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a geometria enraizada na obra: ponto de partida - sinpro-sp
A GEOMETRIA ENRAIZADA NA OBRA: PONTO DE PARTIDA, ORDENAMENTO
DO PENSAMENTO E CRIAÇÃO.
Cínthya Maria Rodrigues Álvares Isquierdo - mestranda
Orientação: Profª. Drª. Kátia Azevedo Teixeira
Universidade São Judas Tadeu
Comunicação científica: Resumo
Vários campos de atuação, de um modo geral, se beneficiam da ciência da
geometria em seus sistemas de representação. Intimamente ligados aos aspectos
dessa ciência, estão o desenvolvimento da visão e do raciocínio espacial e
também a idéia de disciplina e de processo na elaboração e construção da forma.
No decorrer de vinte anos de atividade acadêmica como docente em cursos
superiores de graduação, foi possível observar o crescente número de
ingressantes aos cursos de Arquitetura, Design e Engenharias (Civil, Mecânica,
Produção, Elétrica e Computação) sem qualquer conhecimento básico de
geometria e, consequentemente, com dificuldades - quando não impossibilidade –
em utilizar e desenvolver a percepção espacial e em compreender e acompanhar
tal estudo e, mais ainda, em aplicá-lo com alguma autonomia nas soluções de
projeto. Os problemas detectados resultam, muitas vezes, da quase inexistência
do conteúdo de geometria na fase escolar básica – segundo relatos dos próprios
alunos das graduações citadas – comprometendo seriamente a formação integral
do próprio estudante. Essa idéia, naturalmente, não é individual e exclusiva e
compartilha da visão de outros pesquisadores como Pavanello, Maia e Davis,
dentre outros, os quais apontam principalmente a perda da capacidade de
abstrair, de generalizar, de projetar. A pesquisa tem como principal objetivo,
investigar a contribuição do conhecimento da geometria no que concerne às
relações entre concepção e resolução, examinando tal contribuição para o
desenvolvimento do raciocínio hipotético-dedutivo, da capacidade de abstrair e de
projetar em áreas diversas, para finalmente, dar atenção especial às áreas de
Arquitetura e Design.
Palavras Chaves: Geometria. Projeto. Forma.
A geometria enraizada na obra: ponto de partida, ordenamento do
pensamento e criação.
Considerada um ramo antiqüíssimo da matemática que estuda as figuras e
os corpos geométricos – definição mais comum a esta ciência – o conhecimento
de geometria permite a apreensão e utilização de problemas gerais espaciais em
áreas diversas. Intimamente ligados aos aspectos da ciência da geometria estão
o desenvolvimento da visão e do raciocínio espacial e também a idéia de
disciplina e de processo na elaboração e construção da forma. A geometria é,
pois, responsável por “atitudes mentais próximas do pensamento imagético”
(RODRIGUES, 2000, p. 100), indispensável ao raciocínio exigido em qualquer
área, mas, principalmente, naquelas que desenvolvem e utilizam o desenho como
instrumento de criação e de projeto, e como sistema de representação, a exemplo
da Arquitetura, do Design, e das Artes de um modo geral.
No entanto, essa realidade vem sendo gradual e constantemente
confrontada com uma constatação: no decorrer de vinte anos de atividade
acadêmica como docente, ministrando aulas das disciplinas de Desenho
Geométrico, Desenho Técnico e Geometria Descritiva, em cursos superiores de
graduação, foi possível observar o crescente número de ingressantes aos cursos
de Arquitetura, Design e Engenharias (Civil, Mecânica, Produção, Elétrica e
Computação) sem qualquer conhecimento básico de geometria e,
consequentemente, com dificuldades em utilizar e desenvolver a percepção
espacial. Por serem os cursos de Engenharia bastante embasados no raciocínio
lógico-matemático e menos dependente do uso constante das representações
gráficas destinadas ao projeto, a inquietação se ameniza, em parte, pelo fato dos
estudantes nele desenvolverem o raciocínio abstrato através de outras
abordagens matemáticas - como o cálculo e a álgebra. Mas tal feito não ocorre,
com a mesma ênfase, nos cursos superiores de Arquitetura e de Design.
Essa percepção, naturalmente, não é individual e exclusiva. Pavanello
(1989), por exemplo, em trabalho que investiga o ensino de geometria ao longo
dos anos, no Brasil, aponta as dificuldades que os alunos apresentam - nos
diversos níveis de ensino, incluindo os cursos superiores1 - relativamente à
compreensão de processos de demonstração, ao emprego de representações
geométricas para visualização de conceitos, à percepção espacial necessária às
diversas profissões. Enfatiza, principalmente, as perdas decorrentes em relação
ao desenvolvimento do raciocínio hipotético-dedutivo, da capacidade de abstrair,
de generalizar, de projetar.
Como tudo, essa circunstância não se desvincula de um conjunto de
escolhas e critérios internos a um contexto mais amplo. Uma das constatações
importantes é que
Esta problemática se desenrola quando a escola pública se expande no
Brasil, permitindo o ingresso de uma quantidade muito maior de alunos.
Propõe-se, desta forma, aos professores um novo desafio: trabalhar com
uma população muito diferente daquela com a qual estavam
acostumados a lidar, sob novas (e piores) condições de trabalho – e de
1
Pavanello (1989) constata a quase inexistência de um trabalho com geometria nas escolas
públicas de 1º e 2º graus, o que compromete, de maneira extremamente grave, o prosseguimento
desse aprendizado nos cursos de 3º grau em que ele é diretamente necessário.
remuneração - e sob a pressão do Estado, que a toda hora lhes lembra o
custo econômico de manter, anualmente, cada aluno na escola.
(PAVANELLO,1989, p.165-166).
Outra, ainda segundo a autora, e imbricada com a anterior, é a defesa do
caráter prático e intuitivo do ensino nos primeiros níveis, privilegiando aquele que
é considerado mais utilitário. Raciocínio que é corroborado por Maia2 (1997): “(...)
a funcionalidade buscada pelos professores brasileiros se dirige, quase que
exclusivamente, para a utilização da matemática na resolução de problemas da
vida quotidiana” e comparado, pela autora, com os procedimentos dos
professores franceses quando relata que, para eles, a “(...) funcionalidade se
exprime ainda, pela eficiência do pensamento matemático, no sentido de
formação da mente”, questão que costuma ser considerada pelos professores
brasileiros como sendo específica da matemática abstrata.
A situação agrava-se ainda mais, pois há casos de alunos relatando (e
demonstrando) que esse conteúdo inexistiu na fase escolar básica3, condição que
compromete seriamente a formação integral do próprio estudante.
A ausência dos conteúdos de geometria ou ainda de conteúdos mal
elaborados e/ou mal apresentados nos níveis de ensino anteriores implica que, ao
ingressarem em cursos superiores que contemplam em seus currículos disciplinas
que abordam a geometria, estudantes de Arquitetura e Design encontrem
enormes dificuldades - quando não impossibilidade - em compreender e
acompanhar tal estudo e, mais ainda, em aplicá-lo com alguma autonomia nas
soluções de projeto, fato que se estende e se reflete muitas vezes à sua vida
profissional 4.
E, no entanto, como sabemos, quando se trata do processo criativo de
projeto, os conhecimentos geométricos são imprescindíveis à elaboração da idéia.
Desenho e pensamento instruído, portanto, estão inevitavelmente imbricados.
A geometria é a ciência fundamental na construção do pensamento formal,
estando presente de maneira mais explicita no que se refere à configuração
gráfica da mesma, cujos elementos primordiais são o ponto, a linha e o plano. A
morfologia geométrica permite o estudo e a compreensão das formas gerais da
natureza, a partir de analogias às formas classificáveis de distintos grupos,
conhecidas como formas geométricas ‘padrões’. (CARVALHO, 2001, p.11). A
apreensão dessa ciência possibilita, através da linguagem do desenho, a
comunicação de idéias elementares - mas perfeitamente estruturadas e
organizadas - ainda que não se apresente graficamente neste momento
elaboradas sob o rigor obtido através do uso de um ferramental de precisão, por
2
MAIA, Lícia de Souza Leão. Artigo: Analisando a aula de matemática: um estudo a partir das
representações sociais da geometria.
Disponível em: < www.anped.org.br/reunioes/25/licialeaomaiat19.rtf > Acesso: 27/02/2011.
3
No artigo Por que ensinar/aprender geometria?, Pavanello relata o problema do abandono do
conteúdo de geometria nas aulas de matemática no Estado de São Paulo desde o início da
década de 80.
Disponível em:< http://www.sbempaulista.org.br/epem/anais/mesas_redondas/mr21-Regina.doc >
Acesso: 24/02/2011.
4
Curiosamente, Martino (2001) discorre sobre o completo abandono do ensino de geometria nas
academias militares do Exército Brasileiro – onde o currículo era destinado à formação de
engenheiros – afirmando que disciplinas como Topografia e Geometria Descritiva (ambas extintas
do currículo) poderiam contribuir à formação cultural e preparação técnica dos oficiais do Exército,
se devidamente conduzidas por professores adequadamente preparados.
exemplo. A idéia pode ser anotada, lida e interpretada desde o momento que
surge, mesmo que ainda esteja numa fase de especulação e longe de ser
considerada finalizada. Pode-se dizer que se trata de um sistema construtivo
onde, segundo Kandinsky (1997, [prefácio] p. XXIII), a “lógica do aparecimento
das formas estaria ligada à capacidade de estabelecer formas simples. Tudo se
dá entre a horizontal, a vertical, a diagonal e o círculo”.
O sistema construtivo, nesse caso, é a combinação racional dos elementos
onde as diferentes partes se tornam vivas pelo conjunto e, portanto, é a
organização que estabelece conjuntos coerentes, compreensíveis e passíveis de
reprodução e recepção, constituindo portanto, efetivamente, o objetivo definitivo.
O processo de comunicação viabilizado pela linguagem5 do desenho – e
esta linguagem amparada pelo conhecimento consciente da geometria – é “(...)
menos um fim do que um meio.” (CARVALHO, 2001, p.1), uma vez que no
processo de criação é possível reconhecer os problemas específicos a serem
tratados, tal como explica Wong:
Quando definimos as metas e os limites, analisamos as situações,
consideramos todas as opções disponíveis, escolhemos os elementos
para síntese e tentamos propor as soluções mais apropriadas – esta é a
abordagem intelectual. Ela requer um raciocínio sistemático com alto
grau de objetividade, ainda que a sensibilidade e o julgamento individual
quanto à beleza, à harmonia e ao interesse devam estar presentes em
todas as decisões visuais. (WONG, 1998, p. 13).
O raciocínio sistemático estabelece então a organização necessária à
construção da forma elaborada a partir de uma abordagem intelectual, processo
este que pressupõe a ação (mesmo que subjetiva) da ciência da geometria.
Focillon (2001, p. 21) também alega não haver “nada mais tentador – e, em certos
casos, mais razoável – do que apresentar as formas submetidas a uma lógica
interna que as organiza.” Complementa, ao mencionar o ornamento – mas a idéia
se aplica perfeitamente a outros exemplos - que a sua “essência (do ornamento)
consiste em poder reduzir-se às formas mais puras da inteligibilidade, e que o
raciocínio geométrico se aplica sem defeito à análise das relações entre as
partes.” (op. cit., 2001, p. 21).
Ainda que aconteça de forma subjetiva, há evidencias de que o raciocínio
geométrico - enquanto fundamento de um sistema ordenador - esteja presente
desde as mais corriqueiras atividades até as consideradas especiais e superiores.
Na publicação intitulada O escuro labirinto da crise6, cuja abordagem se dirige aos
problemas e oscilações que envolvem o mundo empresarial, Moraes defende o
papel estruturador que determinados conhecimentos exercem sobre o homem 5
Segundo Sainz (2009, p. 26), “para os lingüistas e os semiólogos seguidores de Saussure (...) o
desenho de arquitetura não pode ser considerado uma ‘linguagem’, senão mais um sistema de
signo de caráter não lingüístico; poderia chegar a constituir-se num sistema de comunicação, mas,
por enquanto, devemos falar dele como um simples meio de comunicação (...) (pois) das seis
condições exigidas para a existência de uma estrutura lingüística, o desenho de arquitetura só
cumpre com segurança uma delas.” Porém, vários outros autores ainda utilizam o termo
“linguagem” para o desenho, o que ocorrerá também neste texto.
6
Entrevista realizada pela revista Psique Ciência & Vida ao psicanalista, economista e consultor
de empresas José Augusto de Moraes. Publicado por Roberto Lopes no portal Ciência & Vida.
Disponível em: < http://portalcienciaevida.uol.com.br/ESPS/Edicoes/44/artigo152456-1.asp >
Acesso em: 01/05/2010.
mente e psique: “(...) ao contrário do que se poderia pensar, equações
matemáticas e figuras geométricas são invocadas há séculos para explicar a alma
humana.”7 Atesta esse pensamento informando que utiliza como ferramental
softwares sofisticados por serem a evolução direta dos modelos da Álgebra e da
Geometria de Galileu - para aliviar gestores e líderes das tensões que
acompanham as crises que o setor frequentemente atravessa. Mas o mais
interessante é a associação estabelecida entre questões empresariais e o
pensamento de Galileu Galilei:
A Filosofia está escrita neste grande livro - quero dizer o universo - que
fica permanentemente aberto à nossa contemplação, mas não pode ser
entendido a menos que alguém primeiro aprenda a compreender a
linguagem e a interpretar os caracteres em que está escrito. (Este livro)
É escrito na linguagem da matemática e seus caracteres são triângulos,
círculos e outras figuras geométricas sem as quais é humanamente
impossível compreender uma única palavra dele; sem isso, é uma
caminhada em um labirinto escuro. (Galileu Galilei (1564-1642) apud
MORAES, Revista Psique, Edições/44/artigo152456-1).
Outros teóricos também ilustram e evidenciam a questão da compreensão
a partir da ordenação do pensamento. Recorrendo a Descartes (2006, p. 13), este
enfatiza: “(...) aqueles cujo raciocínio é mais ativo e que melhor ordenam seus
pensamentos, a fim de torná-los claros e inteligíveis, sempre podem convencer
melhor os outros daquilo que propõem, mesmo que falem apenas o baixo bretão
e nunca tenham aprendido retórica”, e Mondolfo (1967, p.18-19) também ilustra,
com os procedimentos de Leonardo da Vinci, aludindo à vinculação entre arte e
ciência, a necessidade de reconhecer não somente os elementos e formas da
realidade natural, mas de identificar as leis matemáticas que lhe são intrínsecas:
“Leonardo reserva ao desenho uma parte importante nos seus manuscritos
científicos, pois nele vê tanto a linguagem da ciência geométrica e a condição
necessária de seu desenvolvimento, como o meio indispensável para fixar e
transformar de momentâneas em permanentes as conquistas das observações
anatômicas realizadas (...)”.
Um outro exemplo interessante vinculando arte e ciência ocorreu com o
químico alemão Friedrich August Kekulé, em 1865, quando sonhou – experiência,
aliás, que não é inusual e tampouco considerada entre pesquisadores - com a
solução de um problema sobre a estrutura dos compostos do carbono. Ao
acordar, o químico fez registros utilizando ambas as linguagens, em um conjunto
“(...) que dá origem a uma configuração, que se apresenta como modelo visivo
capaz de informar sobre a composição qualitativa e quantitativa de um composto
químico.” (MASSIRONI, 2010, p. 134). Nesse caso, o demonstrado através da
imagem não foi a forma de um objeto, mas a representação do “(...) aspecto
formal que o conhecimento amadurecido até aquele momento consegue atribuir
às condições tomadas em exame” (op. cit., p. 134), um modelo hipotético,
portanto, de um fenômeno.
Dentre as inúmeras possibilidades de representar um objeto, as mais
utilizadas são as que estão convencionadas e/ou sujeitas às normas. A
perspectiva e o sistema de projeção ortogonal são bons exemplos, sendo que,
7
MORAES, Revista Psique, Edições/44/artigo152456-1
este último, definitivamente codificado por Gaspar Monge8 teve um
desenvolvimento bastante significativo associado ao momento histórico da
Revolução Industrial. Já a perspectiva representou, para o Renascimento, o meio
de conexão entre os significados dos objetos isolados e o desejo de estabelecer
um discurso visual contínuo e fluído, com o extraordinário recurso que permitiria a
graduação do espaço. Nesse sentido,
A tradução da profundidade não é só um novo modo de representar o
mundo tridimensional, sobre uma superfície bidimensional, mas um novo
modo de observar – o enfatismo dos significados simbólicos, tendentes à
deformação formal é submetido à regularização imposta pela
necessidade de obedecer a uma hierarquia espacial. A observação dos
dados naturais torna-se mais precisa, mais curiosa, mais maravilhada e
sobretudo o observável, o perceptível adquirem maior credibilidade, um
maior grau de realidade no que respeita ao enunciado descrito nos
textos.(MASSIRONI, 2010, p. 56-57).
Verifica-se, portanto, que a linguagem do desenho foi ferramenta
fundamental no desenvolvimento da ciência por possibilitar a demonstração da
anatomia humana, das paisagens naturais, onde neste caso “a representação era
feita com rigor e por isso a objetividade estava próxima do cientificismo. (...) Numa
sociedade (brasileira) que convivia a séculos com o analfabetismo, as imagens
eram o meio eficaz e poderoso de construção das representações da nação, onde
a natureza emergia do passado glorioso da conquista”, como alega Assunção
(2006, p. 59-60). Procurava-se demonstrar também as espécies relacionadas à
zoologia e à botânica, principalmente nos períodos das grandes navegações, na
descoberta dos Novos Mundos, por exemplo, onde foram encontradas outras
terras repletas de novidades.
É o início do paradigma olhar-ver, “(...) porque as características da
natureza inesperada e da escala diferente requisitavam vários desafios, foi notória
a exigência de uma série de adaptações culturais, oculares no imediato e sempre
difíceis de descrever.” (JANEIRA, 2006, p. 140). Sendo assim, a importância do
desenho se dá justamente por ser visual a modalidade de análise em questão,
enfatizada em particular na área da botânica, “(...) tornando-se prioritária na
epistemologia dos séculos XVII e XVIII (...) (onde) toma então forma, tácita mas
concordemente, um modo de representar os objetos da natureza e
particularmente as plantas, que segue percursos constantes e estáveis, o que é
tanto verdade que ainda hoje são usados para fins análogos, sem variações de
relevo.” (MASSIRONI, 2010, p. 59).
Uma vez que importam o registro e a investigação dos traços significativos
das estruturas vegetais, dos animais, das aves e dos insetos, a representação
com função taxonômica orienta-se por um conjunto de regras onde prepondera o
uso do plano frontal, o ponto de vista fixo e a retirada do fundo – para evitar a
visão perturbada do desenho “(...) onde se evidenciam todas as características e
traços pertinentes; é por esta razão que ainda hoje se prefere usar o desenho em
vez da fotografia; porque a fotografia ao registrar um indivíduo, não poderia
8
O uso instrumental da representação gráfica exigia certo grau de convenção para que todos que
conhecessem suas regras pudessem compreender perfeitamente a representação. Deste modo,
Monge apresentou as instruções necessárias para realizar desenhos plenamente descritivos e de
significado inequívoco. (SAINZ, 2009, p. 115 – tradução do autor).
prescindir dos traços singulares e extravagantes, enquanto o desenho o pode
fazer de maneira elegante e convincente.” (MASSIRONI, 2010, p.62).
Na imensa produção gráfica que acompanha os textos sobre história
natural, as imagens assumem uma função substitutiva dos objetos que
representam, demandando por isso observação aguda e precisa, capaz de
condensar no exemplar individual registrado, as características de seu coletivo, da
espécie. Essa função e necessidade
(...) determinava metodologias e uma disciplina mental fortemente
servidas pela competência para o desenho, (...) que poderia ser
usada para o estabelecimento de diferenças e semelhanças,
fundamentais para o método comparativo, nomeadamente na
determinação cuidada dos especímenes.(...) (JANEIRA, 2006, p. 144145. - grifos do autor).
Nota-se, portanto, com considerável clareza, que inclusive nesses
momentos e nesse tipo de representação, o raciocínio geométrico esteve
presente organizando e disciplinando a mente daquele que possuía uma
“habilidade invejável” para desenhar, desenvolvendo a necessária capacidade de
precisão e rigor na observação, de análise e de síntese.
Em relação à área de educação matemática, ilustram as questões
vinculadas ao desenho a experiência relatada por Dreyfus e Hadas9, na analise
das dificuldades de alunos americanos de uma high school10. No artigo, dentre as
estratégias para superar as dificuldades dos estudantes, dois princípios merecem
atenção particular. O primeiro - Mesmo afirmações óbvias têm de ser provadas –
enfatiza a importância formadora do raciocínio dedutivo:
A visualização e a medição são estratégias vitais para a descoberta de
propriedades geométricas. Porém, num sistema dedutivo, cada
afirmação tem de se basear em afirmações provadas anteriormente, e
não se pode provar uma afirmação com base em figuras. Para a maioria
dos alunos, a passagem da geometria informal (na qual se deduzem
propriedades a partir de figuras ou objetos específicos) é uma fonte de
muita confusão. É necessário, portanto, ensinar e enfatizar o princípio
ora introduzido de que toda afirmação tem de ser provada. (DREYFUS e
HADAS apud LINDQUIST e SHULTE, 1994, p. 63).
O segundo - Figuras complexas são constituídas por componentes
básicos- aponta a dificuldade, bastante generalizada entre estudantes, de
reconhecimento dos elementos básicos, quando os mesmos ou aparecem de
modo menos usual ou integram uma composição mais sofisticada, como a
visualização de triângulos isósceles, quando suas bases não se encontram na
posição horizontal, ou de triângulos congruentes, quando os lados
correspondentes não estão paralelos.
Os exemplos retirados de pesquisas da área de educação em matemática
mostram claramente o grau de dificuldade enfrentado para a abordagem das
questões associadas à geometria de um modo geral. Em um de seus
desdobramentos, minimizar ou “abolir Euclides” da vida acadêmica, nos níveis
9
Tommy Dreyfus e Nurit Hadas, autores do artigo “Euclides deve permanecer – e até ser
ensinado”, in: LINDQUIST, Mary M.; SHULTE, Albert P. (organizadores) Aprendendo e ensinando
geometria. São Paulo: Editora Atual, 1994.
10
Equivalente, no Brasil, ao ensino fundamental II.
intermediários de ensino, compromete de modo grave e perverso a formação, nos
cursos superiores em que tal conhecimento alicerça a atividade profissional. Nas
áreas de Arquitetura, Design e áreas avizinhadas, certamente deve haver uma
redução considerável no potencial criativo, interferindo, portanto, nas
possibilidades de um trabalho de qualidade e inovador.
Um exemplo que tange as áreas de Arquitetura e Design é o uso da malha
gráfica em desenhos de projetos. Tal organização proporcionada pela
combinação da demonstração da geometria associada a uma malha certamente
estipula uma ordem ao projeto garantindo precisão não só na documentação, mas
também na leitura do mesmo. Além disso, como expressou Davis, a constituição
do raciocínio é privilegiada, pois possibilita argumentações lógicas. A facilidade ou
dificuldade em lidar com tais argumentações dependerá do grau de conhecimento
de cada indivíduo. Em se tratando dessa prática de demonstração e
documentação com maior precisão – nem tão usual na área de Design - supõe-se
que este profissional domine conceitos da geometria euclidiana e possa justificar,
se necessário, a concepção e o registro de qualquer forma, ainda que seja
apenas um objeto de estudo. O importante é que o raciocínio geométrico esteja
presente, mesmo que subjetivamente, no desenvolvimento do processo criativo,
inventivo e investigativo; porém, a discussão se estende quando se trata do uso
efetivo da geometria no aperfeiçoamento desse tipo de documentação. A
ausência de um paradigma acaba por sustentar uma inquietude e uma
preocupação com a forma criada, sobre como preservá-la com suas próprias
características, autênticas e exclusivas, denunciando uma constante apreensão
com a personalidade e identidade visual de uma forma.
Supõe-se (ou espera-se) dessa maneira, que as noções de
proporcionalidade, por exemplo, apresentadas por um designer ou por um
arquiteto – por suas formações - sejam mais aguçadas que a do resto da
população, propiciando a esses profissionais trabalhos de maior qualidade, o que
justificaria – até certo ponto – uma produção criativa dentro dos padrões de
entendimento e aceitação de leitores ou expectadores, mesmo que estes
desconheçam informações mais profundas do assunto. Davis afirma parecer claro
o fato de que
(...) histórica e psicologicamente as intuições da geometria são mais
primitivas do que as da aritmética. Em algumas culturas primitivas, não
há palavras para números, exceto um, dois e muitos. Mas em qualquer
cultura humana que jamais descobriremos, é importante ir de um lugar a
outro, apanhar água ou arrancar raízes. Assim, os homens foram
forçados a descobrir – não uma, mas muitas e muitas vezes, em cada
nova vida humana – o conceito da reta, de menor distância entre aqui e
ali, da atividade de dirigir-se diretamente a algo. (DAVIS, 1986, p. 189).
O discernimento entre o aceitável ou não aceitável estaria então arrazoado
pelo conhecimento empírico ou arquetípico do público envolvido na apreciação e
leitura da obra em questão.
Parafraseando novamente Davis (1986, p.180) “o que parece inicialmente
não intuitivo, dúbio e algo misterioso termina, após um certo tipo de processo
mental, gloriosamente verdadeiro (...) (e) uma vez que uma afirmativa foi
demonstrada, devemos entender que a afirmativa é verdadeira sem nenhuma
sombra de dúvida.”
Todos esses fatores, em conjunto, colaboram para que esta pesquisa
esteja direcionada justamente à Arquitetura e ao Design - indiscutivelmente áreas
mais vulneráveis à ausência do ensino adequado de geometria - e a investigação
tem, como principal objetivo, examinar a contribuição do conhecimento da
geometria no que concerne às relações entre concepção e resolução,
averiguando tal contribuição para o desenvolvimento do raciocínio hipotéticodedutivo, da capacidade de abstrair e de projetar.
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