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CliniCAPS, Vol 6, nº 17 (2012) – Artigos
Melancolia de Lars Von Trier – aspectos éticos e estéticos
Melancholia by Lars Von Trier - ethical and aesthetic aspects
Douglas Garcia
Doutor em Filosofia/UFMG. Professor do Departamento de Filosofia da UFOP.
Autor, entre outros, de Dialética da Vertigem – Adorno e a filosofia moral
(São Paulo/Belo Horizonte: Escuta/Fumec, 2005).
E-mail: dougarcia@rocketmail
Guilherme Massara Rocha
Psicanalista. Doutor em Filosofia/USP.
Professor do Departamento de Psicologia da UFMG.
Autor de Olho Clínico – ensaios e estudos sobre arte e psicanálise
(Belo Horizonte: Scriptum, 2008).
E-mail: [email protected]
Resumo: Nesse breve ensaio esboçam-se algumas reflexões sobre Melancolia, de Lars
Von Trier, privilegiando seus elementos inter-textuais, suas possíveis fontes de
inspiração e seus litorais com os discursos filosófico e psicanalítico.
Palavras-chave: psicanálise lacaniana, melancolia, filosofia.
Abstract: This brief essay puts Lars Von Trier's Melancholia on perspective, in order to
stretches it’s intertextual elements, it’s inspiration sources and some of it’s connections
with philosophical and psychoanalytical discourses.
Keywords: lacanian psychoanalysis, melancholy, philosophy.
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Do que jamais mergulha, como alguém escaparia?
Heráclito
Algumas obras de arte, as mais consumadas, rejeitam os excessos da
interpretação. Para aquele que tenta aproximar-se delas, fica claro desde o início que
elas não se deixam apreender por um simples elenco de motivos e influências. É o caso
de “Melancolia”, o mais recente filme do cineasta dinamarquês Lars Von Trier.
Ao evitar a interpretação, contudo, ainda é possível apontar para alguns dos
gestos estéticos do filme. Há nele um movimento de oscilação entre sentido e nãosentido, proximidade e distância, ruptura e continuidade, intimidade interpessoal e
catástrofe impessoal. Os procedimentos formais que configuram esse movimento são
da ordem da duplicação, da inversão e da subtração. Von Trier cria uma obra que é
puro cinema, na sua dimensão mais essencial, de disposição de imagens no tempo,
imagens irredutíveis à narração e estranhas a qualquer significação totalizante.
O argumento do filme, a esta altura, já é bem conhecido: a aproximação do
planeta Melancolia desencadeia na Terra ansiedades de aniquilação e reações de
aproximação e afastamento entre os personagens, com atenção especial para a relação
entre as irmãs Justine (Kirsten Dunst) e Clara (Charlotte Gainsbourg).
Lars Von Trier parece, ao menos em seus dois últimos filmes, revelar seu gosto
pelos prelúdios. Tal como em “Anticristo”, “Melancolia” começa com uma longa
sequencia de fragmentos de imagens congeladas ou apresentadas com absoluta lentidão,
dos protagonistas – aí incluídos os corpos celestes –, mas imagens que antecipam ao
espectador elementos que a trama revelará aos poucos. Isso dota a sequencia inicial do
filme de uma beleza paradoxal, impregnadas de estranhamento, e que engendram ainda,
em sua construção, sinais de inspiração no Surrealismo e na estética do Romantismo.
Em diversos momentos, a aparência predominantemente sombria do filme, contrastando
com os fortes cromatismos celestes, remete inapelavelmente às telas do pintor alemão
Caspar David Friedrich. Mas um Friedrich surrealista, que conjuga os elementos
românticos do desamparo e do sublime ao elemento fantástico, oriundo de uma certa
bricolagem de elementos heterogêneos, que o diretor faz coexistirem sem contradição.
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Plasticamente falando, o filme é de uma singularidade irredutível, e traz a assinatura
desse pintor das câmeras que é Lars Von Trier.
Duas cores dominam o filme: o azul-esverdeado do planeta Melancolia e o
cinza-azulado das cenas noturnas na Terra. Azul como a Terra, o planeta Melancolia
parece belo e “amigável”, como diz a personagem Clara. É um duplo invertido da Terra,
quantidade de matéria e energia sem nenhuma vida. Beleza, mortalidade e vazio
absoluto, que se aproxima como um rumor quase imperceptível. Assiste-se a um duplo
movimento. Por um lado, o da trajetória dos corpos celestes, que desde a mais remota
ancestralidade humana foi revestida com o selo do divino, do regular e do belo. E, por
outro, testemunhamos a trajetória dos seres humanos, feita de irregularidade e
desamparo, mas também de beleza, como nos acostumamos a sentir e a pensar, ao
menos desde a cultura grega, com sua valorização das belas ações e dos belos discursos.
Irredutível em sua singularidade, não significa, contudo, que o filme seja
desprovido de referências. E, mesmo que elas não estejam ali para serem propriamente
interpretadas, sua localização pode abrir novos horizontes para a compreensão do
conteúdo algo hermético da filmografia do diretor dinamarquês. Antes de rodar
“Melancolia”, Von Trier dedicara “Anticristo” ao mestre do cinema russo Andrei
Tarkovski. Ao assistirmos seu mais recente filme, parece inevitável reencontrar ali,
quiçá de forma ainda mais explícita e ampliada, a incidência da estética tarkovskiana. A
lentidão sombria de Nostalgia – obra-prima do diretor russo – associada à uma mescla
paradoxal de elementos da natureza que parecem emoldurar a encenação do teatro das
paixões humanas, eis um aspecto que Von Trier parece tomar de empréstimo a
Tarkovski, mas que reaparece em seus filmes com todo o cabedal tecnológico
indisponível nos tempos do cinema tarkovskiano, e que torna essas imagens ainda mais
lancinantes. E se é verdade que Lars Von Trier continua a inspirar-se em Tarkovski,
dessa vez o elemento mais indicativo dessa aproximação é o que fornece ao título da
obra seu caráter mais peculiar. “Melancolia” é ali não somente o nome de um planeta,
mas o signo de uma alteridade irredutível, de um elemento tão mais real quanto menos
apreensível, e que realça, da subjetividade humana, a radicalidade de sua divisão.
Melancolia fascina e escandaliza, e seu poder mortífero faz eco às palavras de Vinícius
de Moraes que assim definira a morte: a grande esperada, e que chega sempre
inesperada. A presença dessa alteridade real e incandescente, o filósofo esloveno Slavoj
Zizek já a detectara em sua magistral análise de “Solaris”, de Andrei Tarkovski, filme
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em que a “Coisa-Solaris” – também um enigmático planeta - representa “o que nos leva
demasiado perto daquilo que, em nós, tem de se conservar afastado se quisermos manter
a consistência de nosso universo simbólico”. Para Zizek – e eis um argumento que
parece funcionar bem na análise de “Melancolia” – a coisa representada pela existência
desse planeta, “devolve aos que dela se aproximam não o seu desejo, mas o núcleo
traumático de sua fantasia, que encerra sua relação com seu gozo e a que eles resistem
na sua vida de todos os dias”.
A dimensão de sentido e não-sentido das ações humanas é aludida por Von Trier
em dois níveis. O primeiro, o dos ritos de casamento, que deixam transparecer pouco a
pouco sua trivialidade e sua dimensão de controle social. O segundo, o da brincadeira de
criança, que, com sua “caverna mágica” fornece um último anteparo à catástrofe.
Inversão de razão e desrazão, conveniência e inadequação. Isso porque aquilo que, à
primeira vista, pareceria arcaico e inconsequente, revela-se como fronteira do humano
no corpo e na imaginação. Pois do ponto de vista da auto-compreensão ética da espécie
humana, o fim do ciclo de nascimento e morte é uma representação-limite, à beira do
irrepresentável, que abala o senso de identidade da “humanidade”. Lembremos que
Hannah Arendt pensou a “vida” como condição humana do labor, da mera
sobrevivência biológica.
O balé protagonizado pelo planeta Melancolia dota o filme daquilo que nele
talvez haja de mais poético. Como medir a distância entre os corpos celestes, sabendo
que eles se influenciam reciprocamente? Quais os efeitos das forças gravitacionais entre
esses corpos, na medida em que essa distância e, consequentemente, sua influencia
varia? O ânimo melancólico propriamente dito, amplamente explorado pelo roteiro,
parece mimetizar, sob a roupagem do humano, a discreta e tensa coreografia celestial.
Com uma sutileza magistral, Lars Von Trier nos mergulha no universo melancólico, ao
nos deixar entrever o efeito devastador do magnetismo humano, revelado, por exemplo,
na indisfarçável incidência, sobre a tristeza de Justine e Claire, do niilismo odioso e
cruel de sua mãe. Assim como nos dá a ver sobre a melancolia o que nela é mais difícil
de reconhecer: seu gozo. Ou o estranho apaixonamento que o melancólico nutre por seu
ânimo debilitado, seus fracassos e, no limite, seu masoquismo. Se, tal como Freud
ensinara, a melancolia é determinada por uma perda da satisfação pulsional que o
sujeito se recusa a admitir – o que a assemelha a um luto que nunca termina – a versão
que dela nos apresenta Lars Von Trier advém, magnificamente estetizada, com a rubrica
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de uma cosmologia singular. Para existirmos, é necessário admitir que o universo do
desejo é infinito. E que a vida que contigentemente existe nos corações e corpos que
celestialmente amamos, um dia cessará. E renascerá, mas sob a exigência de uma
renúncia. Da renúncia ao direito de propriedade sobre a Coisa – que ninguém possui – e
cuja contrapartida é dupla. A vida existirá transitoriamente noutras estrelas. E
eternamente na lembrança.
“O tempo é criança brincando, jogando; de criança o reinado”, reza a sentença
de Heráclito. A estruturação da dimensão humana da mortalidade, bem como a da
corporeidade e a da identidade pessoal, depende de um sentido coerente do tempo, em
que passado, presente e futuro sejam discerníveis. A possibilidade do fim do mundo
seria não apenas a da morte generalizada, mas também a do fim do futuro, da extinção
dos nascimentos e da revogação completa do sentido das ações humanas, se as
entendermos como inscrição da diferença qualitativa no curso do mundo.
Von Trier não propõe uma “mensagem” com “Melancolia”. Nem a de que “a
Terra é má”, como diz a personagem Justine, nem a de que a resignação diante de
poderes insuperáveis possuiria supostamente per se dignidade moral. Seu filme, como
um todo, parece-se com um rumor que ora amplifica, ora diminui. Seria preciso
entender esta afirmação literalmente. Suas imagens sonham o momento em que as
pegadas humanas na Terra começam a desaparecer, para não deixar rastros.
Sua
verdade estética não poderia ser mais precisa. Face ao horror subterrâneo do que nos é
próximo, o cinema é um rumor em que ainda podemos nos reconhecer.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ZIZEK, S. Lacrimae Rerum. Lisboa: Orfeu Negro, 2008.
Recebido em abril de 2012
Aceito em novembro de 2013
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