A grounded theory segundo charmaz: experiências

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A grounded theory segundo charmaz: experiências
A Grounded Theory segundo Charmaz: experiências de utilização
do método
The Grounded Theory according Charmaz: experiences in using the method
Maria Irene Mendes Pedro Santos, Professora Adjunta
Instituto Politécnico de Santarém - Escola Superior de Saúde
Mestre, doutoranda de enfermagem pela Universidade de Lisboa
Elisabete Luz, Enfermeira
Mestre, doutoranda em enfermagem na ICS da Universidade Católica Portuguesa
RESUMO
O método da Grounded Theory insere-se na investigação qualitativa, surgindo no contexto
dos estudos sociológicos de Glaser e Strauss durante a década de sessenta do século XX,
no âmbito da corrente sociológica – Interaccionismo Simbólico. Com este artigo,
pretendemos elaborar uma reflexão sustentada sobre este método e sua evolução, expondo
as principais diferenças. Damos também a conhecer aspectos da nossa experiência
enquanto utilizadoras deste modo de investigar, com base na perspectiva de Kathy
Charmaz. Consideramos que a experiência adquirida, ao ser partilhada, poderá ser uma
mais-valia para os seguidores do método.
Palavras-chave: Interaccionismo Simbólico; Grounded Theory; Construtivismo.
ABSTRACT
The Grounded Theory method is a type of qualitative research, appearing in the context of
Glaser and Strauss sociological studies during the twentieth century, under the sociological
stream: Symbolic Interactionism.
This article aims to produce a sustained reflection on this method and its evolution over time,
exposing the main differences among authors.
We also report on our own experience as investigators using Kathy Charmaz´s Grounded
Theory perspective. We believe that our experience needs to be shared, hoping to help other
researchers using the method.
Key Words: Symbolic Interactionism; Grounded Theory; Construtivism
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NOTA INTRODUTÓRIA
O método Grounded Theory surgiu com Glaser e Strauss no âmbito do seu estudo sobre a
morte de doentes terminais em meio hospitalar. Estes autores sentiram necessidade de
encontrar um caminho que respondesse às suas questões de investigação. Na sua obra The
Discovery of Grounded Theory - Strategies for Qualitative Resarch, (1967) os autores
referem que os resultados são obtidos através do método da descoberta, sendo esses
resultados independentes do investigador, defendendo uma perspectiva epistemológica por
alguns considerada positivista.
Porém, Strauss e Corbin, na década de 1990, defendem que a teorização, na perspectiva da
Grounded, é um acto de construção, permitindo uma certa flexibilidade. Lopes (2003) apoia
a perspectiva dos autores supracitados, evidenciando no seu artigo os passos essenciais do
método, na perspectiva dos mesmos. Esta perspectiva parece aproximar-se da visão
epistemológica construtivista, o que não é, contudo, consensual, na comunidade académica
e científica (Mills et al, 2006; Charmaz, 2008). Para esta autora não existem verdades
absolutas; a realidade não é descoberta mas sim construída pelos actores nos contextos
onde os fenómenos acontecem, ou seja, a realidade é, em si própria, socialmente
construída. Nesta lógica, os fenómenos traduzem-se em processos socialmente
construídos, nos quais o investigador assume a responsabilidade do seu papel interpretativo
e inclui as perspectivas dos participantes.
A compreensão da perspectiva evolucionista do método e o aprofundamento da experiência
que a sua utilização nos proporciona deverá ser clarificada e descrita. Assim, poderemos
reflectir sobre o contributo que o método poderá proporcionar na compreensão da
complexidade dos fenómenos humanos, tão importante para a sedimentação do saber da
disciplina de Enfermagem.
PERSPECTIVA HISTÓRICA DA GROUNDED THEORY
O Interaccionismo Simbólico constitui uma importante corrente de pensamento dentro do
paradigma interpretativo; com origem na psicologia social (com Herbert Mead, nos finais do
séc. XIX) e na sociologia (com Herbert Blumer, 1969), concebe a vida social como um
conjunto de interacções mediadas simbolicamente. Assenta nos seguintes pressupostos,
afirmados por Blumer (1969):
2
•
O comportamento humano fundamenta-se nos significados dos elementos do
mundo;
•
A fonte dos significados é a interacção social;
•
A utilização dos significados ocorre através de um processo de interpretação.
Enquanto tradição de pensamento, o Interaccionismo Simbólico não constitui propriamente
uma forma de pensar homogénea e estável (Baszanger, I., 1992). Configura, antes, um
modo de olhar o indivíduo e a sociedade que, assente em ideias gerais que constituem os
seus pressupostos deixam, contudo, desde o seu início, um amplo grau de liberdade no
desenvolvimento de olhares mais específicos e dinâmicos, o que Levine (1997) inscreve no
que designa de narrativa pluralista.
Os principais pressupostos em que se baseia são, genericamente:
- Uma visão da sociedade como produção colectiva, como o produto de transacções
operadas entre os indivíduos: do seu trabalho, das negociações, conflitos, processos de
aprendizagem, em suma, das suas interacções;
- A actividade humana elabora-se essencialmente nas relações intersubjectivas, as quais se
desenvolvem num determinado contexto e evoluem no tempo;
- A existência duma relação dialéctica entre reflexão e acção, concebendo os indivíduos
como reflexivos, criativos e activos na construção de si próprios e do seu mundo.
A estes princípios, Baszanger (1992), acrescenta ainda que “uma das facetas do
Interaccionismo é de definir um processo interpretativo (…) sempre enraízado na interacção”
(p.15), enfatizando que a acção não pode separar-se do contexto no qual se desenvolve.
Situar a emergência desta corrente de pensamento na elaboração do presente artigo, só
tem interesse na medida em que a forma de ver o mundo e a sociedade que apresenta,
oferece um contexto sócio-histórico da emergência da Grounded Theory, permitindo ao
mesmo tempo acompanhar as derivações do próprio método. Charmaz protagoniza uma
dessas derivações, assumindo-se como Construtivista (Charmaz, 2006/2008).
Na sequência das ideias já mencionadas e que caracterizam o paradigma interaccionista,
Herman (1998) precisa que o mesmo concebe a sociedade como o resultado das acções
individuais reciprocamente orientadas, cujo fluxo se faz e desfaz continuamente, entre os
membros da sociedade considerada. Assenta num conceito essencial, que é o de Acção
Social, perspectivando-a como um constructo simbólico, em que intervêm as expectativas,
as antecipações e as avaliações dos indivíduos – nesta óptica considerados como actores
(sociais), face às situações de que são co-protagonistas (Herman, 1998; Weber, s.d.). Como
refere este autor Weber (p. 44), “nem toda a classe de contacto entre os homens é de
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carácter social, mas apenas um comportamento próprio orientado, quanto ao sentido, pelo
comportamento de outros”. Esta atribuição de sentido pode acontecer em relação ao
comportamento passado, presente ou esperado como futuro, ou seja, a acção social admite
não só factos concretos mas também as expectativas dos actores relativamente a factos
ainda não ocorridos.
Ainda numa perspectiva de especificação da corrente interaccionista, Herman (1998)
identifica os principais pressupostos da mesma, nomeadamente:
- A acção social emana das pessoas, cuja conduta é largamente auto-determinada;
- Os constrangimentos do ambiente interno e externo são assimilados, interpretados e
transformados na interacção social;
- As pessoas não reagem mecanicamente às acções do outro, mas interpretam os seus
comportamentos em função do significado que lhes atribuem.
Na sua obra “A Construção Social da Realidade”, Berger e Luckman (1973), afirmam o
duplo carácter da sociedade, em termos de facticidade objectiva e significado subjectivo, o
que torna a realidade social sui generis; acrescentam também que “a adequada
compreensão da realidade sui generis da sociedade exige a investigação da maneira pela
qual esta realidade é construída” (idem, p.34), aspecto que remete para a noção de
processo, conceito fundamental da Grounded Theory.
Retomando o olhar de Herman sobre o Interaccionismo Simbólico, vemos que este método
privilegia a observação dos fenómenos sociais ao nível da expressão dos actores na sua
situação social imediata, o que em termos do estudo desses fenómenos legitima o “estar lá”,
o “observar”, testemunhando (e participando, diria certamente Charmaz), o processo de
construção da realidade social considerada.
A Grounded Theory, constituindo simultaneamente o produto e o método de investigação
que melhor se articula com a corrente Interaccionista, tem em Glaser e Strauss os seus
fundadores e mentores – apesar das diferentes direcções posteriormente adoptadas por
cada um deles.
O estudo que marca a criação do método, desenvolvido por Glasser e Strauss – the
Discovery of Grounded Theory: Strategies for qualitative Research, surgiu com o objectivo
de contestar o paradigma positivista da ciência que parte do estudo de hipóteses hipotéticodedutivas, com base num profundo conhecimento teórico sobre a temática em estudo.
Porém, num determinado momento estes dois autores separaram-se por divergências
ideológicas, consequência da sua formação sociológica de base. Enquanto Glaser tinha
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desenvolvido os seus estudos na escola que seguia a corrente positivista, com Paul
Lazarsfeld (Universidade de Columbia), em que o investigador teria que analisar com rigor
os dados e cumprir o método de uma forma sistemática, Strauss defendia uma corrente
mais “ relacional”; nesta corrente, mais importante do que uma estrutura de análise correcta,
seria o processo de recolha de dados e a subjectividade de cada participante, estando esta
postura relacionada com o legado do Interacionismo Simbólico. Enquanto Glaser manteve a
sua visão positivista e pragmática da técnica, Strauss associou-se a Juliet Corbin e
publicaram a sua versão da Grounded Theory, na obra “Basics of Qualitative Research:
Techniques and procedures for developing Grounded Theory”. No seu livro, os autores
apresentam o método de análise e um conjunto de técnicas para desenvolver a
sensibilidade teórica e verificação da teoria emergente.
Partindo duma perspectiva ortodoxa do método, tal como apresentado pelos seus
fundadores, Charmaz vai introduzindo uma abertura e percorrendo um caminho teórico e
metodológico em que a reflexividade, a par dum escrutínio do método e de si próprio
(investigador), assumem uma importância central, enquanto princípios-base duma linha de
cariz construtivista.
Esta postura permite olhar a orientação paradigmática original não como absoluta, ou one
best way (Herman, J., 1988), mas introduz a ideia do relativismo paradigmático, em que os
paradigmas surgem como modos possíveis de conceber o mundo, relativamente diferentes,
mas não como realidades totalmente fechadas; alguns elementos paradigmáticos
apresentam-se como incompatíveis entre si, refere o mesmo autor, mas este aspecto não
constitui a regra, no conjunto dos elementos paradigmáticos e dos diferentes paradigmas;
estes são concebidos como “totalidades erráticas não saturadas que orientam os
investigadores, sem no entanto predeterminar as suas escolhas epistemológicas,
ontológicas e metodológicas” (idem, p.8).
É com esta perspectiva em mente que assumimos acompanhar Charmaz na sua evolução
do método da Grounded Theory, numa orientação epistemológica marcadamente
construtivista, cujos elementos principais, apresentados pela própria (2008), passam por: a
atenção ao contexto; o posicionamento dos actores, situações em estudo e acções; a
assumpção de múltiplas realidades; e a assumpção da subjectividade do investigador a
qual, devidamente explicitada e objectivada, constitui um recurso a mobilizar.
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PERSPECTIVAS EPISTEMOLÓGICAS DA GROUNDED THEORY: DESCOBERTA VS.
CONSTRUÇÃO
Independentemente das diferentes visões epistemológicas da Grounded Theory há
elementos comuns que a caracterizam, como sejam: a lógica indutiva; a análise sistemática
dos dados, através do método de comparação constante; o desenvolvimento de teoria a
partir dos mesmos.
A partir do método original, construído por Glaser e Strauss (1967), existe uma continuidade
na linha de pensamento dos vários autores que sucessivamente o (re) constroem, desde
Glaser (1978), Strauss e Corbin (1994/98; 2008), e Charmaz (2000/06/08); mas existem
também descontinuidades, constituindo-se como diferentes abordagens que permitem
desenvolver diferentes olhares, os quais estimulam a discussão científica e consequente
desenvolvimento do próprio método.
Diversos autores apresentam perspectivas diferentes face às mudanças que se têm
verificado na Grounded Theory, designando-as de modo igualmente diferente. Isto reflecte,
antes de mais, a orientação da aprendizagem e a própria experiência com o método da
Grounded Theory. Em relação a alguns aspectos as diferenças parecem ser evidentes;
como refere Stren (2007,p.220), após a separação, Glaser e Strauss continuaram a
desenvolver o método que tinham criado em conjunto; mas fizeram-no de modo tão
diferente que Glaser terá afirmado que “a evolução de Strauss é, mais correctamente, uma
saída do método original”.
Contudo, em relação a outros aspectos, as diferenças são tão subtis que se torna difícil não
só identifica-las como sustentá-las, sobretudo quando os próprios autores sujeitos à
apreciação e crítica científica, não se revêem nas mesmas; é o que acontece relativamente
a considerar-se se Strauss e Corbin desenvolvem uma perspectiva de cariz mais objectivista
ou mais construtivista; voltaremos a este aspecto mais à frente.
Glaser mantém uma visão “purista” do método da Grounded Theory, não permitindo
qualquer intervenção do investigador. Considera que a observação não participante é a
melhor técnica de recolha de dados, na medida em que o investigador apenas observa e
não intervém; preconiza a entrada no campo da investigação, tanto quanto possível, sem
conceitos teóricos predeterminados, fazendo tabula rasa do conhecimento existente. Logo, a
teoria emerge directamente dos dados, não comprometida pelo enviesamento dos
investigadores (Charmaz, 2006; Mills et al, 2006).
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Strauss e Corbin têm uma visão mais flexível relativamente à influência do investigador na
construção da teoria, considerando a subjectividade do mesmo perante os resultados.
Mantêm a visão da descoberta propondo, no entanto, métodos de análise ou linhas
orientadoras menos rígidas do que Glaser.
A categoria central ou o processo Social Básico emerge dos dados indutivamente, tanto na
visão objectivista como na construtivista, da Grounded Theory; porém, enquanto uma
considera a influência do investigador um problema metodológico que desvaloriza a análise,
a outra valoriza a subjectividade do investigador e considera que a mesma faz parte do
processo analítico.
Mills et al (2006) apresentam um continuum das versões que a Grounded Theory tem
assumido desde que os seus criadores tomaram percursos investigativos diferentes,
classificando essas versões de clássica ou tradicional, «evolved” e construtivista; apontam,
ainda, características diferenciadoras das várias versões identificadas, relativamente à
postura do investigador no processo de pesquisa, no que se refere a: sensibilidade teórica;
codificação e diagramação; e identificação da categoria central.
Partindo desta classificação, e com base em diversos autores (Mills et al, 2006; Stern, 2007;
Lopes, 2003; Charmaz, 2006/2008; Strauss e Corbin, 2008), sistematizamos no quadro
seguinte as principais diferenças entre as primeiras duas versões assinaladas; a versão
construtivista, considerando-a protagonizada por Charmaz – sem, no entanto, lhe
atribuirmos a exclusividade deste posicionamento - será abordada autonomamente, tendo
como pano de fundo o que referem Mills et al (2006), e Charmaz (2006/2008).
Quadro Nº 1 – Diferenças entre as versões da Grounded Theory
Versão/Autor
Tradicional
Evolved
(Glaser, 1978)
(Strauss e Corbin, 1994/98)
- Entrada no campo com poucos
pensamentos predeterminados ou,
idealmente, como tabula rasa;
- Não revisão da literatura sobre o
assunto para não contaminar a
análise.
- Os dados são vistos como uma
entidade separada – do
investigador e dos participantes;
- Codificação:
• ferramenta analítica
fundamental;
- Aceita a revisão da literatura para
estimular o pensamento analítico;
- Recurso a técnicas de análise para
estimular a reflexão e desenvolver a
sensibilidade do investigador.
Característica
Sensibilidade
teórica
Codificação e
Diagramação
- Desenvolve métodos complexos,
rigorosos e densos de codificação;
- Tipos de codificação: aberta, axial
e selectiva;
- Paradigma de análise: condições,
acções/interacções e
7
•
tipos: inicial, teórica e
comparativa.
- Considera 18 famílias de códigos.
Identificação
da categoria
central.
- Dicotomia entre emergência e
construção: uma categoria emerge
de entre várias, formando um
núcleo distinto, dotado de
coerência própria.
consequências;
- Considera o uso de diagramas
fundamental, desde o início da
análise
- Identificada através da codificação
selectiva; tem um papel central na
“história”; a teoria é a
conceptualização final da categoria
central.
Como facilmente se verifica, há diferenças óbvias entre as duas versões comparadas;
contudo, e relativamente à grande questão actualmente em debate – o carácter objectivista
ou construtivista da linha seguida por Strauss e Corbin – esta é menos consensual. Mills et
al (2006) consideram haver “traços de construtivismo” no trabalho de Strauss e Corbin,
exemplificando com a importância que estes autores conferem à voz dos participantes, no
trabalho interpretativo, para além de assumirem a teorização como um acto de construção.
Por seu lado, Charmaz (2006) refere que a complexidade dos métodos de codificação, bem
como o paradigma de análise que Strauss e Corbin apresentam, reflectem bem um certo
“apriorismo” analítico, pouco coerente com a perspectiva construtivista.
Na última edição de Basics of Qualitative Research i (2008), Corbin afirma que “for Anselm,
the tecniques and procedures were more than just a way of doing research. They were his
way of learning about life” (p.x). E assume um posicionamento com base na filosofia do
pragmatismo e do Interaccionismo simbólico,
aparentemente voltando às
raízes
Straussianas do método.
Não é nosso objectivo discutir as diferenças (apenas) levemente afloradas; a sua inclusão
neste artigo tem apenas a intenção de situar o leitor na complexidade que envolve este
método de pesquisa, na medida em que, falar de Grounded Theory, como vimos, pode
significar modos bem diferentes de olhar e investigar o mundo social.
A PERSPECTIVA DE KATHY CHARMAZ
Apresentaremos a seguir os principais pressupostos da autora que seguimos na nossa
investigação: Kathy Charmaz, por vários autores e por ela própria considerada a principal
proponente da perspectiva construtivista da Grounded Theory.
Charmaz (2008) defende que a sua visão construtivista do método afirma-se devido aos
seguintes fundamentos:
8
•
A relatividade epistemológica das perspectivas do investigador, isto é, as suas ideias,
crenças e valores, bem como as práticas e o contexto da investigação, fazem parte da
pesquisa;
•
A reflexividade do investigador é um princípio fundamental da pesquisa.
•
As representações das construções sociais fazem parte do processo de compreensão
do mundo e do processo de investigação.
As situações em estudo são fruto das construções e das estruturas sociais que as
envolvem. A compreensão empírica do fenómeno depende das circunstâncias que
envolvem cada momento durante o processo de investigação. A realidade existe mas não
poderá ser separada de quem olha para ela, existindo assim vários olhares sobre a mesma
realidade. Num processo de investigação com base na visão construtivista da Grounded
Theory os vários olhares dos participantes poderão colidir com o olhar do investigador sobre
determinado fenómeno, e mesmo entre os olhares dos próprios participantes entre si.
Charmaz (2000/2006/2008) considera a Grounded Theory um método profundamente
interactivo, acentuando esta autora a interacção durante todo o processo de recolha de
dados, bem como na análise dos mesmos.
Utiliza o raciocínio abdutivo, isto é, quando um investigador encontra algo de novo, retorna
ao local para poder certificar-se da sua descoberta, enquanto se envolve na investigação;
para tal:
•
Considera todas as teorias que poderiam explicar a sua descoberta;
•
Volta ao campo e recolhe mais dados para poder testar as teorias e
•
Posteriormente, adopta a interpretação teórica mais plausível (Charmaz
2006).
A abordagem clássica da Abdução (Peirce, 1958; Reichert, 2007; Rosenthal 2004, citados
por Charmaz, 2008), começa com uma descoberta surpreendente, mas os investigadores da
Grounded Theory adoptam uma abordagem interactiva quando contabilizam os resultados e
verificam as categorias induzidas. Este conceito clarifica que os utilizadores deste método
estudam as suas observações e desenvolvem abstracções sobre as quais formulam
hipóteses de trabalho, que vão novamente testar através de outras observações, oferecendo
um método de análise de dados que promove e orienta o investigador a desenvolver
interpretações criativas. Daí que o processo de abdução tem por base o processo
interactivo, de ir e vir, entre os dados e a conceptualização, que caracteriza a Grounded
Theory. Este tipo de raciocínio reconhece tanto a importância do pragmatismo sobre os
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conceitos criativos do investigador, como o significado da sua experiência na formulação do
próprio raciocínio, em si mesmo.
A análise dos dados parte da interpretação do investigador, com base na “sua” análise
conceptual do fenómeno em estudo, o que implica o conhecimento teórico existente mas
também um modo de olhar pessoal mais assumido, embora explicitado.
Charmaz (2006) adopta, como roteiro de análise, diversos níveis de codificação através dos
quais propõe a operacionalização do método de comparação constante; são eles: código
inicial, focalizado e teórico, conduzindo este último nível, quando possível, ao processo
social básico.
A autora refere que os elementos da Grounded Theory, nomeadamente: os vários níveis de
codificação, os memorandos, e a amostragem teórica, são neutros; estes fornecem aos
investigadores “linhas orientadoras” que direccionam os seus estudos, caracterizadas pela
flexibilidade.
O investigador constrói os dados a partir da sua própria visão sobre a situação, fazendo
parte da investigação; então as suas posições, privilégios, perspectivas e interacções com
os participantes afectam a investigação. Charmaz (2008) propõe a identificação da
perspectiva do investigador pelo próprio, reduzindo o seu efeito durante o processo de
recolha e análise dos dados, sendo importante não negar esta influência.
A relação entre investigador e participantes informa e enforma o próprio processo de
investigação. A(s) forma(s) como cada investigador(a) se posiciona(m) relativamente ao
objecto de investigação, as opções que toma no decorrer do processo, a forma como pensa
o próprio design de investigação, têm repercussões não só ao nível do seu
desenvolvimento, na medida em que reflectem os seus pressupostos (pessoais),
epistemológicos e filosóficos, mas também nos resultados obtidos.
Por exemplo, uma das questões que decorreram do processo reflexivo prende-se com uma
tomada de consciência crescente do carácter dinâmico, flexível e contínuo do próprio
processo investigativo, o que implica a necessidade de um auto-questionamento
permanente sobre o papel do investigador, os métodos utilizados e o conhecimento
produzido.
Estas considerações suscitam questões do tipo: por que é que estou a realizar esta
investigação? Para quem? Que implicações tem este estudo no que diz respeito ao meu
papel, quer enquanto investigadora, quer enquanto enfermeira?
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Neste contexto, a noção de reflexividade (Lincoln; Guba, 2000) assume particular relevo
para
a
análise
e
compreensão
do
nosso
papel
enquanto
investigadores
e,
consequentemente, da nossa interacção com os participantes.
Ratner (2002) afirma que para o desenvolvimento do conhecimento social a subjectividade é
o elemento chave que tem que estar presente para a produção científica.
A questão reside na forma como o investigador lida com a sua subjectividade e
simultaneamente constrói o conhecimento científico.
Consideramos que a explicitação das experiências que iremos relatar têm como objectivo
transmitir a forma como as investigadoras foram resolvendo este dilema e também a forma
como explicitaram os procedimentos e a lógica dos mesmos.
SEGUINDO CHARMAZ: EXPERIÊNCIAS DE INVESTIGAÇÃO
Partindo dos princípios referidos, passamos a relatar as nossas experiências de
investigação, percorrendo os principais passos do processo preconizados por este método,
nomeadamente: os diferentes níveis de colheita e análise de dados (com os respectivos
níveis de codificação); a amostragem teórica; o método de comparação constante. As
experiências relatadas referem-se a diferentes percursos de investigação, de âmbito
académico – nomeadamente, o primeiro, ao nível do mestrado, e o segundo, ainda em
curso, ao nível do doutoramento. Cremos que os diferentes níveis de formação apontados
explicam as diferenças entre ambos os relatos.
Um percurso já percorrido – no âmbito da Pós Licenciatura de Enfermagem
Comunitária
O nosso objecto de estudo foi a transição de saudável a doente das pessoas com Doença
Pulmonar Obstrutiva Crónica. A questão de investigação que direccionou o estudo foi o
modo como vivem as pessoas com DPOC. A finalidade era compreender o processo de
transição de saudável a doente da pessoa com esta situação patológica. Considerando a
natureza da questão de investigação, o método da Grounded Theory pareceu-nos o mais
indicado porque nos permite compreender o processo (de transição de saudável a doente),
partindo da perspectiva dos participantes: “researcher study how participants explain their
statements and actions”. Ghezeljeh e Amami (2009: p 18).
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A decisão pelo contexto onde poderia decorrer o estudo recaiu num hospital com o qual o
investigador mantinha relacionamentos de proximidade com os profissionais e pessoas com
DPO. O que foi facilitador do estudo. O campo das análises empíricas é circunscrito a um
espaço geográfico, social e temporal, como refere Quivy e Campenhout (1998) .Mas, como
estávamos a realizar a investigação em contexto de pós licenciatura em Enfermagem
Comunitária, considerámos também importante envolver a comunidade. Assim sendo,
decidimos incluir a associação “ Respira”, porque para além da sua localização comunitária,
representa forças de poder e de defesa dos interesses das pessoas com DPOC e outras
patologias respiratórias. Mills et al (2006: p 2) referem que “ we do not quickly or easily reach
any sort of conclusion or resolution about our own view of nature of truth and reality. We are
influenced by our history and cultural context, wihich, in turn, shape our view of the world, the
forces of creation, and meaning of truth” .Esta escolha prende-se com o facto de
acreditarmos que as pessoas com DPOC poderem ser empoderadas e capazes de gerir o
seu processo de doença.
Optámos pela selecção secundária dos participantes, ou seja, estes foram referenciados
pelos profissionais e Presidente da Associação. Os critérios de selecção das pessoas
basearam-se no diagnóstico clínico de DPOC confirmado desde o 1º ao 4º estádio (WHO,
2006) com o intuito de compreender a riqueza experiencial do processo de transição de
saudável a doente crónico, neste caso com DPOC. Consideramos que mais importante que
o tamanho da amostra é a riqueza da informação (Morse, 1994; Fortin,1999; Strubert &
Carpenter, 2002).
Decidimo-nos pela entrevista aberta como a técnica de recolha de dados, tendo em conta a
problemática em causa, os objectivos e o método. Decidimos colocar uma questão aberta
aos participantes a partir da qual estes falavam livremente sobre a mesma. Utilizando as
questões/reflexões, que surgiam de cada participante, como pistas para as entrevistas
seguintes, outras questões foram colocadas, à posteriori, para completar os códigos e
caracterizá-los.
Como
entrevistadores
procurámos
clarificar
as
nossas
posições
relativamente ao tema. Neste sentido, consideramos que a reflexividade é fundamental, para
o que o investigador terá que saber lidar com a subjectividade de cada participante e com a
própria. Após cada entrevista realizada anotávamos num bloco tudo o que sentíamos e
pensávamos. O facto de escrevermos in loco após cada entrevista permitia-nos expor a
nossas angústias, emoções, pensamentos e valores relativamente aos relatos dos
participantes. A posteriori partilhávamos os registos com a orientadora e simultaneamente
reflectíamos sobre os mesmos. Consideramos a redacção e partilha dos registos ou notas
de campo uma estratégia de reflexividade. Após a realização das notas de campo
deixávamos passar uma a duas semanas até começarmos a ler a entrevista e finalmente
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aplicar os procedimentos analíticos, analisando os discursos dos participantes e aquilo que
a “ressonância” dos seus discursos provocava em nós; a partir da mesma, questionávamonos sobre os nossos valores enquanto investigadores/ enfermeiras e simultaneamente
validávamos a nossa influência no estudo e repercussões nos achados. Paulatinamente,
fomos construindo a nossa análise conceptual dos relatos.
O processo de análise ocorreu em duas fases: a primeira de Junho a Setembro de 2008 e a
segunda de Outubro 2008 a Janeiro de 2009.
Durante a 1ª fase realizámos 10 entrevistas, (em contexto domiciliário) transcrevemos e
analisámos as mesmas, obtendo o que Charmaz nomeia de memorandos (ou memos).
Obtivemos uma grelha de codificação através dos códigos de vários níveis - inicial,
focalizado e teórico. Lemos novamente as 10 entrevistas uma a uma, comparando-as entre
si e com os dados da grelha, com o objectivo de compreender a experiência e saber como
as pessoas foram construindo os seus significados, identificando marcos/ pontos comuns
nas experiências e diferenças, com tendo sempre presente a questão de investigação.
Numa segunda fase, de Outubro a Janeiro de 2009, realizámos 12 entrevistas (nas
consultas externas de um hospital e Domicilio). Comparámos os dados entre si, analisamos
as entrevistas, uma a uma, e posteriormente comparámos com as entrevistas, realizadas na
primeira fase. Os dados das 22 entrevistas saturaram as categorias existentes, na resposta
à questão de investigação, pelo que considerámos a saturação teórica atingida.
Realizámos o esboço das grelhas de análise considerando a codificação preconizada por
Charmaz (2008). Codificação é “a categorização de excertos de dados com uma pequena
palavra que, simultaneamente, resume e valoriza cada parte dos dados” (2006: 43).
Podemos assim comparar a codificação ou os códigos aos “ossos do esqueleto humano” em
que a cada um foi atribuído um determinado nome, que inicialmente estão fragmentados
mas cujo trabalho de análise lhe confere uma determinada lógica. A codificação é, assim, a
construção da análise em si mesma; a lógica construtivista permite obter novas visões sobre
o fenómeno se formos capazes de compreender e ultrapassar a ambiguidade e
desorganização do processo Charmaz (2008).
A construção dos códigos traduziu-se em várias leituras dos dados, comparação de códigos
iniciais focalizados e axiais, construção de “mapas” de ideias ou esquemas procurando
encontrar um “fio condutor” que estabelecesse a interacção entre conceitos. O Processo
Social Básico, ou categoria integradora de todas as outras, para Charmaz (2006), será a
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selecção e compromisso com uma categoria central, de entre as várias categorias já
construídas, sendo uma fase de selecção e descrição geral daquilo que é mais importante e
saliente ao longo dos diferentes relatos. Nomeámos o Processo Social Básico identificado
“tornar-se
doente
crónico”,
sendo
este
suportado
por
três
códigos
selectivos
caracterizadores deste processo:
•
Os significados da experiência na perspectiva da pessoa com DPOC;
•
As fases do processo de tornar-se doente crónico;
•
Estratégias de gestão individual e colectiva do processo.
Pretendendo, com o nosso estudo, compreender o processo de transição de saudável a
doente, da pessoa com DPOC, o método da Grounded Theory proporcionou a compreensão
deste processo, numa vertente construtivista. Esta pressupõe, de acordo com Charmaz
(2006) a influência da visão do investigador enquanto fonte de enriquecimento do estudo,
permitindo desenvolver o conhecimento da complexidade humana a partir da diferença e da
unicidade do investigador e dos participantes, a partir de uma perspectiva interior do saber.
Porém, esta perspectiva construtivista cria uma tensão permanente entre a construção da
teoria partindo dos relatos dos participantes e a gestão simultânea da influência do
Investigador. A reflexividade do investigador, bem como a flexibilidade dos procedimentos
analíticos
afirmada
por
Charmaz
(2006/2008),
permitem
encontrar
estratégias
metodológicas adaptadas a cada situação, no sentido da compreensão do fenómeno em
estudo. Não a única compreensão possível, mas aquela que melhor responde às questões
de investigação formuladas, contextual e temporalmente situadas.
Uma experiência em curso – no âmbito do doutoramento
A investigação que estamos a desenvolver tem como objecto “a integração de modalidades
terapêuticas não convencionais na prática de enfermagem”; baseia-se na Grounded Theory,
perspectivando-a quer como método (o processo de pesquisa), quer como a teoria a ser
construída (o resultado), de acordo com Charmaz (2006/ 2008).
Dos princípios já enunciados da Grounded Theory e que fundamentaram esta escolha,
realçamos a sua potencialidade para dar resposta ao quê e aos como da investigação, bem
como a pertinência que a teorização das práticas (de enfermagem) assume, face ao estádio
actual de desenvolvimento da profissão, aspecto também defendido por Monti e Tingen
(1999).
O acesso inicial ao campo fez-se pela entrevista (em profundidade), a enfermeiros que
utilizavam uma (qualquer) modalidade terapêutica não convencional, constituindo o que
14
Charmaz (2006) designa de amostragem inicial, ou seja, onde se começa. Esta decisão foi
tomada com base na dispersão dos participantes por vários contextos de cuidados,
geograficamente distantes uns dos outros, bem como com o nosso desconhecimento, a
priori, do(s) contexto(s) que, pela prática dos enfermeiros, no que se referia ao problema em
estudo, se revelavam com maior potencial investigativo (Charmaz, 2006). Outro factor de
decisão não menos importante relaciona-se com critérios éticos, na medida em que
considerámos não apropriado expor os enfermeiros participantes, ao desocultar uma prática
que, por razões diversas – que a investigação nos revelará – pretendiam, pelo menos
provisoriamente, manter oculta. A amostragem teórica que, segundo a mesma autora é a
que nos leva onde queremos ir, foi sendo sucessivamente seleccionada de acordo com as
necessidades de esclarecimento, consistência e refinamento das categorias analíticas, num
empreendimento simultâneo de colheita e análise de dados, ou seja, através do método de
comparação constante. Face aos conceitos que começam a emergir, fruto dum processo de
construção em que se cruzam os dados, os significados atribuídos aos mesmos, o
conhecimento científico actual do assunto em estudo (o estado da arte), que orienta e
esclarece o modo de olhar o fenómeno… a amostra teórica permitirá que “cheguemos onde
queremos ir”: à construção efectiva de teoria fundamentada (enraízada) nos dados, sendo a
saturação teórica um indicador importante neste processo.
Assim, a amostragem teórica conduziu-nos à observação participante 1, técnica de colheita
de dados que desenvolvemos enquanto estratégia deste tipo de amostragem, seguindo as
orientações de Charmaz (2006), para quem encontrar novos participantes e/ou novos
settings para colher novos dados, no sentido de enriquecer e saturar as categorias, é um
passo fundamental no sentido da construção teórica, orientada pelo já mencionado critério
de saturação teórica, bem ao jeito da autora em referência.
Este critério (saturação teórica), vemo-lo consubstanciar-se na consolidação, densificação e
estabilização de categorias que antes se apresentavam incompletas, pouco consistentes e
até um pouco dúbias na sua conceituação.
Um elemento de particular importância da Grounded Theory e que assume, como afirma a
própria autora, uma função estruturante de primordial importância neste processo, são os
memorandos
1
(ou
memos),
mais
descritivos
numa
fase
de
codificação
inicial,
Realizámos 17 períodos de observação, de Abril a Setembro de 2009, envolvendo 10
enfermeiros (a equipa completa) e 17 utentes/doentes, duma Unidade de Dor de um Hospital
Oncológico, seguindo as orientações dos seguintes autores: Spradley, 1980; Peretz, 2000; May,
2004; Flick, 2005; Charmaz, 2006.
15
sucessivamente mais abstractos à medida que progredimos para níveis de codificação mais
teórica, os memos permitem questionar os dados, mapear a teoria emergente, clarificar e
relacionar conceitos, em suma, são o suporte dinâmico da teoria em construção.
Dos Early memos aos Advanced memos e, finalmente, aos Theoretical memos, o
investigador dispõe de um instrumento efectivo que lhe permite articular, no complexo
processo de construção teórica que empreende, significados, descobertas, os seus próprios
valores e crenças relativamente ao fenómeno em estudo, subjectividades e pré-conceitos,
bem à maneira construtivista proposta por Charmaz (2008), em que o rigor do método –
critério indispensável à sua cientificidade - possa ser adequadamente documentado e sujeito
ao escrutínio da comunidade científica.
Como facilmente se depreende, contudo, este não é processo linear; a complexidade de que
temos vindo a dar conta, reveste-se de dificuldades, das quais relevamos o modo de olhar
os dados, em termos analíticos: na Grounded, este processo é, em si mesmo, um modo sui
generis, que invoca e assenta em cada momento num tipo de raciocínio indutivo, na sua
expressão mais pura. Sabemos que, em termos gerais, a análise de dados no método
qualitativo segue este tipo de raciocínio, através da técnica de análise de conteúdo; no
entanto, esta técnica, de acordo com os autores que a apresentam, entre os quais Laurence
Bardin (1977/2006), Alex Mucchielli (1991) e Roger Mucchielli, (s.d.), leva-nos a um nível de
generalidade elevada, através da identificação de temas, logo num 1º nível; contrariamente
a este modus operandi, a microanálise, técnica específica do método de comparação
constante, assenta na análise linha-a-linha, numa grande proximidade inicial aos dados,
tendo os diferentes níveis de análise um nível de abstracção sucessivamente mais elevada.
Não pretendemos comparar epistemologicamente as diferenças assinaladas, no que podem
representar em termos de construção do conhecimento (Flick, 2005). Referimo-las pela
dificuldade que representou para nós, inicialmente, olhar os dados “ao contrário”, em termos
dos tempos e níveis de substantivação vs. abstracção, face a experiências de investigação
anteriores, com base na análise de conteúdo interpretativa.
Outra dificuldade a registar, tem a ver com a subtil mas profunda diferença entre os
conceitos de saturação, em termos genéricos, como entendido pelo método qualitativo, e a
especificidade da saturação teórica, tal como preconizado por Charmaz (2006), no seu
entendimento da Grounded Theory. Também neste aspecto as experiências de investigação
anteriores, se tidas em conta, foram relativizadas, no sentido da apreensão e
operacionalização cabais da saturação teórica, ainda em construção: efectivamente, de
acordo com a autora, este critério permanece em aberto até à finalização do estudo, ou seja,
16
enquanto houver categorias não suficientemente estabilizadas e saturadas – face aos
objectivos da investigação - a colheita de dados continuará.
A experiência é, concerteza, uma mais-valia, pelo substracto de conhecimento a partir do
qual podemos avançar, bem como pela maior capacidade de reflexão que permite; porém,
corre-se o risco de confundir conceitos aparentemente próximos mas que se revestem de
especificidades que constituem, afinal, aspectos diferenciadores das diferentes abordagens
no âmbito de um método mais geral; é, por isso, necessária uma atitude de abertura e
flexibilidade, no sentido da construção de novas formas de fazer investigação, com o rigor e
a fidelidade ao método, que se impõem.
Registadas as dificuldades, como as ultrapassámos? Num primeiro momento, através de
leituras repetidas e em continuidade, mas com tempos de pausa que permitiam amadurecer
interpretações, suscitar novas dúvidas e voltar a olhar com um novo entendimento; a
discussão académica, quer interpares quer com a orientadora, foram também aspectos
muito importantes nesta aprendizagem, seguindo a sugestão de Morse (2007, p. 221) de
que, para fazer investigação segundo a Grounded Theory, não basta aprender nos livros, é
preciso”arranjar um orientador”.
Assumimos inicialmente acompanhar Charmaz na sua visão do método da Grounded
Theory, o que cremos ter documentado de forma sucinta mas suficiente, nas suas linhas e
opções gerais; é com a mesma disposição que afirmamos continuar este percurso de
investigação, para que seja possível experimentar o Todo proposto pela autora: o processo
(o Método) e os resultados (a Teoria ou o Processo Social Básico).
REFLEXÕES FINAIS
As autoras deste artigo partilharam um pouco da sua experiência da Grounded Theory,
percorrendo cada uma das diferentes fases e elementos do método, mas dando, no seu
conjunto, uma ideia que consideram caracterizadora do mesmo.
A experiência na utilização do método preconizado por Charmaz pressupõe, em todos os
procedimentos de codificação, o questionamento dos dados e a comparação constante,
conferindo sistematização e rigor à análise dos mesmos. O rigor do método é consentâneo
com uma certa flexibilidade, de acordo com o contexto da investigação, devendo estar
explícito no relatório todos os procedimentos de análise. O rigor da análise passa pela sua
validação e ajuizamento científicos, bem como pela submissão à crítica inter-pares.
17
O método sugerido por Charmaz é fundamentalmente interactivo, perspectivando a
subjectividade do investigador como fazendo parte da investigação. Porém, o investigador
deverá ter consciência e assumir a sua influência, explicitando todo o este processo.
Consideramos que este método poderá trazer contributos à investigação do fenómeno da
complexidade humana, inerente ao saber próprio da disciplina de Enfermagem.
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Edição póstuma a Anselm Strauss, que faleceu em 1996. Contudo, Corbin mantém o discurso no plural,
afirmando: “I try to keep Anselm`vision in mind as I write (p.ix).
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