiro, ele fez uma visita informal ao ministro D*** e observou o que estava às claras; depois, tendo reconhecido o documento em algum local óbvio (ou seja, em algum lugar parecido com aquele onde o ministro o roubou), Dupin o possuiu do mesmo modo que o criminoso fez, trocando papéis similares enquanto o despistava. Apesar de reconhecer que o trabalho da polícia foi meticuloso, o investigador salienta que, para um homem como o ministro D***, só uma mente sagaz e lógico-dedutiva seria capaz de descobrir onde o documento estava escondido: Quando eu quero descobrir até que ponto alguém é sensato, ou estúpido, ou bom, ou perverso, ou quais são seus pensamentos no momento, componho a expressão de meu rosto, tão cuidadosamente quanto possível, de acordo com a expressão dele, e então espero ver que pensamentos ou sentimentos são despertados na minha mente ou no meu coração, como para se equiparar ou corresponder à ‘minha fisionomia’ (POE, 1997: 180). Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 Há, no conto, uma crítica evidente aos trabalhos da polícia, que, na opinião de Dupin, é incapaz de destrinchar enigmas por estar tão atrelada à materialidade dos crimes. Frequentemente, o detetive tece elogios à lógica e desconsidera os procedimentos técnicos em voga, para os quais a descoberta de pistas é vista como único meio possível de se chegar ao criminoso. Poe estabelece, também, alguns padrões que foram seguidos por vários autores do gênero policial: o narrador é um amigo/discípulo do investigador; a reflexão predomina sobre a ação; o final precisa surpreender o leitor. Do ponto de vista da técnica, a solução apresentada por Poe é das mais eficazes: ao centrar o foco narrativo em uma personagem secundária, que acompanha a sequência de eventos e reflexões do detetive, ele simula a colocação de uma câmera que acompanha os passos do detetive e registra os acontecimentos e discussões, dando ao leitor a sensação de que está “jogando limpo” e de que a resolução do problema estaria também ao alcance dele. É possível entender o trabalho do detetive como uma espécie de leitura, na qual a decodificação dos dados subliminares relacionados ao contexto depende da acuidade do raciocínio daquele que lê. No caso de Dupin, o raciocínio lógico é seu maior diferencial, pois, com ele, o detetive consegue desvendar o que não está disponível para todos: sem depender unicamente das pistas e indícios, ele consegue deduzir as razões dos crimes e revelar detalhes insondáveis para uma mente comum. Dupin é, afinal, um gênio. A influência de Poe sobre os demais escritores de narrativas policiais fez com que um conjunto de textos fosse classificado como romance “de enigma”. A característica principal desses textos reside, primeiro, na capacidade que os detetives têm de solucionar crimes sem necessariamente arriscar suas vidas. Os exemplos mais conhecidos são Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 Sherlock Holmes, criado por Arthur Conan Doyle, e Hercule Poirot, no caso de Agatha Christie. Nessas obras, os crimes costumam acontecer entre a alta sociedade da época e obrigam o investigador a elaborar um intrincado jogo de raciocínios e deduções para solucioná-los. Com o tempo, no entanto, tal técnica revelou-se insuficiente, levando o detetive ao questionamento de suas próprias conclusões e obrigando-o a sair para as ruas em busca de pistas e testemunhas. No final dos anos 1920, nos EUA, acontece uma guinada no perfil da ficção policial. Dashiell Hammett cria a figura do detetive durão, mulherengo, de humor corrosivo e moral menos rígida. Os textos, por sua vez, são escritos de modo seco e ambientados muitas vezes nos recantos mais pobres e violentos da cidade. Os contos e cinco romances – principalmente O Falcão Maltês (1930) e Sam Spade, seu protagonista – mostram que o universo do crime pode ser sujo. A investigação deixa de ser um passatempo de gabinete e torna-se uma atividade perigosa. Os detetives profissionalizam-se e sofrem ameaças quando saem às ruas em busca de pistas e suspeitos. O gênio absoluto e racionalista dá lugar ao investigador mais humano e cheio de incertezas. Metidos em ternos puídos e fumando incontáveis cigarros, os detetives criados por Hammett querem desbancar todos, seduzir as mulheres que vão à agência denunciar um assassinato e sonham em chegar à casa – o mais rápido possível – para afundar-se numa garrafa de gim. Conhecidos como noir, os romances policiais norte-americanos apresentam evoluções quando comparados ao romance de enigma, principalmente no que diz respeito à elaboração dos temas e das personagens. Há avanços, também, nas construções temporais, Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 que geralmente fundem as duas histórias – a do crime e a do relato dele – em benefício da ação no tempo presente, aguçando o suspense e suscitando maior curiosidade no leitor 1. Os temas não se restringem mais à atmosfera do insondável, pois estão carregados das vicissitudes do modo de vida urbano, cada vez mais marcado pela violência imoral e por cargas explosivas de sexo. Tais dramas cotidianos atingem também o investigador, que abandona o status de máquina pensante para aproximar-se dos fatos do dia, vivenciando perseguições, lutas, ameaças e traições. Por isso, comparando os romances da série noire às narrativas de enigma, é possível dizer que os primeiros transgridem certos parâmetros, como a onipotência do pensamento e a lógica imbatível das personagens encarregadas de proteger a normalidade da vida burguesa. O romance noir possuiria uma forma “selvagem”, em que provas dos fatos passíveis de interpretação seriam possibilitadas apenas pela própria experiência do detetive. Além disso, a incerteza contamina todas as relações do investigador, que age sozinho e rechaça uma corrupção que está onipresente. Ao afastar-se de todos, ele tenta manter sua integridade, evitando relações mais íntimas com supostas vítimas ou testemunhas. Mesmo assim, o detetive durão é presa fácil de mulheres fatais, como Brigid 0'Shaughnessy, que, em O Falcão Maltês (1930), é uma das supostas assassinas. Já no final do romance, quando não tem mais como escapar, ela abusa do charme para tentar desnortear o detetive Sam Spade: Ela levou as costas da mão à testa. — Oh, por que você me acusa de uma coisa tão terrível... ? — Quer parar com isso? — perguntou ele em voz baixa e impaciente. — Este não é o lugar próprio para se fazer de menina de escola. Escute. Nós dois estamos sentados sobre o cadafalso. Então agarrou-lhe os pulsos, e obrigou-a a ficar ereta na sua frente. Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 — Fale! — Eu... eu... Como você sabe que...! — ela lambeu os lábios e olhou. Spade teve uma risada áspera. — Eu conhecia Miles. Mas não faça caso disso. Por que você o matou? Ela retorceu os pulsos soltando-os dos dedos de Spade e rodeou-lhe a parte posterior do pescoço com as mãos, puxando-lhe a cabeça para baixo, até que toda a sua boca ficasse unida à dela. Seu corpo colava-se ao dele, desde os joelhos até o peito. As pálpebras franjadas de pestanas escuras estavam semicerradas sobre olhos de veludo. A voz saiu baixa, palpitante: — A princípio eu não queria fazer isso. Não queria mesmo. Meu plano era o que lhe contei, mas quando vi que Floyd não podia ser amedrontado eu... (HAMMETT, s.d.: 99). Hammett revelou a ambiguidade moral da sociedade em que vivia. Antes dele, os homens que desvendavam crimes na literatura procuravam manter as mãos limpas, tecendo silogismos entre uma xícara de chá e outra. Hammett, por sua vez, levou o crime para as sarjetas. O autor abriu novos caminhos na ficção norte-americana. Criou um tipo inesquecível – o investigador cínico e durão – e fixou a fisionomia de todo um período, o das décadas de 20 e 30: a insegurança e o pessimismo reinantes no período entreguerras serviram como matéria-prima para o romance noir, cujas narrativas transitam entre o texto jornalístico e o romance de enigma. A correlação entre os avanços da narrativa policial e a modernização da sociedade provocou mudanças tanto no trabalho de investigação quanto na composição das tramas. Aos poucos, as cidades ficaram ainda mais populosas e inseguras, e é justamente esse cenário que propiciará uma variedade maior de crimes, ainda mais presentes em notícias e, paralelamente, em romances que relatam o submundo das grandes cidades Muitos críticos acreditam que, em decorrência das diferenças entre essa tradição “dura” e a anterior, elas não devam ser misturadas, mas o fato é que Raymond Chandler – talvez o principal autor da linhagem noir – mistura as características de ambos os “estilos” ao narrar as desventuras de Philip Marlowe, o detetive dos seus romances. Em vez de Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 ruptura, observa-se, acima de tudo, em suas narrativas, uma particular modificação. Tratase ainda de crime, investigação e desfecho; mas, agora, há dúvidas, sexo, dinheiro, fracasso, sangue, morte e uma novidade narrativa: o investigador conta sua própria história. O leitor vê o que ele vê, além de conhecer a subjetividade da personagem, suas impressões, temores, riscos. Em Adeus, minha adorada (1940), o detetive está cuidando de um caso de adultério quando presencia o assassinato de um negro num bar do subúrbio. Imediatamente, ele se interessa pelo caso, tornando-se um dos alvos preferenciais dos criminosos que estão apavorando um bairro habitado por gente pobre. — Negros. Outro assassinato de negro. É isso que eu valho após dezoito anos neste departamento de polícia. Nenhuma fotografia, nenhum espaço, nem mesmo quatro linhas na seção de anúncios classificados. Eu não disse nada. Ele apanhou meu cartão, leu-o outra vez e largou-o. — Philip Marlowe, Investigador Particular. Um desses caras, hein? Jesus, você parece duro bastante. O que é que você ficou fazendo aquele tempo todo? — Que tempo todo? — O tempo todo em que este Malloy estava torcendo o pescoço deste negro. — Oh, isso aconteceu em outra sala — disse eu. — Malloy não havia me prometido que ia partir o pescoço de ninguém. — Zombe de mim — disse Nulty, com amargura. — Está bem, vá em frente e zombe de mim. Todo mundo faz isso. O que importa mais um? Pobre Nulty. Vamos continuar e fazer algumas brincadeiras com ele. Sempre bom para se rir dele, o Nulty (CHANDLER, 1997: 11). Diante das singularidades manifestadas por cada autor (e da enorme variedade de contextos criados por cada narrativa), fica difícil criar critérios definidores do gênero 2, principalmente se forem levados em consideração os romances policiais contemporâneos. O escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza, por exemplo, aproveita-se das características de ambas as “escolas” do gênero, ora utilizando-se da racionalidade do romance de enigma, ora usufruindo a agilidade do romance noir. Por isso, não só a narrativa como também o Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 detetive são, ao mesmo tempo, previdentes e impulsivos, por mais paradoxal que, à primeira vista, isso possa parecer. Os procedimentos de Espinosa ao buscar esclarecer um determinado crime estão próximos das formas de atuação dos detetives do romance policial de enigma, pois ele sempre utiliza métodos racionais de investigação. Apesar de um pouco cínica, a personagem é basicamente gentil – praticamente nunca recorre à violência física. Entretanto, Espinosa não interpreta os dados que obtém com o calculismo de um Auguste Dupin, o detetive de Poe. A especificidade da personagem consiste no fato de que, apesar de ser um detetive dedutivo-racional, ele não pode ser classificado como um gênio ou uma infalível máquina de raciocinar. Trata-se apenas de um sujeito de habilidades medianas esforçando-se para acertar no seu trabalho. Espinosa é apenas um funcionário público como outro qualquer: Era policial como poderia ser professor numa escola secundária. Mas uma coisa era o que eu pensava de mim e de minha profissão, outra coisa era a representação que o social fazia do tira (...) Policial só frequenta a sociedade para fazer sindicância (GARCIA-ROZA, 2005: 126). Muitas vezes, o detetive cumpre mecanicamente suas funções, alimentando-se de um tédio que lhe transmite a desagradável sensação de que viver como policial é algo monótono. Ele só é detetive porque, um dia, quando ainda era casado, fez o concurso de admissão e foi aprovado. A cada dia ficava mais claro para Espinosa o quanto a rotina do trabalho policial se tornaria definitivamente insuportável, e não tardaria muito. Não sabia quanto tempo mais, sabia apenas que não era uma questão quantitativa. Podiam ser dez anos como podiam ser dez dias; tratavase de não atingir aquele ponto em que o cotidiano nos anestesia e transforma dores, angústias e sofrimentos num tédio permanente que não mais distingue dias e noites, trabalho e descanso, amor, ódio, indiferença. Muitas vezes pensara em deixar a polícia, só que nas primeiras vezes a ideia era provocada por conflitos de natureza ética, enquanto nas cogitações mais recentes o móvel era a repetição monótona dos dias (GARCIA-ROZA, 2001: 140). Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 Sua vulnerabilidade aos imprevistos inerentes ao exercício da profissão o aproxima dos detetives dos romances noir: Espinosa sente atração pelas mulheres envolvidas nos crimes (sejam as viúvas ou, mesmo, as supostas assassinas), convive com o desassossego e, às vezes, encarna uma tristeza persistente. Outro ponto marcante, até natural em se considerando a trajetória anterior de Luiz Alfredo Garcia-Roza (ele era professor de Teoria Psicanálitica na UFRJ), é o investimento numa vertente mais propriamente psicologizante da narrativa policial. A exploração do espaço interior das personagens não recusa, mas, antes, articula-se à crítica social. Espinosa é volúvel, não segue à risca o protocolo detetivesco, é extremamente autocrítico e, quando erra, sente-se um fracassado. Seus conflitos interiores espelham a dubiedade (no limite, a hipocrisia) não só dos valores sancionados pelo senso comum, como também a própria estrutura social no qual os mesmos se apóiam. Tal e qual a sociedade em que está inserido, Espinosa é extremamente paradoxal: Uns são contemporâneos de um tempo que ainda está por vir, podem portanto esperar; outros são contemporâneos de um tempo que já passou; esses nada mais podem fazer além de viver de lembranças. Espinosa achava que tinha uma complicação adicional: seu corpo, seu gosto, seu modo de vestir-se, sua visão de mundo eram perfeitamente contemporâneos à época em que vivia, mas o sistema de sinais – o código com o qual se orientava no mundo – pertencia a um tempo já passado (GARCIA-ROZA, 1998: 101-102). É admitindo uma lacuna intransponível entre o si e o mundo que Espinosa torna impossível o estabelecimento de conclusões ou a descoberta das intenções dos criminosos. Tudo resulta num exercício de interpretação, na qual sobressai sua flânerie: Sabia intimamente, sem nenhum critério objetivo, quando tinha chegado perto da verdade ou quando tinha deparado com alguém cujo ser lhe escapava inteiramente. Dependendo da ocasião, chegava a elaborar biografias fantasticamente minuciosas. Sentia-se como um ficcionista cujos personagens eram as pessoas reais que encontrava nos restaurantes, nas lojas e na rua. Às vezes fazia isso consigo próprio. Imaginava, por exemplo, que em determinado ponto de sua vida, em vez de ter feito tal coisa, tinha feito tal outra. Como teria sido esse outro caminho? E num ponto desse outro caminho, imaginava uma outra escolha e um outro Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 caminho distinto do anterior. Às vezes ia tão longe por essas bifurcações que rompia o nexo com a pessoa original a ponto de fazê-la perder a identidade (GARCIA-ROZA, 2001: 36). São os sentimentos que nascem do embate com o “outro” que guiam seus atos. Espinosa reconhece na ação de outrem aquilo que ele poderia ser, e é desse confronto entre o que ele é e o que os outros são que surge o desconforto do detetive. Sua insatisfação constante é resultado das escolhas mal-sucedidas que tomou na vida, a começar pela profissão de policial. Espinosa é um sujeito educado e culto inserido numa instituição habituada à truculência; apesar de sua integridade, ele convive com a sujeira da corrupção e reconhece na atitude ilícita dos colegas os mesmos desejos que o habitam (que, no entanto, são reprimidos por sua moral inabalável). Considerava a polícia uma instituição que opera num espaço de fronteira entre a ordem social e o crime, assim como o hospital psiquiátrico opera na região que separa e articula a sanidade e a loucura. (...) Loucura e crime não são originários de um mundo estrangeiro, mas de potências internas ao próprio homem. Ambos são nossos íntimos. (...) Como instituição de confronto, a polícia mantém uma perigosa intimidade com o crime (GARCIA-ROZA: 1998, 91-92). O confronto entre sua noção do que é certo e sua apurada visão de mundo é a força motriz de muitas das reflexões, quase sempre marcadas por uma certa amargura. A consciência crítica de que, no Brasil, a instituição policial é responsável por falcatruas e crimes abomináveis o deixa com a sensação de profundo abandono. Em O Silêncio da Chuva (1996), romance de estréia de Garcia-Roza, a segunda parte do relato é narrada no presente por Espinosa, em primeira pessoa, seguindo o padrão narrativo do policial noir, mas as demais partes do livro são narradas no passado, em terceira pessoa, aproximando o romance do policial enigma. O protagonista procura Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 solucionar o que parece ser o assassinato de um executivo, ocorrido em pleno dia e sem testemunhas, na garagem do prédio onde trabalhava. No decorrer da investigação, outros cadáveres surgem, relacionados de alguma forma ao crime inicial, ampliando os mistérios e aumentando as dúvidas de Espinosa. Paralelamente a essa trama, ele tem outros dilemas, como o de encontrar lugar para seus livros, ou como lidar com a atração que sente pela viúva da vítima. Entretanto, o que mais o angustia é a consciência de que, apesar de sua honestidade, dificilmente ele será visto como alguém ético, pois, para o senso comum, todo policial é corrupto. ‘Preferia não fazê-lo’, repetia tranquila e pacificamente Bartleby, o escrivão, para seu patrão e protetor. Também eu, preferia não fazê-lo. Preferia, numa segunda-feira de manhã, não ter que ir à delegacia, não ter que assistir pela enésima vez a liberação dos bêbados arruaceiros, travestis, punguistas, valentes e brigões, prostitutas e drogados. Preferia não ter que preencher formulários inúteis ou fazer relatórios, que eram expressão da incompetência policial. Preferia não ter que assistir à cena da velha senhora com os dedos cortados à tesoura. Preferia, ao me encontrar com uma bela mulher, não ter que proferir a frase fatídica: ‘sou o inspetor Espinosa, da 1ª DP’ (GARCIA-ROZA, 2005: 130). No romance Uma janela em Copacabana (2004), por sua vez, o mote das investigações são justamente as mortes de três policiais que, supostamente, estavam desviando o dinheiro arrecadado com propinas. Espinosa monta um grupo para investigar a própria polícia, acreditando que três tiras em quem confia manterão o sigilo das informações coletadas. O detetive torna-se um justiceiro em defesa da lei e da ordem: Quero ressaltar que, independentemente da origem e dos fins, não há boa propina. Propina não é complemento salarial. Propina é suborno. Quem aceita suborno, assim como quem suborna, é corrupto. E corrupção, além de ser um problema legal, é um problema ético. (...) Não sei quem entre vocês recebe propina, nem pretendo me transformar em corregedor, mas não vou permitir que as coisas continuem como suspeito que estejam (GARCIA-ROZA, 2001: 197). Espinosa procura adotar uma atitude ética e equilibrada na hora de interpretar os atos de seus colegas de profissão e a sucessão dos acontecimentos. Como ele tem Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 consciência da impossibilidade de se chegar a uma verdade, apresenta apenas as suposições, deixando claro que tudo não passa de uma interpretação. O delegado reconhece que o trabalho de averiguar dados e consultar testemunhas é parcial e não encerra conclusões necessariamente acertadas. Ao conversar com sua namorada, Irene, sobre o fim das investigações das mortes dos três policiais, Espinosa relativiza as conclusões a que chegara a partir do jogo de investigações e deduções, reportando a ela o papel interpretativo que cabe ao detetive. A certeza resta como algo íntimo e subjetivo que não condiz com o que se denomina “verdade”: Nada é definitivo, muitos pontos precisam ser esclarecidos e as lacunas da história, que são muitas, foram preenchidas pela minha imaginação, o que torna esse relato uma obra de ficção. Minha esperança é que algum dia essa ficção possa ser substituída pela versão verdadeira (Idem: 220). Observa-se, assim, que o detetive funda seus critérios de investigação em dois mecanismos diferentes: enquanto deduz a partir de indícios e busca um criminoso ideal para as ocorrências, ele reage às intempéries de seu trabalho, fazendo da coleta de dados e do processo investigativo atividades subjetivas e paradoxais. O próprio detetive Espinosa define-se como alguém contraditório, metade razão metade emoção, quando, muitas vezes, vê-se dividido entre seguir sua intuição ou respeitar os raciocínios intrincados que sua mente elaborou. Há, portanto, no investigador, a confusão entre os dois modelos de detetives já sacramentados pela literatura: os detetives frios e calculistas comuns aos romances de enigma, tidos como “máquinas de pensar”, e os investigadores do romance noir, vítimas das emoções e expostos aos perigos da impulsividade. Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 Na atualidade, não há limites confiáveis que permitam diferenciar o bem do mal, como nos romances de enigma. Por isso, o romance policial contemporâneo não apresenta soluções nem culpados, ou seja, há uma nítida relativização de tudo, contrariando uma das características fundamentais do gênero, que apresentava os investigadores como figuras do bem e criminosos como representantes do mal. Espinosa é um homem comum que, apesar de íntegro, falha durante as investigações, o que o leva a ser visto como um homem que aceita seu destino, a sua solidão, os seus medos. O que ele relata é decorrência de uma interpretação de si diante das experiências que vivencia. E a verossimilhança, enfim, é resultado de uma lógica interna: Pensar, para Espinosa, não era articular conceitos logicamente, mas um enfrentamento mortal entre a racionalidade pura e o imaginário sem limites (...). Entre o racionalista frio e o fantasista semidelirante, ele situava a si mesmo entre os segundos, embora aparentasse o oposto (GARCIA-ROZA, 1998: 268). Persegue-se uma motivação; faz-se um exercício racional; submete-se o leitor ao medo; no final, entretanto, as expectativas são frustradas, já que pouco é revelado. As ambiguidades são inerentes à vida, e, devido à necessidade de verossimilhança típica do romance policial, foram incorporadas às narrativas atuais. No plano do enunciado, o detetive busca resolver o caso, ao mesmo tempo em que, no da enunciação, o narrador problematiza o percurso traçado pelo investigador. Como diz o próprio Espinosa, ao final da investigação em Uma Janela em Copacabana (2004), quando, ao conversar com Irene, parece estar se dirigindo ao leitor: Mas, veja bem, essa foi a história que contei para você. Ela é em grande parte feita de suposições; uma pequena parte é fruto da dedução, mas não disponho de provas quanto ao ponto de partida dessas deduções; tem ainda uma boa parte que é feita da fantasia com a qual preenchi as lacunas, talvez a maior parte. (...) É exatamente o que tenho: certeza íntima. Por isso estou conversando com você. Toda certeza, como você disse, é íntima, subjetiva. Certeza não é verdade (GARCIA-ROZA, 2001: 223-224). Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 O romance policial torna-se, assim, objeto privilegiado para investigar as relações da literatura com temas contemporâneos, trazendo à tona tanto a subjetividade problemática do homem pós-moderno quanto uma caracterização do espaço urbano enquanto local dos contrastes e da violência. Bem e mal são categorias individuais, e cabe ao leitor defini-las de acordo com suas experiências e opiniões próprias. Recebido em setembro de 2010 Aprovado em outubro de 2010 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHANDLER, Raymond. Adeus, minha adorada. Porto Alegre: L&PM, 1997. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Achados e perdidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ______________. Uma janela em Copacabana. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. ______________. O silêncio da chuva. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. HAMMETT, Dashiel. O falcão maltês. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. MAGDALENO, Renata. “A solidão do detetive: uma reflexão a partir de Luiz Alfredo Garcia-Roza” In Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, no 33. Brasília: UnB, janeiro / junho de 2009. Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 MANDEL, Ernest. Delícias do crime: história social do romance policial. São Paulo: Busca Vida, 1988. PIGLIA, Ricardo. “Sobre o gênero policial” In O laboratório do escritor. São Paulo: Iluminuras, 1994. POE, Edgar Allan. Ficção completa, poesia & ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. PONTES, Mario. Elementares: notas sobre a história da literatura policial. Rio de Janeiro: Odisséia Editorial, 2007. TODOROV, Tzvetan. “Tipologia do romance policial” In As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1979. 1 O noir dificilmente se apresenta sob a forma de memórias, já que o detetive atua diante dos acontecimentos e sua vida corre perigo. 2 Para Todorov, o que pode ser definido, afinal, como característica fundamental do gênero é a existência de três elementos: um detetive principal, um culpado e, no mínimo, uma vítima. Além disso, a maior diferença entre os romances de enigma e a variante noir está na caracterização do detetive, que, nos primeiros, é imune às peripécias dos investigados e, na última, sofre as consequências de seus atos no mesmo instante em que eles acontecem. Vide TODOROV, Tzvetan. “Tipologia do romance policial” In As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1979, pp. 93-104. Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010