O místico - Flusser Studies

Transcrição

O místico - Flusser Studies
FLUSSER STUDIES 15
Marcelo Bolshaw Gomes
O místico e o feiticeiro
Contrapontos entre imagem técnica e narrativa seqüencial em
Alan Moore e Vilém Flusser
A Árvore da Vida
Dion Fortune1 afirmava (1967, 23) haver duas sendas distintas para os iniciados no oculto: a
senda mística, em que o aspirante se eleva verticalmente chegando ao Deus imanifesto, ao nada; e
a senda dos feiticeiros, em que o neófito ascende, em um zig-zag lento e tortuoso, através dos
diferentes aspectos da manifestação, as forças da natureza. O místico se funde com o nada central
que há por trás de todas as coisas; o feiticeiro, combina todas as coisas manifestas segundo sua
energia para realizar as operações necessárias ao seu desenvolvimento e de sua comunidade. E
para ilustrar sua afirmação, Fortune acrescenta que o místico ascende à divindade através do pilar
central da Árvore da Vida, o caminho do renunciante; enquanto o feiticeiro deve oscilar através
dos pilares laterais, os eixos da bondade e da severidade, alternando uma rigorosa disciplina
espiritual ao exercício da generosidade e da gratidão.
A Árvore da Vida é um diagrama da estrutura do universo da cabala hebraica de tempos
imemoriais2, que os ocultistas e bruxos dos séculos XIX e XX transformaram em um eixo
arquetípico vertical, um centro simbólico sobre o qual se organizam os diversos níveis da
manifestação. A árvore, nesta versão, não forma um sistema fechado; ela é um método de
correspondência universal ou uma chave analógica para decifrar outros sistemas simbólicos. Há,
inclusive, diversas 'árvores da vida' em diferentes mitologias, porém a árvore cabalística é a mais
complexa e abrangente.
Pseudônimo de Violet Mary Firth Evans (1890 - 1946), psicóloga e ocultista britânica, escritora de romances,
contos e vários livros sobre esoterismo.
2 Segundo a tradição, a cabala foi ensinada pelos anjos aos homens para que eles conseguissem voltar ao paraíso
primordial. Para outros, ela foi recebida por Set, o terceiro filho de Eva, ou por Enoch, Abraaão e Melkisedk. Há
também versões de que ela diretamente ditada por Jeová a Moisés, durante sua permanência por 40 dias no monte
Sinai. Do ponto de vista histórico, no entanto, sabemos que a Cabala, como tradição oral do misticismo hebraico,
data da época do segundo cativeiro babilônico, sendo uma espécie de adaptação do simbolismo astrológico dos
caldeus ao monoteísmo judaico. Por muitos séculos, a Cabala foi transmitida oralmente como um tipo de exegese
mística do Torah até que, por volta do ano 100 d.C., surgiram o Sepher Yetzirah e o Zohar. Desde então, a Cabala teve
vários ciclos distintos dentro da tradição judaica, com características bastantes diferentes (o ciclo mágico da floresta
negra, o ciclo filosófico especulativo da Espanha no século XII, o ciclo monástico de Safed dirigido por Isaac Luria),
mas só se popularizou quando foi apropriada e universalizada pelos ocultistas nos séculos XIX e XX (principalmente
Eliphas Levi e Alesteir Crowley).
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No diagrama da árvore, as dez Sephiroth (plural de Sephirah) são esferas de energia em que a
manifestação se desenvolve. Cada sephirath está contida na anterior e contem, em si, a
possibilidade da próxima.
Temos, portanto, uma série de dez círculos concêntricos, uns dentro dos outros, mantendo
uma relação de polaridade em função à esfera anterior que o engloba e também em função à
esfera que o contem em seguida. E esse conjunto de círculos pode ser disposto de vários modos.
Imaginemos que desejamos fazer um bolo. Este motivo, quando vem à mente, equivale à
primeira tríade, onde Kether representa o desejo, Chokmah, à ideia, e Binah, a sua imagem
formal. Porém, o bolo só sairá da imaginação para a realidade se cruzar o abismo, chegando ao
sétimo nível de materialização: Cheseed corresponderá à escolha dos ingredientes; Geburah, ao
esforço necessário à preparação da massa; Tiphareh, ao equilíbrio entre a quantidade dos
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ingredientes e sua correta preparação; Netzach, ao toque artístico necessário e à intuição; Hod, às
instruções técnicas da receita; Yesod, ao cozimento no forno; e, finalmente, Malkuth, à forma
final do bolo, à sua materialidade.
Além dos processos descendentes e materializantes que baixam da luz para concretude, a que
se chama 'criativos'; existem os processos 'evolutivos', que partem da matéria em busca de uma
realidade mais sutil. A árvore cabalística representa este duplo circuito dos processos criativos e
evolutivos. As sephiroth ou esferas de manifestação funcionam como ‘transistores’ deste circuito,
unidades que recebem e emitem energia transformando suas características. Os cabalistas
analisam todos os fenômenos à luz destes critérios, reduzindo-os sempre aos mesmos elementos,
as dez esferas da manifestação.
Compreenda-se agora que, quando Fortune diz que o místico 'sobe a árvore' pelo pilar
central, significa que o neófito controla os instintos do corpo (malkult), domina os desejos da
alma (yesod) e chega ao coração de self (tiphareh), ele precisa ainda cruzar o grande abismo para
se integrar na luz (kether) e sumir no nada (ain soph, o 'sem fim'). Em contrapartida, o feiticeiro,
no fluxo descendente contrário, materializa as forças das esferas através do 'caminho do
relâmpago', subindo a árvore lentamente pelos lados, oscilando entre os pilares do karma e da
graça (por isso também a feitiçaria é chamado de 'caminho da serpente'), dominando as sete
forças das natureza, desenvolvendo as qualidades inerentes a cada uma delas; para depois, em um
segundo estágio, ser capaz de interagir com a tríade superior: a forma, a força e a luz.
O devorador de almas
No livro Fenomenologia do brasileiro: em busca de um novo homem (1998a), Flusser3 caracteriza o 'modo
de ser brasileiro' como um protótipo do homo ludens, um novo homem consciente de que joga
com (e contra outros) e de que outros jogam com (e contra) ele.
Vilém Flusser (1920-1991) é um pensador tcheco naturalizado brasileiro que teve seus pais mortos em campos de
concentração nazistas e conseguiu fugir, vivendo no Brasil de 1940 a 1972. País em que tornou-se um filósofo
singular, 'excêntrico', sendo marginalizado no mundo acadêmico. Seus textos não tinham notas de rodapé, citações
ou referências bibliográficas; seu estilo era simples e poético; seus temas incomuns: o diabo em sua luta contra a
eternidade, o significado da natureza para ciência, a fotografia como novo paradigma cultural, a dúvida como uma
singularidade humana. Flusser, então, voltou à Europa, onde conquistou a consagração internacional como um
“filósofo da nova mídia” a partir da ótica do “canibalismo brasileiro”. Morreu em Praga, dia 21 de dezembro de
1991, em decorrência de um acidente automobilístico.
Vilém Flusser foi um cidadão do mundo, um pensador sem pátria, raízes ou identidade territorial. O livro Bodenlos:
uma autobiografia filosófica (2007) narra justamente o nomadismo filosófico de um sujeito desenraizado que assume a
condição de eterno migrante através de vários sistemas de pensamento. Aliás, a palavra 'bodenlos' pode ser traduzida
como 'sem chão' ou 'sem fundamentos'.
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Para Darcy Ribeiro (1995), o povo brasileiro é uma singular identidade cultural (a
ningüéndade) resultante da miscigenação étnica entre índios, negros e brancos latinos. Esta
identidade é singular em relação a dos povos colonizados, como os testemunhais (andinos e
mexicanos) que guardam os traços distintivos de antigas civilizações Inca e Asteca, e entre os
povos em que as características culturais dos colonizadores passaram a ser dominantes, como os
argentinos e canadenses, por exemplo.
Flusser vê o brasileiro de modo semelhante a Ribeiro, descrevendo três estratégias de jogo
colonial. A estratégia um é a dos que jogam para vencer, mesmo arriscando a derrota – como os
norte-americanos. A estratégia dois é o jogo dos excluídos que jogam para não perder, buscando
reduzir os riscos tanto do fracasso como do sucesso – como a maioria dos povos latinos
americanos. Já a estratégia três é o jogo dos que jogam para mudar o jogo, que caracteriza o
'modo brasileiro'. A estratégia três corresponde a uma ampliação da noção de antropofagia
cultural de Osvald de Andrade, uma forma de resistência criativa à aculturação colonizadora, uma
identidade híbrida, que não se identifica nem rejeita a cultura do colonizador, ao contrário, a
absorve e a recria com a própria linguagem.
E assim, Flusser devorou nossa antropofagia cultural transformando-a em canibalismo
simbólico. A ideia de 'devorar' desempenha um papel central em seu pensamento tanto em
relação à sociedade de consumo como na simplificação dimensional da linguagem na sua 'escala
de abstração' – como veremos adiante.
Dono de um estilo único, simples e profundo, místico, no sentido de esvaziar os assuntos,
Flusser escrevia em quatro idiomas. Publicou 13 livros em português, que arrisco subdividir em
dois momentos: a fase teológica (1965 - 1983) e a fase midiática (1985 - 1991).
A história do diabo (1965) – primeiro livro escrito e o segundo a ser publicado em português,
traduzido do alemão pelo próprio autor - bem poderia se chamar 'a história é o diabo'. Deus é a
eternidade e ao criar o mundo, criou também o tempo, seu servo, o diabo. O divino existe fora do
tempo, na individualidade; a história, o progresso, o tempo social é o diabólico. Com base nessa
premissa, Flusser estuda os pecados capitais: luxúria, ira, gula, inveja, avareza, soberba, a preguiça
e a tristeza do coração.
Curiosamente, Flusser utiliza involuntáriamente? o modelo da árvore cabalísitica, em que
todo universo repousa em latência em Kether, “a luz primordial”; e de dentro dele emana outro
círculo, Chokmah, “o pai”, o influxo de energia cinética; que apesar de contido no primeiro, se
opõe a ele, gerando um terceiro, Binah, “a grande mãe da noite dos tempos”; cuja a realidade está
contido nos dois anteriores. E os sete pecados capitais estão relacionados às sete Sephiroh
inferiores. Porém, para Flusser, a gula (referente na Cabala à Cheseed, a sétima esfera) tem um
tratamento especial.
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No capítulo corresponde à gula da História do diabo, narra-se o processo de produção
industrial como uma devoração gulosa da natureza, da qual resultam, como excrementos, os
objetos industriais. Devoração gulosa porque desmesurada, obsessiva. Insaciável porque não
deseja satisfazer a fome e sim produzir mais e novas necessidades, para que se justifique o
crescimento permanente e exponencial da produção. Porém, com o passar do tempo, o lixo, o
excremento, os restos desta devoração industrial da natureza acabam por devorar seus
devoradores. Assim, a gula predadora a tudo devora: a natureza, as culturas, a sociedade como um
todo, e, finalmente, a alma e o corpo do próprio homem.
Norval Baitello Junior (2010), estudioso da noção de ‘devoração’ na obra Flusser, aponta
ainda outros significados para o termo. Um dos aspectos mais curiosos é o metodológicoexpositivo: “ A captura pela inversão, pelo olhar ao avesso e subterrâneo, pelo enfrentamento
canibalizante dos objetos tratados, instaura uma lógica de saltos, uma linha que se interrompe
bruscamente para se retomar logo adiante, com mais força e ainda mais surpresa, demonstrando
que o salto no vazio contém infinitos e explosivos passos.” (BAITELLO, 2010, 16)
Ou seja: Flusser também é devorador de autores e objetos e acaba por ser devorado por eles.
Há uma devoração positiva do outro: o diálogo. O diálogo compreensivo de conceitos, bem
explicado, com ideias reversíveis e abertas à reformulação, gerando novas ideias; oposto ao papo
furado e à retórica persuasiva dos gostos, à comunicação discursiva, que deseja apenas “resistir ao
efeito entrópico da natureza”.
E graças a esse espírito dialógico, toda a vida e obra de Flusser acontece na conversação com
seus interlocutores: Aby Warburg, Harry Pross, Dietmar Kamper, Hans Belting, entre outros. O
resultado de todas essas conversas (na verdade, seminários com debates) foi uma sofisticada
interpretação culturalista dos processos de comunicação na sociedade atual. Dessas devorações
fraternas, destaco duas: a teoria das mídias de Harry Pross. A mídia primária é o corpo e a
comunicação presencial (sons, ruídos, gestos, aparência, odores e, principalmente, a fala). A mídia
secundária são as marcas sobre outros suportes (pedras, ossos, metal, couro, madeira e,
principalmente, papel). A escrita, expressão maior da mídia secundária, amplia a memória,
possibilitando a comunicação através do tempo-espaço e a história. E a mídia terciária, surge com
a eletricidade e marca o retorno da imagem e da simultaneidade do tempo. Já a noção de 'segunda
realidade' pode ser definida como o universo não presencial formado pelas mídias secundárias e
terciária.
Baitello Junior observa ainda a influência de autores místicos (“Mestre Eckart, Angelus
Silesius e fontes budistas”4) na formulação de uma (noção de) devoração mais complexa.
Na verdade, Nils Roller e Silvia Wagnermeier, estudando a correspondência de Flusser com Alex Bloch, (2003, 53
APUD BAITELLO, 2010, 37-38).
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Começa, então, a segunda e mais importante fase do pensamento de Flusser, a midiológica,
emblematizada pelos livros A Filosofia da caixa preta (1985), O mundo codificado (2007) e O universo
das imagens técnicas – o elogio da superficialidade (2008).
O livro A Filosofia da Caixa Preta - Ensaios para uma futura filosofia da fotografia (1985) é o
trabalho mais conhecido de Flusser, traduzido em mais de 15 idiomas, tendo sido escrito
originalmente em alemão e traduzido para o português pelo próprio autor. O livro, no entanto,
não é sobre fotografia em si e sim sobre a cultura contemporânea, que é formada por imagens
mediadas por tecnologia. A fotografia oferece apenas um modelo para entender a sociedade pós
histórica, em que a escrita está sendo devorada pela imagem.
Em A filosofia da caixa preta, há dois temas principais: o funcionário e as imagens mediadas
por tecnologia. O funcionário aborda o tema do sujeito mecanizado por aparelhos, perdendo sua
liberdade criativa. Por aparelho ou máquina, entendam-se as 'organizações sociais' (e não apenas
as atuais redes sociais de computadores, como interpretam alguns leitores desavisados). Os
cientistas, por exemplo, tornam-se simples fantoches da ciência. A dissolução da vontade do
sujeito diante da rotina mecanizada difere da visão determinista do estruturalismo, afirmando a
liberdade de vida. O aparelho-totem devora o funcionário, tornando-o uma simples engrenagem.
Ou como diz Baitello generalizando essa lógica para sociedade de consumo: “Sucumbir assim
ao irresistível ato de comer ou comprar algo, apropriar-se de algo, é qualquer coisa menos
exercício de vontade individual. Muito mais significa estar seguindo segundo o programa de uma
entidade ou sociedade que produz e precisa ter seus produtos escoados, não importa se são
necessários, se sua produção é sustentável, se seu consumo é adequado; significa, portanto, ser
consumido, ser devorado.” (2010, 39)
E a imagem técnica é aquela produzida por aparelhos da cultura pós-escrita, o último grau de
desenvolvimento da escala de abstração. A evolução da linguagem humana, para Flusser,
promove uma desmaterialização das coisas e dos corpos. A imagem tradicional é uma superfície
bidimensional que representa objetos tridimensionais. A escrita, por sua vez, desmaterializou
ainda mais a linguagem, reduzindo o mundo concreto e sua história aos caracteres do alfabeto
através de um jogo complexo de operações diferentes combinadas. E agora chegamos a era das
imagens técnicas em que o mundo é representado apenas por luz, cor e som. A imagem técnica é
feita de pontos, grânulos e pixels; e não mais de planos ou superfícies coloridas por pigmento
como as imagens tradicionais 'pré-históricas'.
Os livros O mundo codificado (2007) e O universo das imagens técnicas (2008) detalham ainda mais
esse momento da linguagem formatada pelas máquinas e a história das transformações dos
processos de comunicação, elaborando a ideia de 'escalada da abstração', a subtração progressiva
das dimensões espaciais dos objetos: o universo é tridimensional; a imagem, uma superfície
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bidimensional; a escrita, reduz a realidade a uma linha unidimensional; e a imagem técnica é
'nulodimensional', formando uma realidade sem dimensões.
A escala de abstração de Flusser também se assemelha bastante ao trajeto ascendente da
Árvore da Vida, em que cada passo de desmaterialização corresponde à submissão da vontade.
Sendo que, nos místicos a sublimação dos desejos é voluntária, enquanto para Flusser, a
devoração dimensional da realidade é mecanizante.
O mago de Northampton
Alan Moore é um escritor britânico de histórias em quadrinhos. Nasceu em Northampton, em
1953, e teve uma infância de pobreza e dificuldades. Expulso da escola secundária por mal
comportamento e recusado por várias outras instituições de ensino, tornou-se um intelectual
autodidata em história, mitologia, filosofia e literatura.
Em pouco tempo, Moore tornou-se o mais importante escritor de história em quadrinhos,
um dos responsáveis pela reinvenção do gênero, que passou a se chamar Grafic Novels.
Trabalhando tanto para DC Comics como para Marvel Comics, Moore escreveu estórias filosóficas
para heróis tradicionais e criados por outros autores (Batman, Super-homem, Monstro do
Pântano, Lanterna Verde) como também criou suas próprias estórias com personagens de outras
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narrativas oriundos da literatura, como é o caso da Liga de Cavaleiros Extraordinários. No final do
século XIX, a rainha Vitória nomeia uma legião de heróis literários da época para combater um
gênio do crime que deseja conquistar o planeta: Allan Quatermain, Mina Harker, Henry Jekyll e
Edward Hyde, Rodney Skinner , Capitão Nemo, Dorian Gray, Tom Sawyer e professor James
Moriarty . A história em quadrinhos foi um sucesso, mas sua adaptação para o cinema (direção:
Stephen Norrington e roteiro: James Robinson) foi um retumbante fracasso de crítica e de
público. Motivo: os diferentes tipos de detalhes de época, as citações das outras narrativas
literárias dos personagens, as várias camadas de informação histórica da estória e a disposição
gráfico-visual da narrativa como um todo se perderam no tempo contínuo e linear da sétima arte.
O próprio Moore detesta, declaradamente, a ideia de adaptarem suas obras para o cinema e
nunca se envolveu nas produções. O mesmo aconteceu com a adaptação de From Hell (Do
Inferno) para o cinema pelos Irmãos Hughes, em 2001, com participações de Johnny Depp,
Heather Graham e Ian Holm. From Hell é um romance gráfico escrito por Alan Moore e
ilustrado por Eddie Campbell que especula sobre a identidade e as motivações de Jack o
Estripador. Apesar de ser confessadamente um trabalho ficcional, Moore faz uma rigorosa
investigação sobre todas as fontes do caso, não só para garantir plausibilidade e verossimilhança
da narrativa, mas como uma forma de pesquisa e revisão das interpretações anteriores.
From Hell apresenta mais de 40 páginas de informações e referências, indicando quais partes
são baseadas na imaginação de Moore e quais são tiradas de fontes específicas. As opiniões de
Moore sobre as informações referenciais também são listadas. Além disso, a verdadeira aula sobre
a história e a arquitetura de Londres – bem como sobre a época e os costumes em que o
Estripador fez suas vítimas. A obra é densa, cheia de camadas e imensamente detalhada; a edição
em coletânea tem aproximadamente 570 páginas - que foram severamente amputadas pela versão
cinematográfica. E, mesmo assim, o filme ficou monótono e complexo, sendo elogiado pela
crítica, ignorado pelo público e detestado por Moore.
E para desespero de Moore (e dos que compreende a especialidade das narrativas gráficovisuais), também houve adaptações para cinema de dois dos seus principais trabalhos: V for
Vendetta foi adaptado para cinema em 2006 pelos Irmãos Wachowski (roteiristas da trilogia
Matrix); e Watchmen, adaptado em 2009 por Zack Snyder.
V for Vendetta (ou V de Vingança) é uma narrativa gráfica desenhada por David Lloyd em
preto e branco em 1983 e relançada em cores em 1988. A história, se passa em um distópico
futuro de 1997 no Reino Unido e conta a estória de Ivi, salva da morte por um vigilante
mascarado, conhecido apenas por ‘V’. À medida que Ivi descobre a verdade sobre o misterioso V,
ela descobre também algumas verdades sobre si própria e se torna sua aliada no plano para trazer
liberdade e justiça a uma sociedade marcada pela crueldade e corrupção.
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Lançada em 1985, o romance gráfico Watchmen tornou-se um extraordinário sucesso e é
considerado um marco na evolução dos quadrinhos, introduzindo temas e linguagens antes
usadas apenas por quadrinhos alternativos. O sucesso crítico e de público que a série teve ajudou
a popularizar o formato conhecido como Graphic Novel, até então pouco explorado pelo
mercado. Na trama de Watchmen, situada nos EUA de 1985, existem super-heróis mascarados
reais. O país estaria em vias de declarar uma guerra nuclear contra a União Soviética. A estória
envolve os episódios vividos por um grupo de super-heróis no passado e no presente e o
misterioso assassinato de um deles. Watchmen retrata os super-heróis como indivíduos verossímeis,
que enfrentam problemas éticos e psicológicos, lutando contra neuroses e defeitos. E com vários
problemas de relacionamento entre eles.
Pode-se dizer que Moore atravessou as três gerações de grupos de super-heróis: primeiro na
Liga da Justiça, ele dá profundidade psicológica e narrativa sofisticada aos super-heróis da DC
Comics (e também nos Vingadores, liga de heróis da Marvel); com a Liga dos Cavaleiros
Extraordinária, amplia ainda mais a façanha, elegendo sua própria legião de heróis literários; com
Watchmen, Moore desconstroe a noção de super-herói e de grupo de super-heróis.
Porém, em 1993, Alan Moore encerrou o ciclo de desconstrução narrativa do protagonista,
de desencanto da jornada do herói, passando a escrever estórias reencantadas. Foi quando ele
passou a se assumir como feiticeiro. “ No meu aniversário de quarenta anos ao invés de aborrecer
meus amigos com algo tão simples como uma crise da meia-idade, decidi que seria muito mais
interessante aterrorizá-los ficando totalmente louco autoproclamando-me um mago. Isto vinha se
preparando há algum tempo, e parecia ser um passo lógico final na minha carreira de escritor.
“(…) A magia em suas formas mais primitivas é normalmente designada como "arte". Acho que
isso é bastante literal. Eu acredito que a magia é arte e que a arte, quer por escrito, música,
escultura ou qualquer outro meio é literalmente mágica. A arte é, como mágica, a ciência de
manipular símbolos, palavras ou imagens para realizar mudanças na consciência. Conjurar um
encantamento é somente encantar, manipular palavras para mudar a consciência das pessoas.
Então eu acho que um artista ou escritor é a coisa mais próxima que você vai ter de um xamã no
mundo contemporâneo. (...) O fato de que agora esse poder mágico degenerou o nível de
entretenimento barato e manipulação é uma tragédia. Atualmente, aqueles que utilizam
xamanismo e magia a moldar a nossa cultura são os anunciantes. Ao invés de acordar as pessoas
xamanismo é a droga usada para tranquilizar as pessoas, para torná-las mais manejáveis. A sua
caixa mágica da televisão, com as palavras mágicas, seus slogans, pode fazer com que todos no
país pensam nas mesmas palavras e tenham os mesmos pensamentos banais exatamente ao
mesmo tempo. (…) Nos últimos tempos, acho que os artistas e escritores têm permissão para
serem vendidos ao longo do rio. Aceitaram a crença predominante que a arte e a escrita são
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apenas formas de entretenimento. Não são vistas como forças transformadoras que podem
mudar uma pessoa e uma sociedade. São vistas simplesmente como entretenimento, coisas que
podemos preencher 20 minutos ou meia hora enquanto esperamos morrer. Não é o trabalho de
um artista dar ao público o que o público quer. Se o público soubesse o que o público quer,
deixariam de ser público, seria o artista. É o trabalho de um artista dar ao público o que ele
precisa.” A Mindscape de Alan Moore ( 23:43 – 32:37)
Nos últimos anos, Moore vem trabalhando em várias séries, retomando alguns projetos
inacabados (A Liga de Cavalheiros Extraordinários II e III e Supremo) bem como começando outros
(As Aventuras de Tom Strong). Supremo é uma releitura satírica dos 50 anos de estórias de Superhomem, com várias homenagens críticas, citações e analogias aos seus principais desenhistas e
roteiristas. No mesmo estilo de homenagem satírica, Tom Strong conta as aventuras de um
cientista, inspirados nas HQs de 1920/1930.
Há ainda a série Lost Girls, ilustrada por sua esposa, Melinda Gebbie – que tive a
oportunidade de comentar em outra ocasião (GOMES, 2009). A série – que foi objeto de censura
e muita crítica) conta o inusitado encontro de três conhecidas personagens femininas – Wendy, de
Peter Pan; Alice, de Alice no País das Maravilhas; e Dorothy, de O Mágico de Oz - todas adultas,
mas com idades diferentes, em hotel austríaco no início da 1ª Guerra Mundial. Lá, elas confessam
entre si as suas preferências e vivências sexuais. A narrativa é um objeto erótico (ou pornográfico
como prefere Moore) que, além de ter a mesma utilidade da literatura do gênero, tem também
personagens complexos, desenhos artísticos, texto filosófico em que dialoga com as ideias de
Lacan e Bataille.
O projeto mais instigante deste novo período de Moore é Promethea. A narrativa de Promethea
sintetiza um grande conjunto de símbolos do imaginário ocidental: mitologia, astrologia, cabala e
tarô. A narrativa estabelece relações entre esse sincretismo esotérico e a concepção geocêntrica de
universo, com ênfase nas noções simbólicas em torno do 'Sagrado Feminino'. (CAVALCANTI,
2010), A estudante Sophie Bangs, investigando o mito de uma heroína mística que se manifestou
em diversas mulheres, acaba por se tornar a nova encarnação da deusa guerreira. Promethea é o
Avatar5 feminino da Mãe Natureza.
Mal comparando
Avatar significa encarnação da Divindade. A primeira concepção de Avatar vem dos Vedas, que citam Krishna
como oitava encarnação de Vishnu. O termo foi adotado pela teosofia e por outras religiões (como a Fé Ba'hai) e
através do universo das narrativas atuais passou a ter outro significado no âmbito dos vídeos games: o de corpo
virtual substituto, em que jogador (narrador/protagonista) experimenta outros universos.
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Muitas comparações superficiais e irrelevantes podem ser feitas entre Vilém Flusser e Alan
Moore, afinal eles são pessoas bastante diferentes, tanto em suas escolhas pessoais quanto na
atividade profissional. Por exemplo: enquanto o professor Flusser viajou o mundo e estudou suas
paisagens, Moore é um sedentário assumido, que mora no local em que nasceu e não gosta de sair
de lá. O essencial, no entanto, é que Villém Flusser é um crítico da mídia; e Alan Moore é um
roteirista de Histórias em Quadrinhos.
Enquadram-se - ironicamente e a contragosto - nas famosas categorias propostas por
Umberto Eco de 'apocalíptico' e 'integrado' para classificar os estudiosos da comunicação – no
sentido de que alguns pensadores são contrários às mídias eletrônicas e outros que acreditam na
sua utilização voltada para o desenvolvimento humano.
Uma breve análise narrativa das duas biografias, no entanto, além da distinção título deste
texto (a oposição entre místico e feiticeiro) no eixo vertical Ego-Self (ou protagonista-narrador),
também revela, nos eixos horizontais, que ambos tem pelo menos um antagonista em comum (a
sociedade de consumo) e uma paixão incomum pelo Sagrado Feminino.
Para Flusser, a mulher é a consumidora consumida: ““Bem no fundo isto implica que a
mulher seja, do ponto de vista masculino, lata de lixo, embora por vezes seja glorificada. Em
termos católicos ela é ora cálice do pecado, ora cheia de graça, mas sempre um vasilhame. E, por
ser lata, ela é mero objeto para o homem, embora talvez seja o objeto exclusivo para o homem. A
tragédia justamente é que ela é necessariamente também objeto para si própria, já que ela pode
ver-se apenas do ponto de vista masculino. Tal coisificação da mulher é trágica não apenas para
ela, mas também para o homem, que por isso é incapaz de encontrar nela seu complemento. O
que nela encontra é apenas uma realização parcial de si próprio, realização essa na qual ele
próprio é consumido. Porque a mulher, por ser lata de lixo, não consume apenas os produtos do
homem, mas, com isto, (consume) o próprio homem, pouco a pouco, e, mais ainda, o homem
inteiro, de corpo e alma. Ela é o precipício no qual o homem se lança no engajamento cego
contra o vazio.“ (A consumidora consumida, Revista Comentário, n 03 de 1972 APUD BAITELLO,
2010, 28-29)
Já Alan Moore deseja fazer da mulher (ou o feminino) protagonista/narradora da própria
história. Em Lost Girls, ele pensa o erótico feminino; em Promethea, o sagrado feminino,
reinterpretando a cabala em um modelo matriarcal.
Flusser, vê na mulher o epicentro da devoração, a ante sala do infinito negativo; Moore,
deseja reencantar o universo a partir do olhar feminino. Mas, essas aproximações e diferenças
biográficas também dá aos dois interlocutores de nosso texto, perspectivas cognitivas opostas e
complementares em relação a noção de 'informação'.
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No documentário A Mindscape de Alan Moore, o escritor gráfico, citando a física quântica, diz
que “a informação é uma 'substância super estranha', que subjaz através do universo e algo ainda
mais fundamental que a gravidade, o electromagnetismo ou as duas forças nucleares”. Para ele,
isso sugere que todo o nosso universo físico é o subproduto da informação primária.
Ou, como sugere Moore na linguagem dos magos: "No começo era a verbo "… ”Tal como
eu entendo a teoria a duplicação periódica da informação, esta indica que se tomarmos um
período de informação humana, como poderia ser o tempo entre a invenção da primeira
machadinha de mão, digamos que entre 50,000 a.C. e 1 d.C.; então esse é um período de
informação humana que podemos medir levando em conta a quantidade de invenções humanas
efectuados durante esse tempo. Então, nós vemos quanto tempo leva para nós termos duas vezes
ou mais invenções. Isso significa que nesse período as informações humanos duplicaram. Assim,
após esse primeiro período de 50 mil anos, o segundo período, passa a ter 1500 anos, digamos, o
período do Renascimento. Nele tivemos o dobro de informação. Para duplicar-se novamente, a
informação humana levou um par de séculos. O período se acelera. Entre 1960 e 1970, a
informação humana duplica-se mais uma vez. Pelo que entendi, na última contagem, informação
humana vem dobrando a cada 18 meses. Além disso, em algum ponto mais ou menos em 2015
em que a informação humano está dobrando cada milésimo de segundo. Isto significa que para
cada milissegundo vamos ter acumulado mais informações do que há em toda história anterior do
mundo inteiro. Nesse ponto, eu acredito, é que se fecham todas as apostas. Eu não posso
imaginar que tipo de cultura que pode existir após tal ponto de ignição do conhecimento.” (56: 11
– 57:58)
“(…) A história é um fogo, é o fogo da consciência acumulada e de uma complexidade
acumulada. A medida que nossa cultura progride, vemos que reunimos mais e mais informações e
que começamos a nos mover lentamente quase de uma forma fluida a um estado vaporoso, a
medida que nos aproximamos a complexidade definitiva do ponto de ebulição social. Eu acredito
que nossa cultura está se convertendo em vapor. (01:11:57 – 01:12:23)
E esse é o ponto principal a se frisar nessa comparação: a noção de 'Narrativa' é o aspecto
dinâmico ou diacrônico da Informação, enquanto a noção de 'Imagem Técnica' (ou imagem mediada por tecnologia)
é sua interface sincrônica, seu aspecto imediato.
Certa vez, um contador de estórias disse que uma narrativa (story-line) é como um caminho
com trilha na floresta. Durante um passeio (ou uma estória), encontramos várias pistas e rastros
(o passado) marcando o caminho. Enquanto passamos pela trilha na floresta, reforçamos ainda
mais essas marcas e acrescentamos outras para que outros possam no futuro trilhar o mesmo
caminho (ou contar a mesma estória). O passado e o futuro estão marcados dentro do caminho
(ou narrativa). A narrativa é sempre uma meditação sobre o tempo.
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E o tempo é a quarta dimensão do espaço físico, irredutível e continua incrustada nas
imagens técnicas que o enquadram. Em contrapartida: a imagem também é irredutível ao texto e
à história. As narrativas escritas são estruturadas como sequências de imagens mentais, como a
estória do caminho na floresta que contei ressaltando a ideia de tempo narrativo, das ‘marcas
internas’ da imagem.
Poder-se-ia dizer que a música também é (sempre foi) nunodimensional, pois é formada por
frequências sonoras, silêncios e os tempos (rítmico e de duração); e as imagens técnicas são feitas
de frequências visuais, vazios e das marcas do tempo no tempo (a narrativa). Prefiro pensar que
tanto a música como as imagens digitais operam exclusivamente no tempo (quarta dimensão) e
no campo vibracional (quinta dimensão). A desmaterialização da realidade se dá em favor das
dimensões menos concretas. A música também apresenta os mesmos elementos que a arte
seqüencial, seja nos suportes gráficos bidimensionais ou em eletrônicos: a harmonia (a sincronia
visual), a melodia (a seqüência narrativa de imagens) e o ritmo (o tempo de duração duplicado
como tempo narrativo). Mas, a grande semelhança reside no papel desempenhado pelo silêncio
na música e pelo vazio na arte sequencial.
As histórias em quadrinhos, animações, vídeos games e outras formas de narrativas visuais
contemporâneas são impulsionadas por sucessivos cortes, que agenciam as imagens desenhadas.
O lugar significante desses cortes espaço temporais é preenchido pelo imaginário do leitor. É o
vazio entre duas imagens o elemento significante mais importante da narrativa visual, da mesma
forma que o silêncio entre as notas de uma música.
Ler um livro exige concentração. O leitor tem que 'entrar dentro' da narrativa do texto,
utilizando o lado esquerdo do cérebro. Já a imagem bidimensional 'entra' no observador distraído,
a partir de estímulos ao hemisfério direito cerebral. E a arte sequencial principalmente nos
suportes digitais de vídeo games, além de permitir a alternância dos dois movimentos cognitivos,
ainda avalia o desempenho do jogador.
Na mídia primária, há um único contexto de emissão e recepção; na mídia secundária, os
contextos de recepção se multiplicam e surgem os leitores; na mídia terciária, aparece o público
telespectador. O jogador de games de imersão, no entanto, é um novo tipo de receptor,
simultaneamente interlocutor, leitor e telespectador. E mais: além dos jogos de imersão virtual
permitirem um desempenho cognitivo mais complexo, eles também transformam os jogadores
em co autores de uma narrativa hipertextual em constante e permanente reconstrução.
Não há riscos de voltarmos aos tempos de simultaneidade absoluta da pré-história (ou da
pré-escrita), pois não há como anular a narrativa histórica que resiste no interior do regime das
imagens mediadas por tecnologia. Primeiro, a imagem devorou a realidade, aprisionando-a em
duas dimensões. Em seguida, a escrita devorou a imagem, que permaneceu viva como
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significante; depois a imagem devorou a escrita, que continua viva como narrativa no interior das
imagens imateriais que nos devoram.
Por falar em passeios na floresta: o cenário dos feiticeiros é biodiversidade da floresta,
afinidades eletivas e correspondências complexas entre pedras, plantas e animais; conexões entre
pessoas, planetas e situações; convergências entre coisas, ideias e protagonistas. A floresta é multi
expressão da complexidade do próprio sagrado feminino. Assim como o deserto, símbolo do
nada que a tudo devora, é o meio ambiente preferido dos místicos. A sociedade de consumo
narrada por Flusser é semelhante a um deserto governado por uma necessidade voraz de
consumir, em que os filhos devoram os pais, os homens consumem as mulheres, que são as
devoradoras/devoradas da sociedade de consumo.
A intenção de Flusser é mostrar que a mulher está no lugar central no consumo das imagens
técnicas e que o arquétipo do canibalismo feminino vai muito além da questão de gênero e da
sociedade de consumo. Para ele, o feminino é a morte e a natureza, a terra é a grande devoradora
do mundo material, o retorno ao vazio sem tempo. É o feminino como 'concavidade'. “O
côncavo não é o vazio, mas, como espaço formador e gerador, pode ser o início de um vazio.
Também é forma para o convexo, que dali nasce e para lá é sempre atraído pela contiguidade e
pela complementaridade. Ao mesmo tempo, o côncavo exerce uma atração irrestivel sobre o
convexo, pois este tende incontrolavelmente a preencher todo vazio. Assim, podemos dizer que
há uma íntima analogia entre a fúria gulosa da tecnologia e da escala de abstração, bem como a
produção de escritas (imaginéticas, alfabéticas ou tecno-imaginéticas), como atividades geradoras
de concavidades, de feminilidades, de matrizes, de úteros, instâncias que permanentemente
desafia à atividade de preenchimento, em um trabalho de Sísifo. Assim se define o trabalho da
comunicação e da mídia, assim se define o trabalho da tecnologia: devorar para criar espaços
vazios.” (2010, 29)
Outro contraponto interessante, neste nosso encontro dialógico hipotético, é que Moore é
otimista em relação ao futuro, crendo no salto quântico da informação; e Flusser, um pessimista
que diaboliza o tempo histórico e entrevê o apocalipse tecno trágico do nomadismo sem corpo,
em que a alma viaja através das imagens mediadas.
O fato é que para Alan Moore (e para os apreciadores de histórias em quadrinhos e narrativas
digitais) a abstração da materialidade não representa a dissolução da vontade, como para Vilém
Flusser e os pensadores dele derivados. Ao contrário, se fosse possível criar (por meio da
feitiçaria) um universo de imagens mediados por tecnologia paralelo ao mundo material, os
leitores e escritores de arte sequencial abandonariam seus corpos de boa vontade nesta aventura.
Quanto aos místicos, sempre foram contra as imagens, principalmente das três grandes
tradições do livro (o judaísmo, o islamismo e cristianismo não-católico). Aliás, o segundo
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mandamento da lei mosaica, contra a idolotraria das imagens, marca a passagem, no esquema da
Árvore, da nona para décima esfera, antes do mergulho no imanifesto.
O conhecimento
Todavia, tanto Moore como Flusser concordariam que a informação é apenas um simulacro
descontextualizado do conhecimento. Na cabala, o conhecimento é o casamento da sabedoria
com a inteligência: Daath, a sephirah invisível, que fica no centro superior da Árvore. A esfera de
Daath fica no pilar central do equilíbrio, abaixo da coroa de Kether (a luz eterna) e a cima da esfera
solar de Tiphareh (a beleza, o self).
A esquerda, no alto do pilar da severidade, está Binah (a inteligência); e a direita, no alto do
pilar da generosidade, está Chokmah (a sabedoria). Na tradição ocultista, tanto os místicos como
os feiticeiros, antes de cruzar o portal de luz de saída do universo manifesto para o nada devem
se iniciar nessa esfera. Caso o neófito se deixe atrair pela inteligência do lado esquerdo, perderá a
sabedoria e se tornará cruel – o que geralmente acontece com os feiticeiros e bruxos. Por outro
lado, caso ele se deixe levar pela esfera da sabedoria, perdendo a sagacidade e a esperteza, ele se
tornará frágil e vulnerável – o que normalmente ocorre com os místicos.
Espero ter demonstrado aqui, nesse diálogo hipotético, que esse não é o caso nem do
pensamento-design do místico Villém Flusser nem dos sábios encantamentos narrativos
conjurados pelo escritor gráfico Alan Moore; pensadores completos, que souberam compensar
suas preferências intelectuais e pessoais com o único desejo de expressar a verdade em seu
conjunto: o conhecimento, a concavidade que nos atrai e nos impele de volta ao nada.
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