História e Mídia: o cinema como documento.
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História e Mídia: o cinema como documento.
História e Mídia: o cinema como documento. Dra. Rosana Schwartz Universidade Presbiteriana Mackenzie A história, desde a década de 1970,por meio das reflexões de teóricos como o historiador Marc Ferro, considera os registros realizados pela mídia, em específico o cinema, como fonte relevante para análise histórica. Marc Ferro, nesse período questionou as formas tradicionais de abordagens da história e se dedicou a construção do saber histórico, por meio,não somente da analise dos documentos escritos e pictóricos, como também da oralidade, da imagem fotográfica e em especifico do cinema. Como qualquer documento, o filme é um objeto que apresenta para a história aspectos implícitos e explícitos relacionais e geracionais que são pistas para o pesquisador sobre o olhar de quem fez o documento, de uma época, em que circunstância, para que finalidade e universo da produção.O documento filme é um registro que desvela a época da sua produção, os valores dasociedade a que pertence e de quem o gerou.Revela os filtros ideológicos que são produtos – imagens objeto –, cujas significações não são apenas de natureza cinematográfica mas também de testemunho (FERRO,1989). Ferro atenta para a percepção do filme tanto como fonte e quanto objeto imagético, já que filmes não são feitos apenas de código cinético (imagens em movimento), mas também de outros tantos códigos, tais como o lingüístico – escrito (legenda) e fala (diálogos dos personagens) – e código musical (trilha sonora). Forma-se um conjunto de representações visuais e sonoras, cuja análise e decodificação faz parte da função do historiador (LANGER, 2006). Junto ao estudo histórico das imagens fílmicas, aliam-se categorias de filmes, como expresso em gêneros diferentes como: ficção, histórico, documentário, cinejornal, entre outros. Os históricos, referidos como documentos de época são produções que narrativizam: fatos históricos (Reds – revolução Russa, Rainha Margot – noite de São Bartolomeu, Spartacus – revolta dos escravos romanos, O que é isso companheiro? – ditadura militar), biografias (O Velho –Luis Carlos Prestes, Oliver Cromwell – Lamarca), adaptações literárias (O Guarani, O Cortiço, Os miseráveis) e mentalidades de épocas (O Nome da Rosa, A Missão) CristianeNova (2001:37) afirma que “um filme diz tanto quanto for questionado”. (SCHWARTZ, 2010). Em um filme histórico tradicional, hollywoodiano por exemplo, enfatiza-se: a emoção em detrimento ao aspecto racional da trama – égide da espetacularização; os elementos estéticos – estilo artístico da obra; o caráter subjetivo dos modelos estéticos; a linguagem cinematográfica – movimentos da câmara, planos, enquadramentos, iluminação, sonoplastia, ângulos de análise que devem ser observados como documentos históricos, levando-se em conta o que está presente de maneira implícita (conteúdo existente nas entrelinhas), e “tudo aquilo que os produtores queriam que chegasse ao espectador, mas não o fizeram, por algum motivo particular, direta e claramente” (NOVA, 2001: 5). Outra perspectiva analítica está na transposição passado-presente, que pode serilustrado no filme Alexandre Nevsky (dirigido por Eisenstein), cujo tema é a invasão da Rússia pelos teutônicos durante o século XIII. O filme foi produzido na década de 1930, pelos russos, no momento em que os alemães ameaçavam seu território. Já em uma obra de ficção científica, destaca-se o filme Invasores de Corpos: o planeta é invadido por extraterrestres que tomam o corpo dos humanos que passam a agir como „zumbis‟; alusão implícita ao perigo do comunismo perante as famílias norteamericanas. As ideologias políticas aparecem em Erik, o Viking, filme que retrata a Idade Média, em cenário mundial dos anos 1980; é a corrida armamentista entre EUA e Rússia. Em Cortina de Ferro, Sob Controle, Sob o Domínio do Mal, verifica-se o macarthismo. Também são documentos os filmes-denúncia: filmes contra o próprio macarthismo, e outros como As Bruxas de Salem em que a intolerância religiosa do século XVII se torna uma metáfora política do presente. (SCHWARTZ, 2010). Por esses exemplos, percebem-se as possibilidades de leituras do passado conectadas as do presente: filmes cujas histórias tocam o presente, não obstante sua temática discursiva esteja centrada no passado. Na dialética passado-presente, tais categorias de filmes desempenham papel significativo na polemização do conhecimento histórico, já que se constituem de imagens documento e monumento. (SCHWARTZ, 2010). Em filmes documentos, o historiador deve considerar, também, a problemática do imaginário social. Esse imaginário ocorre, tanto por questões ideológicas, como por motivos técnicos. Ao se trabalhar com a imagem dos guerreiros celtasou vikings, aparece o imaginário de homens enormes usando chifres – o caso do Príncipe Valente, adaptação de História em Quadrinhos homônima –,simbologia que faz referencial aos escandinavos, povos considerados atrasados pelas teorias raciológicas do século XIX, diante do britânico anglo-saxônico, uma sociedade ideologizada como civilizada e próspera; aliás, referentes do imaginário que alcançam na atualidade. Já no imaginário social das décadas de 40 a 70, os continentes sul-americano, africano e asiático são interpretados como um local misterioso, idílico, selvagem, com habitantes exóticos e muito mais atrasados que os europeus. Haja vista a presença exótica de animais nos filmes As minas do rei Salomão, Tarzan, Jim das selvas, cujo sentido imagético é de desqualificar as sociedades que não são européias ou norte-americanas. Os filmes relacionados à literatura do Oitocentos exploram ainda mais o imaginário social de civilização ocidental branca, considerada ideologicamente superior, com legitimidade no processo de conquista e colonização das terras selvagens. Filmes como Anacondaperpetuam os imaginários anteriores. O imaginário social norte-americano sobre o Brasil aparece em diversos filmes, Segredo dos incas, Manhunt in thejungle, em que os habitantes do Estado do Mato Grosso falam espanhol e usam trajes semelhantes aos peruanos. Não existem diferenças culturais na América Latinapara a cultura dita superior-branca-americana. Além da não existência das diferenças culturais na América Latina, nos filmes norte-americanos, surge também uma floresta com inúmeros perigos que devem ser vencidos pelos heróis americanos (piranhas, jacarés, morcegos, onças, tempestades, etc...). Herdeiros diretos dos modelos colonialistas e imperialistas da literatura ocidental do século XIX, os filmes de aventura incorporam a ideologia de que os europeus e seus descendentes devem ser os legítimos representantes da „ordem civilizacional‟ no mundo contemporâneo. (SCHWARTZ, 2010). O recorte específico de um momentoda História pelos enredos cinematográficos permite ao historiador detectar ideologias, tanto do público-alvo, quanto dos produtores. Destaca-se, nesse caso, a filmografia norte-americana sobre os judeus, com enredos sobre o Holocausto nazista da Segunda Guerra Mundial, em que estes são apresentados vitimizados, omitindo alguns episódios nos quais foram também algozes – questão da Palestina moderna. Além das imagens produzidas de forma consciente, existem as de conteúdo inconsciente, compostas por elementos que ultrapassam as intenções de quem realizou e produziu o filme. Essas imagens podem ser, tanto elementos de ordem individual, quanto ideologias da sociedade como um todo: contexto social, econômico, político, cultural e religioso de uma época. Tais imagens constituem um aspecto complexo de ser analisado pelos historiadores. Marc Ferro (1989) denomina tais imagens de “zonas” ideológicas não visíveis da sociedade – juízos de valores e de moral expressos pelas culturas, forma de alimentação, de vestir, de pensar e de comportamentos –, principalmente quando contrastado com outros povos ou culturas. O historiador deve, pois, comparar os conteúdos do filme/documento com o conhecimento histórico, cultural e sociológico da sociedade em que o filme foi produzido, com o tema histórico que ele retrata e com outras produções com mesma temática. Os filmes (não importando a época do enredo) são documentos do período em que foram produzidos. A leitura de um filme como documento deve encontrar similitudes e representações com os fatos históricos e com a historiografia escrita, procurando responder às questões: existe adaptação realizada pelo autor? quais os critérios que foram utilizados para a construção de uma determinada versão da História? ocorrem anacronismos na obra? Assim, o se estudar o valor e sentido cinematogáfico, entre outras, com o status de documento histórico, inúmeras questões devem ser problematizadas, e muitas condutas metodológicas construídas, no sentido de promover o diálogo entre obras e teores das obras, entre contextos históricos da produção e culturas locais e globais, e entre as dimensões formais, semânticas e sociais. A metodologia histórica e a comunicação se relacionam e consideram a imagem como produto cultural, fruto de trabalho social e de produção sígnica. Neste sentido, toda a produção da mensagem imagética está associada aos meios técnicos de produção cultural; e dentro desta perspectiva, como já foi mencionado, pode, de um lado, contribuir para a veiculação de novos comportamentos e representações da classe que possui o controle de tais meios, e, de outro, atuar como eficiente meio de controle social mediante a educação do olhar. Partindo-se dessa premissa, as imagens não são apenas documento, mas também monumento e, como fonte histórica, deve passar pelos trâmites das críticas externa e interna para, depois, ser organizada em série, obedecendo a uma proposta cronológica. Tais séries devem ser extensas, capazes de dar conta de um universo significativo de imagens, posto que, numa mesma série de imagens, fotográficas ou cinematográfica, há que se observar um critério de seleção. Necessário se faz não misturar diferentes tipos de imagens em uma mesma intenção de análise histórica, tal como juntar álbuns de família a revistas ilustradas. Seleção de corpus é necessária, porquanto cada tipo de imagem compõe uma série categorial diferente. Nessa série categorial são vicejados múltiplos códigos e níveis de codificação que fornecem significados ao universo cultural da sociedade em que as imagens se instalam. Códigos são construídos na prática social e não podem ser encarados comoentidades a-históricas, estão sempre situados na esfera espacial-temporal. Se a classificação de códigos se faz pertinente, sua rede constitutiva revela o olhar conjuntural sobre as imagens, sede de construção de sentido. Sendo a produção da imagem um trabalho humano de comunicação, pauta-se, portanto, enquanto tal, por códigos convencionalizados socialmente, que possuem um caráter conotativo-funcional que remete às formas de ser e agir do contexto no qual estão inseridas como mensagens. Para que o olhar analítico ultrapasse a natureza da imagem de mero analogonda realidade, outros mecanismos analíticos são acionados: relação entre signo e imagem; e opções técnica e estética. (SCHWARTZ, 2010) Na dialética entre imagem e signo, normalmente, a imagem é vista como algo „natural‟, ou seja, algo inerente à sua própria natureza icônico – espelho da realidade –, e o signo passa a valer como uma representação simbólica. Tal distinção é um falso problema, tendo em vista que a imagem, sem dúvida, pode ser concebida como um texto icônico, mas que, antes de depender de um código, é algo que institui um código. Neste sentido, no contexto da mensagem, a imagem, ao assumir o lugar de um objeto ou de um acontecimento ou ainda de um sentimento, incorpora funções sígnicas – representação algo. Assume-se, na dialética de imagem e signo, a relação dos elementos imagéticos expressos com o contexto social em que se inserem, cujos cortes temático e temporal são exigidos. As opções técnicas e estéticas envolvem um aprendizado historicamente determinado que, como toda a pedagogia, é pleno de sentido social. No entrelaçamento dessas vias analíticas, conclui-se que toda imagem é histórica. O marco de sua produção e o momento de sua execução estão indefectivelmente decalcados em suas superfícies, do retrato, da foto, do filme. A história embrenha as imagens nas opções realizadas por quem as escolheu – uma expressão e um conteúdo –, compondo mediante signos de natureza não-verbal, objetos de civilização e significados de cultura. O estudo das imagens, como bem ensinou Panofsky (2004) em seu método iconológico, impõe o estudo de sua historicidade. Ao se problematizar documentos visuais e abordar as imagens em suas dimensões formal, semântica e social, a historiografia percorre diversas produções, desde os formalistas, como Kant (2000), Konrad Fiedler (1997) ou Alois Riegl (1991), fundadores de problemáticas plásticovisuais, sustentadas pelas tramas metodológicas da História da Arte a estruturalistas, como Lévi-Strauss (1987), Roland Barthes (2000), Foucault (2006) e Walter Benjamin (2001), pensadores do recurso visual como um sistema de signos inter-relacionados, estimulante das sensibilidades analíticas. Mas o percurso da complexidade da iconicidade histórica aí não se detém. Pierre Francastel (1987) desconstrói, conjuntamente com os outros teóricos, a centralidade do texto escrito e afirma que nenhum complexo cultural pode ser reduzido apenas à expressão verbal. A manifestação cultural também engloba o imagético, tão importante expressão/conteúdo que ao par se reserva uma região cognitiva específica, porquanto o mundo visual é possuidor de uma lógica própria, imersa e emergindo na/da sua historicidade. As imagens não são reflexo direto da realidade, nem tampouco um sistema de signos independentes da mesma realidade; constituem a reconstrução de regras e convenções, conscientes ou inconscientes, de um período histórico, que rege a percepção numa determinada cultura. Para Francastel (1987), existe um pensamento plástico e o historiador procura apropriar-se desse pensamento, analisando e trabalhando com imagens. Detivemo-nos nas imagens fotográficas e cinematográficas, o nosso foco de abordagem, apesar de nosso estudo poder se estender e sonhar com outras tantas imagens que constroem os “retratos da história”, como modos de linguagem, com seus significados e significantes, situados em espaço e tempo determinados. E por mais que o pesquisador tente se aproximar das sensibilidades do passado para compreender a reprodução das imagens, está sempre olhando os conceitos do „agora‟. O passado é sempre uma construção do presente. Referências Bibliográficas: BARTHES, R.A Câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. _____. Retórica da Imagem. São Paulo: Cultrix, 2000. BAUDELAIRE.Le Jeuneenchanteur, histoiretirée d'unpalimpseste de Pompeia. Paris: ÉditionT.U.L.I.P.E, 2005 . BENJAMIN, W. Sobre a arte, técnica e política. Lisboa: Relógio d‟Água, 2001. BLOCH , Marc Introdução à história. 5ª ed. Coleção Saber .Lisboa: Europa-América, 1997. BURKE, Peter. Testemunha Ocular. São Paulo: EDUSC, 2004. ________. A Escola dos Annales – 1929-1989. São Paulo: UNESP, 1990. COULANGES. Fustel. A cidade antiga. Rio de Janeiro: HEMUS, 1975 CHARTIER. Roger. Imagens – Dicionário das Ciências Históricas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. DUBY, Georges .As Três Ordens ou o imaginário do Feudalismo. 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