OS PROCESSOS FUNCIONAIS E SEU DESENVOLVIMENTO

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OS PROCESSOS FUNCIONAIS E SEU DESENVOLVIMENTO
OS PROCESSOS FUNCIONAIS E SEU DESENVOLVIMENTO
Conforme indicamos no capítulo anterior, as análises desenvolvidas
por Vigotski acerca das funções psíquicas superiores inserem-se em um vasto
campo de estudos, por ele considerado insuficientemente explorado e
explicado pela psicologia desde as suas origens, qual seja: o campo do
processo
de
desenvolvimento
das
formas
complexas
culturalmente
desenvolvidas de comportamento. Em suas palavras:
A psicologia não tem conseguido explicar até a presente
data com suficiente clareza e exatidão as diferenças entre os
processos orgânicos e culturais do desenvolvimento e da
maturação, entre essas duas linhas genéticas de diferente
essência e natureza e, por conseguinte, entre as duas principais
e diferentes leis às quais estão subordinadas estas duas linhas
do desenvolvimento da conduta da criança (VYGOTSKI, 1995, p.
13).
Ao analisar os limites presentes na “velha psicologia”, que situava
em um só plano os fatos do desenvolvimento cultural e os fatos do
desenvolvimento orgânico identificando-os como fenômenos de uma mesma
natureza e regidos pelos mesmos princípios é que Vigotski - colocando em
destaque a formação dos comportamentos complexos, estabeleceu distinções
entre as chamadas funções psíquicas elementares e funções psíquicas
superiores, bem como a natureza das relações que se estabelecem entre elas.
Porém, a compreensão dessas proposições requer que reiteremos algumas
considerações de ordem geral acerca das ideias do autor, ainda que elas
tenham sido exploradas nos capítulos precedentes desse estudo.
Primeiramente, não se trata de conceber dois grupos de funções,
sendo um elementar e outro superior. Os fenômenos psíquicos apontam a
existência de modos de funcionamento que conquistam qualidades especiais
no transcurso de sua formação e desenvolvimento. O dado originário desses
fenômenos é, sem dúvida, o dado natural – especialmente o aparato cerebral
e, consequentemente, “[...] é impossível estudar a história do desenvolvimento
das funções psíquicas superiores sem haver estudado a pré-história de tais
funções, suas raízes biológicas e inclinações orgânicas” (VIGOTSKI, 1995,
p.18).
Por conseguinte, resulta artificial e arbitrária a dicotomia formal
entre inferior e superior, promotora de divisões metafísicas tanto no estudo do
desenvolvimento quanto da própria psicologia. Todavia, não existindo tal
divisão, em que plano radica a distinção vigotskiana entre funções psíquicas
elementares e funções psíquicas superiores? Segundo o autor:
[...] a psicologia infantil continua crendo que o processo de
desenvolvimento da conduta da criança é simples, ainda que na
realidade resulte complexo. Aqui está, indiscutivelmente, a origem de
todos os graves erros, falsas interpretações e errôneos delineamentos
do problema do desenvolvimento das funções psíquicas superiores.
Aclarar a tese de duas linhas de desenvolvimento psíquico da criança
é premissa imprescindível de nossa investigação (VYGOTSKI, 1995,
p. 29, grifo nosso).
É no plano da unidade dialética entre os fatores determinantes do
desenvolvimento que se delineia o problema das referidas funções. Para
Vigotski o comportamento humano complexo resulta da dialética entre dois
processos distintos de desenvolvimento. Por um lado, é resultante de um
processo biológico de evolução que conduziu o aparecimento da espécie homo
sapiens e, por outro, um processo de desenvolvimento histórico graças ao qual
o homem primitivo se converteu em ser culturalizado. Se a separação entre
esses processos esteve presente na filogênese, ontogeneticamente aparecem
unidos formando, por seu entrelaçamento, um todo único. Vigotski, referindo-se
analogamente ao emprego de ferramentas, como dado que libertou o homem
dos seus limites naturais, e o emprego de signos, esclarece:
[...] o primeiro emprego de signos representa sair dos limites do sistema
orgânico de atividade existente em cada função psíquica. A utilização de
meios auxiliares e a passagem à atividade mediadora reconstrói
radicalmente toda a operação psíquica à semelhança da maneira pela
qual a utilização de ferramentas modifica a atividade natural dos órgãos
e amplia infinitamente o sistema de atividade das funções psíquicas.
Tanto a um como a outro, o denominamos, em seu conjunto, com o
termo função psíquica superior ou conduta superior (VYGOTSKI, 1995,
p. 95, grifo do autor).
Portanto, na qualidade de produtos do desenvolvimento social do
comportamento, as funções psíquicas superiores instituem-se como formas
supraorgânicas de conduta resultantes do uso de signos e do emprego de
ferramentas, graças aos quais os comportamentos se tornam conscientemente
planejados e controlados. Destarte, o sistema de atividade humana determinase, em cada etapa, pelo grau de seu desenvolvimento orgânico e pelo grau de
seu domínio sobre as objetivações culturais. Esses dois sistemas diferentes
desenvolvem-se conjuntamente formando um terceiro sistema, inovador e de
um tipo muito especial, que aponta o psiquismo como imagem subjetiva da
realidade objetiva, ou, reflexo psíquico da realidade.
Assim, a nosso juízo, a formação cultural da referida imagem
corresponde à transformação da estrutura psíquica natural, primitiva, em
direção a novas e mais complexas estruturas. Ademais, a construção da
imagem psíquica, como fenômeno consciente denotativo do real, determina-se
por uma conjugação, edificada pela atividade humana, de processos materiais
e psicológicos e, não sendo mera estampagem da realidade objetiva, revela-se
como alfa e ômega da relação homem/natureza, no que se inclui a sua própria
natureza. A realidade objetiva refletida sob a forma de fenômenos psíquicos
constitui a subjetividade humana como reflexo psíquico da realidade, ou,
imagem subjetiva da realidade objetiva.
A despeito dessa proposição resta, porém, a resposta a uma
questão nevrálgica: o que sustenta a construção da referida imagem, posto que
a possibilidade do reflexo, a exemplo do que nos ensina a própria ciência física,
resulta de “propriedades de tipos especiais de matéria”, ou seja, posto que nem
todo objeto é refletor! Para sê-lo, precisa contar com atributos específicos, com
dados constituintes, sem os quais inexiste a possibilidade de formação da
imagem sob a forma de reflexo. Vigotski, ao buscar a explicação do psiquismo
em sua máxima abrangência e complexidade, desde as suas partículas mais
elementares até sua expressão na totalidade da produção cultural, não preteriu
a análise de seus constituintes fundamentais, dos processos funcionais que lhe
conferem existência objetiva.
A relação que estabelecemos entre a formação da imagem
consciente da realidade e o desenvolvimento das funções superiores encontra
amparo, sobretudo, na seguinte proposição de Vigotski:
Cremos que o sistema de análise psicológico adequado para
desenvolver uma teoria deve partir da teoria histórica das funções
psíquicas superiores, que por sua vez se apoia em uma teoria que
responde à organização sistêmica e ao significado da consciência no
homem. Essa doutrina atribui um significado primordial a: a) a
variabilidade das conexões e relações interfuncionais; b) a formação
de sistemas dinâmicos complexos, integrantes de toda uma série de
funções elementares, e c) o reflexo generalizado da realidade na
consciência. Esses três aspectos constituem, na perspectiva teórica
que defendemos, o conjunto de características essenciais e
fundamentais da consciência humana e são a expressão da lei
segundo a qual os saltos dialéticos não são unicamente a transição
da matéria inanimada à sensação, mas também dela ao pensamento
(VYGOTSKI, 1997, p. 134, grifo do autor).
À luz desses princípios passamos, agora, à análise dos processos
funcionais que conferem existência objetiva ao “reflexo generalizado da
realidade na consciência”, ou seja, à análise dos processos funcionais
instituintes da imagem subjetiva da realidade objetiva. Destacamos como tal
sensação, percepção, atenção, memória, linguagem, pensamento, imaginação,
emoção e sentimento. Cumpre-nos registrar que cada um desses processos
poderia ser tomado como objeto de estudos específicos, posto a abrangência e
complexidade que encerram, mas, todavia, o tratamento pontual não
promoveria uma visão do conjunto. Assim, privilegiando a visão do todo, não
temos a pretensão de exaurir a análise sobre cada um deles, mas expor seus
traços essenciais e os princípios gerais que regem seu desenvolvimento, tendo
em vista o estabelecimento de relações entre os mesmos e a educação
escolar, conteúdo específico do próximo capítulo deste estudo.
Fonte: Capítulo 3 da Tese de Livre Docência da Professora Ligia Marcia
Martins – págs. 93 a 96
MARTINS, L.M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar:
contribuições à luz da psicologia histórico cultural e da pedagogia histórico-crítica.
2011. 250 f. Tese (Livre-docência em Psicologia) – Faculdade de Ciências,
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Bauru, 2011.

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