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Descarregar PDF - Textos Subterrâneos
Flores Silvestres
Uma antologia de
Abele Rizieri Ferrari
Textos Subterrâneos
[email protected]
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Compilação, tradução, notas e prefácio: Textos Subterrâneos
Grafismo: Textos Subterrâneos
Primeira edição: Abril 2013
Todos os textos foram traduzidos a partir dos originais em italiano,
excepto o apêndice III: Renzo Novatore, traduzido do original em francês.
Este livro está escrito em desacordo ortográfico. A sua reprodução é
completamente livre e pode ser descarregado em formato digital em
www.textosubterraneos.tk
Índice
Novatore: Uma biografia
9
Um elogio ao rebelde
37
Para o nada criador
47
Os vagabundos de espírito
77
À conquista de novas auroras
83
Pensamentos e máximas
87
Grito rebelde
91
Flores silvestres
99
Em direcção ao furacão
105
O expropriador
109
Parábola
113
No círculo da vida
115
O meu individualismo iconoclasta
123
Uma vida
135
Também sou niilista
141
Perversidade espiritual
147
Rosas negras
151
As minhas máximas (do livro de notas
dos meus pensamentos intímos)
155
O temperamento anarquista no turbilhão da história
159
Chicotada
165
No reino dos fantasmas
169
Acima das duas anarquias
173
O sonho da minha adolescência
181
A misteriosa
185
Uma “fêmea”
191
Bandeiras negras
195
Os cantos do meio-dia
209
Com sincera piedade
219
Do individualismo e da rebelião
227
Em defesa do anarquismo heróico e expropriador
231
O canto da eternidade
243
No turbilhão
245
A amizade e os amigos
251
Por cima do arco: Arte livre de um espírito livre
255
Balada crepuscular: Prelúdio sinfónico de “DINAMITE”
301
Apêndice I: Renzo Novatore foi assassinado
309
Apêndice II: No segundo aniversário
da morte de Renzo Novatore
311
Apêndice III: Renzo Novatore 315
Nota prévia
Nunca é fácil recolher as várias peças que compõem o corpo
literário de um escritor, principalmente se os seus escritos se
encontram dispersos por diversas revistas e jornais e se encontram mascarados com uma série de diferentes pseudónimos.
O trabalho de recolha aqui feito não foi fácil, e levou algum
tempo a completar-se, deixando, ainda assim, textos de fora
do ramalhete que compõe esta antologia, alguns por opção,
muitos outros, quiçá, por pura ignorância. E é por isso que não
queríamos deixar de destacar as fontes em que nos baseámos
e aqueles que nos ajudaram nessa nossa busca. O trabalho de
Alberto Ciampi, nesse sentido, foi bastante importante, devido
à compilação de textos de Abele Rizieri Ferrari reunida em Un
fiore selvaggio e que se encontra disponível electronicamente
em liberliber.it. Outro trabalho de compilação importante é o
das Edizioni Cerbero, antologia editada em 2011 e intitulada
Sono la mia Causa, que adiciona alguns textos ao trabalho de
Alberto Ciampi e que nos foi gentilmente enviada por Wolfi
Landstreicher. Também importante é o website novatore.it, de
onde foi extraída a nossa biografia e que ajuda à compreensão
de quem foi este anarquista iconoclasta de língua italiana que
agora editamos. Para além disso, o trabalho de recolha dos
companheiros da revista Machete foi também de grande relevância, cedendo-nos alguns dos textos que foram recolhendo
ao longo do tempo, em grande parte editados postumamente
em diferentes revistas fora de Itália. A eles estamos profundamente gratos. Do arquivo do Instituto Internacional de
História Social de Amesterdão chegou-nos a edição italiana de
Al di sopra dell`arco enviada pelo Mikel, que desde o início nos
ajudou imenso a realizar esta edição. Sem ele teria sido quase
5
impossível completá-la desta forma e a ele devemos a nossa
gratidão. Queremos também salientar a edição inglesa de Verso
il Nulla Creatore, editada pela Venemous Butterfly, e também os
sites com traduções em inglês theanarchistlibrary.org e anarchyinitaly. A eles recorremos sempre que tínhamos dúvidas de
interpretação do texto original.
Queríamos também enviar o nosso agradecimento ao Marco,
ao Bruno, ao Mário e ao Aragorn pela ajuda e pelo apoio dado
para que esta vontade de editar Abele Rizieri Ferrari se tornasse
uma realidade. A eles devemos também este trabalho. E por último agradecemos a todos aqueles que, embora se encontrem
aqui anónimos, nos motivaram e nos deram força para agora
apresentarmos esta tradução. A todos vocês dedicamos este livro.
Textos Subterrâneos
6
Existem também pessoas que só conseguem sentir prazer
em grupo. Os verdadeiros heróis comprazem-se sozinhos.
C. Baudelaire
Journaux Intimes
7
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
8
NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
Novatore:
Uma biografia
Não banho as minhas palavras
na mentira;
A acção é o controle de todo o homem.
Píndaro
A história de Abele Rizieri Ferrari (mais conhecido pelo
pseudónimo de Renzo Novatore) parecia já estar escrita desde
o dia em que nasceu, a 12 de Maio de 1890. A história de uma
vida semelhante à de centenas de camponeses que ganhavam
a vida no campo e nas vinhas, ou em fábricas e locais de construção da vizinha Spezia. Sim, porque o pai de Abele, agricultor arrendatário, não tinha dúvidas sobre o que o seu filho seria
quando crescesse, e naquela pequena criança viu certamente
pouco mais que dois preciosos braços muito úteis para aliviar o
seu trabalho diário.
Abele demonstrou rapidamente uma inteligência aguçada e
uma curiosidade ardente. Enquanto frequentava a primeira
classe, parece que a leitura dos livros de Pisacane, Salgari,
Cattaneo, Barilli, Tolstoi e Cavallotti, era para ele um compromisso diário ao qual dedicava muitas horas.
Naqueles anos manifestou os primeiros sinais de rebelião. Rebelião contra as primeiras formas de autoridade que geralmente
se encontram na vida: o pai em casa e os professores na escola.
Abele rejeitou ambas. Primeiro os professores: o miúdo, intolerante ao rígido protocolo escolar da época e ao chicote, acabava
9
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
sempre repreendido e relegado ao “banco do burro”. A aventura
escolar de Abele acabou em poucos meses, mas ele continuou
a saciar a sua fome de conhecimento e de novos estímulos com
frenéticas leituras particulares, graças aos livros que levava emprestados do círculo mazziniano1 local, do qual era frequentador assíduo. Encontrava-se, assim, em contacto, não obstante a
jovem idade, com o ambiente e os discursos dos adultos.
No entanto, o pai não se desesperou muito com a escolha do
filho, pelo contrário.
Nos seus últimos escritos, Abele arrepender-se-á de não ter
vivido a sua juventude como um rapaz normal, mas, por outro
lado, não renunciará nunca à satisfação de reiterar a sua eterna
condição de fora do normal, de excepção entre as miseráveis
normas quotidianas dos trabalhadores. A propósito disso, declarou: – As pessoas chamavam-me “o louco”; a minha mãe
chamava-me “lunático”, o meu pai não se preocupava comigo,
e os meus amigos falavam de mim com sarcasmo e ironia, chamando-me com desprezo: “poeta”.
Naqueles primeiros anos do século XX, o ambiente de Arcola
pululava de indivíduos anticlericais, inimigos declarados do
Estado e das suas hierarquias, hostis a serem incorporados
naquele Partido Socialista que, desde há dez anos, se fazia
porta-voz das instâncias do proletariado italiano. Numa palavra: de anarquistas. Acredita-se que Abele, já frequentador dos
círculos liberais e republicanos, conheceu alguém que lhe falou
pela primeira vez do ideal libertário e da anarquia, indicando-lhe os escritos de Malatesta, Kropotkin, Nietzsche, os poemas
de Pietro Gori, mas sobretudo Max Stirner e a sua concepção
do individualismo como elevação do Eu a objectivo supremo
daquele que egoísticamente se define como “Único”. Palavras
que esculpiram, como um martelo preciso e potente, a personalidade do futuro Novatore.
Foi então um choque, mas, em seguida, Abele passou a declarar-se militante anarquista desde os quinze anos de idade.
As nossas escassas fontes tornam a citar o jovem Abele em
1910. Na noite de 15 para 16 de Maio daquele ano, um incêndio destruía a igreja da Nossa Senhora dos Anjos em Arcola. Na
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
manhã seguinte, o cardeal Pietro Maffi de Pisa deveria celebrar
aí uma importante cerimónia religiosa.
As investigações da polícia rapidamente levaram à identificação de um grupo de jovens anarquistas locais, entre os quais
estava também Abele Ferrari, com fama de irrequieto bandido
local. Enquanto Pasquale Binazzi2, figura incansável do anarquismo italiano, denunciava nas páginas do seu jornal Il Libertario uma suposta conspiração clerical concebida com o intuito
de desencadear uma repressão generalizada, Abele era transportado pelos polícias para a prisão de Sarzana, não sem (e é
importante recordá-lo) tentar de várias formas evitar a sua captura,
escondendo-se de tal forma que foi impossível encontrá-lo durante algumas semanas.
O julgamento que se seguiu ao incêndio na igreja viu o jovem
anarquista de Arcola absolvido por falta de provas, tornando-se
assim impossível determinar se o rapaz realmente participou
na acção destrutiva.
O nome Abele Ferrari reaparece em casos judiciais relativos à
Primavera de 1911, quando é procurado por furto e por roubo.
O jovem rebelde considerava, na realidade, o trabalho assalariado como uma forma de escravidão apenas mais refinada,
e não era difícil ouvi-lo exclamar ao ver um trabalhador desgastado coberto de suor e poeira: “Mas é isto um homem?!” Por
isso Abele considerava lícito, segundo a sua filosofia de vida
pessoal, a expropriação, no confronto com os mais ricos, daquilo que era útil para a sua sobrevivência quotidiana, e usar a
força não era certamente um problema. Como escreverá mais
tarde: – Não sou um pedinte […] Aproprio-me apenas de tudo
aquilo que estou autorizado a apropriar-me através da minha
capacidade e poder.
Por isso, Abele jamais desmentirá a sua paixão pela vida à
margem da sociedade, e o seu respeito pelos loucos, vagabundos e delinquentes comuns.
Como era o seu hábito, o jovem de Arcola passou à clandestinidade, permanecendo escondido durante alguns meses até
que, a 30 de Setembro, foi detido e entregue às autoridades judiciais por actos de vandalismo.
11
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Provavelmente, ainda que ninguém o saiba com precisão, foi
nesse período que o poeta-bandido conheceu Chiara Emma
Rolla, que mais tarde se tornou sua mulher e mãe dos seus três
filhos, um dos quais morreu muito pequeno no último ano da
Primeira Guerra Mundial. Abele amava Emma com “um amor
insuperável” e muitos episódios e testemunhos mostram-no
como um marido afectuoso e um pai sensível, ainda que a sua
incansável, coerente e determinada militância entre as fileiras
anarquistas pela defesa da liberdade individual o tenham levado muitas vezes, na sua breve vida, a estar longe da família. Podem parecer contraditórias algumas afirmações que encontramos num escrito seu de 1920 e que retrata a instituição familiar
como a “negação do Amor, da Vida e da Liberdade” ou o amor
como “fraude da carne em prejuízo do espírito, doença da alma,
atrofiamento da mente, delíquio do coração”, mas certamente
ele, que se definia como um poeta estranho e maldito, um niilista perfeito e um ateu radical, sentia uma profunda brecha na
sua consciência entre os afectos mais íntimos e a paz interior
em oposição à procura da liberdade total e à emoção da acção.
Abele começou também a escrever as suas intervenções inflamadas nas maiores publicações libertárias e anarquistas do
Norte de Itália como na Cronaca Libertaria, no Il Libertario, na
Iconoclasta!, na La Testa di Ferro, proclamando a sua visão do
anarquismo em geral e do movimento anarquista italiano, redigindo manifestos íntimos sobre o seu estado de ânimo e sobre as suas ideias em confronto com a sociedade, com a monarquia, com o Estado, com a religião e com os partidos, preferindo a composição em prosa num estilo claramente inspirado
pela literatura de vanguarda daquele período.
Abele assinará sempre (mesmo na sua própria revista) com
uma série de pseudónimos, dos quais o mais famoso é certamente Renzo Novatore, mas também Brunetta l’Incendiaria,
Sibilla Vane, Mario Ferrento e Andrea del Ferro.
O estilo de escrita de Abele coloca-se sem dúvida na órbita
do futurismo, o movimento que visava, no início do séc. XIX,
actualizar drasticamente a linguagem expressiva, rompendo
definitivamente com o passado tradicionalista. De facto, o fu-
12
NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
turismo (que se estendeu também à pintura, arquitectura e
teatro) procurava criar um novo estilo agressivo e despojado de
todo o romantismo e moralismo, que pudesse adaptar-se aos
acontecimentos tumultuosos daqueles anos e à modernidade
galopante.
Os textos de Novatore são caracterizados, em particular, por
um uso frequente de metáforas líricas, que tinham a tarefa de
mostrar o espírito livre e aristocrático do escritor, ou descrições
de figuras libertinas, sobretudo femininas, com um papel anti-moralista e individualista. O uso de adjectivos cáusticos e extraordinários assegura, assim, um efeito “enraivecido” à escrita
que, unido a um tom sempre contestatário e polemista, oferece
à escrita de Abele força suficiente para que o leitor a odeie ou a
ame de imediato
Novatore disparava à queima-roupa contra a massa homogénea, como um franco-atirador do alto de seu individualismo e
do seu cepticismo altamente cínico, no confronto de teorias e
filosofias, incluindo o marxismo e o sectarismo dos pretensos
“pais” da anarquia. Muitas vezes, às suas intervenções incómodas e, se assim o quisermos, antipáticas, seguiam-se missivas
de protesto e crítica às quais Novatore respondia com trechos
que eram verdadeiros ataques pessoais, sendo que por vezes era
requerida a intervenção do director do jornal para apaziguar o
tom da polémica.
1914: ano de ilusões destroçadas, ano de guerra.
Enquanto em Itália se ouviam os últimos ecos da “Semana
Vermelha”3, vermelha pela greve geral e pelos levantamentos
proletários, em toda a Europa a febre dos mosquetes e dos canhões espalhava-se entre cortes e ministérios. Políticos, estadistas, cabeças coroadas e conselheiros, andavam num excitado frenesi para dar início a uma carnificina “necessária” que deveria levar à queda de impérios e reinos seculares, à afirmação
de uma nova ordem no continente e à remição de quem estava
ainda sob o jugo do estrangeiro. Nuvens perniciosas, tristes e
ameaçadoras, condensavam-se sobre a cabeça dos operários,
e sobretudo dos camponeses, prontas a sugá-los e a cuspi-los
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
nas trincheiras homicidas pela (vã) glória da Pátria. Os políticos
italianos oscilaram, esperando um ano antes de se lançarem na
luta, para compreenderem qual das facções seria melhor enfileirar em troca de concessões territoriais, que no final do conflito nem sequer foram respeitadas. Enquanto a Europa sofria a
devastação a ferro e fogo, os maiores partidos políticos italianos
dividiam-se entre os partidários da intervenção ou da neutralidade, entre protestos de rua e debates acalorados.
Também o movimento anarquista entrou neste debate. Alguns
ilustres militantes, sobretudo individualistas, abandonaram,
pelos mais variados motivos, a tradicional posição anti-militarista e anti-autoritária, colocando o capacete para inebriar-se
na poesia guerreira de D’Annunzio4.
Alguns… mas não Renzo Novatore. Ele, que desde cedo conhecia o sopro pestilento da pólvora, colocou-se da parte dos
desertores e daqueles que, justamente, não vislumbravam progresso, honra e conquista naquele choque fratricida entre proletários de diversas nações, mas somente litros e litros de sangue
derramado inutilmente, enquanto que a situação de quem
conseguisse retornar a casa, porventura horrivelmente mutilado, não se alteraria nem um milímetro: opressão, sofrimento
e miséria. Novatore procurou imediatamente colaborar com os
jornais anarquistas perseguidos pela censura, com uma série
de artigos cheios de raiva, para ensinar às pessoas, à “plebe”
como depreciativamente lhes chamava, a recusa e a negação
do massacre para o qual em pouco tempo seria chamado. É
também provável a sua participação em numerosos comícios
itinerantes que, de aldeia em aldeia, tinham como objectivo
dirigir-se directamente aos camponeses para convencê-los a desertar, com o mote “Guerra Não, Revolução!”. De facto, naquele
período Novatore nutria ainda uma certa fé na capacidade de
organização e determinação dos trabalhadores para derrubar o
sistema monárquico-estatal.
Após a entrada na guerra da Itália em Maio de 1915 ao lado da
Inglaterra, França e do Império Russo, a actividade anti-intervencionista de Novatore e dos seus companheiros tornou-se ilegal
e perigosa. A perseguição das autoridades centrava-se inevi-
14
NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
tavelmente em torno desses contestatários, dificultando-lhes o
regresso às suas casas, assediados continuamente por vigilâncias e mandatos de busca.
No final da guerra, os líderes militares tentaram repor as divisões do exército real, dizimadas pelas tácticas ingénuas e
suicidas de oficiais dementes, recrutando mesmo jovens imberbes (os famosos nascidos em 1899) e quem tinha já ultrapassado a idade de recruta ou tinha sido anteriormente dispensado. Nesta última categoria figurava Novatore, que em 1912 já
tinha sido considerado inapto para prestar o serviço militar.
Naqueles dias sombrios de morte viu-lhe ser entregue, porém,
o cartão de recruta. A 26 de Abril de 1918 Abele Ferrari, com 28
anos, afastava-se sem autorização do seu regimento de partida
para a frente de combate, para não voltar mais. Noutras palavras: desertou.
Novatore, com outras experiências do tipo às costas, desaparece
de circulação, abandonando também a sua região e refugiando-se presumivelmente em Emilia-Romagna, entre a planície e os
montes Apeninos de Reggio Emília, e sobrevivendo na sombra
de pequenas casas abandonadas graças a expedientes frugais e
à ajuda de algum velho militante e simpatizante da causa anti-militarista.
Entretanto, a lei marcial cumpria o seu curso implacável e era
tempestivamente emitida uma pena de morte por deserção e
alta traição contra Abele Rizieri Ferrari.
O fugitivo soube da notícia, agarrou numa caneta e num papel,
e escreveu algumas linhas que ainda permanecem clamorosamente verdadeiras perante todas as guerras e todas as penas de
morte:
– A notícia chegou fria, cínica, implacável… Condenado à
morte! Mas como?! Condenado à morte? Mas porquê? Por ordem de quem? Quem tem o direito de matar-me? O Estado? A
Sociedade? A Humanidade? Olhei para bem dentro da alma dos
homens. Queria ver nela a sua íntima verdade. Muitos aplaudiram, outros ficaram indiferentes. Poucos, pouquíssimos, choraram.
Mas aqueles que choraram, não o fizeram por solidariedade,
por amizade, por humanidade. Não: choraram por uma outra
15
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
coisa. Estava só. Só com a morte! E, ainda assim, a vida era bela.
Bela, bela!
Não eram capazes de capturar Novatore. O seu velho amigo
Auro5 contou que em seguida chegaram a organizar-se, entre a
Liguria e Emilia, batidas de caça formadas por cento e cinquenta homens armados com o objectivo de fazer rusgas em casas,
galinheiros e estábulos, na vã tentativa de encontrar o “perigosíssimo bandido anarquista contra o qual tinha sido dada a ordem de disparar à queima-roupa.”
De facto, não obstante a guerra ter acabado e muitos opositores terem voltado ao seu país natal após um longo período de
deserção, ou após o seu exílio, Novatore permanecia impossível
de ser descoberto (embora estivesse bem perto da sua cidade
natal, Arcola), armado com duas precisas pistolas Mauser para
sua autodefesa, empenhado em escrever os seus habituais artigos escarnecedores no Il Libertario, tentando conspirar, nas
noites sem luar, misteriosos planos subversivos. Precisamente
naquele período, no final de 1918, morre (provavelmente por
doença) um dos seus três filhos. Foi nessa única e trágica ocasião que Novatore abandonou por um momento a sua coerência proverbial e correu em direcção a casa, desafiando soldados e polícias, para dar o último adeus ao pequeno, pálido e
evidentemente amado, cadáver do filho. História comovente,
quase uma ficção teatral. Pelo contrário, tratava-se da vida real
de um homem, uma vida que poucos compreendiam e que
muitos queriam destruir antes do tempo.
No Verão de 1919, ocorreram por toda a Itália tumultos contra a carestia de vida, a falta de trabalho, a fome. Os sindicatos
estavam num frenesi e na primeira linha estavam sempre os
anarquistas; à exploração respondia-se com a greve, aos fechos
das fábricas pelos patrões respondia-se com a criação de conselhos operários e a autogestão, à violência respondia-se com
violência. Em muitas bocas, nas praças, corria a palavra de ordem “fazer o mesmo que na Rússia”, uma referência evidente
à revolução implementada pelos bolcheviques de Lenin dois
anos antes. Novatore, que não suportava sindicalistas, socialistas e comunistas, decide, sem pensar muito, unir-se àquelas
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
primeiras faíscas de revolta porque, mesmo que o seu sonho
não fosse reformar a sociedade mas vê-la desaparecer para
sempre do mundo, uma eventual demolição da ordem estabelecida provocar-lhe-ia um feliz orgasmo sensorial.
Em Maio de 1919, La Spezia caiu simbolicamente (mas não
demasiado) nas mãos de um Comité Revolucionário que era
capaz de fazer frente à polícia e a uma burguesia assustada.
Novatore e outro anarquista da cidade chamado Dante Carnesecchi6, estavam empenhados como oradores itinerantes
da causa revolucionária nas várias pequenas vilas que circundavam a grande cidade portuária liguriana. A ilusão durou somente até meio de Junho, quando uma massiva e determinada
intervenção militar destruiu qualquer tentativa de revolta. Para
Novatore, já procurado desde há muito tempo, aquela enésima
fuga resultou mal porque, também por culpa da denúncia às
autoridades por um camponês, a 31 de Junho foi rodeado por
cerca de cinquenta polícias e preso perto de Sarzana. Enviado
para a prisão de Livorno, numa espera enervante pela execução
da pena de morte ainda pendente, consegue afortunadamente
usufruir de uma amnistia geral, promulgada a 2 de Setembro
daquele ano, para os crimes militares relacionados com a guerra
recentemente terminada.
Novatore, escapando por um triz à morte, não preferiu seguramente o caminho de uma aposentadoria forçada longe dos
problemas ou uma vida normal como operário ou camponês.
Agarrou na caneta e escreveu inúmeros artigos nos jornais
anarquistas que preferia e que geralmente o acolhiam, e nessas
páginas reivindicou a paixão pela acção directa e a importância
que esta deveria ter na vida de um revolucionário no que diz
respeito ao intelectualismo vazio. Novatore dizia-se também
céptico em relação à tão lisonjeada revolução bolchevique na
Rússia, vendo naquele projecto nada mais do que a substituição
de um Estado autoritário czarista por um Estado autoritário comunista, portanto, ainda mais submissão e escravidão para o
povo e, como sabemos, este foi um prognóstico extremamente
acertado.
Entretanto, um texto do rebelde de Arcola apareceu no Icono-
17
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
clasta! que, embebido em visões poéticas, glorificava um individualismo levado ao extremo, o amor pelo excesso, pelo pecado, pelas prostitutas, entre outras coisa, provocando a dura
reacção, sob a forma de resposta no jornal, do anarquista
Camillo Berneri7 que, por seu lado, privilegiava o anarco-sindicalismo, a sublevação das massas armadas, o comunismo libertário, a confiança nas ciências humanistas e uma visão muito
clássica do papel da mulher e do homem, também dentro de
um sistema libertário.
O que se seguiu foi uma pequena querela que rapidamente foi
crescendo de tom, transformando-se numa série de insultos,
sem que nenhum deles tivesse conseguido prevalecer antes de
ser abafada pelo director do jornal8.
Nesse momento a história decidiu conceder mais uma oportunidade aos eternamente indecisos revolucionários italianos.
Em Setembro de 1920, o descontentamento e a miséria, resultado da Grande Guerra, estavam no auge. Esse sentimento de
desconfiança recíproca entre o proletariado e a classe média
foi também agravado pela indiferença e pelo mau governo da
classe dirigente italiana. Uma grande inquietação prevalecia
entre os trabalhadores industriais que viam o seu papel diminuir cada vez mais na sociedade. E os seus direitos, em vez
de aumentarem, permaneciam cristalizados numa situação de
desvantagem em relação aos seus colegas europeus. Os veteranos de guerra sentiam-se humilhados pelo mosquedo com o
qual o estado recompensou o seu grande esforço. A esquerda
reformista e parlamentária tentava ganhar tempo invocando
leis e decretos, as palavras de reivindicações ecoavam e morriam no ar estagnado do auditório parlamentar.
O capitalismo em Itália não conseguiu desenvolver-se de
uma forma forte e inteligente (do ponto de vista patronal, obviamente) como tinha acontecido em Inglaterra e nos Estados Unidos. Os industriais e os banqueiros norte-americanos,
em particular, tinham obtido enormes lucros devido à guerra,
aproveitando da melhor maneira a situação de crise para lucrar
e aniquilar as conquistas sindicais que os industrial workers9
tinham ganho a sangue nos anos anteriores.
18
NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
Entre os empresários italianos prevalecia, no entanto, um
pensamento egoísta e lojista, ansiosos por concessões do governo, mas sempre prontos a lamentarem-se na saia do Estado
à mínima faísca proletária.
Frente à ocupação de muitas fábricas do Norte de Itália, ao estabelecimento de conselhos operários auto-geridos, à formação
da “guarda vermelha” armada para a defesa das greves e para
combater a violência policial, empresários e latifundiários decidiram esconder-se detrás de um muro de bastões, facas e baionetas. O caminho rumo ao fascismo começava a ser preparado.
Naqueles dias espasmódicos poderia faltar, uma vez mais,
Renzo Novatore?
Trinta anos, de volta de uma enésima detenção por ter participado no assalto a um paiol de pólvora e a um quartel da
marinha real, Novatore une-se rapidamente aos outros anarquistas locais empenhados na sublevação, optando uma vez
mais por dar a sua ajuda à causa popular.
O habitual Pasquale Binazzi coordenava os esforços para estender e manter viva a ocupação geral das fábricas de La Spezia
(ocorrida a 2 de Setembro de 1920), organizando comícios, assembleias e sistemas de comunicação alternativos, na esperança de que as expropriações qualquer dia se transformassem em
revolução. Também em Turim e Milão os operários tinham expulso os patrões para fora dos portões das fábricas e experimentavam pela primeira vez a auto-gestão, encorajados pelo apoio
dos extremistas socialistas, que agora se chamavam comunistas,
e que falavam pela boca de um certo Antonio Gramsci10.
Renzo Novatore elaborou uma corajosa estratégia de insurreição que previa, até mesmo, o assalto organizado aos fortes
militares que circundavam La Spezia e a tomada dos navios que
flutuavam de forma ameaçadora no golfo.
Naturalmente tudo se perdeu, tudo falhou.
O movimento operário, que tinha feito das ocupações de fábricas o ponto de partida de uma grandiosa revolução, era novamente derrotado e a acção passava para as mãos da burguesia
e do governo que, afastado o medo e a confusão, voltavam ao
assalto. O último desafio tinha sido estupidamente perdido, en-
19
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
quanto o horizonte se manchava de tons sombrios11.
Mas de quem era a culpa? Da Confederazione General del
Lavoro ? Dos Socialistas reformistas? Da desorganização e das
guerras internas no movimento, incapaz de coagular os protestos nas fábricas, transformando-os em assaltos militares a
casernas e municípios?
Estas questões já não faziam sentido para Novatore, deixaram
de o fazer. Para ele estava definitivamente perdida qualquer
réstia de confiança nas organizações sindicais, por mais extremistas que pudessem ser, nos chamados ícones e leaders do
movimento, na sublevação das massas proletárias, no próximo e, pode-se dizer ao lê-lo, no Homem. É nesse período que
o niilismo e individualismo de Novatore se tornam extremos,
concretizando-se num reforçar da vontade que colocava o Eu
pessoal acima de tudo. Determina que nenhuma “causa”, nenhum remorso, nenhuma compaixão, voltariam a ser obstáculos. Um período tão amargo, feito de frustrações e desilusões.
Abele decide dedicar-se, em conjunto com dois amigos (o concidadão militante Auro D`Arcola e o pintor futurista Giovanni
Governato12) à criação de uma revista anarquista de “força e
beleza”, que aceitaria “somente a obra de espíritos inteligentes
e completamente livres, de escritores e artistas sem escrúpulos.”
A revista, chamada “Vertice” e editada em Abril de 1921, incluía alguns artigos de Novatore, assinados por uma série de
pseudónimos fantasiosos. O tom das intervenções era como de
costume explosivo, caracterizando-se por argumentos políticos, compreendendo reflexões sobre o significado da anarquia,
do individualismo e da liberdade do homem, imperfeito, segundo o autor, fosse no enquadramento laico do cidadão ou no
de cristão crente e seguidor de Cristo. Nas suas palavras existiam sinais de decepção pela ocasião revolucionária perdida no
biénio vermelho, durante a ocupação das fábricas.
A revista era completada por outros dois textos de carácter
mais artístico, em forma de conto, tendo um deles por título “O
sonho da minha adolescência”, que permanece, até hoje, um
grande hino à emancipação das mulheres e à independência
sentimental.
20
NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
Após a saída daquele primeiro número, agora impossível de
encontrar e do qual se ignora a difusão e as impressões do público, Novatore decide suspender a publicação porque, refere
sempre Auro d’Arcola, ainda não considerava a revista digna
dos seus autores.
Naquele fértil 1921 escreveu também um dos seus poucos
trabalhos artísticos completos. Nessa obra de conteúdo puramente político, intitulada “Para o nada criador”, encontramos
todo o rancor do anarquista que luta de arma em punho contra todos os “-ismos”, todas as “-arquias”, contra o cristianismo
e a razão política, numa contraposição pura e fatal entre estes
conceitos, definidos como “fantasmas”, e a defesa da sagrada
individualidade de cada um de nós como valor primário, que
adquire uma valência não só filosófica, como também política.
A releitura arrogante do primeiro conflito mundial, como metáfora da idiotice humana e do uso instrumental da guerra que
a burguesia fez contra o proletariado, ofereceu-nos preciosas
páginas de anti-militarismo e de oposição que, numa época
fascista, viriam a cair tragicamente no esquecimento.
Neste livro reemergem todos os temas que Novatore tinha tratado nos artigos que precedentemente apareceram nas revistas
anarquistas, ainda que madurados sob o sol escaldante da decepção. Parece quase que Novatore tinha voltado a um ângulo
de lucidez na imensidão árida mas fértil do seu estilo nervoso
e, por vezes, visionário. Uma lucidez filha do realismo, chegada
para contaminar a pouca fé no próximo que ainda mantinha.
Novatore foi um dos primeiros a prever os desastres que poderia provocar a iminente e imunda cópula entre a velha burguesia assustada e o novo fascismo audacioso. O monstro que
daí nasceu foi terrivelmente autoritário e massificador no seu
impiedoso militarismo. Novatore sabia-o perfeitamente porque
tinha experimentado na pele os truques subtis usados pela burguesia e pelos socialistas para chegar à supressão da individualidade rebelde: o fascismo não iria senão amplificar tudo isso,
graças à impotência do mumificado Partido Socialista.
Entre as páginas de “Para o nada criador”, está vincada a convicção do autor de estar a viver um momento crucial da história
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
italiana. Por isso Novatore escrevia muitas vezes no plural e no
final, ou quase no final, de cada parágrafo, incitava todos os
leitores a unirem-se às fileiras dos rebeldes para derrubar um
mundo que significava somente opressão e escravidão.
Mas porquê esses contínuos apelos se Novatore tinha perdido
toda a fé nas “massas”?
Pois bem, provavelmente porque pretendia comunicar aos
seus leitores, geralmente situados na esquerda militante, que
para se definirem como subversivos e revolucionários não
era suficiente um cartão no bolso ou a participação activa em
greves e manifestações, era também necessário agir e responder, golpe a golpe, aos prevaricadores também com acções
individuais que, na visão novatoriana, eram infinitamente melhores do que a espera dos políticos e a indiferença das massas.
Infelizmente, também este poemeto, publicado num período funesto para os escritos dissidentes, cairá no esquecimento, excepto quando foi resgatado no pós-guerra por alguns
anarquistas sicilianos que procederam à sua reimpressão e
difusão parcial.
Naqueles dias, os esquadrões fascistas do Norte da Itália organizavam-se e interligavam-se entre si: aumentavam os episódios intimidatórios, os espancamentos e as visitas nocturnas a
casa de outrém, durante as quais frequentemente se escapava
à morte.
Podemos imaginar que nalgum momento, entre os últimos
meses de 1921 e os primeiros de 1922, Abele Ferrari fez a si
mesmo a pergunta fatal que afectou a sua própria existência.
Tinha por diante dois caminhos: mudar de pele, abandonar
as convicções de uma vida inteira, mandar às urtigas os livros
e as palavras amadas, rasgar a roupa e vestir um uniforme.
Aquele negro13.
Ou atirar a pistola, a caneta e a tinta fora, pegar na mala e na
família e fugir para França, como muitos outros companheiros
fizeram. Fugir não por medo, mas para sobreviver ao monstro
que se erguia, para fugir à guerra, para ter ainda a ocasião de
ferir os tiranos com duras palavras críticas, para poder ainda
organizar a revolta.
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
Novatore não escolheu nada, ou pelo menos nenhum desses caminhos. Apesar de algumas partes da sua filosofia terem
pontos de contacto com a ideologia fascista (mais na forma de
expressão do que no conteúdo real), Novatore escolheu mais
uma vez a coerência: decidiu continuar pela sua senda, prosseguindo de cabeça erguida, precipitando-se no furacão iminente com o sorriso irónico dos grandes de espírito estampado
no rosto, não fazendo caso de todos aqueles que observavam
estupefactos a fanfarronice dos esquadrões em prejuízo dos
trabalhadores e dos camponeses.
Na noite de 5 de Junho de 1922, alguns camiões carregados
de imbecis partiram em direcção de Fresonara, a zona de Arcola onde viva Novatore. Algumas crónicas falam de fascistas
controlados por um qualquer patrão local, outras, por sua vez,
referem-se a regimentos policiais bem organizados.
O grupo desceu dos veículos com as piores intenções e
começou a fazer barulho. Os imbecis empunhavam bastões,
barras de ferro e, quiçá, algumas espingardas. Começaram a
bater à porta da casa de Abele Rizieri Ferrari. A intenção (ou
ordem) era confiscar os poucos bens e as cartas subversivas em
posse do anarquista, mas sobretudo assustá-lo, assustar a sua
família, fazê-lo entender que na ordem futura não haveria lugar
para aqueles como ele.
De repente, ouve-se a resposta de Novatore, mas não a de uma
voz humana: alguns tiros de pistola desde cima. Os agressores
puseram-se em alerta, aumentando o ímpeto na tentativa de
derrubar a porta. Não sabemos bem o que aconteceu, mas é
certo que pelo menos uma granada de mão de modelo S.I.P.E.14
voou desde a janela, explodiu e criou uma perfeita manobra de
diversão para Novatore, que se escapou rapidamente, perdendo-se pelos campos circundantes.
Foi a última vez que a família o viu, como recordará o filho
Renzo Ferrari depois da guerra.
Novatore, fugitivo e procurado, incompreendido e avilanado,
compreende que a sociedade o tinha definitivamente renegado, tal como ele, de resto, tinha desde há tempo renegado
a sociedade. Em caso de captura, já não poderia esperar uma
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
sentença branda e condicional.
Nenhuma causa comum ou revolucionária o tinha atraído em
tempo algum e, de facto, não se juntou às heterogéneas formações dos Arditi del Popolo15 que enfrentaram os fascistas e que,
em Agosto de 1922 em Parma, conseguiram também repelir os
ataques e a opressão.
Até hoje permanece uma dúvida, tão amarga como inútil: que
teria acontecido se o gesto de Novatore, em resposta à agressão
policialesca-fascista, tivesse sido imitado por centenas de pessoas na Liguria, Toscânia e em Emilia? Se outras pessoas tivessem respondido à força com a força naqueles primeiros sinais
de ditadura?
Em Junho daquele ano, Novatore, vagabundo entre os Apeninos e o baixo Piemonte, juntou-se de forma ainda misteriosa
ao grupo de Sante Pollastro16, ladrão famoso de Novi Ligure
de inspiração anarquista, que naquela altura era procurado
pela polícia.
Desde então as notícias tornam-se escassíssimas. Nenhuma
localização pela polícia, nenhum contacto com a família, nenhum artigo enviado a nenhuma revista.
Uma reconstrução, feita com partes de testemunhos escritos
e orais, permitiu dar um pouco de luz sobre aqueles acontecimentos e traçar uma breve linha para seguir os movimentos de
Novatore naqueles que eram já os seus últimos meses de vida.
A 14 de Julho de 1922 (trinta e nove dias após o assalto policialesco-fascista à sua casa), Renzo Novatore, Sante Pollastro e
outros dois membros do grupo preparam uma emboscada perto de Tortona ao contabilista Achille Casalegno, caixa local do
Banco Agrícola Italiano, que caminhava com uma bolsa cheia
de dinheiro.
Durante a luta que se seguiu à tentativa de assalto, Novatore
disparou um tiro com a sua arma ferindo mortalmente o contabilista Casalegno. Os assaltantes conseguiram depois escapar
com o despojo.
Esta versão dos factos é aceite com o benefício da dúvida,
porque baseia-se em declarações do próprio Pollastro em 1931
no tribunal, não sendo de excluir a possibilidade de que o ban-
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dido piemontês, perante os juízes, tenha atribuído o homicídio
ao já defunto Novatore para assim defender um cúmplice que
ainda se encontrava vivo.
Voltando a 1922, por outro lado, descobrimos que no início
de Outubro, Novatore passou alguns dias numa localização
desconhecida (possivelmente entre a Liguria e o Piemonte) em
companhia do amigo anarquista Erinne Vivani17.
Sabemos também que no período que vai de Junho a Novembro, Novatore compôs uma poesia intitulada “Balada Crepuscular – prelúdio sinfónico de DINAMITE”. Trata-se de uma
composição extremamente triste, de sabor amargo e carregada
de pressentimentos sombrios. O incansável instinto rebelde
aparece frustrado, não existe já traço daquele famoso sorriso
trocista que sempre levava nos lábios. Novatore concluiu essa
lírica dolorosa e pesada com uma referência à sua necessidade
de atacar (sem especificar como) e com estas palavras ameaçadoramente explícitas: “Sou uma estrela que se transforma num
pôr-do-sol trágico”. Todo este dramatismo emocionante leva-nos a situar, à falta de datas seguras, esta composição nos últimos dias de vida de Novatore.
Depois vêm as trevas até ao lúgubre dia de 29 de Novembro.
O triste epílogo teve lugar em Teglia, uma zona às portas de Génova. Entre o meio-dia e a uma, o primeiro-sargento Lupano (que
desde há tempo seguia o rasto do bandido Pollastro), juntamente
com os polícias Corbella e Marchetti, entraram vestidos à civil na
Osteria della Salute18, cheia de fregueses. Numa mesa estavam
sentados Sante Pollastro, vinte e três anos e procurado por roubo, e um indivíduo desconhecido. Enquanto os policias fingiam
procurar um lugar, preparando-se na verdade para a detenção,
Pollastro apercebe-se dos seus gestos suspeitos e agarra numa
pistola, tal como o seu companheiro. Provavelmente este último
abriu fogo repentinamente contra o primeiro-sargento que caiu
por terra, gravemente ferido. Lupano disparou à sua volta e morreu, enquanto os outros dois policias se atiravam aos bandidos:
na taberna ressoaram outros terríveis disparos. No chão ficou
o cadáver do amigo de Pollastro e o corpo ferido do agente Corbella. Na confusão, Sante Pollastro conseguiu partir uma janela e
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
saltar com grande agilidade para a rua, tendo desaparecido em
pouco tempo.
Este foi o balanço do confronto, que durou poucos instantes.
Primeiro-sargento Lupano: morto.
Polícia Corbella: gravemente ferido.
Polícia Marchetti: ileso.
Companheiro desconhecido de Pollastro: morto.
Bandido Sante Pollastro: ileso e em fuga.
Para além das condolências oficiais pelos agentes mortos e da
imponente, quanto inútil, caça ao homem organizada na região
para deter Pollastro, uma outra pergunta atraiu a atenção dos investigadores e dos jornalistas interessados no caso. A identidade
do misterioso bandido morto. Nos seus bolsos tinham sido encontradas, para além dos documentos impressos em nome de
um tal Giovanni Governato, uma pistola Browning, dois carregadores de reserva, uma granada de mão e um anel que num espaço
oculto continha uma dose letal de cianeto.
Quem era este tipo, bem preparado para matar e para se suicidar?
Enquanto os investigadores indagavam para dar uma identidade ao morto, no meio então clandestino dos anarquistas já
circulavam as mensagens que anunciavam de casa em casa, de
tugúrio em tugúrio, a morte em circunstâncias violentas de um
certo companheiro, um dos mais queridos aos amantes da acção
directa contra o sistema.
As investigações punham de parte Giovanni Governato (sim,
o pintor futurista co-fundador da revista Vertice) e só depois de
alguns dias deram um nome àquele cadáver possuidor de documentos falsos e perfurado pelas balas do Estado. Abele Rizieri
Ferrari, militante anarquista individualista, já possuidor de inúmeros problemas com a autoridade, que permanecia desaparecido e era procurado desde Junho do ano anterior.
Contudo, nos ambientes clandestinos dos anarquistas, a triste
notícia era já difusa: o grande companheiro Renzo Novatore, o
mais rebelde, o mais irredutível, tinha caído com a arma em punho depois de uma breve luta com alguns servidores do Estado.
Esclarecida a dúvida, a atenção por Novatore por parte dos
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jornalistas e dos polícias desapareceu, enquanto que nalgumas
publicações libertárias, entre as quais a L’Avvenire Anarchico e a
Il Proletario, diversos anarquistas e libertários escreviam comoventes e apaixonadas saudações e elogios a Abele Ferrari, conhecido por todos como Renzo Novatore: polemista, escritor, revolucionário, rebelde e bandido. Novatore morria no chão de uma
taberna anónima, longe dos clamores da batalha, longe dos amigos de luta, longe da mulher de alguma forma amada e dos filhos.
No fim daquele desesperante Novembro de 1922, formava-se
em Roma um governo maioritariamente fascista, com o paladino
Benito Mussolini nas vestes provisórias de Presidente do Conselho: era o início da ditadura.
De Novatore tudo será perdido, tudo será destruído, durante os
anos do regime fascista. E os companheiros que, dispersos pelo
mundo ou forçados a estar na sombra em Itália, podiam e queriam manter viva a memória, mas não conseguiram concluir a tarefa de reunir todos os escritos e esboços do rebelde de Arcola, para
assim poder transmitir esta breve e violenta história humana.
Hoje tenta-se novamente recolher, incansavelmente, material e
notícias sobre Renzo Novatore, para que a sua a história não caia
no esquecimento. Porque, para além do bem e do mal, Novatore,
juntamente com tudo o que representaram as suas palavras e as
suas acções, permanece ainda diante de nós com a arma em punho e com um sorriso na cara, preparado para nos dizer como se
pode ser ferozmente rebelde sem jamais perder a poesia da vida.
Arcola, La Spezia
Extraído de novatore.it
NOTAS
1. Giuseppe Mazzini (1805-1872) foi um revolucionário do Risorgimento italiano, patriota, político, filósofo e jornalista, cujas ideias e
acção política contribuíram de maneira decisiva para o nascimento
do Estado unitário italiano. A sua influência na primeira fase do
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
movimento operário foi muito importante, assim como sobre o fascismo, em particular a sua corrente republicana e socializante. O
pensamento económico Mazziniano inspirará o que ficará conhecido como Terceira Via, entre o modelo capitalista e marxista. Em
1928 afiliou-se à Carbonária, cujos membros tinham protagonizado
a insurreição fracassada de 1821; foi descoberto e preso em 1830.
Após esta experiência numa sociedade secreta, convenceu-se da
ineficácia da mesma e das suas conspirações esporádicas e decide
fundar um movimento de massas, realizando assim um incansável trabalho de propaganda entre as camadas mais jovens, das
quais esperava o ressurgimento da Itália sem contar com a ajuda
de potências estrangeiras. Depois do fracasso de outra tentativa de
organização de uma insurreição em 1832, Mazzini foi condenado à
morte e teve que fugir de Itália, instalando-se em Marselha e posteriormente em Londres a partir de 1837. Mudou-se para Milão
durante as revoluções de 1848, onde lutou pela libertação contra
os austríacos. A seguir colaborou no movimento insurreccional
lançado pelos seus partidários de Roma contra o Papa e foi um dos
triúnviros que governaram a conseguinte República Romana de
1849. Em 1853 fundou o Partito d’Azione (dissolvido em 1867), que
tinha como objectivos o sufrágio universal, a liberdade de imprensa
e de pensamento, e a responsabilização do governo perante o povo.
Em 1858 Napoleão III sobreviveu a um atentado levado a cabo por
Felice Orsini e Giovanni Andrea Pieri, e o governo de Turim culpou
Mazzini (Cavour definiu-o como “o chefe de uma horda de fanáticos
assassinos”), já que os dois perpetradores do atentado tinham militado no seu Partito d’Azione. A repressão que se impôs em toda a
Itália logo a seguir à experiência republicana romana levou muitos nacionalistas e liberais a confiar mais na opção moderada representada pelo Rei Víctor Manuel II e pelo seu ministro Cavour,
que viriam a alcançar finalmente a unificação do Reino de Itália
em 1860. Mazzini apoiou moralmente Garibaldi, considerando-o
uma válida oposição a Cavour. Jamais renunciou aos seus ideais Republicanos e acabou limitado à liderança de pequenos círculos da
oposição e a ser um símbolo de rigor moral, austeridade pessoal e
coerência ideológica. (N.T.)
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
2. Pasquale Binazzi (1873-1944) foi um agitador, publicista e propagandista anarquista extremamente importante na sua época. Foi
fundador da Camera del Lavoro de La Spezia em 1901 e do semanário Il Libertario em 1903, jornal de ampla difusão em toda a
península onde predominava o anti-militarismo, o anti-clericalismo,
a crítica ao reformismo socialista, ao capitalismo e ao giolittismo
(Giovanni Giolitti, foi primeiro-ministro italiano quase ininterruptamente entre 1903 e 1914). O semanário tinha uma tiragem de
10000 cópias até 1922, ano em que a sede do jornal foi devastada
pelos esquadrões fascistas. No rescaldo da queda do fascismo, a
morte surpreendeu o velho agitador de La Spezia quando se encontrava empenhado na reorganização dos grupos guerrilheiros
anarquistas na Liguria e na Toscânia. (N.T.)
3. A “Semana Vermelha” foi um movimento insurreccional que durou
de 7 a 14 de Julho de 1914 em Itália. Este movimento começou por
ser anti-militarista, reunindo sindicalistas, republicanos, socialistas
e anarquistas, que protestavam contra o colonialismo italiano na
Líbia e contra a “Campanha de Disciplina do Exército”, uma campanha de “reeducação”, leia-se repressão, que serviu para perseguir
soldados refractários e anti-militaristas, como foram os casos de
Augusto Masetti e Antonio Moroni. O movimento tem início a 7 de
Julho em Ancona, onde se reuniram militantes anti-militaristas das
várias correntes para uma grande “jornada anti-militarista”, tendo-se
convocado um comício onde discursou, entre outros, Errico Malatesta. O final do comício foi fatídico, tendo a polícia cercado os participantes e disparado sobres eles, acabando por matar os republicanos Nello Budini e Antonio Casaccia e o anarquista Attilio Giambrignoni. Ancona tornou-se então um bastião de revolta, tendo sido
ocupada por 7 dias. O movimento alastrou-se a outras cidades e a
9 de Julho foi proclamada a Greve Geral. Contudo, o secretariado
nacional da Confederazione Generale del Lavoro, que também tinha
aderido à greve, “ordenou” a cessação da mesma, e apesar dos apelos dos insurgentes à continuação da revolta, esta acabou por ter o
seu fim a 14 de Julho. (N.T.)
4. Gabriele D`Annunzio (1863-1938) foi um poeta, romancista, dra-
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
maturgo, jornalista e militar italiano. Fortemente influenciado por
Nietzsche e pelos ideais helénicos, a sua vasta obra literária está
coberta de mistificações que demonstram a sua visão do indivíduo
como criação artística, como ideal de Beleza e de superação de si,
carregada por um desprezo pelo vulgar e pela moral comum. No
seu pensamento está também fortemente incrustada a ideia de
identidade nacional, tendo sido um apologista do militarismo, que
o levou a participar efusivamente na Primeira Guerra Mundial ao
lado dos Aliados. Foi co-autor com Alceste de Ambris da Carta de
Carnaro, aquando da ocupação da cidade de Fiume (hoje Rijeka,
Croácia) em 1919, a constituição corporativista da Regência Italiana
de Carnarno, que se diz ter tido uma grande influência no aparecimento do Fascismo italiano. Também lhe é atribuída a criação ritualista da identidade fascista durante a sua regência, que foi posteriormente adoptada por Mussolini. Apesar disso, rejeitou colaborar
com o “Duce”, chegando a escrever a este para que não assinasse o
Pacto do Eixo com Hitler. Gabriele D`Annunzio foi, assim, um dos
intelectuais italianos mais influentes da sua época. (N.T.)
5. Tintino Persio Rasi (1893-1963), mais conhecido como Auro
D`Arcola, foi um anarquista e poeta italiano ligado à corrente futurista. Filho do anarquista Marino Manici e de Maria Manici,
desde cedo se relaciona com os ambientes subversivos anarquistas, tornando-se um companheiro bastante próximo de Abele
Rizieri Ferrari e de Dante Carnesecchi, colaborando também no
Il Libertario de Pasquale Binazzi. Em 1917 é obrigado a sair da sua
terra natal por questões políticas, acabando por migrar para a ilha
da Sardenha com a sua companheira Ave Fossati, onde exerceu a
profissão de jornalista no diário Il Risveglio dell`Isola. Nesse mesmo
ano é recrutado para o exército, mas recusa-se a combater na guerra
e é transferido para o batalhão estacionado na ilha de Asinara.
Assim que a guerra termina, volta novamente a La Spezia. Aí participa activamente no chamado Biennio Rosso, os dois anos de 1919
e 1920 que abalaram a Itália, com ocupações de fábricas, greves e
uma revolta geral. Em 1921 publica, em conjunto com Abele Ferrari
e Giovanni Governato, a revista anarco-futurista Vertice, mas devido
a um mandato de captura emitido em seu nome foge para os Esta-
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
dos Unidos, regressando um ano depois a Itália após o mandato de
captura ter sido revogado. Em 1923, com a subida de Mussolini ao
poder, vai para França. Em Paris participa na edição do semanário
de língua italiana La Rivendicazione entre 1923 e 1925, ao mesmo
tempo em que colabora na resistência anti-fascista no exílio. Em
1925 participa também na publicação das revistas de língua italiana La Tempra e La rivista internazionale anarchica, para além de
escrever o prefácio para a obra póstuma de Abele Rizieri Ferrari, Al
disopra dell`Arco: arte libera di uno spirito libero (publicado nesta
antologia com o título de Por cima do Arco: arte livre de um espírito
livre). Ainda no ano de 1925 trabalha na tipografia La Fraternelle de
Sébastien Faure e edita, conjuntamente com R. Goutière o jornal de
língua italiana La Quale, dinamico ufficioso degli ignoranti. Em 1929
é director do jornal de língua italiana Il Monito, mas acaba por ser
detido e expulso de França, errando posteriormente por diversos
países até que se estabelece definitivamente nos Estados Unidos,
continuando aí a sua prolífica actividade libertária. Morre em Filadélfia a 8 de Julho de 1963 com 69 anos de idade. (N.T.)
6. Dante Carnesecchi (1892-1921) foi um anarquista individualista
italiano ligado à corrente futurista, tal como Abele Rizieri Ferrari.
Este diz-nos que era “uma das mais belas figuras do individualismo
anarquista”, tendo sido ajudado por Dante em 1919 quando foi condenado à morte por deserção ao escondê-lo numa das propriedades
que tinha em Vezzano Ligure. De 11 a 13 de Junho de 1919 dão-se
diversos tumultos em La Spezia, em que Dante Carnesecchi tem um
papel de relevo, e que culminam com a morte de um polícia depois
do comício de Santo Stefano Magra, que terminou com disparos de
revolver. Dante é acusado de homicídio e foge, acabando por ser
absolvido em Janeiro de 1920. A 4 de Junho participa numa tentativa de assalto a um paiol que acabou frustrada. Foge novamente,
não deixando de participar activamente na vaga de ocupações de
fábricas que se deu em Itália de 1919 a 1920. Acaba por ser detido a
28 de Setembro de 1920, sendo posteriormente libertado em Março
de 1921. Nessa altura os atentados contra a autoridade sucediam-se
a um ritmo frenético na região de La Spezia, e Dante estava na mira
da polícia. A 27 de Março de 1921, quando saia da sua casa com o
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
seu tio e um amigo, é capturado pela polícia que, trajando à civil
e cantando canções revolucionárias, os mandaram parar, espancaram-nos e, depois de Dante ter tentado fugir, dispararam tiros de
revólver e espingarda, assassinando-o. (N.T.)
7. Camillo Berneri (1897-1937) foi um anarquista italiano anti-dogmático, revisionista das próprias tendências anarquistas de então,
tendo polemizado com anarquistas de tendência individualista,
como é o caso de Abele Ferrari, assim como com anarquistas de vertentes mais colectivistas ou comunistas. Nesse sentido, fugia muitas
das vezes aos próprios cânones anarquistas, como ficou denotado
na sua crítica ao abstencionismo, ao ponto de chamar cretinos aos
anarquistas com “fobia pelo voto”. Por influência materna, começa
desde cedo a participar no movimento de juventude socialista, mas
os conflitos com o Partido Socialista, muito devido ao seu posicionamento na Primeira Guerra Mundial, levam-no de encontro às ideias
anarquistas. Recrutado em 1917 para combater na guerra, torna-se
desde logo um agente perturbador entre os militares, facto que o
leva à prisão em Pianosa em 1918. Depois de a guerra terminar, Berneri inicia a sua participação em periódicos como o Umanità Nova,
Pensiero e Volontà, La Rivolta, L`avvenire anarchico ou o Volontà,
onde ficará exposto o seu pensamento anarquista. Com o surgimento do fascismo é obrigado ao exílio, tendo passado pela Suiça,
Alemanha, Bélgica, Luxemburgo e Holanda. Mas é em Espanha que
sua vida terá um final trágico com o advento da Guerra Civil, sendo
assassinado, em conjunto com o anarquista Francesco Barbieri, a
5 de Maio de 1937 em Barcelona, presumivelmente por agentes da
Tcheka (futura KGB), depois dos confrontos entre as forças anarquistas e comunistas que tiveram lugar naquela cidade. (N.T.)
8. Ver o texto “Chicotada”, publicado a 20 de Fevereiro de 1921 na
Iconoclasta!. (N.T.)
9. Referência ao Industrial Workers of the World, sindicato que
nasceu em Chicago a 24 de Junho de 1905, numa convenção que
uniu socialistas, anarquistas e sindicalistas revolucionários de todos
os Estados Unidos, no sentido de se oporem à Federação Americana
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
do Trabalho. No seu auge em 1923, terá tido cerca de 100.000 membros, havendo uma grande participação por parte de um grande
espectro de trabalhadores radicais, entre os quais muito imigrantes que iam chegando aos EUA em grandes levas. O autor refere-se
aqui ao período de maior repressão durante os anos vinte, com o
denominado red scare, devido ao fantasma da revolução que pairou sobre os países industrializados após a revolução russa. O IWW
acabou por ir perdendo o seu peso, não só devido à repressão por
parte do governo, como também devido às várias cisões que se deram no seu interior, tendo o Partido Comunista uma grande parte
da responsabilidade ao tentar assumir o controlo do mesmo. Hoje
em dia o IWW continua a existir, na sombra do peso que outrora
teve, e encontra-se disseminado principalmente pelos países anglo-saxónicos. (N.T.)
10.Antonio Gramsci (1891-1937) foi uma das maiores figuras do
marxismo italiano, no âmbito do pensamento e da acção. Proveniente de uma família com parcos meios financeiros, conseguiu,
ainda assim, por mérito próprio, obter uma bolsa para estudar na
Universidade de Turim. Foi nessa cidade que começou a ter contacto com os problemas dos trabalhadores, devido ao facto de Turim
ser uma das cidades mais industrializadas de Itália, e a frequentar
ambientes subversivos. Foi então que se filiou primeiramente ao
Partido Socialista Italiano e, mais tarde, ao recentemente fundado
Partido Comunista Italiano, fruto de uma cisão do PSI. Gramsci tomou desde logo grande relevo dentro do partido, chegando a ser
eleito deputado pela região de Veneto em 1924. Com o advento do
fascismo, tentou também criar uma frente unida de partidos contra
o fascismo, com o PCI a aparecer como partido hegemónico dentro
dessa união, o que levou a diversas críticas dentro e fora do partido.
Gramsci acabou por ser preso a 8 de Novembro de 1926 na prisão de
Regina Coeli. As suas condições de saúde deterioraram-se ao longo
do tempo que esteve encerrado, acabando por falecer em 1937, três
anos depois de ter sido libertado. (N.T.)
11.Errico Malatesta, comentando a ocupação de fábricas na qual
estiveram implicados uns 600.000 trabalhadores, afirmou profeti-
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
camente “se não a levamos até ao fim, pagaremos com lágrimas de
sangue o terror que hoje infligimos à burguesia.” (N.T.)
12. Giovanni Governato (1889-1951), também conhecido pelo
pseudónimo Cromatico, foi um pintor e escultor anarco-futurista
italiano. Esteve ligado desde cedo ao círculo anarco-futurista de La
Spezia, tendo colaborado graficamente com diversos periódicos
anarquistas, entre as quais o Iconoclasta!, o Il Proletario, o Anarchismo, o Il Vespro anarchico e o Il Libertario. Publicou conjuntamente
com Abele Ferrari e Tintino Rasi a revista Vertice em 1921. Foi-lhe
movido um processo judicial depois da morte de Abele Rizieri
Ferrari por ter supostamente ajudado o então falecido anarquista,
vindo mais tarde a ser ilibado. Depois disso abandonou a actividade
política, sobrevivendo com dificuldade através da venda das suas
pinturas. Morreu em Génova com 62 anos de idade. (N.T.)
13.Referência aos “camisas negras”, ou Milícia Voluntária para a
Segurança Nacional. Os camicie nere eram um grupo paramilitar
organizado por Benito Mussolini com o intuito de espalhar o terror sobre os opositores da ideologia fascista, tendo um papel fundamental na ascensão de Mussolini ao poder. (N.T.)
14. Sigla que significa Società Italiana di Prodotti Esplodenti, a fabricante da granada de mão supostamente utilizada por Abele Rizieri
Ferrari. (N.T.)
15. Os Arditi del Popolo foram uma milícia popular antifascista formada em Junho de 1921, composta por militantes de diversas tendências de esquerda: anarco-sindicalistas, socialistas de esquerda,
comunistas e republicanos. O seu principal objectivo era a criação
de grupos armados para fazer frente aos esquadrões de acção fascistas. Ainda que politicamente plural, esta era uma organização
da classe trabalhadora, alistando-se nela trabalhadores de fábricas, do campo, dos caminhos-de-ferro, dos estaleiros, dos portos,
e também dos transportes públicos. Alguns grupos de classe média
também se implicaram, estudantes, trabalhadores de escritórios
e de outras profissões liberais. Os Arditi del Popolo tinham uma or-
34
NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
ganização que seguia linhas basicamente militares, mas as acções
eram geralmente determinadas pelos grupos predominantes nas
diversas localidades, ainda que a maioria das secções tivessem uma
autonomia virtual sobre as suas próprias acções. Estas secções
instalaram-se rapidamente por todo o país, como algo novo ou
como parte de grupos já existentes, como os do PCI, os paramilitares de Trieste “Arditi Rossi”, os Filhos de Ninguém (Figli di Nessuno)
em Génova e Vercelli, ou a Liga Proletária (vinculada ao PSI). Depois
da ocupação de fábricas no norte em Setembro de 1920, a opção
do PSI e da CGL, em vez de estender a luta das fábricas às comunidades, foi colaborar com o Estado para devolver os trabalhadores ao
trabalho. A partir desse momento o Estado passou à ofensiva e os
esquadrões de “acção revolucionária” de Mussolini conseguiram
bastantes armas para tomar as ruas. Apesar destes desfrutarem de
uma situação bastante favorável no início de 1921 (ataque à câmara
de Bolonha, “expedições punitivas” contra as aldeias “vermelhas”
no campo, destruição de cooperativas e de jornais de esquerda em
Trieste, Modena e Florença), a partir de Março começaram a haver
crescentes sinais de preparação de estruturas de defesa da classe
operária. Em Livorno, os habitantes de um bairro operário (Borgo di
Cappucini) expulsaram os fascistas após um ataque destes últimos.
Em Abril, quando os fascistas lançaram um assalto a uma associação
sindical (Camera del Lavoro), os trabalhadores organizaram uma
greve e rodearam o grupo fascista, apenas salvo pela intervenção do
exército. Os Arditi del Popolo apareciam já em Julho. A sua primeira
acção foi em Piombino, a 19 de Julho de 1921, quando atacaram um
ponto de encontro fascista, cercando-os. Renderam-se após a intervenção da Guarda Real, mas tomaram as ruas por alguns dias até
que uma grande força policial forçou a sua retirada. Em Sarzana,
apoiaram a população local que tinha capturado um dos mais importantes líderes fascistas, Renato Ticci. Quando um esquadrão de
500 fascistas tentou resgatar Ticci, tiveram que enfrentar-se com os
Arditi del Popolo que os obrigaram a retirar-se, provocando a morte
de 20 ou mais fascistas. A traição do PSI – naquela altura, mais interessado em assinar um pacto de não agressão com os fascistas – e
da CGL, que obrigaram os seus membros a retirarem-se dos AdP, e
a formação de esquadrões puramente de “consciência de classe” do
35
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
PCI (como disse Gramsci, “a táctica… correspondia à necessidade de
evitar que os afiliados do partido fossem controlados por uns líderes
que não eram do partido”), reduziram os AdP a um grupo exclusivamente formado por anarquistas, apoiados pelos anarco-sindicalistas da Unione Sindicale Italiana e pela Unione Anarchica Italiana,
contando apenas com uns 6000 membros. Mesmo sofrendo este
desmantelamento, nos primeiros meses de 1922, algumas secções
ainda protagonizaram vários episódios de resistência contra os fascistas. Em Agosto, uns 350 Arditi, com um massivo apoio popular,
defenderam com sucesso a cidade de Parma contra cerca de 20000
fascistas. A partir deste episódio, e com a cumplicidade das forças
do estado, os fascistas prenderam e assassinaram muitos membros
do movimento antifascista. Em Outubro, Mussolini triunfava com
a Marcha sobre Roma e o movimento antifascista seria completamente desmantelado em 1924. Muitos daqueles que participaram
nos AdP, uniram-se posteriormente às Brigadas Internacionais da
Guerra Civil de Espanha, tendo alguns voltado a usar o nome em
grupos da Resistência na Segunda Guerra Mundial. (N.T.)
16. Sante Pollastro (1899-1979) foi um anarquista ilegalista que esteve
fatalmente ligado à vida de Abele Rizieri Ferrari. Foi ao lado deste
que Ferrari disputou o seu último duelo com as forças de ordem
numa taberna em Teglia a 29 de Novembro de 1922. Nessa disputa,
Abele Rizieri Ferrari acabou por sucumbir, tendo Sante Pollastro
conseguido escapar. Sante Pollastro chegou a ser considerado o
“inimigo número um” em Itália devido ao seu repúdio visceral por
toda a autoridade, sendo acusado de ter morto vários agentes da
ordem. Acabou por ser detido em Paris em 1927, levado para Itália e
condenado ao ergastolo, vindo a ser amnistiado em 1959 pelo presidente Giovanni Gronchi. (N.T.)
17. Pouco se sabe sobre a identidade de Erinne Vivani, não passando
este nome de um pseudónimo de um anarquista individualista que
partilhou os escritos com Abele Rizieri Ferrari nas páginas de jornais
como o Il Proletario. (N.T.)
18. Em português, Taberna da Saúde. (N.T.)
36
UM ELOGIO AO REBELDE
Um elogio ao
rebelde
O tipo do criminoso é o tipo do homem forte colocado em
condições desfavoráveis, um homem forte posto enfermo. O que
lhe falta é a selva virgem, uma natureza e uma forma de existir
mais livres e perigosas, nas quais seja legítimo tudo o que no
instinto do homem forte é arma de ataque e de defesa. As suas
virtudes foram proscritas pela sociedade: os seus instintos mais
enérgicos, que lhe são inatos, misturam-se imediatamente com
os efeitos depressivos, com a suspeita, o medo, a desonra. Mas
esta é quase a fórmula da degeneração fisiológica. Quem tem de
fazer às escondidas, com uma tensão, uma previsão, uma angústia prolongadas, aquilo que melhor pode fazer, torna-se forçosamente anémico; e como a única colheita que obtém dos seus
instintos é sempre perigo, perseguição, calamidades, também o
seu sentimento se vira contra esses instintos – sente-os como uma
fatalidade. É assim na nossa sociedade, na nossa domesticada,
medíocre, castrada sociedade onde um homem vindo da natureza, chegado das montanhas ou das aventuras do mar degenera
necessariamente em criminoso.
Friedrich Nietzsche, O Crepúsculo dos Ídolos
O proscrito, o marginal, o criminoso, o anarquista, adjectivos
que não tendo o mesmo significado se podem muitas vezes conjugar na vida de um indivíduo como retalhos da sua história. O
rebelde é, muitas das vezes, visto como uma figura monstruosa,
desenquadrada da realidade existente, que é jogada para o lado,
37
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
repudiada, apartada do corpo social para que possa ser olvidada. A sua marginalidade advém de uma não conformação, uma
impossibilidade de ser arrebanhado pela massa que compõe o
mundo civilizado. E se alguma vez ele se atreve a entrar nesse
campo do social, conformando-se, logo sente o mal-estar que
este lhe causa, principalmente porque é um inadaptado, um indivíduo pleno e único.
Nietzsche nunca conheceu Abele Rizieri Ferrari, mas poderia
ter-se baseado nele quando definiu o “tipo do criminoso”. Ou
talvez tenha sido precisamente a definição que Nietzsche dá do
indivíduo desajustado que tenha ajudado a traçar a linha pela
qual o poeta anarquista, conhecido como Renzo Novatore, decidiu viver a sua vida. Uma vida plena de um indivíduo pleno.
Uma vida trágica de um indivíduo trágico. A própria tragédia
de Abele Rizieri Ferrari poderá ter sido tramada pelo fatum das
palavras iconoclastas e corrosivas dos cantores do indivíduo
livre, destruidor de fantasmas e deicida. A influência que as
palavras poderosas de Nietzsche e Stirner tiveram no sentir do
anarquista são notáveis e encontra-se espelhada na magnífica
prosa demolidora de Abele Rizieri Ferrari, assim como nos factos conhecidos da sua vida.
Abele Rizieri Ferrari foi um poeta trágico, e o seu caminho fez-se através de escarpas demasiado íngremes para que qualquer
um as pudesse escalar. O seu objectivo foi sempre a sublime
visão dos cumes, o olhar da águia que lá do alto observa com
argúcia a sua presa. É nas alturas que, como Zarathustra, o
poeta se isola e se individualiza das formigas que lá por baixo
se movimentam num frenesim tresloucado. E aí ele prepara o
seu ataque, respirando o ar limpo e puro dos cumes, longe da
civilização pestilenta e nauseabunda. O ataque feroz contra a
sociedade putrefacta, a que, nas palavras de Nietzsche, o põe
enfermo. E encontra a sua convalescença na destruição dessa
sociedade da gente baixa, pobre de espírito e sem nobreza. Por
isso ataca fulgurantemente, lá desde o alto das montanhas banhadas pelo sol, com as suas garras afiadas, num tudo ou nada
cheio de coragem e ardor. E a moral mesquinha da arraia-miúda não consegue conceber que esse ataque provém de uma
38
UM ELOGIO AO REBELDE
necessidade vital de expurgação de um espírito corrompido
pelas suas normas e costumes, defendendo-se com a sua mesquinhez e os seus adjectivos pejorativos: “criminoso”, “marginal”, “anarquista”, “terrorista”.
Para aquele que decidiu viver a vida para si e por si, para o individualista, nada é mais exasperante do que o burburinho da
multidão que em uníssono aponta o dedo, atitude mentecapta
dessa moral de rebanho dos indiferenciados. Onde a solidão
cessa, começa a praça pública; e onde começa a praça pública,
começa também o alarido dos grandes actores e o zumbido das
moscas venenosas. Veneno moralista que é cuspido e que contagia todas essas cabeças amorfas, que, como marionetas, se
deixam manipular pela opinião pública. “Criminoso”, “marginal”,
“anarquista”, “terrorista”, repetidos vezes sem conta até à
exaustão, em tom monocórdico, logo penetram nas mentes
mecanizadas da massa que interioriza as palavras dos fazedores de opinião e as assume como verdade. Torpe deturpação! E nada é mais perigoso do que ter o dedo apontado pela
massa furiosa disposta a linchar por uma verdade. É então que
o individualista, o rebelde, decide seguir o conselho de Zarathustra: Foge, meu amigo, para a tua solidão, lá para onde sopra
um ar áspero e forte. O teu destino não é ser enxota-moscas. E
novamente repudiado, volta a subir aos cumes. Mas rejeitando
tornar-se um anacoreta, rechaçando qualquer tipo de ascetismo e de conformismo, ele prepara uma nova descida, um novo
ataque sem escrúpulos contra todo o tipo de moral, contra os
fantasmas libertados pelo corpo social.
E é na solidão das montanhas de Reggio Emilia que Abele Rizieri Ferrari escreve o seu Poema do Mal, perseguido pela plebe
ávida de sangue, condenado à morte por simplesmente se ter
negado a seguir o caminho traçado à juventude da sua época;
caminhar pelas trincheiras lamacentas, empapadas de sangue
e tripas, dos campos de morte da grande guerra, empunhando
a bandeira do seu país na mão esquerda e o fuzil na direita1.
Morrer para quê, se a vida era bela? Se tudo ao meu redor me
sorria?
Nessas poucas palavras se resume a paixão pela vida que este
39
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
poeta apátrida, cantor do seu ego e da sua vontade, sente, num
pulular de sentimentos extremos, tão extremos quanto foi a sua
vida. Ao recordar o seu amigo Bruno Filippi, imolado pelo fogo
da sua paixão2, ele descreve-se também a si mesmo, poeta que
arreigado aos abismos da dor procura elevar-se até ao infinito do Nada. Desejos de carnes jovens ávidas de prazer, grito do
espírito desejoso de uma liberdade sem limites, de loucos voos
da alma através do inexplorado e longínquo Desconhecido; de
uivos e de ferozes blasfémias do nosso pensamento galopante e
vagabundo, golpeando os muros mais misteriosos da eternidade
com cantos triunfais e dionisíacos de uma Vida vislumbrada
através do delírio de um sonho: de um sonho composto de um
Tudo, disperso e vagueando num Nada. E no Nada espera-nos a
Morte. Apenas a dor nos abre janelas para o Belo, apenas a dor
está prenhe de Arte, e apenas o seu parto doloroso é possível de
gerar o poema do poeta ou o crime do rebelde. Duas das mais
altas manifestações do sentimento agudo de estar vivo. E Abele
Rizieri Ferrari tinha esse conhecimento profundo da vida: não
se pode ser águia se não se é mergulhador. Não se pode pairar
sobre os cumes quando se é incapaz de ir até às profundezas.
Também por isso o rebelde se insurge contra a Morte inevitável, desafiando-a até ao limite. A sua sede de vida é insaciável,
e para a atenuar nas nascentes mais puras e cristalinas, onde
poucos homens ousam beber, ele arrisca tudo, pois só assim
consegue saborear os prazenteiros e suculentos frutos da ventura que crescem nas margens das torrentes mais bravias. Só
dessa forma ele pode roubar à morte mais e mais vida, até que
esta o ceife irreversivelmente. Assim foi o percurso de muitos
rebeldes que jogaram a vida para a frente, sem medo que a
morte estivesse à espreita, rebeldes a quem Abele Rizieri Ferrari
prestou homenagem através das palavras e dos actos, até que a
morte um dia foi mais astuta que ele. E é essa a sua tragédia, o
destino traçado do Herói que tantas vezes enalteceu. O Herói da
Vida vai em direcção à Morte acompanhado pela marcha tragicamente triunfal da dinamite e a cabeça cingida por flores.
Mas nesse caminho ele vai-se deparando com os fantasmas
gerados pela cobardia e pela mesquinhez da sociedade. Eles
40
UM ELOGIO AO REBELDE
são o Estado, a Religião, Deus e o Diabo, a Lei, a Humanidade, a
Família e a Pátria, e tudo o mais que a mente humana consiga
imaginar para se deixar amarrar. Mas como pode o rebelde, que
não tem medo do fantasma da morte, quiçá a única assombração real, ter medo de tais ficções da idolatria humana? Ele que
não quer nem se deixa submeter a nenhuma vontade que não
a sua. Quando eles me viram avançar, com audácia, à conquista
da minha vida, armado com toda a minha força sem escrúpulos, puseram diante do meu olhar ávido todos os seus fantasmas
ridículos e insanos. E na peugada de Stirner, Abele Rizieri Ferrari aponta as suas armas, a caneta e a Browning, contra todos os
fantasmas com que a sociedade o tenta amedrontar, afirmando-se assassino de fantasmas.
É essa a maior obra do verdadeiro indivíduo, a construção
de si, sem se deixar iludir e subjugar pelos artifícios dos prestidigitadores sociais que conseguem fazer crer que tais coisas
como Deus, o Estado ou a Pátria existem realmente, e não são
meras construções ou ilusões da mente humana. O indivíduo
que se constrói a si próprio, apesar de todo o determinismo
social a que está sujeito, vai pondo sempre em questão todos
os fundamentos da sua construção para assim se solidificar à
medida que se vai edificando. É algo que oferece a si próprio.
E é nesse sentido que ele se distingue da massa e se individualiza; ele tem uma opinião própria e actua em conformidade
com o seu pensamento.
O seu pensamento é único, pois a sua unicidade é a única propriedade do indivíduo que jamais poderá ser alienada. E é por
isso que qualquer teoria social radical, qualquer ideologia, por
mais apelativa e revolucionária que possa parecer, mesmo que
enfeitada com uma série de visões fantásticas de um porvir de
paz, igualdade e fraternidade, são rechaçadas pelo Único, senhor de si mesmo e da sua vontade. Ele não se deixa tentar pelo
fantasma do socialismo, seja ele utópico ou científico, libertário ou marxista. A sua individualidade está acima de qualquer
ideal, por isso não se subjuga a qualquer visão utópica de uma
sociedade livre e igualitária. Sonho esse que se encontra num
além, sempre num além, como o sonho milenarista dos cris-
41
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
tãos, o reino dos céus de Cristo. E por ele jamais se sacrificará.
Não! Somente por si, somente para alimentar o seu ego ele luta,
nunca por uma visão abstracta de um ideal, mais um fantasma
a assombrar a cabeça de pobres lunáticos.
Abele Rizieri Ferrari desiludiu-se cedo na sua vida com essa
visão de um mundo harmónico sonhado pelos poetas românticos do anarquismo. Nas palavras de Georges Palante, ele tornou-se num pessimista social. A sociedade per se é opressiva
para o próprio indivíduo, seja qual for a sua forma e condição.
O anarquismo, enquanto forma de organização social, baseia-se num optimismo em relação ao desenvolvimento moral do
ser humano que uma visão realista da própria sociedade facilmente destrói. E essa visão idílica que o anarquismo oferece é,
para Abele Rizieri Ferrari, uma falácia. Para além da sua total
descrença na massa de gente em fúria, sempre à procura de novos senhores e ídolos, derrubando uns para entronar outros, e
em qualquer concepção de revolução social, que segue a rota
dos astros de retorno periódico ao mesmo ponto orbital, Abele
Rizieri Ferrari não acredita também na anarquia como forma
de realização social. A Anarquia é, para mim, um meio para
chegar à realização do indivíduo; não o contrário. Se assim fosse,
a Anarquia também seria um fantasma. Fantasma esse contra
o qual se revoltaria. A anarquia nunca poderia ser uma forma
a ser imposta socialmente, a sua cristalização tenderia para a
construção de uma sociedade conservadora na qual iria novamente surgir o rebelde numa tentativa de a destruir. A concepção da anarquia por parte de Abele Rizieri Ferrari é, assim,
uma concepção ética, sua única riqueza invulnerável.
Max Stirner sintetiza-o bem: A revolução exige a criação de
instituições, a revolta exige que o indivíduo se eleve ou se rebele.
E a ética anarquista de Abele Rizieri Ferrari incita-o à revolta
contra as formas sociais que o oprimem enquanto indivíduo.
Daí a sua rejeição da Anarquia como forma de organização social. Se os fracos sonham a Anarquia como fim social, os fortes
praticam a Anarquia como um meio de individuação. A anarquia como forma de relação entre indivíduos jamais poderá
ser imposta, pois seria um desvirtuamento completo da sua
42
UM ELOGIO AO REBELDE
ideia. Seria uma fraude intolerável para qualquer rebelde. Mas
a própria visão de um ideal de sociedade tende a partir do todo
para o individual, e ao idealizar o todo, abstracção da realidade,
este acaba por imperar sobre o indivíduo, que é uma realidade
concreta, esmagando-o. É o indivíduo que terá que se conformar aos novos costumes e à nova moral social. E muitos anarquistas e revolucionários não conseguem compreender que ao
idealizarem o porvir social estão, à partida, a magicar as suas
novas grilhetas. A deixarem-se amarrar por novos fantasmas.
Até hoje acreditaste que existem tiranos. Pois bem, enganas-te,
não existem senão escravos: onde ninguém obedece, ninguém
manda. Estas palavras de Anselme Bellegarrigue demonstram
uma inversão da visão que o individualista radical tem do campo social e das suas divisões hierárquicas. É a própria ideia da
servidão voluntária de Etienne la Boétie que se encontra bem
patente nestas palavras. Esta inversão de visão sublinha que
é a submissão que cria o tirano, não o contrário. O que todas
aquelas teorias sociais revolucionárias nos dizem é que destronando o tirano deixará de haver o escravo, sejam elas marxistas
ou libertárias. Mas se se destronar o tirano e a moral escrava
continuar a predominar, se a vontade individual não for insubordinante, logo novos fantasmas ocuparão o lugar dos antigos
fantasmas e novos tiranos se sentarão no trono dos antigos tiranos. Para que o tirano deixe de existir tem de se atacar primeiro
o escravo e a sua moral. E Abele Rizieri Ferrari ataca a ideia
de democracia, filha do cristianismo, como expoente máximo
dessa moral dos fracos, moral da renúncia de si. Com o triunfo
da civilização democrática é glorificado o espírito plebeu. Triunfo esse que se dá com os ideais da revolução francesa e com
a ideia dos direitos iguais do homem, renúncia de si enunciada
por Rosseau na sua ideia de contrato social e de bem comum.
O filósofo francês, pai dos ideais da revolução republicana, que
defende que o indivíduo deve alienar a sua liberdade individual
em prol de uma suposta liberdade colectiva, através de um contrato social que o proteja de qualquer ofensa por convenção,
chega ao absurdo de afirmar que quem quer que recuse a obedecer à vontade geral a isso será coagido por todo o corpo, ou seja,
43
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
será forçado a ser livre. Forçado pelos direitos impostos pelas
autoridades judiciais que, com a sua moral castradora, impõem
a ideia de bem e mal, os limites para a liberdade individual, e
jogam o rebelde para a marginalidade.
E é por isso que o rebelde jamais poderá ser assimilado, que
o verdadeiro indivíduo é inimigo da sociedade que o tenta aniquilar através da sua moral, das suas leis e da sua força bruta. E é
por isso que confronta toda a autoridade, especialmente aquela
que, munida de armas e de livros sagrados, se tenta impor pela
força e pela moral. Abele Rizieri Ferrari foi um inimigo da sociedade por amor à vida, à sua vida. Vida essa que queria potenciar
ao máximo, derrubando qualquer obstáculo que pudesse aparecer-lhe pelo caminho. O seu niilismo não se baseava numa
renúncia de si, tal qual o niilismo da própria moral cristã subliminada pelos ideais de igualdade da democracia e do socialismo, mas era um niilismo negador. Sou niilista apenas porque sei
que o niilismo significa negação! Simples negação de um espaço
social opressivo, numa constante antinomia entre o indivíduo
e a sociedade.
O legado literário que este rebelde de língua italiana nos
deixou é de extrema importância para a desmistificação das
tendências anarquistas predominantes, atacando-as no seu
cerne. Não querendo desdenhar a herança do pensamento de
anarquistas como Kropotkin, Bakunin ou Malatesta, que deram um contributo de extrema importância para um despertar
de uma consciência rebelde e emancipadora, a verdade é que
as tendências mais socialistas dentro do anarquismo tiveram
uma maior predominância precisamente por “prometerem”
um mundo ideal diferente da sociedade industrializada da exploração capitalista. Mas o anarquismo nunca poderá ser um
Estado, ou seja, uma situação que se procura perpetuar através
de pactos sociais e normas punitivas. Não pode ser uma construção social rígida modelada por autoridades filosóficas e morais. A anarquia, como o seu prefixo indica, é negação, e como
negação parte sempre do indivíduo para o todo, nunca o contrário. A anarquia não pode ser pensada socialmente, para isso
existem outros substantivos que servem para definir estados
44
UM ELOGIO AO REBELDE
de igualdade política entre os homens. A anarquia é antes um
estado de consciência individual, uma atitude de constante
exame e negação, sempre em conflito com os fantasmas gerados pelo corpo social. É esse o legado que Abele Rizieri Ferrari
nos deixou. A Anarquia é o íntimo mistério animador dos solitários incompreendidos, fortes porque se encontram sós, nobres
porque têm a coragem da solidão e do amor, aristocratas porque
desprezam a vulgaridade, heróicos porque estão contra todos.
As suas diatribes permaneceram na obscuridade de uma
modernidade já de si também obscura. Mas Abele Rizieri Ferrari
ansiava pelo sol, pela luz, pelo Grande Meio-Dia nietzschiano.
E as suas palavras corrosivas, como todos os seus recursos estilísticos e as suas invectivas, são capazes de incendiar os corações dos seres mais frígidos. Abele Rizieri Ferrari não era um
racionalista, tudo aquilo que escreveu é puro sentimento, é
pura paixão, é puro ódio e puro amor. As suas palavras brotam
como flores silvestres que crescem em direcção ao sol, soltando fragrâncias pecaminosas e exaltantes com aroma a transgressão. E libertando-se dessa escuridão onde permaneceram
durante anos, crescendo em solo fértil banhado pelo sol, essas
palavras incendiárias crepitam mais uma vez intensamente
com escárnio e desprezo, motejando e menosprezando a sociedade filha da moral cristã. Tomando as palavras do poeta
José de Almada Negreiros, o ódio e o riso escarninho do rebelde
anarquista continuará a ressoar pela posteridade, invectivando
contra a Humanidade...
Hei-de, entretanto, gastar a garganta
a insultar-te, ó besta!
Textos Subterrâneos
NOTAS
1. O autor afirma n`O Poema do Mal (que se encontra inserido nesta
antologia dentro do conjunto de textos que compõem Por cima
45
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
do Arco: Arte livre de um espírito livre), em nota de rodapé, que foi
ditada uma sentença de morte contra ele a 21 de Outubro de 1918
pelo Tribunal Militar de La Spezia por deserção. (N.A.)
2. Bruno Filippi (1900-1919), foi um anarquista individualista italiano que colaborou com Abele Rizieri Ferrari nas páginas do jornal
Iconoclasta!. Morreu com apenas de 19 anos de idade, quando a
bomba que transportava, e que estava destinada a um encontro do
“clube dos nobres” em Milão, explodiu. (N.A.)
46
PARA O NADA CRIADOR
Para o nada criador
I
A nossa época é de decadência. A civilização burguesa-cristãplebeia chegou há muito tempo a um beco sem saída da sua
evolução...
Chegou a democracia!
Mas sob o falso esplendor da civilização democrática, os mais
altos valores espirituais caíram em pedaços.
A força de vontade, a individualidade bárbara, a arte livre, o
heroísmo, o génio, a poesia, foram escarnecidas, ridicularizadas, caluniadas.
E não em nome do “eu”, mas da “colectividade”. Não em nome
do “único”, mas da “sociedade”.
Assim, o cristianismo – condenando a força primitiva e selvagem do instinto virgem – mata o “conceito” vigorosamente
pagão do prazer terreno. A democracia – sua filha – glorificou-o,
fazendo a apologia deste crime e celebrando a sua grandeza
sombria e vulgar...
Já o sabemos!
O cristianismo foi a lâmina envenenada, brutalmente cravada
na carne saudável e palpitante de toda a humanidade; foi uma
onda fria de trevas impelida com uma fúria misticamente brutal para ofuscar a alegria serena e festiva do espírito dionisíaco
dos nossos antepassados pagãos.
Numa tarde fria de Inverno que fatalmente se abateu sobre
um quente meio-dia de Verão! Foi ele – o cristianismo – que, ao
substituir com o fantasma de “deus” a realidade palpitante do
“eu”, se declarou inimigo feroz da alegria de viver, e se vingou
47
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
como um canalha da vida terrena.
Com o cristianismo, a Vida foi levada a ser lamentada nos
assombrosos abismos das mais amargas renúncias; foi empurrada para os glaciares da negação e da morte. E destes glaciares
de negação e de morte, nasceu a democracia...
Pois essa – a mãe do socialismo – é filha do cristianismo.
II
Com o triunfo da civilização democrática é glorificado o espírito plebeu. Com o seu feroz anti-individualismo – a democracia – espezinhou – por ser incapaz de compreendê-la – toda
a heróica beleza do “eu” anti-colectivista e criador.
Os sapos burgueses e as rãs proletárias deram as mãos numa
vulgaridade espiritual comum, comungando religiosamente
através do cálice de chumbo que continha o liquido repulsivo
das mesmas mentiras sociais que a democracia oferecia a uns
e a outros.
E os cânticos que os burgueses e os proletários entoaram na
sua comunhão espiritual, foram um comum e ruidoso “Hurra!”
à Gansa vitoriosa e triunfante.
E enquanto os “hurra!” eram exclamados a alto e bom som e
de uma forma frenética, ela – a democracia – colocava o chapéu
plebeu sobre a sua lívida fronte, proclamando – ironia sombria
e feroz – os direitos iguais... do Homem!
Foi então que as águias, com a sua consciência prudente,
bateram mais fortemente as suas asas titânicas, ascendendo –
enojadas perante o espectáculo trivial – em direcção aos cumes
solitários da meditação.
Assim, a Gansa democrática, permanecendo rainha do mundo
e soberana de todas as coisas, imperou como dona e senhora.
Mas visto que por cima dela algo ria, esperando, ela, através
do socialismo, o seu único e verdadeiro filho, lançou uma pedra
e um verbo ao baixo domínio pantanoso onde coaxavam os sapos e as rãs, para provocar um combate de barrigas, fazendo-o
passar por uma guerra titânica de ideias magníficas e de espiri-
48
PARA O NADA CRIADOR
tualidade. E nos pântanos, o combate aconteceu... Aconteceu
de um modo tão grosseiro, que mesmo a lama foi lançada tão
alto ao ponto de ter sujado as estrelas!
Assim, tudo ficou contaminado com a democracia.
Tudo!
Até aquilo que de melhor existia.
Até aquilo que de pior existia.
No reino da democracia, as lutas que se abriram entre o capital e o trabalho, foram lutas raquíticas, espectros impotentes de
guerra, privadas de todo o conteúdo da alta espiritualidade e de
toda a valorosa grandeza revolucionária, incapazes de criar um
outro conceito de vida mais forte e mais belo!
Burgueses e proletários, confrontando-se apenas por questões
de classe, de domínio e de barriga, permaneceram sempre irmanados num ódio comum contra os grandes vagabundos de
espírito, contra os solitários da ideia. Contra todos os atormentados pelo pensamento, contra todos os transfigurados por
uma beleza superior.
Com a civilização democrática, Cristo triunfou...
Para além dos paraísos dos céus, “os pobres de espírito” alcançaram a democracia na terra. Se o triunfo não for ainda completo, o socialismo completá-lo-á. Anunciou-o já há bastante
tempo no seu conceito teórico. Ele tende a “nivelar” todos os
valores humanos. Estejam atentos, oh espíritos jovens!
A guerra contra o homem-indivíduo foi começada por Cristo
em nome de deus, foi desenvolvida através da democracia em
nome da sociedade, ameaçando completar-se no socialismo,
em nome da humanidade.
Se não soubermos destruir a tempo estes três fantasmas, tão
absurdos quanto perigosos, o indivíduo perder-se-á inexoravelmente.
É necessário que a revolta do “eu” se expanda, se alargue, se
generalize!
Nós – os precursores do tempo – já acendemos os faróis!
Acendemos as tochas do pensamento.
Brandimos o machado da acção. E esmagámos. Derrubámos!
Mas os nossos “crimes” individuais devem ser o prenúncio fa-
49
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
tal da grande tempestade social.
A grande e tremenda tempestade que destruirá todos os edifícios da mentira convencional, que derrubará os muros de todas
as hipocrisias, que reduzirá o velho mundo a um monte de escombros e ruínas fumegantes!
Porque é destes escombros de deus, da sociedade, da família
e da humanidade, que poderá nascer uma nova alma humana
luxuriante e festiva. Essa nova alma humana que, sob as ruínas
de todo um passado, cantará o nascimento do homem libertado: do “eu” livre e grandioso.
III
Cristo foi um paradoxal equívoco dos evangelhos. Foi um
fenómeno de decadência triste e doloroso, nascido do cansaço
pagão.
O Anticristo é o filho saudável de todo o ódio profundo que a
Vida incubou, no segredo do seu seio fecundo, durante os vinte
e muito séculos de domínio cristão.
Porque a história retorna.
Porque o eterno retorno é a lei que regula o universo.
É o destino do mundo!
É o eixo em torno do qual a vida roda!
Para se perpetuar.
Para voltar a acontecer.
Para contradizer-se.
Para correr atrás de si.
Para não morrer...
Porque a vida é um movimento, uma acção.
Que persegue o pensamento.
Que procura o pensamento.
Que ama o pensamento.
E este caminha, corre, anseia.
Quer arrastar a Vida para o reino das ideias.
Mas quando o caminho é intransitável, então, o pensamento
chora.
50
PARA O NADA CRIADOR
Chora e desespera...
Pois o cansaço torna-o débil, converteu-o em cristão.
Então, ele agarra a sua irmã Vida pela mão e procura confiná-la ao reino da morte.
Mas o Anticristo – o espírito do instinto mais misterioso e profundo – reclama para si a Vida, gritando-lhe barbaramente: Recomecemos!
E a Vida recomeça!
Porque não quer morrer.
E se Cristo simboliza o cansaço da vida, o pôr-do-sol do pensamento: a morte da ideia!
O Anticristo simboliza o instinto da vida.
Simboliza a ressurreição do pensamento.
O Anticristo é o símbolo de uma nova aurora.
IV
Se a moribunda civilização democrática (burguesa-cristãplebeia) conseguiu nivelar a alma humana, negando todos os
altos valores espirituais emergentes acima dela, não conseguiu
– felizmente – nivelar as diferenças de classe, de privilégio e de
casta, as quais – como já dissemos – permaneceram divididas
apenas por uma questão de barriga.
Pois – para uns e para outros – a barriga permanece – como é
necessário confessá-lo, e não apenas confessá-lo – como ideal
supremo. E o socialismo compreende tudo isso...
Compreende-o e, habilidosamente – e, na prática, talvez com
dividendos desde já explorados – deitou o veneno das suas grosseiras doutrinas de igualdade (igualdade dos piolhos perante a
sagrada majestade do Estado soberano) dentro dos poços da
escravidão, onde a feliz inocência matava a sede.
Mas o veneno que o socialismo espalhou não era um veneno
eficaz, capaz de dar virtudes heróicas a quem o bebesse.
Não: não era um veneno radical capaz de cumprir o milagre
que ergue – transfigurando-a e libertando-a – a alma humana.
Era antes uma mescla híbrida de “sim” e de “não”. Uma clara
51
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
mistura de “autoridade” e de “fé”, de “Estado” e de “porvir”!
Assim, com o socialismo, a plebe proletária sentiu-se novamente próxima da plebe burguesa e, juntas, voltaram-se para o
horizonte, esperando com confiança o Sol do Porvir!
E isto porque, na medida em que o socialismo não foi capaz
de transformar as mãos trémulas dos escravos em garras iconoclastas, ímpias e furtivas; foi para além disso incapaz de transformar a mesquinha avareza dos tiranos numa alta e superior
virtude doadora.
Com o socialismo, o círculo vicioso e repugnante, criado pelo
cristianismo e aperfeiçoado pela democracia, não foi quebrado. Pelo contrário: ficou ainda mais consolidado...
O Socialismo permaneceu no meio do tirano e do escravo
como uma ponte perigosa e intransponível; como um falso elo
de ligação; como o equívoco do “sim” e do “não” de que é feito o
seu absurdo princípio informador.
E nós vimos, mais uma vez, a brincadeira fatalmente obscena
que nos provocou náuseas. Vimos o socialismo, o proletariado
e a burguesia, reentrarem juntos na órbita da mais baixa pobreza espiritual para adorarem a democracia. Mas sendo – a democracia – o povo que governa o povo a golpes de bastão – por
amor ao povo, como um dia afirmou Oscar Wilde – era lógico
que os verdadeiros espíritos livres, os grandes vagabundos da
ideia, sentissem uma forte necessidade de se dirigirem decididamente em direcção ao extremo confim da sua iconoclastia
de solitários, para preparar no silencioso deserto a aguerrida
falange das águias humanas, que intervirão furiosamente na
trágica celebração do anoitecer social, para estraçalhar a civilização democrática entre as suas garras férreas, e jogá-la no
vazio de tempos antigos já idos!
V
Quando os burgueses se ajoelharam à direita do socialismo
no templo sagrado da democracia, deitaram-se tranquilamente
no leito da esperança para dormir o seu absurdo sonho de paz.
52
PARA O NADA CRIADOR
Mas os proletários, que ao beberem o veneno socialista tinham
perdido a sua inocência feliz, gritaram do lado esquerdo, perturbando o sono tranquilo da idiota burguesia criminosa.
Entretanto, os vagabundos da ideia venciam a náusea nas
mais altas montanhas do pensamento, anunciando que algo
parecido com o riso estrondoso de Zarathustra tinha ecoado
sinistramente...
O vento do espírito, parecido com um furacão, deveria ter
compenetrado a alma humana e levantá-la impetuosamente
no turbilhão das ideias para devastar todos os velhos valores
das trevas do tempo, elevando para o sol a vida do instinto sublimado do novo pensamento.
Mas os sapos burgueses compreenderam, ao despertarem,
que qualquer coisa incompreensível gritava no alto, ameaçando a sua baixa existência. Sim: compreenderam que do alto se
aproximava algo como uma pedra, um estrondo, uma ameaça.
Compreenderam que a voz satânica dos frenéticos precursores do tempo anunciava uma furiosa tempestade que, partindo da vontade renovadora de uns poucos solitários, explodia
nas vísceras da sociedade para arrasá-la.
Mas não compreenderam (e nunca o compreenderão até que
sejam esmagados) que aquilo que passava pelo mundo era a
poderosa asa de uma vida livre, e no seu batimento encontrava-se a morte do “homem burguês” e do “homem proletário”,
para que todos os homens fossem “únicos” e “universais” ao
mesmíssimo tempo.
E esse foi o motivo pelo qual todos os burgueses do mundo
fizeram soar como um rebanho os seus badalos, cunhados por
um falso metal idealístico, convocando-se para uma grande reunião.
E a reunião foi geral...
Todos os burgueses se juntaram.
Juntaram-se entre os juncos lamacentos que cresceram no
pântano da sua mentira comum e ali, no silêncio da lama,
decidiram-se pelo extermínio das rãs proletárias, suas servas e
amigas...
Todos os sacerdotes de Cristo e da democracia fizeram parte
53
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
da feroz conspiração.
Todos os antigos apóstolos das rãs também estavam presentes. A guerra foi decidida e o príncipe das víboras negras benzeu
os exércitos fratricidas em nome daquele deus que disse “não
matarás”, enquanto que o simbólico vigário da morte implorou
à sua deusa que viesse dançar pelo mundo.
Então o socialismo – como hábil acrobata e experiente saltimbanco – saltou para a frente. Saltou sobre a corda esticada da
especulação política sentimental, cingiu a testa de negro; e,
lamentando-se e chorando, falou mais ou menos desta forma: “Eu sou o verdadeiro inimigo da violência. Sou o inimigo
da guerra e o maior inimigo da revolução. Sou o inimigo do
sangue”.
E depois de ter ainda falado de “paz” e de “igualdade”, de “fé”
e de “martírio”, de “humanidade” e de “porvir”, tocou uma canção sobre os motivos do “sim” e do “não”, baixou a cabeça e
chorou...
Chorou as lágrimas de Judas, que não são sequer o “lavo as
minhas mãos” de Pilatos!
E as rãs partiram...
Partiram em direcção ao reino da suprema cobardia humana.
Partiram em direcção à lama de todas as trincheiras.
Partiram...
E veio a morte!
Veio ébria de sangue e dançou macabramente pelo mundo.
Durante cinco longos anos...
Foi então que os grandes vagabundos de espírito, novamente
repugnados, subiram mais uma vez para o dorso das suas
águias livres, para ascenderem vertiginosamente à solidão dos
seus longínquos glaciares, rindo e maldizendo.
Também o espírito de Zarathustra – o mais verdadeiro amante da guerra e o mais sincero amigo dos guerreiros – deve ter
ficado bastante repugnado e revoltado, pois alguém o ouviu exclamar: “Vocês deveriam ser, para mim, aqueles que estendem
o seu olhar à procura do inimigo – do vosso inimigo. E nalguns
de vocês o ódio incendeia-se à primeira vista. Vocês devem procurar o vosso inimigo, combater a vossa guerra, apenas pelas
54
PARA O NADA CRIADOR
vossas ideias!
E se a vossa ideia sucumbe, que a vossa rectidão grite pelo triunfo!”
Mas, ai de mim! A repreensão heróica do bárbaro libertador
de nada valeu!
As rãs humanas não souberam distinguir o seu inimigo, nem
combater pelas próprias ideias. (As rãs não têm ideias!)
E não conhecendo o seu inimigo, nem tendo ideias próprias,
combaterão pela barriga dos seus irmãos em Cristo, pelos seus
iguais na democracia.
Combaterão contra si próprias, pelo seu inimigo.
Abel, ressuscitado, morria às mãos de Caim uma segunda vez.
Mas desta vez por si só!
Voluntariamente...
Voluntariamente, porque poderia revoltar-se e não o fez...
Porque poderia ter dito: não!
Ou sim!
Porque dizendo: “não”, poderia ter sido forte!
Porque dizendo: “sim”, teria demonstrado “acreditar” na “causa” pela qual combatia.
Mas não disse nem “sim” nem “não”.
E partiu!
Como cobarde!
Como sempre!
E partiu...
Foi em direcção à morte!...
Sem saber o porquê.
Como sempre.
E a morte veio...
Veio para dançar pelo mundo: por cinco longos anos!
E dançou macabramente pelas trincheiras lamacentas de todas as partes do mundo.
Dançou com pés de relâmpago...
Dançou e riu-se...
Riu-se e dançou...
Por cinco longos anos!
Ah! Como é vulgar a morte que dança sem ter sobre as costas
55
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
as asas de uma ideia...
Como é idiota morrer sem saber porquê...
Nós vimos – enquanto dançava – a Morte.
Era uma Morte negra, sem transparecer luz.
Era uma Morte sem asas!
Como era feia e vulgar...
Como era desajeitada a dança.
Mas, todavia, dançava!
E como ceifava – dançando – todos os supérfluos, e todos
aqueles que estavam a mais. Todos aqueles para os quais – diz o
grande libertador – o Estado foi inventado.
Mas, ai de mim! Não eram apenas aqueles que ceifava...
A morte – para vingar o Estado – ceifou também os não inúteis, também os necessários!...
Mas aqueles que não era inúteis, aqueles que não estavam a
mais, aqueles que caírem dizendo “não!”
Serão vingados.
Nós vingá-los-emos.
Vingá-los-emos porque eram nossos irmãos!
Vingá-los-emos porque caíram com as estrelas no olhar.
Porque, ao morrerem, beberam o sol.
O sol da vida, o sol da luta, o sol de uma Ideia.
VI
Que renovou então a guerra?
Onde está a transfiguração heróica do espírito?
Onde estão penduradas as tábuas fosforescentes dos novos
valores humanos?
Em que templo estão depositadas as sagradas ânforas de ouro
que contêm os corações luminosos e flamejantes dos heróis
dominadores e criadores?
Onde está o esplendor majestoso do grande e novo meio-dia?
Rios de sangue assustadores lavaram todas as glebas e percorreram todos os caminhos do mundo.
Torrentes de lágrimas aterradoras fizeram ressoar o seu
56
PARA O NADA CRIADOR
lamento excruciante através dos turbilhões de toda a terra:
montanhas de ossos e de carne humana branquearam e apodreceram ao sol por toda a parte.
Mas nada se transformou, nada evoluiu.
Só a barriga burguesa arrotou de saciada e a do proletário roncou de demasiada fome.
E basta!
Com Karl Marx a alma humana desceu até ao intestino.
O rugir que hoje corre pelo mundo é sempre um rugir da barriga.
Possa a nossa vontade transformá-lo em grito da alma.
Em tempestade espiritual
Num uivo de vida livre.
Num furacão de raios.
Possa o nosso raio agitar a presente realidade, despedaçar a
porta para o mistério desconhecido do nosso sonho desejado, e
mostrar-nos a suprema beleza do homem libertado.
Porque nós somos os loucos precursores do tempo.
As fogueiras.
Os faróis.
Os sinais.
Os prenúncios.
VII
A guerra!
Recordam-na?
Que gerou a guerra?
Eis:
A mulher vendeu o seu corpo e chamou amor livre à sua prostituição.
O homem, que se “esquivou” a fabricar projécteis e a pregar
a sublime beleza da guerra, chamou à sua cobardia: “esperteza
perspicaz e astúcia heróica!”
Aquele que sempre viveu da infâmia inconsciente, da cobardia, da humildade, da indiferença e de fracas renúncias, impre-
57
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
cou contra os poucos audazes – que sempre detestou – porque
estes não tinham a força de, por eles próprios, impedirem que
a sua barriga não fosse esquartejada por aquelas armas que ele
próprio tinha construído por um vil pedaço de pão.
Porque mesmo os pobres de espírito – aqueles que, enquanto
a parte mais nobre da humanidade entra no inferno da vida,
permanecem sempre de fora entusiasmados –, esses servos humildes e devotos do seu tirano, esses caluniadores inconscientes das almas superiores, mesmo esses, digamos, não queriam
partir.
Não queriam morrer.
Contorciam-se, choravam, imploravam, rezavam!
Mas tudo isso por um reles instinto de conservação impotente
e animalesco, privado de todo o heróico frémito da revolta, e
não por outras questões de humanidade superior, de uma refinada profundidade sentimental, de beleza espiritual.
Não, não, não!
Nada disso!
A barriga!
Apenas a animalesca barriga.
Ideal burguês – ideal proletário – a barriga!
Mas entretanto vem a morte...
Vem dançar pelo mundo sem ter nas costas as asas de uma
ideia!
E dançou...
Dançou e riu-se.
Por cinco longos anos...
E enquanto nas fronteiras a morte, ébria de sangue, dançava sem asas, em casa, no sagrado abside da fachada interior,
declamava-se e cantava-se – nos vulgares “jornais” da mentira
– a milagrosa evolução moral e material alcançada pelas nossas mulheres, sem falar no supremo apogeu espiritual ao qual
ascendia o nosso heróico e glorioso soldado. O que morria chorando, sem saber o “porquê”.
Quantas mentiras cruéis, quanto cinismo vulgar vomitam
nos seus “jornais” as sinistras almas da sociedade democrática
e do Estado.
58
PARA O NADA CRIADOR
Quem se lembra da guerra?
Como grasnavam os corvos...
Os corvos e as corujas!
E, entretanto, a Morte dançava!
Dançava sem ter nas costas as asas de uma ideia.
De uma ideia perigosa, que fecunda e que cria!
Dançava...
Dançava e ria-se!
E como ceifava – dançando – os supérfluos. Todos aqueles que
estavam a mais. Aqueles para os quais o Estado foi inventado.
Mas, ai de mim! Não ceifava apenas aqueles...
Ceifava também os que tinham raios de sol na visão, os que
tinham as estrelas no olhar!
Onde está a arte épica, a arte heróica, a arte suprema que a
guerra tinha prometido? Onde está a vida livre, o triunfo da
nova aurora, o esplendor do meio-dia, a glória festiva do sol?
VIII
Onde está a redenção da escravidão material?
Onde está quem criou a poesia mais fina e profunda, que deveria germinar dolorosamente neste abismo trágico e assustador
de sangue e de morte, para nos falar do silencioso e cruel sofrimento sentido pela alma humana?
Quem disse a doce e boa palavra que fala de uma manhã serena depois de uma noite de terrível furacão?
Quem disse a palavra dominadora que nos torna grandes como
a própria dor, puros na beleza e profundos na humanidade?
Quem é, que génio se soube alguma vez curvar com amor e
com fé sobre as feridas abertas na carne viva da nossa vida,
acolhendo em si todo o nobre pranto, para que o riso sereno
do espírito redentor pudesse arrancar as garras aos monstros
famélicos dos nossos erros do passado, ascendendo ao conceito
de uma ética superior, onde, através do principio luminoso da
beleza humana purificada no sangue e na dor, nos pudéssemos
erguer, fortes e majestosos – como flechas retesadas no arco da
59
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
vontade –, para cantar à vida terrena as melodias mais profundas e suaves da mais alta de todas as nossas esperanças!
Onde? Onde?
Não a vejo!
Não a sinto!
Olho em redor, mas não vejo mais do que uma vulgar pornografia, e falso cinismo...
Que a guerra nos tivesse dado pelo menos um Homero da arte
e um Napoleão da acção...
Um homem que tivesse a força de destruir uma época, de criar
uma nova história...
Mas nada!
A guerra não deu nem grandes cantores, nem grandes senhores.
Só espectros ilusórios e imitações sombrias.
IX
A guerra passou, lavando a história e a humanidade com choro e sangue, mas a época permaneceu imutável.
Época de decadência...
O colectivismo está moribundo e o individualismo não se afirmou ainda.
Ninguém sabe obedecer, ninguém sabe comandar.
Mas de tudo isto, para se chegar a viver livre, existe ainda um
abismo pelo meio.
Abismo que apenas poderá ser preenchido com os cadáveres
da escravidão e da autoridade.
A guerra não poderia preencher este abismo. Podia apenas
torná-lo mais profundo. Mas aquilo que a guerra não pode fazer, deve fazê-lo a revolução.
A guerra tornou os homens mais brutais e plebeus.
Mais triviais e mais feios!
A revolução deve torná-los melhores.
Deve enobrecê-los.
60
PARA O NADA CRIADOR
X
Já – falando socialmente – deslizámos pelo declive fatal, e não
é possível voltar atrás.
Tentá-lo seria apenas um crime.
Não um crime nobre e grandioso.
Mas um crime vulgar. Um crime mais do que inútil e vão. Um
crime contra a carne das nossas ideias.
Porque nós não somos os inimigos do sangue...
Somos os inimigos da vulgaridade!
Agora que o tempo do dever e da escravidão é agonizante,
queremos encerrar o ciclo do pensamento teórico e contemplativo para abrir caminho à acção violenta, que é vontade de
vida e exultação da expansão.
Queremos erigir a dureza criadora do nosso soberbo coração
sobre as ruínas da piedade e da religião.
Não somos os admiradores do “homem ideal” dos “direitos
sociais”, mas os proclamadores do “indivíduo real”, inimigo da
abstracção social.
Lutamos pela libertação do indivíduo.
Pela conquista da vida.
Pelo triunfo da nossa ideia. Pela realização dos nossos sonhos.
E se as nossas ideias são perigosas, é porque somos aqueles
que amam viver perigosamente.
E se os nossos sonhos são loucos, é porque somos loucos.
Mas a nossa loucura é a sabedoria suprema.
Mas as nossas ideias são o cerne da vida; mas os nossos pensamentos são os faróis da humanidade.
E aquilo que a guerra não fez, deve fazê-lo a revolução.
Porque a revolução é o fogo da nossa vontade e uma necessidade das nossas almas solitárias, é um dever da aristocracia
libertária.
Para criar novos valores éticos.
Para criar novos valores estéticos.
Para tornar comuns as riquezas materiais.
Para individualizar as riquezas espirituais.
Porque nós – cerebralistas violentos e sentimentalistas pas-
61
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
sionais ao mesmíssimo tempo – compreendemos e sabemos
que a revolução é uma necessidade da dor silenciosa que sofre
em baixo, e um dever dos espíritos livres que sofrem no alto.
Porque, se a dor que sofre em baixo quer ascender ao sorriso
de felicidade do sol, os espíritos livres que sofrem no alto não
querem mais sentir o olhar ofendido pela dor da vulgar escravidão que os rodeia.
O espírito humano está dividido em três correntes:
A corrente da escravidão, a corrente da tirania e a corrente da
liberdade!
É necessário que, com a revolução, a última destas três correntes irrompa sobre as outras duas e as esmague.
É necessário que crie beleza espiritual, que ensine aos pobres a
vergonha da sua pobreza, e aos ricos a vergonha da sua riqueza.
É necessário que tudo aquilo que tem o nome de “propriedade material”, “propriedade privada”, “propriedade exterior”,
se converta naquilo que é para os indivíduos, o sol, a luz, o céu,
o mar, as estrelas. E isso acontecerá!
Acontecerá porque nós – os iconoclastas – o exigiremos! Só a
riqueza ética e espiritual é invulnerável. É a verdadeira propriedade do indivíduo. O resto não! O resto é vulnerável! E tudo o
que é vulnerável será vulnerado. Pelo vigor desinibido do “eu”.
Pela força heróica do homem libertado.
Para além de todas as leis, de todas as morais tiranas, de todas
as sociedades, de todos os conceitos de falsa humanidade...
Nós devemos expandir o nosso esforço para transformar a
revolução que se aproxima num “crime anárquico”, para impulsionar a humanidade a ir para além do Estado, para além do
socialismo. Para a Anarquia.
Se com a guerra os homens não puderam sublimar-se na morte,
a morte purificou, contudo, o sangue dos que tombaram.
E o sangue que a morte purificou – e que o solo bebeu com
avidez – brada agora debaixo da terra!
E nós, solitários, não somos os cantores da barriga, mas os
ouvintes dos mortos; das vozes dos mortos que bradam debaixo da terra!
Das vozes do sangue “impuro” que se purificou na morte.
62
PARA O NADA CRIADOR
E brada o sangue de todos os que tombaram!
Brada debaixo da terra!
E o brado deste sangue chama-nos também na direcção do
abismo...
Tem necessidade de ser libertado!
Oh jovens mineiros, estejam preparados!
Preparemos archotes e material de mineração.
É necessário escavar o terreno.
Está na hora! Está na hora! Está na hora!
O sangue dos mortos deve ser libertado.
Quer erguer-se das tenebrosas profundidades para ir em direcção ao céu e conquistar as estrelas.
Porque as estrelas são amigas dos mortos.
São as boas irmãs que os viram morrer.
São as que todas as noites vão aos seus sepulcros com pés de
luz, dizendo-lhes:
Amanhã!...
E nós – os filhos do Amanhã – viemos hoje dizer-vos:
Está na hora! Está na hora! Está na hora!
E viemos antes do amanhecer...
Na companhia da aurora e das últimas estrelas!
E juntámos outros mortos aos mortos...
Mas todos aqueles que caem têm no olhar uma estrela de ouro
que brilha!
Uma estrela de ouro que diz:
“A cobardia dos irmãos que ficaram transformar-se-á num
sonho criador: num heroísmo vingador!
Porque, se assim não fosse, não teria sido merecida a nossa
morte!”
Como deve ser triste morrer.
Sem esperança no coração... sem um incêndio na mente; sem
um grandioso sonho na alma; sem uma estrela de ouro que
brilha no nosso olhar!
***
O sangue dos mortos – dos nossos mortos – brada debaixo da
63
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
terra. Nós ouvimos esse grito clara e distintamente. Esse grito
que se inebria de sofrimento e de dor.
E não podemos, nem queremos, deixar de ouvir essa voz...
nós. Não queremos deixar de ouvi-la porque a vida disse-nos:
“Quem não ouve a voz do sangue, não é digno de mim. Porque
o sangue é o meu vinho; e os mortos o meu segredo. Só aquele
que escuta a voz dos mortos, solucionará o enigma do meu
grande mistério!”
E nós responderemos a essa voz:
Porque só aqueles que sabem responder à voz do abismo podem conquistar as estrelas!
Eu volto-me para ti, oh meu irmão! Volto-me para ti e digo-te:
“Se és daqueles que se ajoelham a meio do círculo, fecha os
olhos nas trevas e precipita-te no abismo.
Só assim poderás regressar aos cumes mais altos e abrir os
teus grandes olhos ao sol.”
Porque não se pode ser águia se não se é mergulhador. Não
se pode pairar sobre os cumes quando se é incapaz de ir até
às profundezas. Em baixo habita a dor, em cima o sofrimento.
Sobre o pôr-do-sol de todas os tempos, surge uma aurora única
entre dois anoiteceres distintos.
Entre as luzes virgens desta rara aurora, a dor do mergulhador
que há em nós deve unir-se ao sofrimento da águia que também vive em nós, para celebrar as trágicas e fecundas núpcias
da renovação perpétua.
Renovação do “eu” pessoal entre as tempestades colectivas e
os furacões sociais.
Porque a solidão perpétua é só para santos que reconheçam
em deus o seu testemunho. Mas nós somos os filhos ateus da
solidão. Somos os demónios solitários sem testemunhas.
Em baixo, queremos viver a realidade da dor; em cima, a dor
do sonho...
Para viver intensamente e perigosamente todas as batalhas,
todas as derrotas, todas as vitórias, todos os sonhos, todas as
dores e todas as esperanças! E queremos cantar ao sol, queremos uivar aos ventos! Porque a nossa mente é um incêndio
brilhante onde o grande fogo do pensamento crepita e arde em
64
PARA O NADA CRIADOR
loucos e alegres sofrimentos.
Porque a pureza de todas as auroras, a chama de todos os
meios-dias, a melancolia de todos os pores-do-sol, o silêncio
de todos os sepulcros, o ódio de todos os corações, o murmúrio
de todas as florestas, e o sorriso de todas as estrelas, são as misteriosas notas que compõem a música secreta da nossa alma
transbordante de exuberância vital.
Porque no fundo do nosso coração ouvimos falar uma voz de
uma individuação humana de tal forma imperiosa e intensa
que, muitas vezes, sentimos medo e terror ao escutá-la.
Pois a voz que fala é a voz Dele: o Demónio alado das nossas
profundezas.
XI
Está provado...
A vida é dor!
Mas nós aprendemos a amar a dor, para amar a vida!
Porque, ao amar a dor, aprendemos a lutar.
E na luta – somente na luta – encontramos a alegria de viver.
Permanecer em suspenso a metade, não é o nosso ofício.
O semicírculo simboliza o velho “sim e não”.
A impotência do viver e do morrer.
É o círculo do socialismo, da piedade e da fé.
Mas nós não somos socialistas...
Somos anarquistas. E individualistas, e niilistas, e aristocratas.
Porque vimos das montanhas.
De perto das estrelas.
Vimos do alto: a rir e a maldizer!
Vimos para acender sobre a terra uma selva de fogueiras, para
iluminá-la ao longo da noite que precede o grande meio-dia.
E as nossas fogueiras serão extintas apenas quando o incêndio
do sol brote majestosamente sobre o mar. E se esse dia não vier,
as nossas fogueiras continuarão a crepitar tragicamente entre a
escuridão da noite eterna.
Porque amamos tudo aquilo que é grande.
Somos os amantes de todos os milagres, os defensores de to-
65
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
dos os prodígios, os criadores de todas as maravilhas!
Sim: sabemo-lo!...
Existem coisas grandes no bem como no mal.
Mas nós vivemos para além do bem e do mal, porque tudo
aquilo que é grande faz parte do belo!
Mesmo o “crime”.
Mesmo a “perversidade”.
Mesmo a “dor”!
E nós queremos ser grandiosos como o nosso crime!
Para não o caluniar:
Queremos ser grandiosos como a nossa perversidade!
Para torná-la consciente.
Queremos ser grandiosos como a nossa dor.
Para tornarmo-nos dignos.
Porque vimos do alto. Da casa da Beleza.
Vimos para acender sobre a terra uma selva de fogueiras, para
iluminá-la ao longo da noite que precede o grande meio-dia.
Até à hora na qual o incêndio do sol brotará majestoso sobre
o mar.
Porque queremos celebrar a festa do grande prodígio humano.
Queremos que a nossa alma vibre num novo sonho.
Queremos que o nosso “eu” saia calmo e cheio de luz universal
deste trágico anoitecer social.
Porque somos os niilistas dos fantasmas sociais.
Porque sentimos a voz do sangue bradar debaixo da terra.
Preparemos o material de mineração e os archotes, oh jovens
mineiros.
O abismo espera-nos. Precipitemo-nos bem fundo nele: Para
o nada criador!
XII
O nosso niilismo não é um niilismo cristão.
Nós não negamos a vida. Não! Nós somos os grandes iconoclastas da mentira. E tudo aquilo que é proclamado “sagrado”
é mentira.
Nós somos os inimigos do “sagrado”.
66
PARA O NADA CRIADOR
E existe uma lei “sagrada”; uma sociedade “sagrada”; uma
moral “sagrada”, uma ideia “sagrada”!
Mas nós – os senhores e os amantes da força ímpia e da beleza
volitiva, da Ideia transgressiva – nós, os iconoclastas de tudo
aquilo que é consagrado – rimo-nos satanicamente, num belo
riso, largo e escarnecedor.
Rimos!...
E rindo-nos, temos o arco da nossa vontade pagã de gozar
sempre retesado na direcção da plena integridade da vida.
E escrevemos as nossas verdades com riso.
E escrevemos as nossas paixões com sangue.
E rimo-nos!...
Rimo-nos com o belo riso saudável e encarnado do ódio.
Rimo-nos com o belo riso azul e fresco do amor.
Rimo-nos!...
Mas rindo-nos, recordamo-nos, com grande seriedade, que
somos os filhos legítimos, e dignos herdeiros, de uma grande
aristocracia libertária que nos transmitiu sanguineamente ímpetos satânicos de um louco heroísmo, e na carne, ondas de
poesia, de sol e de canções!
A nossa mente é um incêndio brilhante, onde o fogo crepitante do pensamento arde num alegre sofrimento.
A nossa alma é um oásis solitário sempre florido e festivo,
onde uma música secreta canta as difíceis melodias do nosso
mistério alado.
E na mente rugem todos os ventos do monte; na carne rugem
todas as tempestades do mar; todas as Ninfas do Mal; os nossos
sonhos são céus reais habitados por musas virgens e trémulas.
Nós somos os verdadeiros demónios da Vida.
Os precursores do tempo.
Os prenúncios!
A nossa exuberância vital inebria-se de força e de desprezo.
Ensina-nos a desprezar a Morte!
XIII
Hoje alcançámos a trágica celebração de um grande anoitecer
67
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
social. O crepúsculo é vermelho. O pôr-do-sol está ensanguentado. A ânsia bate as suas asas agitadas ao vento. Asas vermelhas de sangue; asas negras de morte! A Dor organiza o exército
dos seus filhos desconhecidos na sombra. A beleza encontra-se
no jardim da Vida, e está entrelaçando grinaldas de flores para
coroar a fronte dos heróis.
Os espíritos livres lançaram já os seus raios através do crepúsculo.
Como prenúncios de fogo: primeiros sinais de guerra!
A nossa época encontra-se sob as rodas da história.
A civilização democrática vira-se em direcção à sepultura.
A sociedade burguesa e plebeia despedaça-se fatalmente, inexoravelmente!
O fenómeno fascista é a prova mais certa e irrefutável disso.
Para demonstrá-lo, não era preciso mais do que voltar atrás no
tempo e questionar a história.
Mas isso não é necessário!
O presente fala com bastante eloquência!
O fascismo não é mais do que o espasmo convulsionário e
cruel de uma sociedade plebeia, fraca e vulgar, que agoniza,
tragicamente afogada, no pântano dos seus vícios e das suas
próprias mentiras.
Ele – o fascismo – celebra esses seus bacanais com fogueiras
em chamas e malditas orgias de sangue.
Mas do sombrio crepitar dos seus fogos lívidos não brota, nem
mesmo, uma só centelha de uma intensa espiritualidade inovadora, enquanto que o sangue que espalha transforma-se num
vinho que os precursores do tempo recolhem silenciosamente
nos cálices vermelhos do ódio, destinando-o a ser uma bebida
heróica para comungar todos os filhos da dor convocados para
a celebração crepuscular do anoitecer.
Porque os grandes precursores do tempo são irmãos e amigos
dos filhos da dor.
Da dor que luta
Da dor que ascende.
Da dor que cria!
Nós daremos as mãos a estes irmãos desconhecidos para
caminhar em conjunto contra todo o “não” da negação, e as-
68
PARA O NADA CRIADOR
cendermos juntos a todo o “sim” da afirmação; em direcção a
novas auroras espirituais: em direcção a novos meios-dias de
vida.
Porque nós somos os amantes do perigo; os temerários de todas as empresas, os conquistadores do impossível, os partidários e precursores de todas as “provações”!
Porque a vida é uma provação!
Depois da celebração negadora do anoitecer social, queremos
celebrar o ritual do “eu”: o grande meio-dia do indivíduo íntegro e real.
Para que a noite não triunfe mais.
Para que as trevas não nos encubram mais.
Para que o majestoso incêndio do sol perpetue a sua festa no
céu e no mar.
XIV
O fascismo é um obstáculo demasiado efémero e impotente
para impedir o curso do pensamento humano, que irrompe
para além de qualquer barragem e transborda para além de
qualquer margem, arrastando a acção à sua passagem.
É impotente porque é uma força bruta. É matéria sem espírito:
é noite sem aurora! O fascismo é a outra face do socialismo. Um
e outro são dois corpos sem alma.
XV
O socialismo é a força material que, actuando na sombra de
um dogma, resolve-se e dissolve-se num “não” espiritual.
O fascismo é um tísico do “não” espiritual que tende – miserável – para um sim material...
Falta qualidade volitiva tanto a um como a outro.
São os esparadrapos do tempo: os temporizadores do facto!
São reaccionários e conservadores.
São os fósseis cristalizados que o dinamismo volitivo da
história que passa devastará em conjunto.
Porque os dois inimigos equivalem-se no campo volitivo dos
69
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
valores morais e espirituais...
E note-se que, se o fascismo nasceu, tem apenas o socialismo
como seu cúmplice directo e pai responsável.
Porque, se quando a nação, se quando o Estado, se quando
a Itália democrática, se quando a sociedade burguesa tremia
de espasmos e de agonia entre as mãos nodosas e poderosas
do “proletariado” em revolta, o socialismo não tivesse impedido cobardemente o trágico aperto mortal – perdendo a luz
da razão diante dos olhos fechados da lei –, de certeza que o
fascismo não teria nascido, muito menos vivido.
Mas o estranho colosso sem alma deixou-se, ao invés, apanhar
– por receio de que os vagabundos da ideia impulsionassem o
movimento de revolta para além dos limites pré-estabelecidos
– num vulgaríssimo jogo de uma triste piedade conservadora e
de um falso amor humano.
Assim, a Itália burguesa, em vez de morrer, pariu...
Pariu o fascismo!
Porque o fascismo é uma criatura tísica e deformada, nascida
do amor impotente do socialismo com a burguesia.
Um é o seu pai, a outra a sua mãe. Mas nem um nem a outra
assumem essa responsabilidade.
Talvez achem que é um filho demasiado desnaturado.
E é por isso que o chamam de “bastardo”!
E ele vinga-se...
Bastante infeliz por ter nascido assim, revolta-se contra o pai e
ultraja a mãe... E talvez tenha razão...
Mas nós realçamos isto para a história. Para a história e para
a verdade, não para nós. Para nós – o fascismo – é um fungo
venenoso bem plantado no podre coração da sociedade, que
com ele se satisfaz...
XVI
Só os grandes vagabundos da ideia poderão – e deverão – ser o
luminoso fulcro espiritual da tempestuosa revolução que, sombria, avança pelo mundo...
O sangue pede sangue.
70
PARA O NADA CRIADOR
É uma velha história!
Não se pode mais voltar atrás.
Tentar voltar atrás – como o socialismo faz – seria um crime
inútil e vão.
Temos de nos precipitar no abismo.
Temos de dar resposta à voz dos mortos.
Dos mortos que caíram com grandes estrelas de ouro no olhar.
É necessário escavar o solo.
Libertar o sangue que está debaixo da terra!
Porque quer ascender em direcção às estrelas.
Quer incendiar as suas boas irmãs luminosas e longínquas
que o viram morrer.
Dizem os mortos, os nossos mortos:
“Morremos com as estrelas no olhar.
Morremos com raios de sol na visão.
Morremos com o coração cheio de sonhos.
Morremos com o canto da mais bela esperança na alma.
Morremos com a chama de uma ideia na mente.
Morremos...”
Como deve ser triste morrer como os outros mortos – os
que não são nossos – sem tudo isso na mente, na alma, no
coração, no olhar, na visão!
Oh mortos, oh mortos!... Oh nossos mortos! Oh tochas luminosas! Oh faróis ardentes! Oh fogueiras crepitantes! Oh
mortos...
Eis, chegámos ao crepúsculo!
A trágica celebração do grande anoitecer social aproxima-se.
A nossa grande alma abre-se já para a vasta luz subterrânea, oh mortos!
Porque também nós temos as estrelas no olhar, o sol em
vista, o sonho no coração, o canto da esperança na alma e,
na mente, uma ideia.
Sim, também nós, também nós!
Oh mortos, oh mortos! Oh nossos mortos! Oh tochas! Oh
faróis! Oh fogueiras!
Nós ouvimo-vos falar no silêncio solene das nossas noites
profundas.
71
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Diziam:
“Nós queríamos ascender ao céu do sol livre...
Nós queríamos ascender ao céu da vida livre...
Nós queríamos ascender lá acima, onde um dia o olhar do
poeta pagão se fixou:
Onde se erguem carvalhos que permanecem invioláveis entre
os homens e os grandes pensadores; onde a beleza desce, invocada pelos poetas puros, e permanece serena entre os homens;
onde o amor cria a vida e respira alegria!”
Em cima, onde a vida exulta e se expande numa harmonia
cheia de esplendor...
E por isso, por esse sonho lutamos, por esse grande sonho
morremos...
E à nossa luta deu-se o nome de crime.
Mas o nosso “crime” não deve ser considerado senão uma virtude titânica, senão um esforço prometeico de libertação.
Porque fomos os inimigos de toda a dominação material e de
todo o nivelamento espiritual.
Porque nós, para além de toda a escravidão e de todo o dogma,
vemos a vida dançar livre e nua.
E a nossa morte deve ensinar-vos a beleza de viver heroicamente!”
Oh mortos, oh mortos! Oh nossos mortos...
Nós ouvimos a vossa voz...
Ouvimo-la falar desta forma, no silêncio solene das nossas
noites profundas!
Profundas, profundas, profundas!
Porque nós somos os sentimentais.
O nosso coração é uma tocha, a nossa alma um farol, a nossa
mente um incêndio!...
Nós somos a alma da vida!...
Somos os madrugadores que bebem o orvalho no cálice das
flores.
Mas as flores têm as raízes fosforescentes arraigadas na
escuridão da terra.
Naquela terra que bebeu o vosso sangue.
Oh mortos! Oh nossos mortos!
72
PARA O NADA CRIADOR
Esse vosso sangue que brada, que ruge, que quer ser libertado
para se lançar em direcção ao céu e conquistar as estrelas! Essas
vossas irmãs, longínquas e luminosas, que vos viram morrer.
E nós – os vagabundos de espírito, os solitários da ideia – queremos que a nossa alma, livre e grande, abra as suas asas ao sol.
Queremos que o anoitecer social seja celebrado neste crepúsculo da sociedade burguesa, para que a última noite negra se
torne vermelha de sangue.
Porque os filhos da aurora devem nascer do sangue...
Porque os monstros das trevas devem ser mortos ao nascer
do sol...
Porque as novas ideias individuais devem nascer das tragédias
sociais...
Porque os homens novos devem ser forjados no fogo!
E só da tragédia, do fogo e do sangue, nascerá o verdadeiro
Anticristo pleno de humanidade e de pensamento.
O verdadeiro filho da terra e do sol.
O Anticristo deve nascer das ruínas fumegantes da revolução
para animar os filhos da nova aurora.
Porque o Anticristo é aquele que vem do abismo para elevar-se para além de todos os limites.
É o inimigo volitivo da cristalização, do pré-estabelecimento,
da conservação!...
É ele que conduzirá os homens através das misteriosas cavernas do desconhecido para o eterno descobrimento de novas
fontes de vida e de novos pensamentos.
E nós – os espíritos livres, os ateus da solidão, os demónios do
deserto – sem testemunhas – fomos já impelidos para os cumes
mais extremos...
Porque – para nós – todas as coisas devem ser levadas até ao
máximo das suas consequências.
Mesmo o Ódio.
Mesmo a Violência.
Mesmo o crime!
Porque o Ódio dá força.
A violência destrói.
O crime renova.
73
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
A crueldade cria.
E nós queremos destruir, renovar, criar!
Porque tudo o que é baixa vulgaridade deve ser superado.
Porque tudo o que vive deve ser grande.
Porque tudo o que é grande faz parte da beleza!
XVII
E a vida deve ser bela!
Nós matámos o “dever” para que o nosso desejo de uma livre
fraternidade adquire um valor heróico na vida.
Nós matámos a “piedade” porque somos bárbaros capazes de
um grande amor.
Nós matámos o “altruísmo” porque somos egoístas doadores.
Nós matámos a “solidariedade filantrópica” para que o
homem social procure o seu “eu” mais secreto e encontre a
força do “Único”.
Porque nós sabemo-lo. A Vida está cansada de ter amantes
raquíticos.
Porque a terra está cansada de se sentir pisada por grandes
falanges de gente pequena entoando preces cristãs.
E por fim, porque estamos cansados dos nossos irmãos cadavéricos, incapazes de fazer a paz e a guerra.
Inferiores ao ódio e ao amor.
Estamos cansados e enojados...
Sim, muito cansados: muito enojados!
E depois aquela voz dos mortos...
Dos nossos mortos!
A voz daquele sangue que brada debaixo da terra!
Daquele sangue que quer libertar-se para se lançar em direcção ao céu e conquistar as estrelas!
Aquelas estrelas que – abençoando-os – brilharam no seu
olhar no momento final da morte, transformando os seus olhos
sonhadores em grandes discos de ouro.
Porque os olhos dos mortos – dos nossos mortos – são discos
de ouro.
São meteoros luminosos que vagueiam no infinito para nos
74
PARA O NADA CRIADOR
indicar o caminho.
Esse caminho sem fim que é o da eternidade.
Os olhos dos nossos mortos dizem-nos o “Porquê” da vida,
mostrando-nos o fogo secreto que arde no nosso mistério.
Daquele nosso mistério secreto que ninguém cantou até hoje...
Mas hoje o crepúsculo é vermelho...
O pôr-do-sol está ensanguentado...
Estamos próximos da celebração trágica do grande anoitecer
social.
O tempo já fez soar nos sinos da história as primeiras batidas
madrugadores de um novo dia.
Basta, basta, basta!
É a hora da tragédia social!
Nós destruiremos rindo.
Nós incendiaremos rindo.
Nós mataremos rindo.
Nós expropriaremos rindo.
E a sociedade cairá. A pátria cairá. A família cairá.
Tudo cairá, porque o Homem livre nasceu.
Nasceu aquele que, através do choro e da dor, aprendeu a arte
dionisíaca da alegria e do riso.
Chegou a hora de afogar o inimigo no sangue...
Chegou a hora de lavar a nossa alma no sangue.
Basta, basta, basta!
Que o poeta transforme a sua lira num punhal!
Que o filósofo transforme o seu estudo numa bomba!
Que o pescador transforme o seu remo num machado formidável.
Que o mineiro saia armado com o seu ferro luzidio dos antros
mortíferos das minas escuras.
Que o camponês transforme a sua pá fecunda numa lança
guerreira.
Que o operário transforme o seu martelo numa foice e num
machado.
E avante, avante, avante!
Está na hora, está na hora – está na hora!
E a sociedade cairá.
A pátria cairá.
75
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
A família cairá.
Tudo cairá, porque o Homem livre nasceu.
Avante, avante, avante, oh alegres destruidores.
Sob a bandeira negra da morte, nós conquistaremos a Vida!
Rindo!
E iremos torná-la nossa escrava.
Rindo!
E a amaremos rindo!
Porque homens sérios são apenas aqueles que sabem agir rindo.
E o nosso ódio ri...
Riso encarnado. Avante!
Avante, pela destruição total da mentira e dos fantasmas!
Avante, pela conquista integral da Individualidade e da Vida!
Renzo Novatore
76
OS VAGABUNDOS DE ESPÍRITO
Os vagabundos
de espírito
Pode dar-se o nome de vagabundos – disse Stirner – a todos aqueles que o bom burguês considera suspeitos, hostis e
“perigosos”. Por outro lado, a burguesia desagrada a qualquer
tipo de vagabundagem; e também existem os vagabundos de
espírito, os quais, sentindo-se a sufocar sob o mesmo tecto dos
seus pais, vão à procura de mais espaço e de mais luz longinquamente. Em vez de permanecerem acantoados no antro familiar a removerem as cinzas de uma opinião moderada, em
vez de aceitarem como verdade indiscutível a necessidade de
alívio e conforto procurada por tantas gerações, eles ultrapassam a fronteira traçada pelo campo paterno e, pelo caminho
da crítica, vão até onde a sua indomável curiosidade e a sua
incerteza os conduz. Estes vagabundos extravagantes também
pertencem à classe dos inquietos volúveis, instáveis, formada
pelo proletariado; e quando deixam supor a sua falta de domicílio moral, são chamados de “turbulentos”, “cabeças quentes”, “exaltados”...
Oh, os vagabundos de Espírito! Os pálidos subversivos impenitentes! Aqueles que galopam, sem descanso, através das
regiões intermináveis das suas fantasias caprichosas, criadoras
de coisas novas!
Zarathustra disse um dia, quando falava para eles: “A terra ainda é livre para as almas grandes. Existem ainda muitos portos
para as almas solitárias e gémeas, em redor dos quais paira o
perfume de mares tranquilos: A vida ainda é livre: livre para as
almas livres.”
77
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Depois continuou: “Só onde o Estado deixa de existir é que
o homem não inútil começa: é aí que começa o hino ao necessário, o refrão não uniforme. Lá, onde o Estado deixa de
existir... mas olhem um pouco, oh meus irmãos: não vêem ao
longe o arco-íris e as pontes do super-homem?”
Mas antes de lhes dizer tudo isto, falando dos símios e dos loucos que se prostram aos pés do “novo ídolo” – o Estado – disse
ainda: “Oh meus irmãos, quererão, quiçá, ficar sufocados com o
hálito da suas bocas pútridas e da sua cobiça doentia? Ao invés,
quebrem os vidros das janelas e entreguem-se ao ar puro!”
E eles – os vagabundos de Espírito – quebraram os vidros das
janelas e lançaram-se com avidez através da liberdade profanadora dos campos, onde a natureza festiva misturava canções de
vida; lá, onde as colheitas de ouro alourado dançavam ao vento,
beijadas pelo sol.
Eles – os subversivos – proclamaram-se bandidos desde
aquele dia...
Encantados pelo sedutor fascínio da liberdade conquistada,
estavam prestes a deitarem-se na terra para descansarem,
quando o murmúrio simbólico saído das frondes verdejantes
da montanha os chamou mais uma vez, de mais longe... de
mais alto...
Olharam-se nos olhos devido ao que havia sucedido. O fogo
do amor brilhava nos olhos de todos eles como uma lava vulcânica. Compreenderam, então, aquilo que o Mestre disse e,
reconhecendo-se como “almas gémeas”, partiram em conjunto
em direcção ao topo da montanha verdejante, onde deveria ser
revelada a sua nova vida.
Quando os seus pés, sacrílegos e profanadores, pisaram os
cumes mais altos, o sol estava já a pôr-se, não deixando ver
mais do que enormes raios de luz vermelhos semelhantes a
grandiosas línguas de fogo.
Uma triste visão atravessou, naquele momento, a alma de
todos eles. A todos pareceu ter visto a sombra do Mestre naufragar naquela labareda vermelha. Mas pareceu-lhes também
ouvir, naquele silêncio primitivo e desolador, a sua voz que
78
OS VAGABUNDOS DE ESPÍRITO
lhes dizia: “Não temam. Eu ressurgirei com o Sol. Também para
vocês chegou agora o pôr-do-sol, mas da mesma forma ressurgirão com os primeiros raios da Aurora.”
Ah, mas ao voltarem a olhar para o que estava a acontecer,
sentiram algo parecido a um arrepio de terror, envolvendo-os a
todos num manto de desolação, pois o fogo do amor já não fluía
nos seus olhos como lava vulcânica.
A asa negra da melancolia bateu com violência à porta dos
seus corações, enchendo-os de tristeza e de sono.
Quando a alvorada veio procurar, com os seus argueiros de
prata, os olhos dos livres adormecidos, para anunciar-lhes o
nascimento de um novo dia, eles puseram-se logo de pé, com
uma chama nos olhos ainda mais ardente. Cantaram um hino à
vida e olharam intensamente para o horizonte...
Pouco depois um uivo de alegria dionisíaca brotou de todos
aqueles peitos vibrantes.
O arco-íris e a ponte do super-homem que o Mestre lhes tinha
falado, erguiam-se agora majestosamente e luminosamente
dentre as chamas turvas das neblinas cristãs.
À medida que o sol clareava o horizonte, eles aperceberam-se
que aqueles lugares já estavam habitados por outras Criaturas.
Oh, eles reconheceram logo esses habitantes... Eles viram, em
toda a sua beleza trágica, as criaturas de Henrik Ibsen que, com
o fogo vulcânico da paixão no olhar, destruíam terrivelmente a
chagas gangrenosas apontadas ao “eu” pelos preconceitos sociais seculares.
E por entre todos aqueles destruidores simbólicos ibsenianos,
pareceu-lhes ter visto o nascimento do super-homem.
Eles observaram, com o coração em chamas e a alma muda,
Rubek e Irene1 reaparecem do sepulcro para irem até onde os
esperava a branca avalanche que, farta de morte, emanava uma
luz de vida eterna. [...]
Mas eles ainda observaram... Observaram e viram!
Viram o “Pescador”, que habita A Casa das Romãs 2 edificada
por Oscar Wilde entre vapores de luz emanados pelo arco-íris
que se ergue ao lado do Super-homem, aparecer e dirigir-se –
79
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
com uma grande e indiscutível paixão encerrada no coração – à
casa do padre, à praça do Mercado, à caverna habitada por uma
Bruxa jovem e assustadora, numa montanha cheia de artifícios
maléficos, onde esta o atraiu para o poder seduzir através de
uma diabólica dança de bruxas, dirigida por Aquele que tudo
podia fazer antes do aparecimento do Pescador.
Mas o PESCADOR desafia tudo, vence tudo, pois é imperiosa a
louca e obstinada vontade da própria paixão.
Ele tinha de se libertar da sua alma, único obstáculo existente
até então entre ele e o seu próprio coração, pois só depois dessa
libertação poderia mergulhar livremente nas aterradoras voragens do mar para chegar perto da sua Sereia que habitava os
seus abismos. Só ela lhe poderia oferecer a prazenteira embriaguez do amor. [...]
Oh, quantas coisas estes Vagabundos de Espírito teriam visto
ainda reluzir entre o “arco-íris” e as pontes do “super-homem”,
se o urro grosseiro e bestial do vulgo, que ainda vegeta nas águas
estagnadas e que envelhece sem nunca se renovar no sopé da
montanha rochosa, não os tivesse atingido, chamando-lhes
“maníacos” e “loucos”. [...]
Tinham ainda franzido nos lábios um sorriso de escárnio e de
ironia amarga, quando um automóvel vermelho atravessou de
forma estranha uma das maiores cidades modernas e, terrível
como um raio, propagou uma nova forma de vida.
Lembro-me agora de ter divagado. E o que é pior, é que ao
divagar, meti-me com uma companhia desagradável...
Stirner e Nietzsche, Henrik Ibsen e Oscar Wilde.
Também existe um automóvel cinzento?!
“Loucos”, “degenerados”, “delinquentes”, isso tudo.
Oh céus, salvem-me dos raios das pessoas de bem...
E salvem-me também daqueles que, em vez de se ocuparem
a destruir, na batalha do dia-a-dia, um pouco desta sociedade
que os oprime e destrói, perdem o seu tempo a querer ensinar,
para imporem formas de luta e de pensamento àqueles que
querem aprender a lutar e a pensar por si.
E quando o seu tempo não é gasto a fazer tudo isto, é emp-
80
OS VAGABUNDOS DE ESPÍRITO
regue a tentar perceber em que medida deverão ser construídos os manicómios que acolherão os novos rebeldes da futura
sociedade.
Eu, no que me toca, encontro-me bem na companhia destes
“loucos” e, tal qual um deles, quiçá o melhor, grito:
“Destruam, destruam os bons e os justos, pois eles foram sempre o princípio do fim.”
Oh, como vivo bem na companhia destes “Loucos”!
Como acho grande a sua “louca destruição”!
Juro que amo mais, imensamente mais, a loucura destruidora
do que a sabedoria conservadora.
Sim, sim, deixem-me com os meus “loucos”, pois vos prometo que se a próxima revolução Europeia negar a alegria de cair
envolto num delírio de DESTRUIÇÃO, eu voltarei a falar Deles
numa melhor altura, e se houver qualquer coisa a repreender
– quem sabe a sua pouca “loucura”?! – irei fazê-lo sem qualquer reserva.
Renzo Novatore
Cronaca Libertaria, Milão, 1917
NOTAS
1. Personagens da peça Når vi døde vågner (Quando despertarmos
de entre os mortos) de Henrik Ibsen. A peça gira em torno da relação de Arnold Rubek com a sua antiga modelo e amante, Irene.
Este está casado com Maia Rubek mas encontra-se infeliz. Ao reencontrar Irene dá-se a revelação de que ambos se sentiam mortos
desde que se separaram, havendo uma tentativa de voltarem a estar juntos. A peça termina com a Arnold a exortar a um ressuscitar
de algo que estaria morto, a que Irene acede caso seja feito acima
das nuvens da tempestade que se avizinha, no cume da montanha
e à luz do sol. Este sobem a montanha para poderem viver de novo,
mas uma avalanche acaba por ceifar-lhes a vida. (N.T.)
81
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
2. O Pescador a que o autor se refere é uma personagem do conto
The Fisherman and his Soul (O Pescador e a sua Alma) que pertence
à colectânea de contos de fadas The House of Pomegranates (A Casa
das Romãs) de Oscar Wilde. Esta é a história de um pescador que
se apaixona por uma sereia e que se tenta livrar da sua alma para
poder viver com ela debaixo de água, já que só o poderia fazer se
não tivesse alma. Ele procura um padre que lhe diz que quem perde
a alma se encontrará perdido, ele tenta vender a alma no mercado mas dizem-lhe que ela não vale nada, e, por fim, procura uma
bruxa que o ajuda em troco de uma dança. A sua alma separa-se
dele e viaja pelo mundo, tentando-o todos os anos com histórias
fantásticas para que este volte ao mundo terreno. No terceiro ano
fala-lhe de uma cidade onde as mulheres dançam descalças, e este
decide reunir-se à sua alma para ver tal espectáculo, mas ao fazê-lo
não consegue voltar a separar-se dela e regressar ao mar para junto
do seu amor. O Pescador espera, então, pela sereia todos os dias
junto ao mar. A história termina com a morte de ambos. (N.T.)
82
À CONQUISTA DE NOVAS AURORAS
À conquista de
novas auroras
Construímos o nosso ninho sobre a árvore do porvir; as águias
trituram para nós a comida no seu bico arqueado. Na verdade,
não é comida que os impuros também possam provar. Eles acreditariam estar a comer fogo e queimariam a boca.
Nietzsche
Quando as promessas douradas da Aurora avançam sobre um
horizonte sem brilho, misturadas com aquele tom prateado da
Madrugada, para remover da face nacarada do novo dia o véu
escuro e fúnebre da noite, eu tremo!
Eu tremo esperando pelo Meio-dia!
O meio-dia repercute nos abismos da minha alma os torrenciais desfiles de músicas dionisíacas!
“Oh meio-dia, apressa-te! Faz com que eu veja dançar ao teu
redor homens de luz! Eu também me vejo a mim mesmo entre
esses meus amigos!”
Esta é a única prece que eu recito pela manhã.
Mas, ai de mim! Quando o meio-dia passa e o crepúsculo se
aproxima, sinto a minha alma invadida pela tristeza.
Oh, o terrível anoitecer... Quando o sol se volta a pôr e o dia
morre... A hora em que os últimos raios de luz procuram resistir
tenazmente à implacável invasão das sombras!
Lembram-se? Passaram-se alguns anos, longos como séculos,
desde que fomos subjugados pela sombra crepuscular de uma
época que vai em direcção ao pôr-do-sol, e hoje encontramo-nos ainda em plena escuridão!
83
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Oh, como eu odeio a noite! Como odeio esta inimiga do sol e
da luz!
Esta infame megera dos morcegos e dos mochos!
Oh, Aurora! Nova Aurora, apressa-te!
Traz-nos os quentes e vibrantes meios-dias longos como a
eternidade, encerrados nas tuas promessas de marfim dourado!
***
Mas, não! Não é possível esperar-te!
É preciso esquartejar o ventre da noite, é necessário arrebatar-te ao mistério!
Nós atiraremos sobre os telhados da cidade adormecida a
nossa pedra despertadora!
Nós, solitários...
Oh, sim! Despertaremos mesmo aqueles que estão placidamente envoltos pelo manto de Morfeu1!
Eles deverão aprender a seguir-nos a nós que, pequeno punhado de audazes, nos pomos de pé com o nosso grandioso
destino encerrado na mão e, desprezando aqueles que o sono
letárgico já entregou à morte, marchamos triunfalmente em
direcção aos mais elevados cumes onde irrompem os raios da
nossa tragédia espiritual e da nossa epopeia material!
Permaneçam, desde já, nos pântanos os adoradores da lua e
os enfraquecidos amantes da noite: nós queremos a luz! Nós
subiremos às rochas do horizonte, banhadas pelo sol, e com
a alma cheia de uma tragédia solene e majestosa, deitar-nos-emos na companhia das Alvoradas! Elas esclarecerão o enigma do eterno “Porquê” e explicar-nos-ão as canções que os
ventos cantam nas alturas!
Os ventos fortes, que nasceram da floresta virgem do Ideal!
Do Ideal que cuida das eternas razões do Infinito!
“Eis que chega a alvorada, eis que chega o meu canto!” Grita-nos o Porvir!
E nós queremos dançar sobre os cumes das mais altas montanhas beijadas pelo SOL e não contaminadas pela plebe, lá
em cima, onde tudo é anarquismo e não cristianismo.
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À CONQUISTA DE NOVAS AURORAS
Oh Alvorada, oh Alvorada! Vem, deita-te connosco e nós dar-te-emos todas as audácias das nossas forças virgens! Nós, soldados do Sonho.
Nós que queremos viver no azul, porque assim quer a nossa alma!
Nós que queremos destruir tudo aquilo que não é puro: assim quer a nossa vontade!
Nós que queremos ser as eternas sentinelas avançadas: assim quer a nossa força!
Mas também queremos voltar a meio da noite para depositar sobre os telhados de chumbo da cidade adormecida os tesouros por nós arrebatados ao mistério, assim quer o nosso
coração!
E não pedimos, por tudo isto, nenhuma recompensa aos
adormecidos, porque nascemos apenas para dar!
Será já uma grande alegria para nós poder doar os nossos
tesouros!
Quem, dentre nós, não compreende como é difícil a arte de dar?
Mas mesmo assim nós daremos! Assim quer o nosso egoísmo, que é quanto o nosso amor disser daquilo que os homens
e também as mulheres deverão ser!
E vocês que nos ouvem, queiram ao menos compreender
que não somos sacerdotes da demagogia; muita é a nobreza
do nosso coração para fazer-nos cair na vergonhosa devoção
a esses ofícios repugnantes.
Não atirem dessa lama a quem sabe saltar sobre pontes de
Liberdade e sabe cavalgar arco-íris de luz, se não quiserem que
vos respondam com o amargo e violento sarcasmo de Nietzsche:
“Cuidado ao cuspirem contra o vento!”
Tenham em consideração os espíritos que querem libertar-se
definitivamente de tudo aquilo que nasceu monstruosamente
do passado e que soa a: realidade do presente.
Respeitem aqueles que vivem no Porvir!
O nosso olhar fixa-se intensamente nos portos da bem-aventurada Ilha que se ergue para além do bem e do mal. É nela
que germinam as flores verdes e silvestres da nossa mais bela
esperança!
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
É para lá, em direcção àquela Ilha, que ansiosamente se vira a
proa dourada do nosso Navio!
Renzo Novatore
Il Libertario, La Spezia, Ano XV, 17 de Março de 1917
NOTAS
1. Deus grego dos sonhos, filho de deus Hipnos, deus do sono,
e da deusa Prasiteia, deusa do descanso, e sobrinho de
Tânatos, deus da morte. O seu nome vem de morphé, forma,
já que moldava os sonhos dos mortais e apareceria neles de
diversas formas. (N.T.)
86
PENSAMENTOS E MÁXIMAS
Pensamentos e
máximas
“O homem deve o seu braço à República, a sua inteligência
aos Deuses, a sua pessoa à família: mas os sentimentos do seu
coração são livres.” Assim escreveu Platão.
Mas disso tudo eu não concordo senão com o que diz respeito
aos sentimentos do coração; o resto, para além de ser muito
discutível, poderá mesmo ser ofensivo.
***
O Troilus1 escreve: “Não quero ser eu próprio, nem ter conhecimento daquilo que sinto.” E eu constato, com amarga tristeza,
que são muitos aqueles que tomaram para si esta terrível blasfémia, e, o que é pior, querem-na impor aos seus filhos como
evangelho de vida.
***
Aquele que se reencontrou a si próprio, sente ecoar nos abismos da sua alma cânticos gloriosos de liberdade e de vitória.
***
“Se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo”, afirmou Voltaire; por sorte Bakunin respondeu: “Se deus existisse, seria preciso matá-lo.”
87
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
“Só na posse de todo o próprio ser e de toda a própria força é
que a alma, restituída a si própria, compreende naturalmente
e sente que isso é qualquer coisa de inacessível à razão.” Assim
escreveu Thomassin. Mas quem de vocês não sabe que era um
teólogo?
***
“Não existe maior indício de ser pouco filósofo e pouco sábio
do que desejar uma vida inteira de sabedoria e filosofia.” Assim
afirmou Leopardi, e ao fazê-lo, disse uma grande verdade. Mas
hoje a loucura colectiva ultrapassou por completo esse indício,
e o triste e melancólico poeta da Dor não pode ter nenhuma
responsabilidade moral neste triste caso.
***
Tácito foi implacavelmente inexorável contra todos os responsáveis pelas guerras atrozes que devastaram toda a humanidade dos seus tempos. Mas Tácito viveu numa daquelas épocas infelizes (?) em que as guerras eram chamadas “barbárie”,
mesmo por grandes historiadores como Ele. Ao invés, no nosso
século e no de Benedetto Croce2, a guerra chama-se “civilização”! Quando se diz os tempos!...
***
Lucrécio, que viveu numa época cheia de horrores bélicos,
cantava os seus encantos a Vénus, deusa do Amor, suplicando-lhe que tranquilizasse a ira de Marte 3.
Gabriele D`Annunzio, improvisando como um novo Homero
(?), aperta a sua lira, fazendo-a produzir glórias ao brutal deus
da guerra, para que se possa tornar ainda mais brutal e cruel.
Esta até pode ser uma questão de épocas, mas eu creio que é
mais do que tudo uma questão de vaidade e de... dinheiro!
88
PENSAMENTOS E MÁXIMAS
***
Horácio, dirigindo-se – como se diria em língua moderna – aos
“civilizadores” da sua época, exclamava: “Fascina-vos um cego
furor? – Respondam-me! Calam-se” – prossegue – “e uma branca palidez tinge os vossos rostos; é o crime do fratricídio que,
desde que o sangue de Remo caiu sobre a terra, amaldiçoou os
seus descendentes.” Mas Horácio morreu há muito tempo e a
“branca palidez” deixou de tingir os rosto dos nossos guerreiros!
Renzo Novatore
Il Libertario, La Spezia, Ano XVI, n.695, 1917
NOTAS
1.
O autor referir-se-á aqui ao poema do abade alemão Alberto de
Stade (1187? – 1264) sobre a Guerra de Tróia. (N.T.)
2.
Benedetto Croce (1866-1952), foi um filósofo, historiador e
político italiano. Nasceu no seio de uma família rica e influente,
sendo-lhe dada uma educação católica, que acabou por rejeitar
na adolescência. Em 1883 perde toda a família num terramoto
que ocorreu em Casamicciola, perto de Nápoles, tendo o próprio
escapado com vida por pouco. O facto de ser proveniente de
uma família com posses fez com que se pudesse dedicar ao estudo e à escrita. Formou-se em direito pela Universidade de Nápoles, mas foi a Filosofia e a História que mais o atraíram para o
estudo, ao qual se dedicou por sua própria conta. Nesse campo,
foi bastante influenciado por Hegel, adoptando uma visão historicista da realidade e desenvolvendo a sua própria Filosofia do
Espírito, na qual fazia uma divisão da actividade mental entre
teórica e prática, ocupando-se a primeira dos campos da estética e da lógica e a segunda dos campos da economia e da ética.
No campo político, Croce era um defensor do liberalismo, com
uma posição muito própria sobre o mesmo, dando primazia ao
indivíduo em sociedade, mas rejeitando, contudo, um atomismo
89
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
social, e defendendo um governo com poderes limitados e sem
poderes legítimos fixados. A sua visão historicista da liberdade
acreditava que esta, não sendo um direito natural, era um direito
histórico, ganho através das contínuas lutas pela sua manutenção e, nesse sentido, acreditava que a civilização significava uma
“vigilância contínua” contra o barbarismo. A sua concepção liberal baseava-se também numa crença aristocrática de que deveriam ser os “melhores” a dirigirem a sociedade, beneficiando
esta com as suas qualidades. É nesse sentido que se envolve na
política, tendo sido nomeado primeiro senador, em 1910, e mais
tarde Ministro da Educação Pública de 1920 a 1921, durante o
governo de Giovanni Giolitti. Posteriormente, Benedetto Croce
apoiou Benito Mussolini inicialmente, acreditando que este
pudesse “restaurar a ordem” numa Itália assolada por greves e
ocupações de fábricas, mas logo se desiludiu, rompendo definitivamente com o fascismo depois do assassinato do socialista
Giacomo Matteotti. Foi um dos subscritores do Manifesto dos intelectuais anti-fascistas que denunciava a violência e supressão
da liberdade de imprensa em Itália, tendo sofrido represálias por
isso mesmo. Apesar disso, manteve sempre uma posição anti-regime, salvaguardada pela sua posição social. Acabou por voltar
à política em 1944, depois da queda de Mussolini, tendo sido
Ministro sem pasta do segundo governo Badoglio e do segundo
governo Bonomi. Foi também Presidente do Partido Liberal até
1947. Veio a falecer em Nápoles a 20 de Setembro de 1952, sentado na poltrona da sua biblioteca. (N.T.)
3.
90
Deus romano da Guerra, era representado como um deus cruel e que tinha como sua amante a deusa do Amor, Vénus, com
quem teve um filho, Cupido, e uma filha, Harmonia. (N.T.)
GRITO REBELDE
Grito rebelde
Dedicado à plebe
A queda dos povos e da humanidade será o sinal da minha
elevação.
Max Stirner
Não se pode continuar a alimentar o espírito irrequieto e questionante dos homens novos com a histórica cicuta de Sócrates1
ou com a legendária cruz de Cristo.
Estes dois sacrifícios, que afortunadamente já caíram nos profundos abismos de um passado tenebroso, foram – sem dúvida
– consumados em total prejuízo de individualidades exuberantes, com tensões e pulsões manifestantes de uma vida livre.
E eu confesso que o próprio Diógenes2, no confronto com
Sócrates e Cristo, parece-me, na verdade, um grande inovador,
já que no seu barril existe um significado diferente e bem mais
profundo do que na Cicuta de um e na Cruz do outro.
Mas se Sócrates e Cristo, com as suas mortes inúteis, atingiram – depois de os terem feito sangrar horrivelmente – os seus
verdadeiros e próprios potenciais individuais, será que todas as
revoluções a partir de então não farão talvez o mesmo?
Não foi, pois, através de uma dinâmica revolucionária que o
Cristianismo triunfou sobre a quase invejável sociedade pagã?
E não nasceram, quiçá, todas as repúblicas, os impérios,
as monarquias liberais, constitucionais, absolutistas ou...
democráticas, de torrentes de sangue, ondulando pelos campos em chamas das guerras e das revoluções?
91
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Mas por que razão o pulso violento e febril de todas as revoluções foi sempre interrompido gratuitamente, permitindo
que novos fantasmas se erguessem mais uma vez como senhores soberanos?
A resposta, certamente, não se faz esperar, já que não resultará difícil de compreender para ninguém que todas a Revoluções foram, de uma forma ou de outra, domesticadas e
os revolucionários foram sempre – à excepção de uma ínfima
minoria, os “loucos” – autómatos guiados por quimeras e fabulosos fantasmas.
Mas que valor terão para mim esses fantasmas? De que me
pode servir tudo isso? A mim, Iconoclasta, assassino de fantasmas, destruidor de novos e velhos ídolos?
De que me pode servir a mim, por exemplo, o triunfo do Cristianismo? A mim, que sou anti-cristão por excelência?
E as repúblicas e monarquias, e todas as outras formas de sociedade que, em suma, erguendo-se como soberanias “sagradas”, não podem reconhecer em mim senão o “cristão”, o “súbdito”, o “cidadão”, o “membro”, etc.? Pois não me parece difícil
compreender que em qualquer forma de sociedade deve existir
um “sistema”, sendo, esse sistema, apenas o melhor dos melhores: a Igualdade!
Mas todos os sistemas “sagrados” e tudo aquilo que é Sagrado, de forma divina ou humana, requerem de mim, Indivíduo,
renúncias e humilhações. E ainda há mais.
Pois cada forma de sociedade, nascida sobre as ruínas da velha caída ruidosamente no nada, tem a convicção de ser a única
perfeita. E é precisamente esse dogma da perfeição que a leva
a ser, na maioria das vezes, reaccionária contra o irrequieto Rebelde que não se pretende inclinar nem mesmo perante o novo
Deus: já que se hoje, por exemplo, a revolta contra o déspota
de toda a Rússia encontra a sua aprovação e justificação nos
imundos jornais diários, estes não aprovariam e não justificariam coisa nenhuma se essa revolta rebentasse no... cândido
seio da... liberal e... democrática... Itália.
Pelo contrário...
Mas dêmos ainda um passo em frente! Suponhamos, por ex-
92
GRITO REBELDE
emplo, que amanhã se proclamava a República na Itália: neste
caso, não se tornaria uma grande parte dos que hoje se fazem
crer furiosamente revolucionários nos mais ferozes conservadores reaccionários de amanhã?
E se qualquer “cabeça quente”, qualquer “louco” ou qualquer
“exaltado”, quisesse questionar mais uma vez o seu novo edifício, o seu novíssimo Deus? Aqui parece-me ter ouvido algumas
boas pessoas – talvez demasiado boas – exclamarem: Aquele
é, portanto, um inimigo da Revolução?! – Não, não. Oh boa
gente, escutem-me novamente pois eu sou tão revolucionário
que quase nem me reconheço! E sabem porque sou um revolucionário quase irreconhecível? Por uma coisa muito simples
mas... grande na sua simplicidade. E é esta: eu sou um revolucionário guiado somente pelo imenso e imparável impulso da
MINHA expansão de vontade e de poder.
Não é um fantasma que me guia, sou eu que caminho; não é o
sonho quimérico de uma sociedade perfeita e de uma redenção
humana universal, mas é a vontade absoluta do meu poder se
afirmar diante dos outros poderes.
Deus, o Estado, a Sociedade, a Humanidade, etc, têm para eles
uma própria causa. Se eu não me quero submeter à causa de
Deus, sou um “pecador”. Se não quero tolerar o Estado, a Sociedade, a Humanidade, sou um “ímpio”, um “criminoso”, um
“delinquente”.
Mas o que é o “pecado”? O que é o “crime”?
Ainda que eu acredite que para fazer uma análise de tudo isto
não seja necessário uma longa e precisa divagação demonstrativa; pois até as crianças deverão já saber que o mais grave pecado que se pode cometer contra a divindade é o de desprezá-la, não lhe obedecer, profaná-la e renegá-la. Em suma, profanar aquilo que é divinamente e humanamente “sagrado” é o
maior “pecado”, o maior “crime”.
“Sagrado”! Eis o mais monstruoso e terrível fantasma diante
do qual todos têm tremido até hoje.
Eis a velha e desgastada tábua que deve ser quebrada pelos
novos homens!
Os LIVRES, os ICONOCLASTAS, todos aqueles que, final-
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
mente, descobriram no “pecado” e no “crime” a nova fonte da
qual jorra a síntese suprema da vida.
E também a plebe, quando aprender a matar a sede nestas novas e desconhecidas fontes, compreenderá, bem rapidamente,
que também ela é uma força granítica.
Mas para que isso aconteça, a plebe nunca mais se deverá deixar dominar pelo medo.
Oh plebe, ouve-me! Eu não sou o novo Cristo que vem para se
sacrificar no altar das tuas redenções. Se eu o fizesse, seria um
louco e tu uma pedinte.
Eu aproximo os meus lábios às tuas orelhas profanas e lanço
um grito. Um grito tremendo que te fará empalidecer. O grito
que eu lanço é o do grande rebelde alemão Max Stirner.
Escuta-o, portanto, pois é só em virtude deste grito mágico
que, enquanto plebe, deverás desaparecer para depois ressurgires através do florescente potencial de todos os teus membros
individualizados.
Eis o grito mágico: O Egoísta sempre se afirmou através do
crime e deitou abaixo, com uma mão sacrílega, os ídolos sagrados
dos seus pedestais. É necessário acabar com o sagrado; ou, melhor
ainda: a vontade de destruir o sagrado deve tornar-se geral. Não é
uma nova revolução que se avizinha: mas, poderoso, impetuoso,
soberbo, sem vergonha, sem consciência, anuncia-se um crime no
horizonte com o ruído de um trovão: não vês que o céu carregado
de presságios se silencia e escurece?
Mas também aqui te vejo, oh plebe, recuar e gritar-me com horror: “Mas que crime é este? Que quer ele dizer com tudo isto?”
Ah, plebe, plebe! Não compreendeste ainda a sua linguagem?
Então escuta novamente. É ele quem fala: Mete a mão a quanto necessitares. Apanha-o: é teu. É a declaração de guerra de
todos contra todos. Eu sou apenas o juiz daquilo que quero ter.
Compreendes agora, oh plebe, qual é o crime que SE ANÚNCIA
NO HORIZONTE COM O RUÍDO DE UM TROVÃO? Mas tu, oh
plebe, talvez não saibas adaptar-te ainda à ideia de uma guerra
eterna, tu que foste embalada, como uma miserável criança,
num doce sonho de paz eterna. E, para além disso, quem sabe
quantos ídolos terás ainda de adorar e em que altares deverás
94
GRITO REBELDE
ainda sacrificar-te!
Pobre plebe!
E pensar que também os cegos terão a necessidade de se aperceberem, desde já, que quem não aceitar a eterna guerra pela
afirmação e pelo triunfo, terá de aceitar a eterna escravidão
pelo triunfo dos terríveis fantasmas, inimigos declarados do Eu.
Sim, oh plebe, eu decidi ser, mais uma vez, profundamente
sincero contigo. E eis o que te disse a minha sinceridade – Hoje
sacrificas-te na ensanguentada trincheira por uma causa que
não é a tua, amanhã possivelmente sacrificar-te-ás nas ruas
ensanguentadas pela Revolução, para permitir que em seguida
um novo verme parasitário e corroente se erga de um mar de
sangue, saído numa corrente quente e fumegante das tuas veias
queimadas, para que seja elevado a novo ídolo e se sente sobre
ti próprio, tal qual o antigo Deus.
O refrão do Amor, da Piedade e do Direito consagrado, voltará
a fazer-se ouvir, tocado com muita mestria pelas novas harpas,
componentes da mais antiga sinfonia.
Escuta-me plebe! Devo dizer-te ainda mais uma outra coisa. E
aquilo que ainda tenho para te dizer é aquilo que mais me pesa.
Aqui estou, portanto. Eu sou ÚNICO e enquanto tu fores plebe
eu não me poderei associar a ti. Quando eu o fizer, será para te
persuadir a golpeares o meu inimigo, que é o teu patrão. Mas
tu, como plebe, não te deixarás persuadir, pois ainda adoras em
demasia o teu Senhor.
Tu ainda queres continuar a viver ajoelhada. Mas eu compreendi a Vida!
E quem compreendeu a vida não pode viver de joelhos.
Eu compreendi, ainda para mais, as armadilhas que os proprietários de tudo isto prepararam para mim.
Quando eles me viram avançar, com audácia, à conquista da
minha vida, armado com toda a minha força sem escrúpulos,
puseram diante do meu olhar ávido todos os seus fantasmas
ridículos e insanos.
Tentaram aterrorizar-me com o espantalho do “sagrado”; mas
visto que eu, o Iconoclasta, o Ímpio, escarneço e ridicularizo
tudo o quanto é “sagrado” ou está “consagrado” e que, tal como
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Armida3, destruo o palácio no qual um dia padeci de um encantamento, eles retiraram a sua máscara sagrada e, lançando-se
contra mim com toda a sua força, impuseram-me o non plus
ultra 4.
Foi naquele dia, oh plebe, que tive a verdadeira revelação daquilo que é a vida, e de qual a posição que a minha Unicidade
poderá ter nesta!
Agora vivo de pé. Os meus olhos deixaram de conhecer o sono.
Não reconheço a ninguém qualquer direito contra mim. Daqui em diante, só a força me poderá vencer, mas não mais os
fantasmas.
Só a força me poderá vencer, tenho dito. Mas também eu faço
uso dela. Não peço mais nada a ninguém.
Não sou um pedinte.
Aproprio-me apenas de tudo aquilo que estou autorizado a
apropriar-me através da minha capacidade de poder.
A minha Revolução já começou há muito tempo.
Desde aquele dia em que compreendi a vida, agarrei nas
MINHAS armas e declarei a MINHA guerra.
Eu luto por uma causa que é minha, nenhuma outra causa
poderá também interessar-me.
Os meus inimigos lutam, também eles, por uma causa que é a
deles contra mim.
Mas eu não odeio os meus inimigos por isso.
O VERDADEIRO interesse que eles têm para me combater,
eximi-o do meu ódio, já que não é senão pelo meu VERDADEIRO interesse que eu empunhei as minhas armas contra eles.
Eu poderei muito bem matá-los para meu triunfo, mas sem
odiá-los, sem desprezá-los; eu não luto por fantasmas!
Ao invés, eu desprezo os pedintes, os miseráveis, todos aqueles
que não ousam combater, mas que só sabem rezar e chorar.
São eles que mendigam as migalhas caídas da faustosa mesa
do meu inimigo.
E é com esses miseráveis de corpo e de espírito que o meu
inimigo cria uma força cega e formidável, que lança contra
mim na batalha começada entre nós, Egoístas.
Mas que poderão ganhar esses miseráveis com a vitória al-
96
GRITO REBELDE
cançada sobre mim pelo meu inimigo, ou seja, o seu patrão.
Nada mais do que as habituais migalhas e do que a eterna escravidão!
Mas que coisa és tu então, oh plebe, senão a massa inconscientemente cega e miserável que se lança contra mim em defesa
do teu Senhor? Escuta-me plebe! Deves desaparecer como Tal,
não deves ter lugar no teatro da nova vida.
Olhas-me com desprezo? Será talvez para te lançares contra mim?
Terei talvez sido bem sucedido ao despertar em ti, com os golpes poderosos do meu chicote, um resíduo íntimo de orgulho
que ocultamente dormia nos recônditos recantos da tua alma
secularmente servil?
Já se ouvem ao longe o som dos trompetes guerreiros que te
anunciam os invencíveis ataques dos Únicos contra os fantasmas: Estado, Sociedade, Deus, Humanidade...
Empalideçam e fujam, arrastando para o abismo do nada
eterno tudo aquilo que vos rodeia; eis a falange rebelde dos
Livres e dos Iconoclastas que implacavelmente avança no turbulento céu do Porvir!
Renzo Novatore
Cronaca Libertaria, Ano I, n.2, 10 de Agosto de 1917
NOTAS
1. Segundo Platão, Sócrates foi condenado pelo tribunal da cidade
de Atenas, acusado de descrença nos deuses e nos costumes da
cidade, de introduzir novos deuses na cidade e de corromper a juventude com as suas ideias. Na altura de escolher entre o exílio ou
o corte da língua, acabou por decidir pela terceira opção que lhe foi
dada, a morte, sendo condenado a beber a cicuta. O autor faz, aqui,
a crítica ao sacrifício tanto de Sócrates como de Cristo, baseados na
ideia de um reino dos céus ou dos bem-aventurados. (N.T.)
2. Diógenes de Sínope, o Cínico. Filósofo grego, terá vivido entre 404
97
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
ou 414 a.C. e 323 a.C.. Símbolo do rebelde, diz-se que vivia num
barril, como um mendigo, deambulando pelas ruas de Atenas com
uma lamparina acesa à procura de um homem honesto. A sua vida,
despojada de bens materiais, e a sua filosofia, tinham por base a
procura de uma auto-suficiência em busca da plena liberdade, sendo que esta deveria ser realizada na prática e não na teoria. Diz-se
também que via com desdenho e escárnio a acumulação de posses
e que quando Alexandre o Grande se aproximou dele para lhe oferecer os seus préstimos, ele apenas lhe pediu que não lhe tapasse
o sol, sendo essa uma representação dos valores da sua filosofia.
(N.T.)
3. Armida é uma personagem do poema épico La Gerusalemme
liberata do poeta italiano Torquato Tasso. Ela é uma sacerdotisa
sarracena que, com a sua inefável beleza, conquista o amor de
Rinaldo, um destemido e glorioso cruzado. O seu plano seria o de
enfraquecer a força dos cavaleiros cristãos, mas Armida acaba por
se apaixonar por Rinaldo, levando-o para uma floresta que transforma num palácio de prazeres. Quando Ubaldo e Carlo, dois companheiros de Rinaldo, chegam à floresta para o salvar dos encantos
de Armida, conseguem fazer com que Rinaldo veja o seu reflexo no
espelho que lhe mostra uma imagem deformada do bravo cavaleiro que outrora teria sido. Os três fogem, mas Armida consegue
alcançá-los, tentando demover Rinaldo a não partir. Apesar deste
ainda se sentir encantado pela feiticeira sarracena, eles acabam
por escapar, e Armida, dividida entre o amor e a vingança, destrói o
palácio dos prazeres. O poema termina com Armida a converter-se
ao cristianismo depois do seu exército ter sido derrotado pelo dos
cristãos, e de Rinaldo a ter salvo do suicídio por amor a esta. (N.T.)
4. Em português, Não ir mais além ou Não ultrapassar. Segundo os
escritos clássicos, estas palavras estavam inscritas, em grego, nas
Colunas de Hércules, localizadas no estreito de Gibraltar, e eram
um aviso à navegação para que aqueles limites não fossem ultrapassados. (N.T.)
98
FLORES SILVESTRES
Flores silvestres 1
Prólogo. Mesmo nas charnecas sem fim dos inóspitos desertos, as flores germinam. Flores silvestres que emanam perfumes pecaminosos e que, com os seus espinhos, fazem sangrar as próprias mãos daqueles que as apanham, mas que têm,
porém, a sua grandiosa história de alegria, de dor e de amor.
Repito: são flores raras e silvestres que surgem do nada que cria,
foram fecundadas pelo sol e depois cruelmente arremessadas
pelo furacão, assim!
Estas flores são pensamentos que germinaram na profunda e
meditativa solidão da minha alma, enquanto lá fora, no mundo
que não me pertence mais, se enfurece a loucura sulcada pelo
fogo electrizante do raio que rompe implacavelmente.
E eu, vagabundo impenitente, que adoro galopar pelos alegres
e assustadores caminhos deste meu reino solitário e deserto, ficarei satisfeito por apanhar de vez em quando um molho destas flores silvestres, para coroar esta bandeira rebelde que, uma
vez reprimida de forma brutal e cobarde, canta novamente pelo
alegre refrão do eterno retorno.
***
Anarquista é somente aquele que, depois de uma longa, ofegante e desesperada procura, se encontrou a si próprio e colocou-se, desdenhoso e soberbo, “à margem da sociedade”,
negando a qualquer um o direito de o julgarem.
Aquele que não sabe estar à altura das próprias acções, reconhecendo-se, somente a si como seu próprio juíz, poderá talvez
99
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
acreditar ser anarquista, mas não o é!
A força de vontade e de poder (não se confunda com o poder),
o espírito de auto-elevação e de individualização, são os primeiros degraus de uma longa e interminável escadaria pela
qual sobe aquele que se quer superar também a si próprio, acima de todas as coisas.
Somente aquele que sabe despedaçar com uma violência impetuosa os ferrugentos portões que encerram a casa da grande
mentira, onde se encontram reunidos os indecentes ladrões do
Eu (deus, estado, sociedade, humanidade), para recuperar das
mãos vis e vorazes – adornadas pelo falso ouro do amor, da piedade e da cultura – dos sinistros predadores o seu maior tesouro, pode sentir-se dono e senhor de si e chamar-se anarquista.
***
O anarquista, para além de ser o maior rebelde, tem também o
orgulho de ser um Rei. Um Rei de si mesmo, entenda-se!
Quem acredita que Cristo possa ser a marca e o símbolo que
o homem deve agitar para alcançar a síntese libertária da vida,
não pode ser mais do que um socialista ou um cristão que nega
o anarquismo.
Quando Sócrates, que apesar de tudo era, sem dúvidas, muito superior à bestialidade daquele seu povo que o condenava,
aceitou a cicuta que estes o faziam engolir, cometeu uma tal
obra de cobardia e devoção, que não pode deixar de ser cruelmente condenada pelo anarquismo.
***
Escapar, através de qualquer meio, à invencível bestialidade
de um povo feroz e brutalmente entregue a um preconceito
canibalesco e a uma ignorância assustadora, ou à sádica depravação de uma sociedade putrefacta que se crê no direito
100
FLORES SILVESTRES
de julgar e condenar um indivíduo porque cometeu uma certa
acção que a dita sociedade não está à altura de em tempo algum compreender; é um acto grandiosamente rebelde e individualista que só no anarquismo pode encontrar a sua razão de
ser e a sua glorificação.
***
Ai de mim! Também a consciência não é mais do que um fantasma atávico e assustador. E só terminará de o ser quando
o homem souber devolver-lhe a imagem e o espelho da sua
própria e única vontade.
***
O primeiro homem que disse: “Não existe nenhum deus”, foi,
sem dúvida, um atleta do pensamento humano. Mas aquele
que se limitou a dizer que: “O deus dos padres não existe”, enganou com um equívoco, permitindo a compreensão de ser,
ele, um devoto sombrio que já premeditava matar os homens,
possivelmente, com uma nova mentira.
Mantenham-se bem atentos a esses que se limitam apenas a
negar deus.
Renzo Novatore
Cronaca Libertaria, Milão, Ano I, n.8, 20 de Setembro de 1917
Não sei porquê, quando penso nos NOSSOS (!) escrupulosos (!)
jornalistas, nos fornecedores da “nossa cara pátria”, sem falar nos
heróis da frente de combate interna, com toda aquela elite de
RE-VO-LU-CIO-NÁ-RIOS intervencionistas que se estão a sublimar num belo banho quente de um brilhante sol itálico, parece
que oiço a melodiosa voz de Laerte, na Odisseia de Homero, a
exclamar num inebriante delírio de alegria: “Que sol – brilha hoje
no céu, queridos Deuses! – Competirão as virtudes dos filhos e
dos netos – Jamais nasceu um dia tão belo quanto este!”
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
Ontem à noite, antes de me deitar, veio-me à cabeça a bizarra
ideia de interrogar um grande e querido amigo meu, morto de
loucura há alguns anos atrás, sobre a cínica apostasia daqueles
que um dia acreditavam ser, diziam ser ou eram nossos companheiros. E ele, Friedrich Nietzsche – o meu grande amigo
morto –, com o seu habitual sarcasmo violento, respondeu-me literalmente assim: “De facto, muitos deles naquele tempo
levantavam as pernas como bailarinas, pois o riso da minha
sabedoria seduzia-os – mas depois mudaram de opinião, e agora vejo-os arrastarem-se encurvados em direcção à cruz.”
***
“Ah! São sempre poucos os que possuem uma coragem longa
e duradoura no coração e que têm a virtude da persistência no
espírito. Todos os outros são cobardes.”
***
Querer afirmar-se, querer fazer triunfar as próprias ideias,
querer viver segundo as próprias inclinações e querer aperfeiçoar todas as próprias qualidades fisiológicas e cerebrais, eis
o propósito de todos aqueles que finalmente encontraram o
sem BEM e o seu MAL.
***
Querer elevar a própria individualidade e o próprio ideal até
ao verdadeiro amor dos amigos, e ao respeito dos adversários e
dos inimigos, oferecendo uma guerra impiedosa e sem quartel
a todas as tentativas por parte destes de abater-nos e humilhar-nos, é de quem é forte e audaz. Mas pretender que todos devessem viver e pensar como nós, parece-me demasiado grotesco, já que “cada pessoa – disse Stendhal – no fundo, se se der ao
trabalho de se examinar a si própria, alcançará o seu belo ideal,
102
FLORES SILVESTRES
e parece-me que é sempre um pouco ridículo tentar converter
quem está próximo de nós.”
***
Nunca soube explicar a mim mesmo o porquê de que ainda
possa existir quase uma multidão de homens, aparentemente
muito distintos e evoluídos, que acreditam e esperam poder
encontrar o seu próprio triunfo e a sua própria elevação no triunfo e na elevação do povo. Eles nunca repararam – como diria
em relação a outras questões Balzac – que jaz um esqueleto
onde eles se curvaram para recolher um tesouro.
***
“Quando se considera – diz o refractário Chamfort – que o fruto do trabalho e do pensamento de trinta ou quarenta séculos
foi o entregar trezentos milhões de homens, espalhados pela
terra, a uma trintena de déspotas, na maior parte ignorantes
e imbecis, cada um deles, por sua vez, governados por três ou
quatro celerados muito mais estúpidos, que poderemos pensar
da humanidade e do que ela espera no futuro?”
Pobre Chamfort! Se tu pudesses erguer-te da tua fria sepultura,
onde jazes já há mais de um século, poderias ver quais foram
os destinos que aguardavam pelo caminho desta humanidade
MISERÀVEL dos nossos tempos!
***
“... os impiedosos não fazem mais do que mudar de culto,
pondo e conservando, no próprio quadro da heresia, recordações das religiões” (G. Vales).
***
Apesar das tentativas feitas por certos selvagens, pelos Tártaros, por Licurgo e por certos povos gregos, de pôr a mulher num
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
papel comum, hoje o homem, para sua sorte, e quiçá da espécie, habituou-se a relacionar-se com esta como proprietário!
“A minha mulher!” diz o homem saudável. Pois dizer: “a nossa
mulher”, seria uma depravação.
Mas, que diz a mulher? Como responde ela? Ah, que caos! Que
caos terrível!
***
“As crianças, estas inocentes e pequenas crianças! Vi-as correrem atrás umas das outras pela rua, com olhos iluminados,
brincando à guerra, e ouvi uma delas chorar, com a sua fina voz
infantil: senti em mim um frémito de horror, de terror.
Fui para casa, anoiteceu, e aquelas crianças inocentes transformaram-se num sonho inflamado, como um incêndio nocturno, em legiões inteiras de jovens assassinos” (L. Andreiff).
Renzo Novatore
Cronaca Libertaria, Milão, Ano I, n.10, 4 de Outubro de 1917
NOTAS
1. Flores silvestres é uma coluna de Abele Rizieri Ferrari, no jornal
Cronaca Libertaria, assinada sob o pseudónimo Renzo Novatore.
Por essa mesma razão juntamos aqui duas dessas rubricas extraídas das páginas desse periódico, indicando as datas em que foram
publicadas. (N.T.)
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EM DIRECÇÃO AO FURACÃO
Em direcção ao
furacão
Permaneceremos com a cabeça erguida
até que seja de dia, e tudo aquilo que
pudermos fazer, não deixaremos
que seja feito antes de nós.
W. Goethe
Incendiemos a caneta no fogo vulcânico do nosso espírito
negador; mergulhemo-la no nosso vigoroso coração, cheio de
sangue rebelde e, à luz ateia da nossa alma, escrevamos, escrevamos...
Escrevamos coisas, rapidamente, sem pesquisas literárias vãs,
sem ideologias teóricas repugnantes, sem os sentimentalismos
ridículos e preconceituosos de histéricos e estadistas, apenas
envoltos no manto da nossa furiosa paixão!
Escrevamos apenas palavras de sangue, de fogo e de luz!
Range, arrasta-te, oh minha áspera caneta de fogo e de energia, sobre a pura brancura desta folha, como uma língua de
uma víbora no tenro pescoço de uma criança inocente para
levá-la, com o seu veneno, à morte.
Saiam, saiam de perto de mim todas as teologias, as teosofias,
as filosofias dogmáticas e políticas; para longe de mim todos os
sistemas pré-estabelecidos: tudo caiu incinerado sob as corroentes chamas de meu espírito negador.
Eu sou o niilista perfeito, o ateu radical.
Não foi apenas hoje, não, que eu encontrei, que eu descobri,
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
que eu sei que a única e mais bela moldura, dentro da qual sobressai livre, solene e majestosa a soberba Individualidade humana, é o Nada, o verdadeiro Nada!
Nenhuma prisão imunda poderá alguma vez prender esta
minha alma rebelde e iconoclasta; e hoje menos que nunca!
Hoje, que o enorme sino do tempo soou – sim, soaram fortes
pancadas para quebrar as mais duras cervizes da plebe idiota
–, é do Nada que devem sair furiosamente as destemidas falanges de chamas negras que, no ímpeto passional da revolta espontânea, constituirão a crepitante coluna de fogo que, vindo
diante do povo, darão o primeiro anúncio da destruição final.
Esta é a hora da amargura febril, da terrível ansiedade!
Esta é a hora que precede a hora divina da tragédia iminente,
em que se dará a heróica Morte e a heróica Grandeza.
Oh hora sagrada, que me dás toda a febril intensidade do espírito, eu amo-te!
Não trocarei a amargura que tu me causas por toda a medíocre doçura do mundo; não trocarei a febre que me martela as
têmporas, que me incendeia a testa, pela tranquilidade e a paz
de todos os homens vis!
Oh Satanás, inspira-me! Inspira-me, irmão divino!
Dá-me o poder infernal de incendiar todos aqueles espíritos
virgens que ainda não estiveram soterrados no monte de estrume das falsas teorias; faz com que possa cativar para perto
de mim um punhado de destemidos amantes da heróica e libertária Grandeza ou da Heróica Morte.
Que fiquem aí! Aí devem ficar! Que as almas temerárias fiquem
tranquilamente a apodrecer na companhia dos seus estúpidos
santos e do velho cretino bom deus!
Mas nós caminharemos! Chegou a hora de caminhar para todos aqueles que, dominando o ideal, se converteram em símbolo e encarnação.
Embalados pela divindade da nossa dor, seguiremos adiante
e, com o exemplo dos factos, indicaremos aos homens quais
são os caminhos que conduzem à nova luz! Cairemos? Não
importa! Queremos a libertação desta estúpida vida de humildade, de escravidão, de servidão, onde o homem deve caminhar
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EM DIRECÇÃO AO FURACÃO
de joelhos e o espírito falar submisso, em voz baixa, como uma
oração.
É necessário matar a filosofia cristã no sentido mais radical
da palavra. Quanto mais se vai introduzindo na civilização
democrática (a forma mais cinicamente feroz da depravação
cristã), mais vai em direcção de uma negação categórica da Individualidade humana.
“Democracia! Agora já compreendemos o que significa tudo
isso – disse Oscar Wilde. A Democracia significa simplesmente
dar bastonadas ao povo, pelo povo e em nome do povo.”
Contra tudo isto, soou a hora de nos insurgirmos e não apenas com um qualquer teórico balido de cordeiros repugnante
e antipático...
Uma outra coisa se quer neste ensanguentado crepúsculo de
uma civilização que teve o seu tempo! Ou a Morte ou uma nova
Aurora onde a Individualidade viva sobre todas as coisas.
Eu esqueci tudo, ou melhor, não esqueci: superei (e só eu sei
com que sofrimento), mesmo o amor insuperável pela minha
Companheira e a adoração pelo meu filho.
E os meus livros – os meus caros livros que amava acima de
tudo – agora dormem lá longe, longe de mim; lá longe na antiga
casa, dentro de uma grande cómoda, talvez cobertos de pó e
talvez banhados pelas lágrimas da minha cara Companheira.
Mas também o amor por vocês, oh meus caros livros, oh tochas luminosas do meu pensamento, eu superei!
Hoje sinto dentro de mim qualquer coisa mais forte que todos
os amores, que me beija a alma com todo o calor de um fascínio
irresistível...
Sobre as ruínas de tudo aquilo que destruí com a negação,
uma nova fé renasceu. A fé do impossível tornado possível
devido à minha negação, ou a máxima purificação, verdadeira,
que se encontra entre as ardentes chamas da catástrofe final,
trágica e redentora.
Hoje procuro só uma hora de furiosa anarquia e por essa hora
darei todos os meus sonhos, todos os meus amores, toda a
minha vida.
Mas essa hora virá! Oh, se virá! E se não vier, entregar-me-ei
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
voluntariamente às mãos antropofágicas dessa sociedade idiota e bestial que já me ofereceu uma magnífica sentença de
morte (1) (por ter-me lembrado de possuir ideias superiores,
que são úteis para ensinar que a divina liberdade do Eu é algo
mais belo e maior do que a sua guerra bestial) e far-me-ei fuzilar cinicamente como sinal do mais profundo desprezo contra
mim e contra a inominável cobardia de todos os homens.
Enviando os meus cumprimentos ao ressuscitado “Libertario”
e à próxima insurreição social, aperto fraternalmente a mão aos
verdadeiros rebeldes de todas as várias tendências!
Hoje é véspera de Acção! Ao primeiro cintilar, eu estarei convosco.
Renzo Novatore
Il Libertario, La Spezia, Ano XVIII, n.721, 27 de Fevereiro de 1919
NOTAS
1. Referência à pena de morte ditada a Abele Rizieri Ferrari por deserção. (N.T.)
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O EXPROPRIADOR
O Expropriador
A minha liberdade e os meus direitos são tantos quanto a
minha capacidade de poder. Também a felicidade e a grandeza,
tê-las-eis apenas na medida da minha força!
(De um livro que escrevi e que nunca virá à luz)
O Expropriador é a mais bela figura masculina, desinibida e
viril, que eu alguma vez encontrei no anarquismo. Ele é aquele
que não tem nada que esperar. Ele é aquele que não tem mais
nenhum altar onde se sacrificar. Ele glorifica unicamente a
Vida com a filosofia da Acção.
Conheci-o num distante meio-dia de Agosto, enquanto o sol
adornava de ouro a verdejante natureza que, perfumada e festiva, cantava canções alegres de uma beleza pagã.
Disse-me: “Fui sempre um espírito inquieto, vagabundo e
rebelde.
Estudei os homens e a sua alma nos livros e na realidade.
Encontrei neles uma mescla de cómico, de plebeu e de desprezível. Fiquei doente. Por um lado, os sinistros fantasmas
morais, gerados pela mentira e pela hipocrisia dominante.
Pelo outro, as bestas sacrificiais que adoram com fanatismo e
cobardia. Este é o mundo dos homens. Esta é a humanidade.
Sinto repugnância por este mundo, por estes homens e por
esta humanidade. Plebeus e burgueses equivalem-se. São
dignos uns dos outros. O socialismo não é dessa opinião. Ele
descobriu o bem e o mal. E para destruir esses dois antagonismos criou outros dois fantasmas: a Igualdade e a Fraternidade
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
entre os homens...
Mas os homens serão iguais perante o estado e livres no Socialismo... Ele – o socialismo – renegou a Força, a Juventude,
a Guerra! Mas quando os burgueses, que são os pobres de espírito, não querem saber de serem iguais aos plebeus, que são
os pobres da carne, então também o socialismo aceita, lamentando-se, a guerra. Sim, também o socialismo aceita matar e
expropriar. Mas em nome de um ideal de igualdade e de fraternidade humana... Dessa santa igualdade e fraternidade que
começou com Caim e Abel!...
Mas com o socialismo pensa-se por metade; é-se livre por
metade; vive-se por metade!... O socialismo é intolerância, é
incapacidade de viver, é a fé do medo. Eu vou mais além disso!
O socialismo considera o bem a igualdade e o mal a desigualdade. Bons os servos e maus os tiranos. Eu atravessei o limiar
do bem e do mal para viver a minha vida intensamente. Vivo
hoje e não posso esperar pelo amanhã. A espera é coisa do povo
e da humanidade, por isso não pode ser assunto meu. O futuro
é a máscara do medo. A coragem e a força não têm futuro pelo
simples facto de que são elas mesmas o futuro que se revolta
contra o passado e o destrói.
A pureza da vida avança apenas com a nobreza do coração,
que é a filosofia da acção.”
Apontei: “A pureza dessa tua vida parece roçar o crime!”
Respondeu: “O crime é a síntese suprema da liberdade e da
vida. O mundo moral é o mundo dos fantasmas. Existem espectros e sombras de espectros, existe o Ideal, o Amor universal, o
Porvir. Eis a sombra dos espectros: existe a ignorância, o medo,
a cobardia. Trevas profundas. Talvez trevas eternas. Eu também
vivi, um dia, nessa triste e imunda prisão. Depois muni-me de
uma tocha sacrílega para incendiar os fantasmas e violentar a
noite. Quando me aproximei dos ferrugentos portões do bem
e do mal, derrubei-os furiosamente e atravessei o seu limiar. A
burguesia lançou-me o seu anátema moral e a plebe idiota a
sua maldição moral.
Mas uma e outra são humanidade. Eu sou um homem. A humanidade é minha inimiga. Ela quer apertar-me entre os seus
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O EXPROPRIADOR
milhares de tentáculos horrendos. Eu procuro arrebatar-lhe
tudo aquilo que os meus desejos necessitam. Estamos em guerra!
Tudo aquilo que lhe consigo arrebatar à força, é meu. E tudo
aquilo que é meu, sacrifico-o sobre o altar da minha liberdade
e da minha vida. Dessa minha vida que sinto palpitar entre as
vibrantes chamas que se incendeiam no meu coração; entre
aquele sofrimento selvagem de todo o meu ser que me enche
a alma de tempestades divinas, e que me faz repercutir no espírito estrondosos trompetes de guerra e sinfonias polifónicas
de um amor superior, estranho e desconhecido; que me enche
as veias de um sangue intenso e abundante, que se espalha em
todos os invólucros dos meus músculos, dos meus nervos e da
minha carne, pulsações diabólicas de uma expansão exultante;
dessa minha vida que eu vislumbro através da louca visão dos
meus sonhos fantásticos, desejosa e necessitada de um crescimento eterno. O meu lema é: caminhar expropriando e incendiando, deixando sempre para trás de mim gritos de ofensas morais e pedaços fumegantes de coisas velhas. Quando os
homens não possuírem mais riquezas éticas – únicos tesouros
realmente invioláveis – então deitarei fora os meus pés-de-cabra. Quando não existirem mais fantasmas no mundo, deitarei
fora a minha tocha. Mas esse futuro está longe e talvez nunca
venha a existir! E eu sou um filho desse futuro longínquo, que
caiu neste mundo por Acaso, cujo poder saúdo.”
Assim falou o Expropriador naquele longínquo meio-dia de
Agosto, enquanto o sol adornava de ouro a verdejante natureza
que, perfumada e festiva, cantava canções alegres de uma beleza pagã.
Renzo Novatore
Iconoclasta!, Pistoia, Ano I, 1ª s., n.10, 26 de Novembro de 1919
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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PARÁBOLA
Parábola
Sim: eu sou um ser multiforme e uma realidade complicada!
Só posso penetrar, contemplar e compreender a verdadeira e
profunda essência deste meu ser, enigmático e misterioso, no
espelho das recordações passadas e no sonho do porvir.
Homens, oh meus caros irmãos perdidos e renegados, em verdade vos digo que sou um egoísta generoso; mas não vos posso
oferecer mais do que a minha própria sombra. Se vocês me
quiserem encontrar, eu moro dentro desta sombra. Eu moro na
casa alegre da mais prazenteira dor. Mas digam-me, oh meus
irmãos, digam-me meus amigos: quem de vocês soube resistir
sempre ao olhar do Demónio tentador, ao olhar da Serpente
pecadora?
Irmãos, eu sou o Mal, o Grande, o Verdadeiro, o Magnífico Mal!
Olhem para a minha sombra. Eu vivo dentro dela, docemente
embalado pelos braços invisíveis da minha amante etérea, da
minha loucura divina e infernal (chamaram-lhe assim porque
nasceu de um louco amplexo nos bosques sagrados da Dor, entre o Sonho e a Imaginação, entre a Matéria e a Ideia). Mas ela
não é, como a Morte, uma amante de carne branca e cheirosa.
Oh irmãos, não! As vossas amantes de carne fizeram com que
se perdessem. A minha de espírito e luz, enalteceu-me, transfigurou-me, purificou-me e redimiu-me...
Oh Sombra! Oh Sombra minha, salva-me agora do olhar cínico
dos meus irmãos rivais, já que o Mal e a Loucura, estreitamente
abraçados, dançam agora dentro do mais profundo e luminoso
abismo deste meu ser.
Oh, quanto é sublime o divino mistério da LOUCURA!
Agora contemplo o Arco Sagrado do fogo sempiterno. Sobre
113
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
isso – com o cabelo desgrenhado – vejo erguer-se nua a Vida –
a minha Vida – apertando na mão um Tirso báquico enfeitado
com cachos de uvas douradas e com rosas. Agora caminha encantadoramente com os pés descalços e alados sobre os caminhos, livre e alegre, do espírito iluminado por uma aurora coruscante de sangue. E corro, lá longe, em direcção aos ardentes
raios meridianos do último sol para “apodrecer alegremente
com o seu beijo”.
Eis que chegam os vagabundos solitários.
Os Loucos, os Poetas, os Heróis.
Oh, meus últimos e verdadeiros amigos, venham, chegou a
hora, chegou a hora!
Não vêem lá, longinquamente, aquela Cidade pura de neve
branquíssima?
Oh amigos, amigos, sejam fortes porque a tragédia está para
chegar...
Em breve irão ver a branca e pura cidade liquidificar-se sob a
ardente força do Sol.
Ah, o Sol, o Sol! O último Fogo, a última Força, a última Beleza,
a última majestosa e sacrílega Potência...
Mas tu, oh minha Loucura, porque te ris sempre assim de maneira escarnecedora?
Ah, compreendo, compreendo...
O teu sorriso é de desprezo. Talvez possa ser o teu último
poderosíssimo desprezo?! Talvez? Sim, talvez...
Renzo Novatore
Iconoclasta!, Pistoia, 1920
114
NO CÍRCULO DA VIDA
No círculo da vida
Em memória de Bruno Filippi
As pessoas que desejam ser elas mesmas, nunca sabem para
onde se dirigem.
O resultado máximo da sabedoria consiste no reconhecimento
de que não é possível conhecer a alma de um homem.
Oscar Wilde
Sem ser um imitador de um furioso “cinismo” papiniano1 ou
um “voluptuoso”, superficial e perfumado, como Guido da Verona 2; sem sentir nos lábios o irónico cepticismo e a dolorosa
amargura de Mario Mariani3, sinto e afirmo que a vida não pode
ser digna desse nome se não é vivida por Artistas, por Rebeldes
e por Heróis!
Nos seus poderosos e assustadores volumes de metafísica,
Schopenhauer atem-se a demonstrar que a vida é dor e que,
por isso, não merece a pena de ser vivida. Mas a Arte extrai da
dor humana as mais profundas e poéticas pulsações para elevar a heróica Beleza, que na divinatória exaltação do símbolo,
transfigurado pela alegria criadora, mostra-nos a pureza selvagem que o espírito amante irradia e que nos ensina a amar
loucamente a vida. Se a política, o socialismo, o cristianismo,
a lógica, a coerência, o direito, o dever, o justo e o injusto, o
bem e o mal, a verdade e a justiça, são coisas chatas, vazias e
enfadonhas, espíritos empalidecidos e desbotados pelo sol,
antropocêntrico do único negador, paródias de uma cultura
115
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
moribunda que inspiram náusea, repugnância e desprezo: a
Arte ensina-nos o grande amor à vida. Temos a necessidade de
amá-la “até à destruição do ser”. A Dor e o Sofrimento são para a
Arte puras fontes de uma Beleza palpitante.
É nos abismos sulfurosos da Dor que a Arte tem as suas luminosas raízes arreigadas, para poder lançar a verdejante felicidade da sua folhagem para o alto, entre o misterioso contraste
dos ventos, numa dança de Sol e de Luz onde os sonhos, a esperança e a Beleza se fundem num canto trágico de felicidade
e de Grandeza.
Sim! Todo o cume que, branco de neve, canta sinfonias polifónicas de música e de poesia, de amor e de beleza, lá no alto,
entre a pureza etérea da luz e das douradas e fulvas carícias do
Sol, provém de um abismo tenebroso. Assim é a Vida!
A Dor é o nosso abismo criador; a Alegria e a Felicidade são o
nosso sonho de poder!
Mesmo se a Dor não nos tornasse melhores, “eu penso – disse
Nietzsche – que nos tornaria mais profundos.”
E na misteriosa profundidade do nosso ser, esconde-se e labuta o incognoscível enigma que, hora a hora, instante a instante,
se transforma de uma emoção incógnita, num reconhecido
pensamento luminoso e brilhante que irradia os seus raios, lançados sobre os virgens e purpúreos cumes do saber revelador.
Então, como vastas e cintilantes teorias de estrelas que, vagueando na claridade de uma noite sem nuvens, se reflectem no
azul profundo de um mar tranquilo, também a nossa felicidade,
por nós criada, se reflectirá sorridente no triste mar da nossa
dor: daquela nossa dor que a Vida nos deu!
“Devemos parir incessantemente os nossos pensamentos
da nossa dor e dar-vos materialmente aquilo que em nós é
sangue, coração, fogo, prazer, paixão, sofrimento, saber, destino e fatalidade.
A Vida é para nós transformar em luz e chamas tudo aquilo
que somos e tudo aquilo em que tocamos, sem poder fazer
outra coisa.”
Este é o círculo – talvez demasiado curto – da Vida, onde nos
debatemos incessantemente, sem nunca podermos sair a não
116
NO CÍRCULO DA VIDA
ser através das silenciosas vias da Morte!
Não é, porém, a Morte que nos mete medo ou terror! Pelo
contrário...
Nós, que vimos do Desconhecido da eternidade e vamos
para a eternidade do Desconhecido, aprendemos a considerar
a Morte como um qualquer instante da nossa Vida. E esse é o
nosso mais belo e sublime mistério!
Este é o último dos conhecimentos. O incognoscível!
E é desta nossa unicidade incognoscível que se liberta a voz
poderosa e diabólica dos nossos desejos famélicos.
Desejos de carnes jovens ávidas de prazer, grito do espírito desejoso de uma liberdade sem limites, de loucos voos da
alma através do inexplorado e longínquo Desconhecido; de
uivos e de ferozes blasfémias do nosso pensamento galopante
e vagabundo, golpeando os muros mais misteriosos da eternidade com cantos triunfais e dionisíacos de uma Vida vislumbrada através do delírio de um sonho: de um sonho composto
de um Tudo, disperso e vagueando num Nada. E no Nada espera-nos a Morte.
Essa Morte é nossa, como nossa é a Vida. Essa Morte que
amamos!
Mas não se pode ir para a sepultura com o coração cheio de
tristeza e de choro. Antes disso, é preciso termos vivido intensamente como Artistas, como Rebeldes e como Heróis, sem nos
termos alguma vez banhado nas águas amargas do arrependimento que correm pelos rios cristãos. O verdadeiro pecador
original e genial, não pode morrer afogado nos redemoinhos
lamacentos de um também lamacento remorso, mas sim envolto nas chamas encarnadas de um grandioso pecado. Antes
de morrermos, é necessário termos consumido o nosso rico
pensamento até à última centelha, termos feito do mundo uma
festa e da Acção um gozo infinito.
Antes de morrer – como disse Emerson – é necessário sentir
que todas as coisas se tornam familiares, que todos os acontecimentos se tornam úteis, que todos os dias se tornam santos, que todos os homens se tornam divinos. Depois? “Depois
vem a náusea, a repugnância, a repulsa”, disse Bruno Filippi, e
117
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
então “arrisca-se”, e arriscando-se, vai-se, com o espírito sereno
e claro, em direcção ao silencioso reino da Morte, onde a alma
se dissipa na imensa paz do Nada e a matéria se decompõe para
viver nos átomos uma outra forma de vida desconhecida. Mas
também a Morte deve ser para nós uma vigorosa manifestação
de Vida, de Arte e de Beleza!
O Herói da Vida vai em direcção à Morte acompanhado pela
marcha tragicamente triunfal da dinamite e a cabeça cingida
por flores.
Sim, quem quis e soube viver como Rebelde e como Herói, anseia pela liberdade de ser queimado numa bela fogueira acesa
por um grande pecado, para que o prelúdio da Morte não seja
mais do que um verso melancólico e doce, beijando uma aurora
vermelha onde ressoa a voz de Orfeu, fusão dos soluços de Prometeu e das gargalhadas bacantes e estrondosas de Dionísio.
***
Eu admiro Corrado Brando4 com entusiasmo iconoclasta e religiosidade ateia, mesmo que o seu criador não tenha sabido
morrer a tempo e tenha deixado cair a longa chuva do tempo
sobre sua alma ardente, que, milagrosamente, o desgastou e o
fez murchar; mesmo que, para criá-lo, tenha tido a necessidade
de embriagar-se nas virgens e perigosas fontes zarathustrianas que flúem dos misteriosos cumes da alegre e feliz solidão
nietzschiana; mesmo que diante Dele fujam horrorizados os
catãozinhos estercorários5 daquela pútrida Thaís6, daquela odiosa Circe7 chamada Moral. Porque “Corrado Brando não glorificou o crime, como afirmam os pequenos e grandes Ignorantes,
mas são manifestas – com a simbologia própria da arte trágica – a eficácia e a dignidade do crime cometido como virtude
prometeica.” Mas à medida que admiro esta vigorosa criatura,
que floresceu exuberantemente através do mistério pagão da
arte homericamente trágica que, símbolo de uma beleza heróica sublime, se eleva sobre o céu da Sombra e da Noite como
um anúncio fatal de uma resplandecente aurora de sangue,
de fogo e de luz, vejo «O Indivíduo anarquista» destacar-se da
118
NO CÍRCULO DA VIDA
cinzenta penumbra da realidade, “aquele que obedece apenas à
sua própria lei” para “abrir caminho à bomba” e viver a própria
vida gritando como o Deus da parábola ryneriana8: “Amo-te e
quero-te livremente, oh minha NECESSIDADE.”
Foi Bruno Filippi! O espírito converteu-se em Pensamento, o
Pensamento converteu-se em carne para reaparecer como símbolo! O trágico Herói da acção converteu-se em artista da vida
para se transformar em Poeta do facto, forte e implacável como
a fatalidade do Destino. Também ele, com a sua acção, disse
como o Herói dannunziano: “A prova da minha dignidade encontra-se no milagre invisível.” E como em Corrado Brando, Ele
tinha a embriaguês da vontade acumulada semelhante ao frenesim dionisíaco. Como o protagonista de Mais do que o amor,
também ele nos ensina a fúria e o turbilhão, porque também
Nele “a tempestade elevou todas as forças da alma e, agitandoas, arremessou-as contra uma sólida parede de granito, quebrando-as.” Ele, como todos os poucos amantes frenéticos da
Vida, foi um heróico Poeta do facto que, na sua auto-destruição
e na dos seus Infortúnios, criou um canto trágico ao “triunfo
da vontade imortal”, ao culto da Alegria e da Beleza eterna. Ele
ofereceu todas as chamas corrosivas e luminosas da sua alma
ardente, dolorosa e atormentada. Ele, Bruno Filippi, no ímpeto delirante da própria destruição, quis confessar à Vida o
mais íntimo e sublime Pecado. Depois dissolveu-se no Nada,
permanecendo para nós um Todo luminoso e errante que incessantemente murmurava: «Arrisquem, arrisquem!». E o grito
desesperadamente sereno desta voz simbólica de vinte anos,
faz-nos parecer que a terra pagã, romanticamente perfumada,
nos sorri com um lírico e amoroso sorriso, dizendo-nos: “apressem o destino e venham repousar sobre o meu seio túrgido
cheio de germes fecundantes.” Bruno Filippi escutou essa voz
porque era um Poeta. Escutou-a e respondeu-lhe: «Oh gentil
terra!... irei, irei no grande dia e tu acolher-me-ás entre os teus
braços, gentil e cheirosa terra, e farás florescer sobre a minha
cabeça as tímidas violetas!». Agora que Bruno Filippi levou para
o túmulo todas as rosas e os pensamentos germinam no rosado
jardim das suas vinte Primaveras exultantes de força e de ju-
119
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
ventude, de vontade e de mistério, nós dizemos com o autor do
poema heróico: «Oh Terra, recebe de volta este corpo e lembra-te que foi importante para os teus futuros trabalhos». Por isso
revejo Nele a “necessidade do crime que pesa sobre o homem
determinado a elevar-se a uma condição titânica.”
Quem era? Para onde ia?
Imbecis! E vocês, por onde andaram? E vocês, para onde vão?
Ele partiu tentando quebrar as grilhetas que vocês, coligados
cobardemente e odiosamente nas vossas múltiplas qualidades
de perigosos dementes, logicamente e moralmente apertaram
aos seus pulsos rebeldes de vinte anos para esmagar a sua Unicidade, o seu mistério, porque ele era para vocês incognoscível,
como precisamente deve ser a alma complexa de quem se sente
perfeito.
Bruno Filippi odiava. Mas as forças do Ódio não destruíram
Nele os poderes do Amor. Ele imolou-se num amplexo fecundo
com a Morte, pois amava loucamente a Vida. Temos a obrigatoriedade e o direito de dizer Dele aquilo que foi dito do simbólico herói dannunziano. «Que os escravos da praça olhem para
cima e se lembrem!»
Renzo Novatore
Iconoclasta!, Pistoia, Ano I, 2ª s., n.1, 1 de Janeiro de 1920
NOTAS
1.
O autor refere-se aqui a Giovanni Papini (1881-1956), escritor,
ensaísta, poeta e jornalista italiano que utilizava comummente
um tom satírico nos seus escritos. Papini participou em diversas
revistas culturais e literárias, sendo integrado dentro da corrente
futurista. Os seus primeiros escritos eram inequivocamente ateístas, tendo-se tornado, posteriormente, um adepto fervoroso do
catolicismo e do fascismo, vindo a ser vice-presidente do Liga Europeia de Escritores, fundada pelo ministro da propaganda nazi
Joseph Goebells em 1942. (N.T.)
120
NO CÍRCULO DA VIDA
2.
Guido da Verona (1881-1939), foi um poeta e escritor italiano, de
origem hebraica, de grande sucesso em Itália nos anos 20, devido
à exploração de uma estética erótica e luxuriante que apelava ao
imaginário burguês de então. Foi um dos assinantes do “Manifesto dos Intelectuais Fascistas” e, por ironia do destino, acabou por
se suicidar em 1939 devido à aprovação das leis raciais em Itália.
(N.T.)
3.
Mario Mariani (1884-1951), foi um escritor e ensaísta italiano
que, depois da primeira guerra mundial, teve alguma repercussão
entre o público italiano. Os seus romances misturavam uma crítica social aos valores burgueses e um certo erotismo escandaloso,
que lhe valeram críticas mas também popularidade. O seu repúdio pelo fascismo fez com que se exilasse em França, acabando
por falecer no Brasil (N.T.).
4.
Personagem da tragédia Più che l`amore (Mais do que o amor) de
Gabriele D`Annunzio. (N.T.)
5.
No original, catoncelli stercorarii. Expressão citada da tragédia
de Gabriele D`Annunzio, Più che l`amore, já referida anteriormente. Esta expressão refere-se a Marco Pórcio Catão (234 a.C.
– 149 a.C.), político e militar romano, também conhecido como
o Censor. Catão acreditava nos valores tradicionais romanos, sendo defensor de uma moral pública estrita e de uma austeridade
nos modos, em contraste com os valores helénicos de ostentação
então em voga na sociedade romana. E é nesse sentido que a sua
imagem é utilizada, como a de alguém que através da moral tenta
impor limites aos valores da Arte e da Beleza característicos do
helenismo. (N.T.)
6.
Referência a Santa Thaís, cortesã egípcia que viveu durante o séc.
IX e que se converteu ao cristianismo. Sendo detentora de uma
grande beleza e de bastantes riquezas, terá abdicado da sua vida
de ostentação e de luxúria por uma vida recatada de penitência e
de oração. (N.T.)
121
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
7.
Figura mitológica que aparece na Odisseia de Homero. Sendo
feiticeira, ela transforma os homens de Ulisses em porcos quando
estes chegam à sua ilha. É Ulisses quem os salva desse encantamento, fazendo com que Circe jurasse, em troca da sua vida, restituir-lhes a forma humana e não usar os seus feitiços contra eles
novamente. (N.T.)
8.
Referência a Han Ryner (1861-1938), anarquista individualista
francês. Entre os seus diversos escritos, encontra-se o Petit Manuel Individualiste (Pequeno Manual Individualista) onde o autor
define Deus como “consciência” individual e não como algo extrínseco a si próprio. Han Ryner defendia o individualismo como
um acto de consciência independente de qualquer doutrina moral, dogma ou tradição, no sentido daquilo que se pode considerar
um livre-pensador e, no seguimento de Stirner, defendia também
o não sacrifício em nome de algo superior a si mesmo. Ryner participou em revistas individualistas de grande relevo como são o
caso da L`En-Dehors e da L`Unique (N.T.)
122
O MEU INDIVIDUALISMO ICONOCLASTA
O meu
individualismo
iconoclasta
Abandonei para sempre a vida das planícies.
H. Ibsen
1.
Mesmo as mais puras fontes da Vida e do Pensamento, que
correm frescas e risonhas por entre as rochas solitárias das
mais altas montanhas para matarem a sede aos eleitos pela
Natureza, quando descobertas pelos demagogos pastores dos
híbridos rebanhos burgueses ou proletários, transformam-se
desde logo em poças fétidas, imundas e lamacentas. Agora é a
vez do Individualismo! Do simples fura-greves ao polícia idiota
e repugnante, do miserável vendido à desprezível espiã, do escravo cobardemente amedrontado ao autoritário repugnante e
tirano, todos falam de Individualismo.
Está na moda!
Mesmo os raquíticos intelectualóides do tuberculoso conservadorismo liberal, assim como os que sofrem de uma crónica
sífilis democrática, e mesmo os eunucos do socialismo e os
anémicos do comunismo, todos falam e posam como Individualistas!
Compreendo que não sendo o Individualismo uma escola
123
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
nem muito menos um partido, não pode ser “único”, mas é,
apesar de tudo, verdade que os Únicos são individualistas. E
eu como único, salto para o campo de batalha, desembainho
a minha espada e defendo as minhas ideias pessoais como um
individualista radical, como um indiscutível Único, pois nós
podemos ser tão cépticos e indiferentes, irónicos e sarcásticos,
como queiramos e possamos sê-lo, mas quando estamos condenados a ouvir socialistas, mais ou menos teorizando, afirmar
descaradamente e com ignorância que não existe incompatibilidade entre a ideia Individualista e a colectivista, tentando
estupidamente fazer passar um titânico cantor da força heróica, dominador de fantasmas humanos, morais e divinos, que
estremece e vibra, exulta e cresce para além do bem e do mal
da Igreja e do Estado, do Povo e da Humanidade, por entre os
estranhos fulgores de um novo incêndio de amor incompreendido, como é o lírico criador de Zarathustra1, por um simples
e pobre profeta do Socialismo, que é uma escola de cobardia;
ou quando ouvimos alguém tentar converter um invencível e
inultrapassável iconoclasta como Max Stirner num qualquer
instrumento posto à disposição de frenéticos proponentes do
comunismo, então certamente que teremos um irónico trejeito
nos nossos lábios, mas depois será necessário insurgirmo-nos
resolutamente para defendermo-nos e para atacar, pois quem
se sente verdadeiramente Individualista dos pés à cabeça, não
pode tolerar ser minimamente confundido com as massas inconscientes de um rebanho mórbido e balador.
2.
O Individualismo, tal como eu o sinto, o compreendo e o
penso, não tem por fim nem o Socialismo, nem o Comunismo,
nem a humanidade. O Individualismo é o fim em si mesmo. As
mentes atrofiadas pelo positivismo spenceriano2 continuam a
crer-se individualistas, sem se darem conta que o seu venerado
mestre é um anti-individualista por excelência, dado que não
passa de um monista radical e, como tal, amante apaixonado
da unidade e inimigo declarado da particularidade. Ele, como
124
O MEU INDIVIDUALISMO ICONOCLASTA
todos os cientistas e filósofos mais ou menos monistas, nega
todas as distinções, todas as diferenças; e sacrifica a realidade
para afirmar a ilusão. Ele luta por demonstrar a realidade como
ilusão e a ilusão como realidade. Como é incapaz de entender
o diferente, o particular, sacrifica um ou outro no altar do universal. Ele ataca de facto o Estado em nome do indivíduo, mas
tal como todos os sociólogos deste mundo, regressa para o sacrificar sob a tirania de outra sociedade livre e perfeita, pois
se é verdade que combate o Estado, fá-lo somente porque não
funciona como ele gostaria tal como existe...
Mas não porque ele tenha compreendido as singularidades
anti-colectivistas e anti-sociais como capazes de actividades
superiores do espírito, do sentimento e da força heróica e
desinibida. Ele odeia o Estado, mas não penetra nem compreende o indivíduo misterioso, aristocrático, vagabundo, rebelde! E deste ponto de vista, não entendo porque é que aquele
débil charlatão, aquele antropologista falhado, cheio e inchado
de sociologia de Darwin, de Comte, de Spencer e de Marx, que
espalhou imundices com as suas próprias mãos sobre gigantes
da Arte e do Pensamento como Nietzsche, Stirner, Ibsen, Wilde, Zola, Huysman, Verlaine, Mallarmé, etc., que se chama Max
Nordau3; não consigo explicar a mim mesmo, repito, porque
não foi ele também chamado de Individualista… já que, tal
como Spencer, Nordau também combate o Estado…
3.
Giovanni Papini disse, ao escrever sobre Spencer: “Como
cientista, cedeu perante os factos, como metafísico, perante o
desconhecido, como moralista, perante o facto imutável das
leis naturais. A sua filosofia é feita de medo, de ignorância e de
obediência: grandes virtudes na presença de Cristo, mas vícios
terríveis para alguém que pretende a supremacia do indivíduo.
Foi, nem mais nem menos, um falsificador do individualismo.”
E eu, mesmo sendo tudo o contrário de um papiniano, estou,
neste caso, plenamente de acordo com ele!
125
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
4.
E. Zoccoli4, que é um intelectual da mais alta categoria, com
um profundo conhecimento do pensamento anarquista, mas
que faz profissão de uma patética moral burguesa, no seu estudo colossal “A Anarquia”, depois de ter invectivado – mesmo
que serenamente e com alguma razão – contra os grandes
agitadores do pensamento anarquista, de Stirner a Tucker, de
Proudhon a Bakunin, sente pena de Kropotkin porque descobre que este não foi capaz de desenvolver um novo anarquismo, rigorosamente científico e sociológico, que lhe permitisse
recuperar todos os criminosos inatos do anarquismo radical,
ou do Individualismo, para as saudáveis correntes de um sistema viscosamente positivista e cientificamente materialista, humanista e semi-spenceriano, pois foi esta famosa ciência que
finalmente descobriu a nulidade do indivíduo “perante a imensidão ilimitada...”. E para o positivista, humanista, comunista, e
científico Kropotkin... parece que o homem é um “pequeno ser
com pretensões ridículas” ou algo que o valha! Quem se concentra na sociologia, não pode ser nada mais que um científico
da colectividade que esquece o indivíduo para assim procurar
a Humanidade e conduzi-la ao Trono Imperial, aos pés da qual
o Eu deve renunciar a si mesmo e ajoelhar-se com profunda
emoção.
E quando todos os anarquistas tiverem este sublime conceito de
Vida, também E. Zoccoli ficará feliz e contente, já que assumindo
a pose seráfica de um profeta que diz aos homens: “Vim para vos
oferecer a oportunidade de uma nova Vida!”, dirigir-se-á a nós
e dir-nos-á: “Que os anarquistas regressem ao direito, pois este
espera-os pronto a oferecer-lhes também as suas garantias…”
Mas, o que é o direito?
Dêmos a palavra a Stirner:
“O Direito é o espírito da sociedade. Se a Sociedade tiver uma
vontade, essa vontade é o direito: ela só existe através do direito. Mas, como ela só existe se exercer a sua soberania sobre
os indivíduos, o direito é a sua vontade soberana. Aristóteles diz
que a justiça é o interesse da sociedade.”
126
O MEU INDIVIDUALISMO ICONOCLASTA
Mas “todo o direito vigente é direito alheio, é direito que alguém me dá ou me concede. Mas estaria eu no direito se todos
me dessem razão? E apesar disso o que é o direito que o Estado
e a sociedade me concedem senão um Direito de instâncias
alheias a mim próprio? Se um idiota me dá razão, eu desconfio
desse direito, um direito que não aprecio. Mas também quando
um sábio me dá razão, isso não significa que eu tenha por essa
via alcançado os meus direitos. Se eu tenho ou não razão, os
meus direitos, isso é completamente independente de quem
mos concede, seja ele sábio ou idiota.” Juntemos também a
esta definição de Direito, dada por este invencível e destemido
alemão, o célebre aforismo de Protágoras “O homem é a medida de todas as coisas”, e podemos declarar guerra a todo o
direito alheio e toda a justiça alheia, já que “a justiça é o fruto
da Sociedade.”
5.
Eu sei! Eu sei e compreendo-o: as minhas ideias – que não
são novas – podem ferir os corações demasiado sensíveis dos
humanistas modernos que pululam abundantemente entre os
subversivos, e também o dos românticos sonhadores de uma
perfeita, redimida e radiante humanidade, que dançam num
reino encantado de felicidade geral e colectiva ao som da música de uma mágica flauta de paz infinita e irmandade universal. Mas quem persegue fantasmas afasta-se da realidade e, no
entanto, é sabido que o primeiro a arder nas chamas do meu
pensamento corrosivo foi o meu ser interior, o meu verdadeiro
eu próprio! Agora, entre o fogo ardente das minhas Ideias, mesmo eu me converto numa chama; e ardo, queimo, corrôo…
Só se devem aproximar de mim os que se alegram ao contemplarem vulcões ardentes que lançam lava sinistra e explosiva
do seu seio de fogo em direcção às estrelas, para depois a deixarem cair no Nada ou entre as Cidades Mortas dos homens
cobardes, dos meus irmãos putrefactos, obrigando-os a correr
numa fuga frenética para fora dos seus tugúrios com cheiro a
mofo, forrados de ideais rançosos e velhos.
127
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Eu declaro que estou em guerra aberta, manifesta e clandestina, contra a Sociedade: contra toda a Sociedade!
Eu penso, eu sei, que enquanto houverem homens, existirão
sociedades, já que esta civilização putrefacta, com as suas indústrias e o seu progresso técnico, levou-nos até um ponto em
que já não é mais possível voltar atrás, até à invejável idade das
cavernas e das mulheres divinas que criavam e defendiam os
que nasciam do seu amor livre e instintivo, como Leoas louras e
felinas, habitantes de magníficas florestas perfumadas, verdes
e selvagens; mas ainda assim eu sei e penso, com outra tanta
certeza, que todas as formas de sociedade – precisamente por
serem uma sociedade – quererão, para seu próprio bem, humilhar o indivíduo. Até o comunismo que – como nos dizem
os seus teóricos – é a forma de Sociedade mais humanamente
perfeita, não poderá reconhecer em mim senão um dos seus
membros mais ou menos activos, mais ou menos estimados...
Eu jamais poderei valer através do comunismo o que poderei
valer por mim mesmo, por aquilo que é intimamente meu, como
Único, sendo, por isso mesmo, incompreensível para a colectividade. Mas aquilo que existe em mim de mais incompreensível, de mais misterioso e enigmático para a colectividade, é
precisamente o meu tesouro mais precioso, o meu bem mais
querido, que é a minha mais profunda intimidade, algo que
apenas eu posso justificar e amar, porque só eu a compreendo.
Bastaria, por exemplo, que eu dissesse ao comunismo: “o
eleito existe para não fazer nada”, como disse Oscar Wilde, para
me enxotarem como um siberiano leproso da ceia sagrada dos
novos Deuses!
No entanto, alguém que tivesse a necessidade de viver a sua
vida na mais alta e sublime atmosfera intelectual e espiritual
do Pensamento e da contemplação, não poderia dar nada de
material e moralmente útil e bom à comunidade, porque aquilo que ele poderia dar seria incompreensível, e, por isso mesmo, nocivo e inaceitável, já que ele não poderia dar senão uma
estranha doutrina que defende a alegria de viver num ócio
contemplativo. Mas numa sociedade comunista – igual ou pior
do que qualquer outra forma de sociedade – tal doutrina pode-
128
O MEU INDIVIDUALISMO ICONOCLASTA
ria ter um efeito corrosivo entre a falange daqueles que têm
de produzir para manter o equilíbrio colectivo e social. Não!
Todas as formas de sociedade são produto da maioria. Para
os grandes Génios, e para os grandes delinquentes, não existe
lugar entre a mediocridade triunfante que domina e comanda.
6.
Alguém objectará que nesta Aurora vermelha, nesta grandiosa
véspera de exércitos e de guerra, onde já ressoam estrondosamente as notas vibrantes e fatídicas do grande crepúsculo dos
velhos Deuses, ao mesmo tempo que vão surgindo no horizonte os raios fulvos e dourados de um futuro risonho, não é Bom
dar à luz do sol certos pensamentos íntimos e delitivos... É uma
história velha e estúpida!
Tenho vinte e nove anos, há quinze anos que milito no meio
libertário e vivo anarquicamente, e dizem-me sempre as mesmas coisas, as mesmíssimas coisas:
“Por amor à harmonia…”
“Por amor à propaganda…”
“Pela próxima redentora Revolução Social…”
Por… mas porquê continuar?
Chega! Não posso permanecer em silêncio!
“Se eu tivesse guardado na minha gaveta um manuscrito ainda inédito, o manuscrito de uma obra belíssima que ao ler-se,
causaria arrepios de uma voluptuosidade desconhecida e levaria à descoberta de mundos ignorados; se eu estivesse seguro
que os homens ficariam pálidos de medo com essas páginas, e
depois vagueariam lentamente por caminhos desertos com os
olhos ferozmente abertos no vazio, e em seguida procurariam
cinicamente a morte quando a loucura não corresse para encontrá-los com as suas gargalhadas sinistras, como o rugir dos
ventos e o tamborilar lúgubre de dedos invisíveis nos seus cérebros devastados; se eu estivesse seguro que as mulheres sorririam de forma obscena e se deitariam com as saias levantadas à beira das calçadas, esperando um qualquer macho, e que
os machos se lançariam de rompante sobre elas, dilacerando
129
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
a vulva e a garganta com os dentes; se as massas embriagadas
e famintas perseguissem alguns homens em fuga à facada e,
morte após morte, se perpetuasse entre eles o ódio profundo;
se a paz de uma hora, a tranquilidade do espírito, o amor, a
lealdade, a amizade, tivessem que desaparecer da face da terra,
e a turbulência, a inquietação, o ódio, a mentira, a inimizade, a
loucura, as trevas e a morte reinassem no seu lugar para sempre; se o mais belo livro que eu tivesse escrito, ainda inédito
e guardado na minha gaveta, pudesse provocar tudo isto, eu
publicaria esse livro e não descansaria até que fosse publicado.”
Assim escrevia, há um par de anos, Persio Falchi na “Forca”
para expressar o seu conceito de Liberdade Artística, e assim
repito eu agora no “Iconoclasta!” para expressar a minha concepção de Liberdade de Pensamento.
Tenho uma absoluta e imperiosa necessidade de lançar na
escuridão a luz turbulenta e sinistra dos meus pensamentos e
o riso incrédulo e sarcástico das minhas ideias sangrentas que,
orgulhosas e soberbas por mostrar a sua luxuriante e desinibida
nudez, querem andar livres pelo mundo em busca de abraços
viris. Ninguém pode ser mais revolucionário do que eu sou, mas
é precisamente por isto que eu quero lançar o mercúrio corrosivo dos meus pensamentos para o meio da impotência senil
dos eunucos do Pensamento Humano. Não se poder ser revolucionário pela metade, nem pensar pela metade. É necessário
ser, como Ibsen, revolucionário no sentido mais completo e
radical da palavra. E eu sinto que sou assim!
7.
A História, o Materialismo, o Monismo, O Positivismo e todos
os outros “ismos” deste mundo, são ferramentas velhas e ferrugentas que já não me servem e que já não uso. O meu princípio
é a Vida, e o meu fim a Morte. Quero viver a minha Vida intensamente, para poder abraçar tragicamente a minha Morte.
Vocês esperam pela revolução! Muito bem! A minha começou
há muito tempo atrás! Quando estiverem preparados – Deus, que
longa espera! – não me provocará repulsa percorrer o vosso per-
130
O MEU INDIVIDUALISMO ICONOCLASTA
curso convosco!
Mas quando pararem, eu continuarei a minha louca e triunfante
caminhada em direcção à grande e sublime conquista do Nada!
Cada Sociedade que construam terá as suas margens, e nas
margens de cada Sociedade vaguearão os heróicos e dissolutos vagabundos, com os seus pensamentos virgens e selvagens,
que só sabem viver preparando sempre novas e formidáveis explosões de rebeldia!
Eu estarei entre eles!
E depois de mim, tal como antes de mim, existirão sempre
aqueles que dirão aos homens: “Voltem-se para vós próprios
em vez de se virarem para os vossos deuses ou para os vossos
ídolos: descubram o que está escondido dentro de vós, tragam-no para a luz: revelem-se a vós próprios!”
Porque todo aquele que, procurando na sua intimidade, extrai o que está misteriosamente escondido nela, é uma sombra
que obscurece todas as formas de Sociedade que existem sob
os raios do Sol!
Todas as sociedades tremem quando a altiva aristocracia dos
Vagabundos, dos Únicos, dos Inacessíveis, dos dominadores do
ideal, e dos Conquistadores do Nada, avança desinibida. Vinde,
pois, Iconoclastas, avante!
“Já o céu, prenhe de presságios, se obscurece e silencia!”
Renzo Novatore
Iconoclasta!, Arcola, Janeiro de 1920
NOTAS
1. Referência a Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) e à personagem do
seu livro Also sprach Zarathustra, (Assim Falava Zarathustra). (N.T.)
2. Referência a Herbert Spencer (1820-1903), filósofo inglês, representante destacado do positivismo e do evolucionismo filosófico,
pode também ser considerado o primeiro sociólogo evolucionista.
Foi um profundo defensor de Darwin, e foi o primeiro a aplicar as
131
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
teorias deste ao âmbito social, o chamado “darwinismo social”.
Segundo Spencer, a sociedade eliminaria os “ineptos” e eligiria
os indivíduos mais sãos e inteligentes, desfazendo-se dos velhos
e insanos. Consequentemente, Spencer opunha-se radicalmente
a todas as manifestações de «socialismo», tais como a educação
pública generalizada e obrigatória, bibliotecas públicas e, em geral,
a qualquer projecto social. Para Spencer, o Estado era um mal necessário; teria exercido uma função importante nas comunidades
primárias e militares, que representam uma etapa primitiva na
evolução social, mas numa sociedade industrial, que representa o
estado superior de dita evolução, não deve colocar travas à liberdade humana. Para ele a sociedade perfeita era uma comunidade
que teria alcançado o equilíbrio entre o organismo individual (o
homem) e o meio que o rodeia. Em 1848 assume a direcção da revista “The Economist”, considerada o órgão do liberalismo radical
da época. Em 1870, durante possivelmente a primeira grande crise
capitalista – quando a segunda revolução industrial propiciava um
crescimento desmesurado, o qual provocava uma oferta muito superior à procura –, as teses de Spencer serviram para justificar o
colonialismo, o imperialismo e a não intervenção do Estado para
compensar as flutuações do mercado. Podem encontrar-se influências spencerianas nas teorias libertaristas aparecidas nos Estados
Unidos durante os anos cinquenta, que teorizam sobre um individualismo capitalista. (N.T.)
3. Max Nordau (1849 – 1923) foi um médico e crítico social, defensor do sionismo e fundador, conjuntamente com Theodor Herzl,
da Organização Sionista Mundial. No seu livro Entartung (Degeneração), Nordau analisa aquilo que ele acredita serem os sinais
de decadência europeia, e que essa degeneração se encontrava
bem patente na Arte. Como é indicado por Abele Rizieri Ferrari,
Max Nordau analisa pormenorizadamente alguns autores que
ele acredita serem culpados pela influência degenerativa da Arte
na sociedade e na sua moral, como são os casos de Nietzsche, Ibsen ou Wilde. Tendo sido discípulo de Cesare Lombroso, médico
e criminologista italiano conhecido pela sua análise somática do
comportamento psicológico dos criminosos (incluindo dos anar-
132
O MEU INDIVIDUALISMO ICONOCLASTA
quistas), Max Nordau faz a sua análise social a partir de uma interpretação médica das patologias que acredita evidenciarem essa
degeneração moral da sociedade. Para Nordau, essa decadência
moral reflectia-se também no crescente sentimento anti-semita do
continente europeu. (N.T.)
4. Ettore Gambigliani Zoccoli (1872 – 1958), foi professor de Filosofia
Moral na Universidade de Roma. Sendo um profundo conhecedor
de Nietzsche e de Stirner, foi também o primeiro tradutor d`O Único e a Sua Propriedade para o italiano. Apesar de ser um académico,
teve importância na difusão do pensamento anarquista em Itália,
tendo escrito, entre outras, a obra L`Anarchia, gli agitatori, le idee, i
fatti: saggio de una revisione sistematica e critica e de una valutazione etica (A Anarquia, os agitadores, as ideias, os factos: ensaio sobre uma revisão sistemática e crítica e sobre uma avaliação ética).
(N.T.)
133
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
134
UMA VIDA
Uma Vida
Para os amigos de Nichilismo
Memórias
A minha juventude foi um tenebroso furacão,
Atravessado, aqui e ali, por sóis luzidios;
O trovão e a chuva causaram tal devastação,
Que no meu jardim restam poucos frutos bravios.
Charles Baudelaire
Numa longínqua Primavera, esplendorosamente verde e solarenga, o meu espírito jovem vagueava calmamente pelas divinas florestas do céu. Um dia, um triste dia de Outono, regressou a mim desconsolado, chorando. Um grupo de Anjos com
grandes asas negras acompanhava-o silenciosamente... Disse-me: «Deus está morto! O grande Pai está morto!» O Sol escureceu, os rios ficaram turvos e as plantas tremeram. As trevas envolveram a Terra no seu manto fúnebre. Então ouvi por detrás
de mim o satânico rugido de uma gargalhada infernal. Era o
riso daquele por quem eu esperara, talvez inconscientemente,
desde há bastante tempo: o Demónio. Disse-me: «Acompanha-me!» Levou-me à mefítica cidade das almas mortas, jamais
beijada pelo verdadeiro sol.
Dança de espectros. Trevas. Silêncio… Ao lado de um templo
construído para a Deusa da Perversidade e do Conhecimento,
uma Fonte de Sangue fervilhava, como se recitasse uma prece
amaldiçoada.
135
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
O Demónio era sombrio e negro como a Noite trágica. Um
raio de luz sinistra emanava dos seus olhos amarelos de fósforo.
Disse-me, de súbito: «Adeus!» e rapidamente desapareceu.
Chorei. Estava só na mais profunda escuridão. A Fonte continuava a recitar a sua maldita prece. Tremia? Talvez. Não sei…
Não me lembro… Subitamente, os portões do templo da Deusa
da Perversidade e do Conhecimento abriram-se misteriosamente e a Fonte de Sangue transformou-se no belo corpo de
uma mulher jovem e voluptuosa.
«Amo-te – disse-me – e desejo-te. Tens que ser meu!» Olhei
para a profundidade dos seus olhos. Reconheci-a. Era a Imagem idealizada por um sonho mórbido de Matéria.
Uma exaltação infernal floresceu na minha alma, infundindo-me um frémito Dionisíaco.
«A Matéria é tudo.» Esqueci-me do lugar e da hora e tentei
agarrar aquele corpo nu e belo, para encerrá-lo nos meus braços e apertá-lo junto ao meu peito.
“Não, aqui não!…” disse-me. E agarrando a minha mão,
quente e febril, com a sua, fria e pequena, guiou-me através
da entrada florida de uma caverna onde um grupo de jovens
bruxas dançava. Abandonámo-nos a um amplexo selvagem, e
a minha boca ávida, grande e aberta, cerrou a sua, pequena e
bela, com uma mordidela. Fechámos os olhos. No meio de tanta escuridão apercebi-me que a minha alma não estava morta,
porque nunca tinha visto um mar de luz tão vasto.
Não sei quanto tempo passou. Fui repentinamente despertado pelo rugir de uma marcha fúnebre que ecoava lugubremente
no fundo da caverna. A minha companheira disse-me, rindo-se selvaticamente: «As bruxas estão mortas. O nosso amplexo
matou-as. Estou vingada!» Dito isto, ficou pálida, endureceu-se
e transformou-se numa pedra.
Uma jovem Serpente, com olhos de fogo e uma boca manchada de sangue, ergueu-se perante mim: «Tu trouxeste a morte
às minhas amantes e mataste o Amor». «E o que é que isso importa?» respondi-lhe.
«Conheço-o desde há muito tempo – continuei –, esse teu
Deus hipócrita, cínico e cruel. Vi-o insultar e atormentar tantas
136
UMA VIDA
das minhas irmãs, vi-o – como todos os outros Deuses – derramar sangue, destruir mentes, devastar jovens corações, sempre
pelo seu corpo libidinoso, num banho quente de lágrimas.” A
serpente curvou a sua cabeça e disse-me: «Olha?!» e fez sobressair a sua nuca. Nela trazia o espelho da Vida ao revés. Olhei-o
para me ver a mim mesmo. No espelho vi apenas uma grande
caveira. Densas nuvens negras desceram sobre a minha cabeça.
Eram os carros funerários dos meus sonhos quebrados.
Olhei para a minha mulher de pedra quase comovido.
Os Diabretes carregaram-na para uma nuvem que o vento
conduziu para as alturas, dissipando-se ao longe.
Então, a boca da Serpente vomitou sangue e abriu a terra sob
os meus pés. Cai num abismo sem fim. Suspenso no vazio, vi
novamente o Demónio.
«Irmão, ouve-me…» disse-lhe. E sussurrei-lhe algumas palavras ao ouvido.
Também ele estava pálido, comovido, e respondeu-me: «Não
posso crer. Ah, se eu pudesse!…»
A minha alma também tremeu. Mas ele desatou a rir subitamente. «Que te importa a ti isso? Não viste o espelho da Vida?»
Fez-me ir por um caminho desconhecido e trouxe-me de volta a
esta Terra magnífica para me rir do Homem, do Super-homem,
do Demónio e de Deus.
Aflição
Eu sei o quanto é necessário, na colina incendiada,
De penas, de suor e de sol abrasador,
Para criar a minha vida e a minha alma me ser dada.
Charles Baudelaire
O Homem, o Demónio e Deus juntaram-se para profanar o
meu jardim virgem. (Não sei porque é que o Super-Homem não
se juntou a eles.) Estavam de pé à minha frente como três alegorias perversas. Deus disse-me. «Sou o bem inalcançável ao
137
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
qual deves aspirar. Sacrifica-te a ti mesmo, nega-te a ti mesmo,
e alcançar-me-ás.»
O Demónio disse-me: «Dar-te-ei a felicidade se me adorares.»
O Homem disse-me: “Sou o Ideal dos Ateus. Sê meu.”
Eu ri-me. Ri-me, mas o meu riso ainda não era sereno.
Sinto que não sou do Homem, que não adoro o Demónio, que
não me sacrifico no altar de nenhum Deus e, ainda assim, não
tenho ainda a certeza matemática de ser eu mesmo, o senhor
do meu reino fantástico. Este é a minha aflição; quando Deus
me disse: «Matar é mau!» Quando o Demónio me disse: «Matar
é necessário». Quando o Homem me disse: «Grande é aquele
que morre pela Ideia». Eu respondi a cada um deles: «Isso não
é verdade!»
Alguém soube que eu amava a guerra e disse-me: «Tenho
milhares de homens comigo, guerreiros corajosos e valentes,
venceremos. Junta-te a nós.» Perguntei-lhe: «Porque lutais?»
Respondeu-me: «Pela grandeza da Pátria!»
«Eu não tenho Pátria.»
Conheci outros homens: «Sabemos que és um guerreiro valente. Junta-te a nós. Derramaremos a última gota do nosso
sangue pela redenção da Humanidade.»
Respondi: «Não acredito na Humanidade, não acredito na sua
redenção.»
O líder do grupo franziu a testa e olhou para mim com desprezo: «És um cobarde!»
Ri-me. Mas o meu riso ainda não era sereno. Sinto em mim
algo acre que me aflige.
Sinto em mim algo de uma intimidade tão profunda que não
sei explicar, que ninguém jamais poderá explicar. Sinto em
mim o INEFÁVEL!
Eis o único si próprio, que ninguém conhece. Será, porém,
esta a minha aflição? Talvez. Porque é, porventura, esta a minha
Felicidade. Porque é, porventura, esta a fonte que me mata a
sede, que me conduz à descoberta do último limite do Eu, que
quer expandir-se e palpitar no forte e enorme frémito do Todo,
para depois se dissolver triunfalmente no Nada.
138
UMA VIDA
Fuga
“É preciso partir? Ficar? Se podes ficar, fica;
Parte, se for necessário.”
Charles Baudelaire
A minha flecha está preparada, a minha Vontade rejuvenescida, a minha Força provada. Como poderei esperar mais tempo?
Sim, tenho de partir. Está na hora, está na hora!
Nihil, nihil!
Voa, minha alma atormentada. Voa com as asas da Realidade
sobre o mundo dos sonhos, em direcção a vastos horizontes,
em direcção à minha eternidade.
Já não posso sonhar, sou o meu próprio sonho. O amigo dos
meus possíveis companheiros de viagem.
***
Oh amigos, oh amigos, onde estão?
Não vêem, nas alturas, a Face da Eternidade e do Mistério? É
necessário resolver o último enigma do eterno. Vamos, amigos,
venham, está na hora, está na hora!
...
Chegaram?
Nunca vi céu tão pacífico quanto as vossas faces, oh amigos.
Como é belo compreendermo-nos uns aos outros!
***
Estamos num barco frágil, perdido no mar. Não existem mais
auroras, nem pores-do-sol, nem destinos. Não há mais do que
sol, luz, calor, profundidade e distância.
Ouvem? A Eternidade eleva o seu mais belo canto à Vida, enquan-
139
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
to nos pede a grinalda vermelha de esposa.
Oh amigos, as rosas, onde estão as rosas?
***
Que pobre, que coisa miserável era a terra onde vivíamos!
Ainda se lembram dela, oh amigos?
Lá erguiam-se as auroras douradas, mas caíam as noites negras…
Lá os homens sonhavam com objectivos colectivos e mediam
o tempo…
Ah amigos, amigos, assalta-me uma imensa piedade por
aquela pobre terra…
***
O que se passa, pois, comigo?…
Esqueçamo-nos!
Durante quantos milhares de anos flutuámos nas infinitas ondas desta imensa profundidade que nos eleva às regiões do Sol,
acima do Sol?
E durante quantos milhares de anos ainda viveremos?
Ah, alegre Eternidade, agora eternamente feliz!
***
Que nunca ninguém conheça a felicidade secreta que enche
os nossos corações solitários, oh amigos!
Não sofremos estoicamente no silêncio forçado?
Não, não, que nunca ninguém conheça os nossos sofrimentos
mais cruéis, nem a infinita felicidade deste meio-dia eterno.
No grotesco mundo velho crêem que estamos quase mortos.
E, no entanto, casámo-nos com a eternidade, nós – os solitários!
– E as rosas, oh amigos? Onde estão as rosas? Oh, rosas vermelhas de Revolta Eterna!
Renzo Novatore
Nichilismo, Ano I, n.2, Milão, 20 de Abril - 5 de Maio de 1920
140
TAMBÉM SOU NIILISTA
Também sou niilista
I
Sou individualista porque sou anarquista; e sou anarquista
porque sou niilista. Mas, mesmo o niilismo, entendo-o à minha
maneira...
Não me importa se é nórdico ou oriental, nem se tem ou não
uma tradição histórica, politica, prática ou teórica, filosófica,
espiritual ou intelectual. Sou niilista apenas porque sei que o
niilismo significa negação!
Negação de todas as sociedades, de todos os cultos, de todas
as normas e de todas as religiões. Mas eu não quero atingir o
Nirvana, como também não desejo o pessimismo desesperado
e impotente de Schopenhauer, que é algo pior do que a renúncia violenta à própria vida. O meu pessimismo é entusiasta e
dionisíaco, como as chamas que incendeiam a minha exuberância vital, que escarnece de qualquer prisão teórica, científica
e moral.
E se sou um anarquista individualista, iconoclasta e niilista, é
precisamente porque acredito que esses adjectivos são a mais
alta e a mais completa expressão da minha individualidade determinada e dissoluta que, como um rio transbordante, se quer
expandir, arrastando impetuosamente barragens e sebes, até
que embata num rochedo granítico, interrompendo-se e dissipando-se por sua vez. Não renuncio à vida. Exalto-a e canto-a.
II
Quem renuncia à vida porque acredita que esta não é mais do
que Sofrimento e Dor e não encontra em si a coragem heróica
141
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
para se suicidar, é – na minha opinião – um impostor grotesco,
um incapaz; tal como é lamentavelmente inferior aquele que
acredita que a árvore sagrada da felicidade é uma planta deformada à qual todos os símios serão capazes de trepar num futuro mais ou menos próximo, e que por isso a sombra do mal será
afastada pelos foguetes fosforescentes do Bem verdadeiro...
III
A vida – para mim – não é boa nem má, nem é uma teoria,
nem uma ideia. A vida é uma realidade, e a realidade da vida
é a guerra. Para quem nasce guerreiro, a vida é uma fonte de
alegria, para os outros, não é mais do que uma fonte de humilhação e de dor. Não peço mais à vida a alegria despreocupada.
Ela não me poderia dá-la, e eu não saberia mais o que fazer com
ela agora que a minha adolescência passou...
Peço-lhe, ao invés, a alegria perversa das batalhas que me dão
os frémitos dolorosos das derrotas e os arrepios voluptuosos
das vitórias.
Derrota na lama ou vitória ao sol, canto a vida e amo-a!
Não existe descanso para a minha alma rebelde senão na
guerra, tal como não existe maior felicidade para a minha
alma vagabunda e negadora senão na afirmação desinibida
da minha capacidade de viver e de festejar. Cada derrota serve
apenas como prelúdio sinfónico para uma nova vitória.
IV
Desde o dia em que vim à luz – por uma coincidência inesperada que não quero agora aprofundar – trouxe comigo o meu
Bem e o meu Mal.
Quero dizer: a minha alegria e a minha dor ainda em embrião.
Ambas progrediram comigo pela travessia do tempo. Quando
mais intensamente sentia alegria, mais profundamente compreendia a dor.
Não se consegue suprimir uma sem suprimir a outra.
Agora derrubei a porta do mistério e resolvi o enigma da Es-
142
TAMBÉM SOU NIILISTA
finge1. A alegria e a dor são os dois únicos líquidos que compõem
a bebida heróica com a qual a vida alegremente se embebeda.
Porque não é verdade que esta é um deserto esquálido e assustador, onde as flores já não florescem, nem os frutos vermelhos
amadurecem.
E mesmo a maior de todas as dores, uma que leve o forte em
direcção à destruição consciente e trágica da sua própria individualidade, não é senão uma manifestação vigorosa de arte e
de beleza.
E também isso reentra na corrente universal do pensamento
humano com os raios fulgurantes do crime, que agita e devasta
toda a realidade cristalizada do mundo circunscrito pela maioria, para que se erga em direcção à última chama ideal e se disperse no fogo sempiterno do novo.
V
A revolta do homem livre contra a dor não é mais do que o
desejo, íntimo e passional, de uma alegria mais intensa e maior.
Mas a maior das alegrias só pode mostrar-se ao homem como
reflexo da dor mais profunda, para depois se fundir com ele
num amplexo bárbaro e enorme. E é desse amplexo enorme e
fecundo que nasce o sorriso superior e asseteante do forte, que,
através da luta, canta o mais tremendo hino à vida.
Um hino tecido pelo desprezo e pelo escárnio, pela vontade
e pela força. Um hino que vibra e palpita à luz do sol, iluminando as sepulturas; um hino que reaviva o nada e que o enche
de sons.
VI
Sobre o espírito escravo de Sócrates, que aceita estoicamente
a morte, e o espírito livre de Diógenes, que aceita cinicamente a
vida, ergue-se o arco triunfal no qual dança o sacrílego destruidor de novos fantasmas, o devastador radical de todos os mundos morais. É o homem livre que dança nas alturas, entre as
magníficas fosforescências do sol.
143
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
E quando gigantescas nuvens, de uma escuridão sombria, se
erguem de abismos pantanosos para dificultar a sua visão da
luz e bloquear o seu caminho, ele abre passagem através dos
tiros da sua Browning ou pára o seu percurso com a chama do
seu pensamento e da sua fantasia dominadora, forçando-as a
submeterem-se a seus pés como escravas humildes.
Mas só aquele que conhece e pratica os furores iconoclastas
da destruição é que pode possuir a alegria que nasce da liberdade, dessa liberdade única, fecundada pela dor. Levanto-me
contra a realidade do mundo exterior pelo triunfo da realidade
do meu mundo interior.
Rejeito a sociedade pelo triunfo do eu. Rejeito a estabilidade
de qualquer norma, de qualquer costume, de qualquer moral,
pela afirmação de todo o instinto volitivo, de toda a sentimentalidade livre, de toda a paixão e de toda a fantasia. Escarneço
de todo o dever e de todo o direito, para cantar o livre arbítrio.
Desprezo o futuro para sofrer e gozar o meu bem e o meu mal
no presente. Desprezo a humanidade porque não é a minha
humanidade. Odeio os tiranos e detesto os escravos. Não quero
nem ofereço solidariedade, porque acredito que é uma nova
grilheta, e porque acredito, como Ibsen, que quanto mais só se
está, mais forte se é.
Este é o meu Niilismo. A vida, para mim, não é mais do que
um poema heróico de alegria e de perversidade, escrito pelas
mãos sangrentas da dor e do sofrimento, ou um sonho trágico
de arte e de beleza!
Renzo Novatore
Nichilismo, Ano I, n.4, Milão, 21 de Maio de 1920
NOTAS
1. No Édipo Rei de Sófocles, a personagem principal, Édipo, confronta-se com a Esfinge, figura mitológica grega, que lhe propõe a
resolução de um enigma para o poupar à morte: Que criatura pela
manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e à tarde tem três? Édi-
144
TAMBÉM SOU NIILISTA
po responde: o homem, gatinha quando é bebé, anda sobre dois pés
na idade adulta, e usa uma bengala quando envelhece. O enigma é
resolvido e Édipo liberta Tebas da Esfinge, que se suicida, e é proclamado rei da cidade. (N.T.)
145
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
146
PERVERSIDADE ESPIRITUAL
Perversidade
espiritual
I
Um tremor... Uma palpitação...
A Aurora levanta-se do leito escuro de sombra e desaperta as
suas tranças louras na risonha manhã verde.
Bela Aurora!
Que chova uma luz dourada sobre os brancos botões de flor
desta manhã misteriosa...
Manhã de Vida e de Morte, de amor e de perversidade...
Ontem à noite, quando o crepúsculo se afundava e os espíritos vagabundos deixavam a terra dos Mortos para avançarem
por entre caminhos de Silêncio, meditando sobre os luminosos mistérios da noite, eu criei do Nada o objecto perverso dos
meus Amores mais puros.
Agora matei a Mulher que criei.
E matei-a porque a amava bastante...
O seu cadáver jaz a meus pés, hediondamente deformado,
com uma ferida vermelha e imortal no seu peito níveo, aberta
como uma flor de sangue sempiterna.
Nos seus lábios roxos ficou gravada uma violenta contracção,
como o sarcasmo e o espasmo que fustiga e amaldiçoa...
Está nua e pálida.
Em pouco tempo, o Sol irá revesti-la de um manto purpúreo
banhado a ouro.
Vou curvar-me neste prado escondido, prepararei um cálice
147
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
verde com as folhas venenosas das ervas amargas e vou comungar religiosamente com a pureza do orvalho prateado.
Quando o sol tiver espalhado os últimos vestígios do meu
crime perverso, tocarei as litanias das Flores e da Morte no violino da tristeza.
II
A Noite voltou.
Que Noite terrível e negra, povoada de Fantasmas...
Serão eles os fantasmas do medo? Serão eles as sombras do
arrependimento? Serão eles danças macabras de verdades
desconhecidas?
Oh Luz, porque não me iluminas? Oh Trevas, porque não me
envolves?
III
Estou agachado – como um réptil – na sebe espinhosa que
circunda os limites do prado. Um sapo e uma serpente são os
meus únicos companheiros.
Um pouco longe de mim, uma estranha e solitária ave nocturna canta uma canção desesperada sobre as razões que levam ao
Riso e ao Choro.
Mas nas suas expressões extremas suspira: INUTILIDADE!
Não consigo ver esta ave bastante estranha. É noite profunda... Mas consigo ouvi-la!
Ah! que vozes trágicas se fazem ouvir sempre no silêncio...
Mas que importa tudo isso?
Na abóbada azul do céu miríades de estrelas dançam alegremente...
E então? Que importa se aqui, a pouca distância de mim, o
Crime dança com o Arrependimento, e o Amor abraça a Morte?
Não são, porventura, as ervas deste prado venenosas e amargas?
Não é, porventura, este o Vale onde os antigos Deuses imortais
nasceram para viver, gozar e amar na perversidade e no pecado?
Depois juntaram-se aos fatídicos pescadores e levantaram as
148
PERVERSIDADE ESPIRITUAL
suas canas mortais.
É por isso que estão amaldiçoados...
IV
Oiço o rumorejar sombrio de dois sons distintos.
O choro da Vida e o riso da Morte. Que eloquentes são!...
Mas porque chora a Vida? Porque ri a Morte?
V
Tentei abrir bem os olhos ao sol, e ele cegou-me.
Agora estou cego. Cego e amaldiçoado...
Não existe mais do que trevas e silêncio à minha volta.
Já não tenho amigos e amantes. Estou só.
O meu reino é o da Sombra e o da Morte.
Grito desesperadamente, mas em vão. O meu grito irreconhecível dispersa-se pelo deserto sem fim. Ruge, ressoa, mas a
única resposta que tem é um eco lúgubre.
Um eco angustiante e dilacerante.
VI
Agora sou o terrível Pecador que cavalga o furioso Centauro
do Mal. Sou o louco marido da Eternidade que, deitado numa
imensa onda de escuridão, aposto taças de sangue contra os
beijos das perigosas filhas do Mistério.
As minhas mãos são impuras, porque tudo aquilo em que tocaram é impuro, mas no reino luminoso da minha alma germinaram flores da maior pureza e de uma beleza impecável.
Mergulhador, desci aos mais profundos e assustadores abismos
do mar para lhe roubar os seus tesouros mais secretos.
Águia, ascendi vertiginosamente aos mais altos voos pelo espaço infinito para lhe roubar os seus mistérios mais raros e etéreos.
Réptil, rastejei pela terra húmida para sugar do seio da sua
149
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
doçura infinita os venenos mais amargos.
Agora sou um nadador incauto e demente, perdido nas ondas lamacentas da Vida. Sou um viajante que, blasfemando e
rindo, vagueio num mundo deserto onde apenas ressoa o uivo
satânico da INUTILIDADE.
E é por isso que posso chamar-me heroicamente – para além
de poeta – «uma verdadeira individualidade profundamente
infeliz.»
Sei que sou um ponto luminoso que anda inutilmente pela
tenebrosa inutilidade de todas as coisas.
E é esse meu desespero consciente, esse meu conhecimento
da inutilidade do ser, que me faz amar a Vida profundamente.
Mas não compreendem, oh amigos, que a minha alegria inútil
se funde com a vossa dor inútil, para que depois as duas se fundam na inutilidade da Morte?
Renzo Novatore
Nichilismo, Ano I, n.7, Milão, 6 de Julho de 1920
150
ROSAS NEGRAS
Rosas negras
Estava – não sei há quanto tempo – estendido no meu leito
púrpura, mas não conseguia descansar. As minhas têmporas
palpitavam, a minha testa ardia como se tivesse febre, uma confusão de pensamentos sombrios andavam às voltas na minha
mente e, blasfemando, em vão implorei a Morfeu que me acolhesse nos seus braços. De repente, vi a porta do meu quarto
abrir-se violentamente e uma Desconhecida entrou levemente.
Olhei para ela: os seus olhos belos e profundos encerravam todos os segredos do céu e todos os mistérios dos mares. Os seus
cabelos eram longos e louros; da sua boca emanava um perfume a romã madura que avidamente espera por uma mordidela; as suas mãos rosadas eram finas e transparentes, e os seus
pequenos pés eram brancos e elegantes.
Quem era ela? Não sei. Sei apenas que era diferente das outras
Desconhecidas que já me tinham aparecido.
Aproximou-se sorrindo e passou, suavemente, os seus dedos
esguios pelo meu cabelo longo e despenteado.
«Meu querido, meu pobre louco», disse-me, «porque tens de
martirizar-te sempre desta forma? Não vês que, nas têmporas,
os teus cabelos negros já começam a ficar brancos? Não vês,
pois, que os teus pobres olhos estão quase a saltar das tuas órbitas e que todos os músculos faciais mudam as tuas feições
através do espasmo de uma contracção violenta? Não vês como
estás transfigurado? Porquê esta tua inútil e contínua aflição?
Não sou eu aquela com quem sonhavas, aquela por quem esperavas? Aqui estou!
Ah, vem, vem comigo meu pobre, meu terno amor.
151
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Tu amas os voos, as alturas, os meios-dias eternos. Eu sei! Eu
sei e compreendo-te.
Vem! Vem! Tenho perfume e fragrância, virgindade e juventude… Possuo uma aura de beleza intangível, visões e sonhos…
Vem comigo! Levar-te-ei para longe, muito longe, para a minha
nobre casa: uma nuvem branca vagueando pelas regiões do sol.
Um vento mágico de loucura divina emanará do Desconhecido para nos embalar nas ondas de um sonho radiante. Teremos
um leito de flores brancas que nunca murcharão e seremos felizes, felizes…
Despirei o meu véu fantástico, estender-me-ei a teus pés e
para ti tocarei na minha lira a mais bela música que já alguma
vez se ouviu.»
Ah, com certeza teria de estar pálido e pensativo naquele
momento!
A Desconhecida falava, falava sem parar, e as suas gentis palavras penetravam bem fundo na minha alma como uma música
doce, como um canto infinito.
O meu coração estava comovido e os meus olhos banhados
em lágrimas.
Entretanto, a pequena mão continuava a percorrer a floresta
dos meus cabelos.
«Meu pobre amigo», continuou, «estás doente, muito doente…
mas eu curar-te-ei, pelo menos assim o espero.»
Estendi as minhas mãos esqueléticas, húmidas de suor frio,
para agarrar aquela cabeça loura e segurá-la contra o meu peito
ofegante.
«Ah! não… Agora não», disse-me, «quando cheguemos lá acima.»
***
Que coisa trágica é a vida! Que conquista horrorosa o amanhã...
A própria tarde em que segui a aparição, foi a mais terrível que
eu alguma vez passei.
Parti com a Desconhecida e vagueámos toda a noite juntos em
silêncio, e toda a manhã. Ao meio-dia chegámos à nuvem branca que vagueava pelas douradas regiões do sol. A Desconhecida
152
ROSAS NEGRAS
manteve a sua promessa… Despiu o véu encarnado que cobria
o seu corpo e, nua e pálida, ofereceu-se aos meus olhos ávidos.
Soltou os anéis do seu cabelo louro, que caiam pelas suas costas
níveas, e, ajoelhada aos meus pés, entregou-se à sua lira e cantou-me a mais bela canção que um humano alguma vez ouviu.
Cantava enquanto olhava fixamente para os meus olhos abertos, como se neles procurasse a minha alma.
Eu, subjugado e embriagado, beijei violentamente, brutalmente, a sua boca húmida de rosa frágil.
Ah! beijo fatal…
O seu rosto ficou roxo, os seus olhos ficaram vidrados, a
chama dos seus olhos belos extinguiu-se e o seu corpo adorável
enrijeceu-se nos meus braços.
Estava morta!
Fui eu que a matei? Foi ela que quis morrer?
Agora a minha Musa está envolta pelo negro e a minha lira toca
canções fúnebres. Um véu negro cobre as minhas emoções.
Sinto que a minha alma gostaria de se libertar, mais uma vez,
para além dos limites da dor, à procura dos caminhos que o
pródigo Verão acolchoa de ervas e de flores; mas o Fado, contra
o qual o homem ruge impotente, reprimindo a sua raiva, feriu-a
de morte. Desde então, as flores – as belas flores brancas – murcharam para ela e as nuvens dispersaram-se – a bela casa dos
sonhos – e, abraçando o cadáver da Desconhecida, precipitei-me num abismo.
Uma marcha fúnebre ecoava à minha volta. Quem sabe amanhã eu também estarei morto.
Agora já não me posso rir de nada nem de ninguém; estou só
com a minha dor. Creio que sou uma flor nascida no campo da
morte, porque sinto dentro de mim o mortífero e angustiante
gemido de todos os falecidos. Sim, ainda sinto o ardente beijo
do sol e as carícias do vento nos meus cabelos, mas o sofrimento – o meu verdadeiro sofrimento – vem das raízes que ainda
153
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
me unem à terra onde nasci.
Os outros – como eu – já estão mortos ou morrerão amanhã,
mas ela, a que não deveria ter morrido, está já morta.
E foi o meu sofrimento que a matou, porque agora vejo a face
da realidade.
Insatisfeito, desde então, com o mundo dos homens, volto
a desejar a vida que não vivi e que possivelmente ninguém
poderá viver. A minha mente está coberta de grandes rosas
negras: as rosas da morte.
Iconoclastas, riam-se, passa um funeral.
Renzo Novatore
Nichilismo, Ano I, n.11, Milão, 10 de Setembro de 1920
154
AS MINHAS MÁXIMAS(DO LIVRO DE NOTAS DOS MEUS PENSAMENTOS INTÍMOS)
As minhas máximas
(do livro de notas dos
meus pensamentos
íntimos)
DEUS – Criação de uma fantasia doentia. Habitante de mentes senis e impotentes. Companheiro e confortador de espíritos
grosseiros, nascidos para a escravidão. Cocaína para histéricos.
Um comprimido para mentes constipadas, fechadas ao saber.
Marxismo para corações fracos.
HUMANIDADE – Palavra abstracta com sentido negativo,
cheia de força e privada de verdade. Máscara obscena, presa à
face repugnante e imunda de vulgares burlões para dominar a
multidão, estupidamente sentimental, de idiotas e de imbecis.
PÁTRIA – Prisão intelectual para semi-inteligentes, chiqueiro
da imbecilidade, Circe que transforma os seus adoradores em
cães e porcos. Meretriz dos seus senhores e alcoviteira dos estrangeiros. Devoradora dos seus filhos, caluniadora dos seus
pais e escarnecedora dos seus heróis.
FAMÍLIA – Negação do Amor, da Vida e da Liberdade.
SOCIALISMO – Disciplina, disciplina: Obediência, obediência: escravidão e ignorância grávida de Autoridade.
155
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
O socialismo é um grande corpo burguês que contém uma
vulgaríssima alma cristã.
É uma mistura de fetichismo, de sectarismo e de cobardia.
ORGANIZAÇÕES, ASSOCIAÇÕES, SINDICATOS – Igrejas para
os fracos. Casa de penhoras para parasitas e esfarrapados. Muitos afiliam-se a elas para viverem parasitariamente às custas
dos seus tolos companheiros filiados. Alguns para espiarem.
Outros, os mais sinceros e crentes – pobres ingénuos! –, para
irem parar à prisão, expiando a vergonhosa cobardia de todos.
A maioria para pagar, bocejar e esperar.
SOLIDARIEDADE – É o altar macabro ao qual sobem comediantes de toda a espécie para pôr em evidência as suas qualidades sacerdotais e para recitar com mestria a sua missa.
É qualquer coisa em que o beneficiado não paga nada menos
do que cem por cento, para além da vergonhosa humilhação.
AMIZADE – Afortunados aqueles que puderam beber deste
cálice sem sentirem o espírito ofendido e a alma envenenada.
Se um desses homens existisse, pedir-lhe-ia com cordialidade
se me poderia enviar a sua fotografia.
Quase de certeza iria ver a cara de um idiota.
AMOR – Fraude da carne em prejuízo do espírito. Doença
da alma, atrofiamento da mente, delíquio do coração, corrosão dos sentidos, mentira poética na qual me embriago duas
ou três vezes por dia, ferozmente, para poder consumar mais
rapidamente esta minha cara e tão estúpida vida. E depois, no
fundo, prefiro morrer de Amor. É o único canalha – depois de
Judas – que sabe matar com os seus beijos.
HOMEM – Uma suja mescla de escravidão e de tirania, de fetichismo e de medo, de vaidade e de ignorância.
A maior ofensa que se pode dar a um burro é chamar-lhe
homem.
156
AS MINHAS MÁXIMAS(DO LIVRO DE NOTAS DOS MEUS PENSAMENTOS INTÍMOS)
MULHER – A mais brutal de todas a bestas escravizadas. A
maior vítima que se arrasta pela terra. Mas a mais meritoriamente culpada – depois do homem e do cão – de todas as suas
desgraças. Sinto uma verdadeira curiosidade em saber que coisas pensam de mim quando as beijo...
Oh cínicas prostitutas, oh audazes expropriadoras, ergam-se
sobre a podridão onde o mundo está imerso e façam-no empalidecer sob a luz perversa dos vossos olhos, grandes e profundos.
Vocês são o sol mais belo que hoje o sol beija. Vocês são de
uma outra raça. E a vossa alma é um canto, a vossa vida um
sonho.
Desordenem o mundo oh livres prostitutas, oh audazes expropriadoras. Eu cantarei por vocês. O resto é lama!
Renzo Novatore
Iconoclasta!, Pistoia, n.12, 15 de Outubro de 1920
157
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
158
O TEMPERAMENTO ANARQUISTA NO TURBILHÃO DA HISTÓRIA
O temperamento
anarquista no
turbilhão da
história
No anarquismo – nos factos da vida experienciados de forma
prática e material – existem, acima das duas concepções filosóficas distintas, comunista e individualista, que o dividem no
campo teórico, dois instintos espirituais e físicos que servem
para distinguir dois caracteres comuns às duas tendências
teóricas e filosóficas. Apesar de serem filhos do mesmo sofrimento social, os dois são instintos diferentes que dão origem a
dois tipos de sofrimento distintos de origem hedonística.
Existem aqueles que sofrem – diria Nietzsche – por excesso de
vida (comunistas e individualistas) e existem aqueles que sofrem devido ao empobrecimento da vida. Pertencem, a estes últimos, aqueles comunistas e individualistas que são amantes da
tranquilidade e da paz, do silêncio e da solidão. Aos primeiros,
pertencem aqueles comunistas e individualistas que sentem o
eu interior como um poderoso frémito dionisíaco trasbordante
de energia, e a vida como uma manifestação heróica de força e
de vontade. São os que têm a necessidade instintiva e irresistível de lançar a chama do seu “eu” contra os muros do mundo
159
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
exterior para os derrubar e viver a tragédia. Nós somos desses!
Somos anarquistas – primeiro que tudo – por instinto de origem e por paixão sentimental. As nossas ideias não são mais
do que criaturas destemidas e luminosas, nascidas do amplexo
primitivo monístico com a teórica razão negadora.
Hoje em dia, a história da humanidade chegou a um – talvez
o mais grandioso – daqueles seus vários turbilhões, onde a
alma do homem é chamada a renovar-se radicalmente sobre
as ruínas magnificamente horríveis do fogo e do sangue, da
catástrofe e da destruição, ou a cristalizar-se cobardemente no
decrépito e cadavérico conceito de vida que a anacrónica sociedade burguesa ditou e impôs.
Se um forte punhado de rebeldes, de superiores e de heróis,
souber libertar-se das duas correntes do anarquismo sofredor
de exuberância vital, para agarrar a bandeira negra da revolta,
ateando fogo ao coração de todas as nações da Europa, o velho
mundo cairá, porque ao redor do Herói tudo deve transformar-se fatalmente em tragédia; e só na tragédia nascem os espíritos renovadores que sabem sentir, da forma mais alta e nobre, a
canção festiva da sua vida livre.
Se esse punhado de audazes não sair da sombra para atirar à
face da sociedade burguesa a luva negra de desafio e de revolta, os répteis da demagogia política, e todos os saltimbancos
especuladores e devotos da dor humana, permanecerão donos do país e arremessarão sobre o trágico sol vermelho, que
procura iluminar o turbilhão obscuro da sombria história que
passa, o obsceno véu branco trazido para o horizonte livre do
pensamento humano por aquele palhaço depravado chamado
“Marx”, e tudo terminará numa torpe e grotesca comédia diante da qual todos os anarquistas se deverão suicidar por dignidade e vergonha.
Para aqueles anarquistas italianos que padecem de uma exuberância vital; para aqueles anarquistas italianos – individualistas e comunistas – para os quais a luta, o perigo e a tragédia é
uma necessidade de espírito e de matéria, chegou a hora!
A hora de se imporem e dominarem. A verdadeira liberdade e
o verdadeiro direito do homem estão somente na sua capaci-
160
O TEMPERAMENTO ANARQUISTA NO TURBILHÃO DA HISTÓRIA
dade de QUERER!
O direito e a liberdade são a Força!
Aquilo que para os outros é um sacrifício doloroso, para nós
deve ser uma dádiva e um jubiloso holocausto.
É necessário atirarmo-nos sobre a onda do tempo passado, andar à garupa dos séculos, ressuscitar com virilidade a História,
para voltar a beber nas nascentes virgens das quais brota ainda
o sangue, quente e fumegante, dos primeiros sacrifícios humanos feitos de forma livre.
É necessário voltarmos a entrar, nus e descalços, entre as pedras vivas da selva legendária e alimentarmo-nos, como os nossos antepassados, de miolos de leão1 e de natureza selvagem.
Só dessa forma – como Maria Vesta2 – podemos dizer ao primeiro Herói que soube oferecer, estoicamente e serenamente,
as suas carnes às chamas vermelhas de uma fogueira inimiga,
lúgubre e crepitante: Tal como tu, também nós podemos agora
cantar durante os suplícios.
A Vida que a sociedade nos oferece não é uma vida plena, livre
e festiva. É uma vida reprimida, mutilada e humilhante.
Devemos recusá-la.
Se não temos a força e a capacidade para arrebatar violentamente das suas mãos essa vida elevada e rica que fortemente
sentimos, lancemos este espectro sobre o trágico altar do sacrifício e da renúncia final.
Pelo menos podemos colocar uma heróica coroa de beleza sobre o rosto ensanguentado da arte que ilumina e cria.
É melhor entrar nas chamas de uma fogueira e cair com o
crânio rachado sob uma rajada de tiros de um pelotão de execução do que aceitar esse espectro de vida irónica, que não é
mais do que uma torpe comédia.
Oh amigos, chega de cobardia. Oh companheiros, chega de ter
a ilusão ingénua do “acto generoso das multidões”. Chega.
A multidão é palha que o socialismo deixou apodrecer no estábulo da burguesia.
Errico Malatesta 3, Pasquale Binazzi4, Dante Carnesecchi5 e os
outros milhares de desconhecidos que apodrecem naqueles
buracos miasmáticos e mortíferos que são as prisões da monar-
161
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
quia dos Sabóia e que levaram os medalhados do P.S.I. (Partido
Socialista Italiano) a pedir à pocilga de Montecitorio6 os meios
para construírem outras ainda maiores, deverão ser para nós
como arrependimentos espectrais, caminhando de forma assustadora entre os meandros incertos da nossa alma plena de
dúvidas; deverão ser como labaredas de sangue a escaldar que
fogem do coração para ascenderem vertiginosamente às linhas
do rosto e cobrirem-no de uma triste vergonha.
Eu sei, nós sabemos, que uma centena de HOMENS – dignos
desse nome – poderiam fazer aquilo que quinhentos mil inconscientes “organizados” não são nem nunca serão capazes
de fazer. Não vêem, amigos, a sombra de Bruno Filippi que vos
olha e ri?
Não existem mais do que UMA CENTENA DE ANARQUISTAS
dignos desse nome em Itália? Não existem mais de cem “EUS”
capazes de caminhar com pés de fogo sobre o cume turbulento
das nossas ideias? Errico Malatesta e todos os outros milhares
de caídos entre as mãos do inimigo nos primeiros prelúdios
desta tempestade social, aguardam com uma ansiedade nobre e febril a fulguração que destrua o edifício em colapso, que
aclare a história, que realce os valores da vida, que ilumine o
caminho do homem...
Mas a fulguração luminosa e fatal não pode irromper do coração das massas.
As massas que se pareciam aos adoradores de Malatesta, são
vis e impotentes.
O governo e a burguesia sabem-no... Sabem-no e riem-se.
Pensam: “O P.S.I. está connosco. É a peça indispensável para
o êxito sombrio do nosso jogo perverso. É o Abracadabra que
ganha forma na voz Abracas e Abra da nossa feitiçaria mágica
e milenária. As massas cobardes são os seus escravos e Errico
Malatesta está velho e doente. Faremos com que morra no
segredo lúgubre de uma cela húmida e depois atiraremos o
cadáver à cara dos seus companheiros anarquistas...”
Sim, assim pensa o governo e a burguesia no íntimo da sua
alma idiota e desprezível. Queremos nós suportar este desafio
ignóbil com indiferença? Queremos nós suportar este insulto
162
O TEMPERAMENTO ANARQUISTA NO TURBILHÃO DA HISTÓRIA
sangrento e brutal em silêncio? Seremos nós tão desprezíveis?
Eu espero que estes meus três pontos de interrogação gigantescos, de tal forma solenes e terríveis, encontrem nas fileiras
do anarquismo uma resposta viril que diga: NÃO! com uma repercussão terrível, ainda mais terrível...
É dos cimos em chamas do apogeu luminoso que devem surgir as fulgurações libertadoras.
O forte ANCIÃO espera. Heróicos companheiros: A NÓS!
O cadáver de um velho agitador custa sempre mais do que a
vida de um milhar de desprezíveis imbecis.
Recordem-no irmãos.
Façamos que não caia sobre nós a mais profunda de todas as
vergonhas humanas.
Renzo Novatore
Il Libertario, La Spezia, Ano XVIII, n. 793, 8 de Dezembro de 1920
NOTAS
1.
Na mitologia grega, Aquiles foi alimentado pelo centauro Quirão
com miolos de animais selvagens para obter as suas qualidades.
Alimentar-se de miolos de leão significaria, portanto, adquirir
coragem. (N.T.)
2.
Referência a Vesta, deusa romana que representava o fogo sagrado
e o coração da cidade. (N.T.)
3.
Errico Malatesta (1853-1932) foi uma das mais notáveis figuras
do anarquismo italiano, tendo dado um dos mais importantes
contributos para o impulsionamento das ideias anarquistas um
pouco por todo o mundo durante e após a sua época. Sendo uma
figura sobejamente conhecida pelos meios anarquistas, resta-nos
apenas indicar que o autor se refere à detenção de Malatesta a 17
de Outubro de 1920 após um encontro anarquista em Bolonha
onde este foi orador. Depois desse encontro, deram-se vários tumultos na cidade, e Malatesta, assim como outros membros do
163
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
jornal Umanità Nova, acabaram na prisão sem saberem do que
estavam a ser acusados. Malatesta foi julgado, conjuntamente
com os seus companheiros Armando Borghi, Corrado Quagliano
e Mario Baldini, entre 27 e 29 de Julho de 1921 em Milão, tendo
sido absolvido e libertado por falta de provas e de uma acusação
consistente. (N.T.)
4.
Referência à detenção de Pasquale Binazzi a 27 de Julho de 1919,
acusado de ter feito parte de um assalto a um paiol. (N.T.)
5.
Abele Rizieri Ferreri refere-se aqui à detenção de 28 de Setembro
de 1920, no curso da vaga de ocupações de fábricas em que Dante
Carnesecchi participou, ainda de que não sejam claros os motivos
da sua detenção. Foi posteriormente libertado em Março de 1921.
(N.T.)
6.
O Palácio Montecitorio situa-se em Roma e é a sede da Câmara de
Deputados, câmara baixa do Parlamento de Itália. (N.T.)
164
CHICOTADA
Chicotada
Senhor sectário de Lodi 1.
Li no n.13 do «Iconoclasta!», o conteúdo vulgar e estercorário
que você, sob o título: Individualismo ou futurismo?, teve o
prazer de vomitar contra mim.
Pois bem: já sabia que você era um socialistóide epiléptico,
desde que tive a paciência franciscana de ler os seus abortos
científicos (?) e filosóficos (???), contaminados por uma moralzinha pútrida.
Ocorreu-me que você fosse um baboso jesuíta, sectário e impotente, quando eu – com aquela superioridade serena e segura que me caracteriza – respondi com um texto amigável e
ultra-sereno (escrito com o qual acariciei, por fim, a sua vaidade, induzindo-o a aceitar uma discussão) àquele ataque
bilioso e estúpido que você me dirigiu. Resposta à qual fugiu
cobardemente, não encontrando nem mesmo a força – devido
à sua presumida impotência – de confessar a sua incapacidade polémica de sustentar aquilo que erradamente pensa! Que
você se creia (habitualmente) um pequeno deus da anarquia,
sem sequer ter compreendido o abecedário, é um facto que até
mesmo as crianças já devem saber: mesmo muitos leitores simpatizantes perceberam que você é um Caco2 histérico, invejoso
da minha caneta, e ruborizaram-se de vergonha por si.
Que a sua alma seja uma mistura vulgar de uma moral manzoniana3 hipócrita e clerical, cheia de intolerância cristã anti-anarquista e anti-libertária, é algo que, se não me engano,
você mesmo se deve ter apercebido: que você seja um cego e
um fanático adorador da filosofia (???) ministerial, reaccionária
e anti-anarquista, daquele mentiroso quadrumeno do pensamento e da arte que corresponde ao nome de Benedetto Croce,
165
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
é uma consequência lógica da sua mentalidade inferior de paquiderme do pensamento volitivo e de múmia cristalizada da
intelectualidade.
Que você procure reforçar a sua tese (???) com o apoio daquele
tal senhor Max Nordau, que todos os perfeitos idiotas celebram
como um «Grande» porque foi um dos grandes caluniadores do
génio e da arte, é outra consequência lógica da sua incapacidade raquítica de compreender as altitudes e as profundezas
das almas mais refinadas e mais raras. Que você tenha encontrado lugar no anarquismo é também – devido à quase incapacidade dos anarquistas saberem distinguir bem – uma coisa
natural. Mas o que não é natural, nem anarquista, nem humano, é o seu cinismo idiota que me desafia. Você, esquecendo-se que tinha de pagar-me aquele velho conto de ouro e de sol,
propôs-me um outro de esterco e de lama. Certos cinismos
inconscientes são para mim inconcebíveis. Você chamou os
meus escritos – que a sua mentalidade inferior de caixa de óculos pedante e moralista jamais poderá compreender – «delírios
literários (?)» (como demonstra toda a impotência da sua raiva
infeliz aquele estúpido ponto de interrogação colocado entre
parêntesis!), «prosa vazia e louca», etc.
E depois de me ter comparado (oh, como a sua profundidade
o torna adivinho...) aos decadentes alcoolizados e drogados,
assolados pelo ópio e enfraquecidos pelas sereias (será por acaso Camillo, também um CASTRADO fisicamente para além de
o ser espiritualmente?), você satisfaz-se também ao classificar-me de «grafómano» e «megalómano».
Ao invés, eu – para nivelar bem as minhas contas consigo –
classificá-lo-ei de ESTERCORÁRIO: Classificação essa que dou
sem ter medo que me possa desmentir.
***
Tenho quase a firme convicção de ter-lhe respondido como
merecia e de tê-lo satisfeito acima de qualquer resposta.
Procurava um belo macho, forte e viril, saudável de corpo e
mente, que soubesse manejar bem o chicote para chicotear um
166
CHICOTADA
pouco a sua mentalidade senil, débil e seca, e encontrou-o.
Pode ficar bastante grato ao seu Max Nordau e ao ministro Benedetto Croce, seu inspirador e professor de moral.
Quanto a mim, eu sou um ANARQUISTA, o que quer dizer:
um AMORALISTA:
E a sua moral dá-me asco.
E agora, antes de terminar, tenho o dever de lhe dizer que não
tenho nem tempo, nem paciência, a perder consigo. Desta vez
quis ser indulgente e dar-lhe o estímulo que tanto desejou. Mas
agora chega!
Ao discurso prolixo e enfadonho de sectário histérico, responderão apenas as notas altas e solenes do meu silêncio escarnecedor. Pior para si se, ao não se ter apercebido da sua vã
presunção, continue a crer-se um professor de ciências e de
anarquismo.
Porque, tome nota: você quer limpar o anarquismo dos «loucos». Mas os imbecis não são mais do que pobres desgraçados
que se movem quase sempre por compaixão.
E você – bem o sabe – está entre estes!
Renzo Novatore
Iconoclasta!, Ano II, n.1-2, 20 de Fevereiro de 1921
NOTAS
1.
O autor refere-se a Camillo Berneri, nascido a 28 de Maio de
1897 em Lodi. Este texto é a resposta a uma polémica iniciada por
Berneri nas páginas do Iconoclasta! sobre o individualismo e o futurismo. (N.T.)
2.
Caco era um monstro, filho do deus Hefesto e de Medusa, que vivia
numa caverna no monte Aventino e se alimentava de carne humana. Segundo o mito, Caco teria roubado a Hércules quatro touros e quatro novilhos do gado que este tinha roubado a Gerião, o
décimo dos doze trabalhos de Hércules. Para confundir Hércules,
Cato arrastou o gado roubado pela cauda até à sua caverna, não
167
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
deixando qualquer rasto que Hércules pudesse seguir. Quando
este acordou, deu pelo roubo, mas o facto de não haver qualquer
pista fez com que quase desistisse. Foi o mugir do gado roubado
que levou Hércules à caverna de Caco, travando-se ali um combate que Hércules acabou por ganhar. A imagem de Caco poderá
aludir assim à inveja que este sentiria por um ser virtuoso como
Hércules, e é essa a ideia que Abele Ferrari quererá fazer passar.
(N.T.)
3.
Referência a Alessandro Manzoni (1785-1873), poeta e romancista
italiano. Manzoni era filho de Pietro Beccaria e Giulia Beccaria, e
neto de Cesare Beccaria, conhecido jurista e filósofo. Desde muito
cedo viu os laços familiares quebrarem-se com a separação dos
seus pais, tendo a sua mãe partido primeiro para Londres e depois
para Paris com o seu amante, o que fez com que o seu pai o tivesse
colocado em diversas escolas católicas, sem que nunca tivesse
tido grande interesse pela aprendizagem. Contudo, começou a
interessar-se pela poesia aos quinze anos de idade, dando então
início à sua obra literária. Com a morte do seu pai em 1805, junta-se à sua mãe em Paris e começa a interessar-se pela a filosofia de
Voltaire e pelo seu cepticismo anti-católico. Em 1808 casa-se com
Henriette Blondel, que o influencia na sua conversão ao catolicismo. Foi a partir de então que se dedicou mais aprofundadamente
à escrita, culminando com a sua obra-prima I Promisi Sposi (Os
noivos), publicada entre 1825 e 1827 em três volumes, e que se tornou um símbolo para o Risorgimento (movimento de unificação
de Itália), devido à sua mensagem patriótica. (N.T.)
168
NO REINO DOS FANTASMAS
No reino dos
fantasmas
Não existia mais do que a Beleza e a Força, mas, para que houvesse um equilíbrio, os brutos e os fracos inventaram a Justiça.
Raffaele Valente
Acreditava que fosse um sonho assustador mas é, ao invés,
uma realidade sangrenta. Estou sitiado e constrangido entre
um duplo cerco de maníacos e loucos.
O mundo é uma igreja pestilenta, suja e lamacenta, onde
todos têm um ídolo que adoram fetichisticamente e um altar
sobre o qual se sacrificam. Mesmo aqueles que ateiam o fogo
iconoclástico para incendiarem a cruz na qual o homem-deus
estava pregado, não compreenderam ainda nem o clamor da
vida nem o grito da Liberdade. Depois de Jesus Cristo, do fundo
da sua lenda, ter cuspido na cara do homem o mais sanguinário
ultraje, incitando-o a renegar-se para se aproximar de Deus,
veio a Revolução Francesa, a qual – feroz ironia – fez o mesmíssimo apelo ao proclamar os “direitos do homem”.
Com Cristo e com a Revolução Francesa o homem é imperfeito.
A cruz de Cristo simboliza a POSSIBILIDADE de se converter
em HOMEM, os “direitos do homem” simbolizam a mesmíssima coisa.
Para alcançar a verdadeira perfeição é necessário divinizarmo-nos de acordo com o primeiro, e humanizarmo-nos de
acordo com o segundo. Mas um e outro estão de acordo ao
proclamarem a imperfeição do homem-indivíduo, do Eu-real,
169
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
afirmando que o homem só poderá ascender aos cumes mágicos da perfeição através da realização do ideal.
Cristo disse-te: se tu pacientemente subires o desolado
calvário para depois te deixares pregar na cruz, tornando-te
a MINHA imagem, que é a do homem-deus, serás a perfeita
criatura humana, digna de te sentares à direita do meu pai que
está no reino dos céus. E a Revolução Francesa disse-te: Eu
proclamei os direitos do homem. Se tu entrares devotamente
no simbólico claustro da justiça social humana para te sublimares e humanizares através dos cânones morais da vida social, serás um cidadão e dar-te-ei os teus direitos proclamando-te homem. Mas quem ousar atirar às chamas a cruz onde o
homem-deus se encontra crucificado e a tábua onde os direitos
do homem estão torpemente gravados, para depois descansar
na rocha virgem e granítica da força livre, eixo epicêntrico da
própria vida, será um ímpio e um malvado, contra o qual se
voltarão as sanguinárias fauces dos dois fantasmas sombrios:
o divino e o humano.
À direita, as sulfúricas e sempiternas chamas do inferno que
pune o PECADO, à esquerda, o surdo rangido da guilhotina que
condena o CRIME.
A fria e desanimada cobardia do medo humano, que se desenvolveu a partir da teorização de um sentimento místico e
enfermo, conseguiu finalmente triunfar sobre a sã e primitiva
INJUSTIÇA instintiva e animada, que era só Força e Beleza, Juventude e Coragem. O progresso (?) e a civilização (?), a religião
(?) e o ideal (?), encerraram a vida num cerco mortal onde os
fantasmas mais sombrios erigiram o seu reino odioso.
Está na hora de acabar com isso! É necessário romper violentamente o cerco e escapar. Se as quimeras das lendas divinas
influenciaram terrivelmente a história humana e se a história
humana quer a mutilação do homem instintivo-real para seguir
o seu curso: nós revoltamo-nos!
A culpa não é nossa se das simbólicas chagas de Cristo esguicham gotas purulentas de matéria sobre o registro sangrento da
humanidade, para depois gerarem nesta a contagiosa podridão
civil que proclamou os direitos do homem. Se os homens que-
170
NO REINO DOS FANTASMAS
rem apodrecer nas cavernas sistemáticas da putrefacção social,
que fiquem bem acomodados. Não seremos nós que os iremos
libertar! Mas nós amamos o Sol e queremos contorcer-nos
livremente no espasmo do seu quente e violentíssimo beijo.
***
Se olho à minha volta, tenho vontade de vomitar. De um
lado o cientista em quem devo crer para não ser ignorante.
Do outro lado o moralista e o filósofo dos quais devo aceitar
os mandamentos para não ser estúpido. Depois vem o Génio
que devo glorificar e o herói diante do qual me devo curvar
comovido.
Depois vem o companheiro e o amigo, o idealista e o materialista, o ateu e o crente e toda uma infinidade de símios
definidos e indefinidos que querem dar-me bons conselhos
e fazer-me entrar, finalmente, num bom caminho. Porque –
naturalmente – aquele caminho por onde eu vou está errado,
como erradas estão as minhas ideias, o meu pensamento, e
tudo o que venha de mim.
Eu sou um homem errado. Esses – pobres loucos – têm
todos a ideia que a vida os chamou para serem sacerdotes
oficiais sobre o altar das mais altas missões, porque a humanidade foi chamada para grandes destinos... Estes pobres e lamentáveis animais, desfigurados por falsos ideais e
transfigurados devido à loucura, nunca conseguiram compreender o trágico e alegre milagre da vida, como nunca conseguiram entender que a humanidade não foi de nenhuma
forma chamada para qualquer grande destino. Se tivessem
compreendido alguma coisa de tudo isto, teriam pelo menos
aprendido que os seus supostos semelhantes não querem, de
modo algum, partir a espinha dorsal para cavalgar o abismo
que separa uns dos outros.
Mas eu sou quem sou, não importa o quê.
E o grasnar destas gralhas multicolores não serve senão para
alegrar a minha sabedoria nobre e pessoal. Não ouvem, oh símios apostólicos da humanidade e do porvir social, algo que
171
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
soa por cima dos vossos fantasmas?
Oiçam, oiçam! É o tonitroar libertado pelo meu riso furioso
que, lá no alto, ressoa!
Brunetta L`Incendiaria
Vertice, Arcola, 21 de Abril de 1921
172
ACIMA DAS DUAS ANARQUIAS
Acima das duas
anarquias
O pensamento social, cheio de dinâmica revolucionária irradiada pelo conceito político-social dos comunistas libertários,
irrompe através da profundidade universal da dor humana
para se entrelaçar num amplexo quase monístico com o outro
conceito filosófico-espiritual mais elevado e vasto do individualismo anarquista, desejando a definitiva e radical anarquia.
Mas sendo a Anarquia um “final absoluto” em plena harmonia com o infinito ideal e o comunismo uma morte jurídico-social “relativa” que desemboca no empirismo económico – por
isso é prelúdio e promessa, mas não harmonia musical de uma
grande epopeia final –, sucede que os prósperos filhos das duas
correntes teóricas do porvir social continuam ainda a pegarse uma à outra, disputando – tempestuosamente ou serenamente – o património filosófico-espiritual da pura Anarquia. É
o antigo dualismo que, coberto por uma lógica aparente, ainda
se engana no círculo vicioso onde o carrossel do dogma e da
utopia gira em torno do eixo funesto do sonho, que a verdade
deforma e que transfigura a vida.
E é desse círculo vicioso, de onde nenhuma das duas partes ousou ardentemente sair ainda, que eu quero desvincular-me definitivamente para poder mergulhar num banho de um novo sol.
O anarquista que aspira ao comunismo e o individualista
que aspira à Anarquia, não se apercebem de que estão ainda
violentamente presos aos grilhões da sociologia castrante e às
fauces do humanismo, que é uma repulsiva mescla de não-vontade individual e de moral pseudo-cristã.
173
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Quem aceita uma causa social, colectiva e humana, não se encontra na pura Anarquia do instinto livre, virgem e original, do
antropocêntrico inassimilável e negador.
Eu – anarquista e individualista – não quero e não posso abraçar a causa do comunismo ateu, porque não acredito na elevação suprema das massas e, portanto, nego a realização da
Anarquia programada como uma forma social de convivência
humana.
A Anarquia existe nos espíritos livres, no instinto dos grandes
rebeldes e nas grandes almas superiores.
A Anarquia é o íntimo mistério animador dos solitários incompreendidos, fortes porque se encontram sós, nobres porque
têm a coragem da solidão e do amor, aristocratas porque desprezam a vulgaridade, heróicos porque estão contra todos...
Para o Eu psíquico, o néctar é a Anarquia, e não o álcool sociológico da colectividade.
Anarquista é aquele que se nega a todas as causas pela
alegria da sua própria vida, irradiada pela intensidade interior do espírito.
***
Nenhum futuro e nenhuma humanidade, nenhum comunismo e nenhuma anarquia, valem o sacrifício da minha vida.
Desde o dia em que me descobri que me considero como
OBJECTIVO supremo.
Agora que estou envolto na parábola ascendente do meu espírito libertado e libertador, solto as rédeas da pura nudez do
instinto para ascender acima do arco – inspiração sociológica
ideal – que ajunta e conjuga o utopismo dogmático das duas
pálidas anarquias sonhadoras, para glorificar – entre a resistência do vento e as festas do sol – o egoárquico e poderoso
domínio de mim próprio.
Contemplo, depois da ponte trágica do super-homem nietzschiano, um cume ainda mais livre e fosforescente, onde nunca nenhum deus-homem celebrou os seus natais nem a sua
Páscoa de ressurreição.
174
ACIMA DAS DUAS ANARQUIAS
Acima do povo e da humanidade, vive e palpita o absurdo e
sublime mistério do ÚNICO indefinido.
Eu – louca águia humana – irrompo entre a tenebrosa
escuridão desta noite sombria, onde retumba a tempestade
das ideias e os ventos do pensamento rumorejam, para depois
ascender para além dos braços antelucanos da aurora e, entre
as ardentes chamas do sol do meio-dia, revelar-me no palpitar
voluptuoso e dionisíaco do instinto amoralista e vital, onde a
luz do espírito e a passionalidade do sentimento se inebriam
nas fontes virgens e selvagens do sangue e da carne.
***
A alegria é – primeiro que tudo – um modo especial de sentir
a vida.
Para o homem superior, de sentimentos elevados, existe a
alegria suprema da dor e a profunda tristeza da felicidade. Zarathustra, que procura com avidez, através da dolorosa solidão
dos cimos, a alegria final do conhecimento, e encontra a insana
e divina loucura; Jules Bonnot1, que, através do “Crime” e do
“Delito”, sublima a vontade do Único que, para além do Bem e
do Mal, ascende em direcção ao céu da Arte heróica do viver e
do morrer. Bruno Filippi, que se aniquila num esforço titânico,
que reivindica o direito do “Eu” contra as constrições sociais
das odiosas colectividades burguesas e plebeias, são as preciosidades radiantes que compõem a grinalda libertária do meu
amoralismo vital, como são também os protagonistas da minha
tragédia espiritual.
Eu procuro na vida a alegria do espírito e a luxuriosa volúpia
do instinto. E não me importa saber se estas têm as suas raízes
perversas na caverna do bem ou nos turbulentos abismos do
mal. Eu elevo-me, e se na minha elevação encontrar o trágico
fulminar do meu destino, a vida e a morte inclinar-se-ão sobre a
minha boca deformada para depois me seguirem nos redemoinhos supremos, onde a Arte glorifica os fortes e os rebeldes incompreendidos, que a moral vitupera e condena, que a ciência
chama de loucos e que a sociedade amaldiçoa.
175
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
Eu sou, pois, o tripudiante instinto libertado. Dando ouvidos a
mim próprio, sinto o grito torrencial do meu espírito libertador
que canta a canção épica e triunfal da vitória final.
Todas as ARQUIAS caíram e quebraram-se. Agora, amo-me e
exalto-me, canto-me e glorifico-me. Os meus velhos sonhos encontraram descanso na pela branca e cheirosa das mulheres. A
minha alma, ardente e pagã, de poeta libertino, reflecte-se com
volúpia nos seus olhos perversos onde os espíritos do Prazer e
do Mal dançam a mais louca das danças. Apenas o cintilar das
estrelas, o correr dos rios, o murmúrio da floresta, dizem algo
daquilo que em mim vive. Quem não compreende as estranhas
sinfonias da natureza não pode compreender as estrofes que
soam nas minhas canções sedutoras.
***
O meu não é um pensamento ou uma teoria, mas um estado
de alma, um modo particular de sentir. Quando sentir a necessidade de pôr decididamente em liberdade os meus Centauros
e os meus furiosos garanhões, existirá ao meu redor uma louca
orgia de amor e de sangue, porque eu sou – sinto-o – aquele que
os habitantes dos pântanos morais da sociedade chamam de
“delinquente comum”.
***
Louco? Como quiserem! Os seres normais nunca sentiram
a minha simpatia. Os poucos que amo, de entre os homens,
são os “delinquentes” do Pensamento e da Acção (Artistas,
Ladrões, Vagabundos, Poetas).
De entre as mulheres, amo as pervertidas. Amo-as vestidas
de azul ao pôr-do-sol. Amo-as vestidas de vermelho entre o
flavo das auroras nascentes, amo-as nuas e perfumadas sobre
o leito do amor, amo-as vestidas de branco sobre o pequeno
176
ACIMA DAS DUAS ANARQUIAS
leito da morte.
Pobres, pequenas, grandes irmãs minhas que sempre amei e
jamais possui. Eu amo-vos! Amo-vos! Amo-vos!
Digam-me, oh minhas irmãs com vida, oh minha irmãs falecidas: Quem? Quem de vocês foi a mais célebre, a maior, a
mais pervertida?
Ah, lembro-me, lembro-me!...
Foste tu Clara 2!... Mas onde estás agora?
Conheci-te através d`O Jardim dos Suplícios de Octave
Mirbeau3. Conheci-te e amei-te! Tu és a mais rara e refinada
criatura, a mais romanticamente e profundamente humana
e cruel, que eu alguma vez soube ter experienciado agradavelmente a vida e deliciosamente o amor, entre os gemidos
excruciantes dos supliciados e o perfume das flores. Quando
te imagino a correr, louca e leve, sob o prelúdio flavo do crepúsculo de ouro, para encontrar um relvado avermelhado de
sangue e fazer dele um leito nupcial e nele te dares ao mais
profundo amplexo de amor, sinto-me eufórico de admiração
por ti.
Ah, romântica e refinada criatura, como sabes penetrar no
milagre divino das flores e como te ensina a sublimar o perfume sensual do Thalictrum chinês...
Só uma grande luxuriosa e uma grande pervertida como tu,
poderia ouvir – mesmo por entre os gritos excruciantes e terríveis dos supliciados – a forte e poderosa voz da natureza
instintiva que grita: “Amem-se!... Amem-se!... Façam também
vocês como as flores... Não existe mais do que o Amor verdadeiro!” E eu compreendo e sinto o teu amor pecaminoso
e amoral, oh Clara, amaldiçoado e abominado pela pureza
castrada da moral dos pudicos e dos homens. Sinto que se
ergue, louco e impetuoso, das profundezas subterrâneas do
instinto, para se desprender – com a harmonia musical de
desejos e de mistérios –, libertino e soberbo, perante o espectáculo bárbaro e cruel dos sacrifícios humanos e para celebrar
a vibração suprema e poderosa da ALEGRIA mais dolorosamente profunda, que ecoa nos corações sangrentos da vida
mais trágica e plena.
177
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
Oh, perversa heroína de Octave Mirbeau, eu sublimo-te e canto-te porque sou o bárbaro cantor do Mal.
Acima das duas Anarquias da Razão e do Bem, eu elevo – glorioso e triunfante – a bandeira da Anarquia do Instinto e do Mal.
Renzo Novatore
Vertice, Arcola, 21 de Abril de 1921
NOTAS
1.
Jules Bonnot (1876-1912), anarquista ilegalista francês, foi o terror da burguesia francesa no princípio do século XX. Associado a
outros anarquistas ilegalistas, cometeram uma série de assaltos
a bancos entre 1911 e 1912, tendo ficado conhecidos por serem
os primeiros a utilizarem o automóvel como meio de escape. Este
grupo foi denominado pelos meios de comunicação como “La
Bande à Bonnot”, depois de Jules Bonnot ter dado uma entrevista
ao jornal Le Petit Parisien onde terá dito “Gastaremos as nossas
balas contra a polícia, e se eles não aparecerem, nós sabemos
onde os encontrar.” Bonnot foi morto depois de ter sido cercado
por cerca de 500 polícias numa casa em Paris, tendo havido uma
troca de tiros do qual resultaram três polícias feridos, e de estes
terem feito explodir com dinamite o edifício em que estava refugiado para depois o fuzilarem quando o encontraram quase
inconsciente. (N.T.)
2.
Clara é uma das personagens do livro Le Jardin des Supplices (O
Jardim dos Suplícios) de Octave Mirbeau. Proveniente da aristocracia inglesa, ele tira um extremo prazer ao torturar os prisioneiros que são levados para o cuidado jardim da prisão de Cantão,
China, onde o castigo e a dor são elevados à mais pura forma de
Arte e se tornam um espectáculo para turistas, por entre árvores e
flores de uma beleza luxuriante. (N.T.)
178
ACIMA DAS DUAS ANARQUIAS
3.
Octave Mirbeau (1848-1917), foi um escritor francês de tendência
anarquista, que denunciou ferozmente as iniquidades existentes
na sociedade de então através dos seus romances. No Le Jardin des
Supplices, livro publicado em 1899, começa por dedicar “Aos Padres, aos Soldados, aos Juízes, aos Homens, que educam, dirigem,
governam os homens, (...) estas páginas de Matança e de Sangue”,
para depois fazer uma crítica arrasadora, através da sua estética
do horror e da tortura, das sociedades europeias colonialistas,
opressoras e decadentes. (N.T.)
179
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
180
O SONHO DA MINHA ADOLESCÊNCIA
O sonho da minha
adolescência
Que a sabedoria dos pútridos cobardes não se ria nem se escandalize a idiota castidade das senhoritas de bem.
Eu sou uma adolescente precoce que, depois de completar
uma longa viagem através dos fosforescentes labirintos das
mais assustadoras profundidades, retorno ao cume para cantar
ao sol a sacrílega e soberba canção da minha vida ainda jovem
e livre.
Alguém me disse: “Tu serás mulher, depois esposa, depois mãe!...”
Eu respondi, desta forma, com uma pergunta: Que queres
dizer com mulher, esposa e mãe? Não direi aqui aquilo que me
foi respondido; apenas sei que ao pensar nisso riu, sim, ainda
riu. O Amor compreendido como missão?! A mulher, esposa e
mãe? Não, não, não! Eu não serei esposa, eu não serei mãe! A
minha revolta não pode ficar pela metade, nem fazer asneiras.
A minha revolta – acima da família – lança também os seus dardos contra a natureza. Eu não quero ser esposa, eu não quero
ser mãe. Não, não, não!
***
Ontem à noite desnudei-me em frente ao espelho e olhei-me
durante muito tempo. Vi o meu corpo de carne envolto numa
sombra de luz com pequenos tremores. Não sei bem porquê,
mas adorei-me...
Os meus seios túrgidos erguiam-se soberbos sobre o meu
peito, tesouro de leitosa brancura. O meu ventre, macio e re-
181
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
dondo, dava-me a impressão de ser qualquer coisa modelada
no mais fino marfim pela mão miraculosa de um artista divino.
Tinha os louros anéis dos cabelos desgrenhados na recôndita
curva da espalda e as húmidas pálpebras dos olhos levemente
pisados de violeta e de negro. A penugem que coroava a baixa
concavidade do meu ventre parecia-me uma asa de ouro sobre
as sagradas costas dos anjos do céu. A minha boca encarnada
fazia-me lembrar uma romã madura, aberta às douradas carícias do sol.
Aproximei-me do espelho e beijei com volúpia o reflexo dos
meus lábios...
Não sei se alguma vez desejei algo com mais intensidade
na minha vida do que quando ontem à noite desejei ser um
homem, para deitar sobre a cama aquele corpo branco de virgem que o segredo daquele claro espelho me mostrava.
Mas a ideia de um amplexo gerou em mim uma outra ideia.
Toda a causa tem um efeito...
Deitei-me de costas sobre a cama. As minhas têmporas palpitavam. O sangue explodia nas minhas veias. Talvez tenha delirado...
Sei que tinha os olhos fechados e não via mais do que
escuridão. Mas na escuridão vi um outro espelho. O da imaginação que mostrava a realidade. Olhei para mim. Vi o meu belo
ventre, redondo e esmaltado, inchar de uma forma assustadora
e no centro uma linha simétrica de uma cor negra-amarelada,
que me deu a repulsiva impressão de ser uma pequena cobra
estendida sobre uma bolsa repleta de grandes ervas secas.
Depois, também vi os meus seios, brancos e soberbos, murcharem e secarem... Era mãe!
Um odioso bebé chupava avidamente o meu sangue, corrompia a minha juventude, destruía brutalmente a minha beleza divina que queria que fosse imortal.
O desejo de ontem à noite passou, mas o pesadelo permaneceu.
Mãe... Que quer dizer isso? Dar filhos à espécie, outros escravos à sociedade, outros desamparados à dor...
... Mãe... Esposa...
Serão, então, estes os objectivos do Amor?
182
O SONHO DA MINHA ADOLESCÊNCIA
Ah, velhas feitiçarias da moral, velhas falsidades desta velha
humanidade.
Não, eu nunca serei esposa de ninguém, eu não darei nenhum
filho à espécie. Nunca!
A vida é dor, a humanidade é falsidade. Quem aceita perpetuar a espécie é um inimigo da beleza pura.
A humanidade é uma raça que deve DESAPARECER!
O individualismo deve matar a sociedade, o prazer deve estrangular a dor. Que o choro e a dor morram afogadas numa
orgia final de prazer. Rendam-se à louca alegria de viver, vocês
que amam a vida, vocês que amam o fim...
Que importa o futuro? Que importa para vocês a espécie?
Vamos, vocês que se descobriram a vós próprios, façamos do
mundo uma festa e da vida uma orgia crepuscular de amor.
Para aqueles que venham do abismo da mentira social, onde se
encontram arreigadas as raízes da dor humana, a alegria deve
ser um fim e o fim o objectivo supremo.
Eu não quero ter um filho que corrompa a minha beleza, que
murche a minha juventude.
Eu não quero uma família que constranja a minha liberdade;
eu não quero um marido insípido, ciumento e brutal, que, em
troca de um pedaço de pão, impeça à minha alma os voos líricos através das mais divinas e pecaminosas loucuras da luxúria
e da volúpia à carne dadas pelos muitos amores.
Eu não amo os maridos e talvez nem os amantes.
Eu amo o prazer e o amor.
Mas o amor é uma flor que germina sobre as bocas dos homens.
Quando eu me aproximar das suas bocas para colher a perversa flor do Amor, só o farei por amor-próprio. Amar os outros é sempre supérfluo e por vezes estúpido. Basta o amor de
si próprio. Basta saber-se amar. E eu saberei amar-me tanto,
tanto!
Amar-me-ei nua diante do espelho durante a noite, adorar-me-ei nua na banheira pela manhã, inebriar-me-ei nua entre
os braços dos amantes.
A humanidade caminha pelas vias da dor para se perpetuar,
eu encaminho-me pelas vias do prazer porque procuro o fim.
183
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
Eu caminho em direcção ao oriente, eu caminho em direcção
ao ocidente. Eu quero caminhar pelas vias do mundo para colher as flores do amor, do prazer e da liberdade.
Amo as meias de seda preta e encarnada. Cuecas de seda branca e rosa. Sapatos de caucho e tecidos refinados. Banho de água
avinagrada e de colónia, perfume de Cotty e bouquets de rosas.
Eu quero caminhar pelas vias do mundo para colher as flores
do amor, do prazer e da liberdade.
Arrancarei a folhagem das tílias, colherei frascos de hortênsia,
cachos de glicínias e flores de oleandro, para preparar para o
meu amor leitos perfumados.
E serei a amante de vagabundos e de ladrões. E serei o ideal
dos poetas.
Porque eu não quero dar nada à pátria, à espécie e à humanidade.
Eu quero embebedar-me na fonte do prazer, da luxúria e da
volúpia. Eu quero arder por completo sobre o fogo do amor.
Não quero ser mãe, não quero ser esposa. Não, não, não!
Leitos perfumados, beijos de amantes e música de loucos violinos. Danças e canções.
Eu sei. Chamar-me-ão louca e perversa. Chamar-me-ão p...
Mas são velhos nomes impotentes que não me perturbarão mais.
Sou a adolescente precoce, que depois de ter vagueado pelos
mais assustadores abismos das profundezas, regresso ao cume
para cantar ao sol a sacrílega canção da minha vida livre.
Vida de beleza e força, vida de arte e amor, fonte de pecado
divino, brotando no sagrado oásis da volúpia. Basta de epilépticos frenesins do espírito.
Nada mais pertence à beleza pagã do que o meu corpo jovem.
Oh amor, arrebata-me...
Sibilla Vane
Vertice, Arcola, 21 de Abril de 1921
184
A MISTERIOSA
A Misteriosa
Encontrámo-nos na margem de um rio num quente meio-dia
de Agosto. Ela olhou para mim, eu olhei para ela...
A sua carne branca e cheirosa emanava o perfume sensual de
todas as flores festivas e os seus olhos irradiavam a divina luz
do sol.
Nas suas veias azuis corria, quente e fecundo, todo o sangue
humano, e o poderoso palpitar do seu grande coração era o
enorme palpitar de todo o Universo.
Na sua alma existiam abismos assustadores que continham
todas as trevas povoadas de espíritos espectrais da negação e
todos os cumes habitados pelos espíritos radiosos de todas as
luzes da afirmação.
Ela simbolizava o infinito e o finito, o enigma e a verdade, o
revelado e o desconhecido, a esfinge e o mistério...
Nunca tinha visto uma imagem tão perfeita de cigana
vagabunda sem qualquer objectivo.
Disse-me: “Sim, sim, compreendo aquele fulgurante ponto
interrogativo que brilha assim, estranhamente, nos teus olhos,
como um diamante de virtudes maléficas incrustado num anel
de ouro. Sim, sim, compreendo!...”
Tu queres dizer-me: “Nós já nos vimos alguma vez...?”
“Realmente...” Mas ela não me deixou acabar. Cortou-me a
palavra a metade – com um grito – e disse-me “cala-te, cala-te”.
“Não me fales daquilo que sabes, não me fales daquilo que
sabes, não me fales daquilo que passou...” E continuou: “De resto, acontece-te aquilo que acontece a quase todos os homens.
Tu não me tiveste mais do que em sonhos e muito deformada!
É, por isso, uma história vulgar, a do nosso amor. Mas agora
185
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
não existem mais sonhos... não existe mais vulgaridade!
Olha-me! Não sou a usual quimera, a habitual criatura dos
sonhos. Não! Sou eu mesma que te falo agora. Olha-me nos
olhos!... Vês com que luz infernal brilham os meus olhos satânicos? Sentes o hálito perverso que se liberta dos meus lábios
virgens? Ouves a estranha música que os ritmos palpitantes
do meu coração compõem? E compreendes o insano e terrível
mistério desta minha alma assustadora?”
Estava desorientado. Acreditava que qualquer excesso de
delírio ou qualquer onda de prazer dar-me-ia alucinações.
Desviei os meus olhos dos olhos dela e olhei para as águas do
rio que corriam, majestosamente, na concavidade do seu leito
silencioso como um líquido de prata pura.
Entre as moitas de erva verde que povoavam a margem, as
pequenas tiras de sombra jogavam à apanhada – por entre a
ligeira dança do vento – com as finas lascas de sol.
O campo doméstico e a floresta selvagem misturavam – pouco distantes – os coros majestosos e festivos das suas canções
maravilhosas.
Ela – a Misteriosa – continuou a falar comigo desta forma:
“Vi-te descer, pálido e triste, mas com os olhos a revelar e a irradiar esperança, aos mais profundos labirintos da dor humana
para apanhar uma qualquer pedra preciosa, perdida entre os
detritos de antigas minas escavadas à custa do tempo de antigos mineiros.
Mas cada pedra apanhada fez as tuas mãos sangrar, e cada
caverna transgredida mostrou-te a monstruosa face do Incerto que, entre as suas fauces, comprimiu a tua alma como uma
mordidela atroz.
Pensavas: – E se a pedra apanhada fosse falsa? E se os meus
esforços fossem em vão? – Mas quando depois descobrias o radioso brilhar de uma outra pedra preciosa, escondida entre os
detritos inúteis, de súbito, a alegria do trabalho assaltava-te de
novo com os seus milhares de diferentes furores, e escavavas
febrilmente, não prestando atenção ao suor que te banhava a
186
A MISTERIOSA
cara e ao sangue que jorrava do teu coração. E quando depositaste todas as pedras preciosas da antiga sabedoria no altar da
alma pagã, abriste as asas do novo pensamento para voar até ao
cume do ideal, saciando a sede nas puras fontes da fé.
Mas quando te sentaste no cume radiante, satisfeito com as
tuas grandes conquistas, eis que as fúrias do incerto apelavam
aos negros demónios da melancolia a reunirem-se para subirem a montanha e assaltarem-te no teu ermo sagrado.
Então, percebeste que não tinhas encontrado o caminho luminoso da paz verdadeira e os teus olhos, tristes e derrotados,
fixaram-se intensamente no vazio.
Ah, sim! Tu procuravas o CAMINHO, pobre louco. Mas não o
encontraste...
Existem muitos caminhos, não o único caminho! E o único
caminho eras tu. Tu, com todos os teus grandes defeitos e as
tuas grandes virtudes.
Mas tu não olhaste para ti... Descobriste mundos desconhecidos, mas não te descobriste a ti. Tu que eras o centro que animava todo o mundo.
Tu nunca foste o grande solitário monológico, esquecido do
mundo e do teu próprio Deus, nem contemplador.
Eu vi os materialistas arrastarem a barriga pela terra como
répteis negros, e os espiritualistas (idealistas) voar, transportados e jogados fora como miseráveis perfeições fenecidas. E
atrás deles vi as longas multidões de místicos e as infinitas teorias dos ascetas, vagueando – pobres loucos – à procura de leis
alheias para servirem numa cloaca húmida e bafienta de teoria
e assombrada pela fé, através da qual será canalizada a sua vida
inútil de obsessivos!
O homem – mesmo aquele que porta a bandeira da Liberdade
na mão – procura sempre a escravidão na vida.
Ninguém quer convencer-se de uma verdade que nega todo o
“sistema”, toda a “regra”, toda a “forma”.
Mesmo os libertários procuram o sistema, a regra, a forma...
Procuram a teoria castradora e a fé homicida. Experimenta
dizer-lhes: nem “regras”, nem “formas”, nem “sistemas”, mas
Arrepios e Frémitos, Sensibilidade e Intuição, Lirismo e Imagi-
187
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
nação, Força e Fantasia, e eles dir-te-ão: “Queremos algo diferente para a Sociedade, queremos algo diferente para a Humanidade!”
A Sociedade e a Humanidade são os pesadelos dos obsessivos!
E este pesadelo atormentador da Sociedade e do “Queremos...”,
cria a obscura multidão dos pessimistas, que vêem tudo a negro, e a dos optimistas, que vêem tudo a vermelho.
O mundo é – em si mesmo – a mesma coisa para todos. Mas
os cépticos não acreditam e os religiosos adoram. E uns e outros insistem em condenar furiosamente aquele que sabe ser
ao mesmo tempo religioso e ateu, santo e pecador, céptico e
crente, rebelde e dominador. E isso simplesmente porque ninguém quer compreender que o ser é um todo no todo e não
uma partícula infinitesimal do universo ou uma roda dentada
microscópica da máquina humana. E também tu – meu pobre
louco – procuravas um caminho, um horizonte, um “lá” para a
tua vida. Mas todos os caminhos estão abertos para o vagabundo de espírito, como todos os templos são vulneráveis para o
iconoclasta e todos os objectivos são possíveis para o Herói.
Não existe um CAMINHO, mas existem os CAMINHOS.
Não existe uma Verdade, mas existem as Verdades.
Não existe o direito, mas existe a Força.
Não existe a lei, mas o livre-arbítrio.
Não existe a Justiça, mas a Injustiça.
Não existe aquilo a que se chama Amor, mas sim o Egoísmo.
Cada coerência teórica é uma mutilação vital e a própria lógica é ilógica. Cada homem que segue um caminho com os olhos
fixados num objectivo, encontra-se sempre na companhia do
remorso, como aquele que ao jurar encontra sempre o lamento.
Somente aquele que anda por todos os caminhos com os
olhos fixados no registro do seu mundo interior poderá ser o
senhor da serenidade e o Deus da paz feliz.”
Neste ponto, a Misteriosa fez uma pausa. Olhou à sua volta.
Olhou para o lindo sol, para o rio cristalino e para a floresta
festiva. Cantou um hino ateu à solidão do qual não existe testemunho de alguma vez se ter ouvido. Depois disse-me alegremente: “Sim, sou tua, toda tua. E este é o lugar em que me deves
188
A MISTERIOSA
apanhar.” E ao dizer-me isto, transformou-se numa sombra e,
aproximando-se, entrou dentro de mim. Desde aquele dia eu
sou o corpo dela, pois Ela não é senão a minha Alma.
Mario Ferrento
Vertice, Arcola, 21 de Abril de 1921
189
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
190
UMA “FÊMEA”
Uma “Fêmea”
Amo-te sobretudo quando a animação
Se evade do teu rosto prostrado;
Quando no horror se afoga o teu coração;
Quando no teu presente se dá a revelação
Da terrível nuvem do passado.
Charles Baudelaire
Eu sou um poeta estranho e maldito.
Tudo aquilo que é anormal e perverso suscita em mim um fascínio doentio.
O meu espírito – borboleta venenosa de aparências divinas –
é atraído pelos perfumes pecaminosos emanados pelas flores
do mal.
Hoje canto a beleza perversa de uma «Fêmea» – de uma Fêmea
das nossas, que nunca possuí e que jamais possuirei...
Ela caminha sem nome, esquecida e ignorada, através dos
caminhos sinuosos da vida, com uma dor tão profunda e misteriosa encerrada no coração que a eleva acima da Mulher e a
torna divina.
Esta grande flor do mal – contaminada e contaminadora –
contém ainda em si uma pureza humana capaz de sublimar
toda uma vida e divinizá-la.
***
Fêmea?
Sim, porventura!...
191
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
Circula uma lenda estranha em redor do seu nome. Diz-se que
o seu corpo, belo e pecaminoso, se contorceu entre os braços de
vagabundos e de ladrões, de noctívagos e de poetas, de rebeldes
e de heróis...
Todos os monstros da noite conhecem os voluptuosos segredos das suas carnes brancas...
Todos os sedentos de amor beberam os seus beijos...
Mas onde quer que Ela tenha passado deixou corações partidos e almas sangrando; carnes chorando e espíritos em revolta...
Pois ela – a Louca – foi – como no poema de Zarathustra –
uma Harpa dionisíaca de voluptuosidade para todos e para
ninguém...
Enquanto o seu corpo pecaminoso e fremente jazia no leito do
amor envolto em contorções voluptuosas, subjugado aos abismos da grande devoção, o seu espírito inquieto, vagabundo e
rebelde, vagueava através das imensas regiões do infinito para
dar corpo e forma a um sonho etéreo impalpável. A sua alma,
doente de solidão e de distância, não se deixou mais subjugar
pela febre espasmódica da carne insaciável.
Ela não amou senão a si própria...
***
Alguém de entre aqueles que abraçou o corpo perfumado e perverso desta «Fêmea» branca, jogou no seu seio – infelizmente fecundo – os germes fatais de uma outra vida infeliz. A «Fêmea», sob
o imperioso mandamento da natureza, converteu-se em Mãe.
E a sociedade, que foi injusta, vingativa e cruel contra a Fêmea,
também o foi contra a Mãe e contra a própria criança. Esta – só e
impotente – foi lançada para a incontrolável tempestade da vida,
presa à mais triste solidão material de miséria e de desesperação.
A mãe, só, humilhada, perseguida, amaldiçoada, desprezada.
Ela, triste e melancólica. Filha de uma vítima, foi uma vítima prematura por sua vez.
192
UMA “FÊMEA”
***
Olho para o misterioso amanhecer desta estranha alma de
Fêmea para recolher os seus destroços dispersos e reconstruir
nela o segredo.
Sei que sob a alegria dionisíaca deste ser perverso e libertino,
corre, quase sempre, um fio delgado de uma melancolia mística...
Através da minha fantasia poética reconstrutiva, vejo-a como
uma virgem adolescente quando, pela primeira vez, o sol
quente e perverso da voluptuosidade e do prazer se afunda,
como uma lâmina de ouro, nas suas carnes a palpitar de desejo,
repercutindo na sua alma o grito irresistível da juventude exuberante: amor, amor, amor!
Talvez fosse uma aurora morna e dourada; talvez fosse um
crepúsculo vermelho.
Ela deixou-se levar pelo primeiro amplexo de amor, e desde
aquele dia o seu corpo branco foi uma Harpa de volúpia, um
poema de prazer preso às chamas pagãs; um hino de ebriedade
cantado para além do bem e do mal, onde os espíritos livres
celebram o ritual iconoclasta à alegria do viver humano.
Mas sob a alegria dionisíaca deste ser perverso e libertino,
corre, quase sempre, um fio delgado de uma melancolia mística.
Um dia – talvez um daqueles dias tristes em que os astros,
mediante as suas forças ocultas e magnéticas, preanunciam
ao ser a fatalidade obscura do próprio destino – num caminho
enxameado de gente de uma grande cidade barulhenta, três ou
quatro tiros de pistola ecoaram de forma sinistra.
Um adolescente pálido chegou ao cúmulo horrível da mais
trágica desesperação, antes de cair exausto e derrotado na rua
enlameada, ao querer fazer com que a humanidade insensível,
que tudo ignora, ouvisse o estrondo sombrio do seu protesto.
Algo trágico e triste.
Junto a um membro da humanidade culpada, cai um companheiro reivindicador.
Quem era o pálido adolescente que converteu a sua mão delgada de lírio branco numa garra vingadora?
O filho da Fêmea rebelde: da libertina!
193
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
Ao saber da trágica notícia, a Fêmea perversa dobrou-se sobre
si mesma, como um salgueiro-chorão melancólico sob um furacão enfurecido, e purificou-se numa grande dor de Mãe ferida
de morte no mais íntimo, caro e secreto de todos os seus afectos! Aquela voluptuosa flor do mal lavou a sua alma, porventura
impura, mas bela, num divino e abençoado orvalho de choro, e
transformou-se em flor de lírio e em pura beleza incontaminada.
Aquela sua alma insensível, que talvez nunca ninguém tenha
possuído por inteiro, estava reservada a colher a grande dor que
o próprio filho do seu ventre tinha de lhe provocar para vingá-la, enquanto se vingava.
***
A «Fêmea» libertina e alegre é hoje a Mãe solitária que, encerrada no cerco da própria dor, muda e trágica como uma esfinge impenetrável, avança sem nome através dos perniciosos
caminhos da vida, talvez perdoando, talvez amaldiçoando...
A furiosa Anarquia do seu instinto livre fundiu-se na pura
sensibilidade do seu novo sentimento de mãe, e da condensação destes dois elementos profundamente humanos, deve
agora brilhar uma espiritualidade tão fascinante que irradia
as mais desconhecidas constelações da dor humana.
Eu abro a boca para o desconhecido e chamo em alta voz
esta Fêmea-mãe para saudá-la com o nome de Irmã!
A «mulher»?
Que me importa ela?
Esta Fêmea vive hoje acima dela: num cume mais alto!
Eu amo os seres libertinos e alegres nos quais, sob o seu
paganismo dionisíaco, corre sempre um fio delgado de uma
melancolia mística. Eu amo-os sobretudo quando sobre o seu
presente se revela a terrível nuvem de todo o seu passado...
Renzo Novatore
Il Proletario, Pontremoli, Ano I, n.1, 5 de Junho de 1922
194
BANDEIRAS NEGRAS
Bandeiras negras
I
Bandeiras negras ao vento
manchadas de sangue e de sol.
Bandeiras negras ao sol
cheias de glória ao vento!
É necessário regressar às origens. Beber das antigas fontes!...
É necessário regressar ao anarquismo heróico, à ousadia individual, violenta, dissoluta, poética, descentralizadora...
É necessário regressarmos com todo o nosso instinto moderno, com toda a nossa concepção de vida e de beleza; com todo
o nosso pessimismo são e consciente, que não é renúncia ou
impotência, mas sim uma flor cheia de vida. Nós somos os verdadeiros niilistas da realidade e os construtores espirituais de
mundos ideais.
Somos filósofos destruidores e poetas criadores...
Caminhamos pela noite
com um sol no pensamento;
e com duas grandes estrelas de ouro
no nosso olhar ardente.
Caminhamos...
II
Há vários anos, todos os reis da terra e todos os tiranos do
mundo atravessaram o limiar do tempo, e – voltando as costas
195
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
à aurora – chamaram – em alta voz – os espectros do passado:
do passado mais tenebroso!
Às vozes dos tiranos e dos reis, uniram-se também as vozes
roucas de todos os grandes pobres de espírito, da arte, do pensamento e da ideia! – E ao escutarem as vozes dos tiranos, dos
reis e dos miseráveis, os espectros e os fantasmas ressuscitaram
das suas sepulturas e vieram dançar entre nós...
O «estado», a «raça», a «pátria», foram as nuvens macabras que
se aglomeraram no céu, os fantasmas espectrais que ofuscaram
o sol; que foram novamente atiradas para a noite sombria da
longínqua idade média...
III
Morte!...
Quem se lembra ainda da dança macabra do sinistro e monstruoso deus da guerra?
Quem se lembra ainda da guerra?
Passou muito tempo desde esse dia, mas sobre esta terra desgraçada, e ainda assim nobre, fertilizada por cadáveres estéreis
e cheia de sangue infértil, nenhuma flor virgem ideal, feita de
espiritualidade e de pureza, cresce hoje em dia!
Não. As flores que nascem hoje no solo árido desta terra ensanguentada em vão, não são flores plenas de vida, capazes de
uma grande esperança, de lutas viris, de pensamentos vigorosos; são flores de morte nascidas nas trevas, que crescem no sofrimento do inconsciente, devastadas pelo furacão, arrastadas à
deriva no rio do esquecimento...
***
Eu não sou um sentimentalista... mas tenho uma recordação
horrível da guerra.
É devido a ela que acabei por odiar e depois desprezar os homens. Mas antes de os ter desprezado e odiado, acumulei no
meu coração todas as lágrimas da humanidade e encerrei na
minha grande alma-síntese todas as dores do mundo...
196
BANDEIRAS NEGRAS
***
Também o espírito do grande Zarathustra – que é o maior
amante da guerra e o mais sincero amigo dos guerreiros – deve
ter ficado terrivelmente repugnado pela guerra...
Deve ter ficado terrivelmente repugnado porque o ouvi gritar: «Vocês devem procurar o vosso inimigo, combater a vossa
guerra, somente pelas vossas ideias!»
E se a vossa ideia sucumbe, que a vossa rectidão convide ao
triunfo.
Mas, ai de mim!, a heróica predicação do grande libertador foi
inútil!
O rebanho humano não soube distinguir o próprio inimigo
nem combater pelas próprias ideias. (O rebanho não tem ideias
próprias!)
E não conhecendo o próprio inimigo, nem tendo ideias
próprias pelas quais triunfar, Abel morre novamente às mãos
de Caim.
Foi convocado para a morte e partiu; como sempre. Assim!
Sem saber dizer Sim nem Não! Partiu como cobarde, como
autómato, como sempre.
Se tivesse, pelo menos, tido a capacidade de dizer o Sim da
entusiástica obediência voluntária – quando não se tem a força
heróica de pronunciar o titânico Não da negação trágica – teria
pelo menos demonstrado que acreditava na «causa» pela qual
morria a combater...
Mas não soube dizer nem sim, nem não!
Partiu!
Como cobarde, como sempre!
Assim...
E ao partir, foi em direcção à morte.
Foi em direcção à morte sem saber porquê.
Como sempre!
E a morte não esperou...
Veio!...
Veio e dançou.
Dançou e riu-se!
197
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Durante cinco longos anos...
Riu-se e dançou sobre as trincheiras lamacentas de todas as
pátrias do mundo.
Macabramente!
Oh, como é idiota e vulgar – feroz e brutal – a morte que dança
sem possuir nas costas as asas de uma Ideia.
De uma Ideia violenta, que agita e destrói.
De uma Ideia fecunda, que gera e cria!
Que coisa estúpida e horrorosa, morrer como cobarde sem saber porquê.
Nós tínhamos visto – enquanto dançava – a Morte.
Era uma Morte negra, opaca, sem transparência de luz.
Era uma Morte sem asas!...
Como era feia e vulgar.
Como era desajeitada a dança!
Mas, ainda assim, dançava...
E como ceifava – ao dançar – todos os supérfluos, aqueles que
estavam a mais!
Todos aqueles para quem – diz o grande libertador – o Estado
foi inventado.
Mas, oh, não ceifava apenas aqueles...
Sim! A Morte – para vingar o Estado – ceifou também os não
inúteis. Também os necessários...
Ceifou também aqueles para quem a vida era um poema de
profundidade, onde a dor sublimada cantava um alegre refrão...
Mas aqueles que não estavam a mais; que não eram supérfluos, aqueles que caíram gritando o seu Não! titânico, rebelde
e forte: esses serão vingados.
Nós vingá-los-emos!
Vingá-los-emos porque eram nossos irmãos; porque caíram
com estrelas no olhar; porque ao morrer beberam o sol.
O sol do Sonho.
O sol da Luta.
O sol da Vida.
O sol da Ideia!
198
BANDEIRAS NEGRAS
IV
A guerra!...
Que renovação trouxe a guerra?
Onde está a heróica transfiguração do espírito?
Onde é que estiveram alguma vez penduradas as tábuas fosforescentes dos novos valores humanos?
Em que templo sagrado foram depositadas as milagrosas ânforas de ouro que contêm os grandes e inflamados corações dos
génios criadores; dos heróis dominadores – que os frenéticos
defensores da grande guerra nos tinham prometido?
Onde brilha o majestoso sol do novo grande meio-dia?
Rios de sangue assustadores lavaram todas as glebas do mundo e, uivando, atravessaram todos os caminhos da terra.
Torrentes de lágrimas aterradoras fizeram ecoar o seu lamento, excruciante e angustiante, através dos turbilhões mais
recônditos e obscuros de todos os continentes do mundo.
Montanhas de ossos e de carne humana apodreceram na lama
por todos os lados, e berraram ao sol por todas as partes.
Mas nada se transformou: – foi tudo inútil!
Só a verminosa barriga burguesa arrotou de farta; e a do proletariado roncou de fome!
E basta!
Se com Cristo e com o cristianismo a alma humana foi conduzida para o frio e para o vazio do nada do para lá da vida;
com Karl Marx e com o socialismo foi obrigada a descer até aos
intestinos...
O ronco que depois da guerra ressoou pelo mundo e fez
tremer a humanidade, não foi outro senão um ronco da barriga que o socialismo traiu, abafou, sufocou, estrangulou, logo
que se apercebeu que começava a colorir-se com um pouco de
conteúdos ideais...
Consumada esta cobardia suprema, inominável, nasce e
cresce a mais sombria, a mais imunda, a mais negra reacção.
Era lógico – natural – fatal!
Era humano...
199
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
V
A nossa época – apesar das aparências vazias e contrárias – está
já posta de gatas sob as rodas pesadas de uma nova História.
A moral bestial da nossa civilização cristã-liberal-burguesaplebeia bastarda, vira-se em direcção ao pôr-do-sol...
A nossa falsa organização social despedaça-se fatalmente –
inexoravelmente!
O fenómeno fascista é a prova mais certa e irrefutável.
Em Itália como noutros lugares...
Para demonstrá-lo, precisávamos apenas de voltar atrás no
tempo e interrogar a História. Mas nem isso é necessário! – O
presente fala com bastante eloquência...
O fascismo não é mais do que o espasmo convulsionário e
cruel de uma sociedade em decadência que se afoga tragicamente no pântano das suas mentiras.
Porque ele – o fascismo – celebra os seus bacanais com piras
em chamas e cruéis orgias de sangue; mas do triste crepitar dos
seus fogos lívidos não se liberta nem uma só centelha de uma
espiritualidade vivaz e inovadora; ao mesmo tempo, o sangue
que derrama transforma-se em vinho, que nós – os precursores
do tempo – recolhemos silenciosamente com os cálices vermelhos do ódio, destinando-o a ser a bebida heróica transmitida
aos pálidos filhos da noite e da dor na missa fatal da grande
revolta.
Nós agarraremos nas mãos destes nossos irmãos para avançar
em conjunto e, dessa forma, ascender a novas auroras espirituais, a novas auroras de vida, a novas conquistas do pensamento, a novas festas de luz; novos meios-dias de sol.
Porque nós somos amantes da luta que liberta.
Somos filhos da dor que se eleva e do pensamento que cria.
Somos os vagabundos irrequietos.
Os incautos de todas as empresas: os exploradores de todas as
provações.
E a vida é uma «provação»! Um tormento! Um voo trágico. –
Um momento passageiro!
200
BANDEIRAS NEGRAS
VI
A nossa vontade é heróica!
Levantaremos tudo num turbilhão de ódio no coração do
mundo e transformaremos tudo numa tempestade abismal.
Num furacão dos cumes.
Num grito das almas.
Em uivos de liberdade!
Através da celebração do anoitecer social, tentaremos a realização integral da vida individual: do Eu livre e grande.
Para que a noite deixe de triunfar.
Para que as trevas não nos encubram.
Para que o contínuo incêndio do sol eternize e perpetue a sua
festa de luz sobre a terra e sobre os mares!
Porque nós somos os ardentes sonhadores do impossível: os
perigosos conquistadores das estrelas!
VII
O fascismo – apesar das aparências vazias e contrárias – é algo
demasiadamente efémero e impotente para impedir o curso
incontrolável e livre do pensamento rebelde que inunda e se
expande, irrompendo impetuosamente por qualquer dique, e
que alaga furiosamente qualquer margem, arrastando – motor
animador e potente –, por detrás dos seus passos gigantes, a
acção vigorosa e titânica do duro músculo humano.
É impotente porque é uma força bruta.
É matéria sem espírito.
É um corpo sem alma.
Uma noite sem aurora!
Ele – o fascismo – é a outra face do socialismo...
Um e outro são dois espelhos sem luz: dois astros apagados!
O socialismo é a força numérica – material – que, ao agir na
sombra de um dogma, resolve-se e dissolve-se num miserável
«não» espiritual que o esvazia de toda a livre flexibilidade volitiva, heróica e ideal. O fascismo é um filho epiléptico do «não»
espiritual que se embrutece, tendendo – em vão – para um
201
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
vulgar «sim» material.
Equivalem-se no campo dos valores morais. Fascismo e socialismo são dois dignos irmãos. Mesmo que o último se chame
Abel e o primeiro se chame Caim. Um Sonho comum une-os. E
esse sonho chama-se Poder.
VIII
Bandeiras negras ao vento
manchadas de sangue e de sol.
Bandeiras negras ao sol
cheias de glória ao vento!
Aquilo que a guerra não fez, e não podia fazer, pode, e deve
fazê-lo, a revolução!
Oh, negras bandeiras transportadas
pelo punho rebelde do homem
- que fixa o seu olhar intenso
para além da mentira dominante
- agitadas ao sol e ao vento.
Agitadas ao vento e ao sol.
A vitória sorri ao longe!...
Longe – longe – longe!...
Na glória do sol e do vento!
IX
O fascismo e o socialismo são os esparadrapos do tempo: os
temporizadores do facto!
São fósseis furiosamente cristalizados que o dinamismo volitivo – com o qual nós animamos a história que passa – arrastará
para a vala comum do tempo. – Porque os dois inimigos equivalem-se no campo dos valores espirituais e morais.
São as duas faces da mesma moeda.
Falta a luz da eternidade a um e a outro!
Só os grandes vagabundos de espírito – os portadores das ban-
202
BANDEIRAS NEGRAS
deiras negras – poderão ser o fulcro luminoso, animador da revolução eterna, que impulsiona o mundo para a frente.
X
A nossa alma volitiva é multiforme...
É atravessada por pulsões ardentes de sol e por arrepios frementes de estrelas!
Somos os poetas rebeldes e os filósofos da destruição.
Somos os anarquistas.
Iconoclastas!
Individualistas.
Ateus.
Niilistas!
Somos os portadores das bandeiras negras.
Caminhamos pela noite
com um sol no pensamento.
Com duas grandes estrelas de ouro
no nosso olhar ardente!
Caminhamos!...
E no teatro da humanidade, a nossa posição é ao extremo de
toda a extrema-esquerda.
XI
Por detrás das gigantescas nuvens negras que ainda cobrem o
céu, brilha um crepúsculo vermelho.
A celebração trágica do Anoitecer social aproxima-se!
A última noite negra será vermelha de sangue.
De sangue e de fogo.
Porque o sangue pede sangue.
É uma velha história...
E depois os nossos filhos – os filhos da Aurora – deverão nascer
do sangue e ser forjados pelo fogo.
Porque as novas ideias individuais devem nascer, virgens e
203
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
belas, das grandes tragédias sociais: dos turbilhões dos novos
furacões!
E é somente da grande catástrofe do fogo e do sangue que o
verdadeiro Anticristo, cheio de humanidade e de pensamento,
nascerá. O verdadeiro filho da terra e do sol, capaz de superar
os vértices e de perscrutar os abismos.
Porque o Anticristo é Águia e Serpente.
Habita os cumes e as profundidades!
Ele – o espírito do novo homem – passará através dos fumegantes escombros do velho mundo destruído, para ascender
em direcção ao grandioso mistério da virgem aurora que aí vem!
Ele – belo e soberbo – erguer-se-á sobre as soleiras do novo
amanhecer, cheio de força selvagem e de uma cintilante beleza sobre-humana, para dizer aos homens relutantes: Avante,
avante!
Avancemos para lá de todos os sistemas.
Avancemos para lá de todas as formas.
Voemos em direcção à liberdade suprema.
Em direcção à extrema ANARQUIA!
XII
Nós – os espíritos livres – os vagabundos da ideia – os ateus da
solidão – os demónios do deserto sem testemunhas.
Nós – os Monstros luminosos da noite – fomos já impulsionados em direcção aos extremos apogeus.
Caminhamos pela noite
com um sol no pensamento.
Com duas grandes estrelas de ouro
no nosso olhar ardente!
E – connosco – cada coisa deve ser levada até às suas máximas
consequências.
Mesmo o ódio.
Mesmo a violência.
204
BANDEIRAS NEGRAS
Mesmo o «crime»!
Porque o ódio transmite a força que ousa.
A violência e o «crime» são o génio que destrói e a beleza
que cria!
E nós queremos ousar.
Destruir – renovar – criar!
Porque tudo aquilo que é baixo e vulgar tem de ser derrubado,
destruído.
Deve permanecer apenas tudo aquilo que é grande,
Porque tudo aquilo que é grande pertence à Beleza.
E a vida deve ser bela.
Mesmo na dor.
Mesmo no furacão!...
XIII
Nós matámos o «dever» da solidariedade, para que a nosso desejo de amor espontâneo e de paternidade voluntária adquira
um valor heróico na vida.
Matámos a «piedade» porque é um falso sentimento cristão
e porque queremos criar um egoísmo doador, nobre e incompreendido.
Estrangulámos o falso direito social – criador dos humildes,
dos cobardes e dos pedintes – para que o homem descubra o
seu «eu» mais profundo e secreto, e encontre a força do Único.
Porque nós sabemo-lo.
A vida está cansada de ter amantes raquíticos.
Porque a terra está cansada de ser inutilmente pisada por
longas falanges de gente pequena recitando estúpidas preces
cristãs.
E, por fim, porque também nós estamos cansados desses nossos “irmãos” cadavéricos, incapazes na guerra e na paz. Inferiores ao ódio e ao amor.
Sim! Estamos cansados e enojados!
A humanidade deve ser renovada.
É necessário que ressoe pelo mundo um cântico épico e bárbaro de uma vida nova e virgem.
205
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Transportamos
archotes refulgentes.
Acendemos
fogueiras crepitantes!
A nossa bandeira é negra.
A nossa estrada é o infinito.
E o nosso ideal supremo
é o vértice ou o abismo!
Caminhamos!...
Caminhamos pela noite
com um sol no pensamento.
Com duas grandes estrelas de ouro
no nosso olhar ardente.
Caminhamos...
E se o nosso sonho fosse uma quimera?
E se a nossa luta fosse inútil e vã? E se a renovação da humanidade fosse algo impossível de realizar?
Ah, não! Nós caminharemos na mesma.
Pela nossa própria dignidade.
Por amor às nossas ideias.
Pela liberdade do nosso espírito.
Pela paixão da nossa alma.
Pela necessidade da nossa vida.
É melhor morrer como herói num esforço de libertação e de
auto-elevação, que vegetar como impotente e cobarde nesta realidade repugnante.
Oh, bandeira negras.
Oh, negros troféus,
emblemas e símbolos
da revolta eterna.
Vocês que são as testemunhas sangrentas de todas as audácias
206
BANDEIRAS NEGRAS
humanas:
Vocês que são destruidoras de todos os preconceitos:
Vocês que são as verdadeiras e únicas inimigas de todas as vergonhas humanas – de todas as mentiras sinistras!
Vocês que, cheias de dor e de sangue, cantam a eterna revolta.
Seguro-vos com o meu punho forte
e, entre a tempestade dos ventos,
levanto-vos numa glória de sol.
Numa glória de sol e de ventos...
De ventos, de sol e de luz!
Renzo Novatore
Il Proletario, Ano I, n.2, Potremoli, Julho de 1922
207
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
208
OS CANTOS DO MEIO-DIA
Os cantos do
meio-dia
Em verdade vos digo que também existe um futuro para o Mal;
mas o meio-dia mais tórrido ainda não foi descoberto.
F. Nietzsche, Assim falava Zarathustra
I
Estou só, estou só! Só e distante...
Mas que importa, porventura, tudo isso?
Sim, que me importa?
Estende-se à minha volta o vasto e infinito deserto, onde os
abetos e os pinheiros cantam – entre o ouro fulvo do sol – as
suas estranhas canções feitas de sinfonias de silêncio e músicas
de mistério...
Também eu canto!
Canto a canção da minha verdade sangrenta por todas as almas
ensanguentadas; canto a canção do maior e mais desesperado
meio-dia: canto o poema canícula do meu mais tórrido Verão!...
Mas canto apenas pelos meus irmãos solitários e anónimos:
canto apenas pelos meus filhos distantes...
Porque a minha alma não é mais um jardim primaveril coberto
de rosas frágeis e fragrantes; porque o meu coração não é mais
um cofre vermelho cheio de sonhos virgens.
Quem cantou o poema da manhã, deve cantar o poema do
meio-dia. E eu canto-o! Canto os cânticos canículas do meu tórrido Verão!
209
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
II
Sonhei uma vez...
Era a primeira Primavera festiva da minha juventude!
Belos tempos, esses!...
Um ideal misterioso batia as suas asas invisíveis sobre as ondas etéreas: o choro da carne era iluminado pelo riso do espírito: a dor humana transformava-se em mim num sonho harmonioso de beleza futura!...
Sonhava com os grandes sonhos de justiça e de liberdade... De
fraternidade e de amor...
E vivia para esse sonho; esperava por esse sonho; lutava por
esse sonho...
Tinha a alma toda coberta de rosas frágeis e fragrantes; e o
meu coração era um cofre vermelho cheio de sonhos virgens!...
Os meus olhos transpareciam uma luz vermelha e dourada, e
a minha fé era um dramático «Sim» sentimental que acreditava
e esperava...
Sim! Nessa altura acreditava...
Acreditava na irmandade; na redenção humana; no amor...
«Auto-elevação dos homens...» «Sublevação das massas...»
«Ascensão dos povos...» «sublimação da humanidade!...»
Ah! que grande poema de sonhos era a minha juventude!...
III
Pelo caminho de todos os que nasceram para grandes e generosos trabalhos – para as «virtudes» prometeicas do pensamento – encontra-se escondido, preparando uma cilada, um
demónio libertador.
Também eu tive o meu demónio escondido, e um dia esperou-me pelo caminho, sorridente e seguro...
Disse-me: «Sou a águia dos cumes e o mergulhador da profundidade.
Venho da eternidade do passado e vou em direcção à eternidade do futuro.
Sou o Mal eterno, porque sou a Dor. Sou o Não! trágico que se
210
OS CANTOS DO MEIO-DIA
perpétua. O espírito que nega e demole; a revolta que liberta e
que cria!...
Eu sou as raízes do homem, o eu da vida.
Sou o espírito negador dos teus subterrâneos mais profundos.
E quando saio das minhas assustadoras cavernas para cavalgar
os centauros do vento e clamar a minha verdade às costas do
mundo, os fantasmas desaparecem e os homens empalidecem».
IV
Disse-me o demónio dos meus subterrâneos mais profundos.
Aquele que sabe dizer as terríveis verdades que fazem sangrar...
Uma vez, deus era o tirano.
Depois veio a família e a sociedade, o povo e a humanidade!
Mas eu falei com aquele que vem da eternidade do passado e
vai em direcção à eternidade do futuro...
E conheço todos esses fantasmas sombrios...
Ah, quantos rios de sangue, de suor e de lágrimas, os vi beber
ao longo do passar dos séculos!...
Quantas montanhas de cadáveres os vi devorar!...
Quantas!...
E cada um que caía morto, murmurava: «Amanhã!»
«Amanhã?» «Deus e amanhã» «Humanidade e amanhã» «Povo
e amanhã».
E hoje?
Onde se encontra, então, o meu herói?
– Onde estão os meus irmãos solitários e anónimos, onde estão os meus filhos distantes. Aqueles que – génios ou lunáticos – sabem viver e morrer sós e livres, gritando – conscientemente e propositadamente: «Eu» «Hoje» «A minha liberdade»
«A minha realização?»
V
Estou só, estou só! Só e distante...
Uma forte febre martela-me a testa e uma nova sede arde-me:
queima-me a boca...
211
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Os poços plebeus estão agora bem distantes de mim, e as nascentes virgens são agora mistérios desconhecidos para mim...
Agora sou um Arco. Quando serei um Apogeu?
***
Luz de crepúsculo.
Oiço o canto de um pássaro: vejo-o voar através da transparência melancólica de um Anoitecer agonizante e dissipar-se lá
longe, no azul veludo das sombras distantes.
Uma certa associação de ideias fez-me parecer ver os sonhos
alados da minha juventude dissiparem-se, também eles, lá
longe, entre as sombras infelizes e tristes do esquecimento...
VI
Não foi nada. Só uma sombra nostálgica de recordações que
passou através da vívida luz do meio-dia canícula do meu tórrido Verão.
Agora tudo é passado. A febre martelava-me a testa, a sede
queimava-me a boca. Curvei-me por causa da minha «necessidade» e do meu «desejo», matando a sede nas nascentes do
meu sangue quente e na chuva do meu suor amargo. Esta auto-bebida acre causou-me um delírio ébrio e louco que exalta e
transfigura.
Agora, o milagre da minha tragédia meridiana completou-se.
Cai como Arco, erguendo-me como Apogeu, no mistério do
vento e na glória do sol, para dizer as palavras heróicas da
minha transfiguração exaltada e da minha loucura.
VII
Falei com a sombra da minha «primeira» solidão. Disse-me:
«Sonhaste a fraternidade com os olhos cobertos pelo véu da fé,
mas quando os descobriste ao sol da realidade, viste o drama
trágico de Abel e Caim.»
Falei com a sombra da minha «segunda» solidão, e ela disse-me:
212
OS CANTOS DO MEIO-DIA
«Apelaste à pura amizade com tanta sinceridade, mas quando,
com ansiedade, prestaste atenção à resposta ao teu apelo,
deixaste que te respondessem com um vivo tinido de moedas.
Era o vil som das trinta moedas de Judas, que ainda soava pelo
mundo.»
Falei com a sombra da minha «terceira» solidão, e ela disse-me: «Apelaste desesperadamente à verdadeira solidariedade
entre todos os homens, e responderam ao grito do teu desespero com um sorriso falso de um amargo desprezo feito de calúnias e de escárnio.»
Falei com a sombra da minha «quarta» solidão, e ela disse-me:
«Louvaste o amor entre a mulher e o homem através de tantos
cantos e poemas, mas esse amor resultou numa guerra surda
entre os dois sexos.»
Falei com a sombra da minha «quinta» solidão, e ela disse-me
isto: «Acreditavas que o eu poderia converter-se em nós, porque
o homem necessita da sociedade.
Mas não compreendeste que é essa necessidade que faz com
que o homem se torne escravo e infeliz? Acreditavas que existia
um caminho? Mas ele não existia... A vida é um círculo fechado
(pavimentada pelo peso morto dos muitos e estancada pela
maioria eternamente embrutecida) dentro do qual o homem
está condenado a uma guerra perpétua de conquista vital e de
possessão individual. O homem da vida nunca teve, não tem
e nunca terá, senão aquilo que a sua força individual e a sua
própria capacidade de poder o autoriza a ter.» E assim, ao ouvir esta afirmação da minha quinta solidão, também eu – como
tu, meu leitor malévolo – baixei a cabeça, e ela tornou a falar,
continuando desta forma: - «Aí daquele que, por compaixão ou
piedade pelo seu velho si próprio, teme a luz do novo eu que aí
vem. Tu tremes de terror e de medo. Estás inseguro e indeciso,
como qualquer coisa que treme à beira do abismo... Serás, porventura, um niilista cristão? Assusta-te esta trágica fatalidade
que pesa sobre a realidade da vida? Serás, porventura, meu inimigo? Pois bem, se assim é, deposita a tua causa – como os cristãos – num para lá da vida; eu ensino a pôr a vida para além do
bem e do mal. Lá, onde palpita e brilha o eu libertado. Lá, onde
213
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
o espírito negador se ergue contra a ideia de sociedade, condenando-a: lá, onde os verdadeiros solitários cantam a liberdade
na guerra!»
E quando a sombra da quinta solidão se dissipou, veio a da
«sexta» e começou a falar-me desta forma: «Eu sou a tua própria
sombra: mata-me se queres estar só e sem testemunhas. A sétima solidão espera-te. Ela dir-te-á o segredo final. Solucionará
o enigma do último mistério.»
***
A «sétima» solidão falou comigo. Mas o que me disse permanecerá como meu segredo. Quem me dá as palavras para
revelar os mistérios da minha mais profunda intimidade?
Quem me compreenderá?
Oh meus irmãos solitários e anónimos, não sentem, na vossa
mais obscura profundidade, o rugir de um «Não» sem argumentos?
Pois bem, esse é o meu «Não», meus irmãos!
VIII
Diante dos meus olhos passa uma longa teoria de visões
macabras.
São os fantasmas sombrios e monstruosos da minha velha fé.
Têm a boca ensanguentada e apertam os mortos entre os dentes ensanguentados.
Aqueles mortos que, ao caírem, murmuravam: «amanhã!...»
O primeiro morto disse: «Eu incendiei e roubei em nome de
Deus e pela sua glória morri, matando.»
O segundo disse: «Eu incendiei e roubei em nome da minha
pátria e pela sua grandeza morri, matando.»
O terceiro disse: «Eu incendiei e roubei pelo bem do povo e
pela sua liberdade morri, matando.»
O quarto disse: «Eu roubei e incendiei pelo bem da humanidade e por amor a esta morri, matando.»
O quinto disse: «Eu tinha a alma cheia de um ideal grandioso
214
OS CANTOS DO MEIO-DIA
e sublime. Sonhava que todos os homens seriam livres, grandiosos e felizes. Queria que a liberdade e a igualdade, o amor e a
fraternidade, se apoderassem da vida e dominassem o mundo.
E para realizar esse meu sonho – que o mundo não quer compreender – roubei e incendiei e morri, matando.»
E por detrás dos cadáveres destes cinco escravos assassinos,
estão divididas cinco partes do mundo, prontas a trucidarem-se umas às outras seguindo o mesmo caminho.
***
Deus, pátria, sociedade, povo, humanidade? Futuro ideal?
Eu sou uma realidade e vivo hoje!
A realidade da vida é a guerra? É certo! Mas eu não sou uma
besta sacrificial. Não quero que o meu espírito seja escravo: não
quero que o meu corpo seja sacrificado sobre nenhum altar:
não quero que nenhum monstro me triture os ossos. Clamam
todavia o vosso anátema, oh sacerdotes do povo, oh servos da
pátria, oh apóstolos da humanidade.
Clamam todavia pela minha crucifixação. Clamam contra
o feroz egoísta, mas eu não me comovo. Eu canto as minhas
canções iconoclastas de negação e de revolta. Eu canto o meu
poema meridiano.
– O poema canícula do meu tórrido Verão!
IX
A Anarquia é, para mim, um meio para chegar à realização do
indivíduo; não o contrário. Se assim fosse, a Anarquia também
seria um fantasma.
Se os fracos sonham a Anarquia como fim social, os fortes
praticam a Anarquia como um meio de individuação. Os fracos criaram a sociedade e dela nasceu o espírito da lei. Mas
aquele que pratica a Anarquia é inimigo da lei e vive contra a
sociedade. E esta guerra é fatal e eterna. É fatal e eterna porque,
caído o Czar, surge Lenin, abolido o exército real, vem o exército
vermelho... O anarquismo é um património ético e espiritual
215
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
que foi, é e será sempre de uma pequena falange aristocrática,
e não da multidão e do povo. O anarquismo é tesouro e propriedade exclusiva de uns poucos que sentem ecoar nos seus subterrâneos mais profundos o grito de um «Não» sem argumento!
X
Eu pertenço à raça mais extrema dos vagabundos de espírito: à raça «maldita» dos inassimiláveis e dos impacientes. Não
amo nada do que é conhecido, e mesmo os meus amigos são os
desconhecidos.
Sou um verdadeiro ateu da solidão: um solitário sem testemunhas!
E canto! Canto as minhas canções entrelaçadas pela sombra e
pelo mistério...
Canto pelos meus irmãos anónimos e pelos meus filhos distantes...
Libertei-me da escravidão do amor para me sentir livre no
ódio e no desprezo...
Porque eu não sinto com a alma da multidão. Eu não peno as
penas do povo. Eu não acredito numa possível harmonia social.
Sinto com a minha alma, peno as minhas terríveis penas,
acredito apenas em mim mesmo: na minha profunda dor.
Aquela dor que ninguém compreende e que eu amo: que eu
amo através do ódio e do desprezo pelas mentiras humanas.
Porque eu amo esta minha dor. Amo-a como todas as minhas
coisas. Como as minhas amantes ideais; como os meus irmãos
anónimos; como os meus filhos distantes!
XI
Onde estão. porventura. aqueles que – génios ou lunáticos –
sabem viver e morrer sós e livres, gritando – conscientemente e
propositadamente: «Eu» «Hoje» «A minha liberdade» «A minha
realização»?
Oh, meus irmãos, onde estão?
Oh raça «maldita», quando será compreendida a vossa pro-
216
OS CANTOS DO MEIO-DIA
funda «humanidade»? Mas, será mesmo necessário que tudo
isso seja compreendido?
Mesmo a beleza pura não vive, porventura, ignorada?
XII
Como é terrível a minha tragédia, como é estranho e profundo
o meu mistério.
Ainda sonho!
Sonho com amigos nunca conhecidos, com amantes nunca
possuídas, com ideias nunca criadas, com pensamentos nunca
pensados, com homens que nunca viveram, com flores nunca
cheiradas, com florestas nunca pisadas, com oásis nunca descobertos, com sóis nunca vistos...
Sonho!
Sonho com uma grande e tremenda revolta de todos aqueles
que empalideceram na longa espera. Sonho com o despertar
satânico de todo aquele que vive acorrentado... Deve ser belo
acender fogos à noite!... Ver os centauros da morte correr todos
os sítios do mundo, cavalgados e esporeados pelos heróis trágicos empalidecidos pela longa espera: Ver os espíritos da revolta
e da negação dançar soberanamente pelo mundo!...
Ai de mim! Eu sou sempre o mesmo eterno sonhador!...
Porém, a voz da realidade diz-me: Morto o Czar, surge Lenin...
Abolido o exército real, vem o exército vermelho...
Sim, sou um sonhador do impossível, mas pratico a Anarquia,
não a sonho. Condenei a humanidade de hoje e contra ela – e
não dentro dela – reteso o arco da minha vontade para me realizar a mim mesmo. Porque hoje mato a sede apenas nas fontes
da minha beleza interior.
Oh, meus irmão anónimos e solitários, que será feito dos nossos filhos distantes?
Contudo, deve existir um futuro também para o mal, porque o
meio-dia mais ardente não foi ainda descoberto pelo homem.
Porque, se hoje a nossa «fatalidade» nos amaldiçoa por vivermos contra o mundo, não poderá a «fatalidade» dos homens do
amanhã escolhê-los para dançar livremente pelo mundo?
217
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
«Amanhã!»
E hoje?
Hoje não nos resta senão gritar o trágico Não da nossa negação e da nossa revolta.
Pela realização da nossa individualidade; pela conquista
da nossa liberdade; pela posse plena e integral da nossa vida!
Porque nós – os vagabundos – somos os inassimiláveis da revolta e da negação!
Renzo Novatore
Il Proletario, Ano I, n.3, Pontremoli, 15 de Agosto de 1922
218
COM SINCERA PIEDADE
Com sincera piedade
Ao “Goliardo” 1 do “Umanità Nova”2
Irei bater-te sem sentir cólera
E sem ódio, como um carniceiro,
Como Moisés fez à rocha!
Charles Baudelaire
I
Oh, bom «Goliardo», vem – vem até mim!
Vem ouvir as estrofes aladas da minha lira perversa e maldita:
vem ouvir o riso da minha melancolia...
Que temes? Que temes?
Temes, porventura, o fogo lívido e amarelo dos meus infernos
sulfurosos?
Temes, quem sabe, o vento misterioso dos meus apogeus simbólicos?
Não me compreendes?
«Não serei eu, quiçá, um falso acorde da sinfonia divina, graças à voraz ironia que me sacode e me morde?»
Mas e tu, quem és tu?
Serás, talvez, um daqueles professores de óculos que anda
sempre a tirar satisfações comigo através dos seus velhos contos polémicos e teóricos?
Mas deixa, oh Goliardo, deixa os teus antigos remorsos e
velhas aflições que te angustiam o coração... Hoje é a minha
Páscoa espiritual, a minha mesa está pronta...
219
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Vem portanto – oh Goliardo – sentar-te à minha mesa, vem,
bebe e sossega!
II
Eu sou um «Poço de verdade, brilhante e negro, onde cintila
a lívida estrela, o farol irónico e infernal, o archote da graça
satânica, única glória e único alívio – a consciência no mal!»
Mas e tu – quem és tu?
«Para sua sorte, os trabalhadores não conhecem Baudelaire».
Como disseste? Foi desta forma, fiel Goliardo? «Viva a ignorância e a Anarquia. Morte à intelectualidade, ao Pensamento e à
Arte!» Querias dizê-lo desta maneira, fiel Goliardo?
Mas o «Goliardo» não simboliza o estudante medieval, rebelde
e libertino?
Ah! pobre e grotesca paródia!...
Oh! piedade... piedade!
III
Na certeza de que a boa “Umanità Nova”3 te absolve e que a
Sagrada Vestal 4 – de quem tu és o sacerdote zelador – te perdoa, eu – o poeta «perverso» e «maldito» – convido-te a ires ao
meu oásis triste e melancólico, onde correm nascentes frescas
e desconhecidas.
Oh! vem, vem!...
O meu demónio dorme desde hoje e as minhas Erínias5 também.
Vem, vem...
Mostrar-te-ei as puríssimas flores do mal6 que germinam no
jardim humano do meu coração, sob o sol fecundo da minha
alma atormentada. São flores de piedade e de dor, são rosas de
sangue e de amor, são arrepios e choros.
Choros de carne e arrepios de ideal – músicas urgentes de
vida, voos de espiritualidade...
Oh, vem, vem...
Hoje, em vez do meu Inferno, está o Paraíso – vem, oh Goliardo, está na hora!
220
COM SINCERA PIEDADE
IV
Eis as «Mulheres amaldiçoadas», de quem eu, de forma artística, cantei – anarquicamente, humanamente, sensivelmente
– a dor e beleza humana e a quem elevei – no canto – a alma
atormentada. Olha para elas, olha para elas! Estás a vê-las, oh
Goliardo?
Estás a ouvi-las?
Olha! Existem as que estão «deitadas na areia, como gado pensativo, e que viram os olhos em direcção ao Horizonte montanhoso» e as que estão «no interior da floresta a balbuciar os
amores das suas tímidas infâncias». Estás a vê-las?
Olha, oh Goliardo, como «caminham através das rochas cheias
de aparições!» Foi ali que o Santo António7 viu aparecer, como
lava, os seios nus e ruborizados das suas tentações...
Depois existem as que, com «febres uivantes», invocam Baco
para afogar os remorsos, e as que escondem «um chicote debaixo da roupa» para depois – no bosque escuro e nas noites de
solidão – «misturarem a espuma do prazer com as suas lágrimas e as suas aflições». E eu – oh Goliardo da “Umanità Nova”,
que procuraste fazer, inconscientemente, troça e ironia daquilo
que eu escrevi e que tu não soubeste compreender – quis cantar
uma destas «mulheres amaldiçoadas» – todas as mulheres são,
neste sentido, mais ou menos amaldiçoadas –, uma daquelas
que, como o poeta, sabe dizer: «Céus lacrimejantes como praias,
em vós se espelha o meu orgulho!
As vossas imensas nuvens em luto, são os carros fúnebres dos
meus sonhos, e os vossos clarões, são o reflexo do Inferno no
qual o meu coração se deleita!»
V
Charles Baudelaire, o tal que – «para sua sorte» – «os trabalhadores não conhecem». O maravilhoso poeta que, sem ter no
bolso o cartão da U.A.I.8, soube inebriar-se com as sensações
mais saborosas – embora perigosas –, profundas, luminosas,
refinadas. Aquele génio singular, cujos «lábios misteriosamente
221
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
semicerrados pareciam guardar mistérios sarcásticos». O Poeta
divino, misterioso e maldito, que não teve horror a curvar-se
na lama para apanhar, humanamente, as Flores do Mal e sublimá-las através do trágico resplandecer da sua grandiosa Arte,
cantou desta forma essas «mulheres malditas» com o arco fremente da sua lira mágica.
«Oh virgens, oh demónios, oh monstros, oh mártires, grandes
espíritos que desprezam a realidade, sedentas de infinito, devotas e bacantes, agora cheias de gemidos ou de choro, foram
vocês que a minha alma seguiu pelo vosso inferno, pobres
irmãs, amo-vos tanto quanto vos lamento, pelas vossas tristes
dores, as vossas sedes insatisfeitas e as urnas cheias do amor
dos vossos grandes corações!»
VI
Também eu – como Baudelaire – um dos grandes mortos que
amo em segredo – quis – nas colunas deste nosso jornal – que
tem a culpa de chamar-se “Proletario” – cantar – humanamente
e anarquicamente – a tragédia, as lágrimas, o riso, o choro, a
dor, a aflição, o bem, o mal, o pecado e a esperança, de uma
destas mulheres, para que os anarquistas soubessem que nem
todos, dentre nós, estamos dispostos a atirar lama e esterco
àqueles que, por uma hiperbólica sede de infinito, se precipitaram no abismo com os olhos postos no azul do céu e a alma
embriagada pelas estrelas.
E tudo isso, escrevi-o com a minha caneta, com a minha língua, com um estilo original, que é o meu, e nenhuma ironia goliarda – pobremente goliarda – poderá convencer-me a mudar
de percurso para me desviar do meu caminho...
VII
Um companheiro – ao escrever privadamente a outro companheiro – uma vez qualificou Renzo Novatore de «O Guido da
Verona da Anarquia».
Pois bem, eu, sem me deter a refutar a acusação, responder-
222
COM SINCERA PIEDADE
-vos-ei como Guido da Verona o fez aos seus críticos. «Digam
o que quiserem de mim, eu oferecer-vos-ei sempre rosas perfumadas... Mesmo que tenham nascido na dor, mesmo que tenham germinado no choro.»
VIII
Hoje o meu coração anarquista está cheio de uma bondade
infinita. A minha alma alada anda freneticamente à roda no céu
da ideia.
O meu espírito livre dança alegremente no triste oásis da
minha solidão – onde canta a minha melancolia mística...
Vem, oh Goliardo – vem!
Hoje o meu demónio dorme e as minhas Erínias também...
Vem beber às nascentes virgens e desconhecidas da minha
piedade infinita...
Amanhã as criaturas satânicas do meu vulcão infernal poderão
acordar e eu poderei ficar furioso...
Sabes? Eu sou um homem misterioso e multiforme...
Renzo Novatore
Il Proletario, Anno I, n.3, Pontremoli, Agosto de 1922
NOTAS
1. Figura medieval, os Goliardos eram personagens boémias, conhecidas pelas suas críticas sociais corrosivas e satíricas, especialmente contra a Igreja e contra os costumes das classes possidentes.
A sua imagem é a do clérigo vagabundo ou a do estudante devasso,
compondo poemas e canções de tom escarnecedor, cínico, satírico
ou erótico, que eram declamados ou cantadas em locais públicos,
estando essa imagem bastante ligada ao espírito dissoluto da taberna. Eram, na sua altura, rebeldes contra a ordem instituída,
usando o cómico e o burlesco como forma de denúncia e, por isso
mesmo, acabaram por ser perseguidos e condenados pelos poderes instituídos. (N.T.)
223
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
2. O Umanità Nova foi um diário fundado por Errico Malatesta e
Antonio Cieri em 1920, e que tinha a contribuição de outros célebres anarquistas como Armando Borghi, Camillo Berneri e Luigi
Fabbri. O jornal, que chegou a ter uma tiragem de 50 000 exemplares diários, foi encerrado em 1922 pelo regime fascista, voltando
a ser publicado a partir de 1945 como semanário. É, hoje em dia, o
porta-voz da Federazione Anarchica Italiana (Federação Anarquista Italiana). Este texto surge como resposta a um artigo publicado
nas páginas do jornal, assinado por “Il Goliardo”, que se referia a
um outro artigo escrito por Abele Ferrari e publicado no primeiro
número do Il Proletario de seu nome Una “Femmina” (também
publicado nesta antologia com o título de Uma “fêmea”). A crítica
de Abele Ferrari é extremamente mordaz, e ataca de uma forma
irónica o seu tom moralista, de defensor da classe proletária. (N.T.).
3. O autor utiliza aqui o título do jornal num duplo sentido. Decidimos manter o original em italiano, que poderia ser traduzido como
Nova Humanidade, por se referir originalmente ao nome do jornal.
Não deixamos, ainda assim, de referir que o autor utiliza o nome
do jornal para ironizar, tendo em conta a sua crítica feroz à ideia
de Humanidade relacionada com a própria ideia do porvir, nova
versão do cristianismo. (N.T.)
4. As vestais eram as sacerdotisas do culto à deusa Vesta (personificação romana do fogo sagrado, da pira doméstica e da cidade). O
seu culto devia ter a duração de 30 anos, durante os quais teriam
de permanecer castas, e tinham como função manter o fogo sagrado de Roma aceso no aedes vestae (Templo de Vesta), para assim
preservar a pax deorum (paz dos deuses). Se qualquer destas leis
divinas fosse violada, a estabilidade da cidade poderia ser posta em
causa pela ira dos deuses. O autor utiliza a imagem da Vestal mais
uma vez num tom irónico, parecendo referir-se novamente à ideia
de Humanidade, vista como algo sagrado e puro. (N.T.)
5. Erínias, ou Fúrias para os romanos, eram, para os gregos, personificações da vingança que puniam os crimes dos mortais. (N.T.)
224
COM SINCERA PIEDADE
6. Referência à obra-prima de Charles Baudelaire, Les fleurs du mal,
sendo este mencionado e atacado pelo “Goliardo” devido à epígrafe
utilizada por Abele Rizieri Ferrari no texto Una “Femmina”. Isso é
referido pelo autor durante este texto. (N.T.)
7. O autor referir-se-á aqui a Santo Antão do Deserto (nome latino
Antonius), e não a Santo António, padroeiro de Lisboa. Segundo
o relato de Santo Atánasio de Alexandria, Santo Antão, também
conhecido como o Anacoreta ou o Eremita, terá sido tentado pelo
diabo depois de ter decidido ir viver no deserto, resistindo a todas
as tentações. (N.T.)
8. Unione Anarchica Italiana (União Anarquista Italiana). Fundada
em 1920, numa linha de tendência malatestiana, acabou por ser extinta em 1926, tendo sido posteriormente refundada com o nome
de F.A.I. (Federação Anarquista Italiana). (N.T.)
225
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
226
DO INDIVIDUALISMO E DA REBELIÃO
Do individualismo e
da rebelião
Há quem afirme que o homem é, por natureza, um ser social.
Outros afirmam que o homem é, por natureza, anti-social.
Pois bem; confesso que nunca fui capaz de compreender o
que querem dizer com esse seu «por natureza»: mas compreendi,
porém, que uns e outros estão errados, pois o homem é social e
anti-social ao mesmo tempo.
A necessidade, o dever, os afectos, o amor e a simpatia, são os
elementos que o levam à sociabilidade e à união.
A vontade de independência e o desejo de liberdade, levam-no
à solidão e ao individualismo. Mas, enquanto o individualismo
funciona e se realiza contra a sociedade, a sociedade defende-se dos ataques deste. A guerra entre o «societarismo» e o «individualismo» é, por isso, uma guerra fecunda, de vitalidade e de
energia. Mas, da mesma forma que o indivíduo é necessário à
sociedade, esta por sua vez é necessária ao indivíduo.
Não se conhece nenhuma possibilidade de existência para o
individualismo se não existisse uma sociedade contra a qual
este se pudesse afirmar e viver; expandir-se e regozijar!
***
O rebelde é – entre os homens – a figura mais bela e o ser mais
completo. Ele sabe ser o instrumento potenciador da sua vontade de querer. Sabe obedecer e comandar-se a si mesmo: conservar-se e destruir-se. Porque o rebelde é aquele que aprendeu
o segredo de viver e a arte de morrer.
227
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
Aquele que cai, revoltando-se contra tudo e contra todos, domina, mesmo na queda.
E dominar quer dizer, infundir nos outros a chama do próprio
pensamento e impor a luz das próprias ideias.
Mas o verdadeiro discípulo do rebelde que cai é aquele que,
ao cair, também se sabe revoltar contra a «rebelião» do herói
já caído.
***
Quem deseja que o espírito da rebelião se eternize, deve desejar que a rebelião do filho não se transforme, por sua vez, na
tirania do pai.
***
Se o meu pai se revoltou contra o meu avô para não ser escravo da «fé» paterna, eu revolto-me contra o meu pai para não ser
escravo da sua «fé» que o tornou, por sua vez, rebelde.
Como poderia fazer com que o meu filho fosse amanhã o que
eu sou hoje?
***
Só a partir das ruínas de tudo aquilo que o rebelde destruiu
poderá nascer o génio criador.
Mas que coisa prepara a criação do génio senão uma nova revolta?
***
Estou de acordo com Friedrich Nietzsche, ao acreditar que
nunca houve a necessidade de interrogar um mártir para saber
a verdade. Mas a força que deseja, a audácia que ousa e a vontade capaz de criar, são tesouros herdados apenas pelo génio,
pelo rebelde e pelo herói.
228
DO INDIVIDUALISMO E DA REBELIÃO
***
Vi um génio «roubar» e um idiota lançar um engenho de morte
contra um ministro de Estado.
O primeiro roubou para viver independente e criar em liberdade. O segundo matou por um ódio pessoal secreto e por vontade de morrer.
O primeiro cometeu um «vulgar delito comum» e é um «delinquente comum», o segundo cometeu um «crime político» e
é um «nobre e generoso criminoso político». Pergunto agora a
todos os homens políticos de carácter subversivo em geral, e
aos anarquistas em particular – se diante deste facto, é caso de
elevar ainda o «crime político» ao esplendor da glória e das carícias do sol para jogar o «delito comum» na lama?
***
Ah!, muitos são ainda aqueles que olham para a obra. Mas eu,
antes de olhar para a obra, olho para o autor desta. Mas mesmo
para muitos – muitos mesmo – anarquistas, parece que o indivíduo conta muito pouco...
A maior parte deles encontram-se ainda entre a ralé que diz:
«Os homens não contam. Contam os factos e as ideias». E é esta
a razão para que, mesmo entre nós, muitos seres superiores e
sublimes tenham sido atirados para a lama, enquanto que muitos idiotas foram elevados até ao sol.
***
Nego o direito de me julgarem a todos aqueles que não compreendem o som dos meus rugidos, o uivo da minha necessidade, os voos do meu espírito, a dor da minha alma, o frémito
das minhas ideias e a ânsia do meu pensamento. Apenas eu
compreendo tudo isso. Querem julgar-me? Assim seja! Mas
vocês nunca me irão julgar verdadeiramente a mim mesmo.
Julgarão antes aquele «eu» que inventaram. Mas enquanto
vocês acreditam que me têm entre os dedos para me esmaga-
229
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
rem, Eu estarei lá em cima a rir à distância!
Renzo Novatore
Il Proletario, Ano I, Pontremoli, 17 de Setembro de 1922
230
EM DEFESA DO ANARQUISMO HERÓICO E EXPROPRIADOR
Em defesa do
anarquismo heróico
e expropriador
O crime é a manifestação vigorosa da vida plena, completa,
exuberante, que quer expandir-se livremente e exultar para além
de todas as regras e de todos os limites, não reconhecendo obstáculos nem nas pessoas, nem nas coisas...
E é precisamente esse o lado estético do crime que o redime, sublima e o eleva à luz clara e brilhante de uma verdadeira e própria
obra de arte.
T. Brunetti
I
A crónica criminal dos jornais turineses de 26 de Setembro
passado, teve e quis ocupar-se da captura de cinco dos nossos
companheiros que caíram nas desprezíveis garras da polícia,
quando – segundo as «informações precisas» que através deles
nos chegaram – conduziam um «elegantíssimo automóvel»
bem armados de bombas, Brownings e magníficas metralhadoras para executar um... «golpe» de duzentos e muitos milhares
de liras!
Este é, num breve resumo, o conteúdo substancial de todas
as longas e intermináveis colunas de prosa nojenta e vulgar,
adornada pomposamente com patranhas policialescas, que os
231
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
jornais turineses de 26 de Setembro publicaram em relação ao
audacioso «golpe» falhado.
O comentário – o nosso comentário – ao caso de Turim por
si só, é este: “Foi a própria polícia turinesa que organizou o
«golpe» através de um torpe agente provocador – o chaffeur que
conduzia o próprio automóvel «incriminado» – tendo como finalidade a glória, a carreira e o dinheiro.”
E o nosso comentário é materializado por provas e por factos.
Provas e factos que não podem, de resto, escapar a nenhum
daqueles que, lendo as crónicas daqueles dias, viram de que forma se deu a «rocambolesca» (sic) captura dos cinco anarquistas...
II
Para além dos cinco companheiros caídos na vil e infame
tramóia tecida pela polícia serem realmente vítimas do chaffeur
Judas, que os traiu e vendeu, entre os cinco estava também a
pura e máscula figura de De Luisi1, temperamento romântico e
passional de rebelde e de herói, que fez da sua vida todo um poema de luta audaz e de rebelião consciente, sendo talvez bem
poucos os anarquistas que souberam escrever através do facto
no livro da sua vida vivida.
O companheiro Giuseppe De Luisi foi – depois de todas as amarguras, desilusões e lutas experimentadas no meio das massas –
um terrorista e um expropriador. E é dele que hoje queremos falar.
Dele e do principio expropriador do anarquismo heróico.
Muitos companheiros não nos apoiarão, muitos outros não
nos compreenderão, é verdade, mas do nosso ponto de vista
essa não é razão suficiente que nos persuada a calar a nossa
voz iconoclasta, a abafar o nosso grito desinibido, a amarrar os
pulsos do nosso pensamento rebelde.
Não, não somos nem loucos nem imbecis, mas sim anarquistas e de boa raça.
III
Qualquer um – muitos, vários quaisquer uns que militam –
232
EM DEFESA DO ANARQUISMO HERÓICO E EXPROPRIADOR
palavra imprópria e anti-anarquista – no nosso campo e que
gozam do privilégio – pobre e triste privilégio – de serem considerados por muitos – ah! os muitos, também no nosso campo
são infelizmente um rebanho – como os únicos, os verdadeiros
guardiães do fogo divino que arde e crepita no místico altar
da sagrada Vestal, da Santa Anarquia – vão gritando desde há
muito tempo, desde há muitíssimo tempo, que a época obscura
do anarquismo heróico felizmente já desapareceu, que chegou
finalmente o tempo de não se deixarem dominar por homens
sombrios e trágicos como Henry e Ravachol, que o revoltoso
automóvel de Jules Bonnot não foi mais do que uma trágica
e triste expressão da decadência anarquista, reduzida a uma
certa degeneração intelectual da moral burguesa, que o roubo
não é nem pode ser uma acção anarquista, mas deriva antes da
própria moral burguesa, que...
Mas qual o interesse em continuar? Paremos então!
IV
Para nós, são três as razões anarquistas que militam em defesa
do acto terrorista e da expropriação individual.
A primeira é de ordem social, sentimental e humana, e adopta
o roubo como uma necessidade de conservação material do
indivíduo ao qual, por ter todas as predisposições de besta sacrificial pronta a qualquer sacrifício e a qualquer submissão, a
sociedade nega igualmente os meios mais miseráveis para uma
ainda mais miserável existência.
Para este indivíduo, que a sádica e libidinosa sociedade corrompeu – através dos jogos macabros da sua brutal perversidade – para confiná-lo, no fundo, aos últimos degraus da degradação humana, o próprio Errico Malatesta – que não pode
ser acusado de ter do anarquismo uma concepção pagã, dionisíaca, nietzschiana – admite que o roubo, para além de ser um
direito, poderá também ser um dever.
Na verdade, porém, parece-me a mim que não existe uma necessidade absoluta de se ser anarquista para admitir este roubo.
De Victor Hugo a Zola, de Dostoiévski a Gorki, de Turgue-
233
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
niev, Korolenko a todo um longo cortejo de artistas e de poetas
românticos ou realistas, humanistas ou neo-cristãos, houve a
aceitação, a explicação e a justificação deste tipo de roubo, à
volta do qual criaram até mesmo verdadeiras e próprias obras-primas de arte e de beleza, vibrando e palpitando nas suas páginas a mais lírica de todas as piedades humanas.
E não foram apenas os artistas, os poetas e os romancistas
que o explicaram e o justificaram, mas o próprio famoso jurista
Cesare Beccaria, depois de ter reconhecido que «as leis, actualmente, não são senão detestáveis privilégios que permitem o
tributo de todos ao domínio de poucos», afirma que «o roubo
não é um crime natural no homem, mas antes a expressão da
miséria e do desespero, o crime daquela infelicíssima parte dos
homens aos quais o direito de propriedade não concede mais
do que uma cruel existência.»
Sobre esta primeira razão para o roubo não existe, portanto –
acreditamos nós –, qualquer necessidade de nos determos durante muito mais tempo para demonstrar aquilo que já não tem
qualquer necessidade de ser demonstrado.
Podemos simplesmente acrescentar que se existe crime para o
homem ao qual a sociedade nega o pão, esse é precisamente o
de não roubar, ou de não poder roubar.
Eu sei, infelizmente existem ainda alguns perversos com semblante humano, os quais exaltam e cantam a «grande» virtude
dos «pobres honestos».
Foram esses – disse Oscar Wilde – que negociaram por sua
conta com o inimigo, vendendo o seu direito de descendência
por um vilíssimo prato de péssimas lentilhas.
Ser pobre – e «pobre honesto» – significa, para nós, ser inimigo
– o mais repugnante de todos – de todas as formas de dignidade
humana e dos mais altos sentimentos.
Que pode simbolizar um «pobre honesto» senão a forma mais
degradante de degeneração humana?
V
«Uma outra coisa é a guerra. Eu sou batalhador por natureza.
234
EM DEFESA DO ANARQUISMO HERÓICO E EXPROPRIADOR
Atacar é um dos meus instintos.» Assim disse Friedrich Nietzsche, o forte e sublime cantor da vontade e da beleza heróica.
E a segunda razão anarquista, que milita pela defesa do acto
terrorista e da expropriação, é uma razão heróica.
É uma razão heróica que adopta o roubo como arma de poder
e de libertação, que pode ser empunhada apenas por aquela minoria audaz de exuberantes que, mesmo pertencendo à desgraçada classe «proletária», têm uma natureza vigorosa e valente,
rica em espiritualidade livre e em independência, que não pode
aceitar ser agrilhoada aos cepos de nenhuma escravidão, nem
moral, nem social, nem intelectual, e muito menos a económica, que é a forma de escravidão mais degradante, mais mortificante e mais infame, impossível de se suportar quando nas
veias palpita um sangue saudável, felino e fremente; quando na
alma ribomba o trágico relampejar de milhares de tempestades
impetuosas; quando no espírito crepita o inextinguível fogo
da renovação eterna; quando na fantasia cintilam as visões de
milhares de mundos ignorados; quando na carne e no coração
batem as asas frementes de milhares de desejos insatisfeitos;
quando na mente lampeja o heróico pensamento que incendeia e destrói todas as mentiras humanas e os convencionalismos sociais.
E são estas pequenas minorias exuberantes e audazes, de natureza dionisíaca e apolínea, ora satânicas, ora divinas, sempre
aristocráticas e inassimiláveis, escarnecedoras e anti-sociais,
que, possuídas pela chama anárquica, constituem as grandes
e eternas piras onde todas as formas de escravidão se incendeiam e morrem.
E foram sempre estas naturezas misteriosas e enigmáticas,
mas sempre anarquistas, que, voluntariamente ou involuntariamente, escreveram com letras de sangue e de fogo, de paixão
e de amor, o hino glorioso e triunfal da revolta e da desobediência que infringe regras e leis, morais e formas, impulsionando a bruta e rude humanidade sempre em frente, através do
caminho sombrio dos séculos, em direcção àquela convivência
humana livre em que elas, quiçá, não acreditam mais; foram
sempre elas as tochas cintilantes que lançaram a luz fosfores-
235
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
cente de uma nova vida entre as sombrias trevas sociais; foram
sempre elas as grandes anunciadoras das tempestades revolucionárias, perturbadoras de todos os sistemas sociais, nos quais
todas as individualidades não enfraquecidas se sentem a sufocar de forma horrível.
VI
Se a filosofia anarquista – que proclama a autocracia do indivíduo sobre a oligarquia dos fantasmas – tem as suas raízes
fosforescentes arreigadas no ensanguentado revestimento do
mais profundo e misterioso sentimento humano e mata a sede
na fontes imortais do pensamento humano, tem também as
suas grandes e verdejantes frondes lá no alto, na glória do sol
onde canta, entre os contrastes fragosos dos ventos, a trágica
beleza dos seus heróicos e dissolutos protagonistas que têm os
pés no interior e a mente no sol da ideia.
E é por isso que para além das duas razões enumeradas, milita
em defesa do anarquismo heróico e expropriador uma terceira
razão de ordem superior: uma razão estética!
Na verdade, «o anarquista do facto» é uma figura maravilhosamente sugestiva e terrivelmente fascinante, com uma
psicologia misteriosamente complexa e profunda que serviu a
não poucos génios da arte trágica como matéria divinatória e
criadora de poemas heróicos cheios de uma beleza sã e imortal.
E uma vez que entre o crime e a intelectualidade não existe
nenhuma incompatibilidade – disse Oscar Wilde – é lógico que
o «crime anarquista» não pode e não deve ser considerado por
ninguém senão como um crime de ordem superior. Matéria e
propriedade da arte trágica – não «crónica criminal» para saciar
os ávidos e monstruosos apetites do vulgo ordinário e bruto,
corrompido fatalmente.
VII
«Se tivesse cometido um crime – clama Wolfgang von Goethe –,
esse crime não seria mais digno desse nome.» E Corrado Bran-
236
EM DEFESA DO ANARQUISMO HERÓICO E EXPROPRIADOR
do em Mais do que o amor: «Se isto que cometi é um crime, que
todas as virtudes do mundo se ajoelham perante ele.»
E tal como o poeta alemão e o herói dannunziano, assim clama o anarquista. Já que o anarquista é um filho vigoroso da vida
que redime o crime, exaltando – assim – a Mãe.
VIII
Que importa se hoje, ontem e amanhã, a moral – essa Circe
maléfica e dominante – chama, chamou e chamará «pecado»,
«sacrilégio», «crime» e «loucura» à heróica manifestação do
ousado rebelde que, determinado a ir para além de toda a
ordem social cristalizada e para além de todos os limites pré-estabelecidos, quer afirmar – com a sua própria força – a desenfreada liberdade do seu eu, para cantar – através da trágica
beleza do facto – a anárquica e plena grandiosidade de toda a
sua individualidade integralmente libertada de todos os fantasmas dogmáticos e de todos os falsos convencionalismos sociais
e humanos, criados pela mais falsa e repugnante moral, perante a qual apenas o medo e a ignorância se curvam?
O Bem e o Mal, tal como hoje são apreciados pelo vulgo e interpretados pelo povo e pelos dominadores do povo, são fantasmas – ainda que assustadores – vazios contra os quais nós
dirigimos, com uma consciência plena e madura, toda a nossa
sacrílega irreverência materializada por uma lógica stirneriana
implacável, para não falar da gargalhada estrondosa, superior e
clara do sábio Zarathustra.
Temos escrito na tábua dos novos valores humanos com o
nosso sangue – que é um sangue vulcânico de anticristos dionisíacos e inovadores – um outro bem e um outro mal.
Quem não o sabe?
Nós somos como o vento das altas montanhas quando se liberta para fora do misterioso caos das suas cavernas profundas
para fecundar as luzes virgens da aurora com o amplexo bárbaro, furioso e torrencial da sua natureza vigorosa e tempestuosa, para depois se extinguir no esforço titânico da criação e
dissipar-se no infinito.
237
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
E o Prazer e a Dor que provêm deste amplexo fecundo e criador, celebrado com um ritual iconoclasta no templo sacrílego
da mais ampla liberdade, são o Bem e o Mal, acima dos quais
se ergue o arco triunfal da nossa suprema anarquia, mistura de
Força e de Realidade, de Beleza e de Sonho.
Para nós a vida é uma flor silvestre que deve ser cultivada à
beira de abismos assustadores e incomensuráveis.
IX
Na alma helenicamente trágica do nosso companheiro Giuseppe De Luigi, todas as três razões anarquistas – ética, heróica
e estética – anteriormente mencionadas, agitavam-se em conjunto num turbilhão condensado, formando um único e só
elemento fulgurante que fazia dele – filho da noite – um deus-Demónio de audácia e de vontade, de ímpeto e de força. O
Deus sedutor das sabias parábolas rynerianas que clama: «Eu
amo-te e quero-te, oh minha necessidade!» deve-lhe ter falado
no silêncio desta primeira noite assustadora e profunda, na qual
a sua alma se encontrava suspensa entre uma aurora e um pôrdo-sol, entre uma vigília fúnebre e uma missa de redenção.
Naquela noite em que – perseguido, desiludido, esfomeado –
se dobrou sobre si próprio para uma reflexão séria sobre o seu
modo de sentir e de actuar.
Ele viu a multidão que amava, e que queria redimir com o seu
sangue, passar diante da sua visão como uma grande teoria de
ovelhas cobardes e desprezíveis que nunca se insurgem e que
quando o fazem, fazem-no apenas para encontrar um novo
patrão diante do qual possam curvar a cabeça.
E à medida que uma voz se erguia das profundezas do seu espírito, clamando: Inutilidade!, uma outra voz ainda mais forte
erguia-se das vísceras do seu próprio instinto obscuro, atraindo-o selvaticamente para a alegria de viver intensamente. E
ele obedeceu a esta última voz e, escavando uma sepultura
ao anoitecer para enterrar o cadáver das suas ilusões mortas,
ergueu-se na nova aurora, com todo o ímpeto de um desafio
implacável.
238
EM DEFESA DO ANARQUISMO HERÓICO E EXPROPRIADOR
E foi Ele. Foi um turbilhão... Um Sinal! Uma nuvem grávida de
tempestade – um relâmpago que iluminava o caminho!...
A sua nova vida foi como um vento da montanha quando se
liberta para fora do caos das suas cavernas profundas para fecundar a virgem luz da aurora, com um amplexo furioso e torrencial da sua natureza vigorosa e tempestuosa, para se extinguir no esforço titânico da criação e depois se dissipar serenamente no infinito...
E é desse esforço criador, celebrado com um ritual iconoclasta no tempo sacrílego da mais ampla e verdadeira liberdade
destes Heróis soberbos da Não-fé, donde brota, como sangue
fumegante, o novo Bem e o novo Mal que nós temos escrito nas
tábuas bronzeadas dos novos valores humanos.
E é nos rochedos graníticos destes novos valores que se ergue,
glorioso e triunfante, o arco fosforescente da nossa Anarquia
instintiva, trágica mistura de Força e de Realidade, de Beleza e
de Sonho!
X
«Ele, Giuseppe De Luisi – diz a crónica criminal dos jornais
turineses de 26 de Setembro – não é um dos típicos ladrões
de subúrbio que, sujos e descalços, afrontam o primeiro que
lhes aparece à frente, roubam-lhe uma centena de liras, vão a
uma taberna imunda na companhia da primeira prostituta que
apanham entre mãos e que os ajudam a consumar rapidamente o fruto miserável dos seus assaltos, para depois os denunciarem à polícia, que, por sua vez, se apressa a tirá-los de circulação e a metê-los na prisão. Não, De Luisi é um novo Bonnot,
talvez mais perspicaz, que organizava golpes colossais no centro das maiores cidades e depois se afastava sob um disfarce
não reconhecível para viver a própria vida, rindo-se das inúteis
procuras da polícia, que o procurava activamente por um assalto de muitas centenas de liras sofrido por um funcionário
do Estado há vários anos, assim como por um tiroteio num bar
de Turim contra os agentes das forças de ordem pública, tendo
muitos dos quais ficado gravemente feridos, enquanto que um
239
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
companheiro de De Luisi – Milesi – foi morto pelos agentes nessa mesma disputa.»
E aqui é mais uma vez necessário prestar a nossa sincera
homenagem à imprensa mercenária que, com clara intenção
de pintar Di Luisi com as cores escuras de um perigoso delinquente, conseguiu dar um perfil quase exacto do ousado rebelde.
Sim, De Luisi, que há vários anos atrás era ainda culpado de
ser um (honesto) ferroviário que organizava os seus companheiros de trabalho, ensinando-lhes o verbo da redenção, quando
– por sua própria «culpa» – a sociedade o atirou primeiro para
a prisão e depois lhe negou o trabalho, jogando-o para as suas
margens como um renegado insano, ele aceitou a luva de desafio e à margem converteu-se num herói!
Um herói com o coração cheio de força e de amor, um herói
que soube suportar a fome e todas as privações em vez de rebaixar a sua dignidade ao roubo pequeno e fácil, um herói que soube
sempre dar – e com paixão – a sua solidariedade a companheiros menos audazes ou menos afortunados que ele; um herói que
com cerca de uma centena de iguais a si teria derrubado um
regime. Ele amava o perigo como um irmão e tinha na alma o
ímpeto de milhares de ousadias.
E agora que um vil Judas Iscariotes o vendeu à negra polícia de
Turim e o sepultou – talvez para sempre – na escuridão de uma
cela sem que ele tenha, pelo menos, podido – por uma última
vez – vender caro o preço da sua liberdade, nós temos o dever
de não o esquecer.
É preciso retirar, de uma vez para sempre, as máscaras enganadoras que muitos de nós temos ainda presas ao rosto e reconhecer nele um dos nossos melhores. Chega desta vergonhosa comédia de que tenhamos de demonstrar a nossa solidariedade apenas pelos «inocentes». Se os inocentes a merecem,
existem «culpados» que a merecem ainda mais!
«Culpado» deve ser para nós sinónimo de Melhor.
E um dos melhores entre nós era justamente De Luisi.
A vida dos seus últimos anos é um poema heróico de que só a
arte poderá exprimir a beleza e cantar a grandiosa – ainda que
obscura – epopeia...
240
EM DEFESA DO ANARQUISMO HERÓICO E EXPROPRIADOR
Marginais, lembrem-no! Vocês perderam nele um dos vossos
melhores irmãos: um dos que indicavam – com o exemplo do
facto – os caminhos daquela rebelião radical e profunda que é
própria dos anarquistas negadores.
Renzo Novatore
L`Adunata dei Refrattari, Nova Iorque, Ano II, n.22,
7 de Julho de 1923
NOTAS
1. Poucos são os dados biográficos existentes sobre Giuseppe De Luisi que possam aclarar quem foi de facto este anarquista ilegalista
tornado símbolo do “anarquismo heróico” por Abele Rizieri Ferrari
neste seu escrito. (N.T.)
241
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
242
O CANTO DA ETERNIDADE
O Canto da
eternidade
Eis o vasto mar tranquilo, o meu mar tranquilo e sereno!
Os pequenos barcos já ladeiam os rochedos risonhos.
Como são estreitos e frágeis os pequenos barcos!
Oh meus pálidos e melancólicos amigos com titânicos corações de heróis, venham, venham! Chegou a minha hora e
encontro-me sereno. Os pescadores de belos cabelos grisalhos
já chegaram à areia solarenga da praia, oh amigos! Não vêem
como os remos de ouro resplandecem ao sol? Vocês não vêem
que naquela direcção, ao longe, a nossa companheira nos sorri?
Aqui me sento e vos espero!
***
Chegaram, portanto?
Nunca vi nenhum céu tão sereno como os vossos rostos, oh
amigos! Como é belo incorporarmo-nos e partirmos juntos,
sem armas, para uma viagem tão longa...
***
Tudo está preparado! O mel e as doces bebidas para os nossos
filhos e as rosas frescas para o rosto puro da nossa companheira. Vamos, pois, oh amigos, a Eternidade espera as nossas rosas!
Como se pode morrer novamente depois de se ter celebrado
as núpcias com a Eternidade e de se ter preparado o mel e as
mais doces bebidas para os nossos filhos imortais?
243
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
Estamos sós, sós dentro de um pequeno barco perdido no
mar. Não existe nem aurora, nem pôr-do-sol, nem objectivo!
Em baixo, em cima e à nossa frente, não temos mais do que sol.
Luz, calor, grandeza, profundidade e distância! Em que pensam
vocês, amigos! Não estão felizes? Não vêem todo este magnífico
espaço infinito?
E as rosas, onde estão as rosas?
Não sentem que o beijo supremo da Eternidade nos toca o
rosto? Não ouvem que pede a sua coroa?
As rosas, onde estão as rosas?
***
Oh! que pobre, que coisa miserável era aquela terra árida onde
outrora viviamos! Ainda se lembram dela, meus amigos?
Lá, a aurora surgia e a noite caía! Lá, os homens mediam o
tempo. Oh! amigos, amigos! Sinto que me assalta uma piedade
infinita por aquela pobre terra! Não nos... esquecemos.
***
Por quantos milénios flutuaremos, oh meus amigos, sobre as
ondas desta imensa profundidade que se ergue até bem perto
das regiões do sol; bem acima do sol? E por quantos milénios
viveremos ainda?
Oh! Eternidade alegre, eterna e feliz!
Renzo Novatore
Veglia, Paris, n.1, Maio de 1926
244
NO TURBILHÃO...
No turbilhão...
«Insensatos»... «irresponsáveis»... «cegos»... «loucos»... «anormais»... «dementes»... «pode-se também ter piedade»... «pode-se também sentir compaixão»...
Lembram-se?
É verdade. Está bem.
Giuseppe Mariani1 e Ettore Aguggini2, da mesma forma que
«souberam superar-se a si mesmos e criar» acima das suas
próprias forças – Eu sou aquele que cria acima das suas próprias
forças e, assim, perece! –, souberam também superar o julgamento dos pequenos de espírito para bradarem sós – Quanto
mais só, mais forte – as sangrentas razões do seu protesto tremendo e incompreensível.
Mas quanto mais vinagre nas chagas sangrentas dos dois
grandes Anticristos crucificados. Quantos mais narcóticos amargos nos seus lábios ávidos e sedentos de amor, e quantas mais
sombras tenebrosas terão atormentado as suas almas ébrias de
luz infinita! Quantas...
Os dois trágicos insurgentes não foram compreendidos. Não
foram compreendidos pelas almas tacanhas, limitadas e mesquinhas – e almas tacanhas, limitadas, sectárias e mesquinhas,
é necessário confessá-lo com uma sincera, honesta, brutal e desinibida franqueza, existem tantas no campo anarquista como
espíritos livres no campo socialista – e não foram compreendidos nem mesmo por muitas das almas dos mais selectos, dos
mais nobres, dos mais livres e grandiosos...
Houve quem os tenha visto de um ponto de vista cristão-
245
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
-sentimental, quem os tenha visto de um ponto de vista social-unionista, quem os tenha visto desde o leito moral-pietista e
todos os viram do ponto de vista utilitarista...
Todos se perguntaram: que coisa obtivemos de prático, de
útil? Que coisa obteve a nossa causa?
Que coisa obteve a nossa ideia?
E responderam: detenções, perseguições, a destruição do nosso quotidiano, ódio das massas, razões de sobra nas mãos do
inimigo para combater as nossas ideias!
E depois de terem respondido assim às suas próprias perguntas, concluíram em condenar o gesto e excomungar os dois
autores.
E nenhum – deles – percebeu que todas as conclusões, perguntas e respostas eram anti-anarquistas, fracas, superficiais e
vulgares...
Porque é vulgar e anti-anarquista julgar as acções e as ideias
de um companheiro de um ponto de vista prático e utilitário.
As acções e as ideias de um homem podem ser fonte de felicidade e de dor, mas não podemos partir de um ponto de vista
prático e utilitário para as julgar...
Se o anarquismo é um leito de rosas para o indivíduo espiritual, nem sempre o é – ou nunca o é – para o indivíduo físico...
Quem é anarquista deve estar pronto a sofrer as consequências, quase sempre terríveis, que derivam da sua profissão de fé.
E quem não está, que se vá!
«Executamos o criminoso somente pela nossa verdade, porque
se permitíssemos que vivesse, mostrar-nos-ia os frutos que o
seu crime nos trouxe.»
Disse Oscar Wilde. E acrescenta:
«O santo passa pelo martírio apenas para sua própria tranquilidade; redime-se assim da terrível visão da colheita que
semeou.»
E Mariani e Aguggini não são dois santos, mas dois heróicos
criminosos, grandes e terríveis como a Justiça de um Deus!
«O herói, votado ao erro e à dor, sofre não para se purificar
de uma paixão criminosa, não para expiar o seu pecado e para
adquirir a sua inocência, mas para ser – acima do terror e da
246
NO TURBILHÃO...
piedade – A eterna alegria do devir. Apesar de se mostrar paciente, ele alcança o grito máximo da sua actividade, a qual, depois dele, continua a actuar.
A lei humana, a ordem natural, os usos e os costumes, podem
ser subvertidos pelo seu acto; mas o seu acto gera um anel de
forças bastante altas, uma inesperada superabundância de vida
suprema.
Destinado a desaparecer, o herói difunde e perpetua junto de
si a sua vontade heróica, que a culpa não pode destruir nem
prejudicar.» Gabriele D`Annunzio fala desta forma em defesa de
Corrado Brando – o forte e poderoso herói do seu poema trágico
– e assim eu repito hoje em defesa de Aguggini e de Mariani.
«Em Corrado Brando – acrescenta o Poeta – o crime não é glorificado, como alegam os grandes e os pequenos Beatos, mas
manifestam-se – com sinais próprios da arte trágica – a eficácia
e a dignidade do crime concebido como virtude prometeica.
À volta dele, que sofre e que deve morrer, todas as almas
exprimem o seu máximo esplendor, iluminando o céu do espírito com grandes relâmpagos.»
Acontece o mesmo com os nossos heróis. E quem não sabe
partir deste ponto de vista para julgar os autores do atentado
ao Diana, não poderá senão – no melhor dos casos – derramar
lágrimas.
Mas as lágrimas piedosas derramadas na sepultura ou dentro
da cela que encerra os heróis detestados e condenados pelas
suas acções, mesmo quando são puras e sinceras, transformam-se sempre em lama que – de um ou doutro modo – suja
sempre as figuras titânicas e fortes que deliberadamente se
puseram acima da piedade e do terror, onde a tempestade eleva todas as forças da alma, as faz girar e depois as faz bater e
despedaçarem-se contra um muro de granito. Para que os irmãos gémeos aprendam – o furor e o turbilhão – e para que os
escravos da praça olhem para cima e se lembrem...
Mas nenhum – nenhum deles – soube cantar-lhes a Anarquia
e a desesperada grandeza.
247
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Mariani e Aguggini, para além de pertencerem ao Anarquismo
e à história, pertencem também à Arte trágica da vida heróica
que resplandece e vibra de Beleza soberba, eternamente inovadora, sempiterna e imortal!
Renzo Novatore
Culmine, Buenos Aires, Ano III, n. 24-25, 1927
NOTAS
1.
Giuseppe Mariani (1898 – 1974), anarquista individualista italiano, trabalha como alfaiate e depois como ferroviário, até que
é destacado para o exército em 1917 para combater na Primeira
Guerra Mundial, donde desertou, acabando por ser absolvido da
acusação de desertor após ter simulado uma doença mental. Em
1919 vai para Milão, trabalhando como mecânico, onde começa
a ter contacto com os ambientes de tendência anarco-individualista. Acaba por ser detido, acusado de ter participado em atentados conjuntamente com Bruno Filippi. Posteriormente forma um
grupo de tendência individualista com Ettore Aguggini e Giuseppe
Boldrini, tendo-se refugiado na Suiça após alguns atentados cometidos. Em 1920 regressa a Milão para continuar a sua militância num período de forte repressão para o movimento anarquista,
em que vários jornais são atacados e encerrados, como é o caso
do diário Umanità Nova, e vários anarquistas detidos, como é o
caso de Errico Malatesta. Como resposta a essa vaga repressiva,
comete com os seus companheiros Ettore Aguggini e Giuseppe
Boldrini, com a cumplicidade de Elena Melli, um atentado contra
o Hotel Diana a 23 de Março de 1921, acreditando que o chefe de
polícia Giovanni Gasti se encontrava no Hotel naquele momento.
A explosão da bomba acabou por atingir a plateia do Teatro Diana, adjacente ao Hotel, provocando a morte de 21 pessoas e 80
feridos, não alcançando o objectivo de atingir Giovanni Gasti. A
repressão contra o movimento anarquista não se fez esperar e
Mariani, Aguggini e Boldrini são presos. É condenado a ergastolo
(prisão perpétua), tendo permanecido 10 anos em isolamento na
248
NO TURBILHÃO...
prisão de Santo Stefano. Restituído à condição de preso comum,
acaba por participar numa revolta prisional a 15 de Novembro de
1943, conjuntamente com o conhecido anarquista Sante Pollastro.
Giuseppe Mariani é libertado após da Segunda Guerra Mundial,
depois de ter sido amnistiado, passando a fazer parte da recém
fundada Federação Anarquista Italiana. Em 1953 publica um livro
autobiográfico Memorie di un ex-terrorista (Memórias de um ex-terrorista), acabando por falecer a 25 de Março de 1974 em Sestri
Levante. (N.T.)
2.
Ettore Aguggini (1902 – 1929), anarquista individualista italiano,
destacou-se após a Primeira Guerra Mundial pela sua militância anti-fascista, tendo participado em diversas manifestações e
acções contra os ataques do movimento fascista em crescendo na
altura. Refugia-se por pouco tempo na Suiça, entre 1920 e 1921,
voltando nesse mesmo ano a Itália para continuar a sua luta contra a repressão desencadeada contra o movimento anarquista.
Fez parte do atentado contra o Hotel Diana conjuntamente com
Giuseppe Mariani e Giuseppe Boldrini. Condenado a 30 anos de
prisão, acabou por falecer na prisão de Alghero a 3 de Março de
1929 com 27 anos. (N.T.)
249
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
250
A AMIZADE E OS AMIGOS
A amizade e os
amigos
Um “Homem” disse-me: “Não compreendo as tuas ideias
e não aprovo a tua forma de pensar; mas não creio que sejas
ridículo.” Afastei-me dele sem lhe responder e continuei o meu
passeio na calçada oposta.
Porquê? Simplesmente: porque reparei mais uma vez que ainda não chegámos ao momento em que um amigo pode dizer
ao seu próximo: “Não me interessam as tuas ideias, nem o teu
pensamento; mas admiro e aprecio a complexidade misteriosa
da tua individualidade.” Quando o homem souber pronunciar
a sinceridade destas e doutras palavras a viva voz, para expressar de forma transparente, sem rodeios, o seu pensamento,
terá traçado o caminho que o conduzirá ao reino da amizade
e do amor.
A nossa época é feita de um ódio camuflado e de uma guerra
vil e insidiosa: todas as palavras de Amor e de Amizade são véus
perfumados, mas escondem o venenoso aço que não procura
outra coisa senão a dor e as lágrimas.
Aquele “não creio que sejas ridículo” do meu interlocutor
demonstrava, evidentemente, aquilo que escondia por detrás
da sua aparente benevolência. Por isso deixei o indivíduo sem
resposta e afastei-me dele.
Creio que, quando não é possível confiar na amizade de um
ser, no mínimo podemos declarar-nos seu inimigo.
251
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Sinceramente, aprecio aqueles que rejeitam a afectuosidade
do meu coração. São dignos da minha espada. Devo ser claro:
possuo um coração e uma espada, e tanto o primeiro como a
segunda gostam de ser generosos.
Um dia um “Amigo” disse-me: “A importância daquilo que escreves ou dizes é apenas relativa para mim, mas é muito importante estimar aquilo que sentes. E creio que na expressão dos
teus sentimentos faltam palavras... e assim encontrarás o modo
de fazer com que ninguém te compreenda.”
“Por isso, não fales e deixa que te olhem nos olhos onde podem
ler a tua intimidade e tentar adivinhar o teu estado de alma!”
Entreabrirei as pálpebras para que não seja possível penetrar no fundo dos meus olhos transparentes, para que não seja
possível perscrutar o fundo da minha alma. Conheço, por experiência, a perigosidade do adivinhar. No fundo da minha
mente, penso que, possivelmente, aquele dia acabou com a
perca de um “Amigo”.
Hoje, quando vagueava à procura de um qualquer vagabundo
da minha dimensão, encontrei... um amigo.
Mas, posso acreditar que esta amizade possa ser duradoura?
Semelhante interrogação não é frequente em mim, e é ainda mais difícil dar-lhe uma resposta. Leva-me a pensar que,
enquanto eu perscruto entre as minhas suposições, quase de
certeza, ele permanecerá calmo e em breve não será mais meu
amigo. A amizade é uma coisa tão frágil, tão aparente, uma coisa tão rara, que acho legítimo que certos indivíduos renunciem
a procurá-la. Chamá-los de misantropos? Não! Em todo o caso,
são solitários!
Eu sou desses, porque odeio os homens que querem por norma viver em comunidade, enquanto que aprecio aqueles que
sabem estar sós.
O sentimento da solidão é o mais elevado dentre todos os sentimentos humanos. Pertence ao mesmo tempo à força e à beleza.
252
A AMIZADE E OS AMIGOS
Nós, os solitários, somos os homens que mais benefícios espalharam pela humanidade.
E é por isso que a Humanidade “reconhecedora” nos despreza.
Resumindo: o solitário escolhe ter poucos amigos, porque lhe
repugna a hipocrisia e a mentira.
Renzo Novatore
Ruta, Paris, 1950
253
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
254
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
Por cima do Arco:
Arte livre de um
espírito livre
Prelúdio
Criaturas de luz que dançam no maravilhoso reino do sol.
Arrepios de medo que se lançam velozmente pela noite escura.
Sons misteriosos que fremem e que palpitam no desconhecido inexplorado, distante; e próximo, próximo, próximo. Lágrimas, sorrisos, alegrias, dores e esperanças...
***
A vida é ao mesmo tempo feita de Tudo e de Nada.
Nesse Reino, Verdade e Ilusão têm o mesmo valor. A Felicidade
é um espectro perene, uma sombra que foge, e os homens perseguem-na e vão em direcção à Morte.
***
Também eu caminhava leve, leve, atrás de uma sombra fugidia. Mas eu tenho a consciência e a certeza de nunca a conseguir alcançar.
Quem não compreende o trágico heroísmo do meu enorme
desespero, aprende a abrir os olhos entre os ardentes raios
de Sol.
255
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
Vi muitos solitários percorrerem os caminhos do Silêncio. Estes são, de entre os homens, dos poucos que admirei. Conheço os
seus paladares refinados, superiores e distintos, e sei que os frutos com que se nutrem são os mais doces, os mais agradáveis.
***
Alguém afirmou que eles serão os homens do amanhã; mas eu
creio que serão a eterna excepção a uma regra eterna.
Há milhares de séculos que o sol faz brilhar os seus raios
majestosos sobre esta terra móvel, mas os répteis, os pântanos
e a lama, vivem ainda a sua vida estúpida.
O poema do mal1
Em verdade vos digo que também existe um futuro para o Mal;
mas o meio-dia mais tórrido ainda não foi descoberto.
F. Nietzsche
I
Lembro-me!...
A notícia chegou-me depois da dança triunfal de um meio-dia
festivo.
O sol estava quase a pôr-se e começava a mergulhar entre os
redemoinhos de um mar de sangue, ondulando entre os turbilhonantes cumes de imensas montanhas de fogo.
Era um pôr-do-sol trágico, épico, impressionante!
A notícia chegou fria, cínica, implacável...
Condenado à morte!
Mas como?! Condenado à morte?
Mas se durante todo o dia houve no céu uma dança frenética
de sol e de luz...
256
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
Mas se durante todo o dia houve na terra uma mágica festa de
perfume e de flores, de música e de poesia...
Condenado à morte!
Mas se sentia ressoar na alma todo um poema de vida, toda
uma canção de amor...
Condenado à morte!
Mas porquê?
Por ordem de quem?
Quem tem o direito de matar-me?
O Estado? A Sociedade? A Humanidade?
Olhei para bem dentro da alma dos homens. Queria ver nela a
sua íntima verdade.
Muitos aplaudiram, outros ficaram indiferentes. Poucos,
pouquíssimos, choraram.
Mas aqueles que choraram, não o fizeram por solidariedade,
por amizade, por humanidade. Não: choraram por uma outra
coisa.
Estava só. Só com a morte!
E, ainda assim, a vida era bela. Bela, bela!
Tudo ao me redor me sorria...
Condenado à morte!
Contudo, eu não tinha ainda morto aquilo que amava; e só
aqueles que renegam a vida devem morrer. Mas eu? Eu amava
a vida!
Quem tem o direito de matar quem não quer morrer?
Olhei à volta. A noite cairia em breve e apareceriam as estrelas...
Nunca o universo inteiro me tinha entrado pelos olhos como
naquele momento.
Abri a boca e bebi avidamente o ar como se este contivesse
qualquer virtude desconhecida. Depois, bebi os últimos raios
do sol dourado, como se fossem cálices de vinho tinto.
Os olhos profundos de uma rapariguinha morena que passava ao meu lado naquele momento de melancolia crepuscular,
ofereceram-me o mais estranho segredo dos profundos amores
ignorados.
Condenado à morte!?
Escutei um baque profundo nas minhas profundezas subter-
257
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
râneas e depois um riso zombeteiro, satânico, feroz!
Que se passa nos labirintos obscuros e profundos da minha
alma?
Quem? Quem alguma vez compreenderá aquilo riso zombeteiro, satânico, feroz?
Ah, amigos!, amigos!...
II
O profeta Zarathustra disse-me: «Ainda existem terras virgens
e livres para as almas livres e grandiosas!».
Eu abandonei a cidade dos supérfluos, dos homens cobardes,
dos meus irmãos cadavéricos, e voei – com os cabelos ao sol e
ao vento – para a floresta virgem e distante, cheia de um silêncio infinito e de uma solidão arcana.
Cheguei!
A grande e generosa floresta esperava-me entre a verde glória
da sua folhagem festiva. Aqui e ali a Sombra reinava, irmã do
Silêncio soberano.
Apenas o murmúrio musical de um pequeno rio enchia a
floresta de milhares de vozes líricas, vozes que compunham o
mistério harmónico de uma estranha canção sagrada somente
para as almas amantes da força bárbara do verdadeiro Amor.
Deitei-me no verde tapete de musgo, ornamentado de ervas
e flores.
Todos os meus membros se dilataram e se afundaram nas entranhas da terra húmida e mole. A minha carne tremia, o meu
coração chorava e ria, enquanto que, com pés de luz, a minha
alma dançava sobre as flores brancas beijadas pelos lábios
prateados dos últimos raios de sol.
III
Pensei: Finalmente reencontrei o meu reino. Estas árvores e
estas flores são realmente as minhas únicas e verdadeiras irmãs. Esta floresta é a minha mãe. E, comovido, beijei a minha
cama de musgo como se beija o seio fecundo de uma mãe; bei-
258
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
jei aquelas flores como se beija o rosto de uma irmã; beijei a
folhagem verde, fresca e reclinada, daquelas árvores, como se
beijam as mãos puras da mais doce e terna amante.
IV
O sol tinha já desaparecido entre os crepusculares abismos
da tarde. Por cima do túmulo da Estrela, as trevas cantavam já
os seus hinos nocturnos de vitória. Éolo2 tinha saído da casa
do mistério e vagueava, invisível, por entre a grande floresta,
trovejando estranhas e comoventes sinfonias com o seu grande
alaúde. A dança das flores começou ao som de Éolo. Uma dança
selvagem e divina, louca e apaixonada...
As primeiras miríades de estrelas errantes no alto azul do céu,
abençoavam a lenda dos seus doces amores inocentes.
V
Pensava: o orvalho branco e prateado que à noite cairá em
cima de mim com a tristeza de um choro, será o estranho
e comovente baptismo da minha passagem para uma nova
vida: será a missa fatal da minha redenção suprema.
Serei finalmente libertado daqueles últimos resquícios de
estúpida e brutal humanidade que ainda permanecem em
mim. Amanhã, quando a aurora vier depositar o seu beijo
puro e imaculado na minha testa jovem e incompreendida,
poderei, pela primeira vez, sem corar, chamá-la de amiga e
irmã.
Sim: Chamar-lhe-ei Amiga e Irmã!
E ela sorrir-me-á com um sorriso novo e alegre, e eu daquele
sorriso beberei avidamente toda a doce, penetrante, grandiosa e infinita música!
A minha Vida, a minha verdadeira Vida, começará apenas
amanhã, quando despertar como flor entre as flores, entre as
líricas festas do nosso perfume virgem, condensado no palpitante milagre de um grande sorriso de luz.
259
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
VI
A noite estava alta e profunda. A lua mergulhava as suas mãos
pálidas, trançadas de brancos raios de argênteo, nas límpidas
águas do belo e sereno rio que corria pela floresta no seu duro
leito de pedras.
Eu sonhava!...
E no sonho, parecia-me que uma Ninfa desnuda tinha saído
de uma caverna que se encontrava próxima, para se deitar ao
meu lado, enquanto uma Musa celeste, cingindo um ceptro,
descia de um cume luminoso e distante, oferecendo-nos um
cálice de esmeraldas cheio de um doce néctar e um véu púrpura desenhado com estrelas de ouro.
VII
Pensava: amanhã a cega e estúpida raiva dos homens procurar-me-á ainda, mas em vão. Eu viverei ainda, amarei ainda,
cantarei ainda, mas uma vida, um amor, um canto, que muitos
não irão compreender.
Como poderão compreender-me se eu não pertenço mais à
sua espécie?
VIII
Quando acordei já era tarde, porque o sol do meio-dia cantava
uma canção de fogo.
A beleza demasiado frágil do meu sonho lírico desapareceu!
A raiva feroz que senti por ainda ser homem enlouqueceu-me.
E com a loucura vêm as trevas.
E com as trevas da loucura vi uma roda satânica de fantasmas
espectrais...
Pareceu-me que me deitei de costas sobre uma áspera e espinhosa cama de espinhos secos.
Ao meu lado encontrava-se um cálice negro cheio de um
líquido verde e amargo que deveria tragar em silêncio.
Um cadáver, hediondo e repugnante, de uma mulher leprosa
260
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
e viciada, jazia ao meu lado, e eu estava fatalmente condenado
a possuir aquela carcaça imunda...
Não existiam mais flores níveas, não existiam mais folhagens
festivas ao meu redor, mas um deserto desolado e medonho,
devastado pelos ventos, árido devido ao sol.
Quem? Quem destruiu, pois, o meu lírico e estranho sonho de
poeta?
IX
Pareceu-me também vaguear, durante bastante tempo,
através das tristíssimas ruas da sinistra cidade que abriga as
desprezíveis e deformadas criaturas do Jesus Redentor.
Eu – como o Rei Édipo – estava cego e amaldiçoado porque,
como ele, tinha resolvido o enigma da Esfinge.
X
Um herói cínico que habita dentro de mim, disse-me então:
É o fim!
Respondi: É!
Comecei a caminhar em direcção ao solene templo da Morte.
O lúgubre portão de bronze negro estava fechado. Bati; o golpe ressoou assustadoramente, respondendo-me com um eco
lúgubre, sepulcral.
Foi então que na sombria e profunda escuridão da minha
alma, explodiu uma gargalhada sinistra, forte como o cachoar
da água, como o estrondo ruidoso dos ventos.
O «Príncipe das Trevas» tinha despertado, jovem e belo, dentro
dos labirintos profundos do meu ser, e ria, ria...
Disse-me: Estamos juntos, eu e tu apenas, vês?! E ao dizer-me
isto, mostrou-me um livro belo e terrível.
O Poema do Mal.
Na capa, feita da pele de uma serpente negra, destacava-se
num vermelho ardente a soberba figura de Mefistófeles3.
Abriu a primeira página, fez um gesto em direcção ao céu
com a sua mão negra e toda a terra se iluminou de uma cor
261
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
vermelha e encarnada.
Todos os pontos interrogativos que enchiam a minha pobre
mente enferma de luzes sinistras, transformaram-se em alegres
pontos de exclamação, brilhantes e sorridentes.
XI
Desde esse dia que me alimento dos frutos que germinam,
festivos e triunfantes, no sublime jardim da Perversidade e do
Pecado. Aqueço-me ao magnífico sol da Liberdade, que faz brilhar o Crime, ao mesmo tempo que estudo e aprendo – no «Poema do Mal» que Satanás escreveu – a mais íntima força do mais
jovem «Deus da Vida». Vida tecida de Alegria e de Riso. Força
tecida de Desprezo e Escárnio.
Gritam, porém, os velhos raquíticos da sabedoria antiga e
moderna: Vade retro Satana!4
A juventude, a minha juventude, prossegue!
Amplexo trágico
E tão forte era o amor do Demónio, que a Deusa ficou reduzida
a cinzas com o seu beijo.
O. Wilde
Houve um dia na minha vida em que caminhei com o céu em
vista e Deus no coração...
Via, então, em cada homem um irmão, e o sussurrar das folhas
dizia-me: ama!
Ao andar pelo bosque do velho Arhan, benfeitor e filantropo,
encontrei numa tarde um Eremita que caminhava com os pés
descalços e vestia uma túnica escarlate. Tinha uma longa barba
grisalha e os seus cabelos brancos eram macios como lã húmida. Dos seus olhos místicos de asceta e de profeta, brotava uma
luz bastante rara, e o seu grande rosto pálido de marfim inspirava confiança, e não temor, a quem para ele olhava.
262
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
A primeira vez que passei perto dele vi que estava absorto,
como se estivesse numa muda contemplação interior, tão profunda, que nem sequer reparou em mim...
Queria falar com ele já desde há algum tempo, mas nunca
mais o tinha visto. Aproximei-me das margens verdes e floridas
do rio que corria em baixo, ao fundo, do lado direito do bosque,
mas de súbito o corroer ardente da curiosidade abateu-se sobre
os meus passos...
Reencontrei o velho Eremita, que tinha nas mãos um verde
ramo de murta e dele comia os frutos negros, ásperos e amargos...
Disse-me: O sol está quase a pôr-se, porque não rezas meu
filho?
Mas – disse eu balbuciando – porque tenho de rezar?
Como – disse o profeta de forma repreensiva – podes ignorar,
porventura, a existência de Deus?
E enquanto me repreendia, vi passar pelos seus olhos, que me
pareciam tão doces e profundos, um rasgo sincero de comovida
piedade.
Tentei falar, dizer alguma coisa, nada, não sabia o que dizer;
mas ele uniu as mãos e continuou a falar desta forma: Como é
possível ignorar o criador do céu e da terra, do sol e das estrelas, dos homens e dos animais, das flores e das florestas? Como
é possível ignorar o criador de todas as magnificências? E ao
dizer isso, o velho Eremita pousou a mão pálida e magra sobre
o meu ombro, e com os seus luminosos olhos fixados nos meus,
falou-me ainda longamente sobre a minha iniciação nos mistérios de Deus e dos amores divinos.
E foi desde aquela tarde que comecei a caminhar com o céu
em vista e Deus no coração.
***
O velho profeta tinha conquistado a minha adolescência para
a sua fé. Ocultando-me habilidosamente a sinistra história de
Abel e Caim, ensinou-me a ver em todos os homens a minha
imagem perfeita, quantos irmãos tinha...
Todas as tardes, ao pôr-do-sol, ia ao bosque do filantropo
263
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Arhan, onde me encontrava sempre com o velho Eremita que
me falava de Deus...
- Olha para a natureza, dizia-me amiúde, ela é o livro sagrado
de Deus que contém todos os mistérios divinos.
E eu ouvia em êxtase e comovido, cada vez que falava comigo
dessa forma.
Numa tarde, em que o silêncio do bosque era profundo e em
que o sol se extinguia lentamente no horizonte, projectando
os seus raios de ouro pálidos e melancólicos sobre a folhagem
verde das plantas, agarrou-me nos ombros com as duas mãos
e olhando-me nos olhos com uma nova e rara doçura, pálido
e trémulo, falou-me desta forma: Oh meu filho, meu filho, a
minha missão está cumprida. Eis o milagre, eis o prodígio... Oh
pálido adolescente, vejo agora brilhar nos teus olhos inspirados
a grande luz divina. A minha missão está cumprida. Possuis o
perfeito conhecimento de Deus. Vejo brilhar nos teus grandes
olhos inspirados a sagrada e mística chama da eternidade. Logo
possuirás o amor perfeito, e para ti não existirão mais auroras
vermelhas, nem pores-do-sol dourados, mas luz eterna, um
eterno meio-dia de sol.
***
Não voltei para casa naquela tarde. Vagabundeie toda a noite
até ao nascer do sol, sob a abóbada do céu, entre o perfume das
flores e o amor do campo.
Quando voltei para o meu quarto para repousar, estava instável, ébrio de sonhos e de estrelas.
Deitei-me, invocando uma boa noite de sono, mas o sono
não veio...
Um misterioso coro de vozes desconhecidas ressoava na
minha alma como um refrão divino. Deus, Deus, Deus! diziam
aquelas vozes.
O sono veio depois!...
Mas nele sonhei...
Sonhei com vastos céus de prata e de ouro, e acima enormes
tronos de corais, e grandes altares de safiras e esmeraldas; e aci-
264
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
ma desses tronos e desses altares via Deus, sempre Deus.
***
As pessoas chamavam-me «o louco»; a minha mãe chamava-me «lunático», o meu pai não se preocupava comigo, e os meus
amigos falavam de mim com sarcasmo e ironia, chamando-me com desprezo: «poeta». Só uma tia, velha e demente, me
chamava: «o santo». Depois de Deus, eu queria para aquela
minha tia, velha e demente, mais do que um pouco de bem.
***
Um dia em que caminhava na margem iluminada de um rio
solitário, encontrei – atrás de uma sebe de rosas silvestres, à
sombra das quais alguém tinha com certeza descansado, já
que tinha deixado uma marca na relva verde – um grande livro
encadernado a negro, escrito numa língua estrangeira, que na
capa tinha gravado, a caracteres de ouro e de fogo, este mote
em latim: «Quem não viola, pelo menos uma vez, as sagradas
leis de Deus, não é digno de amá-lo; mas quem as viola ou se
suicida, ou mata para sempre o seu Deus.»
Não sei bem porquê, mas lembro-me que aquele longo mote
em latim, impresso a caracteres de ouro e de fogo na negra lombada daquele grande livro escrito numa língua estrangeira, me
deu a impressão de ser um imperativo quase categórico, uma
grande e imortal verdade!
Pareceu-me sentir rugir na minha alma o grito de milhares de
náufragos, e de sentir crepitar no coração as chamas de uma
centena de incêndios.
Corri para casa da minha tia velha e demente e mostrei-lhe
aquele terrível livro escrito numa língua estrangeira, que tinha
estampado na sua lombada aquele longo mote em latim.
A minha tia olhou para ele, mas não me soube dizer nada...
Apenas me lembro que chorou!
Eu senti que os fundamentos da minha fé vacilavam. Um novo
acontecimento estava para ocorrer em mim...
265
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Corri pelo bosque do filantropo Arhan em busca do velho Eremita.
Encontrei-o escondido debaixo de um grande arbusto de louro, com a branca filha de Arhan nua entre os seus braços.
- Oh, loura filha de Arhan, dizia-lhe o velho eremita, derrotaste a minha santidade e induziste-me ao pecado. Eu queria
inspirar-te e iniciar-te nos sagrados mistérios do amor divino,
mas tu venceste-me com o amor humano.
E enquanto lhe falava dessa maneira, via-o passar as suas
velhas mãos pálidas, magras, trémulas, sobre o macio veludo
daquele corpo jovem, cheio de volúpia e de perfume.
Pareceu-me ver o céu desmoronar-se e dissolver-se num
enorme incêndio e a terra afundar-se em grandes abismos
sulfúricos. Todo o universo me parecia um terrível polígono
feito de sangue e de fogo.
- Mereço bem sentir as carnes da minha alma arderem por
toda a eternidade depois de ter podido gozar, por um breve
instante, a branca e cheirosa nudez do teu belo corpo divino,
dizia ainda o velho profeta à loura filha de Arhan, enquanto ela,
com o seus olhos perversos entreabertos, acariciava a sua longa
barba grisalha.
Eu cai inconsciente em terra, e não me lembro de quantas
horas passaram!
***
Quando recuperei, o sol tinha-se posto e o livro negro jazia próximo de mim, num mar perfumado de frágeis violetas turquesas.
Parecia-me não ter presente, não ter passado e não ter futuro,
só, com uma dor na alma, sem sorrisos e sem esperança.
Levantei-me e olhei para debaixo do verde arbusto de então.
A loura filha de Arhan não estava mais ali e o profeta dormia!
Apanhei o meu livro, aproximei-me dele e acordei-o...
- Que livro tens escondido debaixo do braço? – perguntou-me
quando acordou.
Eu dei-lhe em silêncio aquele livro estranho, escrito numa língua estrangeira, que tinha estampado na sua lombada negra o
longo mote em latim...
266
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
O velho estremeceu.
Um longo arrepio de tristeza e de dor contorceu os músculos
do seu rosto pálido de marfim, e os seus olhos luminosos quase
se extinguiram...
- Este, disse-me, é o livro do Demónio. É um livro maldito.
Contém o Evangelho de uma religião clandestina, praticada por
uma obscura e perversa falange de ciganos vagabundos do Oriente. Necessitas queimar rapidamente este livro e atirar as suas
cinzas para dentro de uma caverna...
Depois olhou-me nos olhos e fez um gesto de susto e de terror
indescritível; deu um grito e disse-me: Chegou a minha hora,
vejo nos teus olhos o espírito ameaçador e sangrento de Caim.
Amaste-me como um discípulo, mas matar-me-ás como um irmão; no entanto está escrito: tu não matarás!...
Respondi: Quem fixa os olhos no seu próprio irmão não pode
ver senão a sua própria imagem. E acrescentei: Um grande
poeta da vida bebeu o cálice do prazer e o da dor até à última
gota, e sentenciou: Todos nesta vida matámos ou mataremos,
há quem mate com um beijo, há quem mate com a verdade, há
quem mate com a mentira. Só o homem corajoso e generoso
mata com a espada...
- Tu, oh velho, foste Caim primeiro do que eu. Caim da minha
alma. Ensinavas-me o amor divino e vi-te contorceres-te na
senil voluptuosidade do amor humano. Roubaste-me a loura
filha de Arhan, que eu adorava em segredo com um amor divino, místico e puro. E é apenas por tua culpa que as grandes
e luminosas verdades do mundo se transformam hoje, para
mim, numa única e grande mentira. Oh velho, senil e infame,
desprezo-te!
Falando desta forma, peguei numa pedra pesada e esmaguei a
branca cabeça do profeta.
Depois peguei no meu livro e li ainda uma outra vez o longo
mote em latim: «Quem não viola, pelo menos uma vez, as sagradas leis de Deus, não é digno de amá-lo; mas quem as viola
ou se suicida, ou mata para sempre o seu Deus.»
A lua pálida tinha aparecido no horizonte como uma foice de
ouro e procurava, com os seus raios prateados, o sangue ver-
267
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
melho do Santo Profeta pecador, como se o quisesse abençoar...
***
A Páscoa tinha chegado e o filho de Deus estava prestes a ressuscitar depois de uma longa semana de paixão. Sim, a Páscoa
tinha chegado, mas ninguém, para além da minha consciência,
soube alguma vez do meu crime.
A minha tia – aquela velha demente que me chamava «Santo»
e que eu, devido ao amor que tinha pelas coisas deformadas,
ainda amava – tinha-me contado, naquele dia de paixão, o
lúgubre e terrível ardor de um antigo soldado.
Quando este soldado se dirigia para o altar, no dia de Páscoa,
para receber, sob a forma de pão e vinho, o corpo e o sangue do
Redentor, e assim que o jovem e branco sacerdote aproximou
o Santo Sacramento dos lábios do penitente, a hóstia transformou-se na figura viva e real do Cristo Crucificado que, coberto
de sangue, se elevou no céu vermelho da Igreja, composta de
lâmpadas ardentes e de ricos tecidos escarlates, gritando: «Para
trás, para trás, oh indigno. Tu não és digno de mim, pois não é
digno de mim quem assassina os seus próprios irmãos.»
Porque – acrescentou aquela minha tia, velha e demente – no
código divino das leis imutáveis do Eterno está escrito: «Não
matarás!»
***
Não sei com que força secreta e magnética me dirigi para a
igreja e me aproximei do altar.
Uma música mística era emitida pelos longos tubos prateados
do órgão branco, unindo-se como num frémito divino ao coro
dos crentes que, ajoelhados nas balaustradas ornamentadas de
mármore vermelho, cantavam em latim.
Eu ajoelhei-me sobre o altar com uma ansiedade perversa no
coração, para alcançar a minha tragédia de ímpio através de um
milagre horrendo e divino; e para que a terrível história daquele
antigo soldado se repetisse como um exemplo assustador para
268
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
os outros, tampouco quis realizar o ritual cristão da confissão e
do arrependimento.
***
O sacerdote estava – como o de outrora – vestido de púrpura e
de ouro. Eu via-o passar e voltar a passar pelo altar, curvando-se
e voltando-se a curvar perante o tabernáculo de prata, com os
olhos postos numa lente de puro cristal que tinha entre as suas
mãos magras e rosadas, cobertas por um pequeno pano branco
de seda com tiras de ouro e de pedras preciosas.
Não sei dizer aquilo que passava pela minha cabeça naquele
momento...
Sei que aquela angustiante espera me pareceu bastante longa
e desgastante.
Por fim, o misterioso ritual da consagração do pão e do
vinho terminou, e o jovem sacerdote começou a distribuição
redentora.
Fui tomado por uma enorme emoção.
O terrível momento da minha tragédia iria ter um desfecho
fatal! O espírito da minha cobardia tentou-me várias vezes.
«Foge!», dizia-me, enquanto que a poderosa voz da vontade
clamava que ali ficasse.
E fiquei.
O sacrifício da minha alma, que estava por cumprir-se sob a
negra cruz da maldição e da vergonha, deveria servir para fortalecer a fé dos outros no Evangelho, que em mim vacilava, e
para me tornar digno de Cristo mediante o supremo sacrifício
da revolta suprema.
Pensava: ninguém é tão grande como Cristo, senão o Anticristo. Bruto5 foi grande porque César era grande. E a grandeza é
grandeza, no bem como no mal, no pecado como na virtude.
Por isso, bem e mal, pecado e virtude, jamais alguém soube
dizer com uma verdadeira precisão o que é e o que não é. Ainda
acreditava, mas a minha alma tinha sido atingida...
Tinha sido pervertida. O problema ético transformava-se
numa paixão estética...
269
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
O jovem padre passou murmurando uma prece incompreensível entre os seus dentes brancos. Fez um gesto religiosamente
majestoso e colocou-me, devagar, sobre os lábios ardentes, primeiro o corpo e depois o sangue do filho de Deus, Jesus Redentor.
Deixei que a fina hóstia de massa branca se liquidificasse no
calor da minha boca, entre dois goles de vinho, mas nenhum
milagre aconteceu...
Permaneci ali, imóvel, com a boca e os olhos fechados, a alma
vazia, o coração vazio, como um verdadeiro demente.
- Tu não matarás!
Mas eu tinha morto.
Tinha morto tal e qual aquele antigo soldado, mas o milagre
não aconteceu, nem o terrível exemplo.
Estava destinado que Cristo também deveria morrer na mente
dos seus crentes mais humildes e obedientes.
***
Do lado direito da igreja – diante do meu genuflexório –
erguia-se o altar da Nossa Senhora, todo resplandecente de
ouro entre o fogo dos círios. O órgão continuava a emitir
grandes frémitos de música celestial. Todos os crentes tinham
a cabeça baixa como se estivessem dominados pelo gáudio e
pelo terror.
Eu olhava para o altar da pesarosa Nossa Senhora que, diante
de mim, tinha entre os braços uma criança e sete punhais no
coração.
As mulheres tinham espalhado sobre o altar flores do campo
e da serra.
Não sei porquê, mas pareceu-me que o perfume daquelas
flores, misturado com o cheiro a incenso e a cera mole liquidificada na chama, me transmitia um estranho cheiro a carne e
a sensualidade.
Fixei o meu olhar mais intensamente na Nossa Senhora e
270
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
pareceu-me que esta estava viva e olhava para mim...
Depois a minha mente ficou enevoada e não vi mais nada.
Sombra de cavernas, névoa de rochas, espectros insignificantes... Nada!
De repente voltei a ver a igreja, envolta num denso vapor
branco, entre o qual vi passar a sacrílega figura daquele antigo
soldado que, como um ladrão de coisas divinas, se aproximava do Altar a passos leves e circunspectos.
Depois o fumo dissipou-se e a igreja pareceu-me deserta.
Só o soldado estava levantado no altar, e removia, um a um,
os punhais do coração da Nossa Senhora. Quando removeu a
sétima lâmina, a Nossa Senhora olhou para mim e sorriu-me...
A criança, também ela viva, veio, saída dos braços dela, e
ajudou a recolher as frescas flores do campo e da serra que
as jovens mulheres da aldeia tinham espalhado pelo altar; ao
mesmo tempo, o sacrílego soldado desnudava a assaz bela e
loura Nossa Senhora.
Vi, então, a igreja transformar-se num bosque e o altar num
arbusto de louro.
O soldado transformou-se no velho eremita de cabelos macios com a lã fina e com uma longa barba grisalha, enquanto
que a desnudada Nossa Senhora não era senão a loura filha
de Arhan.
***
- Oh, loura filha de Arhan, derrotaste a minha santidade e
induziste-me ao pecado. Eu queria inspirar-te e iniciar-te nos
sagrados mistérios do amor divino, mas tu venceste-me com
o amor humano. Mereço bem sentir as carnes da minha alma
arderem por toda a eternidade depois de ter podido gozar,
por um breve instante, a branca e cheirosa nudez do teu belo
corpo divino
***
A doce criança, que se tinha tornado débil e adolescente,
271
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
atravessava os sombreados caminhos do bosque com um livro
negro debaixo do braço.
De repente, vi-a pegar numa grande pedra e, com esta, esmagar a cabeça do Profeta.
Que coisa estranha...
Aquela criança que se tinha tornado adolescente entre as
flores do altar, tinha a minha cara...
***
- Se procuras nos seus olhos um irmão, não irás ver senão a ti
mesmo.
***
Foi um sonho, um remorso, uma visão, um espectro, uma realidade, uma verdade?
Não sei, não sei...
Não quero saber!
***
As últimas notas melancólicas caíam pelos tubos prateados
do órgão branco com o desespero de um choro sem esperança, enquanto os crentes, simples e bons, desfilavam de
cabeça baixa, lentamente, como se naquele templo estivesse
a ser celebrado o funeral de Jesus em vez da missa da ressurreição...
Lá fora, no largo que majestosamente se estendia frente à
igreja, as margaridas brancas e as violetas turquesas dançavam alegremente numa calorosa glória de luz e de sol, enquanto os sinos faziam soar a festança, difundindo pelo vale
o grande anúncio de redenção...
***
A noite estava suave e tranquila.
272
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
O belo céu azul estava cheio de estrelas de ouro e a pálida lua
iluminava debilmente a terra.
Eu – tendo apenas por companhia os meus pensamentos
vermelhos e a minha sombra negra – caminhava ainda pelo
bosque do velho Arhan.
Quando cheguei ao sítio onde esmaguei a cabeça do velho
eremita, ouvi um estranho rumor que me fez estremecer...
Olhei para trás e vi um enorme Dragão voador.
O Dragão tinha sete cabeças e tinha uma coroa sobre cada
cabeça. As três da esquerda eram: a primeira de serpente, a segunda de águia e a terceira de leão. A primeira trazia a coroa da
sabedoria, a segunda a coroa da prudência, a terceira a coroa
da força. As três cabeças da direita eram: a primeira de cordeiro,
a segunda de boi e a terceira de asno, e traziam três coroas de
espinhos iguais.
A cabeça do meio era: metade tigre e metade pantera, e não
tinha coroa...
A minha sombra fugiu e o Dragão agarrou-me pela cintura
com todos os seus tentáculos multiformes e, abrindo as suas
cinco asas negras, transportou-me, mais rápido do que o vento,
para uma montanha coroada de ouro que tinha no seu cume,
triunfante e majestosamente elevado, a árvore de todas as magnificências.
Vi três homens debaixo da árvore que não eram homens, pois
não passavam de espectros, fantasmas, imitações destes.
Observavam curvados, como juncos que a furiosa torrente
contorce ao passar. O primeiro era leproso, o segundo era cego
e o terceiro era mendigo.
Rezavam e choravam...
O Dragão voltou para mim a sua face do meio e disse-me com
uma voz satânica: «Eis o sítio onde Deus veio refugiar-se.»
E ao dizer-me isto apontou ao leproso, ao cego e ao mendigo.
«Se os matares – continuou o Dragão com a mesma boca – Deus
será morto verdadeiramente e o espírito será livre para sempre.»
Que não faria eu para libertar o espírito?
Peguei num duro e grosso ramo de carvalho e bati nos três
pregadores com uma violência inaudita.
273
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Das suas bocas, dos narizes e das orelhas, saíram abundantes
rios de sangue. Passado um instante, vi-os rígidos, imobilizados
pela frigidez da morte.
As três cabeças da esquerda do Dragão riram-se alegremente
e as três da direita choraram lágrimas amargas, enquanto que
a do centro permaneceu imperiosamente inflexível como se
fosse feita de bronze.
***
Uma saudável rajada de vento passou cantando através das
folhas verdes da magnífica árvore, e o último respiro de Deus
– tirano do espírito – dispersou-se longinquamente no eterno
nada do tempo.
O sol dançou alegremente com os seus luzentes pés dourados, rindo-se sobre as carcaças daqueles três mortos repulsivos, enquanto que dos mares profundos e longínquos se elevou
um misterioso canto de brancas sereias prateadas, senhoras e
rainhas do mar...
***
O Dragão voltou a agarrar-me e levantou voo, transportando-me, ainda mais rápido do que o vento, para uma praia longínqua e deserta de um mar nunca antes explorado.
Uma sereia prateada de longos cabelos dourados, que tinha
como olhos duas grandes madrepérolas estreladas, saltou
cantando da claridade azul das ondas e arrebatou-me à arenosa
praia iluminada pelo sol, arrastando-me para os profundos e
luminosos abismos do mar.
***
Passámos através de brancas cidades de mármore e de vermelhas cidades de corais...
Todas as ruas daquelas cidades estavam pavimentados com
rubis, com esmeraldas e com pedras preciosas...
274
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
Enormes safiras cobriam os tectos de todas as casas e por toda a
parte ecoavam cantos de amor, músicas de beleza, hinos de vida...
Um dia apercebi-me, porém, que naqueles abismos marítimos o sol, o belo sol, nunca entrava...
Acordei a minha sereia, que dormia estendida num claro leito
de pérolas bordadas com pequenas estrelas ainda sem nome, e
disse-lhe: «Dá-me o sol!»
- Dei-te o amor, o prazer, a felicidade, respondeu-me a Sereia
ao despertar. Porque te importa o Sol?
- Dá-me o Sol! Dá-me o Sol! Repeti.
- Ai de mim! suspirou a Sereia, não posso dar-te o Sol. E voltou
a adormecer.
***
Nos abismos tudo era silêncio...
Todas as filhas do mar dormiam.
Só eu estava acordado, olhando para um fio de luz branca que
do alto da superfície marítima descia até à profundidade dos
abismos.
Pensava no Sol.
Curvei-me devagar sobre a minha Sereia adormecida e, com
um beijo leve, toquei ligeiramente nas pálpebras entreabertas
devido ao sono.
O seu respirar era doce e leve como uma carícia divina, e o seu
coração vermelho palpitava sem dormir, acordado sob os seus
seios redondos de marfim branco.
Situei-me em relação com aquele raio de luz branco que vinha
do alto, e subi à superfície do mar onde palpitavam as ondas.
***
Cheguei a uma Ilha desconhecida, iluminada apenas por um
frio e pálido reflexo lunar.
Os habitantes daquela Ilha eram pequenos como anões e negros como a noite.
Mas eram todos jovens, não existindo entre eles nem velhos
275
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
nem crianças.
Não comiam, não trabalhavam, não dormiam, não procriavam, não morriam.
Eram uma raça de pigmeus estéreis e imortais.
Perguntei-lhes em que estação e em que ano se encontravam.
Não compreenderam e não responderam.
Um dia, chegou àquela ilha um náufrago branco. Perguntei-lhe de onde vinha e ele respondeu-me: Da terra do Sol!
- Oh náufrago branco, oh náufrago branco, gritei, tu és meu irmão, tu és da minha raça... Leva-me de volta para a nossa antiga
terra, eu quero o Sol.
E falando desta forma, abracei-o comovido e beijei, sentindo-me renovado, a sua pálida face.
- Ai de mim, ai de mim!, suspirou com uma profunda tristeza
o náufrago branco, eu fui banido daquela terra. Baniram-me os
meus irmãos, depois daquele dia em que ousei tornar-me apóstolo de um estranho homem chamado «O grande libertador do
espírito ou o assassino de Deus», discursando contra os macacos que subiram à árvore de todas as magnificências, proclamando-se, esses animais, os novos senhores da alma humana;
os meus irmãos amaldiçoaram-me e baniram-me, chamando-me
«a Sombra» daquele homem estranho de que ninguém sabe alguma coisa.
Olhei fixamente os olhos do náufrago branco; ele também
olhou os meus...
Olhámo-nos longamente em silêncio, pálidos, desalentados,
mudos.
Parecia que cada um de nós procurava qualquer coisa estranha no próprio segredo, nas memórias longínquas.
De repente, um relâmpago sinistro atravessou o meu ser...
- Diz-me, perguntei ao náufrago branco, és o corpo da minha
alma, ou és a alma do meu corpo?
- Quem é a alma? Quem é o corpo?
O náufrago não respondeu, mas vi que o seu corpo ia diminuindo lentamente e pouco depois não era mais do que uma sombra que partia de ao pé de mim...
276
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
***
Mergulhei nas ondas, com o pensamento posto na loura filha
de Arhan, e voltei aos abismos.
Com a sombra tinha reencontrado as memórias...
Oh loura filha de Arhan!
Oh loura filha de Arhan!
Quando cheguei perto do claro leito de pérolas, bordado de
estrelas, onde tinha deixado a minha Sereia, encontrei-a morta,
morta de amor.
A minha Sereia estava morta, morta de amor e melancolia! Estava morta...
Oh loura filha de Arhan!
Oh loura filha de Arhan!
***
Com a sombra voltaram as memórias...
Oh loura filha de Arhan!
Oh loura filha de Arhan!
***
A minha Sereia está morta!
Morta de amor e melancolia...
Matou-a um Demónio alado, sob o fogo dos seus loucos beijos
de amor; de amor e de fogo.
Eu estou só! Estou só!
Com a sombra voltaram as memórias...
Oh loura filha de Arhan, onde estás?
Quero-te, procuro-te, desejo-te!
Não terá sido por ti que matei Deus?
Não terá sido por ti que esmaguei a cabeça do profeta?
Não serás tu o sonho do meu espírito libertado?
Não és tu a volúpia e o prazer?
Não és tu a Arte e a Beleza?
Não és tu a Juventude e o Amor?
277
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Não serás tu a grande flor do Pecado?
Oh Eva!
Oh Maria Madalena!
Oh Safo!
Oh Cleópatra!
Oh Messalina!
Oh Beatriz!
Oh Laura!
Oh Lucrécia Bórgia!
Oh grandes flores do mal!
Oh loura filha de Arhan!
Eu sou um poeta perverso!
Eu sou o vosso poeta!
***
Com a sombra voltaram as memórias...
A minha Sereia está morta!
Está morta!
Está morta!
Está morta!
Matou-a o Demónio alado das profundezas, sob o fogo dos
seus beijos de amor.
Amplexo trágico.
Oh loura filha de Arhan, a minha Sereia está morta.
Fui eu, foi Ele, foste tu que a mataste!
***
A minha Sereia era bela:
Mas não tinha pés!
A minha Sereia era bela:
Mas não tinha o Sol!
Oh loura filha de Arhan, contaminada pelo velho Profeta, és tu
quem procuro!
Onde estás?
Vem nua, com os pés descalços e dança!
278
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
Dança nua pelo mundo, oh grande flor do mal, tentadora...
Dança e dá-me o Sol.
Eu sou o poeta do mal e canto a perversidade.
Oh loura filha de Arhan!
Oh loura filha de Arhan!
Dá-me o Sol!
Dá-me o Sol e dança!
Dança nua pelo mundo, oh loura filha de Arhan!
A Vampira Loura
Ao aproximar-se deram-se, subitamente, dois sentimentos em
mim: o desejo e o medo.
Leonardo da Vinci
Estava doente não sei há quanto tempo, e todos os médicos
davam-me como um caso perdido.
A minha doença não era física, e os médicos nunca puderam
fazer nada contra as verdadeiras doenças espirituais!...
Mas estaria verdadeiramente doente?
Um dia – numa tarde de Agosto – bateram levemente na porta
do meu quarto por três vezes.
Eu estava sentado numa cadeira de vimes a descansar e matava o tempo a ler o «Apocalipse».
«E foram dadas à mulher as duas asas da grande águia para
que voasse para o deserto, fora da vista da serpente.»
Pousei o livro sobre uma escrivaninha desgastada e abri a
porta.
Entrou uma grande onda de luz e de sol, e com o Sol e a luz entrou uma jovem mulher com olhos cheios de céu, caindo pelas
suas costas desnudas os longos anéis do seu cabelo de ouro,
artisticamente desgrenhados.
Vê-la pela primeira vez despertou em mim dois sentimentos:
desejo e medo.
- Eu venho de muito longe, disse-me, e para chegar até ti
279
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
caminhei muito...
- Vês? Os meus pés sangram, e para além dos meus pés também o meu coração sangra!
- Oh homem, ouve-me!
- A realidade deixou-te doente.
- A verdade atormentou-te.
- A humanidade entristeceu-te!
- Eu sei, eu sei! Todas essas coisas tristes e más deixaram-te
doente de sonho e de solidão.
- De ideal e de distância!
Eu ouvia a minha estranha visita em silêncio, e observando o
segredo escondido dentro dos seus olhos cheios de céu, sorria
com uma certa ironia amarga.
- Não, não, disse-me, não te rias assim, faz-me mal!
- Pelo contrário, ouve-me ainda.
- Eu conheço um oásis longínquo, um oásis de alegria e felicidade, no meio do qual existe uma virgem nascente de água
claríssima.
- Perto da nascente existe uma rocha enorme, antiquíssima,
na qual se formou uma pequena piscina.
- A cada nascer do sol e a cada pôr-do-sol uma selvagem filha
dos bosques mergulha nua para se banhar na piscina.
- Ela deve ser a senhora do oásis, o objecto dos teus sonhos!
- Vem, vem vê-la.
- O oásis é deserto e não é habitado por ninguém.
- Só um Deus adolescente, eternamente jovem e belo – que de
dia se veste de ervas e de flores, e pela noite se envolve em véus
de ouro –, por ali passa destilando os violentos perfumes das
pétalas das flores desconhecidas, e tocando na sua lira vibrante
misteriosas canções de amor.
Fez uma pausa, olhou para mim, sorriu-me e continuou:
- Queres, então, vir comigo?
- Eu conduzir-te-ei àquele oásis de felicidade e alegria.
- Quando a selvagem filha dos bosques – a senhora do oásis
– sai para fora da rocha, unta todo o seu corpo com um óleo
vermelho de rosas, e pela noite o jovem Deus queima muitos
grãos de incenso para que o perfume se expanda por todo o oá-
280
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
sis, como num templo cristão onde se celebram os rituais do
amor divino.
- Ah, vem, vem!
- A selvagem filha dos bosques tem pés muito pequenos e as
mãos brancas...
- Ah, vem, vem!
- Os seus pés são duas rosas vermelhas, as suas mãos são dois
lírios brancos, os seus olhos são duas pedras preciosas do mar,
a sua boca é uma romã cheirosa, doce, madura!
- Ah, vem, vem vê-la!
- Os seus braços de marfim branco estão ornamentados por
braceletes e nos seus dedos brilha um azul-turquesa.
- Aquela deve ser a mulher dos teus sonhos, o remédio para a
tua doença...
- Ah, tens de vir comigo!
- Eu conduzir-te-ei àquele oásis de alegria e felicidade.
- Eu conduzir-te-ei àquela rocha antiga que contém a pequena piscina onde a virgem filha dos bosques entra nua a cada
nascer do sol e a cada pôr-do-sol...
Agarrei de novo o «Apocalipse» e para responder à minha estranha visitante li exactamente:
«E o dragão irou-se contra a mulher, e foi fazer guerra aos demais filhos dela, os que guardam os mandamentos de Deus, e
mantêm o testemunho de Jesus Cristo.»
- Ai de mim! ai de mim! suspirou dolorosamente a minha visitante com o semblante tingido por uma grande palidez, louco e
infeliz foi o Dragão que quis, quem sabe em nome de uma concepção absurda de beleza pura, impedir a mulher de procriar
para destruir a espécie, fazendo com que esta se pusesse num
estado de revolta contra as leis imutáveis do Eterno.
- Esse dragão não pode ser senão o terrível demónio da
destruição!
- Nihil, nihil, é o que deve estar escrito no segredo dos seus
perigosos pensamentos.
- Não, oh mulher, respondi, tu é que és infeliz.
- Infelizes e loucos são vocês, pois ainda preservam os odiosos
mandamentos do velho Deus, perpetuando no vosso seio o mal
281
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
e a dor humana. Sem a terra, sem a vossa culpa, o homem seria
um ser imortal e feliz, ou não existiria.
- A tua, a vossa culpa, fez do homem um escravo desprezível,
mortal, infeliz!
Ao ouvir estas minhas duras e, porventura, cruéis palavras, a
mulher curvou-se sobre si mesma e chorou amargamente. Depois respondeu:
- Vem, vem comigo, tu estás, para além disso, doente de pura
beleza e de imortalidade!
- Eu conduzir-te-ei àquele oásis solitário e farei com que conheças e admires aquele jovem Deus eternamente adolescente.
- Ele está vestido de ervas e de flores pela manhã, e pela noite
envolve-se num belo véu de ouro.
- Toca na sua estranha lira canções de amor e tem o sorriso
dos Anjos.
- Poderás amar nele a beleza pura e admirar a eterna juventude!
- Vem, vem vê-lo!
- Eu fui enviada por ele.
- Sou a sua sacerdotisa...
***
Quando ela terminou de falar, o meu coração – contra toda a
minha vontade – batia descompassadamente.
Qualquer coisa insólita, nunca antes experienciada, se passava dentro de mim.
Que coisa era essa? Não sei!
A minha carne tremia...
- Fala-me dela, disse, da virgem e selvagem filha dos bosques.
- Cala-te, cala-te!, respondeu-me ela, não me faças mais falar
dela, não me faças chorar mais uma vez!
- É, portanto, por ela que preservas, retorqui com uma ironia
mal disfarçada, aqueles mandamentos com testemunho de Jesus Cristo.
- Porque me torturas dessa forma? Ela é mulher!, respondeu.
Um sorriso amargo encrespou-se nos meus lábios, e os mús-
282
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
culos da face contorceram-se num espasmo de dor aguda.
A mulher retirou do seu peito uma planta sonífera, que cresce
apenas num jardim maléfico de uma terra distante, e com ela
tocou ligeiramente as minhas pálpebras.
Pouco depois, um doce e profundo mal-estar apoderou-se de
todo o meu ser.
Os meus olhos fecharam-se.
Interrupção de morte. Música de silêncio!
***
Interrupção de morte. Música de silêncio... Terríveis ondas de
escuridão.
Que se passava ao meu redor?
Vi brilhar na escuridão um ponto interrogativo de resplandecência fosforescente.
Um raio de luz branca.
Era o corpo nu e branco de uma mulher pálida e bela, com
quem talvez tenha sonhado, mas que nunca tinha visto.
Chorava!
Pareceu-me ver nela a imagem perfeita da Beleza Humana e
da Dor.
Em pouco tempo, as suas lágrimas inundaram o meu quarto,
transformando-o numa pequena piscina encerrada numa rocha.
Deixei de ver os meus móveis e os meus livros. Tudo em redor
era um oásis verde e florido, através do qual caminhava, com
uma lira na mão, um jovem Deus vestido de ervas e de flores.
Interrupções de morte. Músicas de Silêncio...
***
Interrupções de morte. Músicas de Silêncio...
Que se passava ao meu redor?
Agora, também eu estava nu e a mulher tinha deixado de chorar!
Ria...
Ria, ria, ria!
O meu corpo nu tinha-se entrelaçado com o corpo nu dela, e o
283
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
jovem Deus, vestido de ervas e de flores, tocava, tocava...
Tocava músicas estranhas e misteriosas na sua lira mágica!
Músicas de amor? Músicas de morte?
Não sei, não sei!
Não me lembro...
Tocava, tocava...
***
Interrupções de morte. Músicas de silêncio...
Terríveis ondas de escuridão!
Que se passava ao meu redor? Dentro de mim?!
Via brilhar na escuridão imensas estrelas de ouro.
Quando reabri os olhos, o sol estava a pôr-se e eu estava deitado, imóvel e cansado, na minha cama. Só!
Reentreabri os olhos e vi uma besta monstruosa.
A minha mente voltou ao versículo do «Apocalipse»:
«E a besta que eu vi era semelhante a um leopardo, e os seus
pés como os de um urso, e a sua boca como a de um leão.»
O sol que desaparecia, lançava os seus últimos raios melancólicos contra a biblioteca que continha os segredos da alma
e os voos do espírito dos grandes antepassados.
Na planície longínqua uma flauta tocava, tocava!...
***
Interrupções de morte. Músicas de silêncio...
Que se passava ao meu redor?
Levantei-me vacilante e aproximei-me do espelho.
Vi que tinha uma ferida aberta no meio da face.
A ferida sangrava, e o sangue era vermelho!
Vermelho e quente!
Quem me tinha causado aquela ferida?
Que lábios maléficos e bestiais teriam sugado da minha mente toda a centelha divina?
A ferida sangrava, e o sangue era vermelho!
Vermelho e quente!
284
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
***
«Os seus pés são duas rosas vermelhas, as suas mãos são dois
lírios brancos, os seus olhos são duas pedras preciosas do mar,
a sua boca é uma romã cheirosa, doce e madura.»
***
Encontrei, debaixo da almofada, um par de cuecas de seda
negra manchadas de vermelho e com duas caveiras brancas
bordadas nas laterais.
Entre as cuecas estava um bilhete escrito com uma caligrafia cuidada e estranhamente perfumado. «Eu sou aquela que
preserva os mandamentos de Deus com o testemunho de Cristo, seu filho», dizia o bilhete, e estava assinado: «A Vampira Loura». Depois da assinatura havia uma outra frase duplamente
sublinhada:
«Lembra-te de mim!»
***
Interrupções de Morte. Músicas de Silêncio...
Disseram-me que pelo mundo caminha uma criança pálida,
doente, triste, infeliz!
Eu nunca a vi, mas asseguraram-me que aquela criança é uma
marioneta da natureza: um segundo eu próprio.
Asseguraram-me também que aquela criança, que nasceu do
meu amor com a “Vampira Loura”, não é filha das minhas ideias,
nem da minha vontade.
E eu confirmo tudo isso...
Foi criado por mim num desses momentos bestiais em que o
homem, em vez de ser o senhor da natureza, se torna um servo
abjecto, humilde e vulgar desta.
***
«Os seus pés são duas rosas vermelhas, as suas mãos são dois
285
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
lírios brancos, os seus olhos são duas pedras preciosas do mar:
são duas estrelas de ouro, duas lâmpadas sagradas e santas acesas no sacrílego jardim da vida para revelar o pecado.»
***
Deus está morto, o seu trono foi derrubado, o céu rasgado deixa agora passar as águias para além das fronteiras bíblicas que
dividiam o reino do homem do reino de Deus.
Mas quem destruirá o reino do homem?
Quando nascerá aquele que destruirá, depois de Deus e depois do Homem, as tuas vulgares armadilhas, oh Santa Mãe
Natureza?
***
Disseram-me que pelo mundo caminha uma criança pálida e
doente: triste e infeliz!
Eu nunca a vi, mas asseguraram-me que aquela criança é uma
marioneta da natureza: um segundo eu próprio.
***
Crescei e multiplicai-vos.
Os pontos de contacto que o rebelde, místico e santo nazareno, teve contigo – oh velha Mãe Natureza – são os teus pontos
mais abjectos...
Mas agora, quem se insurge contra ti não é o rebelde místico e
santo, mas o ateu e iconoclasta que se insurge contra as tuas leis.
E só quando o espírito niilista deste novo rebelde tiver compenetrado nas multidões, dominando o povo através da conquista de todas as almas humanas, é que a humanidade encontrará finalmente o caminho que poderá conduzi-la em direcção
aos cumes brancos do seu melhor e mais glorioso fim.
Nihil, nihil!
Oh brancas flores de neve, oh Morte!
Oh morte, oh Eternidade!...
286
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
A Amante do Demónio
Surgiste do negro abismo
ou desceste das estrelas?
O demónio encantado segue
as tuas saias como um cão.
C. Baudelaire
Mal tinha chegado à cidade dos pequenos de espírito, não
demorou para que se contassem as histórias mais fantásticas e
estranhas sobre Ela...
Alguns diziam que era a tenebrosa filha do inferno, enviada
para tentar levar as criaturas de Deus ao pecado: outros afirmavam, ao invés, que não seria mais do que uma luminosa filha do
céu, enviada pelo grande génio celeste para induzir as criaturas
perversas à mais pura virtude através dos rituais divinos.
***
Num dia de grande festa, passou pela cidade um velho estrangeiro. Era um venerável, com uma longa barba grisalha, que
os cidadãos chamavam de Sábio por ter sido mineiro, ao longo
da sua vida, e ter extraído das vísceras da terra os tesouros mais
preciosos. A mulher foi-lhe apresentada e foi-lhe perguntado se
alguma vez a teria conhecido.
O ancião respondeu afirmativamente, acrescentando que a
tinha conhecido durante a sua juventude muitos quilómetros
abaixo da superfície terrestre...
***
Num outro dia de festa, no qual se tinham aceso grandes fogos
de glória em honra de um anão que tinha casado com a filha do
Rei, passou um segundo estrangeiro.
Era um mergulhador de olhos doces e profundos, que tinha
explorado todos os abismos do mar ao longo da sua vida.
287
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Foi-lhe apresentada a mulher e foi-lhe perguntado se a conhecia.
O velho mergulhador respondeu afirmativamente e acrescentou que a tinha conhecido quando era jovem numa cidade
branca e simétrica, feita de mármore, afundada na profundidade cavernosa de um golfo desconhecido, onde nenhum
navio tinha alguma vez podido aportar devido aos temporais
que por lá eternamente se agitam. Acrescentou ainda que os
habitantes daquela cidade de mármore branco estavam todos
mortos e que Ela vivia só – impura e perversa – e imperava sobre todos aqueles seres puros e perfeitos...
Alguém pensava: Como é possível que aqueles velhos afirmem
tê-la conhecido quando ainda eram jovens, se ela ainda parece
ser jovem hoje em dia?
Uma rapariga de olhos inspirados, denominada «a Santa», e
como tal temida e amada, jurou, pelas sagradas chagas de Jesus
Redentor, que aquela estranha criatura era uma antiga amante
do demónio e que por isso nunca teria morrido nem envelhecido.
Por isso mesmo, era maldita!
***
Contavam-se muitas histórias sobre si, mas tendo chegado,
misteriosamente, a meio da noite, nunca ninguém soube com
certeza quem era Ela realmente...
***
Do lado direito da «Cidade dos espíritos pequenos», corria
uma grande torrente denominada o «Rio Maldito», estendendo-se pela sua margem direita uma selva abandonada, e no
meio desta existia um velho castelo abandonado que desde há
séculos ninguém habitava.
As pessoas chamavam àquele castelo: «A velha caverna do
príncipe assassino».
Mas a verdadeira história era esta:
No tempo em que a aurora do cristianismo surgiu no horizon-
288
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
te humano, o castelo encontrava-se habitado por um príncipe
pagão e pela sua jovem cônjuge:
Um dia, o príncipe, ao regressar da caça, encontrou a sua jovem esposa nos braços de um ainda mais jovem sacerdote de
Deus, um ritual ao amor que não era um ritual divino...
O príncipe pagão retesou o arco sacrílego contra o casal de
enamorados e atirou os cadáveres nus para a torrente.
O príncipe foi cremado sobre as chamas de uma pira; o seu
castelo foi excomungado e o nome da torrente foi mudado de
“Letícia” para “Rio Maldito”.
Os séculos passavam, mas a lenda sobre o castelo do príncipe
pagão passou de geração em geração, por isso uma história de
há milhares de anos parecia uma história de ontem.
***
Idiota, o grande Rei da cidade dos espíritos pequenos, mandou prender a jovem estrangeira e arrastá-la até si...
Trazida até si, o Rei sentou-se no seu trono e disse lentamente:
- Eu, Idiota, Rei desta cidade, represento o espírito e a vontade
do meu povo. Um povo moderno que pode dizer, com grande
modéstia, ter chegado ao auge da perfeição suprema.
A mulher fez uma careta irónica, e o Rei continuou:
- Eu não quero saber nem de onde vem, nem para onde vai;
impede-me a minha superioridade, nem quero saber a sua origem, como também não me interessam as suas necessidades.
Sou bastante moderno e inimigo da sinistra anarquia espiritual
para me poder ocupar de tudo isso. Sei que perturbou a paz do
meu povo e retirou-lhe a felicidade!
A mulher fez novamente uma careta amarga e irónica, mas o
Rei continuou maliciosamente:
- Eu não a lançarei para debaixo da terra, nem para os abismos
do mar, onde os sábios e os profetas dizem tê-la conhecido,
nem a atirarei para os braços do Demónio dos quais parece ter
vindo.
- Eu irei exilá-la no velho castelo do «Príncipe assassino», dessa forma poderá viver na companhia dos espíritos do mal e ou-
289
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
vir, pela noite, as vozes dos amantes divinos assassinados que
se procuram, em vão, pelas águas do «Rio maldito».
***
A jovem estrangeira foi exilada no castelo nessa própria tarde,
e o discurso que o Rei lhe fez foi, desde logo, publicado e afixado nos muros da cidade.
***
Na moderna cidade dos espíritos pequenos, também vivia um
jovem de cabelos negros e compridos que, triste e pensativo,
tinha uma vida solitária...
***
Quando o povo em festa se dirigiu à janela do Palácio para
aclamar o Rei devido ao tratamento dado à misteriosa jovem
estrangeira, o jovem pálido e pensativo ficou só, à parte, a
meditar. Tudo aquilo que tinha sido dito ou que se dizia sobre
a história daquela pretensa amante do Demónio, tinha-o fascinado...
***
Por três dias e três noites, a cidade esteve em festa. Por três
dias e três noites, os sinos soaram e fogueiras foram acesas.
Por três dias e três noites, os pequenos de espírito gritaram:
- Viva Idiota, o grande Rei!
E o Rei gritou:
- Vivam os pequenos de espírito, viva o meu povo!
Mas, por três dias e três noites, o jovem chorou...
Os ricos ofereceram vinho, pão e mel aos pobres, e estupraram
as mais belas das suas virgens filhas.
Os pobres, comovidos e admirados, choraram de uma alegria
sincera perante tanta bondade...
290
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
***
Quando o povo notou que o jovem não tinha participado na
festa, invectivaram-no, e o Rei mandou-o prender por três meses...
Mas durante os três meses de duro aprisionamento, o jovem
não parou de pensar por um instante sequer na bela e misteriosa estrangeira que tinha sido exilada longe da cidade, no castelo
do príncipe pagão...
***
Libertaram-no numa tarde de Setembro, mas não permaneceu mais na cidade...
Foi para o campo, jantou peixes fulvos e mel dourado e depois adormeceu debaixo de uma árvore a sonhar com a bela
estrangeira.
Quando, pela manhã, a aurora o despertou, levantou-se sorridente e caminhou aos primeiros raios de sol.
Atravessou uma floresta perfumada por tílias e pinheiros e
continuou até chegar ao castelo onde a «Amante do Demónio»
estava exilada.
Escondeu-se devido a uma serviçal ignorante que guardava o
castelo e subiu a um carvalho cujos ramos pousavam próximo
de uma janela...
Através dos vidros da janela fechada podia ver a jovem estrangeira nua, contemplando-se diante do espelho.
- Oh, minha obscura e profunda melancolia, eis o teu raiar e
a tua luz. Oh, minha melancolia, ri alegremente!, disse o jovem
para si mesmo enquanto olhava entre os ramos, ao mesmo
tempo que nos seus olhos se perfilavam os fosforescentes raios
de uma nova luz.
***
Nunca ninguém soube quantos dias, anos, séculos, os dois
permaneceram fechados no velho castelo do príncipe pagão.
291
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Apenas que numa noite evadiram-se do castelo, ateando-lhe
fogo, depois de terem morto os dois guardas.
Dirigiram-se depois para a cidade dos pequenos de espírito e
incendiaram-na por toda a parte.
Nenhum inferno místico poderia ser mais terrível e trágico.
Desde a mais pequena casa até ao castelo, tudo se transformou
em chamas ardentes.
Pobres e ricos arderam juntos no mesmo incêndio.
Quando, pela manhã, a aurora se levantou no horizonte com
o seu raiar de ouro ensanguentado, as cinzas da cidade serviam de leito nupcial a um furor infernal e a um Demónio adolescente.
***
Foi então que o Anticristo se ergueu das profundezas dos abismos para gritar aos homens que ainda povoavam as outras partes do mundo:
- Venham e olhem! Nunca nenhum outro Deus de amor foi tão
belo e poderoso, nunca nenhum amplexo foi tão sublime...
E uma criança curiosa que primeiro chegou perto do Anticristo disse:
- Oh filho do Homem, começou uma nova Era. Vai e mata o
teu pai!
***
Vejo passar diante de mim um velho decrépito. Uma criança
persegue-o velozmente cabisbaixa e com uma faca na mão...
Vejo outros velhos que fogem desesperadamente, todos perseguidos por crianças armadas.
Mesmo o meu filho me persegue...
É a terrível revolta dos inocentes que o espírito subterrâneo do
Anticristo preparava nas infindáveis regiões do subsolo desde
há milhares de séculos...
292
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
***
Como está radicalmente destruída pelas chamas a velha cidade dos pequenos de espírito!
E como ri a «Amante do Demónio», deitada sobre as suas cinzas na companhia do jovem pensador...
Nunca tinha visto um riso de mulher tão belo e tão alegre.
O Monstro da Noite
O viajante encontra-se agora numa atmosfera límpida e fresca e pode contemplar o sol, enquanto que debaixo dele tudo se
perde novamente na escuridão da noite.
A. Schopenhauer
I
Campos verdejantes de cultivos não amadurecidos.
Jardins de flores brilhantes.
Vapores de um perfume que vagueia pelos caminhos da luz.
Cantos de toutinegras entre as folhas verdes – bem verdes –
dos bosques.
Festas de sol e de sonhos...
Lembro-me...
Lembro-me como se fosse uma breve história de ontem...
Sim: lembro-me!
II
Era a minha primeira Primavera,
E foi num desses dias que Ela veio até mim.
Quem?
A virgem oriental!
Veio numa tarde em que o horizonte estava ornamentado de
293
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
prata, em que o vento estava morno...
Ela veio até mim...
Veio porque a esperava.
Veio porque a tinha chamado.
Veio trazer-me o Verão, o Verão do Oriente!
III
Estava toda vestida de vermelho. De um lindo vermelho de
sangue e fogo.
Tinha um chapéu negro na cabeça.
Negro como o ébano mais negro.
Negro como a morte mais negra.
O seu vestido vermelho estava cravejado de estrelas negras.
O seu chapéu negro estava cravejado de estrelas de ouro.
Ela veio até mim.
Veio trazer-me o Verão, o Verão da minha juventude.
Tinha duas mãos de ouro e dois pequenos pés de prata.
Tinha dois olhos profundos, dentro dos quais dançavam duas
estrelas e um destino.
Ofereceu-me um cálice de mel e um cacho de tâmaras douradas.
Depois beijou-me. Beijou-me e abriu-me os braços...
Eu inclinei a cabeça no seu peito virgem e sonhei...
***
Sonhei com o misterioso aparecimento de uma esplêndida
manhã em que o homem ferido e a humanidade dolente se erguiam, sangrando, da assustadora escuridão da noite trágica,
subindo em conjunto aos Cumes da aurora para celebrarem a
sua livre união, e comunicando entre si através do puro orvalho
que eu via encher e fazer vibrar os cálices frementes das flores.
***
Sonhei com o misterioso aparecimento de uma esplêndida
294
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
manhã em que as mulheres se levantavam, livres e nuas, do ardente leito da aurora, feito de ouro e de chamas, para correrem
em direcção ao espírito ferido da humanidade que sangrava e
conduzi-lo até ao divino milagre da Beleza, no qual o «Eu» livre
e ateu é capaz de criar, através dos segredos da arte, aquilo que
está unido e compenetrado na religião mística da vida, da natureza e do amor.
Sonhei...
E no sonho vi um homem que se contorcia nas chamas de um
espasmo de génio, oculto e secreto, nascido de um profundo e
voluptuoso sofrimento criador, ao qual a Vida oferecia, sorridente, uma coroa entrelaçada pelas flores da alegria e os louros
da felicidade.
***
Sonhei...
E no sonho vi a Beleza estender as suas grandes asas pelo
mundo, e toda a Terra encher-se de sons estranhos, de luz suprema, de verdade eterna, de canções imortais.
***
Sonhei...
Sonhei com o aparecimento de uma milagrosa manhã em
que todos os seres animados acordavam no mistério da Aurora,
sem rancor na alma e sem ódio e tristeza no coração, e que cada
homem tinha a sua lei e o seu sonho e caminhava com os seus
grandes olhos postos no Sol!
Sonhei com o aparecimento de uma manhã em que homens
e mulheres se levantavam pela Aurora com um fogo sagrado de
amor aceso no coração, com o fogo puro da inocência infantil
aceso nos olhos...
Sonhei...
Sonhei com a reconciliação dos homens com as flores, com a
terra, com a natureza.
Sonhei com a estrondosa e alegre gargalhada de Dionísio,
295
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
acompanhada pelo som vibrante e fremente da imortal lira de
Orfeu...
***
Quando acordei, vi que a pequena virgem oriental chorava
lágrimas amargas ao mesmo tempo que me beijava.
Os meus olhos abriram-se ao sol da realidade e eu pude ver
a última visão do meu sonho alado a correr, rápida e veloz, sobre as ondas assombrosas e vermelhas de um imenso mar de
sangue, para depois se esconder por detrás de grandes montanhas de cadáveres humanos, ao pé dos quais ardia um fogo
terrível.
Poucos dias depois, a virgem oriental morreu nos meus braços, e no momento em que Ela expirava, uma sombra assustadora, gigantesca e negra, apareceu diante de mim e gritou
amargamente.
Aquele era um dia do meu primeiro Verão.
IV
Procurava desesperadamente o Sol e a luz quando me precipitei nas medonhas e contorcidas voragens de um profundo
abismo de trevas.
Neste abismo de trevas encontrei-me com o «Monstro da
noite».
Porque o «Monstro da noite» é o mergulhador de todas as profundezas, o explorador de todos os abismos.
A sua cabeça é um vastíssimo sol, parecido com um disco
de ouro.
Os seus olhos são dois faróis luminosos, parecidos a duas estrelas refulgentes...
Aproximou-se de mim, sorriu e disse-me:
- Eu sou aquele que, depois de vários milénios, atravessou o
reino dos homens superficiais para lhes dizer: Quem de vocês
estiver a meio do círculo, feche os olhos na escuridão e precipite-se no fundo do abismo. Só assim poderá regressar aos ci-
296
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
mos mais altos e abrir os seus grandes olhos diante de um sol
sempre novo!
- Tu és um daqueles que, voluntariamente ou involuntariamente, ouviste o meu apelo, por isso digo-te: Vem!
Agarrou-me na mão e, calados, embrenhámo-nos na «Floresta
dos fantasmas» para a atravessar.
A floresta era vasta e infinda. A oposição dos ventos que ali
existia era terrível.
Os fantasmas berravam, uivavam, assobiavam, gemiam, latiam.
Apareciam monstros de todos os lados que tentavam atacar-nos.
Cada monstro assemelhava-se a um animal que eu conhecia:
lobos, tigres, panteras, mochos, rãs monstruosas, sapos viscosos, serpentes verdes, bestas venenosas.
Alguns apresentavam-se também sob a forma de anjos, mas
por debaixo do seu manto azul e escarlate, reluziam grandes
frascos de venenos verdes e negros.
***
Tinha medo, tremia:
Mas ele, o «Monstro da noite», ria, ria...
Tinha na mão o junco da «Nova sabedoria» com o qual batia
em cada monstro que se preparava para nos atacar, forçando-os a permanecerem longe a berrar para depois morrerem.
***
Chegámos a um ponto da floresta em que não se ouvia mais o
sinistro uivar e o silêncio era profundo como as trevas.
Diante de nós erguia-se uma negra muralha, cujo topo se situava
na abóbada do céu, sem deixar passar qualquer transparência
de luz.
Foi então que o «Monstro da noite» mandou um assobio agudo e terrível.
Pouco tempo depois, uma rocha enorme, tão grande como o
cume de um monte dos nossos Alpes, girou sobre si própria, deixando livre um veio através do qual se alcançava um agradável
297
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
perfume de flores silvestres e um sol esplendoroso.
- Entramos por aqui, disse-me, esta é a porta secreta que nos
leva para além do Bem e do Mal, esta é a porta misteriosa do
meu reino maravilhoso.
***
Entrámos.
Um grande jardim, fulgurante de sol, estendia-se diante de
nós. Imensas sebes de rosas e de espinheiros nadavam selvaticamente no mar do seu perfume, entre o sorriso verde das ervas
e música das mais variadas cores.
Das frondes de todas as plantas, pendia fruta fragrante e madura, e ao longo das alamedas erguiam-se grandiosos monumentos de ouro, de prata e de mármore, em honra e glória dos
grandes antepassados.
***
Quando chegámos a meio do jardim, vi muitos homens da
minha raça deitados à sombra de romãzeiras.
Estavam ali ladrões, ciganos, vagabundos, refractários, boémios, cavalgantes de nuvens, conquistadores de estrelas, cantores do Nada, heróis do impossível, cavaleiros da ilusão, loucos, inassimiláveis, niilistas...
Eram meus irmãos.
O «Monstro da noite» indicou-mo com um gesto feito com a
mão, dizendo-me numa língua nórdica:
- Eis os teus irmãos.
Eu corri para eles e apertei-lhes as mãos.
Eu corri para eles e beijei-lhes as faces.
Eu corri para eles e chamei-os de irmãos.
No meio deles, deitada sobre um leito de rosas, jazia o cadáver
de uma jovem toda vestida de vermelho.
O seu vestido vermelho estava cravejado de pequenas estrelas
negras e o seu chapéu negro estava cravejado de pequenas estrelas de ouro.
298
POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
***
Tinham embalsamado a jovem que tinha conhecido...
Tinha duas mãos de ouro e dois pequenos pés de prata...
Era oriental e era virgem.
A realidade não era o seu reino, disseram-me os meus invulgares irmãos. Depois da sua morte embalsamamo-la para que
assim possa viver no sonho de todos nós, para que assim possa
tornar-se no nosso ser ideal, supremo, imortal!
V
O «Monstro da noite» aproximou-se de uma enorme sepultura
de granito negro, brilhando na cobertura a seguinte epígrafe:
Aqui repousa – Aguardando – O Vento de todos os Ventos – A
Tempestade de todas as Tempestades – O Furacão de todos os
Furacões – o Fogo de todos os Fogos – O Arauto de todos os
Arautos – Aqui – Zarathustra – Repousa – Esperando a sua Hora.
Renzo Novatore
NOTAS
1. Este pequeno poema foi escrito nas montanhas de Reggio Emilia,
depois de ter sido condenado à morte a 21 de Outubro de 1918 pelo
Tribunal Militar de Spezia pelo crime de deserção. (N.A.)
2. Figura mitológica grega, ele era o Senhor dos Ventos e rei da ilha
flutuante de Eólia. O seu poder de controlar os ventos foi-lhe concedido por Zeus, e ele mantinha-os encerrados numa gruta, libertando-os de acordo com a sua vontade ou por vontade dos deuses.
(N.T.)
3. Mefistófeles é uma figura demoníaca da Idade Média, querendo o
seu nome dizer “o que não ama a luz”. Utiliza a sedução e o encanto
para conquistar almas para o Inferno, como acontece na célebre
299
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
lenda alemã de Fausto, notabilizada por Goethe, em que o médico
faz um pacto com Mefistófeles, cedendo a sua alma em troca dos
prazeres da vida. (N.T.)
4. “Retira-te, Satanás!”, é uma fórmula de exorcismo católica da época medieval, possivelmente composta por São Bento de Núrsia no
séc. XV. (N.T.)
5. Referência a Marco Júnio Bruto (85 – 43 a.C.), foi um patrício romano, líder político e militar, pertencente a família dos Júnios, uma
das famílias aristocratas mais antigas de Roma. Ficou conhecido
como um dos conspiradores contra o general e ditador romano
Júlio César, sendo um dos responsáveis directos pela sua morte.
(N.T.)
300
BALADA CREPUSCULAR: PRELÚDIO SINFÓNICO DE “DINAMITE”
Balada Crepuscular:
Prelúdio sinfónico
de “DINAMITE”
Esta é a hora dos meus pensamentos sombrios.
O meu Demónio dorme.
O Demónio vermelho,
da minha alegria infernal,
dorme no misterioso crepúsculo
desta minha alma.
Fumo...
Fumo desesperadamente,
intensamente. Sempre!
Sempre! Sempre! Sempre!
Queria pensar, escrever, cantar...
Mas o meu Demónio dorme.
O Demónio vermelho,
da minha alegria infernal,
dorme no misterioso crepúsculo
desta minha alma.
E os pensamentos não aparecem...
Nem o riso e a maldição!
Esta é a minha hora negra,
de negra melancolia!
***
Olho, distraidamente, para a minha cigarrilha.
301
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Fina, pálida e quente
como uma amante doente.
Vejo-a consumar-se lentissimamente
como a minha vida e os meus sonhos:
como a vida e os sonhos de todos os meus irmãos.
As cinzas caem no chão e dissipam-se. Assim!
O fumo sobe pelo ar, denso e cinzento,
e também se dissipa. Assim.
Em mim não fica
mais que um pouco de nicotina amarela
sobre os lábios amargos. Assim.
***
O meu Demónio dorme.
O Demónio vermelho,
da minha alegria infernal,
dorme no misterioso crepúsculo
desta minha alma.
Olho o Sol!
Vejo-o pôr-se entre dourados redemoinhos
de um belo mar de ouro.
De ouro e de sangue...
Mas o meu coração está corroído.
Corroído por um frio lamento,
sem esperança e sem lágrimas,
sem ódio e sem amor.
Oh, pudesse pelo menos chorar...
pudesse pelo menos imprecar...
Mas, não!
Não! Não! Não!
***
Quem?
Quem me terá feito tanto mal?
Quem é o maléfico artífice
302
BALADA CREPUSCULAR: PRELÚDIO SINFÓNICO DE “DINAMITE”
deste meu sofrer?
Ah mãe... minha mãe...
Se tivesse ainda força
para te poder, pelo menos, amaldiçoar...
Mas, não!
Não! Não! Não!
Porém foste tu – só tu! –
quem me deu a vida,
quem me deu a dor,
quem me deu o Mal!
Mas diz-me:
Não acreditavas na alegria de viver?
Sou, porventura, o filho de tal sonho grotesco?
Ou sou apenas um vulgaríssimo filho
da inconsciência comum?
Mas porque não tiveste então
– naquele dia –,
oh mãe,
a heróica inspiração de bater
VIOLENTAMENTE
o teu ventre prenhe
contra uma pedra dura. Assim!
Porque eu não tinha intenção de ver
o Sol.
Porque eu não queria
esta vida miserável.
Porque sofro tanto, assim...
Oh mãe, choras?
Porquê?
Sentes talvez o remorso
de ter-me criado?
Imaginas talvez o mal
que terrivelmente
me atormenta e me despedaça, assim?
Oh, tivesse pelo menos a força
de poder ainda amaldiçoar-te...
Mas, não!
303
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Não! Não! Não!
Sou demasiado vil!
***
O rio corre e canta...
(o belo rio, tranquilo e alegre)
Corre sobre o seu leito transparente,
de areia macia,
e a sua espuma branca
é uma manta de ouro.
Os rochedos titânicos
lavam os seus flancos graníticos
nas tuas águas claras
– oh rio solitário –,
e sentado à tua margem
Eu
olho as folhas verdes
que, adornadas de sombra e de luz,
são acariciadas pelo vento. Assim!
Olho. Penso e recordo...
Mas a minha alma é misteriosa
e, à minha volta,
a noite chora. Negra.
Não amo mais.
Não acredito mais!
***
Quem?
Quem me terá feito tanto mal?
As mulheres e o amor?
Os homens e a amizade?
A sociedade e as suas leis?
A humanidade e a sua fé?
Talvez todos!
Talvez ninguém!
304
BALADA CREPUSCULAR: PRELÚDIO SINFÓNICO DE “DINAMITE”
Não sei...
Sinto-me tão mal...
Tão mal! Tão mal! Tão mal!
Aqui... na alma!
***
O meu Demónio dorme...
Dorme no misterioso crepúsculo,
desta minha alma.
Como estou triste...
Triste e melancólico.
***
Queria ter novos amigos.
Verdadeiros novos amigos.
Necessito confiar
(a qualquer um)
a minha negra melancolia.
Mas não tenho amigos.
Estou só!
Só com a minha
MELANCOLIA.
Só com o meu Destino.
Só, só assim!
***
O meu Demónio dorme.
Na minha mente atravessa-se
uma Recordação.
Recordação de um Sonho.
Sonho de juventude:
“Homens fortes e felizes,
abraçados, enlaçados
a corpos de mulheres nuas,
305
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
belas, alegres e felizes,
festejadas e glorificadas
por crianças inocentes e felizes.
Depois:
Flores e sol.
Músicas e danças.
Estrelas e poesias.
Canções e amor.”
***
O meu Demónio dorme.
Na minha mente atravessam-se
clarões amarelados,
negros e esverdeados,
da torpe realidade!
Da realidade que passa...
“Uma mescla de brutos e brutas.
Uma junção de hipocrisia e ignorância.
Uma mistura de cobardia e mentira.
Um conjunto de esterco e lama.”
Ah, não!
Não! Não! Não!
Eu sofro tanto!
Tanto! Tanto! Tanto!
***
O sol pôs-se.
(o belo Sol de ouro)
O Anjos da noite
estão a morrer...
As folhas verdes são caveiras,
frias, escarnecedoras...
O rio (o belo rio transparente)
é agora uma serpente negra
assustadoramente estendida
306
BALADA CREPUSCULAR: PRELÚDIO SINFÓNICO DE “DINAMITE”
entre as pedras dos rochedos.
Túmulo lúgubre e silencioso.
Túmulo lúgubre e negro.
***
A minha cigarrilha apagou-se...
(a minha cigarrilha pálida e quente
como uma amante doente)
As cinzas dissiparam-se.
O fumo também.
Em mim não fica mais que um pouco
de nicotina amarela
sobre os lábios amargos:
como na vida e no sonho. Assim!
***
O meu Demónio vermelho desperta
no misterioso crepúsculo
da minha alma.
Sinto um fio de sangue amargo
a escorrer-me sobre os lábios amargos...
Tenho um pressentimento trágico...
Que acontecerá durante a noite?
Mas... as estrelas
– as queridas estrelas –
irão ver.
Oh, se pudesse rir e amaldiçoar
apenas mais uma vez...
Mas vejo uma candeia sinistra (uma fogueira?)
brilhar na escuridão da noite.
Deverei ATACAR!
Lamento...
Lamento! Lamento! Lamento!
Eu sou uma estrela que se transforma
num pôr-do-sol trágico.
307
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
308
APÊNDICE I: RENZO NOVATORE FOI ASSASSINADO
Renzo Novatore foi
assassinado
Iconoclastas, irmãos na alma e na dor, o nosso Renzo caiu,
derrotado pelo furacão. A notícia chegou-nos com poucos detalhes, mas, apesar disso, dilacera-nos o espírito e o coração.
Mesmo os iconoclastas não ficam calados na dor. Somos os
eternos hereges, os negadores de tudo, mas na luta que eleva
a paixão e que tudo quer esmagar e destruir, temos irmãos dignos de todas as angústias e de todo o bater do nosso coração.
Amávamos o Renzo, porque era uma mente fogosa e inteligente, que tinha o “demónio” do génio e porque era uma alma
grande, boa, audaz e generosa.
Vivia há alguns meses à «margem» desta sociedade abjecta e
nojenta... Deixou de o fazer: desapareceu: incendiou a alma no
seu Ideal.
Nós que não temos bandeiras para dobrar, nós que não temos
jardins onde colher flores para espalhar pelo seu corpo, que nos
foi devolvido inanimado por uma qualquer mão assassina, não
somos capazes de pronunciar a nossa dor agonizante, porque é
demasiado profunda.
Aquela dor que ele amava por não ser cobarde.
G. Romiti
Il Proletario, Ano I, n.5, Pontremoli, 12 de Dezembro de 1922
309
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
310
APÊNDICE II: NO SEGUNDO ANIVERSÁRIO DA MORTE DE RENZO NOVATORE
No segundo
aniversário da
morte de Renzo
Novatore
...Com o rochedo,
o tempestuoso furacão
e as vagas do Oceano.
Era o cervo inalcançável, a sublime voz anunciadora, o grito
precursor, o centauro arauto da rebelião, da força pensadora
hercúlea.
Magnífico criador de beleza e possuidor do delirante amor supremo.
Ele, Renzo Novatore, o tribuno provocador da acção e o sonhador da poesia demolidora do grotesco, da funda que ataca a
injúria e as expressões verbais onanísticas.
Sempre à acção, pela acção, abrindo caminho através da luta,
com esforços titânicos, e alcançando os cumes cantando a sua
vitória com uma violência lírica, superando de forma valorosa
a exaustão.
E caminhando, forte e belo, à luz do amanhecer que chega,
beijado pelo nascente Febo1 e pelo amplo manto azul, entre as
selvas profusas de maravilhosas conquistas, para ele tão caras,
tocado pelo verde inexplorado, pioneiro da vitória.
Sem titubear, ultrapassava os seus obstáculos com ligeireza;
311
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
com perigo e cheio de beleza, lutava, alcançando a sua meta
sem cansaço, ocupando vivazmente o espaço reservado aos homens livres.
Porque ele era livre,
À margem dos foras-da-lei.
Com a natureza que o criou.
À natureza se dava.
Prazenteiramente.
Recebendo dela os beijos que abundantemente lhe dava.
E desses beijos sugava a melhor parte, da qual extraia força
para a luta quotidiana.
Ele.
O caminhante subversor da demagogia vã.
O poeta da acção libertária vitoriosa.
Vitorioso também na derrota, porque ao cair sabia golpear antes de contrair os nervos quebrados.
E quando tudo o que diz respeito à vida se torna um deserto, e
bate as asas por vezes branca como a neve e outras vezes avermelhada como o sangue, que é tudo: pena, amor e glória, então
– como a flor do vento, que desaparece, cresce e é soberana da
criação – ergue-se um grito.
O grito que convida à rebelião.
O grito do poeta vitorioso.
O grito imperial do artista aristocrático da acção.
O grito de Renzo Novatore.
Mas como o Outono e a Natureza, que se monda lentamente
preparando-se para o longo repouso, triste e gélido, e que sustém a luta dos filhos do sol, enche a sua exuberante e destemida
juventude de nostalgia.
E entregando-se à corrida vertiginosa, invocando a vinda de
novas lutas.
Forçou a natureza.
Que não lhe foi surda.
E que lhe concedeu tudo.
312
APÊNDICE II: NO SEGUNDO ANIVERSÁRIO DA MORTE DE RENZO NOVATORE
E a luta veio.
Mas foi uma luta outonal, fustigada por um vento gélido.
Mas ele que a quis, enfrentou-a.
Heroicamente.
Até que caiu como porta-estandarte de uma nova vida, procurando manter bem alta a sua chama.
Cai e, num último esforço, derrotou o Outono amarelo fustigado por um vento gélido.
E com a morte conquistou a sua última vitória.
Cala-se a sua lira rebelde enquanto a chama luzidia se erguia
no foro por ele construído.
Cala-se a sua lira rebelde e o grito percursor saciou mais uma
vez o nosso sentir elevado da sua poesia.
De Renzo Novatore, o Hércules imolado pela acção libertária.
Nivangio Donisvere (Severino di Giovanni)
L`Avvenire, Buenos Aires, Ano II, n.21 de 5 de Dezembro de 1924
NOTAS
1. Deus romano, equivalente a Apolo na mitologia grega. Era a personificação da beleza e da luz, do ideal estético por excelência. (N.T.)
313
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
314
APÊNDICE III: RENZO NOVATORE
Renzo Novatore
O anarquismo é o esforço heróico que o indivíduo realiza para
se libertar de todos os entraves que oprimem o seu espírito e o
seu corpo – para destruir todas as leis, religiões, morais –, para
reagir contra a baixeza conformista e servil das multidões abúlicas e sem vigor – para viver intensamente a sua vida para lá do
bem e do mal. Na espontaneidade inflamada de um sul tropical
ou de uma Grécia embriagada de Dionísio e de Afrodite.
Este esforço só é conseguido por poucos, um pequeno grupo
de malditos que persegue e condena a humanidade repugnante
das ovelhas e dos pastores. É por isto que o anarquismo é um
sentimento aristocrático, irracional e anti-histórico.
Se este sentimento, já abafado pelo peso dos milénios na natureza de alguns – se este sentimento se revelasse numa maioria, seguir-se-ia a morte dos deuses, a luta devoradora contra
as forças de um misticismo tirânico, a anomia universal no seio
da qual os indivíduos, livres de qualquer obstáculo espiritual e
material, desenvolveriam novas relações, de todas as maneiras
e segundo as necessidades, instintos e ideias, manifestando-se
em diferentes instantes. Não existiria mais lei, regra, princípio,
que todos devessem respeitar e o equilíbrio resultaria da capacidade de todos os homens se defenderem e conservarem a
sua liberdade pessoal. Mas a maioria está imobilizada na triste
cama de Procusto1, no sono estupidificante do esclavagismo.
A maioria só acordará tardiamente ou talvez não acorde nunca. Apesar de todos os esforços daqueles que agitam a tocha. E
assim o anarquismo continua, na fuga do tempo, como o poe-
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
ma titânico dos “anormais” e dos “insatisfeitos”, como a luta
desesperada da minoria e dos raros que, à existência pacífica e
sem cor do resignado, preferem a agitação tempestuosa, o espasmo agudo, a batalha insensata contra a totalidade, a alegria
amarga da conquista conseguida pela audácia – o prazer divino
do carpe diem e o beijo gelado da morte. E mortos, ficam mais
vivos que nunca. Porque a imortalidade os acolhe no seu seio.
***
Estas ideias, Renzo Novatore e eu, defendíamo-las em 1920 na
revista Iconoclasta, contra os pontífices solenes da ordem actual,
cristã e burguesa, e contra os profetas inspirados da ordem futura
apresentada sob o aspecto de um Leviatã onde o rebanho organizado e os seus pequenos santos abafam o indivíduo em nome
da colectividade. Os profetas vermelhos e negros cobriram-nos de
injúrias. Os pontífices burgueses “retiraram-nos” da circulação. Eu
fui preso. Abele Riziere Ferrari, que assinava os seus textos com o
pseudónimo Renzo Novatore, foi morto numa luta com os esbirros
governamentais. Com ele desapareceu um artista genial, um jovem
e grande rebelde – um indomável que fez sua a sentença remis non
velis. Soberba, estrondosa, maravilhosa, como uma cascada incendiando-se sob o abraço louco do Sol, a sua poesia – rica de imagens
e de sentimentos, de cor e de paixão – exprimia as necessidades
da sua natureza vulcânica, a sua sede de sensações violentas, de
orgias loucas, de sublimações espirituais, o seu apetite intenso pela
vida. “Eu sou um poeta estranho e maldito – escrevia – tudo o que
é anormal e perverso suscita em mim um fascínio doentio. O meu
espírito, borboleta venenosa de aparências divinas, é atraído pelos
perfumes pecaminosos emanados pelas flores do mal…”
Queria ser “a águia de todos os cumes e o mergulhador de
todos os abismos.” Como Nietzsche, como Baudelaire, como
D’Annunzio, sentia a necessidade de aceitar toda a vida na sua
rica diversidade, sem exclusão nem limitação. Sentia que para
viver verdadeiramente, é conveniente viver pelo pensamento e
pelos sentidos – usufruir dos prazeres do espírito, mas também
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APÊNDICE III: RENZO NOVATORE
dos da carne – e de usufruí-los todos ao mais alto grau. Compreendia que, de acordo com o momento, o homem deve fazer
de si um deus ou um bruto, porque todas as experiências têm
o mesmo valor, no sentido que são todas necessárias para nos
fazerem provar as diversas emoções oferecidas pela existência.
Irracional, seguia o seu próprio instinto, sabendo bem que este,
como qualquer outra tendência natural, empurra o indivíduo
para o seu verdadeiro interesse. Ria das teorias áridas que são
destiladas pela razão fria e que querem modificar, corrigir e ordenar a vida sem outro resultado que empobrecê-la e torná-la feia.
Renzo Novatore declarava a alto e bom som que só libertando-se de todos os preconceitos, dogmas e regras que o rebanho
criou para destruir a independência do pensamento e da acção
individual, é que o eu consegue as condições nas quais se revela
criador soberbo, original. A sociedade qualifica de delito a revolta do forte que não se resigna a submeter-se aos entraves e
às mentiras aceites cegamente pelas massas. Mas é justamente
esse crime que o individualista deve perpetrar para viver a sua
vida, imediata e completamente, ultrapassando todas as barreiras, quebrando todas as correntes, conquistando todas as
alegrias às quais o seu coração aspira.
“A minha alma é um templo sacrílego onde soam bem alto os
sinos do pecado e do crime, com ênfases voluptuosos e perversos
de revolta e desespero”. Empurrado pela chama que inflamava o
seu sangue, insurgiu-se heroicamente e foi morto perto de Génova, em 1922, com 33 anos. Caiu, olhos cheios da visão fantástica da bacante divina com seios elevados e com cabelos ao
vento. Apenas deixou duas pérolas poéticas: Al di sopra dell’arco
(Por cima do arco) e Verso il nullo creatore (Para o nada criador).
Os seus outros escritos perderam-se. Ninguém fala mais dele. O
anarquismo bem pensante tem vergonha do rejeitado.
Enzo Martucci
L`Unique, n.15, Novembro de 1946
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
NOTAS
1.
Personagem mitológica grega, ele era um bandido que vivia na
serra de Elêusis. O seu mito fala-nos de uma cama de ferro que
oferecia aos viajantes para descansarem e à qual estes se deveriam
ajustar. Se excedessem o tamanho da cama, ele amputava esse excesso, e se, pelo contrário, fossem demasiado pequenos, eram esticados até que ficassem ajustados a ela. Para que as suas vítimas
nunca se pudessem ajustar à cama, ele utilizava a artimanha de ter
duas camas de tamanhos diferentes que oferecia de acordo com o
tamanho dos viajantes. Foi Teseu que terminou com o terror que
infligia às suas vítimas, cortando-lhe a cabeça e os pés. (N.T.)
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“Todas as sociedades tremem quando a altiva
aristocracia dos Vagabundos, dos Únicos, dos
Inacessíveis, dos dominadores do ideal, e dos
Conquistadores do Nada, avança desinibida.
Vinde, pois, Iconoclastas, avante!”

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