1 Ninfomaníaca: von Trier falando de von Trier, Gênero

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1 Ninfomaníaca: von Trier falando de von Trier, Gênero
Ninfomaníaca: von Trier falando de von Trier, Gênero, Natureza e Cultura1
Isabel Wittmann, PPGAS-UFAM.
Resumo: Este artigo analisa parte da filmografia de Lars von Trier, consistindo nos
filmes Ondas do Destino, Dançando no Escuro, Dogville, Anticristo, Melancolia e
culminando em sua última obra, Ninfomaníaca. Ênfase é dada a este trabalho, uma vez
que ele serve de comentário para elementos presentes nas obras anteriores. A análise
busca levantar aspectos em comum entre os filmes, como a temática envolvendo gênero
e sexualidade e o martírio feminino, partindo do princípio de que o diretor é um autor,
responsável pelas obras e pelo discurso que nelas se constrói.
Palavras-chave: gênero, sexualidade, análise fílmica.
Pode-se dizer que o cinema se aproxima de temas tradicionalmente estudados
pela Antropologia, como os mitos e os ritos, uma vez que faz conexão entre a ficção e a
realidade sem que ambas as dimensões se confundam (HIJIKO, 1998, p. 98). Como os
mitos, um filme pode construir narrativas inspiradas por comportamentos humanos,
relações sociais, acontecimentos e discursos.
O cinema – como subcultura interna ao sistema das novas ideologiastem necessidade de reflexões globais e radicais para responder às
perguntas sobre sua relação entre máquina-cinema e as modificadas
categorias centrais da humanidade: o tempo, o espaço, o rito, a fábula,
a vida, o riso, o comportamento na sala, o trabalho, o corpo, a morte,
as classes sociais. E, por isso, uma nova tentativa de compreensão do
cinema pode ser colocada num plano antropológico (HIJIKI, 1998, p.
103).
Assim, o fazer antropológico pode utilizar o cinema como objeto de estudo, já
que o filme enquanto arte é passível de análise, uma vez que dele se podem extrair
discursos pautados em aspectos da realidade social, ainda que não inteiramente
provenientes dela. Ao analisarmos uma obra de arte, estamos explorando uma gama de
signos (e significados) que podem ser interpretados. ―A capacidade de perceber
significados em pinturas (ou poemas, melodias, construções, potes, peças, estátuas) - e,
1
Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os
dias 04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA.
1
completo, no cinema- seria, como todas as outras capacidades humanas, produtos de
uma experiência coletiva que transcende‖ (HIJIKI, 1998, p. 104). Analisar um filme e
buscar nele significações seria apenas mais uma atividade da práxis humana que pode
ser exercida pelo antropólogo.
Gênero e sexualidade são temáticas recorrentes na filmografia do diretor
dinamarquês Lars von Trier, um dos responsáveis pelo manifesto Dogma 95 2 .
Ninfomaníaca, seu último filme, é uma obra em que ele comenta esses temas ao mesmo
tempo em que reflete sobre críticas passadas feitas outros de seus filmes.
Frequentemente acusado de ser um autor misógino, sua filmografia é repleta de
protagonistas que são mulheres torturadas. Embora Bateson afirme que a autoria do
filme, como do mito, é coletiva (HIJIKI, 1998, p. 100), não negarei a autoralidade3 ao
diretor, tendo em vista o controle que exerce na obra final. Professor Peter Schepelern
(2014), da Universidade de Copenhagen, em sua aula sobre o cineasta, afirma que suas
protagonistas são mártires em um mundo pronto para julgar sua sexualidade. Não há
como negar que sua fascinação pelo martírio feminino é intrigante.
Tendo em conta que cinema se relaciona com a sociedade e que o diretor, neste
caso ocupando papel duplo de roteirista, é quem controla a obra, a filmografia de von
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Dogma 95 foi um manifesto que buscava o resgate do cinema europeu, em crise de identidade na década
de 1990. ―Coube a dois diretores dinamarqueses, Lars von Trier e Thomas Vinterberg, a tentativa
seminal de realizar um renascimento do cinema nacional nessa época com um olhar europeu. Em um
simpósio que aconteceu em Paris em 1995 para celebrar o primeiro século do cinema, eles
apresentaram o Manifesto Dogma 95 e um ―Voto de castidade‖, uma série de regras que tinham como
objetivo libertar os artistas da necessidade de competir com Hollywood. [...]O ―Voto de castidade‖
exigia filmagens em locação, sem o acréscimo de cenários e acessórios, e o uso de câmeras na mão,
sem iluminação especial. Proibia que o som e a música fossem produzidos separadamente das
imagens, insistindo que os filmes acontecem ―aqui e agora‖, com realismo geográfico e temporal, e
afirmava que ―filmes de gênero não são aceitáveis‖ (KEMP, 2011, p.476).
3
A ideia de autoralidade está vinculada à crítica. ―Entre 1954 e 1964, os Cahiersdu cinema, por exemplo,
tentaram estabelecer e defender uma ‗política dos autores‘. Essa ‗política dos autores‘ designava-se a
um duplo objetivo: revelar alguns cineastas (a maioria americanos), considerados pelo conjunto da
crítica diretores de segundo plano, e fazer com que se os reconhecesse como artistas completos e não
operários sem qualificação, técnicos sem inventividade pagos pela indústria hollywoodiana. [...] A
noção implica que o autor tenha um caráter, uma personalidade, uma vida real e uma psicologia e até
uma ‗visão de mundo‘ que centrem sua função sobre sua própria pessoa e soa sua ‗vontade de
expressão pessoal‘‖. (AUMONT et al, 1999, p. 110). Dessa forma o profissional seria tão autor do
trabalho de sua responsabilidade quanto um escritor de seu livro, coordenando as atividades dos
demais trabalhadores sob seu cuidado, para a criação de uma obra com sua visão artística.
2
Trier estabelece um discurso bastante particular. Neste artigo serão analisados aspectos
a respeito de gênero e sexualidade que se repetem nos filmes Ondas do Destino,
Dançando no Escuro, Dogville, Anticristo e Melancolia e a relação entre esses aspectos
com o filme Ninfomaníaca, partindo do princípio de que, conforme Edgar Morin, o
cinema reflete sobre ambos, ficção e realidade:
Todo o real percebido para pela forma imagem. Depois, renasce em
lembrança, isto é, imagem de imagem. Ora, o cinema, como qualquer
representação (pintura, desenho), é uma imagem de imagem, mas,
como a foto, é uma imagem da imagem perceptiva, e, melhor do que a
foto, é uma imagem animada, isto é, viva. Como representação de
uma representação viva, o cinema convida-nos para refletir sobre o
imaginário da realidade e a realidade do imaginário (apud AUMONT
et al, 1999, p.236)
Ondas do Destino
Em Ondas do Destino4, BessMcNeill(interpretada por Emily Watson) mora em
uma pequena comunidade litorânea de população majoritariamente cristã. Embora em
nenhum momento do filme isso seja explicado, ela tem mentalidade e comportamento
infantis. Manifesta sua crença em uma divindade superior emulando uma voz mais
grave que a sua própria enquanto está de olhos fechados. Ela se casa com Jan um rapaz
que trabalha em uma plataforma petrolífera e por isso passa períodos em alto mar.Bess
sente-se só e reza para que ele passe mais tempo em casa. No dia seguinte, Jan sofre um
acidente de trabalho e fica gravemente hospitalizado, sem o movimento das pernas,
fazendo com que Bess sinta-se terrivelmente culpada. Afetado pela sua condição e não
mais capaz de ter relações sexuais com sua esposa, Jan pede para que ela as tenham com
outros homens e conte a ele o que acontece, pois só isso seria capaz de mantê-lo vivo.
Bess acredita em Deus e no marido, por isso se engaja em encontros sexuais
cada vez mais frequentes e degradantes, que se tornam notórios pela cidade. A
comunidade a rejeita, apesar de seus atos virem do mais puro louvor infantil. Crianças a
apedrejam e, por fim, ela é esfaqueada e vem a morrer após essa jornada de martírio
físico.
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ONDAS do Destino (BreakingtheWaves). Direção: Lars von Trier. Produção: Peter Aalbæk Jensen,
Vibeke Windeløv. Intérpretes: Emily Watson, Stellan Skarsgård, Katrin Cartlidge, Jean-Marc Barr,
Adrian Rawlins. Copenhagen: Zentropa, 1996. DVD (153min), color.
3
Bess é punida e isolada da sociedade pelo sexo que faz, querendo
apenas fazer o bem. É interessante que ela fala que todos nascem bons
em alguma coisa e que ela é boa nisso, porque jamais demonstra
nenhuma forma de prazer com o ato sexual, nem mesmo com seu
marido. Embora se considere boa, ela é apenas um receptáculo do
desejo alheio (WITTMANN, 2014, p.32, tradução minha).
O caminho do martírio perpassa o sexo performado sem prazer, acompanhado
pela punição vinculada a ele e é explicitado no momento da morte da protagonista,
quando grandes sinos dourados tocam no céu anunciando sua chegada.
Dançando no Escuro
SelmaJezkova (interpretada pela cantora finlandesa Björk), protagonista de
Dançando no Escuro5, difere-se de Bess pois em seu caso o ato sexual não faz parte de
seu presente, embora também marque seu martírio. Ela possui um problema de visão
que a está deixando gradativamente cega, mas além disso, tem um filho que também
tem problemas de visão. Migrante tchecoslovaca, escolheu os Estados Unidos para viver
porque se encanta com os musicais que eram produzidos então, na década de 1960, e
porque ali teria a possibilidade de pagar por uma cirurgia que curaria seu filho.
O fato de a preocupação a respeito do filho desencadear o que lhe acontece,
marca no ato sexual de seu passado que o gerou a origem de sua jornada. A culpa e a
punição pelos seus atos se revelam em falas da personagem, como ―Esta é minha
punição‖ e ―É minha culpa‖, ao referir-se à doença do garoto. Não por acaso seu nome é
Gene, uma vez que seus problemas físicos são de ordem genética e provêm da mãe.
O comportamento de Selma a transforma em uma reencarnação de Bess: tem
inocência e confiança infantis nas pessoas, voz doce e suave e jamais reage às injustiças
que ocorrem ao seu redor. Trabalhando por vezes em jornadas duplas de trabalho, quase
sem conseguir enxergar as peças que monta, apenas para juntar dinheiro para a cirurgia
do filho, ela parece manter confiança esperançosa no futuro.
Foi por conta desta inocência que confidenciou ao vizinho, Bill, que possuía
grande soma de dinheiro guardada para a cirurgia de Gene. Bill, endividado, rouba-lhe o
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DANÇANDO no Escuro (Dancer in theDark). Direção: Lars von Trier. Produção: VibekeWindeløv.
Intérpretes: Nicole Kidman, Harriet Andersson, Lauren Bacall, Paul Bettany, StellanSkarsgård.
Copenhagen: Zentropa, 2003. DVD (141min), color.
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dinheiro e conta a sua esposa, Linda, até então amiga de Selma, que estava fazendo
avanços inadequados em relação a ele. Quando Selma vai à casa deles confrontá-lo,
Linda indigna-se e acusa-a de tê-la enganado, enquanto Bill afirma que ela está tentando
roubar o seu dinheiro. Com medo de ser ele mesmo descoberto, pede que Selma o mate.
Novamente sem questionar e sem se rebelar, ela o faz e foge, apenas para ser presa
pouco depois.
Encarcerada como assassina fria e ladra sem escrúpulos, Selma passa por um
calvário de acusações mentirosas e jamais se rebela. Como em Ondas do Destina, von
Trier
deixa claro que ela está certa e os demais estão errados, que ela é
vítima de um julgamento inadequado. Ainda assim, ele leva a tortura
da personagem até o final, tornando-a uma mártir em uma cena que
novamente repete a fórmula do outro filme já citado, ao deixar claro
que ela está acima de tudo isso e sua existência, enquanto arquétipo,
permanecerá. (WITTMANN, 2014b).
Selma é enforcada porque tentou salvar um filho fruto de sua culpa e porque
confiou com inocência nos demais. Cantou docemente até o último momento, mas seu
canto
foi
interrompido
pelo
enforcamento.
Um
letreiro
surge
na
tela:
―Theysayit'sthelastsong/ Theydon'tknowus, yousee/It'sonlythelastsong/Ifwelet it be.‖,
em português: ―Eles dizem que esta é a última canção/ Eles não nos conhecem, sabe/ Só
é a última canção/ Se nós deixarmos ser‖.
Dogville
Em Dogville6, Grace (Nicole Kidman) é uma moça que foge de gângsteres e se
abriga em uma pequena vila que dá nome ao filme, isolada aos pés de uma montanha.
Como Bess e Selma, Grace é frágil de fala suave e não se rebela em relação ao que
acontece ao seu redor. Como elas, possui um senso latente de autopunição. Quando lhe
oferecem pão, responde ―Eu não mereço aquele pão, eu roubei aquele osso. Nunca havia
roubado nada antes, então agora devo me punir‖, referindo ao osso que estava na tigela
do único cachorro da cidadela. Sabendo que eles não confiam nela por ser uma
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DOGVILLE. Direção: Lars von Trier. Produção: Vibeke Windeløv. Intérpretes: Björk, Catherine
Deneuve, David Morse, Peter Stormare, Cara Seymour. Copenhagen: Zentropa, 2000. DVD (180min),
color.
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desconhecida, afirma que estão certos, ―Por que deveriam confiar em mim?‖. Para não
transtornar a rotina do povo da vila, se oferece para ajudar a todos em pequenas tarefas
cotidianas.
Com atividades cada vez mais intensas. Grace acaba se envolvendo
emocionalmente com Tom, um jovem aspirante a escritor e filósofo, para quem declara
que ―A coisa que mais amo em você é você não demanda nada de mim‖. Seu
cronograma inclui cuidar das crianças, do idoso, colher maçãs, carregar caixas cheias
delas, ajudar em uma loja, limpar quintais e outros serviços braçais desgastantes.
Conforme Tom: ―Você é bonita e frágil demais para este lugar‖.
Logo a beleza de Grace desperta o interesse dos homens da cidade, o que
provoca a ira das mulheres. No quadro negro da escola das crianças é possível ver a
inscrição ―Eros e Psiquê‖. Na mitologia grega, Psiquê é uma mortal tão bela que era
adorada por todos os homens e despertou o amor de Eros, deus do amor e a ira de
Afrodite, sua mãe e deusa do amor. A inscrição não está em cena por acaso, pois reflete
esta parte da trajetória de Grace. Logo ela passa a ser frequentemente estuprada pelos
homens e odiada pelas mulheres, sendo humilhada por ambos. Após tentar
fracassadamentefugir, é acorrentada e submetida a uma carga ainda maior de tarefas e
humilhações. Tom também a deseja e a culpa por não abrir mão de um ideal para
diminuir o que segundo ele, seria a dor de não possuí-la. Grace afirma que ele é como
os outros e se pudesse, forçaria ela. Conforme o narrador, Tom se afasta pois sabe que
ela está certa.
A igreja também tem papel central na vida dessas pessoas, regulando todos os
acontecimentos cotidianos da vila e sendo o palco das principais decisões. Ainda assim,
a fé não impede que eles ajam da forma que agem.
Por fim, quando todos se cansam de sua presença, Tom entra em contato com os
gângsteres do início do filme, pedindo para eles buscarem-na.Tom é ponto central no
filme, pois não quer, como os demais personagens, viver de trabalho braçal. Quer
escrever e almeja grandes pensamentos e conhecimentos. Ele é o primeiro a acolher
Grace e a demonstrar empatia. Mas por trás de seu verniz (e chega mesmo a chamar os
demais moradores da cidade de ―incivilizados‖) seus pensamentos não diferem dos
deles.
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Quando os gângsteres chegam, descobre-se que o chefe da máfia na verdade não
queria matar Grace, pois era seu pai. Ela fugiu porque não queria ocupar seu lugar na
sua estrutura de poder. Na fala dele ―Estupradores e assassinos podem ser as vítimas
segundo você, mas eu os chamo de cães. E se estão lambendo o próprio vômito, o único
meio de pará-los é com um açoite‖, ao que Grace responde ―Mas cães só obedecem sua
própria natureza, então por que não deveríamos perdoá-los?‖. Seu pai, por fim afirma:
―Cães podem ser ensinados muitas coisas úteis, mas não se nós perdoarmos toda vez
que eles obedeceram sua própria natureza‖.
Ou seja, o pai de Grace afirma que ela costumava justificar comportamentos
criminosos e perdoá-los, Mas desta vez, aceitando seu lugar ao lado do pai, ela dá
instruções precisas: ordena que todos sejam mortos.
Até então Grace havia obedecido a todos em Dogville, e tudo que recebeu em
troca foi punição. Novamente é explícito que nada havia feito de errado e ainda assim,
sua punição a extremos, mesmo que não a morte, como ocorreu com as duas
personagens anteriores. ―Foi punida por causa e através do desejo alheio‖
(WITTMANN, 2014a, p.32, tradução minha). Foi punida por realizar as tarefas que
ninguém queria e por fim, por negar sexo a quem supostamente devotava-lhe amor. E
apesar de todo o sentimento de perdão que costumava perpassar seu discurso, ao
contrário das protagonistas anteriores de von Trier, Grace revidou. Como a placa da
mina ao pé da montanha anunciava, ―dictum ac factum‖, dito e feito, demandou e
recebeu sua vingança.
Anticristo
Em Anticristo7 a mulher protagonista (Charlotte Gainsburg), chamada apenas de
Ela, tenta lidar com o luto pela morte do filho. Na abertura do filme vemos ela e seu
marido fazendo sexo enquanto a criança está no berço. O bebê consegue descer do
móvel e pegar uma cadeira, que aproxima de uma janela aberta e, por fim, joga-se dela.
Posteriormente é revelado que Ela havia-o visto passar pela porta de seu quarto, mas
mesmo assim não parou.
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ANTICRISTO (Antichrist). Direção: Lars von Trier. Produção: Meta Louise Foldager. Intérpretes:
Charlotte Gainsbourg, Willem Dafoe. Copenhagen: Zentropa, 2009. DVD (96min), color.
7
Para Ela, a morte do filho é
Uma consequência direta de seu desejo sexual. Em uma simplificação,
ela acredita que mulheres são equivalentes à Natureza e a Natureza é a
fonte de todo o mal. Sexo é mais uma vez usado como punição. O
espelho de vênus (♀símbolo da feminilidade) é o T da palavra
Anticristo nos créditos (WITTMANN, 2014a, p. 32, tradução minha).
Dessa forma, Ela é retratada como uma pessoa emocionalmente descontrolada,
tomada pela culpa, enquanto Ele é um terapeuta que tenta usar a psiquiatria para trazê-la
a razão. Para isso, leva-a a uma cabana em meio a Floresta, chamada Éden. Assim, von
Trier simboliza que eles são os dois seres humanos primordiais.
A pesquisa que ela fazia antes da morte do filho era sobre misoginia e temáticas
como a caça às bruxas. Ela passa a crer que as mulheres sejam o mal, pois seriam a
Natureza e a Natureza é ―a igreja de Satã‖. Através da aceitação desse mal, pode lidar
com a ideia da perda do filho. Ele representa a racionalidade e afirma que ―O mal de
que você fala é uma obsessão. Obsessões não se materializam, isso é um fato científico‖.
A maneira como a floresta e os animais (os três pedintes: o cervo que representa o luto,
a raposa que é a dor e o corvo simbolizando o desespero) aparecem no filme, de forma
sombria, quase assustadora, intensifica a impressão de uma oposição em relação as
tentativas de racionalizar o entorno que Ele toma. Dessa forma, aqui, pela primeira vez
von Trier claramente opõem Natureza e Cultura nas figuras da mulher e do homem,
respectivamente.
No terço final do filme, Ela o prende e o tortura, perfurando seus pés e
aparafusando-os em um bloco. Mas também se pune por sua natureza malévola, através
de mutilação genital, extirpando seu próprio clitóris. Posteriormente Ele consegue fugir
e matá-la, enterrando-a na floresta.
Por fim, Ele improvisa uma muleta e, após comer frutos silvestres, é rodeado em
uma colina por uma multidão de mulheres sem rosto, mostrando a inabilidade dele,
homem, entender a dor das mulheres e assim, a incapacidade da Cultura de decifrar a
Natureza.
Melancolia
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Melancolia 8 é dividido em duas partes, cada uma dedicada a uma das irmãs
protagonistas, Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsburg). Na primeira
metade do filme testemunhamos o casamento de Justine com Michael.Na abertura já a
vemos caminhando em ultra câmera lenta, enquanto raízes tentam segurar seus passos.
Assim é sua vida com a depressão, doença que a consome.
A festa inteira ela está rodeada por homens que não parecem entende-la. Seu
noivo é repleto de expectativas em relação ao seu futuro e ao que ela deve querer. Seu
chefe anuncia uma promoção, ao mesmo tempo em que inconveniente pede por um
projeto em andamento. O novo assistente do chefe parece estar completamente perdido
na festa. Seu pai bebe demais e flerta com outras mulheres, causando situações
embaraçosas. Seu cunhado cobra o tempo inteiro que sua felicidade, lembrando-lhe
sempre o quanto toda aquela festa custou a ele.
Justine, apesar das cobranças, simplesmente não consegue ficar feliz nesse
ambiente. Tudo é planejado e feito sem leva-la em consideração. Chora, tranca-se no
banheiro, coloca o sobrinho para dormir, faz sexo sem desejo e sem alegria com o novo
colega de empresa e parece que tudo rui ao seu redor. Por fim, o noivo vai embora e o
casamento acabou no dia em que começou.
Na segunda metade do filme, Justine está entregue à depressão, abrigada na casa
da irmã. Claire vê a notícia em sites sensacionalistas de que um planeta chamado
Melancolia colidirá com a Terra. Seu marido, John, lhe garante que isso não tem rigor
científico: a ciência diz que o planeta não atingirá a Terra. Claire se vê consumida pelo
medo do fim dos tempos e se comporta de forma cada vez mais irracional.
Apesar de todos os esforços de John em assegurar através de conhecimento
científico que nada de ruim ocorrerá, quando fica claro que Melancolia vem mesmo em
direção a Terra ele não aguenta a pressão e se suicida no estábulo. Justine chega a dizer
que nosso planeta é mau, por isso não devemos enlutarmos por ele, pois ninguém
sentirá sua falta. Claire e Justine aguentam até o final, construindo uma cabana de
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MELANCOLIA (Melancholia). Direção: Lars von Trier. Produção: Meta Louise Foldager, Louise Vesth.
Intérpretes: Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Alexander Skarsgård, Kiefer Sutherland.
Copenhagen: Zentropa, 2011. DVD (129min), color.
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gravetos para abrigarem-se enquanto a Terra é engolida por Melancolia.
O pôster do filme retrata Justine em seu vestido de noiva, segurando um buquê
de flores e flutuando na água de um riacho, como Ofélia, a trágica noiva enlouquecida
de Hamlet que morre afogada ao escalar o galho de uma árvore que quebra ao não
aguentar ser peso. Tal imagem tem ligação com estado mental de ambas as irmãs, bem
como ao seu destino marcado pela morte precoce.
Embora a sexualidade perpasse rapidamente a trama, o que fica patente é o
tratamento paternalista dos homens em relação às duas protagonistas, embora sejam elas
que que conseguem suportar o peso do fim dos tempos até os momentos finais.
Ninfomaníaca
Ninfomaníaca9 é o terceiro filme que Lars von Trier criou como forma de lidar
com sua própria depressão, sendo precedido por Melancolia (Melancholia, 2011) e
Anticristo (Antichrist, 2009). Ele foi dividido em duas partes para o lançamento nos
cinemas devido a sua duração, mas trata-se claramente de uma obra idealizada como
única.
A protagonista é Joe, interpretada em sua versão mais jovem por Stacy Martin e
na versão mais velha por Charlotte Gainsbourg. No começo do filme Joe, é encontrada
por um senhor chamado Seligmanferida e desacordada em uma viela. Ele a leva para
seu apartamento para que possa cuidar dela e assim ela começa a relatar-lhe a história
de sua vida.
Ela lida com sua sexualidade de forma natural. Ainda criança é mostrada se
arrastando pelo chão molhado do banheiro, brincando com uma amiga. Sua mãe queria
pedir para que parasse com isso, mas seu pai pede para que a deixe continuar. O pai,
aliás, a incentiva a sentir as coisas ao seu redor e jamais poda suas experiências.
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NINFOMANÍACA: Volume 1 (Nymphomaniac: Vol I). Direção: Lars von Trier. Produção: Louise
Vesth. Intérpretes: Charlotte Gainsbourg, StellanSkarsgård, Stacy Martin, Shia LaBeouf, Christian
Slater, Uma Thurman, Sophie Kennedy Clark. Copenhagen: Zentropa, 2013. DVD (124min), color.
NINFOMANÍACA: Volume 2 (Nymphomaniac: Vol II). Direção: Lars von Trier. Produção: Louise
Vesth. Intérpretes: Charlotte Gainsbourg, StellanSkarsgård, Stacy Martin, Shia LaBeouf, Christian
Slater, Jamie Bell, Willem Dafoe, Mia Goth. Copenhagen: Zentropa, 2013. DVD (123min), color.
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Quando adolescente, ela decide se livrar de sua virgindade e para isso busca
Jerôme. Aí se depara com sua primeira decepção: recorda-se especificamente do
número de vezes que ele lhe penetrou, sem ter atenção por seu prazer. Como Bess e
Grace, ela foi apenas um receptáculo de seu desejo.
Mais tarde, com uma amiga, começa a fazer o que se compara a ―pescar
homens‖: busca-os em trens e aquela que conseguir fazer sexo casual com o maior
número deles, ganha um pacote de doces. Ela não demonstra contentamento nos atos,
mas sim na vitória infantil que obtém com a contagem. Sexo parece ser uma
necessidade, e não um prazer. Sua semelhança com Bess é ressaltada através do figurino:
veste os mesmos shorts de vinil vermelho que aquela utilizou para procurar homens em
sua cidade.
Enquanto narra sua história para Seligman, Joe é sua maior crítica, afirmando
constantemente que sua vida é cheia de culpa e julgando-se errada diversas vezes.
Seligman, como professor que é, despeja seu conhecimento sobre ela.
A conversa com Seligman demonstra novamente (como em Anticristo)
que von Trier encara a dicotomia homem versus mulher como
Natureza versus Cultura. [...] O homem em questão pontua a narrativa
com conhecimentos sobre religião, música literatura e pescaria,
enquanto a mulher fala de instintos e experiência e desconhece tudo
que ele explica (WITTMANN, 2014a, p.34, tradução minha).
Mais tarde, o clube de meninas em que Joe participa tem como lema “mea vulva,
meamaxima vulva”e a mensagem é de ―clara subversão da culpa cristã, que ela não tem,
como um grito por liberdade dessas jovens a respeito de seus próprios corpos‖
(WITTMANN, 2014a, p. 34, tradução minha).
Ainda assim Joe é punida por suas ações, como sabemos já no começo do filme,
ao ver seu corpo ferido largado na sarjeta. No primeiro volume da obra, a narrativa
parece absolver os pecados que a personagem vê em si. Eles são marcados pela
sociedade que a rodeia, culpando-a por se divertir exercendo livremente sua sexualidade.
Já quando há a mudança da atriz que interpreta Joe para Charlotte Gainsbourg, sua
personalidade parece se alterar. A personagem do primeiro volume não parece uma
ninfomaníaca e sim uma mulher aberta a respeito de seus desejos. No segundo ela passa
a parecer uma viciada funcional, que começa a ter problemas controlando o meio que
expressa esses desejos. Isso é possível de ser percebido na maneira como tem cada vez
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mais necessidade de ser açoitada pelo dominador K, sem com isso obter nenhum prazer
real, a não ser em breves momentos em que consegue se masturbar contra livros que lhe
servem de apoio. A personagem parece querer se punir por algo que até então, para ela,
não era passível de punição. Para isso chega a negligenciar sua criança, deixando-a só
em casa. Ela (a criança) acorda e se dirige à sacada de casa em uma cena que remete
diretamente à sequência inicial de Anticristo. Dessa vez von Trier a poupou, mas Joe
ainda assim ficou com um desconfortável senso de culpa.
A punição de Joe vem através do castigo físico advindo de um incesto simbólico.
Joe adota a adolescente P, que se muda para sua casa quando atinge a maioridade. Ela
mesma fala ―Você não vê como fui maligna?‖, a respeito da adoção. P toma a iniciativa
de começar uma relação que Joe não queria inicialmente. Mas P também começa uma
relação com Jerôme e são os dois que emboscam Joe. Ele a espanca e a estupra.
Ao final, depois de dias contando sua história de encontros e desencontros na
própria sexualidade, como uma Sherazade da narrativa da liberdade feminina, Joe está
curada e deita-se para dormir uma última noite no apartamento de Seligman antes de
partir. Ele, até então manifestando apenas interesse acadêmico pela sua história, volta
para seu quarto sem calças e se aproxima de sua cama. Ela diz categoricamente que não
e ele argumenta que ela já fez isso com centenas de homens. Joe alcança uma arma e a
tela escurece, mas se ouve o disparo do tiro.
O público pode ficar surpreso com o final, mas sendo Seligman a
representação da cultura, é fácil entender que von Trier está
implicando que nossa cultura normaliza a violência sexual contra
mulheres, especialmente aquelas que tem vida sexual ativa notória. A
tentativa de estupro não é incoerente com o personagem. Ele estava
apenas curioso, um teórico que expressou interesse no que Joe disse
que tinha feito com tantas pessoas. A reação de Joe, bem como seu
discurso anteriormente no grupo de apoio [a pessoas com compulsão
sexual] ecoa o discurso de todas as mulheres do mundo: o corpo é
meu, é minha escolha e a sociedade deveria parar de tentar me
controlar (WITTMANN, 2014a, p.35, tradução minha).
Gênero, Natureza e Cultura
É possível traçar um padrão nos filmes citados de Lars von Trier: em todos eles
as mulheres protagonistas passam por situações de martírio.Isso acontece diretamente
em Ondas do Destino, Dogville e Ninfomaníaca e de maneira mais sutil em Dançando
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no Escuro e Melancolia.Além disso os homens que as rodeiam as tratam de forma
infantilizante e condescendente, despejando seus conhecimentos e utilizando-os para
colocarem-se em posição de superioridade. As protagonistas, por sua vez, são marcadas
predominantemente pelo comportamento submisso ou infantil e pela culpa ligada à
sexualidade. Esta sexualidade é retratada como uma tormenta e como algo que não lhes
é prazeroso. A submissão deixa de se fazer presente nos momentos finais de Melancolia,
transformando-se em plena agência em Dogville e Ninformaníaca, este último
terminando como um grito de revolta pelo tratamento dado às mulheres. Em resumo,
seus homens adotam o papel de Cultura, detentores do conhecimento; e suas mulheres o
de Natureza, ora infantilizadas e desprovidas de força, ora movidas por mero instinto.
Essa oposição entre Natureza e Cultura perpassa nossa sociedade e marca muito
da literatura da Antropologia. Lévi-Strauss afirma que mesmo em sociedades sem
qualquer traço de organização social temos algo que pode ser definido como cultura, de
forma que não há uma oposição real entre esses conceitos. Nada foi tão refutado quando
a separação entre eles nos primórdios das ciências sociais. Para o autor ―O homem é um
ser biológico ao mesmo tempo que um indivíduo social‖ (LÉVI-STRAUSS, 1982, p.41).
O espontâneo estaria ligado à Natureza e as regras e interditos, vinculados à Cultura.
Bruno Latour entende que na modernidade a dicotomiaNatureza e Sociedade
(termos que utiliza)sempre foi construída e hierarquizada, ainda que artificialmente.
Nosso mundo seria composto por um tecido inteiriço de ―naturezas-culturas‖, atribuído
a nós, seres híbridos. (LATOUR, 1994, p.12). Para ele, se a Natureza não é feita pelos
homens nem para eles, então ela continuaria a ser estrangeira, para sempre longínqua e
hostil. Sua própria transcendência nos esmaga ou a torna inacessível. Apesar disso, essa
dicotomia seria indispensável aos modernos (LATOUR, 1994, p.46).
Neste contexto, o status secundário da mulher na sociedade, conforme
SherryOrtner, faz com que ela seja inconscientemente associada à esta Natureza que
também é desvalorizada, pois o corpo feminino estaria mais próximo de experiências
naturais. Segundo a autora há universalidade no status secundário das mulheres, que
acontece porque em cada cultura elas têm sido identificadas com características que são
negativadas na própria cultura em questão (1979, p.99). De acordo com Débora Breder,
o corpo feminino estaria sob domínio dos instintos, dos apelos da carne e não espírito
13
(BREDER, 2013.p.34).
Como explica MarikaMoisseff, a vivência da mulher cis 10 seria marcada pela
função reprodutiva e esse processo seria o que nos aproxima do animalesco. ―A
maternidade, a gravidez, o parto natural, a necessidade de estar no interior de um corpo
feminino antes do nascimento rebaixariam a humanidade ao status da animalidade‖
(MOISSEFF, 2005, p.235). Seriam as funções reprodutivas, delegadas à experiência do
animalesco, que aproximariam mulheres cis da Natureza. As Culturas, por outro lado,
trabalham para criar significados que nos afastam da Natureza:
Cada cultura, ou, genericamente, ―cultura‖ está engajada no processo
de gerar e suster sistemas de formas de significados (símbolos,
artefatos, e etc) por meio dos quais a humanidade transcende os
atributos da existência natural, ligando-as a seus propósitos,
controlando-os de acordo com seus interesses. Podemos assim
amplamente equacionar a cultura com a noção de consciência humana
(isto é, sistemas de pensamento e tecnologia), por meio das quais a
humanidade procura garantir o controle sobre a natureza(ORTNER,
1979, p.100).
A autora cita Simone de Beauvoir, que também afirma que nas mulheres a
animalidade11é mais manifesta, devido ao vínculo entre o corpo femininocis e a função
procriadora, que faz com um que suas experiências as aproximem da Natureza. ―Uma
vez que o plano da cultura sempre é submeter e transcender a natureza, se as mulheres
são consideradas parte dela, então a cultura achará ‗natural‘ subordiná-las, para não
dizer oprimi-las (ORTNER, 1979 p.101-102).
No âmbito da Cultura ou Sociedade, temos métodos anticoncepcionais que
retiraram a experiência sexual da mulher cis do campo reprodutivo 12. Mas mesmo assim
10
Cis é a forma comumente utilizada para referir-se a pessoas com vivências cisgênero. ―O termo
―cisgênero‖ é um conceito que abarca as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi
determinado quando de seu nascimento, ou seja, as pessoas não-transgênero‖ (JESUS, ALVES, 2010,
p.13).Assim, uma pessoa cis é toda aquela não tem uma vivência trânsgênero.
11
―Como condição oposta à da humanidade, a animalidade transmite uma noção da qualidade de vida no
estado de natureza, onde se encontram seres ‗em estado cru‘, cuja conduta é impelida pela paixão
bruta em vez da deliberação racional e que são totalmente livres dos constrangimentos da moral ou da
regulação dos costumes. (INGOLD, 1995).
12
MarikaMoisseff chega, mesmo a colocar a sexualidade feminina após a contracepção no campo da
Cultura, que deve passar pela igualdade entre homens e mulheres. ―Huxley repete: "Civilização é
esterilização" (1998: 130,141 [:134,146, na 2ª ed. brasileira]), ou seja, a erradicação da maternidade.
Para ser verdadeiramente humano, inteiramente 'civilizado', é preciso gozar plenamente, isto é,
14
seus corpos seguem sendo monitorados, uma vez que ―com a revolução sexual, chegou
também uma ampliação da disciplina sexual – um controle e monitoramento maiores do
corpo sexual, sobre o qual esperávamos ver, ouvir e saber mais a respeito‖ (WILLIAMS,
2012, p. 29).
SherryOrtner já revisousua própria visão sobre o status desvalorizado das
mulheres, afirmando que não teria escrito o artigo hoje, pois foi feito sob influência do
estruturalismo da década de 1970 (DEBERT, ALMEIDA, 2006), mas esse
pensamentoainda perpassa pelo senso comum, que retrata a mulher como um ser
biológico dominado pelos próprios hormônios e homem como dono de racionalidade. É
esse mesmo tipo noção que marca as obras aqui comentada de Lars von Trier. Nos seus
filmes, as ações das mulheres, desconectadas de uma lógica de Cultura, são punidas.
Bess e Selma, especificamente, tem essa característica ampliada pelo fato de se
portarem como crianças, Natureza inocente explorada pela sociedade ao seu redor. Já
quando Grace decide matar todos os habitantes de Dogville, em virtude do mal que lhe
fizeram, percebe-se que essa foi uma escolha difícil, embora feita de forma resoluta. De
acordo com Cristian Carla Bernava é comum a sociedade identificar feminilidade com
doçura e masculinidade com força vendo qualquer desvio desse padrão de
comportamento como um erro. (2010, p. 85). Por esse motivo geralmente obras de
ficção mostram o ato de violência quando cometido por uma mulher como sendo um
sofrimento para ela mesma (2010, p.128).
A violência pode servir como uma ferramenta de criação de identificação,
conforme Jacques Aumont:
No cinema, onde as cenas de agressão, físicas ou psicológicas, são
frequentes, trata-se aí de um recurso dramático de base, que predispõe
libertar-se do jugo reprodutor. O erotismo é apanágio da humanidade. Ele se inscreve plenamente na
cultura, ao passo que a reprodução natural rebaixa ao nível da natureza e, consequentemente, da
animalidade [...] Portanto, desde 1932, Huxley associa a emancipação sexual ao controle da
fecundidade. E, de fato, a liberdade sexual e a igualdade dos sexos devem-se aos métodos
desenvolvidos para controlar a fertilidade. Na realidade, a gravidez — fase da reprodução sexuada
delegada exclusivamente às mulheres — conduz a uma assimetria entre os sexos que é praticamente
intolerável no contexto de uma ideologia baseada na igualdade. Sob essa ótica, a igualdade entre
homens e mulheres deve passar pela simetria dos papéis sexuais masculinos e femininos, paternos e
maternos. (MOISSEEFF, 2005, p. 237).
15
a uma forte identificação, e o espectador vai muitas vezes se encontrar
na posição ambivalente de se identificar, ao mesmo tempo, com o
agressor e com o agredido, com o carrasco e com a vítima(1999,
p.248).
Ainda segundo o autor, ―as projeções do cinema são provocações, acelerações e
intensificações
da
projeção-identificação‖
(1999,
p.237).Ao
ver
todas
essas
protagonistas sofrendo castigos e torturas, o espectador facilmente criará empatia com
elas em detrimento de seus opositores. Essa identificação através de imagens é causada
pelo que é chamado pelo autor de ―narcisismo primário‖, uma vez que projetamos nosso
próprio eu e nossas experiências no que vemos na narrativa.
Assim, da mesma forma que Lars von Trier pune incansavelmente suas
protagonistas, ele as coloca em posição tal que sabemos que elas estão passando por
essas experiências imerecidamente. Se elas são mostradas como a Natureza que a
Cultura tenta domar, julgar e punir, somos levados a entender que justamente nessa
natureza, no natural e no naif estaria o bem, conforme MassimoCanevacci (2013, p.137).
É possível entender que com esse posicionamento preciso dos personagens, Lars
von Trier trabalha em um grande discurso que se prolonga por esses diversos filmes. De
acordo com Pierre Sorlin
um filme não organiza apenas uma ficção; ele coloca também alguns
personagens na presença de outros e instaura relações entre eles [...].
Colocando em relação indivíduos e grupos, cada filme constitui, no
interior do mundo fictício da tela, hierarquias, valores, redes de
intercâmbio e de influências. (apud BERNAVA, 2010, p. 26)
Bess, em Ondas do Destino, faz sexo com desconhecidos para salvar o marido,
sendo isolada e punida por isso. Selma, em Dançando no Escuro, é castigada por sua
credulidade e carrega a culpa pelo filho, fruto de um ato sexual passado. Já Grace, em
Dogville, é punida pelo e através do desejo dos outros. Em Anticristo, a mulher
protagonista (sem nome) lida com a culpa pela morte do filho, como se fosse uma
consequência direta de seu desejo sexual. Em uma simplificação, ela afirma que Mulher
equivale à Natureza e esta é a origem de todos os males. Em Melancolia, tanto Justine
quanto Claire têm comportamentos irracionais equilibrados pelo saber de seus parceiros.
Em todos esses filmes as mulheres agem por impulso e os homens ao seu redor tentam
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ensinar-lhes lições. Em Ninfomaníaca não é diferente: Joe e Seligmannovamente
representam a dicotomia Natureza e Cultura. Em todos esses exemplos von Trier
apresenta um discurso ambíguo, em que a Cultura está errada e a Natureza está correta,
mas mesmo assim é punida.
Ao longo da história, o cinema sempre desvelou e ocultou o sexo (WILLIAMS,
2012). Mas na obra de von Trier sexo raramente é sobre gozo: é necessidade e culpa.
Como diretor e roteirista, pode-se dizer que possui total controle sobre a história e sobre
a forma como ela é apresentada, uma vez que ―Os filmes revelam os comportamentos
de quem os produz‖ (HIJIKI, 1998, p. 104). Em um filme, enquanto texto, relações de
poder entre os personagens são discursivas. Embora eventualmente conceda agência
e/ou redenção a suas personagens femininas, Lars von Trier apresenta um discurso que
pode ser entendido como misógino que se manifestas nessas relações díspares, ao punir
cada uma de suas protagonistas. Com Ninfomaníaca parece querer argumentar que foi
mal interpretado: suas heroínas são oprimidas pela sociedade misógina que as rodeiam,
sentindo culpa por causa de parâmetros opressivos de avaliação de conduta presente
nestas e sendo punida pelos seus desvios. Mas nesse seu último filme, deixa claro que
embora a sociedade tente controlar o corpo e livre expressão de sexualidade feminina,
as mulheres, representadas aqui em Joe, tem direito de negar violências e mesmo de
revidar.
Referências:
ANTICRISTO. Direção: Lars von Trier. Copenhagen: Zentropa, 2009. DVD (96min),
color.
AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1999.
BERNAVA, Cristian Carla. Violência e Feminino no Cinema Contemporâneo. 2010.
210f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010.
BREDER, Debora. A Câmera como Escalpelo: corpo e gênero segundo David
Cronenberg. Revista Alceu. Rio de Janeiro, v.13 n.26 p.27-43, jan.-jun. 2013.
CANEVACCI, Massimo. Sincrétika- Explorações etnográficas sobre artes
contemporâneas. São Paulo: Studio Nobel, 2013.
DANÇANDO no Escuro. Direção: Lars von Trier. Copenhagen: Zentropa, 2003. DVD
(141min), color.
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DEBERT, Guita Grin, ALMEIDA, Heloisa Buarque. Entrevista com SherryOrtner.
Cadernos Pagu. Campinas, n.38, p.427-447 jul. dez. 2006.
DOGVILLE. Direção: Lars von Trier. Copenhagen: Zentropa, 2000. DVD (180min),
color.
HIJIKI, Rose SatikoGitirana. Antropólogos vão ao cinema: observações sobre a
constituição do filme como campo. Cadernos de campo. São Paulo, v.7 n.7 p.91-113,
1998.
INGOLD, Tim. Humanidade e Animalidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais.
n.28, jun. 1995.
KEMP, Phillip. Tudo sobre Cinema. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.
LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis:
Vozes, 1982.
MELANCOLIA. Direção: Lars von Trier. Copenhagen: Zentropa, 2011. DVD
(129min), color.
MOISSEEFF, Marika. O Que se Encobre na Violência das Imagens de Procriação dos
Filmes de Ficção Científica. Mana. Rio de Janeiro, v.11 n.1 p.235-265, 2005.
NINFOMANÍACA: Volume 1. Direção: Lars von Trier. Copenhagen: Zentropa, 2013.
DVD (124min), color.
NINFOMANÍACA: Volume 2. Direção: Lars von Trier. Copenhagen: Zentropa, 2013.
DVD (123min), color.
ONDAS do Destino.Direção: Lars von Trier. Copenhagen: Zentropa, 1996. DVD
(153min), color.
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Cultura?. In: Rosaldo, Michele Z.; Lamphere, Louise (orgs.). A mulher, a cultura e a
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<http://www.cinemascandinavia.com/magazine/>. Acesso em: 1 agosto 2014.
WIITMANN, Isabel. Dançando no Escuro. Estante da Sala. Disponível em:
<http://estantedasala.com/dancando-no-escuro/>. Acesso em: 4 outubro 2014.
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