Livro Artes Visuais Sergipe: Conexões 2010

Transcrição

Livro Artes Visuais Sergipe: Conexões 2010
ARTES VISUAIS SERGIPE
CONEXÕES 2010
Ivan Masafret (Org.)
Antônio da Cruz
Cauê Alves
César Romero
Clarissa Diniz
Janaina Melo
Léo Mittaraquis
Zeca Fernandes
ARTES VISUAIS SERGIPE
CONEXÕES 2010
Aracaju, 2010
SOCIEDADE DE ESTUDOS MÚLTIPLOS,
ECOLÓGICA E DE ARTES.
DIRETOR PRESIDENTE
Carlos Roberto Britto Aragão
DIRETORA DE CULTURA E ARTES
Cita Domingos
COORDENADOR DO PROJETO
Ivan Masafret
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO ELETRÔNICA
Gabriela Etinger
REVISÃO TÉCNICA
Najara Lima
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
A786
Artes visuais Sergipe : conexões 2010 / Ivan Masafret
(Org.). – Aracaju : Sociedade Semear, 2010.
298 p. : il.
ISBN: 978-85-63988-00-3
1. Artes – Sergipe. 2. Arte moderna – Sergipe. 3.
Arte pública. I. Masafret, Ivan.
CDU 7(813.7)
Este livro é de distribuição gratuita, venda proibida. Foi concebido
com recursos públicos proveniente do edital Conexão Artes Visuais
MInC Funarte Petrobras 2010.
O Conexão Artes Visuais possibilita a artistas, curadores,
pesquisadores e espectadores participar de uma grande
rede de troca de ideias e experiências no campo das
artes visuais. O programa — realizado pela Funarte com
patrocínio da Petrobras, por meio da Lei Federal de Incentivo
à Cultura — já se disseminou por todo o Brasil, alcançando
grandes centros urbanos e municípios menores.
Em 2010, os trinta projetos viabilizados pela segunda
edição do programa ampliaram esse intercâmbio. Dois dos
proponentes contemplados publicaram seu próprio edital
para convocar propostas de todo o país, uma novidade
que torna o Conexão ainda mais democrático. Quarenta
cidades brasileiras recebem exposições, intervenções,
oficinas e debates. Além disso, livros e websites reúnem
textos críticos e acervos artísticos, de forma a fomentar a
documentação e a reflexão.
Esse conjunto reflete a diversidade de linguagens hoje
presente nas artes visuais, da fotografia ao grafite, da
videoarte à instalação. Os artistas e produtores contemplados
promovem eventos de caráter performático, ações de difusão
da cultura digital, pesquisas que integram arte e ciência, além
de atividades que fazem circular bens culturais e seus criadores
por diversas regiões do país. As ações são registradas pelos
proponentes em textos, fotos e vídeos. O material abastece
o site do Conexão e servirá de base para a produção de um
catálogo, o que garante a difusão dos resultados para um
público ainda mais abrangente.
A primeira edição do programa viabilizou, em 2008, cerca
de 300 atividades, oferecidas gratuitamente a mais de 80 mil
pessoas, em 42 cidades. Para nós é um grato prazer saber
que muitos desses projetos continuam a evoluir, incentivando
o trabalho de outros artistas e atraindo novos públicos para
as artes. Esperamos que o “Artes Visuais Sergipe – Conexões
2010” siga essa trilha de sucesso, propiciando cada vez mais
olhares diversos para as artes visuais no Brasil.
Sérgio Mamberti
Presidente da Funarte
Em meados de dezembro de 2008, a Sociedade Semear
executou o projeto Artes Visuais Sergipe: Conexões 2008,
patrocinado pela Fundação Nacional de Artes – Funarte.
O projeto abriu um canal de comunicação entre os artistas
sergipanos, estudantes e amantes das artes visuais com
profissionais que trabalham com o mercado de artes no
Brasil e no mundo. Além desses encontros, o projeto
propiciou diálogos individuais dos artistas com esses
especialistas e, principalmente, fomentou a formação de
um grupo de estudos sobre a arte contemporânea.
As discussões ocorridas no grupo e o sucesso do projeto
Artes Visuais Sergipe: Conexões 2008 permitiram a
construção coletiva e posterior aprovação do projeto Artes
Visuais Sergipe: Conexões 2010, no edital do Ministério da
Cultura - MinC / Fundação Nacional de Cultura - Funarte,
nessa edição com o patrocínio da empresa que mais investe
em cultura e no potencial do povo brasileiro, a Petrobras.
Para essa edição, a equipe da Sociedade Semear, sob as
coordenações da sua diretora de Cultura e Artes, Cita
Domingos, e do sociólogo Ivan Masafret, contando com a
colaboração do grupo de estudos, convidaram especialistas
brasileiros para proferirem palestras, discussões ou batepapos; organizaram as exposições Junto de Oito e Abstratos
e fizeram o lançamento de revistas especializadas. E, para
concretizar a presença de Sergipe no cenário das artes
visuais, tiveram essa espetacular ideia: a publicação deste
importante documento.
O livro, organizado por Ivan Masafret, é fruto dos textos
produzidos por ele e por Clarissa Diniz, curadora, editora
da Revista de arte Tatuí, membro do coletivo Branco
do Olho, do Grupo de Críticos do Centro Cultural de
São Paulo; Janaína Melo, curadora e coordenadora de
educação do Centro de Arte Contemporânea de Inhotim
(MG); César Romero, artista visual, crítico de arte do jornal
Correio da Bahia e vice-presidente da regional Nordeste
da Associação Brasileira de Críticos de Arte; Cauê Alves,
curador do Clube de Gravura do MAM de São Paulo,
membro do Corpo Editorial da Revista Número, membro
do Conselho Consultivo de Artes do MAM-SP e um dos
curadores da exposição MAM(na)OCA; Léo Mittaraquis,
graduado em Filosofia e mestre em Educação, Antônio
da Cruz, artista plástico, cenógrafo e militante cultural, e
Zeca Fernandes, curador.
É com muita satisfação que apresento, em nome de todos
os que fazem a Sociedade Semear, em especial a equipe
que dedicou-se a esse projeto: Alan Adi, Vanessa Belo,
Thiago Ismerim, Breno Lordello Domingos, Anapaula
Lordello Domingos, Telma Souza Santana, Monica
Domingos e Grazielle Andrade, esta importante obra,
consciente de que essa publicação só foi possível graças
aos esforços e às parcerias daqueles que acreditam e
apostam no potencial e no talento dos brasileiros. Que,
além de uma leitura prazerosa, este livro permita que todos
possam viajar nesse universo de reflexão e sensibilidade,
tão característico das artes e tão distante de muitos.
Carlos Roberto Britto Aragão
Diretor Presidente da Sociedade Semear
SUMÁRIO
1 Apresentação Ivan Masafret
.............................. 15
2 É preciso ser dependente para ser autônomo:
relações pessoais, capital social e sistema de arte
Clarissa Diniz ........................................................ 21
3 Encontro, deslocamento, processo, experiência em
mediação de arte contemporânea Janaina Melo ... 57
4 O artista como trabalhador: mercado e
profissionalismo nas artes visuais César Romero ... 73
5 Escrita ao calor da hora Cauê Alves
..................111
6 Tempos, espaços e trajetos: arte pública
institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret ........157
7 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa
ser contada Antônio da Cruz .............................. 215
8 A cidade sob o olhar interventor de Fábio
Sampaio Léo Mittaraquis .................................... 251
9 Resenha critica da exposição abstratos A arte
abstrata Zeca Fernandes .................................... 289
Apresentação
A ideia deste livro e do projeto como um todo faz jus ao
seu nome, pois foi graças a uma rede multidisciplinar de
profissionais que ele foi se constituindo, se conectando e,
enfim, pôde se realizar. Entretanto, essa não é uma exceção
dentro das ações realizadas pela Sociedade Semear,
capitaneada por Carlos Britto, e nesse caso também pela
diretora de Cultura e Arte, Cita Domingos. É justamente
graças a essa diversidade de pensamentos, olhares e
concepções que concebemos e executamos desafios.
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 surgiu da percepção de
que as informações e discussões trazidas pelos convidados
poderiam alcançar não apenas um público mais amplo,
a partir da propagação e da distribuição dos livros, mas
que notadamente perdurassem por um tempo maior que
o da fala ou da lembrança. Nesse sentido, o texto escrito,
publicado em forma de livro, é uma ferramenta ainda
imprescindível para alimentar de forma ampla, duradoura
e eficaz o público interessado nas artes visuais.
Esta publicação é composta por sete artigos e uma resenha
critica do curador Zeca Fernandes sobre o abstracionismo.
Dos artigos, quatro deles trazem o conteúdo das palestras,
proposta central do projeto: são os textos de Clarissa
Diniz, Janaina Melo, Cesar Romero e Cauê Alves. Outros
três artigos completam a obra e foram concebidos por
convidados, a exemplo do artista plástico Antônio da Cruz
e do filósofo e mestre em educação Léo Mittaraquis, que
se somam a um texto meu sobre arte pública em Aracaju.
A pernambucana Clarissa Diniz aborda no seu artigo É
preciso ser dependente para ser autônomo: relações
pessoais, capital social e sistema de arte uma interessante
discussão baseada nos conceitos de capital social e
amor, além de ressaltar como esses elementos são
constituintes fundamentais da sociabilidade. O texto
flerta com várias áreas de conhecimento, como a
economia, a sociologia e até a biologia de Humberto
Maturana, tudo isso, evidentemente, relacionado às
artes na contemporaneidade e às relações de confiança e
reciprocidade que funcionam nesse sentido.
A experiência com a arte contemporânea pode ser
transformadora, capaz de alterar a percepção do mundo.
A educação artística tende a promover de forma profícua
não apenas essa interação, mas também a construção
pedagógica de um processo de troca entre o próprio
educador artístico e o público; entre o público e a obra
e entre a obra e o espaço artístico. Sendo assim, Janaina
Melo, em seu artigo Encontro, deslocamento, processo,
experiência em mediação de arte contemporânea mostra
sua experiência no Instituto Inhotim, em Minas Gerais,
exemplificando como se dá na prática a capacitação do
profissional de arte educação.
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo
nas artes visuais é o titulo do artigo aqui apresentado pelo
artista baiano César Romero, que descreve o produto do
artista como sendo uma invenção da linguagem. Na arte
nada é por acaso, nada é sem sentido, muito pelo contrário:
muito mais complexo e árduo do que o senso comum
reverbera, o produto do labor artístico é algo intencional
que culmina na publicização da obra. Nesse bojo podemos
inserir a abrangência das artes visuais, o mercado, a
relação com o museólogo e, consequentemente, com os
museus, com o crítico de arte, além da moda como objeto
artístico; sendo todos esses temas abordados de forma
fluida e pedagógica por César Romero.
Crítico de arte e curador de importantes mostras, Cauê
Alves traz em seu artigo Escrita ao calor da hora, um painel
significativo do seu trabalho em 10 textos feitos para
instituições brasileiras de referência nas artes, tanto públicas
quanto privadas. Cada texto é dedicado a um artista e foi
elaborado no período que vai dos anos de 2004 a 2010.
Segundo o autor, os textos apresentados resultam do
contato direto do autor com os respectivos artistas. Cauê
Alves menciona não apenas essa relação de proximidade,
mas também o distanciamento, seus prós e contras.
Já em relação ao artigo Tempos, espaços e trajetos: arte
pública institucionalizada em Aracaju, afirmo que se trata
de uma utilização parcial dos resultados obidos em uma
pesquisa realizada por mim em 2006 para um curso de
pós-graduação em Artes Visuais. O tema da monografia
refere-se ao mapeamento e análise dos espaços e dos
monumentos comemorativos na cidade de Aracaju, em
Sergipe, entendendo e conceituando ‘espaço de arte’
como um local simbólico e constantemente resignificado
ou reafirmado a depender do contexto histórico, político,
econômico, social e artístico em que está inserido. Esses
conceitos hoje me servem de lastro para uma pesquisa mais
extensa, que versa sobre o monumento comemorativo em
situação de conflito na América Latina.
O artigo Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa
ser contada, de Antônio da Cruz, resulta exatamente da
percepção da ‘timidez’ com que as obras de arte figuram
nos locais públicos em Aracaju e em Sergipe, e da diminuta
quantidade de publicações sobre arte no estado. Cruz tem
todos os predicados para figurar entre os autores aqui
contemplados, pois produz arte há mais de três décadas
e labora não apenas como artista, mas também como
militante, organizador e gestor cultural. Desde associações
de artistas, galerias de arte, passando por eventos e
outras possibilidades de movimento cultural, Cruz se fez
engendrar em tudo o que soa como um projeto coletivo
para ‘fazer a arte acontecer’. No seu texto está presente
toda a miscelânea de artistas sergipanos e dos que por
aqui chegaram e criaram; eles figuram uma narrativa
pedagógica, que relembra seus nomes e feitos, além de
políticas públicas voltadas ao segmento das artes no estado.
Nesse significativo artigo, entre os artistas citados está
Fábio Sampaio, exaltado por Leo Mittaraquis em seu
texto A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio,
que versa sobre a arte contemporânea em Sergipe,
trazendo como referência esse artista cuja obra provoca,
ao questionar a existência de uma ‘arte sergipana’ ou de
uma arte ‘qualquer coisa, qualquer lugar’. Para Leo, a
arte é fruto de seu tempo, espaço e ritmo e não se limita
a essa alcunha regionalista. Através de um passeio por
entre as obras do artista, Leo descreve e desvenda ironias,
sarcasmos e poéticas do contemporâneo Fábio Sampaio.
Finalizando o livro, temos o suplemento escrito por Zeca
Fernandes curador da exposição Abstratos, no texto Zeca
traz algumas pontuações sobre o abstracionismo em
algumas de suas vertentes, pontuando de forma objetiva
a influencia em Aracaju, no Brasil e no mundo.
Ivan Masafret
Coordenador do projeto
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Organizador do livro
É preciso ser dependente
para ser autônomo:
relações pessoais, capital social
e sistema de arte.
Clarissa Diniz
É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
É
preciso ser dependente para ser autônomo.
Para cultivar a capacidade de ação (autonomia),
é preciso adubar o potencial de interação
(dependência) ao plasmar, na relação com o
outro, a si próprio e ao ambiente do qual se é
parte constituinte. Nos sistemas sociais1 , faz-se
óbvia tal relação de interdependência. Também
o campo da arte permite entrever tal autoeco-organização do meio e seus membros, e
faz pensar em como são travadas as relações
simultaneamente autônomas e dependentes
entre artistas, críticos, curadores, público,
A concepção de sistema social utilizada neste texto refere-se
àquela desenvolvida por Humberto Maturana (1997), segundo
o qual, quando “os membros de um conjunto de seres vivos
constituem, com sua conduta, uma rede de interações que opera
para eles como um meio no qual eles se realizam como seres
vivos, e no qual eles, portanto, conservam sua organização e
adaptação, e existem em uma co-deriva contingente com sua
participação em tal rede de interações”, temos um sistema social.
1
De acordo com Maturana, para a manutenção de sua
identidade, todo sistema tende à conservação de sua organização,
ou seja: num sistema social, por exemplo, seus membros hão de
buscar sempre a permanência de suas características básicas,
dadas pelas relações estabelecidas entre seus componentes,
de modo a não permitir que o sistema se desintegre. Por isso
dizemos, também, que todo sistema tende à conservação de sua
adaptação, uma vez que se esforça por manter a congruência
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Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
produtores, entre tantos outros.
Para além das relações estritamente profissionais
– que se dão através de um claro conjunto
de normas sociais e técnicas –, o sistema da
arte instaura relações que, ainda que ligadas
ao exercício da profissão, carregam intensa
pessoalidade. Assim como a produção de arte
que, quase sempre, enfatiza idiossincrasias do
artista e dele não se desvencilha em totalidade,
também as interações profissionais nesse
campo se dão entre subjetividades bastante
enfatizadas. Parece-me muito claro que, no
interior do sistema da arte, predominam
relações sociais de base pessoal – característica
que traz, para esse sistema, peculiaridades que
precisam ser consideradas em sua análise.
estrutural entre seu ambiente (meio) e seus componentes
(seres vivos). Assim, grosso modo, percebe-se que todo sistema
tende a se adaptar – através da expulsão ou da inclusão – às
transformações de seus membros, buscando conservar, a partir
de contínua reestruturação, sua integridade.
Fica evidente, portanto, a relação dinâmica entre autonomia
e dependência no interior de um sistema e nos membros que
dele são parte.
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É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
Dentre tais especificidades, uma é, para mim,
mais visível e me inspira urgência em ser
pensada e, sobretudo, debatida: as relações
de confiança e reciprocidade que funcionam
– creio – como forças organizadoras (e, por
vezes, motrizes) do sistema social da arte.
2
Para contribuir com a análise dessas forças ,
farei uso, neste texto, do conceito de capital
social – tomado de empréstimo das ciências
sociais e, mormente, dos estudos econômicos
–, por acreditar que tal conceito destrincha
parte das formas de organização e produção
do sistema de arte brasileiro 3, que me parece
grandemente pautado em relações pessoais.
Para exemplificar as questões tratadas no texto, serão
utilizadas falas e citações retiradas do contexto do sistema de
arte de Recife e Olinda, referentes ao período de 1970 a 2000.
3
Todo sistema possui uma infinidade de subsistemas, cada
um repleto de peculiaridades. Dessa forma, quando me refiro ao
“sistema de arte brasileiro”, exerço uma forçosa generalização que
considera, como tal sistema, as organizações sociais constituídas em
torno da parte da produção de arte brasileira que é incorporada
pelos seus mecanismos mais conhecidos (e tradicionais) de
legitimação e difusão, como bienais, salões, catálogos e outras
publicações, bem como pelo meio acadêmico, da crítica de arte e
da curadoria ligados, por sua vez, a tais bienais, salões etc.
2
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Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Aliado à concepção de capital social, farei uso
da ideia de amor como base da sociabilidade,
defendida pelo biólogo Humberto Maturana.
Capital social e amor
Em 1990, o Banco Mundial reconheceu o conceito
de capital social ao lado de outros três tipos de
capital – o natural, o financeiro e o humano –,
definindo-o como “a capacidade de uma sociedade
de estabelecer laços de confiança interpessoal
e redes de cooperação com vistas à produção
de bens coletivos”. Dessa forma, o capital social
seria uma espécie de fundamento que ampara
as relações travadas dentro de uma determinada
sociedade, estabelecendo uma organização social
capaz de produzir, com mais ou menos coesão, os
bens e serviços de que necessita para manter sua
própria conservação/sobrevivência.
Como forma de capital não inerente a bens,
serviços ou indivíduos, mas às relações tecidas
entre os últimos, o capital social exige, para
sua produção, uma rede de interações sociais
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É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
sedimentada – um sistema. É a partir dessas
relações que ele nasce e essa é uma de suas
particularidades: é um tipo de capital que se
encontra apenas nas relações, na estrutura do
sistema social – no espaço, portanto, do entre
–, sendo ele um tipo de ‘valor’ que não pode ser
apropriado privadamente, sendo, ao contrário,
passível de ser igualitariamente utilizado por
todos aqueles que o produzem.
Capital social seria, por exemplo – como elucida
um dos mais citados exemplos da literatura sobre
o assunto –, o que permite que os membros
de uma comunidade de judeus joalheiros
de Nova Iorque minimizem os custos de suas
transações ao estabelecer, entre si, o comércio
e a circulação de pedras preciosas sem que se
paguem os seguros, o que aumentaria muito os
custos de todas as operações. Acontece que os
membros de tal comunidade, ao confiarem uns
nos outros, agem de acordo com uma rede de
cooperação que facilita as atividades de todos,
gerando capital social – uma espécie de ‘alicerce’
(e um ‘recurso’) do qual todos eles gozam e que
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Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
permite que sejam simplificadas atividades que
normalmente exigiriam mais esforço por parte
de cada um dos joalheiros. São as interações
entre tais judeus que permitem que seja gerado
o capital social do qual todos se beneficiam.
Estudiosos do capital social afirmam que, para
que ele exista numa determinada comunidade,
é necessário que os indivíduos que dela fazem
parte se relacionem pautados em redes de
cooperação e reciprocidade e, sobretudo,
confiança. Para que a confiança possa existir,
por sua vez, é necessário que tais indivíduos
partilhem das mesmas normas sociais (tenham
4
os mesmos direitos e deveres) e, para que isso
ocorra, basta que eles façam parte de um mesmo
sistema, uma vez que os membros de um sistema
selecionam, em si mesmos, as condutas que o
realizam enquanto tal, assegurando, teórica e
consequentemente, que todos compartilhem
Tais normas sociais normalmente são mais morais que legais,
sendo, portanto, códigos não-escritos e não-falados, mas aos
quais estão sujeitos todos os membros do sistema que os adota.
A confiança social age como uma dessas normas não-legalizadas
e, costumeiramente, profundamente atuantes.
4
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É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
das normas a que estão submetidos.
A atitude cooperativa – base do capital social
–, acredita o biólogo Humberto Maturana, é
natural do ser humano, mas, em sociedades
complexas e racionalmente estruturadas
como a nossa, ela só se dá tranquilamente em
conjunção com a confiança na reciprocidade
alheia, pois, quando se confia mutuamente,
normalmente se é recíproco às cooperações
recebidas: eu coopero com você porque ‘sei’ que
você cooperará comigo quando for necessário5.
A teoria do capital social atribui a confiança e as
regras de reciprocidade às normas e convenções
sociais que julga como estruturadoras das
sociedades. Para tal teoria, um indivíduo só
É ilustrativa da necessidade humana de prescindir da confiança
na reciprocidade do outro para conferir ajuda uma parábola do
filósofo escocês David Hume, que, ainda no século XVIII, narra
a história de dois agricultores de trigo. Um deles, já no período
de colheita, percebe que precisa de ajuda para realizá-la, pois,
se o fizer sozinho, não conseguirá abranger toda a plantação, e
parte de seu trigo será perdido, faltando-lhe, assim, pão durante
do ano. Seu vizinho, percebendo a situação, pensa em ajudálo, na esperança de que, quando chegar a vez de sua colheita,
também ele possa contar com a colaboração do outro agricultor.
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Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
coopera com outro (ou é recíproco com uma
ajuda recebida) porque acredita que, se não o
for, sofrerá sanções sociais – a principal sanção
seria a exclusão da rede/sistema do qual ele
participa, perdendo, assim, o direito a usufruir
do capital social.
Contudo, acredito que, muito além das
convenções sociais que recaem sobre as pessoas,
a mais profunda motivação pela qual os seres
humanos cooperam entre si é o amor. Segundo
Maturana, o amor “é a condição dinâmica
espontânea de aceitação, por um sistema vivo
[como o ser humano], se sua coexistência com
outro (os outros) sistema(s) vivo(s), (...) é um
fenômeno biológico que não requer justificação:
o amor é um encaixe dinâmico recíproco
espontâneo, um acontecimento que acontece
ou não acontece” e é ele “o fundamento do
Todavia, o vizinho não tem certeza da confiabilidade do outro
e, por ter dúvidas da reciprocidade esperada, resolve não ajudar
para não correr o risco de prestar um favor sem recebê-lo de
volta. Conclusão: ambos perdem suas colheitas.
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É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
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fenômeno social e não uma consequência dele”6.
Assim, as interações só acontecem enquanto há
amor, pois, sem amor, não existe sociabilidade.
Acredito, portanto, que o capital social surge
naturalmente das relações mantidas entre as
pessoas, uma vez que tais relações só durarão
o tempo suficiente para produzi-lo se forem
construídas por conta do amor – a ‘pegajosice
biológica’ de que fala Maturana e que, segundo
seu pensamento, é a responsável por assegurar
a duração das interações sociais.
Entender que o capital social não é a finalidade
das relações, mas apenas uma orgânica e
produtiva consequência delas, é percebêlo de um modo não-funcionalista. Se a ideia
funcionalista do conceito compreende que
os indivíduos desenvolvem suas relações
interpessoais vislumbrando os benefícios que,
Maturana, Humberto. A ontologia da realidade. Belo
Horizonte, 2002.
6
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Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
através delas, podem conseguir, a concepção que
entende o amor como base estruturadora dessas
interações sociais compreende, contrariamente,
não haver premeditação na instauração de
convivências que, se mantidas com intensidade
e confiança, hão de gerar capital social. O que
estimula tais convivências seria o amor, não o
interesse em futuros benefícios.
Dentre as principais características do capital
social está a de que ele é o único tipo de capital
que, quanto mais se usa, mais se tem. Ao
contrário do capital natural, por exemplo, que vai se
esvaindo caso não haja uma medida de reposição,
o capital social produz a si mesmo quanto mais for
usado, exatamente como acontece nas relações
humanas pautadas na confiança: quanto mais se
confia, mais confiança se gera.
Entendendo, portanto, que as interações
profissionais pautadas em relações pessoais
geram uma forma específica de organização
social, é minha intenção fazer ver, a seguir,
como tal organização – uma espécie de rede
informal de cooperação entre artistas, críticos
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É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
e outros profissionais, baseada no amor e na
confiança recíproca – facilita o desenvolvimento
de atividades várias, gerando um tipo de base
(capital) em que diversas ações possam se
assentar e se tornar possíveis.
Num dado sistema, para que se tenha capital
social, é necessário que os seus membros
constituintes interajam repetidas vezes.
Somente da convivência se desenvolvem a
confiança, a reciprocidade e o amor necessários
à instauração de uma rede de cooperação em
que todas as partes saiam ganhando. Assim, no
sistema de arte, é imprescindível a proximidade
entre artistas e outros profissionais. Quanto
menor o sistema, mais convivência haverá
e, assim, mais capital social será gerado. Por
isso, então, a grande relevância da criação de
ambientes de convivência, tal qual ocorreu em
Pernambuco, com a criação da Sociedade de
Arte Moderna, ainda na década de 40:
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Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
(...) A notícia de que Hélio Feijó pretendia fundar
uma sociedade de artistas [Sociedade de Arte
Moderna do Recife, 1948] alegrou-me e encheu
de esperanças de que enfim teríamos, nós
artistas [“modernos”], uma possibilidade de nos
encontrarmos regularmente: a única chance no
momento era, uma vez por ano, na inauguração
do Salão do Museu do Estado onde acadêmicos e
modernos lutavam ferozmente pelos prêmios.7
Não só o hábito de se encontrar, mas,
sobretudo, de se reunir de maneira informal,
longe das pressões institucionais, é essencial
ao desenvolvimento de capital social. Como
a formação de redes de sociabilidade
passa, necessariamente, por sentimentos
de afetividade, as redes de amizade e amor
crescidas não apenas nos encontros ‘oficiais’
do sistema de arte – como em vernissages 8,
cursos etc – mas, mormente, amadurecidas
Depoimento de Reynaldo Fonseca (artista). Retirado do livro
Memória do Atelier Coletivo, de José Cláudio. Recife, 1978.
8
“Os vernissages eram mais para as pessoas se encontrarem,
conversarem, e sempre as pessoas iam para essas exposições
e depois esticavam num restaurante.” Fala de João Alberto
(colunista social). Entrevista concedida à autora, 2006.
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É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
em vivências menos mediadas por instituições
e mais envoltas em sentimentos extra-artísticos
(como festas, viagens, conversas em bares),
se fazem fonte primeira e constante para a
manutenção do capital social:
(...) Havia muitos encontros nas sextas-feiras na
Escola de Belas Artes, com o pessoal de teatro,
arquitetura (...). Informal mesmo. Nós íamos para
um barzinho, e lá tinha uma senhora que fazia
uma feijoada, uma carangueijada.9
(...) Reynaldo Fonseca dava festas na casa dele,
chamava os alunos [da Escola] para lá. Vicente do
Rego Monteiro participava do atelier e fazia farra
com a gente! Então as pessoas interagiam, era
uma integração muito grande!”10
“(...) Os bares com certeza sempre terão um papel,
um copo, e uma cerveja importante e gelada para
formar os artistas (...). É isso: o bar é o melhor
lugar para se pensar arte...
A partir dessas interações de amizade-amor
não necessariamente artísticas, plasma-se o
Depoimento de Sérgio Lemos (artista). Entrevista concedida
à autora, 2006.
10
Depoimento de Maurício Silva (artista). Entrevista concedida
à autora, 2006.
9
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Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
ambiente necessário para a posterior criação de
experiências de arte que, para sua existência,
exigem uma anterior rede de relacionamentos,
como ocorreu com o grupo Camelo:
“(...) No início éramos eu [Marcelo Coutinho],
Ismael Portela, Jobalo, Paulo Meira e Oriana
[Duarte]. Toda semana nos encontrávamos e
bebíamos até cair. Os mais resistentes éramos
eu e Paulo Meira. Todos iam dormir e nós
continuávamos até a manhã do dia seguinte,
frequentemente até o meio-dia do dia seguinte,
completamente bêbados em um mercado público
qualquer. Resolvemos pôr um nome no grupo. (...)
Decidimos por uma das sugestões de Paulo Meira
que era o ‘Camelo’. Estávamos nós três numa
calçada da Av. Caxangá, comendo galeto de rua
e bebendo cerveja, quando batemos o martelo.
Os três criamos o conceito da imagem de um
jumento com corcovas. (...) Éramos os ‘xiitas’ do
Camelo pelo fato de que nós estávamos presentes
o tempo inteiro, decidíamos tudo junto, levávamos
tudo às últimas consequências, consumíamos todo
o nosso dinheiro e tempo com o grupo. Além, é
claro, de termos uma resistência hepática fora
do normal. Enfim, havia uma sintonia muito fina
entre nós. E qualquer pessoa de fora naturalmente
teria muita dificuldade de entrar nessa sintonia.”11
Fala de Marcelo Coutinho. Entrevista concedida à autora,
2006.
11
36
É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
Uma vez agrupados, os artistas do Camelo
desenvolveram uma série de ações que, se
não tivessem sido realizadas coletivamente,
dificilmente teriam sido viáveis. Os membros do
Camelo apoiavam-se mutuamente, contribuíam
um com o trabalho do outro. As relações de
confiança, reciprocidade e amor presentes entre os
membros do grupo funcionavam como geradoras
de energia e trabalho para facilitar a realização
de obras que, sem tal apoio, seriam deveras mais
difíceis de ocorrer 12, sobretudo num ambiente de
pouco amparo institucional. No Camelo, havia
uma grande quantidade de capital social.
O equivalente à ideia de capital social lançada
pelas ciências é a popular concepção de
brodagem13. Nascida a partir da palavra inglesa
brother (irmão), a expressão brodagem se
“Durante o ano de 1997 programamos várias exposições do
grupo no IAC [Instituto de Arte Contemporânea da UFPE] ao
longo do ano. Nos reuníamos periodicamente e trabalhávamos
para a exposição de cada um, dividindo tarefas e auxiliando
na montagem”. Depoimento de Renata Pinheiro. Entrevista
concedida à autora, 2006.
12
37
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
refere a um modo de convivência baseado na
cooperação. Fazer algo ‘na brodagem’ significa
agir com a ajuda de amigos, ‘irmãos’, como
se os amigos formassem uma família. Só se é
broder de alguém em quem se confia e se ama,
e, assim, é formada uma rede de pessoas cuja
interação gera brodagem, produz capital social.
Contudo, num sistema maior – como uma
sociedade inteira –, quando as partes das
relações ‘de brodagem’ não são mais amigos,
mas cidadãos e instituições, surgem inúmeras
questões que tornam esse tipo de relação
amplamente problemática – e são esses os
aspectos que se poderia entender como os
‘negativos’ do capital social.
Quando, no âmbito institucional, as relações
se mantêm majoritariamente pautadas na
confiança e amor interpessoal, e não em
interações mais objetivas visando interesses
“(…) Este projeto é coisa de brodagem, de amigos artistas
que querem mostrar seu trabalho, com apoio dos demais”.
Depoimento do artista Flávio Emmanuel, excerto da matéria
Artistas incentivam intervenções urbanas, de Kéthuly Góes. Diário
de Pernambuco. Recife, 1º de julho de 1997.
13
38
É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
da coletividade, por exemplo, habitualmente
ocorrem ‘injustiças’, como protecionismos e
clientelismos – como deixa entrever Mary Gondim
(diretora, durante quatorze anos, do Museu de
Arte Contemporânea de PE), ao narrar o que
aconteceu com o patrocínio antes concedido
ao Salão dos Novos por uma seguradora depois
que ela deixou a direção do museu:
(...) A Sul América Seguros patrocinou o Salão 15
anos, 16 anos...! (...) Depois, quando eu saí, eles
não quiseram mais. (...) [Quando a nova diretora
foi procurá-los a respeito do patrocínio do ano
seguinte, eles disseram] “Não, era com Mary
Gondim, com você eu não quero negócio”. Eu
não disse nada, não fui lá fazer a menor intriga....
Clarissa - Mas você conhecia alguém da Sul
América?
Nunca! Não sabia nem quem era! Mas ele acreditou
em mim, eu acreditei nele, nunca vi nem a cara!”14
Essa demasiada ‘personalização’ das relações
profissionais que, ao que me parece, é uma
conduta profundamente arraigada na cultura
brasileira como um todo, esteve (e está
Depoimento de Mary Gondim. Entrevista concedida à autora,
2006.
14
39
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
ainda) amplamente presente no sistema de
arte pernambucano. Tamanha influência de
aspectos pessoais nas interações profissionais,
ainda que gere muito capital social para aqueles
que dessa condição usufruem, mantém, por
outro lado, uma política institucional e de
“ações de legitimação, de visibilidade e de
divulgação que não passam pela ética, mas
pelo compadrio, pela amizade, pelos interesses
políticos, materiais ou não, por troca de favores
etc”15, e que devem ser intensamente criticadas.
Todavia, nem sempre é fácil criticar. O capital
social dificulta também – e esse é mais um
de seus problemas –, ainda que não impeça,
o desenvolvimento do pensamento crítico
e, sobretudo, o exercício desimpedido da
crítica, pois aqueles que criticam normalmente
imaginam que, fazendo-o, ficarão sujeitos
a receber sanções sociais por parte dos
criticados. Além disso, quando as relações
Fala de Moacir dos Anjos (curador). Entrevista concedida à
autora, 2006.
15
40
É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
profissionais estão fortemente calcadas nas
relações pessoais, ainda que sejam pensadas
críticas, é dificultado o hábito de publicizá-las,
pois se teme retaliações. Assim, fica instaurada
uma profunda dificuldade em tecer críticas a
respeito de questões profissionais sem recair
em aspectos pessoais. Consequentemente,
na ansiedade pela manutenção da harmônica
inserção dentro de uma determinada
comunidade rica em capital social, privilegia-se,
ao invés do espírito crítico, o instinto bajulador:
“(...) Por que que os jornais daqui [de Recife],
tanto o Diário de Pernambuco quanto o Jornal
do Commercio, não disseram nada no período de
Arraes em que Ariano [Suassuna] foi Secretário de
Cultura e fechou o Salão do Estado?! Não houve
uma linha que criticasse, que chamasse a atenção
a isso. Isso é conivência e covardia, porque Ariano
é um cara mitificado aqui. Tanto que quando
eu escrevi, criticando (...), muita gente veio
falar comigo: “Montez, mas tu tá fazendo isso
com Ariano?”. O que é que eu tô fazendo com
Ariano?! Eu tô criticando o projeto dele, que tá
cheio de equívocos! Então ele é mitificado a tal
ponto que causa medo nas pessoas.” 16
O que naturalmente pode ocorrer, quando da
demasiada interferência de aspectos pessoais
41
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
nas decisões profissionais, é o consciente
ou inconsciente favorecimento de certos
indivíduos em detrimento de outros – as
famosas ‘panelinhas’:
“(...) Em setores culturais do Governo estadual
[Pernambuco] e municipal [Recife], associações de
classe, como a AAPP/PE [Associação dos Artistas
Plásticos Profissionais de Pernambuco], curadorias
de exposições com patrocínio oficial, o que vemos
a nível local, sempre que está em questão a escolha
de artistas para participarem de determinados
eventos, é politicagem, igrejinhas e a nefanda
prática do ‘é dando que se recebe’ (...)”.
Ainda que a presença de capital social nas
relações possa vir a propiciar a existência de
alguns tipos de favorecimento, quero ressaltar
17
que o capital social não causa, por si só, efeitos
como o protecionismo. O que ocorre – em casos
como o anteriormente citado – é a conjunção
de uma série de fatores culturais e políticos que,
Depoimento de Montez Magno. Entrevista concedida à
autora, 2006.
17 Excerto do texto Sobrevôo de urubus nos céus da cidade, de
Paulo Chaves. Diário de Pernambuco. Recife, 13 de agosto de 1992.
16
42
É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
somados à boa quantidade de capital social que
existe em determinados sistemas sociais, facilitam
a expansão de tais condutas de ética duvidosa.
É curioso perceber o quanto, inclusive, o capital
social pode ter efeitos inibidores de condutas
corruptas como as acima referidas dentro do
seu agrupamento social de origem. Por conta
de uma forte rede de confiança interpessoal, a
proliferação de atitudes antiéticas é, inclusive,
dificultada, uma vez que os membros dos
agrupamentos, de tão próximos, ‘vigiam’ a si
próprios e, inclusive, aplicam-se sanções.
Contudo, quando os sistemas de diâmetros
maiores são repletos de subsistemas que
possuem capital social apenas internamente,
sem que o sistema maior tenha, ele próprio,
uma firme rede de cooperação, o que ocorre
é que os pequenos grupos ricos em capital
aproveitam-se da fragilidade do sistema maior
para beneficiar a si mesmos. Isso ocorre sem
que haja, por parte dos outros subsistemas,
uma constante vigilância, uma vez que, em
razão da redução do ‘raio de confiança’, são
43
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
menos aprofundados os contatos entre eles.
Dessa forma, o espaço para o surgimento
de ‘panelinhas’ ou similares vem menos
pela existência do capital social do que pelas
dificuldades envolvidas na propagação do
capital do nível micro ao macro, visando gerar
cooperação e compromisso social numa escala
que seja política e economicamente válida e,
consequentemente, mais acessível a todos.
Tal dificuldade de propagação do capital social
pode existir, também, por conta da comumente
forte ‘divisão’ entre sociedade civil e Estado,
que tendem, no Brasil, a se comportar como
instâncias antagônicas. Nesse sentido, a
ampliação da quantidade de capital social em
uma sociedade pode também contribuir para a
suavização desses limites, uma vez que uma de
suas características é a capacidade de produzir
sinergia entre instâncias sociais diversas,
especialmente entre governo, organizações
formais, informais (sociedade civil) e mercado.
Essa sinergia, contudo, só se faz possível
44
É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
quando a sociedade interage com o Estado
numa relação colaborativa em que as duas
partes saem ganhando, em detrimento de um
tipo de relação baseada numa ideia competitiva
na qual, para que a sociedade ganhe, o Estado
precisa perder – ou vice-versa. Deve-se manter
sempre muita cautela, contudo, para que, no
seio de uma relação colaborativa (como ocorre
com as ‘sociedades de amigos’ dos museus, os
conselhos de administração participativa etc), a
sociedade não tome para si a responsabilidade
de cumprir obrigações que são do Estado
(assim como uma instituição não deve cumprir
a função de outra), substituindo a sua atuação
nos momentos em que ele é falho. Ainda que
atitudes emergenciais de preenchimento de
lacunas governamentais possam ser bemvindas¹18, essas não devem chegar a se concretizar
como política de cooperação.
Por outro lado, o adensamento institucional
dentro de um determinado sistema pode
ocasionar a diminuição da quantidade de
capital social existente no mesmo, pois,
contando com apoios governamentais, os
45
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
indivíduos podem receber colaboração alheia
sem, no entanto, ter a necessidade de ser
recíproco. Não é necessário ‘devolver favores’
a instituições, basta apenas cumprir mínimas
obrigações, o que, porventura, pode contribuir
para a constituição de um sistema social menos
colaborativo e mais individualista.
A reciprocidade19
é um dos pilares das
relações que geram capital social. É ela que
está por trás de inúmeras condutas que, a
priori, nos parecem gratuitamente avessas
àquilo que é externo/estrangeiro. Além das
habituais
incompatibilidades
de
interesses
“(...) O VII Salão de Artes Plásticas da Etepam (Escola Ténica
Prof. Agamenon Magalhães) realizou-se graças ao empenho do
artista plástico Mário Ricardo, seu curador. O Salão foi aberto,
em 1992, apenas às categorias de Desenho e Gravura, visando
de certa forma compensar a ausência [dessas linguagens] no
Salão de Arte Contemporânea de Pernambuco – versão 92.
(...).” Excerto do texto Remando contra a maré – nem tudo
foram cores para as artes plásticas pernambucanas este ano,
de Paulo Azevedo Chaves. Diário de Pernambuco. Recife, 29 de
dezembro de 1992.
19 “Nenhum dever é mais importante do que retribuir um
favor”, Cícero.
18
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É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
que rondam as relações entre as pessoas, é
também por conta da ausência de confiança
na reciprocidade alheia – medo de ser ‘usado’
– e, claro, por falta de relações de afeto, que
muitos grupos, por exemplo, se fecham a
novos membros. No entanto, quando ocorre
insistência e demonstração de características
confiáveis, a inserção de novos membros e
condutas num sistema já estabelecido se dá
com maior facilidade de penetração. Mas,
obviamente, muitas vezes tais demonstrações
são unicamente uma estratégia de inserção,
produzindo agrupamentos circunstanciais e
capital social suficientes apenas para atender,
em curto prazo, a expectativas imediatas:
47
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
“(...) Jenner Augusto [artista baiano] teve muitas
exposições aqui, com [a galeria de Carlos]
Ranulpho. Isso foi uma jogada muito esperta de
Ranulpho, porque uma vez ele fez uma exposição
de Wellington Virgolino [artista pernambucano]
em Salvador, e os baianos são muito xenófobos,
só compram de baianos. E aí ele fez o acordo com
o galerista, fez a exposição, mas não vendeu nada.
(...) Aí alguém de lá disse: ‘rapaz, não é assim que
você faz... Você convida um artista baiano para ir
pra lá pra sua galeria e convida um Jorge Amado,
um baiano pra escrever sobre esse artista que você
trouxer pra cá’. Aí ele pegou, trouxe Carybé, trouxe
Jenner Augusto e Mário Cravo e ele tinha uma
editora, a Guariba (...). E nisso ele trouxe o Jorge
Amado, e Jorge Amado escreveu um conto, não
sei o que foi, com ilustrações de Jenner Augusto
e de Carybé, e editou e fez a exposição deles aqui
– vendeu tudo! Aí o pessoal ficou devendo um
favor a ele, e ele levou a exposição de Wellington
Virgolino... Vendeu tudo! [risos] Não ficou um
quadro! Aí ele fez mais outra exposição de
Wellington, aí Wellington abriu um mercado para
ele! Aí tudo que Wellington produzia, Wellington
vendia lá na Bahia.”
20
Depoimento de Sérgio Lemos. Entrevista concedida à autora,
2006.
20
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É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
O caso acima ilustra claramente como o capital
social se dá entre outros atores do sistema da
arte que não somente os artistas. Também
críticos, jornalistas, curadores e galeristas
estabelecem, entre si e com os artistas com
os quais trabalham, redes de interações
sociais pautadas na confiança e no amor.
A afinidade existente, por exemplo, entre
artistas e galeristas, e cultivada com amor e
confiança, é absolutamente necessária para
o desenvolvimento de determinados tipos de
relacionamento pautados não em acordos
contratuais, mas em acordos tácitos, frequentes
no mercado de arte do mundo inteiro:
“(...) Na minha vida toda, eu nunca tive contrato
com galeria. E todos os acertos, assim como os
consórcios, era tudo de boca. Até hoje. Fiz um
único consórcio em que a pessoa que organizava
preferiu fazer a cobrança através do banco. Foi o
consórcio que deu mais trabalho.” 21
Fala de Gil Vicente [artista]. Entrevista concedida à autora,
2006.
21
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Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Além das relações interpessoais de confiança
serem necessárias para o estabelecimento de
acordos entre as partes, elas são facilitadoras
das transações realizadas, como afirma Gil
Vicente em seu depoimento, ao dizer que, na
única vez em que os acordos não puderam ser
feitos na base da confiança, havendo, então, a
necessidade de certa legalização, o custo e o
gasto de energia para a realização as atividades
pretendidas foi bem maior. Essa é uma das
principais características do capital social: ele
minimiza os custos das transações.
Outro fator que em muito contribui para a geração
de capital social é a distribuição da informação.
Para adquiri-la – e disso todos sabem – é necessário
um gasto de energia constante (tempo e dinheiro,
entre outros fatores), mas, se a informação,
quando adquirida, for repassada, ela economiza
os gastos de outros membros do sistema que,
inclusos numa cadeia de reciprocidade, ao
devolverem a conduta – difundindo, eles também,
outras informações – anulam a necessidade de
novos gastos alheios. Assim, todos recebem mais
informações por menos.
50
É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
Além disso, saber e poder se multiplicam
mutuamente – não há relação de poder sem
a existência de um campo de saber como,
reciprocamente, todo saber assegura um
determinado poder. Dessa forma, distribuir
o saber é também distribuir o poder e,
consequentemente, apostar na cooperação em
detrimento da competição – capital social.
Por fim, é necessário falar de uma forma implícita
de capital, a noção de reputação, construída
a partir de uma sucessão de experiências
cooperativas, levadas a conhecimento público,
dadas entre partes que se confiam mutuamente
(e que possuem legitimidade social).
A confiança – sentimento sem o qual não
existe capital social – se dá, também, através
da reputação, com base em raciocínios como:
“se A confia em B, e B confia em C, então
é muito provável que A confie em C”. Da
reputação pode nascer confiança porque ela
– a reputação – é adquirida com base em um
comportamento consistente durante o tempo,
constância essa que é valorizada pelos sistemas
51
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
sociais humanos como sinal de confiabilidade.
Qualidades – pessoais e profissionais – como a
integridade, a honestidade etc, são propiciadas
pelo desenvolvimento de sistemas cujos
membros interagem repetidamente; portanto,
quanto menor o sistema, maior a incidência de
interações repetidas e, consequentemente, maior
a possibilidade do surgimento (e da manutenção)
da reputação de seus membros, bem como maior
a possibilidade de geração de capital social.
Assim, apesar dos aspectos negativos que
possa instaurar – se desmedido e utilizado
por pessoas cujo interesse principal é o
beneficiamento pessoal –, o capital social gera
bases para o desenvolvimento de atividades
que, sem ele, seriam por demais custosas para
serem realizadas. Percebo que é por conta da
existência de redes de amizade, cooperação,
confiança, reciprocidade e amor que várias
ações artísticas ocorrem – de exposições, cursos,
à criação de novas instituições –, adensando o
sistema de arte (o brasileiro, em especial).
Entendo, portanto, que devamos reconhecer
52
É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
os aspectos subjetivos de nossas relações de
trabalho, aspecto tão peculiar à organização
de nosso campo profissional. Talvez o
sistema de arte seja um dos que mais exige o
comprometimento pessoal daqueles que dele
fazem parte – tal qual a produção de arte em si
–, e admiti-lo não me parece apenas necessário,
como também justo. Faz-se urgente tornarmonos cônscios dessa condição e diante dela
posicionarmo-nos criticamente, por um lado
utilizando o capital social como fonte geradora
de energia produtiva e, por outro, buscando
controlar suas consequências negativas, de
modo a tornar tal capital um fator dinamizador,
e não paralisador, de nosso campo artístico.
53
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
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É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte.
Clarissa Diniz
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ZOLBERG, Vera L. Constructing a sociology of the
arts. England: Cambridge University, 1999.
55
Encontro, deslocamento,
processo, experiência em
mediação de arte contemporânea
Janaina Melo 22
Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea
Janaina Melo
N
o seu livro A arte como experiência, o
filósofo americano John Dewey destaca que a
experiência em arte é o resultado, o signo e a
recompensa de uma interação. Interação entre
organismos e ambientes, entre pessoas, lugares
e coisas do mundo. Pensar sobre as relações
que se pode estabelecer entre arte e educação
é pensar na constituição de ambientes que
são favoráveis à experiência na sua máxima
potência e excepcionalidade.
Experiência em arte e educação se constrói
num processo de troca, contato e relação. Para
instaurarmos um ambiente de conversa sobre
as relações possíveis de se estabelecer hoje
entre arte contemporânea e educação, antes é
necessário enfatizar a potência que tem a arte
de oferecer uma experiência única, capaz de
transformar nossa relação com o outro e com
as coisas do mundo. A arte é capaz de nos
Janaina Melo é coordenadora de Arte e Educação do Instituto
Inhotim, em Brumadinho – MG.
22
59
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
fazer olhar o mundo de modo diferente e esse
convite favorece sobremaneira a constituição
de ações que visam à educação.
Através dessa experiência diferenciada e
transformadora, como podemos construir o
lugar da educação? Para profissionais que atuam
em museus e centros culturais, essa indagação
é recorrente e, associada à multiplicidade de
relações estabelecidas no contato do educador
com o público, a ação de arte educação
em um museu se oferece como campo
privilegiado para a percepção e compreensão
dessa potencialidade das obras de arte e dos
ambientes criados pelos enunciados artísticos.
No Instituto Inhotim, instituição na qual
atuo como educadora, consideramos que
é fundamental instaurar ambientes de
encontro, lugares que oportunizem a plena
experiência e o aprofundamento das reflexões
acerca dos contextos específicos da produção
contemporânea. Buscando estratégias para
promover uma experiência significativa com
o público em seu contato com a obra de
60
Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea
Janaina Melo
arte, partimos do pressuposto que o saber é
constituído por conhecimentos e vivências que
se entrelaçam e que o educador e o visitante são
detentores de experiências próprias, que devem
ser compartilhadas no processo de mediação.
Sendo a experiência um ponto central na
formação do conhecimento, entendemos
no Inhotim que a mediação é um processo
essencialmente coletivo. Assim, os programas
educativos atuam por meio da experiência
oportunizada pelo encontro num determinado
lugar. O ponto de partida é a conversa que se
estabelece entre educador e público, entre o
público e a obra, entre a obra e o museu. A
percepção do quão importante é a potência de
relações possíveis, que se dão através da troca e
do ambiente experiencial enfocado, é que torna
possível iniciar a construção de significados.
Diante desse desafio e em consonância com
as obras que compõem o acervo do Inhotim,
os programas educativos demandam a
organização de ações que, embora formuladas
como programas específicos, atuam em
61
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
sinergia e com uma diretriz pedagógica
comum. Preferimos, na nossa experiência, usar
uma terminologia que preserve a potência dos
lugares de fala: arte e educação. Eles serão
tratados não como a instauração de um campo
separado, mas como ponte, lugar de encontro,
de presença, de contato para a elaboração de
múltiplas oportunidades educativas. Para isso,
é preciso pensar na prática de mediação e no
papel do educador como o agente que instaura
um lugar de convivência, território híbrido e
capaz de ativar diferentes formas de diálogo
entre afetos, lugares e enunciações.
Em 2008, o Instituto Inhotim criou o projeto
Descentralizando o Acesso, que tinha como
objetivo principal desenvolver um programa
especial de visitas escolares associado à
capacitação de professores dos Ensinos
Fundamental e Médio das redes públicas de
ensino de Brumadinho (MG) e de municípios
vizinhos – Mário Campos, Sarzedo, Ibirité,
Igarapé, São Joaquim de Bicas, Bonfim,
Itaguara, Piedade dos Gerais, Rio Manso,
Itatiaiuçu, Crucilândia e Moeda.
62
Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea
Janaina Melo
Através do projeto, foram realizadas visitas
orientadas de alunos das escolas ao Instituto
Inhotim, além de dois encontros de formação
para professores. Esse programa serviu como
base para a preparação das visitas, contribuindo
dessa maneira para o melhor aproveitamento das
ações educativas. As atividades desenvolvidas na
formação dos professores foram orientadas para
o desenvolvimento de ações, pesquisas e projetos
educativos que pudessem acontecer na escola,
tanto antes dos alunos visitarem o Inhotim,
em atividades preparatórias denominadas prévisitas, quanto após a visita, como espaço de
aprofundamento de questões que tenham sido
de interesse do grupo (professores e alunos), no
que chamamos de pós-visita.
Como desdobramentos dessa experiência – visita
e capacitação de professores – esperávamos que
as escolas, os professores e os alunos participantes
pudessem construir estratégias particulares de
apropriação e desdobramentos dos conteúdos
oferecidos pelo acervo de arte contemporânea
em ações educativas dentro e fora da escola.
63
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Para isso, nosso maior desafio era promover
uma formação de professores que atuasse
como um convite à experiência e oferecesse
ao professor a oportunidade de aproximação,
mas principalmente de apropriação do acervo
de arte como agente articulador de estratégias
educativas dentro da escola, território do
qual nós, educadores de museus, sabemos
muito pouco. Organizamos a formação em
dois encontros com oito horas de duração
e desenvolvemos uma metodologia especial
que inverteu os lugares de fala e convidou o
professor a criar com base na sua experiência
prévia em sala de aula e naquilo que vivenciou
no Inhotim. Na formação, o primeiro encontro
sempre acontece no Inhotim e antecede a
visita dos alunos. Nesse encontro, professores
e educadores da instituição passam por três
momentos principais:
Primeiro momento – Visita orientada: durante
a visita conduzida pelos educadores do Inhotim,
os professores são estimulados a observar e
anotar palavras que expressem sensações e
percepções vivenciadas durante o trajeto.
64
Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea
Janaina Melo
Segundo momento – Compartilhando
palavras: A percepção individual sobre a visita
é socializada pelo grupo e, a partir das palavras
e dos elementos anotados, são definidos
os temas que devem orientar os próximos
momentos do encontro.
Terceiro Momento – Pesquisa de Campo:
Organizados em grupos e dispondo de câmeras
fotográficas, os professores saem pelo instituto
registrando cenas que se relacionam com os
conceitos e temas identificados nas palavras
anotadas. Nesse processo, os registros fotográficos
dão origem à construção de um banco de imagens
que auxilia o professor durante o planejamento das
atividades de pré-visita e oferece a oportunidade
de elaboração de roteiros com pontos de parada
e lugares de experiência para o desenvolvimento
de práticas artísticas na escola, antes e depois de
realizar a visita.
Quarto Momento – Criando novos roteiros:
Tomando o mapa do Inhotim como suporte, os
professores desenham os trajetos que realizam
durante a produção das imagens. Os roteiros
65
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
compartilhados com o grupo evidenciam os
múltiplos percursos e possibilidades apreendidas
durante a visita pelo museu.
O segundo encontro do programa acontece
na cidade pólo. Por isso, é necessário o
deslocamento da equipe de arte e educação do
instituto, que vai para a cidade construir com os
professores, dentro da escola. Reconhecemos,
nessa estratégia de deslocamento, o percurso
realizado, as especificidades do ambiente
escolar. Nosso convite é para o diálogo e, uma
vez que convidamos professores para visitar e
conhecer a nossa instituição, era importante
que nós educadores também conhecêssemos as
escolas e localidades. Promover o deslocamento
e conhecer a ‘casa’ do professor constitui uma
excelente oportunidade para estreitar os laços
e fortalecer as possibilidades de diálogo. Nesse
segundo encontro, o dia possui três momentos
principais:
Primeiro Momento – Retomada: Os temas
e roteiros elaborados no encontro anterior são
retomados, valendo-se de uma análise coletiva
66
Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea
Janaina Melo
das palavras-chave, dos trajetos desenhados
sobre os mapas e dos conjuntos de imagens
gerados pelos professores.
Segundo
Momento
–
Investigação:
Baseando-se na análise do material construído
durante o primeiro encontro, inicia-se uma
discussão sobre a importância da realização de
atividades de pré-visita com os alunos. Nesse
momento, os professores elaboram roteiros para
as visitas, com base nas experiências vivenciadas
na cidade, no museu, na escola e na sala de aula.
Terceiro Momento – Proposição: São
conduzidas dinâmicas para pensar na elaboração
de atividades que podem gerar resultados,
tanto durante a visita dos alunos, quanto em
desdobramentos futuros no ambiente escolar.
Após o programa de formação, iniciam-se as visitas
orientadas com os alunos que, acompanhados
pelos professores, realizam a visita como parte
de pesquisas já em andamento na escola, como
espaço para consulta e coleta de informações,
como ‘laboratório’ de experimentação de
67
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
práticas educativas já previamente vivenciadas
na sala de aula, frutos das escolas coletivas e da
multiplicidade de acessos.
A última etapa do programa consiste em
acompanhar as atividades de desdobramento
das visitas e o programa de capacitação.
Nessa etapa, os educadores vão até as escolas
para acompanhar atividades realizadas pelos
professores com os alunos. Nessas visitas,
realizam entrevistas com os mestres, produzem
registros fotográficos e participam de feiras e
outros eventos culturais desenvolvidos pelas
escolas. Se não há um único ponto de partida,
também não existe apenas um ponto de
chegada. O que percebemos nesse programa
de mediação foi exatamente a oportunidade de
instaurar um lugar de continuada transformação
da relação existente entre arte e educação.
Com a metodologia utilizada no programa,
percebemos que ampliamos, na verdade,
o nosso acesso, como educadores de uma
instituição museológica, a estratégias e ações
educativas extremamente ricas, desenvolvidas
68
Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea
Janaina Melo
por professores em escolas públicas urbanas
e rurais. Aproximando o museu da escola,
criamos um espaço onde aprendemos
estratégias, proposições e ações inovadoras no
trabalho com o acervo. Descobrimos, com as
experiências desenvolvidas pelos professores
nas escolas, como é possível se aproximar de
múltiplas maneiras da arte contemporânea,
não através da passividade, mas na atividade
em sua máxima potência.
Experimentar leva a conhecer. Conhecer traz
a possibilidade de re-inventar e transformar.
Penso que uma experiência ativa e participativa
é o que permite desenvolver na educação novas
formas de ver e pensar o mundo. Deslocar
um objeto, intervir num espaço e promover
a participação são questões chaves da
pesquisa realizada nos programas educativos
desenvolvidos pelo Instituto Inhotim.
Convidar o público para propor questões e, através
de múltiplas ferramentas, chegar a respostas que
na verdade se anunciam como novas perguntas.
O que interessa na mediação não é a resposta, e
69
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
sim a possibilidade de, através do contato com a
arte, poder reformular sempre as questões iniciais.
Talvez a pergunta permaneça sem resposta. Mas
é bom que seja assim.
70
Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea
Janaina Melo
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Dewey, John - A Arte como Experiência, in Os
Pensadores. São Paulo. Abril. 1974
Instituto Inhotim. Site: http://www.inhotim.org.
br/
71
O artista como trabalhador:
mercado e profissionalismo
nas artes visuais
César Romero
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
Artistas – Um certo perfil
A
rtistas visuais levam o espectador a miragens
poéticas. A arte é produção simbólica, movida
pela necessidade interna de buscar sentimentos
na liberdade da criação. Criar é organizar
o caos, cria-se a partir do nada, portanto,
criação. A finalidade da arte está nela própria.
O criador vive o experimentar, buscando focos
que estabeleçam rumos e estejam inseridos
no cotidiano, no registro das ideações, nas
capacidades de interagir e na participação
coletiva. São necessários discernimentos, a
busca da sociabilidade no encontro da arte
com o outro, numa troca entre o fazer e o
perceptivo, no redefinir das imagens sígnicas e
figuras que acendam lembranças remotas. Um
jogo sensível entre linguagens.
A lógica e a emoção são coisas distintas, mas
podem perfeitamente unidas, como se deve, fluir
para um produto chamado arte. Somações de
vivências, colcha de retalhos da memória, onde
se constrói essência. Caminhos simultâneos,
distintos, similares, podem fazer parte do
75
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
ideário de qualquer criador. Integrações entre
linguagens visuais e verbalizadas aprimoram
o produto. Quase todos os artistas, desde os
primórdios da História da Arte, escreveram
justificando seus trabalhos: Leonardo da Vinci,
Paul Cézanne, Francisco Goya, Henri Matisse,
Ives Klein, Joaquín Torres-García, Jesús Soto,
Piet Mondrian, André Lhote, Auguste Herbin,
Marcel Duchamp, Dubuffet, Gabo, Pane,
Nitsch, Fontana, Pollock, Allan Kaprow, De
Chirico, Ensor, Paul Klee, Malevitch, entre
tantos. Também grupos, como De Stijl,
Bauhaus, Cobra, Fluxus, Nobis, Rex.
Os impressionistas muito teorizavam e
cumpriam suas ideias. No Brasil, Lygia Pape,
Lygia Clark, Hélio Oiticica, Ferreira Gullar, Israel
Pedrosa, Rubem Valentim, Cildo Meireles,
Amélia Toledo, Marcos Coelho Benjamim,
Edgard de Souza e Willys de Castro. Uns
preferem o silêncio, como Alfredo Volpi, outros
a extravagância e o escândalo, como Demien
Hirst. Quem acerta mais? Quem é mais alma?
Teóricos ou apenas de ação, ou os dois, artistas
76
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
valem sempre por inovarem, cuidarem de
estranhamentos inventivos, de outro lugar da
memória. Evocações que se atualizam no ato
inventor. As grandes teorias da arte mudaram
o mundo, as grandes ações também. Juntos,
criaram um repertório que engrandece e
dignifica a raça humana.
O trabalho do artista
O artista é um trabalhador como outro qualquer.
Apenas lida com um produto sensível. Nem
melhor, nem pior que outros profissionais. O que
lhe dá importância é o produto final, o trabalho
concluído e seu poder causador. Arte é invenção
de linguagem. Tempo e aprendizagem levam à
criação de um idioleto, códigos específicos de
um artista criador. Cada artista é refém do seu
fazer. Marca autoral, grafia e pensar.
O artista é um ser humano que transmuta seu fazer
em manobras da visão. Transfigurar, converter
é sua labuta, tarefa, ação, até o encontro com
sua fala pessoal, iconografia. Há um longo
processo de descobertas, de experimentações,
77
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
ensaio e erro, que requer perseverança, credo
e obstinação. Tudo é trabalhoso. Coerência,
lucidez, paciência e interlocutores ajudam no
caminho. O senso apurado da observação transita,
remove-se no conhecer do mundo interior, na
vida instintiva profunda.
A intuição, um tipo de inteligência, não é
tudo, mas imprescindível no processo gerador.
O que é expresso foi impresso anteriormente
em nossa estrutura psíquica. O artista é um
operário, articulando forma, linha e cor,
buscando resolver equações visuais. O estoque
de ideações resulta num produto final, que não
mais pertence ao obreiro e sim ao público, por
mais restrito que seja. O trabalho finalizado, elo
de ligação entre artista e o outro, faz a aliança,
articulando possibilidades.
Ao artista cabe coerência estilística, essência,
atualizações, crença, trabalho continuado,
cuidado com os materiais, tão banalizados hoje
em nome da ‘contemporaneidade’ e invencionices
que nem ele mesmo sabe conceituar. A liberdade
da criação é irretocável, não se concebe um artista
78
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
aprisionado a técnicas, escolas ou possibilidades
expressivas. Mas tudo deve ser justificável, na
lógica, na proposição. Nada é por acaso. O
inconsciente é soberano. Tudo está imerso em
nossas vivências. O artista também tem a função
de educador, não só de produtor de arte.
É um engano, má vontade, superstição ou falta
de informação achar que desenho e pintura
não são necessários aos artistas que se intitulam
contemporâneos. A natureza é feita de linhas e
cores. Uma paisagem real, bolo de confeitaria,
pastel de camarão, garrafa de cidra, viaduto,
jardim, avenidas, carros, pranchas, instalações
e o que habita o universo real. Tudo depende
de como são transfigurados nos espaços. O
que são os meios ilimitados que comportam as
extensões limitadas? As silhuetas, os jogos de
sombra e luz, as intervenções, o corpo humano
e suas vísceras? Desenho e cor. Em resumo,
desenho é linha e pintura é cor. Negar essas
duas realidades é negar a releitura do mundo
real, da fantasia, do fetiche, das ambiguidades,
das fábulas, das estruturas de narrativas visuais.
Qualquer trabalho artístico é a soma de
79
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
fragmentações. Trazem em seu bojo vivências
atávicas. A capacidade de criar linguagem em
metamorfoses é que define a obra do artista.
Artes visuais
As artes visuais têm hoje ampla abrangência.
Na contemporaneidade, as fronteiras são
fluidas e têm como base as manifestações
que lidam com a visão. São consideradas artes
visuais a pintura, desenho, escultura, gravura,
fotografia, cinema, instalações, arquitetura,
web design, identidade visual, decoração,
paisagismo, vídeo, design, produção gráfica,
arte digital, holografia, sinalização, gestalt, arte
educação, comunicação visual e moda.
Por tantas implicações e assuntos intermináveis
e de longo percurso de estudos, vamos ressaltar
apenas alguns aspectos ligados às artes visuais:
mercado, patrimônio intangível, museus, crítica
de arte e moda.
É certo que outros autores comentariam e
valorizariam outros aspectos. Mas dentro do
80
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
conceito de democracia, que encontra registro
na Constituição da República Federativa
do Brasil, de 5 de outubro de 1988, está
disposto: constituem objetivos fundamentais
da República Federativa do Brasil constituir
uma sociedade livre, justa e solidária. Promover
o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação. Todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no país a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade. Ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude
de lei. É livre a manifestação do pensamento,
sendo vedado o anonimato. É livre a expressão
da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura
ou licença. É livre o exercício de qualquer
trabalho, ofício ou profissão, atendidas as
qualificações profissionais que a lei estabelecer.
A lei punirá qualquer discriminação atentatória
dos direitos e liberdades fundamentais.
81
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
A nobreza de nossa constituição nos socorre
dos intransigentes e professores de Deus.
Mercado
Mercado é uma série de transações de compra
e venda de bens ou serviços. Intenção entre
compradores e vendedores, conforme a lei da
oferta e da procura, seja em âmbito nacional
ou internacional. Quando o mercado se torna
grande, com grandes possibilidades de oferta,
os bens tendem a ficar mais baratos. Existem
vários tipos de mercado, suas especificidades,
temporalidades e épocas de cada ano.
Registrando de forma simplória, o mercado
de abadás se dá no período de Carnaval,
ovos da Páscoa nos meses de março e abril.
O mercado de arte é subjetivo, heterogêneo
e não se sustenta na visão economicista.
As variáveis às vezes chegam aos extremos,
tornando-se quase uma psicose. O tempo em
seu bojo revelará suas verdades e mentiras.
O risco é elevado e cabe aos vendedores e
compradores a lisura de intenções. Tudo cabe
no mercado de arte em termos do inusitado.
82
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
Pode-se ganhar e perder milhões. O acerto e
o erro se assemelham, a euforia e o desgosto
são próximos. Deve-se pensar em arte como
paixão, como ‘vício’, quando existem ganhos,
perdas e consequências.
Não há futurologia no mercado de arte. Quem
vende caro hoje, poderá não vender no futuro.
Popularidade não é qualidade.
Avaliações de obras de arte não têm caráter
matemático, mas alguns sinais e sintomas, como
trajetória do artista, conceito de obra, artista
morto, produção limitada, tempo de trabalho,
criadores de escolas, movimentos, grupos que
registraram historicidade, premiações, fortuna
crítica, técnica, obras assinadas, fases em
que o artista foi mais inventivo, dimensões,
conservação da obra e procedência.
Alguns especialistas sugerem que o mercado
de arte seja dividido em quatro grupos
diferenciados: os clássicos, os consagrados, os
emergentes e os iniciados. Os clássicos buscam
se definir como inquestionáveis, os que
83
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
mudaram a História da Arte, como Vermeer,
Rubens, Murillo, Paolo Uccello, Velásquez,
Goya, Raffaello e também Picasso, Matisse,
Cézanne, Toulouse-Lautrec, Ensor e Klimt, entre
tantos. Aí cabe a pergunta: por que Picasso,
Van Gogh e Cézanne são extremamente mais
caros que Velásquez, Delacroix e Rubens? Por
que Picasso, que teve uma produção imensa,
é mais caro que Vermeer, um gênio de oferta
pequena? Por que Van Gogh é mais caro que
Paolo Uccello? A esfera dos clássicos não se
refere à escola e sim à historicidade. Hoje, os
impressionistas alcançam preços inimagináveis.
O mercado dos consagrados, artistas de carreira
internacional, com pequeno risco de erro, ainda
com possibilidades palpáveis de aquisição,
tem entre seus representantes Joaquín TorresGarcía, Maria Helena Vieira da Silva, Júlio Pomar,
Pollock, De Kooning, Franz Kline, Rothko,
Newman, Yves Klein e Lucio Fontana, entre
outros. Eles trazem, mesmo assim, surpresas, e
podem ficar ‘engarrafados’ em grandes leilões
de casas conceituadas em Nova Iorque, Londres
e Paris. Tempo de trabalho ativo é derrubado
84
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
por valores e talentos como Keith Haring e JeanMichel Basquiat, que produziram por apenas
10 anos e morreram muito jovens. São mitos.
Como justificar essas situações?
O mercado dos emergentes é aquele para
quem quer começar uma coleção. São artistas
que apontam para uma direção na seriedade
de propostas, mas nada garante o risco. Bom
observar seus movimentos e avaliações críticas.
Vale pensar em Marepe, Juliana Teodoro, Jonathas
de Andrade, Ana Galhardo e Anya Zholud.
Enfim, há os iniciados que vivem nas ruas e feiras
livres, cuja sucessão dos anos se incumbirá de
colocá-los no lugar que possa merecer. Existem
milhares de artistas nessa situação. Comprar
arte, colecionar, é risco e paixão.
No Brasil, o mercado de arte, tem sido ingrato
com grandes artistas de notória competência e
criatividade que hoje não atingem o preço que
merecem e o valor artístico intrínseco ao seu
fazer, como Abelardo Zaluar, Paulo Roberto Leal,
Genaro de Carvalho, Antonio Maia, Dionísio Del
85
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Santo, Aldemir Martins, Rubem Valentim, Maria
do Carmo Secco, Athos Bulcão e Sacilotto. Todas
as injustiças um dia terão seu resgate, o triunfo
dos fatos e o reconhecimento.
No mercado de arte cabem profissionais de
muitas áreas de atuação, que no percurso deste
texto foram ou serão citados. Procuraremos
salientar alguns por puro gosto pessoal. Assim,
pequenos enfoques serão dados a museólogos,
museus, críticos de arte, patrimônio cultural
imaterial e, ainda, à moda, por ser pouco
estudada e crível.
Museólogo
O museólogo é o profissional que cuida da
ciência da museologia. Entre suas tarefas estão
a administração, manutenção, organização e
acondicionamento das obras de arte, peças
históricas e exposições, que podem ser fixas ou
temporárias. É um pesquisador que identifica,
organiza, cuida da preservação e classificação
de peças de valor artístico e histórico. Planeja,
86
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
organiza exposições, busca intercâmbios, parceiros,
sempre tendo o cuidado educativo e pensando
nas possibilidades de atrair público, formar
multiplicadores, monitores e pessoal de apoio.
O trabalho de um museólogo é um exercício de
paciência, cautela, senso observante, capacidade
de acumulação, análise, pensamento lógico,
intuitivo, e um certo refinamento para cuidar
da fragilidade dos objetos artísticos. Ordenação
e clareza são indispensáveis. O curso tem
duração de quatro anos, podendo se estender
em cursos de pós-graduação.
Os temas mais estudados são história da
arte, história geral e do Brasil, arqueologia,
antropologia, estética, noções de conservação
e restauração. O mercado de trabalho para a
profissão, que foi regulamentada em 1985,
é amplo: administração de museus, centros
culturais,
centros
de
pesquisas,
galerias,
aquisição de obras de arte. É importante não
esquecer nunca do trabalho educativo.
87
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Museus
Como
definição
acadêmica,
museus
são
organizações culturais que se prestam à
conservação de objetos que são referências
de atitudes artísticas, fenômenos da natureza,
descobertas científicas e intelectuais da
humanidade. O Conselho Internacional de
Museus, o ICOM, na Assembleia Geral de
Copenhagen, em 1976, definia:
Museu é uma instituição permanente sem
fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu
desenvolvimento e aberto ao público, que adquire,
conserva, pesquisa e exibe para finalidades do
estudo, da educação e da apreciação, evidência
material dos povos e seu ambiente. (ICON,
estatuto, artigo2, paragrafo1. 1974)
Assim podem-se incluir zoológicos, aquários,
jardins botânicos, planetários e parques nacionais.
Existem várias categorias de museus: artes
visuais, arqueologia, antropologia, etnologia,
história cultural, tecnologia, história natural,
industriais, agricultura, geologia e museus ao ar
livre. O primeiro museu ao ar livre data de 1881,
88
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
o King Oscar Ll’s, em Oslo, e o segundo em 1891,
o Skanser, em Estocolmo. O principal objetivo
de um museu é exercer a comunicabilidade
entre acervo e atuações paralelas com o grande
público, buscando aproximações entre os
indivíduos e a arte, humanizando condutas e
compreendendo as mudanças que se misturam
na existência e nas pessoas.
Convém aos museus um tempo trinitário:
passado, aqui-e-agora e as possibilidades
do futuro. O futuro é formado por metas,
reflexões pertinentes sobre possibilidades nas
quais a comunidade e criadores se aproximem
de suas missões, especialmente da construção
de identidade e cultura. Os museus às vezes
assustam o público, que por falta de informação
não se aproxima e, pelo contrário, se retrai por
medo de posturas imperativas, ou por não se
sentir capaz de entender a arte. O povo gosta
de cultura, mas não gosta de se sentir excluído.
Os museus não buscam, como deveriam, o
grande público. O status de um museu é sua
capacidade de aglutinar a comunidade em seus
89
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
espaços. O esforço para criação de um público
cativo e interessado passa por atitudes simples,
cativantes, na humanidade das intenções, e não
na arrogante postura de que cultura é privilégio
para poucos. A atualidade firma a cultura como
um grande ideal, dissipando diferenças entre os
povos, ganhando outra realidade, mais igualitária
e humana, no intercâmbio das mais diversas
estéticas e encontros. No Brasil, a divulgação do
que acontece em cada museu é pífia e, geralmente,
tão distanciada que não aglutina.
Um museu é um aparelho que deve ter
dinamismo, quando se discute arte em processos
de debates, seminários, palestras, congressos,
exposições de acervos e temporárias, sem
preconceito das formas de expressão. A
arquiteta italiana Lina Bo Bardi, naturalizada
brasileira, tinha um conceito inovador, quando
em 1963 criou no Museu de Arte Popular no
Solar do Unhão, em Salvador-BA, sua notável
Exposição Nordeste. Mais tarde, em São Paulo,
no ano de 1969, A Mão do Povo Brasileiro, no
MASP, dissipava a hipocrisia vigente.
90
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
Nosso espírito nativo é história. O preconceito
mais vem da desinformação que do conceito.
O conceito é pensado, cerebrotônico,
dentro de dados de realidade. Um museu,
especialmente o de artes plásticas, necessita de
boas bibliotecas, museólogos, restauradores,
pesquisadores, conselho curatorial, setor de
documentações,
arquitetos,
montadores,
equipes de iluminotecnia, pessoal de
manutenção e projeto de aquisições de novas
obras, que atualizam e provocam novos
interesses. Convém disponibilidade on-line na
internet da programação. Quem vai a qualquer
cidade quer conhecer museus, mas é muito
mais importante que as pessoas da cidade
conheçam seus museus.
Museu é centro de referência e memória e tem
seu lugar na cultura, sua profunda influência na
memória individual e coletiva, na permanência
e proteção do patrimônio material e intangível.
Museu tem diversas funções e o novo não é o
‘excêntrico novidadeiro’ para formar opiniões
distorcidas de contemporaneidade.
91
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Se “todo o poder emana do povo”, como reza nossa
constituição, o alvo dos museus deveria ser o povo.
O crítico e a crítica de arte
As primeiras manifestações escritas sobre obras de
arte e artistas vêm da Grécia Antiga, com Duride
Di Samo, no século IV A.C., que passou parte de
sua vida escrevendo sobre a arte de seu tempo.
A crítica de arte surgiu como argumentação,
pensar ordenado e reflexível, no século XVIII,
no fervor de manifestações artísticas, mudanças
de comportamento, mercado e aumento da
importância da imprensa escrita.
No Brasil, o primeiro crítico de arte foi
Gonzaga Duque (1863-1911), nascido no Rio
de Janeiro. Antes, os escritos sobre arte eram
apenas descrições, relatos e comentários de
acontecimentos artísticos. Gonzaga Duque deu
ao Brasil, de forma inovadora, textos reflexivos e
questionadores sobre a arte e sua utilidade. Seu
primeiro livro, publicado em 1888, leva o título
A Arte Brasileira e é uma referência válida até os
92
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
nossos dias, objeto de consultas e estudos.
Alguns historiadores e pesquisadores apontam
o pintor Manuel de Araújo Porto Alegre (18061879) como pioneiro, surgido na Academia
Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro,
fundada em 1826. Até que se encerrem as
divergências, os dois foram desbravadores.
Como profissão específica no Brasil, a atividade
se deu com a criação da Associação Brasileira
de Críticos de Arte (ABCA), em 1949, ligada
à Associação Internacional de Críticos de Arte
(AICA), fundada no ano anterior em Paris, na
França, como organização não-governamental
(ONG). Foi uma das primeiras atividades da
Unesco, criada em 1945. O crítico de arte passou
a ser um especialista, com associação de classe,
respeitando estatutos, buscando objetivos para
debates, seminários, congressos, discutindo o
papel da ABCA no cenário da cultura nacional
e internacional.
Em 2009, a ABCA completou 60 anos de
formação e tem 155 associados. É óbvio que um
bom crítico de arte não necessita de entidades
93
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
para se filiar, nem de estudos acadêmicos. Precisa
de informações atualizadas. As associações
de classe se baseiam em questões de respeito
ao livre pensar, dignidade de sobrevivência,
reconhecimento do trabalho e direitos. O
trabalho crítico está no campo da produção de
conhecimento, convivência e troca de saberes
entre profissionais. A ABCA, através de seus
associados, foi responsável pela fundação de
museus e a criação da mais importante mostra
brasileira, a Bienal Internacional de São Paulo.
Entre críticos históricos brasileiros, podemos
citar Mário Pedrosa, Sérgio Milliet, Mário
Barata, Antonio Bento e Mário de Andrade,
que deixaram um legado extraordinário,
preservando nossa herança cultural. Eles foram
as células iniciais da crítica moderna no país.
A crítica de arte não é uma ciência. Tem seus
sinais e sintomas, que dá legitimação, espaço e
método para o exercício do trabalho e análise da
produção do seu tempo. A ciência busca trabalhar
com verdades absolutas. No século passado,
Einstein e sua célebre Teoria da Relatividade,
94
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
junto com a física quântica, demonstraram que
não existem verdades absolutas. O ser humano
é falível, daí sua humanidade.
A dialética abre espaço para a análise dos
opostos. Assim, sujeito e objeto, crítico e arte,
confluem para possibilidades da análise crítica.
A crítica de arte já começa com uma contradição:
traduzir para o verbal ou o escrito o que é
expressão visual. Aí surge a possibilidade do
crítico inventor, de gerar uma nova reflexão
para o produto artístico e estabelecer pontes
de contato entre a obra realizada e o público.
São necessárias análises bem fundamentadas e
critérios aos juízos de valor. O juízo de valor vai
desde a formação do crítico, suas experiências
do olhar, estudos, leituras, convívio com artistas
e seus produtos, até o gosto pessoal.
Entenda-sequeogostopessoalestásubjetivamente
ligado a qualquer crítico de arte, das mais diversas
áreas do conhecimento, como literatura, música,
cinema, teatro, dança e tantos outros. Cabe aí a
honestidade de intenções, a seriedade e o zelo
95
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
pelo nome. Perder a credibilidade é uma pesada
desonra, que custa ao indivíduo a repulsa social
e histórica. Aspectos como interesses dirigidos,
pessoais, mercadológicos e político-partidários
são abomináveis. A justeza do crítico e sua
verdade devem dirigi-lo a reflexões e análises na
justeza do possível.
Ao crítico pragmático cabem curadorias,
participação em júris de seleção e premiação,
congressos, seminários, debates, formação
de acervos particulares ou de instituições,
interlocução com artistas, acompanhamento de
carreiras, pesquisas e organização de contextos.
O crítico de arte avaliza a aproximação entre
a arte, o artista e o público. Contribui com a
história da arte, documentando seu tempo.
A crítica de arte contemporânea é formulada
entre multiplicidades e interdisciplinaridades. A
filosofia, sociologia, antropologia, historiografia,
pedagogia, psicologia e a literatura contribuem
com a interpretação da arte. A crítica de arte,
em sua maior extensão, se dá pela palavra
enquanto ação e nos aproxima do individual e
96
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
do coletivo. Abrange também o trabalho de fixar
em catálogos, livros, revistas e jornais, envolver
o público num ritual de ideações e visibilidades,
buscando a formação de um pensar reflexivo, de
um olhar diferenciado para o sensível. Qualquer
obra de arte é sempre aberta.
José Roberto Teixeira Leite coloca a crítica de
arte como um ramo da literatura. Exemplos
lapidares são os textos de Walmir Ayala e
Jayme Maurício. O texto crítico finalizado pode
ser obra de arte autônoma.
O trabalho do crítico é buscar estratégias de
comunicabilidade, apoiado nos fundamentos
das ciências humanas. É despertar sentimentos
e ativar os órgãos dos sentidos.
Patrimônio Intangível
O patrimônio cultural imaterial da humanidade
busca o registro das manifestações culturais
intangíveis dos diferentes povos. Há muito
é estudado por antropólogos, sociólogos e
historiadores. A partir de 2004, a UNESCO
97
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
buscou incentivar a necessidade do registro
e o aprofundamento de questões para o
levantamento de vivências coletivas e da
vida psicossocial de indivíduos. Na vastidão
continental
do
nosso
país,
encontramos
bens imateriais que nos dão a noção de
pertencimento e pátria, como o samba de roda,
cantigas folclóricas, frevo, maracatu, Folia de
Reis, bumba-meu-boi, Carnaval, congados,
vaquejadas e outros.
O Nordeste brasileiro, tão marginalizado pela
chamada ‘cultura erudita’, é onde palpita
a identidade nacional com maior pujança.
Dessa maneira, tivemos a ‘sorte’ de não
sermos tragados de forma tão brutal pela
globalização, pela massificação dos costumes.
Resistimos. A nossa alma nativa, apesar das
já descaracterizações, mantém tradições que
emanam do povo, como o São João, São
Pedro, festas de largo, capoeira, maculelê,
presépio, samba de roda do Recôncavo Baiano,
os estandartes e monogramas dos santos de
devoção, as manifestações afro-brasileiras, a
98
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
linguagem peculiar dos diferentes estados,
mercados, feiras livres, santuários, viola-decocho, ofício das baianas de acarajé, Círio de
Nossa Senhora de Nazaré, Feira de Caruaru,
tambor de crioula do Maranhão, a Feira de São
Joaquim, em Salvador, entre tantas.
Um país é sua história, sua essência e tradições.
O
regionalismo
vem
de
características
predominantes de uma extensão geográfica
com
suas
manifestações
culturais
bem
definidas, valorizando os costumes do povo,
sua realidade endógena.
A cultura da oralidade, mesmo com infinitas
versões, deve ser estudada, confrontada,
discutida e preservada.
A ideia da Aldeia Global, preconizada por
Marchal McLuhan, é hoje uma realidade para
o bem e para o mal, tendo como principal
característica a presença de marcas mundiais.
Na cultura, é quase um suicídio de pessoalidade,
individualidade e nacionalismo. Nada contra o
99
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
progresso, a integração de povos, a interligação
do mundo, dos meios de comunicação, todos
originados no final do século XX.
Cultura é o nosso acervo intelectual, espiritual,
ideológico no sentido de alma, que caracteriza
grupos, nações e civilizações.
Radicalizar é estar na contramão do mundo
contemporâneo, mas renunciar identidade é
suicídio cultural.
Em artes visuais, a grande resistência, buscando
fixar o patrimônio cultural imaterial, está entre
os artistas primitivos, ingênuos ou naïfs, que
em sua ‘inocência’ transportam para o campo
visual nossas manifestações populares, nos
aproximando de nossos valores. Esses artistas
nos devolvem nossa realidade atávica, nosso
pertencimento e memória. Os naïfs são vistos
com preconceito pela ‘cultura culta’, quando
na verdade o que importa é o produto final,
o resultado, a invenção de linguagem. Não
importam os suportes, as técnicas sofisticadas, se o
100
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
produto é cópia banal, clichê do clichê, com ‘bulas’
delirantes. Aceitar as diversidades e conviver com
o diferente é um exercício democrático.
Entre os artistas primitivos, geralmente de
grande receptividade popular, os que mais
se destacaram traduzindo nosso patrimônio
cultural imaterial foram Miriam Inês da Silva,
Gerson de Souza, Heitor dos Prazeres, José
Antonio da Silva, Maria Auxiliadora, Waldomiro
de Deus e Rosina Becker do Valle. Esses são
artistas, sem os desvios que se tenta impor à
criatividade e singularidade popular.
Entre os artistas eruditos que também se valeram
de bens culturais intangíveis encontramos
Rubem Valentim, Alfredo Volpi, Lula Cardoso
Aires, Miguel dos Santos, Wellington Virgolino,
Ronaldo Rego, Guignard, Aloísio Zaluar, Sante
Scaldaferri, Fulvio Pennacchi, Mario Cravo
Neto, Aldemir Martins, Emmanuel Nassar, Di
Cavalcanti, Gilvan Samico, Tarsila do Amaral,
Lívio Abramo e Humberto Espíndola.
101
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Preservar bens culturais e transmiti-lo às novas
gerações é referência para a preservação da
essência de um povo, de uma nação.
Moda como arte
Os estudos contemporâneos das artes visuais,
que na atualidade têm vasto alcance, consideram
a moda como fato concreto, para espanto de
alguns e absorção reflexiva de outros.
A moda é arte quando há descobertas de
sistemas de códigos, linguagem, transfigurações
e seus resultados interferem como fenômeno
criativo. Há muito, os grandes museus do mundo
realizam exposições de estilistas, revelando o
ato criador. A roupa é o aspecto cenográfico do
corpo, que se transforma em suporte. O corpo
é suporte para invenções, que expressam um
pensamento, um estilo, lugares e épocas.
Os estilistas resolvem problemas de silhueta,
caimento, textura, harmonia e cor, buscando
transcender o artesanal e chegar a equações
102
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
artísticas de alto padrão. Importantes
intelectuais, historiadores e antropólogos
dedicaram parte de suas vidas a estudar a moda.
Críticos de arte e curadores têm contribuído
com ensaios e exposições de grandes estilistas.
Hoje, os grandes centros de desenho de roupas
estão entre Nova Iorque, Milão e Paris.
Foi na alta costura que mais se desenvolveu o
conceito de moda/arte. A moda é um elemento
histórico que tomou corpo no século XV e se
manteve até a nossa idade contemporânea.
A profissionalização de forma sistêmica veio
a partir dos anos 20, com quatro pilares
pioneiros. O francês Jacques Doucet (18531929) escandalizou o mundo ao subir as
saias das mulheres até tornar visíveis as ligas
rendadas. Fundou em Paris uma das primeiras
casas de alta costura, tornando-se famoso pela
ousadia das cores e perfeito acabamento das
peças que criava.
Já o francês Paul Poiret (1879-1944) abriu sua casa
em 1903, libertando a mulher dos espartilhos e
convencendo a sociedade com uma proposta
103
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
mais solta e leve para o vestuário. Foi o inventor
da técnica de moulage e draping. Criou as calças
sherazade, túnicas-abajur e o sutiã.
O também francês Jean Patou (1880-1936)
abriu sua loja, a Maison Parry, em 1912, e
foi o inventor da malha de banho e roupas
para esportistas. Subiu as saias, popularizou o
‘casaquinho’ e desenhou gravatas.
Coco Chanel (1883-1971) foi uma mulher
inovadora. Chanel inventou as primeiras calças
femininas, roupas para praia e montaria. Ela
introduziu na alta costura o jérsei de malha, tecidos
xadrez, calças boca de sino, jaquetas curtas, jóias
falsas, colares de correntes e de pérolas com várias
voltas, bolsas com alças de correntes, o tailleur e
saias simples. Em 1921, criou o perfume Chanel
nº 5. Nascia, em 1926, o ‘pretinho básico’, que
virou lenda em todo o mundo.
Em 1950, Paris tinha 105 casas de alta costura.
Entre os grandes criadores de linguagem,
destacam-se:
104
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
Nina Ricci – extremante requintada, tinha nas
cores seu ponto alto. Trabalhou com Andy
Warhol, em uma relação de troca saudável.
Cristóbal Balenciaga – destacou-se com
vestidos de cintura alta e casacos cortados
como quimono. Suas criações das décadas de
50 e 60 são consideradas obras-primas.
Christian Dior – tinha extrema habilidade em
desenho. Criou o conceito new look, que
revolucionou a arte de vestir.
Hurbert Givenchy – criou a blusa Bettina e tem seu
nome ligado ao cinema. Vestiu inúmeras atrizes,
entre elas Audrey Hepburn, que veio a ser sua
musa inspiradora em filmes como Bonequinha de
Luxo, Cinderela em Paris e Sabrina.
Valentino Garavani – um dos mais corretos
criadores do planeta. Sua grife tem cortes
diferenciados e suas coleções feminina
e masculina ‘ready-to-wear’ o tornaram
conhecido internacionalmente.
105
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Yves Saint Laurent – inventou o smoking
feminino. Foi o primeiro estilista a lançar
manequins negros. Em 1983, foi homenageado
com a exposição de seu trabalho no Metropolitan
Museum of Art, de Nova Iorque.
Emanuel Ungaro – poucos tiveram a ousadia
do desenho como ele. Não improvisava e sua
arte está ligada à memória do barroco.
A moda é arte e técnica apurada de interação,
influências de atitudes que registram
transformações da sociedade.
106
O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais
César Romero
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Janeiro: Senac, 2003.
109
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves 23
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
O
bviamente, os curadores, além de uma
formação sólida e de conhecimentos sobre
história e teoria da arte, precisam gostar
de arte. Nada melhor do que frequentar
constantemente mostras, se dedicar a pensálas e elaborar seus pensamentos em textos. O
contato direto com os artistas é fundamental
para o desenvolvimento do pensamento sobre
arte contemporânea. O diálogo, a proximidade e
cumplicidade com os artistas podem enriquecer
o processo de aprendizado. Desde que a crítica
se tornou rarefeita nos grandes jornais diários, a
Possui Bacharelado em Filosofia pela Universidade de São
Paulo (2000), Licenciatura (2000) e Mestrado em Filosofia pela
Universidade de São Paulo (2004). Tem experiência em História da
Arte, Crítica, Curadoria, Teoria da Arte e Estética. É doutorando
em estética e teoria da arte pela FFLCH-USP, membro do Corpo
Editorial da Revista Número e curador do Clube de Gravura do
Museu de Arte Moderna de São Paulo. É professor do curso Arte:
história, crítica e curadoria, da PUC-SP; docente da Fundação
Armando Alvares Penteado, FAAP, do curso de arquitetura e
urbanismo da Escola da Cidade e do curso de artes visuais do
Centro Universitário Belas Artes. Foi membro do Conselho
Consultivo de Artes do MAM-SP (2005-2007) e realizou, entre
outras curadorias, MAM[na]OCA: arte brasileira do acervo do
Museu de Arte Moderna de São Paulo (2006-2007), a mostra
Quase líquido, no Itaú Cultural (2008) e Da Estrutura ao Tempo:
Hélio Oiticica, no Instituto de Arte Contemporânea (2009-2010).
23
113
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
reflexão sobre a arte parece ter se desenvolvido
prioritariamente em catálogos e folhetos de
mostras que também têm a função de apresentar
o trabalho a um público não necessariamente
familiarizado com arte contemporânea. A
escrita sobre arte, nesses casos, em vez de partir
de um distanciamento pleno em relação ao seu
objeto, costuma surgir de uma adesão prévia ao
trabalho de arte. Em vez de escrever sobre o
trabalho de arte, escreve-se com o trabalho. É
no interior dele que o texto retira seus próprios
argumentos e sentidos.
Nas próximas páginas o leitor irá encontrar
dez pequenos textos que foram escritos nos
últimos anos, entre 2004 e 2010, sobre Ana
Holk, André Komatsu, Cinthia Marcelle, Débora
Bolsoni, Fernando Vilela, Lia Chaia, Maurício
Ianês, Rodrigo Matheus, Sara Ramo e Tony
Camargo. Todos eles surgiram de um contato
direto com os respectivos artistas e trabalhos.
Se por um lado os textos são frutos de
encomendas institucionais, seja de galerias
comerciais paulistanas (Galeria Vermelho, Galeria
114
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
Virgílio ou Casa Triângulo) ou de instituições
públicas (Paço das Artes e Centro Cultural São
Paulo), por outro foram fundamentais para o
desenvolvimento de uma escrita sobre arte e
da formação de seu autor. A sua publicação
aqui, entretanto, não tem qualquer pretensão
de servir como exemplo para futuros curadores,
ao contrário, eles são o testemunho da própria
dificuldade dessa escrita institucional, uma vez
que muitos deles são frutos de prospecções.
Para que fossem divulgados no dia de abertura
das mostras, alguns deles foram escritos antes
mesmo de os trabalhos estarem acabados. Isso
não justifica as imprecisões que inevitavelmente
eles acabam trazendo, mas revela sua urgência,
uma vez que foram feitos ao calor da hora e sem
qualquer distanciamento temporal ou espacial.
Débora Bolsoni: mímesis
A partir de mínimas alterações em objetos
cotidianos, utilitários e usados comercialmente
para otimizar o tempo – carrinhos de mão,
bobinas de papel, galões e filtros d’água, ou
ainda lousas como a que vemos em bares com a
115
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
lista dos pratos do dia –, Débora Bolsoni investe
seu trabalho de uma multiplicidade de sentidos.
Seja pela simples mudança dos pontos de apoio
ou pela parcial subversão de seu uso, sem que
se tornem inúteis, as peças têm seu estatuto
modificado. Não se trata apenas de uma
blague, de mais um ready-made ou tampouco
de antiarte. Há algo de francamente construtivo
e maturado, além de geométrico, em sua obra.
O exemplo mais evidente é a apresentação
da triangulação que, a despeito de analogias
sacras, organiza tabuletas retangulares com
círculos circunscritos desenhados a giz.
Em vez de apresentação, talvez representação
- termo bombardeado por boa parte da arte
do século XX - seja mais apropriado para
caracterizar seus trabalhos. Cada peça poderia
ser compreendida como um personagem
atuando em cena, sem que, no entanto o
aspecto teatral se sobressaia. Não há ostentação
ou eloquência nesse teatro de formas simples
e sutis, mesmo que o contexto de um salão
real o exija. Entretanto, num olhar um pouco
mais atento, a encenação logo se arranja: um
116
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
bobo da corte estende um tapete vermelho, ou
melhor, rosado de papel de embrulho, para o
rei que tem sua autoridade reforçada por dois
sentinelas eretos em serviço.
Mas nesse teatro sem atores, as peças, além
de personagens, são como objetos cênicos que
adquirem valor e função diversos de acordo com
sua posição e uso. Não é raro em seu trabalho
um mesmo elemento aparecer em contextos
diferentes, o que acaba transformando
sua aparência, embora ele mesmo não seja
modificado em aspecto algum. Na porta de
uma mercearia, as tabuletas são tabuletas,
mas podem facilmente tornar-se objetos quase
ordinários espelhados na antessala de um
gabinete real, alvos para serem mirados, ou
personagens plebeus em estado de prontidão.
É como se um carrinho de mão disposto pela
artista, por exemplo, antes de imitar a antipatia
de um rei em particular, seus gestos e expressões
faciais, conseguisse ter a potência de guardar
as características mais universais do rei, de
sua força e de seu trono, concentrando uma
117
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
espécie de essência de sua presença, de seus
atributos e de tudo aquilo que lhe é próprio.
Isso foi denominado de mímesis na história do
pensamento. Essa noção, aspecto fundamental
das artes poéticas, inclusive da dança, pintura,
escultura, música e teatro, esteve próxima de
grande parte de excelentes obras de arte da
história. O trabalho de Débora Bolsoni, sem
partir de noções ou conceitos prévios, pode
muito bem estar entre elas.
Cinthia Marcelle: Entre o singular
e o universal
A operação realizada por Cinthia Marcelle tem
como premissa a estrutura do prédio do Centro
Cultural São Paulo e a força de sua arquitetura.
Trata-se de uma simples recombinação de
dezenas de lâmpadas frias que cobrem
linearmente o teto do edifício. A artista emenda
fios azuis e vermelhos que formam uma espécie
de gambiarra e, como em dinamites gigantes,
agrupa bastões de luz em feixes. O explosivo
luminoso, em vez de sugerir uma ameaça em
potencial, aproxima-se da pulsação e da atividade
118
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
da própria instituição. Não se trata, entretanto,
de uma crítica institucional, tampouco de
uma simulação de um atentado terrorista. As
dinamites que vemos difundindo claridade estão
sendo detonadas. Como estamos no campo
da arte, o que emana dessas esculturas pode
carregar os sentidos figurados da luz.
No centro de cada explosivo há um relógio sem
divisões no qual um ponteiro em movimento
contínuo e circular gira sobre um fundo sem
demarcações. É como se o instante da explosão
fosse alargado ao máximo até se tornar eterno.
Não é possível mensurá-lo ou determinar
seu início e fim. Do mesmo modo, não há
finalidade para o tempo que transcorre senão
o seu próprio movimento.
Talvez a explosão que esteja em ação tenha
relação com a explosão cósmica, com o big
bang que deu origem à criação do universo
e cujo movimento ainda não cessou. A série
Unus Mundus – e o título é sugestivo – poderia
corroborar tal hipótese. De um modo amplo,
a série investiga a dimensão do mundo e
119
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
as relações entre acontecimentos únicos
e ocorrências múltiplas. Interessa à artista
coincidências e simultaneidades.
Unus Mundus - Volta ao Mundo, apresentado
na mostra coletiva, é um vídeo de uma ação
aparentemente incomum: nove Kombis giram
alguns minutos em torno de uma praça. Além
de o registro de um acontecimento, trata-se de
uma situação genérica: quantas Kombis nesse
exato instante contornam praças pelo mundo?
Quantas já deram ou ainda darão voltas em
qualquer rotatória em alguma cidade? É a essa
relação incógnita entre o singular e o universal
que o trabalho de Cinthia Marcelle remete.
Para a mostra individual, a artista apresenta
um novo trabalho em vídeo: Unus Mundus Confronto. Enquanto o mundo continua a girar,
um pequeno ruído é causado entre malabaristas
sobre uma faixa de pedestre e carros afoitos em
cruzar o farol. O poder do fogo e a habilidade
dos acrobatas, que aos poucos tomam as ruas
e criam uma situação inusitada, desafiam a
120
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
buzina estridente dos motoristas.
Um evento ímpar como esse, ao mesmo tempo
em que nos permite acionar situações idênticas
e paralelas, exige uma reconfiguração de seu
entorno e uma nova equação de forças. Essa
experiência versa sobre um exemplo não exemplar
que concentra acontecimentos semelhantes e
díspares, que se repetem todos os dias em nossa
vida, que podem ser generalizados, mas que
jamais constituem um modelo.
Tony Camargo: A unidade do diverso
Para o público que já conhece as Planopinturas e
os Fotomódulos de Tony Camargo, os desenhos
que o artista exibe pela primeira vez em São
Paulo podem surpreender. A limpeza formal e a
ausência de pincelada, uma vez que as pinturas
são feitas com uso de máscaras e compressor,
contrastam com o excesso de elementos gráficos
dos desenhos e o dado mais artesanal deles.
Mesmo que cada uma das séries tenha um
caráter próprio e nenhuma dependa da
121
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
outra para se afirmar, o ponto de interseção
entre as pinturas e os desenhos parece estar
nos Fotomódulos. Com a cor, Tony Camargo
estabelece uma íntima relação entre as camadas
de pintura e as cenas mais banais fotografadas.
Diversos tons são explorados ao mesmo tempo
numa superfície lisa pintada e em imagens como
as de um balão de ar, uma peça de roupa ou
uma placa inventada. Até as palavras se tornam
elementos pictóricos. Há total continuidade
entre as pinturas e as fotografias, como se uma
interpenetrasse a outra, como se as cores das
pinturas se reencontrassem consigo mesmas
fora da tela, nas fotografias. E como se as cenas
fotografadas, no sentido oposto, se dirigissem
para o campo da pintura.
O corpo do artista, sempre com rosto
encoberto, tem papel central nas fotos. É ele
quem porta os elementos coloridos que se
desdobram nas superfícies pintadas. Os gestos
e posições contorcidas de Tony Camargo,
o tronco para um lado, a cabeça para outro
e os pés cruzados são análogos às posições
que seus personagens desenhados assumem.
122
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
Há neles um desequilíbrio e uma posição um
tanto desajeitada. É dessa inabilidade e falta
de destreza que surge a expressividade dos
desenhos. Algo da posição das dançarinas e dos
corpos das colagens da série Jazz de Matisse
reaparece nesses trabalhos.
Entretanto, as formas de Tony Camargo
são mais animalescas. Suas figuras flutuam
num espaço imaginário, pleno de cores, e
se aproximam de formas infantis. Há nos
desenhos contrastes entre cores puras que
estão ausentes nas suas fotografias e pinturas.
Aqui as linhas são inseparáveis da cor e trazem
a espontaneidade de uma técnica que se liberta
de seus procedimentos mais cristalizados. No
processo desses desenhos, uma figura surge
da outra, por isso elas parecem tão encaixadas
entre si. A composição é permeada de fitas
adesivas de diversas cores que se mesclam com
os traços. Formas orgânicas são entrecruzadas
por manchas retas e geométricas das fitas
industriais. Tudo se passa como se os tons dos
desenhos brotassem do interior da própria fita.
123
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Embora cada série de trabalhos seja feita de acordo
com suas próprias necessidades e exigências, há
claramente uma sintaxe do artista, certo modo
de estabelecer relações que identificamos como
sendo seu. Percorrendo diferentes técnicas,
suportes e temas, Tony Camargo nos mostra
que a falta de uniformidade não implica em
incoerência. A diversidade não impede que se
reconheça uma unidade em sua obra.
Sara Ramo: Entre o cosmos e o caos
Na tradição da filosofia antiga, cosmos,
do grego kósmos, é a ordem do mundo, o
princípio regulador e as leis da harmonia do
universo. Além de significar, no sentido atual,
o composto de matéria e energia do espaço
sideral, cosmos se refere ao ordenamento da
natureza e da cultura, tanto em relação ao
Estado, como na organização de solenidades
religiosas. Por oposição a caos, do grego cháos,
o cosmos foi criado segundo um modelo eterno
e perfeito. Conforme a tradição platônica,
caos é a desordem e confusão que precede
a intervenção do demiurgo, o artesão divino
124
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
que modela a matéria caótica preexistente. O
caos é o estado de indiferenciação e de mistura
dos elementos, está ligado ao desequilíbrio e à
irregularidade do universo.
O trabalho de Sara Ramo parece lidar
diretamente com essas duas noções, cosmos e
caos, embora não como oposições rígidas. Em
Alguns dias passados no espaço, é como se a
artista encarnasse um demiurgo mais humano
e banal do que divino. Ela não chega a criar a
realidade, mas pode moldar meteoros, estrelas
ou galáxias que surgem a partir da percepção
de pequenos acidentes cotidianos. Se o
demiurgo é aquele que exerce um ofício, um
criador de obras grandiosas, pode ser também
o responsável pelo mal que o Criador supremo
jamais poderia gerar.
No microuniverso do trabalho, restrito aos
limites de um quartinho dos fundos de uma
casa, a ordem não é soberana. Bolhas da
parede com infiltração e tufos de poeira
(cósmica?) dividem o vazio do ambiente com
a regularidade e geometria dos tacos do piso.
125
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
As imagens, como em pôsteres didáticos,
são seguidas de definições científicas e, não
sem ironia, uma mancha de leite no chão, a
desordem por excelência, é convertida em Via
Láctea do mesmo modo em que um balão
furado se torna um buraco negro.
Já no vídeo Meia volta, volta e meia, a relação
entre cosmos e caos se dá de outro modo.
Dentro de um quarto ocupado por móveis,
objetos saem de seus lugares, são embaralhados
e se deslocam como numa órbita ao redor e
no interior do cômodo. Ao reencontrarem o
local de partida, completando o movimento de
translação – o equivalente a um ano na órbita
da Terra em torno do Sol – algo de estranho
acontece. Os móveis também mudaram de
lugar e as referências não são mais as mesmas.
A ordem virou caos e, quando foi restabelecida,
teve seu equilíbrio alterado.
Lidando claramente com analogias entre o
micro e o macrocosmo, o trabalho de Sara
Ramo nos mostra que as forças do universo
estão em constante movimento e que às vezes,
126
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
para modificar a regularidade do mundo, não é
necessário destruí-lo, mas apenas realizar mínimas
alterações - e assim com cada coisa. Afinal, o
tempo age sobre todos os sistemas. Como no
efeito borboleta, as leis iniciais e que determinam
certos fenômenos são extremamente sensíveis.
Pequenos movimentos podem acarretar estados
adversos e inimagináveis.
André Komatsu: Tempo = ação/espaço
O projeto de André Komatsu é menos uma obra
acabada do que um processo que se desenvolve
no tempo. Ele não chega a se constituir como
uma narrativa, já que não há personagens ou
acontecimentos que se encadeiam em série.
Trata-se apenas de dois momentos: o primeiro,
o incêndio da estrutura de uma pequena casa
de madeira construída ao ar livre e, o segundo, o
recolhimento das cinzas e a transferência delas
para uma caixa dentro do espaço expositivo.
O trabalho não forma um sistema fechado em
que a mudança de um estado a outro tende
sempre à desordem, embora parte da casa
127
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
incendiada se dissipe em calor e fumaça. A
perda de energia, a destruição da estrutura
arquitetônica e sua tendência ao esfacelamento
são relevantes nesse processo. No entanto, em
vez da valorização do declínio ou da aniquilação,
interessa ao artista o processo de mudança
contínua tanto dos objetos como do espaço.
Além de ocupar livremente o exterior do prédio,
resíduos desse processo ficam impregnados nas
roupas do público. E depois de transportadas
para dentro do Paço das Artes, qualquer
deslocamento de ar tende a fazer com que as
cinzas continuem a se dispersar.
As premissas espaciais do trabalho de Komatsu
se distanciam de uma compreensão apenas
quantitativa do espaço, como se ele fosse
constante, fixo e mensurável completamente por
alguma unidade de medida. Ao contrário, sua
noção parte de um espaço que em nada se opõe
ao tempo. Trata-se justamente de um espaço
móvel, qualitativo e que tende a ser percebido
em seu devir. As arquiteturas projetadas pelo
artista são sempre inabitáveis ou inacessíveis.
Não são espaços confortáveis, concebidos
128
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
segundo proporções ideais a partir da escala do
corpo. São lugares apertados, áridos e que antes
de buscarem uma relação harmoniosa com o
espectador, ou proporem uma participação, são
agressivos e avessos ao contato direto.
Em um dos seus vídeos, em que o artista
recolhe ruínas e fragmentos de construções
pelas ruas da cidade e tenta agregá-los ao seu
corpo em mochilas ou bolsos, fica evidente a
inadequação entre corpo humano e a matéria
bruta da construção civil. Mesmo que em
alguns trabalhos ele tente atribuir nova função
ao entulho, é clara certa oposição entre esses
dejetos, os espaços arquitetônicos dos quais
eles resultam e sua relação com o corpo.
A inadequação de certas construções em
relação ao corpo havia sido formulada pelo
artista em uma espécie de guarita inóspita,
uma arquitetura de guerra e de controle que
Komatsu projetou para sua individual no
Programa de Exposições do Centro Cultural
São Paulo. Fechado em si mesmo e inacessível,
tratava-se de um espaço ameaçador que se
129
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
camuflava com o branco dos painéis destinados
a organizar a mostra.
Entretanto, enquanto nessa experiência a
assepsia era uma estratégia de disfarce, aqui, em
Tempo = ação/espaço, ela pode ser compreendida
de modo inverso. A combustão da madeira
não deixa de ser uma maneira de higienização,
mas a transposição dos resíduos resultante
desse processo para o espaço expositivo inverte
essa lógica. O trabalho funciona, assim, como
um agente contaminador que leva a sujeira
do mundo da vida para dentro do asséptico e
‘neutro’ espaço expositivo.
Trabalhando com as relações entre a ação no
espaço e sua correspondência com o tempo,
Komatsu parece compreender o par construção
e desconstrução como inseparável. Antes
de criar espaços congelados e determinados
por relações fixas, ele lida com o processo de
transformação da ruína em edificações e a
inevitável ação do tempo que tende a corrompêlas e degenerá-las.
130
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
Rodrigo Matheus: Ficção e segurança
Alguns dos mais ambiciosos trabalhos de
Rodrigo Matheus estão ligados a marcas criadas
especialmente para seus projetos. Poderíamos
compreendê-las como ‘conceitos’, em sua
conotação mais vulgar e publicitária, ou como
entidades, enquanto instituição ou pessoa
jurídica legalmente constituída. Entretanto, não
sem certo sarcasmo, são também operações
críticas em que a função da marca, geralmente
usada para distinguir um produto entre
seus semelhantes, é subvertida. Mais do que
procurar associar imagens que potencializem
as características comerciais do produto ou
de ser um indicativo de qualidade, as marcas
e logotipos criados pelo artista buscam se
aproximar do estereótipo esperado dentro do
ramo da empresa fictícia criada.
A Engeoplan, ligada ao planejamento e à
fabricação de objetos para escritório, na qual
se insere área de fumantes, construído em
2003 no Paço das Artes, em São Paulo, é um
exemplo do modo como o projeto de Rodrigo
131
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Matheus se insere na instituição. A assepsia e
o antidesign de ambientes típicos de algumas
repartições públicas são transportados para
o espaço expositivo onde a reiteração de sua
função adquire um significado irônico e mesmo
político. Eficiência e discrição são onipresentes.
A mesma Engeoplan, com o slogan ‘você
vai sonhar com este lugar’, trabalhou com
incorporação de imóveis. Em anúncio fictício
publicado na Folha de S. Paulo - no caderno
especial 31 artistas + I metrópole, em janeiro
de 2004 - uma imagem fake e muito próxima
das criadas para a venda de prédios residenciais
na planta, zomba desse imaginário urbano
recorrente em encartes de jornais e panfletos
distribuídos em faróis.
Para a individual do programa de exposições
do CCSP, o artista mostra nova montagem
de Centurium, apresentada recentemente no
Museu de Arte da Pampulha, em Belo Horizonte.
Um logotipo negro, hexagonal e com detalhes
em dourado, que remete diretamente a um
escudo e à proteção oferecida por empresas
de segurança, sustenta a série. Além de trazer
132
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
uma imponente peça de metal, que inspira
solidez e confiabilidade, adesivos com a marca
foram colados em diversas portas internas e
externas do prédio da Rua Vergueiro. Mais do
que inibir a ação de criminosos, o que é bem
possível que aconteça, interessa ao artista a
falsidade e a ficção criadas a partir do selo, que
pode ser visto também em casas e carros de
Belo Horizonte e São Paulo.
Entre as peças dessa série, Paratec, um
sinalizador geralmente usado no topo de
edifícios, se embrenha na tubulação aparente
do Centro Cultural e chama a atenção para
a estrutura do local. Abrigo, móvel como os
usados para guardar mangueira e hidrante,
completa o diálogo surdo com o encanamento
da instituição. O equipamento anti-incêndio,
além de desconectado das tubulações, está
lacrado. Sua não funcionalidade se mescla
ao ambiente, como se de fato essa escultura
vermelha habitasse o local permanentemente.
A ‘segurança’ não estaria completa sem Apoio
Tático, uma estrutura de metal tão agressiva
quanto uma metralhadora, com câmera na
133
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
ponta. Um rack desce do teto e um monitor de
vídeo exibe um incógnito e angustiante filme
de Marcelvs L., com uma única sequência,
de uma casa que poderia estar sendo vigiada
pela Centurium, mas que possui seus próprios
recursos cerceadores. Como se, numa cadeia
infinita, vigias precisassem de vigias...
A sensação final é de que o logotipo, que aos
poucos se cristaliza em nossa memória, sempre
fez parte do nosso repertório. Mais do que
transformar o mundo em ficção, o projeto nos
mostra o quanto nossa vida é permeada de
ficções construídas por nós mesmos.
Ana Holk: Em obras
Na metade da década de 1970, o Governo
Federal iniciou as obras do que seria a maior
usina hidrelétrica inteiramente brasileira: a
Usina de Tucuruí, instalada no rio Tocantins,
no Pará. Concebida em meio à retórica de
um país que afirmava sua autoimagem como
se ainda estivesse na iminência de integrar o
seleto clube das nações desenvolvidas, sob
134
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
a égide de um Estado individado, mas que
investia em grandes projetos que sustentariam
o crescimento econômico para a região Norte e,
assim, propiciaria a modernização definitiva do
Brasil, a Usina de Tucuruí, depois de sucessivos
adiamentos causados pela crise econômica em
que o país mergulhou, só pôde ser inaugurada
nove anos depois, em 1984.
A série Canteiro de Obras, de Ana Holck,
realizada com base nas fotos tiradas por volta
da virada da década por seu pai, um engenheiro
calculista que trabalhou intensamente no
projeto da usina, revela aspectos do nosso
contraditório e retardatário processo de
modernização. As fotografias não dissimulam
a monumentalidade da construção, metáfora
do próprio gigantismo do ‘país do futuro’,
um país com proporções continentais. Mas,
se por um lado há nas imagens vestígios de
uma utopia moderna e de crença no progresso
tecnológico e na racionalidade como caminhos
infalíveis para a superação do atraso de
uma nação que estaria ainda na infância, há
também, no trabalho de Ana Holck (e talvez o
135
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
aspecto envelhecido e a predominância de tons
sépia na imagem reforcem isso), uma explícita
justaposição de linhas e de estruturas não tão
rígidas e que dão uma aparência menos sólida
e um tanto instável à construção.
A despeito de todo o otimismo que nos anos de
1970 já havia sido praticamente abandonado,
a não ser pelo discurso ufanista do governo
ditatorial brasileiro, é mais do que sabido que
o projeto moderno não chegou a se realizar
completamente no Brasil. E o trabalho de Ana
Holck, concebido com certo recuo histórico,
talvez nos forneça elementos que nos permitam
compreender a dificuldade de sua efetivação. O
próprio fato de a usina estar em obras, e essas
obras terem sido mais longas do que o planejado,
reforça a compreensão do inacabamento do
projeto moderno. Por mais que alguns ângulos
e enquadramentos sejam vertiginosos e não
completamente convencionais, o trabalho da
artista aponta para ambiguidades entre projeto
e realização, entre construção e desconstrução
ou entre o permanente e o provisório, que
são bastante reveladoras. As conexões que a
136
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
artista estabelece entre a malha de ferro da
construção, que posteriormente é coberta pelo
concreto, e a grade sobreposta feita por ela, nos
permitem repensar a relação entre o aparente
e o escondido ou, a partir da sobreposição de
novas camadas, entre imagem e realidade.
Além de uma ressignificação de um arquivo
pessoal e de uma nova atribuição de valores,
Canteiro de Obras recoloca nossas contradições
formadoras: a engenharia, o projeto e a dureza
do ferro são justapostas à irregularidade,
à fragilidade e à falta de apoio das linhas
que a artista desenha diretamente sobre as
ampliações e que depois são refotografadas.
Nesse processo, desenho e fotografia se fundem
e ocorre um entrelaçamento entre o primeiro
plano com a grade e o espaço fotografado.
A montagem em caixas de luz, backlights,
muito usadas em anúncios e propagandas pela
cidade, dialoga tanto com a imagem que o
país fazia e divulgava de si mesmo, como com
a realidade vivida nas ruas, que já não tinha
nada da limpeza formal dos grandes projetos
urbanísticos modernos.
137
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Lia Chaia: Vereda
“un caminar entre las espesuras
de los días futuros y el aciago
fulgor de la dedicha como un ave
petrificanto el bosque com su canto
[...]
voy por tu cuerpo como por el mundo,
tu vientre es una plaza soleada,
tus pechos dos iglesias donde oficia
la sangre sus misterios paralelos,
mis miradas te cubren como yedra,
eres una ciudad que el mar asedia,
una muralla que la luz divide”
Octavio Paz, Piedra de sol
O que separa Vereda do movimento da rua é
basicamente uma porta de vidro fosco e uma
ampla calçada, por vezes tomada de carros
estacionados. Dialogando com a cidade, o
trabalho de Lia Chaia é de escala privada:
a obra se assemelha a um jardim ou quintal.
Cobrir com cimento as paredes do interior do
espaço expositivo, como se muros cercassem
o visitante, é repor a clausura de tantos
apartamentos e casas.
Como, para a artista, a experiência da arte
não está divorciada do mundo em que vive,
138
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
seu trabalho não cria um lugar alternativo ao
restante da cidade, mas também não se limita
a reproduzir a paisagem urbana. Afastada da
utopia dos anos de 1960 – em que proposições
como Éden, de Hélio Oiticica, propunham-se
como possibilidade de realização de todas as
experiências humanas, lugar de lazer e delícias
onde se funda o eu e o sonho de uma nova
vida –, Vereda se apresenta sóbria e ligada aos
problemas de seu próprio tempo.
Além de indicar um campo coberto pela
vegetação, um atalho e o rumo que se dá a
uma vida, o título da exposição contém outro
significado. O elemento de composição vered-,
que está na origem da palavra vereda, possui
um nexo etimológico com o termo vereador, o
legislador e administrador de caminhos e coisas
de interesse municipal. Vereda, assim, desde
o título, carrega essa dupla conotação: a do
campo, lugar da natureza, e a da cidade, espaço
onde se aglomeram indivíduos com direitos
políticos que se orientam entre construções,
muros e plantas domesticadas.
139
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Os trabalhos anteriores da artista já oscilavam
entre essas duas alternativas. Em 1 Lúcia 2
Lúcias, em maio de 2003, na Galeria Vermelho,
Lia mostrou Horizontes, em que aplicava
cimento em fotografias de fachadas de prédios.
Investigando a paisagem urbana, construções
de diferentes tamanhos e distâncias eram
tornadas homogêneas, como se estivessem
todas no mesmo plano e não precisassem
ser diferenciadas. Na mesma exposição,
apresentou pinturas de vegetais sobre paredes
e telas que compunham uma espécie de cenário
de floresta. Depois de secas, a artista retirou
as telas das paredes pintadas, abrindo janelas
brancas no interior da pintura mural. Vereda
pode ser compreendida como síntese dessas
questões que vêm lhe interessando.
O procedimento de cobrir a parede para
posterior retirada do material reaparece aqui de
outro modo. Com uma espécie de ponta seca,
a artista faz entalhes e incisões que, ao invés de
constituírem a matriz usada para a impressão de
uma gravura, trazem à tona tons esverdeados
que colorem as linhas do trabalho final. Como
140
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
cada parte precisa ser concluída antes da massa
secar, a técnica também remete ao afresco.
O verde na cidade, assim como nos muros
de Vereda, está em segundo plano, atrás de
camadas de cimento que, mesmo quando
mescladas
com
anúncios
publicitários,
organizam o espaço urbano, estabelecem
os limites entre dentro e fora e bloqueiam
nossa visão do horizonte. Os desenhos de Lia
brotam silenciosamente e avançam sobre a
parede. Seu traço se desenvolve com a mesma
espontaneidade das formas orgânicas e
naturais, mas sem deixar de ser ‘coisa mental’,
de se mostrar enquanto desenho. Tudo se
passa como se essas folhas de hera, que se
esparramam e logo se petrificam como fósseis,
tivessem encarado a mitológica Medusa. A
cidade consegue conviver com a vegetação
apenas quando a imobiliza e controla.
A preocupação da artista é com o embrutecimento
e a frieza dominantes nos espaços em que
vivemos. Na cidade, seu olhar se dirige às áreas
verdes cada vez mais restritas em minúsculos
141
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
canteiros, às podas violentas que mutilam árvores
para dar passagem a fios elétricos e à firmeza de
raízes que resistem e destroem calçadas.
Os arbustos geométricos que ocupam a
área central de Vereda foram moldados pela
vontade de racionalizar e domar a natureza.
Fragmentos da Mata Atlântica, que ocupam
livremente o espaço como bailarinas que
arriscam movimentos não coreografados, são
tão rigidamente esculpidos quanto os clássicos
jardins franceses. Entretanto, trata-se apenas
de imagens que se assemelham aos displays de
bancas de jornal espalhados pelas ruas. Bemhumoradas, essas esculturas planas que logo
revelam sua estrutura escancaram a artificialidade
da publicidade e a função cenográfica que a
vegetação adquiriu entre nós.
Em intervenção realizada no evento Genius Loci
– O espírito do lugar, em 2002, no bairro da Vila
Buarque, em São Paulo, a artista já havia brincado
com elementos da publicidade. Na ocasião,
distribuiu sorrisos recortados de anúncios de
revistas e convidou o público a estampá-los em
142
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
seus rostos, ironizando a felicidade como objeto
de consumo e sua explícita artificialidade.
Outro elemento que Lia retoma em Vereda é o
uso do som. Aqui, ruídos urbanos se intercalam
aos sons da mata. Em alguns momentos,
gerando um barulho estrondoso, fundem-se
cantos de pássaros, grunhidos de macacos e
de automóveis em movimento. Distante de
um elogio ingênuo e bucólico ao campo, em
Vereda contrastam a poluição sonora da cidade
e a tranquilidade da floresta. Se o visitante por
alguns minutos fechar os olhos e se imaginar num
éden, onde possa alcançar um estado de espírito
sem perturbações, logo será interrompido. A
cidade, que circunscreve o verde em parques
cercados e jardins geométricos, faz questão de
emitir sons que irão despertá-lo do delírio.
Fernando Vilela: O livro do tempo
De saída, a exposição de Fernando Vilela contradiz
um chavão da gravura, o da reprodutibilidade.
Seus enormes livros (200 x 200 cm) são peças
únicas. Os volumes realizados em chapas de
143
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
PVC expandido foram impressos a partir de
apenas três matrizes. Elas funcionam como
módulos e vão se combinando e recombinando
de maneira lúdica e sem obedecer a qualquer
geometria. O raciocínio modular proporciona
uma diversidade enorme de configurações.
A composição gráfica se estrutura por forças
que variam de sentido e intensidade, sempre
girando em todas as direções.
Se as imagens podem ser comparadas com a de
um relógio, como se as tiras fossem ponteiros
sobrepostos, o trabalho contraria completamente
toda a regularidade e a repetição que o relógio
implica. Ao folhearmos o livro, temos uma
experiência temporal bastante singular. É
como se esquecêssemos o mundo exterior e
mergulhássemos no trabalho. Seu tempo não é
contínuo, nem homogêneo ou retilíneo, e sim
um tempo que dispensa a ordem cronológica. A
primazia é dada ao aspecto gráfico, e não a uma
suposta continuidade do movimento do tempo ou
de uma narrativa qualquer. Mesmo porque há uma
série de sobreposições que, mais do que espaciais,
revelam simultaneidades de tempos. Estas últimas
144
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
são ainda mais evidentes ao contemplarmos os
três livros abertos, que compõe um todo em que
ordem e caos não podem ser compreendidos
como opostos, mas como complementares, uma
vez que estão integrados, assim como os vazios
em relação às áreas impressas.
A escala dos livros é compatível com a de uma
porta. Virar uma página é também entrar num
outro espaço. A relação corriqueira com o livro,
entretanto, é literalmente invertida. Ele não
está em nossas mãos, somos nós que estamos
dentro dele, sugados em seu interior.
Mesmo que os livros obedeçam a um
planejamento rigoroso, durante a realização do
trabalho o artista incorporou alguns acasos. Isso
também se deve a questões técnicas, como o
ressecamento da tinta sobre a tela da serigrafia.
Em geral, a irregularidade das manchas sobre
a chapa foi mantida. Ainda mais por serem
impressões artesanais e de grandes proporções
como essas (que contou com uma equipe
de seis pessoas), jamais seria possível cercar
plenamente o imprevisível. Essa consciência
145
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
dá mais vitalidade ao trabalho e evita que ele
seja compreendido como se estivesse fora de
próprio tempo de sua realização. Afinal, não se
trata de um projeto que objetiva ser realizado
sem surpresas e com exatidão. Ao contrário,
o imprevisto é parte constituinte do processo
tanto quanto do fluxo temporal.
As chapas oscilam entre as mais silenciosas,
com poucas áreas preenchidas, e as mais
barulhentas, com várias sobreposições e
excessos. Elas têm uma aparência ambígua:
a impressão da imagem é feita em serigrafia,
mas os veios da madeira – já que as telas foram
realizadas a partir de xilogravuras – são tão
visíveis quanto as ocasionais imperfeições. Há
um aspecto precário no resultado final, como
se fossem lambe-lambes, mas alguns brilhos
logo desmentem essa sensação. O industrial e
o artesanal se misturam, e a facilidade que a
serigrafia denotaria é contrariada pelo processo
trabalhoso que o tamanho exige.
Realizados no ateliê do artista, localizado na
Barra Funda, em São Paulo, que fica diretamente
146
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
voltado para a rua, os trabalhos se misturaram
com o ritmo da cidade. Durante a impressão,
as telas eram limpas na calçada, enquanto
as provas secavam sobre os suportes para
lixo e acabavam se mesclando com a sujeira
urbana. Esse embaralhamento da imagem
com seu entorno também ocorre, de outro
modo, nas gravuras em acrílico transparentes
inclinadas em relação à parede. As imagens
impressas, graças à iluminação, projetam-se e
se sobrepõem sobre outras à sua frente ou ao
lado. Enquanto nos livros a sobreposição se faz
num plano, aqui elas se expandem e ocupam o
espaço tridimensional.
Independentemente do aspecto simbólico do
livro, que se mistura com a história da humanidade
e acompanha o homem ao longo dos tempos,
o trabalho de Fernando Vilela estabelece certas
relações complexas com o sujeito, com o espaço
em seu entorno e com a cidade, que vão além
da contemplação e do mero reflexo. Nós nos
envolvemos em seu trabalho a ponto de entrarmos
no tempo dele, que é o mesmo que o nosso, mas
que também parece nos conter e superar.
147
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Maurício Ianês: Êxtase e arte
O clímax da videoinstalação de Maurício Ianês
Minha língua é a pena de um hábil escriba
é o êxtase. Num determinado instante, as
imagens das quatro projeções sincronizadas
se transformam completamente. Os olhos do
artista se voltam para o interior e tudo se passa
como se ele fosse transportado para fora de si.
Como se atingisse outra dimensão, não mais
nesse mundo sensível que habitamos e do qual
nosso corpo é inseparável, o artista passa por
uma experiência inexprimível, uma espécie
de espasmo, um arrebatamento que provoca
a perda dos sentidos e do controle sobre os
movimentos corporais. Trata-se de um misto
de exaltação mística, de um prazer supremo e
também de assombro e perturbação.
O pigmento negro e disforme que escorre da
boca de Ianês revela a total falta de articulação
da linguagem verbal ou escrita. É justamente
da impossibilidade de comunicação exata por
meio de signos convencionais, sejam sonoros,
gráficos ou gestuais, que seu trabalho surge.
148
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
Sua língua é a ‘pena de um hábil escriba’,
porque o sentido de sua expressão jamais
poderia ser ditado ou transcrito por pena
alguma. Se o texto de sua fala no momento
do êxtase pudesse ser redigido, seria silencioso,
um papel vazio, fundo sobre o qual repousam
todos os sentidos. O inexprimível, mais do que
ultrapassar qualquer possibilidade de expressão,
é também aquilo que permite toda a expressão.
É a raiz originária e primeira de onde brotam
outras significações. Não se trata apenas do
silêncio avassalador que nos faz calar frente
a acontecimentos traumáticos, mas também
daquele que permite a compreensão de que
sem ele não haveria palavra, som ou sinal. A
tinta que escorre da boca do artista é o que no
limite sustenta todo sentido e expressão.
O trabalho de Ianês costuma flertar com o
limite, seja da expressão, da representação, do
corpo ou da vida. A referência ao local em que
se suicidou o poeta Paul Celan (1920-1970)
aparece nas imagens laterais projetadas sobre
as duas paredes da videoinstalação. Nelas, as
águas, como o próprio fluxo do tempo, não
149
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
cessam de passar sob a ponte Mirabeau, no
Rio Sena, onde Celan se atirou. Entretanto, o
suicídio, além de uma questão fundamental
para a filosofia contemporânea, como escreveu
Albert Camus (1913 - 1960), pode ser o grande
silêncio final, mas também ato poético extremo,
contato último com o inexprimível. A morte é
o limite máximo, fim do êxtase, saída de si e
simultaneamente reencontro do homem consigo
mesmo e com suas próprias invenções.
O inexprimível é o solo comum de onde todos
os sentidos surgem e para onde provavelmente
retornarão. Por isso o artista desenha a palavra
como luz, como intervalo, fenda sobre um fundo
escuro. A desconfiança que Ianês demonstra em
relação à linguagem é fruto da compreensão
de que tanto a palavra como as imagens não
podem simplesmente traduzir sem equívocos
pensamentos ou experiências externas a elas.
A linguagem como instrumento, aquela que a
ciência pretendeu empregar de modo preciso,
exato e sem ambiguidades, não é a mesma
empregada na poesia e na arte. O modo como o
artista se coloca não é traduzindo pensamentos
150
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
ou ideias, mas como alguém que, do interior das
coisas, dá sentido a elas. O sentido do trabalho
de arte não pode estar separado dele, tampouco
num céu metafísico, num mundo ideal, fora da
sombria caverna em que viveríamos, mas só pode
ser encontrado no interior dele, sustentando por
dentro o próprio trabalho.
Embora não seja um projeto deliberado do
artista, seu trabalho pode proporcionar um
contato com questões metafísicas e seus
limites. Esses temas essenciais da filosofia,
sobre as quais a linguagem segundo Ludwig
Wittgenstein (1889-1951) não poderia dar
conta, jamais deixaram de estar no horizonte
do homem ao longo da história. O projeto de
Maurício Ianês, ao interrogar o inexprimível e o
inefável, nos mostra, como a própria filosofia
contemporânea o fez, que se é possível uma
metafísica, ela estará primordialmente na
arte e na poesia. O artista a apresenta de
modo implícito e alusivo. Ao filósofo caberia
tentar elaborá-la filosoficamente, sempre num
momento posterior ao trabalho do artista.
Como se sabe, a coruja de Minerva, a própria
151
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
filosofia, levanta voo somente ao entardecer.
Mas se algo pode nos dar acesso direto e
imediato ao inexprimível será, portanto, a
própria experiência com a arte.
152
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, C. . Tony Camargo: Mundo como pintura.
São Paulo: Paço das Artes, 2008 (Catálogo).
ALVES, C. . Entre o cosmos e o caos. São Paulo:
Centro Cultural São Paulo, 2005 (Catálogo).
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São Paulo: Paço das Artes, 2006 (Catálogo).
ALVES, C. . Rodrigo Matheus. São Paulo: Centro
Cultural São Paulo, 2004 (Catálogo).
ALVES, C. . Em Obras. Santa art magazine, Rio de
Janeiro, p. 84 - 87, 10 nov. 2008.
ALVES, C. . Ensaio sobre Lia Chaia. São Paulo:
Associação Cultural Vídeo Brasil, 2004 (Catálogo).
ALVES, C. . Ensayo sobre Lia Chaia. In: David
Barro; Paulo Reis. (Org.). Parangolé. Fragmentos
desde los 90: Brasil. 1a ed. São Paulo: Artedardo /
Museo Patio Herreriano, 2008, v. 01, p. 168-173.
153
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
ALVES, C. . O livro do tempo. São Paulo: Galeria
Virgílio, 2007 (Folder).
ALVES, C. . Maurício Ianês: êxtase e arte.
Temporada de Projetos 2009 (9+1). 01 ed. São
Paulo: Paço das Artes; Imprensa Oficial, 2010, v.
01, p. 84-95.
ALVES, C. . Entrevista com Maurício Ianês. São
Paulo: Paço das Artes, 2009 (Folder).
ALVES, C. . Débora Bolsoni. São Paulo: Centro
Cultural São Paulo, 2005 (Catálogo).
154
Escrita ao calor da hora
Cauê Alves
155
Tempos, espaços e trajetos:
arte pública institucionalizada
24
em Aracaju
Ivan Masafret 25
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
A
autonomia do estado de Sergipe em relação
à Bahia, estabelecida no dia 8 de julho do ano
de 1820, e a mudança da capital, ocorrida 35
anos depois, em 1855, demonstram o quão
importante o século XIX foi para a política e
a sociedade sergipana. Isso se reflete em
vários aspectos, políticos, econômicos e até
na necessidade de afirmação da identidade do
povo sergipano.
Para tanto, foram criados e firmados símbolos
e referências próprias de Sergipe nos quais
a independência do estado e a nova capital
foram evidenciados, prenunciando o novo e o
moderno e, ao mesmo tempo, vinculando-se
aos lastros de uma dita ‘origem ou formação
comum e própria ao estado’. Tudo isso acabou
Este artigo é baseado no segundo capítulo da monografia
de pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de
Sergipe (UFS), defendida em 2008, com o titulo A arte pública
em Aracaju: seus espaços e símbolos, sob a orientação do Prof.
Dr. Frank Nilton Marcon.
25
Mestrando em Sociologia pela UFS, atua em projetos
relacionados a arte e cultura.
24
159
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
se refletindo vivamente nos espaços públicos,
principalmente na urbanização, na arquitetura e
na arte pública (monumentos comemorativos).
Na arte, e especificamente nos monumentos
de arte pública – esculturas e painéis –
percebemos que espaços como os prédios e
praças mais importantes do centro econômico
e político da época foram escolhidos para
enfatizar todo o simbolismo da ‘autonomia
estatal’ e da ‘nova capital’. Sergipe teria uma
nova sede administrativa moderna e planejada,
em oposição à antiga26 e barroca São Cristóvão.
É dessa época a concepção de um dos símbolos
mais importantes do estado, o seu brasão,
composto por uma estrela, ícone representativo
na bandeira nacional 27 , e por uma figura
indígena, o Cacique Serigy, que simboliza os
povos ‘originais’ da terra, que teriam tido uma
A capital sergipana deixou de ser a cidade de São Cristóvão e
passou a ser Aracaju, que se constituiu como cidade planejada.
27 Na bandeira nacional, cada um dos 26 estados brasileiros,
mais o Distrito Federal, são representados por uma estrela.
26
160
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
importante participação na história de Sergipe.
Ainda no brasão, podemos perceber ao lado
da figura indígena a representação de um
balão – símbolo do que havia de mais moderno
na época – bem ao centro da composição.
O balão carrega a palavra ‘porvir’, uma clara
referência aos anseios do estado recentemente
desanexado da Bahia e que pretendia associar
o progresso ao conceito de originalidade de
seu povo, no sentido de sua singularidade e
procedência. Abaixo, a legenda exibe em latim
a frase ‘Sub Lege Libertas’, que significa ‘Sob a
Lei a Liberdade’ e, por fim, a data em que foi
promulgada a primeira constituição do estado,
18 de maio de 1892.
Esse brasão pode ser encontrado, ainda hoje,
em todos os prédios públicos do governo
estadual. Entretanto, Sergipe passou por
importantes mudanças políticas e em sua
sociedade e, aos poucos, foi sendo necessária
a configuração de outros símbolos que
afirmassem e representassem não apenas
o estado, mas também a sociedade e suas
diferentes matrizes étnicas. Já no século XX,
161
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
tornou-se imprescindível o surgimento de
outras representações simbólicas para fins mais
amplos, como por exemplo, o turismo. Todas
essas características do estado sergipano estão
presentes nas artes públicas, principalmente as
existentes na capital, uma vez que ela agrega
representativamente os diversos matizes
formadores da cultura sergipana.
Para uma diferenciação das fases sociais,
políticas e culturais que refletiram na produção
da arte pública sergipana, foram estabelecidos
três períodos, cada qual com seu tempo,
espaço e características específicas. Essa
organização só é possível por conta dos muitos
elementos encontrados, sejam eles históricos,
socioespaciais e/ou simbólicos, os elementos
acabam por criar possibilidades de delimitação
de acordo com essas características, o que será
melhor esclarecido no decorrer do texto.
Com essas mudanças no cenário social,
a necessidade de representação e seu
conteúdo simbólico e ideológico acabam por,
naturalmente, adequar-se aos novos tempos.
162
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
Contudo, cada momento histórico exigiu um
discurso condizente com as ações políticas de
seu período, com as reflexões intelectuais e
com o dia-a-dia do sergipano, documentado
através de jornais, livros e artigos. Mas será
que na arte pública tais discursos estão/
foram representados? Se sim, de que forma
se apresentaram? Essas são questões que
analisaremos no presente artigo, que é um
fragmento adaptado de um trabalho mais
amplo, resultado de um ano de pesquisa.
Para fins metodológicos, foram elaboradas
categorias de diferenciação da arte pública,
classificada de acordo com três vertentes:
arte pública autônoma, arte pública
institucionalizada pela iniciativa privada e a arte
pública institucionalizada pelo poder público,
sendo esta última a mais relevante para os
desdobramentos deste artigo.
A arte pública autônoma pode ser descrita
como aquela em que o artista produz seu
trabalho de forma voluntária, sem a figura do
contratante, tendo a cidade como galeria. Sua
163
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
obra normalmente é suscetível à interferência
e, em geral, é efêmera, a depender dos usos e
da organicidade do espaço público.
Já a chamada arte pública institucionalizada pela
iniciativa privada conota uma realização tutelada
pelo perfil ideológico, administrativo e simbólico
da instituição ou empresa contratante: uma
obra feita para um sindicato de trabalhadores,
por exemplo, não terá o mesmo perfil que outra,
encomendada por uma loja de departamentos.
Nesses casos, o artista deverá se submeter e
estar alinhado com o perfil exigido.
Já a arte pública institucionalizada pelo poder
público (APIPP), a mais enfatizada neste artigo,
caracteriza-se por ser aquela em que, na obra,
está evidenciado o discurso oficial do Estado (seja
na instância municipal, estadual ou federal). Esse
tipo de representação artística tende a aproveitar
elementos simbólicos pré-existentes, sejam eles
históricos ou inteiramente ‘novos’.
É nessa segmentação da arte pública que
percebemos os espaços nas suas diferentes
164
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
formas de abordagem de discurso, seja ele
alegórico e/ou ideológico (MASAFRET, 2007).
Na APIPP, a ideia de público está referenciada
em dois aspectos: tanto na sua localização
espacial – espaço público – quanto no seu
pertencimento – é uma obra de arte pertencente
ao Estado, logo, um patrimônio público.
Esses aspectos são evidenciados de forma a
atribuir uma ideia de reconhecimento ao Estado.
Portanto, a principal característica da arte
pública institucionalizada pelo poder público
(APIPP) é a inserção da figura do contratante
(instituição) na aquisição ou produção da obra.
Sendo o Estado detentor da obra, há a possibilidade
da sua interferência no que se refere ao espaço
onde a obra ou monumento será abrigado, bem
como em sua representação simbólica e estética.
Essa interferência da instituição na arte pública,
inevitavelmente, sempre ocorrerá. No âmbito
menos ‘agressivo’ dessa interferência, o artista
não é cobrado nem influenciado a respeito do
conteúdo da obra. Assim, “o artista permanece
antes de tudo um conformista: há assuntos que
165
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
não pode tratar e outros que lhe são impostos”
(BASTIDE. 9: 1979).
Ao classificar as obras consideradas APIPP em
Aracaju, foi possível constatar conexões entre
seus diferentes discursos, os espaços que
ocupam na cidade e seu período histórico. Dessa
forma, pudemos organizar as APIPP da capital
sergipana em três períodos, cada qual com suas
especificidades espaciais e discursivas, além das
distinções entre as técnicas artísticas utilizadas.
Arte pública na configuração da autoridade
política da nova capital
Em Aracaju, podemos classificar a produção de
obras de arte públicas em três fases, a partir de seus
aspectos simbólicos e representativos, refletidos
nessas obras. Esses aspectos compreendem os
momentos políticos e sociais que o estado de
Sergipe e a sua capital, Aracaju, viviam.
Desde as primeiras preocupações com a
urbanização da cidade, passando pelas tensas
disputas dentro da política local e nacional, até
166
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
a relação do poder público com a mídia e a
propaganda do Estado como um produto. Dessa
forma, percebemos, de acordo com os períodos
históricos aqui selecionados, as diferentes
formas de dispor da APIPP em Aracaju.
Primeira Fase
A primeira fase dessa produção artística
remonta à mudança da capital sergipana
(1855) e se estende até meados da década de
1930. Esse período foi selecionado levando-se
em conta correlações entre as tipificações da
arte pública, juntamente com as características
políticas e sociais do estado.
A arte pública nesse período marca seu território
tanto no imaginário dos cidadãos quanto na
historicidade da nova capital. Havia, portanto,
a necessidade de firmar a nova cidade como
poder representativo do estado legitimado.
As obras públicas dessa primeira fase eram
esculturas de bronze, de corpo inteiro ou
apenas bustos, expostos nas primeiras praças
construídas na nova capital.
167
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Dessa forma, podemos inferir que as primeiras
obras de arte públicas da cidade de Aracaju
foram monumentos dedicados principalmente
a personalidades políticas, como por exemplo,
o monumento comemorativo dedicado ao
deputado Fausto Cardoso, construído na praça
que hoje leva seu nome, erguida no mesmo
local onde fora assassinado, em 1906. Sobre
isso, a pesquisadora Ilma Fontes diz:
Em 1912 a Praça Fausto Cardoso recebe um
monumento em homenagem a esse grande
líder político, plantando-se novos jardins com
dois coretos em estilo art-noveau, orgulho dos
sergipanos que dali fizeram palco para retretas e
manifestações cívicas. (FONTES, Ilma. Site oficial
da Prefeitura Municipal de Aracaju 28 )
Fica explícita a importância de Fausto Cardoso
para a cidade de Aracaju, não apenas por ser o
primeiro monumento público, mas por ter sido
erguido com recursos da própria população da
época, e não pelo estado. De acordo com Ilma
Fontes, cujo texto encontra-se disponível no
28
www.aracaju.se.gov.br
168
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
site oficial da Prefeitura Municipal de Aracaju,
a obra que retrata Fausto Cardoso reverencia a
importância desse personagem histórico até os
dias de hoje.
Além desse, outro importante monumento
que marca essa primeira fase é, sem dúvida, o
que homenageia Monsenhor Olimpio Campos,
que teve a vida e a morte vinculada a Fausto
Cardoso. Tais obras de arte permanecem em um
eterno convívio nas praças da mais importante
centralidade histórica de Aracaju.
Seus admiradores auxiliados pelo Governo do Estado
e pelas Intendências municipais ergueram-lhe
uma estátua na antiga Praça da Matriz, hoje Praça
Benjamim Constant. Inaugurado oficialmente no dia
16 de julho de 1916, fere imediatamente a vista do
observador, que conheceu de perto o Monsenhor, a
imperfeita reprodução dos seus traços fisionômicos
infielmente esculpidos no bronze pelo artista que a
executou (GUARANÁ. 446, 1925 29 ).
Além dos monumentos que se encontram nesse
conjunto de praças da centralidade histórica
de Aracaju, encontramos ainda outras obras
importantes dessa época, como o obelisco que
homenageia o fundador da cidade, Joaquim
169
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Inácio Barbosa, cravado na praça de mesmo
nome, próximo ao Iate Clube de Aracaju,
30
construído por Lourenço Petrucci, em 1917 .
Há também a Estátua de Tobias Barreto, datada
de 1920, a de Lourenço Petrucci, na praça que
leva o mesmo nome, localizada no bairro São
José, e o monumento ao General Valadão, um
dos últimos do período, construído em 1924,
que adorna uma praça de mesmo nome, no
centro de Aracaju. Segundo o pesquisador
Marcelo Prudente Silva, a obra é supostamente
de autoria de Oreste Gatti e Rafaelle Alfano.
Segunda Fase
Os primeiros anos da nova capital, até a
década de 1930, mais especificamente, foram
marcados por sua construção, pela alternância
do poder político e pela modernização urbana.
Retirado do dicionário bibibliográfico de Armindo Guaraná,
de 1926.
30
Não encontramos uma obra figurativa, por não se ter até hoje
nenhuma referência da fisionomia de Inácio Barbosa. Estão no
topo do seu monumento uma estrela e o brasão do estado.
29
170
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
O ápice dessa modernização é entre 1921 e
1930, quando o antigo coreto da praça Almirante
Cardoso dá lugar à instalação de um mictório
público, possibilitando a permanência das pessoas
mais tempo longe de casa ao tempo em que
implantava uma política sanitarista introduzindo
medidas higiênicas. (...) É aí que a Praça Olympio
Campos recebe o tratamento de Parque (Teófilo
Dantas), com vários recursos urbanísticos. (...) Foi
construído um aquário (onde hoje está a Galeria
de Arte Álvaro Santos). (...) Uma parte do Parque
abrigava uma taba com a escultura metálica de
dois índios circundados por quadro evocativo da
primitiva selva, um recanto selvagem com plantas
da Mata Atlântica. (...) A inauguração do Parque
Theófilo Dantas, em 1828, foi um marco de visão
administrativa que agradou toda a população.
(FONTES, Ilma. Site da Prefeitura Municipal de
Aracaju)
O ‘centro Histórico de Aracaju’, segundo o
31
PDDU da prefeitura, é delimitado pelas ruas
e avenidas Rio Branco, Ivo do Prado, Boquim,
Itabaiana, Maruim, Santa Luiza, Santo Amaro,
Santa Rosa, Apulcro Mota, travessa João
Quintiliano Fonseca e Praça Olímpio Campos
(art. 21 do PDDU de Aracaju, 2006).
31
Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU).
171
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Esse perímetro compreende a primeira etapa da
construção da cidade. As três grandes praças
existentes, Fausto Cardoso, Almirante Barroso
e Olímpio Campos, sediam as principais obras
urbanísticas, arquitetônicas e artísticas daquele
período. Ali foram erguidas, ao todo, 16 obras
de arte pública; dessas, pelo menos três não
existem mais: o busto de Theófilo Dantas, o
casal de sertanejos 32 e a escultura em bronze
do Cacique Serigy, que desapareceu33. Outras
nove foram produzidas em outro período e três
foram executadas durante a primeira fase da
arte pública em Aracaju. São elas:
1- Monumento a Fausto Cardoso (Praça Fausto
Cardoso,1912)
2- Monumento Monsenhor Olympio Campos
(em frente à catedral, 1916)
3- Herma de Teófilo Dantas (parque Teófilo
Dantas, Praça Olímpio Campos, 1927)
Produzido pelo artesão Beto Pezão.
Essa escultura ficava originalmente onde hoje é o restaurante
“Cacique Chá”, e não se sabe qual foi o seu destino.
32
33
172
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
Percebemos, pelo grande número e diversidade
de obras nesse conjunto de praças, que esse
espaço possui grande importância para a cidade,
concentrando boa parte de sua história. Essas
praças são o principal centro da política e da
arte em Aracaju. A presença da Galeria de Arte
Álvaro Santos, administrada pela prefeitura, os
prédios dos três poderes e da antiga prefeitura
expressam essa importância.
O espaço das três praças está marcado no
urbanismo e na sociedade aracajuana, uma vez
que ali estão os primeiros prédios públicos da
cidade, fazendo dessa área o epicentro tanto das
artes públicas quanto do urbanismo da capital.
De tão importante, ele é até hoje utilizado
para manifestações populares, bem como dos
governantes, tendo sido da sacada do Palácio
Olímpio Campos 34 proferidos os discursos de
posse dos governadores, a exemplo de Marcelo
Déda (PT), em 2007. Esse é um espaço vivo,
de forte poder simbólico para os sergipanos e,
por tal motivo, o local com maior densidade de
obras públicas da capital.
173
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Michel de Certeau, em sua obra A Invenção
do Cotidiano 35, no capítulo intitulado Tempo e
história, com muita propriedade traz a discussão
sobre a relação existente entre a memória e o
espaço. Ele questiona: “Qual a implantação
da memória num lugar que já forma um
conjunto?”, e nos diz:
A ocasião é “aproveitada”, não criada. É fornecida
pela conjuntura, isto é por circunstâncias exteriores.
(...) sob a sua forma prática, a memória não possui
uma organização já pronta de antemão que ela
apenas encaixaria ali. Ela se mobiliza relativamente
ao que acontece (CERTEAU, 162: 2003).
Dessa forma, podemos compreender que
o perímetro das três praças tem, graças à
sua importância histórica, uma constante
ressignificação, perceptível na diversidade das
obras de arte ali encontradas, que representam
O Palácio Olímpio Campos passou por uma grande
restauração e foi reinaugurado em 2010, já como Palácio
Museu Olímpio Campos.
35
Artes de Fazer.
34
174
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
diversos estilos, técnicas e períodos históricos.
Há também uma apropriação constante da
população, que reinventa o espaço, de acordo
com seus novos usos cívicos, movimentos sociais
e personalidades políticas. Nos novos usos, há
sempre referência ao passado e à importância
desses espaços para a capital e para o estado.
A arte pública e a representação
do sergipano
Aracaju, a partir da década de 1930, já havia
consolidado plenamente sua autoridade política
dentro do estado de Sergipe. A cidade já se
encontrava mais urbanizada, principalmente
no que se refere ao seu centro comercial.
Além disso, Aracaju era uma cidade cosmopolita,36
pois acompanhava as questões políticas que
afligiam todo o país 37. Nesse período, já não
era mais conhecida como a ‘nova capital’; o
status adquirido pela ‘cidade menina38’ era de
‘a capital’, pura e simplesmente. Em 1930,
Aracaju já era o município mais industrializado
175
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
e com a maior quantidade de habitantes do
estado, tornando-se, assim, a capital sergipana
de fato e de direito.
Nesse segundo momento, que compreende
o intervalo que vai de meados da década
de 1920 até o fim de 1970, a APIPP já não
homenageava com tanta frequência figuras
sergipanas proeminentes. A sociedade, ou
melhor, o estado, a partir de seus líderes
políticos e de intelectuais influentes, começou a
se preocupar com a representação da gênese de
Sergipe. Tais características se deram por conta
do momento político: as revoltas tenentistas,
que culminaram na revolução de 1930 (Estado
Novo), demonstraram-se um momento não
Tratamos aqui de ‘cosmopolita’ no sentido de agregar
pessoas e culturas não apenas de todo território sergipano,
bem como de todo o Brasil e até de outros países. O termo
não é utilizado no sentido mais moderno, ligado a uma ideia
de individualismo e, em geral, agregado a grandes metrópoles.
37
Refiro-me aqui ao golpe de Getúlio Vargas e suas
consequências.
38 ‘Cidade
menina’ era como Aracaju era chamada
popularmente por se tratar de uma nova cidade e ainda pequena
(CABRAL, 2002).
36
176
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
muito propício para prestar homenagens a
figuras políticas e sociais.
Com as revoltas tenentistas comandadas por
Augusto Maynard em 13 de julho de 1922, a
situação política dentro de Sergipe se tornou
muito frágil. O governador Graccho Cardoso foi
derrubado e restituído duas vezes por Maynard,
que posteriormente governaria esse estado no
período de 1930 até 1935. Curiosamente 39, as
duas únicas obras de APIPP que homenageiam
personalidades políticas durante esse período
são as do presidente Artur da Silva Bernardes40,
de 1922, e de Getúlio Vargas, em 1939.
Graccho Cardoso, que prometera ajudar ao
Presidente da República e terminou sendo
socorrido, sentiu a necessidade de demonstrar
ao chefe da Nação o apreço que lhe dispensava.
Assim, as homenagens foram se sucedendo.
Inaugurou um busto de Artur Bernardes no salão
nobre do Palácio Olympio Campos. (apud. Cf.
M. Graccho Cardoso, Mensagem à Assembleia
Legislativa, 07-09-1925, p.6. Apud. DANTAS,
172, 1999).
A década de 1920 foi marcada pela forte
influência da instabilidade política e, depois, pela
177
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
ideologia nacionalista, tanto do Estado Novo
quanto dos integralistas que tiveram considerável
inserção em Sergipe, o que propiciou uma forte
relação do estado com símbolos nacionalistas.
Nesse período, havia um movimento que
pretendia ‘fomentar uma identidade brasileira’
a partir da descriminalização de expressões
culturais vinculadas às culturas indígena e
afro-brasileira, resultando na regularização
de religiões afro-brasileiras e da capoeira, até
então proibidas por lei. Em meados da década
de 1970, o estado ainda estava sob o controle
da ditadura militar e os aspectos identitários
ainda eram marcadamente nacionalistas e
bastante exaltados.
No inicio desse período histórico, percebemos, de
acordo com o historiador José Ibarê Dantas, que
‘Curiosamente’ por se tratar de duas personalidades
estritamente vinculadas com aquele momento político, o Estado
Novo.
40
Presidente de 1922 a 1926, sofreu forte instabilidade política
gerada pelas revoltas tenentistas contra as oligarquias dominantes
e pelo avanço do movimento operário, o que levou a governar
permanentemente em estado de sítio (www.portalbrasil.net/
politica_presidentes_arturbernardes.html).
39
178
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
Aracaju passava por um momento de reformas,
tanto no urbanismo quanto na educação:
Além de outros feitos de valor inestimável, como
estradas, energia elétrica, abastecimento de
água, esgoto e construção similares ligadas à
infra estrutura da cidade, cabe observar por outro
lado que apresentou também sua contribuição
à cultura do Estado. Afora a parte referente ao
ensino, publicou obras literárias e científicas,
algumas das quais depois de merecerem
criteriosos estudos preliminares de especialistas
no assunto, como ocorreu com a edição das obras
completas de Tobias Barreto e com o dicionário
Bibliográfico Sergipano escrito por Armindo
Guaraná. (DANTAS:174, 175. 1999)
Um grande marco dessa fase em Sergipe é a obra
a que se referiu Ibarê Dantas, Etnias Sergipanas:
contribuição ao seu Estudo, do antropólogo
sergipano Feltre Bezerra, publicada em 1950 41.
Outra importante obra citada é a do bibliógrafo
(sic) Armindo Guaraná, cuja pesquisa traz uma
imensa relação de bibliografias de personalidades
sergipanas. Esta última serve até hoje como
referência para pesquisadores da área.
Temos um exemplo ainda anterior, de 1888, de Silvio Romero,
com a obra Etnografia Brasileira.
41
179
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Havia, portanto, para os intelectuais sergipanos,
a necessidade de se ‘pensar’ e de se reconhecer
como povo. As perguntas às quais esses
autores se propunham responder eram: quais
as ‘origens do povo’ sergipano? Quais as suas
características marcantes?
Nas obras de arte pública elaboradas no
período, foram representadas as etnias que se
entendem como formadoras do povo brasileiro.
O índio foi resgatado como símbolo de força,
luta e coragem. O Cacique Serigy, por exemplo,
tornou-se uma figura mítica, referência histórica
à formação do estado de Sergipe.
No palácio do Judiciário há uma importante
representação dessa época: trata-se de um
conjunto de dois painéis do artista Aderaldo
Argôlo, datados de 1º de janeiro de 1965. O
primeiro representa ‘a questão produtiva’ do
estado, seu artesanato, sua cerâmica; nele estão
representadas também o cultivo do arroz, coco e
fumo – as principais culturas agrícolas – e por fim
o petróleo, ápice da industrialização no estado.
O segundo painel, mais representativo para a
180
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
discussão a que este trabalho se propõe, trata
diretamente das matrizes étnicas do estado.
A obra apresenta, de um lado, a figura de um
índio e de um negro com arcos e flechas em riste,
que apontam para o lado oposto da tela, onde
estão representados os europeus. Ao fundo,
vemos o mar (ou rio), com caravelas europeias.
No que se refere à arte pública, esse é um
período em que murais e painéis se destacam,
diferentemente da fase anterior, marcada
42
principalmente pelas esculturas em bronze.
Um artista bastante representativo desse
período, Jenner Augusto, morou em Salvador e
conviveu com intelectuais baianos conhecidos
em todo o Brasil, como Jorge Amado, Carybé
e Pierre Verger. Na obra de todos eles, a figura
do negro ocupa uma posição central como
representação da Bahia.
Na capital sergipana, contudo, Jenner Augusto
dava destaque para a figura indígena em seus
murais. Alguns desses exemplos são os murais
do antigo restaurante Cacique Chá, datados do
181
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
ano de 1949. Outro mural, feito originalmente
para o aeroporto de Aracaju, foi trasladado
para a sede da Energisa44, empresa fornecedora
de energia do estado. Nesse painel, estão
representados treze índios em tons ocre e
preto; são exibidos também discretos cajus e
uma arara solitária.
O segundo período aqui delimitado para o
estudo das obras de arte públicas pode ser
caracterizado como uma ‘fase autoral’44. Nesses
casos, os autores das obras são conhecidos.
Jenner Augusto, por exemplo, possui vários
painéis tombados pelo governo do estado: o
painel do antigo Hotel Palace, hoje no Teatro
Atheneu 45 ; o painel da Universidade Federal de
Sergipe; o mural do aeroporto e o painel em
Essa mudança da utilização de monumentos em bronze para
painéis e grandes quadros pode ser entendido, entre outros
motivos, pela dinâmica do fazer artístico no qual se buscavam
outras soluções e suportes para suas expressões. Além disso, esse
período, como já mencionado, não estava voltado à representação
de personalidades em seus espaços públicos, e sim de uma ideia
de origem, muito mais condizente com o espaço de telas e
painéis, dando margem a uma melhor articulação simbólica.
43 Energisa.
42
182
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
azulejo do Edifício Walter Franco (Praça Fausto
Cardoso). Este último ‘inaugura’ nas artes
sergipanas elementos modernos, geométricos,
juntamente com as primeiras representações
simbólicas do estado, como o caju, o peixe, a
cana de açúcar, o coco, além dos elementos
sertanejos, como o jegue com o caçuá.
Esses painéis ainda hoje são exibidos em
prédios públicos ou em outros espaços urbanos
a céu aberto. A maior parte deles continua a
representar uma ‘percepção do poder público’
a cerca da sociedade sergipana. Muitas deles
foram realizadas por artistas selecionados pela
elite política e social da época.
Consideramos aqui como ‘fase autoral’ o fato das obras
estarem vinculadas não apenas ao conteúdo estético, mas
também ao valor agregado da assinatura do artista, que tem um
importante papel no status da obra.
45 Bem como no caso do painel da Energipe, esse também foi
transladado do Hotel Palace para o teatro Atheneu.
44
183
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Ao adentrar hoje algumas agências do Banco do
Estado de Sergipe 46 (Banese) pode-se encontrar
alguns quadros de artistas sergipanos. Os mais
frequentes são os de Caã, em geral com obras
de teor bucólico; de José Fernandes e suas telas
com temas ingênuos, ligados a símbolos como
cajus e os pombos; e os de J. Inácio, um dos
maiores artistas sergipanos, que não costumava
utilizar os símbolos frequentemente atrelados
à imagem do estado de Sergipe e da cidade
de Aracaju. J. Inácio costumava dizer: “Tenho
horror a arara, papagaio, cachorro; eu gosto
de bananeira, mas eu faço muito porque o
povo quer” (CRUZ, 2007). E, de fato, foi como
‘o pintor das bananeiras’ que o artista ficou
conhecido, apesar de que sua obra mostra uma
grande diversidade de temas.
Voltando ao período que vai de 1930 a 1970
e às suas referidas obras, vemos caracterizadas
nelas a ideia do indígena, do trabalho e da
O Banese é ainda uma instituição pública do estado de
Sergipe.
46
184
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
produção econômica do estado, com forte
ênfase no ‘tipo sergipano’. Nos dois grandes
painéis de Jordão Oliveira intitulados Economia
de Sergipe (305 x 510 cm), de 1962, localizados
no hall de entrada do Palácio Olímpio Campos,
percebemos os elementos agrários como a
cultura da cana, do coco e do sal. Essas pinturas
estão também vinculadas à representação de
um ‘povo sergipano’ mestiço, de pele escura:
um misto de sertanejo e praieiro.
Os símbolos da cultura em toda a cidade
Entre as décadas de 1970 e 1980, as obras
de arte pública passaram a se disseminar
por outras localidades da cidade. Antes, elas
estavam circunscritas a pontos restritos de
Aracaju e agora a intenção dos artistas 47 é,
sobretudo, propagar ideias positivas da capital
e do estado, seja para os moradores ou para
os turistas. Esses novos trabalhos surgiram já
47
Artistas e instituições que encomendam obras de arte.
185
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
influenciados pelas diversas técnicas e escolas.
Uma importante influência foi a obra de Jenner
Augusto, exposta no edifício Walter Franco.
As décadas de 1980 e 1990 em Aracaju
foram um período de grandes mudanças
estruturais para a cidade. O turismo passou a
ser imensamente incentivado em termos de
infraestrutura. Como exemplo, podemos citar
os inúmeros hotéis construídos nessa época.
Os empresários da hotelaria passaram a investir
nas áreas próximas à praia, em detrimento
do centro comercial da cidade. Essa nova
preocupação com o turismo também se refletiu
em outros aspectos da infraestrutura, como no
transporte e na urbanização de vários pontos da
cidade. Os novos impulsos para o crescimento
de Aracaju e de Sergipe representaram não
apenas o interesse do poder público, mas
também da iniciativa privada.
Nas artes públicas, houve uma mudança na
forma de representação simbólica: a percepção
se torna simbolicamente mais atrelada ao
comércio e à publicidade. A partir da década
186
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
de 1980, as instituições começaram a exaltar os
valores locais e a incentivar o turismo nacional.
Para exemplificar, recorremos a um exemplo
de 1981, do Jornal de Sergipe, em que uma
propaganda do banco Caderneta 48 exprime
bem a ideia da época em relação aos valores
históricos e culturais dos sergipanos. Nesta
propaganda 49 do estado vemos fotos da ponte
do imperador, dos casarões do município de
São Cristovão com as frases “conheça e ame
sua terra” e “uma campanha para você se
orgulhar de Sergipe”.
É também na década de 1980 que entra em
cena o artista Eurico Luiz. Nascido em São
Paulo, Eurico estudou na Faculdade de Belas
Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
e radicou-se em Sergipe, onde teve uma
atuação decisiva na forma de produzir arte
pública. Ele levou ao extremo a representação
simbólica dos cajus e araras, em cores fortes e
48
49
Agencia bancária não mais existente.
Jornal de Sergipe, 1º de fevereiro de 1981.
187
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
vivas, com um ar muito tropical. Até hoje suas
obras são referências simbólicas da capital,
principalmente para os turistas.
Eurico Luiz apresentou de maneira pioneira em
suas obras a diversidade da cultura popular. Os
murais do Gonzagão 50 foram produzidos por
ele e exibem, ao lado de suas seis portas, doze
painéis, cada um representando folguedos e
danças populares encontradas em Sergipe.
Talvez o trabalho mais representativo do
conjunto das obras de arte pública de Eurico
Luiz seja o sinuoso obelisco da Praça do Iate
Clube. Lá estão esculpidos em técnica mista
uma grande arara em meio a imensos cajus.
Na mesma praça estão também representados
um golfinho e o brasão da cidade de Aracaju; no
chão está composto um mosaico formando o
mapa da cidade. Não podemos também deixar
de mencionar que ali se encontra também
O espaço para festas e apresentações populares encontra-se
na Av. Heráclito Rollemberg.
50
188
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
uma importante obra em reconhecimento ao
fundador da capital, Inácio Barbosa, morto
um ano depois da fundação de Aracaju, o que
faz da praça um importante marco histórico.
As obras de Eurico Luiz que estão por vários
pontos da cidade são os maiores exemplos da
arte pública das décadas de 1980 e 1990.
O artista plástico Eurico Luiz se considerava
paulista de nascimento, baiano de coração e
sergipano por adoção. Em Sergipe ele viveu mais
de 30 anos, tendo sido a década de 1980 o seu
auge produtivo. Tornou-se o artista ‘oficial’ do
governo de então, quando produziu diversas obras
públicas, tanto em Aracaju quanto em cidades do
interior. Ficaram famosas suas cabines telefônicas
em forma de caju e arara e os seus painéis com
representações do folclore sergipano.
Outras obras importantes de Eurico Luiz
fincadas em Aracaju são o grande caju na
cabeceira da ponte de acesso ao bairro Coroa
do Meio e o peixe da colônia de pescadores,
no bairro de Atalaia. Como percebemos,
a arte pública em Aracaju deixou o centro
189
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
comercial e se expandiu pela cidade, criando
outros trajetos. Consideraremos aqui trajetos
os espaços delimitados dentro da cidade de
Aracaju, onde a presença da arte pública é
enfatizada e referendada por características
sociais, históricas e urbanas.
Neste artigo serão abordados apenas dois
trajetos identificados como ‘trajeto orla de
Atalaia’ e o ‘trajeto da centralidade histórica’.
Trajetos contemporâneos
da arte pública em Aracaju
O ‘trajeto da centralidade histórica’ perpassa o
espaço do centro histórico da cidade delimitado
anteriormente e se expande das três praças
para um perímetro maior. Esse perímetro é
coberto pelo chamado ‘quadrado de Pirro’, que
se estende do conjunto dos mercados (Thales
Ferraz, Antônio Franco e Albano Franco) até a
Praça Camerindo. Esse trajeto é marcado não
apenas por obras do período de 1855 a 1930
(tratado anteriormente), pois ali está agregada
uma série de intervenções de diversos períodos.
190
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
Tal característica demonstra mais uma vez a
inclinação da capital sergipana no sentido de
modernizar seus espaços mais antigos. Prova
disso é a Galeria de Arte Álvaro Santos (GAAS),
da Prefeitura Municipal de Aracaju. A GAAS
se encontra no núcleo do trajeto histórico e é
rodeada por painéis e uma escultura de estilo
moderno. Os principais monumentos desse
trajeto, além dos já citados, são os arquitetônicos,
como a Ponte do Imperador, o Palácio Olímpio
Campos e a Catedral Metropolitana.
Configurando-se como uma importante
centralidade do comércio popular, o centro de
Aracaju conflui usos e significados que podem
ser diferentes para a população e para os
turistas, e ainda de acordo com seus horários
de usos e públicos. Durante o dia, o comércio,
e à noite, a prostituição.
Trajeto Orla (Atalaia)
Esse primeiro trajeto possui mais características
específicas que o anterior. O calçadão da praia
de Atalaia margeia a Avenida Santos Dumont,
191
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
que se estende desde o Farol da Coroa do Meio
51
até a Passarela do Caranguejo . Completamente
reformada no governo de João Alves (20032006), a orla conta com uma série de ambientes,
como quadras esportivas, lagos artificiais,
oceanário 52, pistas de skate, praça de eventos
e o Centro de Cultura e Arte de Sergipe, que
abriga 48 miniboxes para a venda de peças de
artesanato, além de diversos mobiliários urbanos.
A orla de Atalaia é um espaço que centraliza
um conjunto de obras de arte idealizado
especificamente para esse local. É lá que o
governo do estado vem agregando o maior
número de obras públicas dos últimos dez
anos. Nessa centralidade encontramos cinco
conjuntos de arte pública institucionalizada,
o que tem acontecido porque o projeto Orla
utiliza um forte apelo para atrair renda e
emprego através do turismo e do lazer.
Concentração de bares e restaurantes na orla da Atalaia
que recebe o nome do prato típico da capital sergipana, o
caranguejo.
52
O oceanário é administrado pelo projeto Tamar, da
Petrobras.
51
192
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
Arcos da praia de Atalaia
A primeira obra a ser analisada no trajeto
Atalaia destaca-se por possuir aspectos como
temporalidade, dimensão e localização: os arcos
constituem o maior e mais antigo monumento
público erguido naquele local. Essa ‘obra de
arte’ marca a entrada da orla, em seu principal
acesso 53 , como um portal que convida os
visitantes a conhecerem o espaço.
Os arcos da orla nada mais são que um conjunto
de quatro arcos de concreto revestidos com
pastilhas cerâmicas de cor azul marinho tendo
ao fundo a vasta extensão de areia. Para Walter
Chou, o monumento construído pelo arquiteto
Eduardo Carlomagno “foi imposto como
marco na paisagem, não guarda referências
a elementos anteriores na história da cidade”
(CHOU, 2006:77).
Acesso dos carros que vêm do centro e dos usuários dos
ônibus, uma vez que o terminal fica muito próximo do local
53
193
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Praça da ‘sergipanidade’
A chamada ‘praça da sergipanidade’, cujo
nome oficial é ‘espaço de convivência cultural’,
foi inaugurada em 15 de março de 2006 e fica
num local próximo aos arcos, à direita. Nesse
espaço encontramos o que a professora Aglaé
Fontes, coordenadora geral do projeto Grandes
Personalidades, que deu origem a esse conjunto
escultórico, chama de ‘vultos da história
sergipana’. Ali encontramos dez esculturas de
corpo inteiro, em bronze, que fazem parte da
reestruturação da orla da Atalaia em Aracaju e
foram produzidas pelo artista plástico carioca
Otto Dumovich.
Essas esculturas – estima-se que sejam de
tamanho natural – representam os sergipanos
Gumercindo de Araujo Bessa (jurista), Horácio
Hora (artista plástico), Tobias Barreto Menezes
(intelectual), Jackson de Figueiredo Martins (poeta
e jornalista), Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos
Romero (intelectual), Mauricio Graccho Cardoso
(jurista e político), Gilberto Amado (escritor,
embaixador e jurista), Manuel José Bonfim
194
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
(médico e jornalista), José Calasans Brandão da
Silva (escritor e historiador) e, finalmente, João
Batista Ribeiro de Andrade Fernandes (linguista
e pesquisador da cultura popular).
Apesar de representarem figuras humanas
e estarem todas juntas na mesma praça, as
esculturas não interagem entre si: cada uma
olha para uma direção diferente, como se
não se dessem conta da presença das outras
personalidades. Além disso, tais esculturas,
apesar de representarem ilustres sergipanos e até
mesmo aracajuanos, encontram-se deslocadas
de seus ‘locais de origem’. Comparemo-nas ao
monumento a Fausto Cardoso, localizado na
praça que leva seu nome: naquele local, Fausto
Cardoso exercia sua militância política, sua
interação social, além de ter sido assassinado
naquela praça, tendo caído nas proximidades
onde hoje está seu monumento.
195
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Segundo a professora e historiadora Aglaé Alencar,
responsável pela organização do espaço, trata-se
de mais uma iniciativa do governo para promover o
resgate cultural. “É um trabalho cuidadoso que vem
sendo estudado há algum tempo. Já que dispomos
de uma área tão aprazível na Orla, nada melhor
que aproveitar esse espaço para levar também
conhecimento à população. As esculturas de Sylvio
Romero e Tobias Barreto estão sendo instaladas e,
ao lado delas, teremos informações sobre cada um
deles. É importante que os sergipanos e turistas
conheçam a importância destes intelectuais para
nossa história”, disse Aglaé, acrescentando que as
duas peças são as primeiras de uma série (Correio
de Sergipe, 17 de junho de 2005).
Podemos pensar que as figuras ilustres
representadas nas esculturas, apesar de estarem
em um mesmo espaço, quando vivas não
conviviam entre si. A ‘praça da sergipanidade’ se
encontra em um espaço e tempo descolado da
história. A orla da Atalaia é um espaço novo, que
ainda não se constituiu no imaginário sergipano
como um local dotado de aspectos históricos,
havendo, por esse motivo, um estranhamento
entre as esculturas e o espaço que elas ocupam.
Essa conquista deve ser facilitada por estarem as
obras no mesmo nível da altura do público, sem
o pedestal, o que possivelmente conferiria um
196
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
ar de superioridade, comum aos monumentos.
As esculturas da ‘praça da sergipanidade’
são claramente inspiradas na ideia de outras
instalações escultóricas, como a de Vinícius
de Moraes, na Praia de Itapuã, na Bahia, local
onde viveu por algum tempo, ou no exemplo
mais notório, o do poeta Carlos Drummond de
Andrade, na praia de Copacabana, localizada no
Rio de Janeiro, local onde o poeta também viveu,
sendo esta última uma obra inspirada na escultura
de Fernando Pessoa em um café Lisboeta.
Dessa forma, as obras da ‘praça da
sergipanidade’, apesar de serem instrutivas
para as novas gerações – uma vez que são
acompanhadas de placas que contam, muito
brevemente, quem foram essas figuras ilustres,
onde nasceram, como viveram e quando
morreram – não possuem uma conotação
histórica satisfatória com o seu meio. Elas estão
deslocadas do seu tempo e espaço original. Só
muito recentemente o espaço da Orla de Atalaia
foi considerado uma centralidade importante
para o estado de Sergipe.
197
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Praça da ‘brasilidade’
O segundo espaço que possui um conjunto de
obras públicas na Orla de Atalaia é a Praça da
Brasilidade, inaugurada em 2006. Nesse local
encontramos um conjunto formado por oito
esculturas humanas, em tamanho natural 54, dessa
vez não mais de personalidades sergipanas, e
sim brasileiras. As esculturas foram produzidas
pelo artista plástico mineiro Leo Santana.
Posicionadas lado a lado, em uma fila,
encontramos as representações de Juscelino
Kubitscheck acenando, Getúlio Vargas, José
Maria da Silva Paranhos Júnior (Barão do Rio
Branco), Luiz Alves de Lima e Silva (Duque de
Caxias), Izabel Cristina Leopoldina Augusta
Michaela Gonzaga de Orleans e Bragança
(Princesa Izabel), D. Pedro II, José Bonifácio de
Andrade e Silva e Joaquim José da Silva Xavier
(Tiradentes), este com direito a uma corda no
pescoço e mãos amarradas.
54
Tamanho presumido.
198
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
Praça das Três Etnias
Outros monumentos também dispostos na
extensão da orla, resultado do projeto Grandes
Personalidades, realizado pelo ex-governador
João Alves Filho, homenageiam Inácio Barbosa,
responsável pela transferência da capital
administrativa de São Cristóvão para Aracaju.
Nesse último conjunto escultórico existem
quatro esculturas: a primeira delas representa
o próprio Inácio Barbosa que, por não haver
registro de sua imagem, foi homenageado com
uma grande estrutura sem feições definidas, de
contorno estilizado e que propõe a presença da
figura de Inácio. Dessa maneira, Inácio Barbosa
é representado por uma grande chapa de aço
carbono de base curva, com a representação
de uma figura humana com braços e cabeça
recortados em ângulos retos, como percebemos
na ilustração 19. Esse monumento é o de maior
destaque do conjunto. A praça ainda faz referência
a uma ideia de gênese do povo de Aracaju,
representado por esculturas de três transeuntes: duas
figuras masculinas, um negro e um branco, além de
uma representação feminina de feições indígenas.
199
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
A segunda escultura do conjunto representa o
branco, com uma escultura moderna, trajada de
bermuda, camiseta, calçando sandálias e com
um corte de cabelo bastante contemporâneo. O
rapaz pode ser a representação de um turista ou de
um transeunte que passa por ali cotidianamente.
A terceira figura se refere à representação do
negro, com uma escultura feminina, trajada com
um vestido, sandálias de dedo, argolas, uma
bolsa de palha e cabelos bem curtos. A imagem
da mulher negra é representada também como
uma turista ou uma transeunte comum que
poderia estar passando por ali.
A quarta e última figura é a indígena, que destoa
das demais, primeiramente por estar mais
deslocada das outras, sentada com um coco em
uma das mãos, também de sandálias e de saia.
No entanto, a ‘índia’ está com os seios à mostra
e com um farto colar. Essa figura contrasta com
as outras duas, uma vez que as representações
do negro e do branco se encontram trajadas de
forma contemporânea, ao contrário da índia.
Podemos considerar esse conjunto escultural
pertinente, no sentido de fazer referência, mais
200
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
uma vez, à relação do indígena com Sergipe,
presente nas artes públicas desde a década de
1930, como já foi abordado neste artigo. Além
do mais, a presença dos ‘turistas’ remete bem à
formação de Aracaju, pois grande parte dessas
pessoas, não apenas de outros municípios
sergipanos, como também de outros estados,
compõe a população da capital.
As três praças construídas pelo projeto Grandes
Personalidades buscaram evocar uma ideia de
tradição e de história em um espaço novo,
moderno, fora de um contexto histórico.
Deduzimos, a partir dessas caracterizações,
que as obras têm mais um apelo pedagógico e
turístico do que preocupações estéticas.
Uma concepção diferente das tradicionais estátuas
para cultuar personalidades em praça pública está
virando moda no Rio de Janeiro. Os ídolos são
retratados com expressões descontraídas e situações
reais, muitas vezes em tamanho natural. Os
pedestais foram praticamente excluídos. No lugar de
figuras militares e aristocráticas, entram os senhores
da cultura popular brasileira (VITORAZZO, 2003).
201
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Para Walter Chou, “a intervenção dada à
Orla de Atalaia é um exemplo do uso de
políticas públicas na transformação das
paisagens urbanas – pela necessidade de
construção de imagens que comuniquem a
ideia de modernidade das intervenções e de
desenvolvimento local” (CHOU, 2006: 81).
No que se refere ao teor simbólico da obra,
percebemos que nos conjuntos escultóricos
dedicados às três etnias formadoras da cidade
de Aracaju, e do Brasil de maneira geral, o
índio está descontextualizado diante do negro
e do branco. Ainda no que se refere a uma
valorização da diversidade étnica do estado,
não encontramos nenhuma referência ao
negro e ao índio entre os ‘heróis’ e ‘ilustres’
militares, políticos e intelectuais. Também na
‘praça da sergipanidade’, a figura do negro e
do índio estão ausentes. No caso dos índios,
povo de extrema importância histórica para
a constituição do estado, foram esquecidas
figuras
como
os
caciques
Japaratuba, entre outros.
202
Serigy,
Siriri,
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
Na ‘praça da sergipanidade’, de fato foram
privilegiados intelectuais nascidos em Sergipe,
mas que viveram, produziram, tornaram-se
notórios e morreram em outros estados ou até
mesmo em outros países, o que faz transparecer
a ideia de que os sergipanos são ou deveriam
ser reconhecidos nacionalmente por sua cultura
e seus relevantes serviços à nação.
Considerações finais
Conceituar a arte pública de uma maneira mais
coesa mostrou-se indispensável para a elaboração
deste trabalho. Para tanto, foi necessária uma
fragmentação do termo em diversos conceitos
que relacionassem a cidade, os artistas e as obras
a outro ponto imprescindível para a análise do
objeto: o responsável pela encomenda e pela
preservação da obra de arte pública.
A figura do responsável pela obra é parte
indispensável à presente discussão, uma vez que a
arte ocupa seu espaço na cidade não de maneira
aleatória e sim objetiva. É nesse sentido – o da
ocupação dos espaços públicos da cidade pela
203
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
arte – que percebemos os discursos implícitos e/
ou explícitos dos responsáveis pela arte pública a
partir dos símbolos que se tornam presentes.
Ao nos dedicarmos às obras cujo responsável é
o poder público, constatamos uma recorrência
de símbolos que se segmentam de acordo
com os espaços da cidade e com os períodos
histórico, político, econômico e social. Pudemos
perceber que nas duas centralidades tratadas
neste trabalho – a Aracaju histórica das praças
Olímpio Campos, Almirante Barroso e Fausto
Cardoso, e a centralidade moderna da Orla de
Atalaia, também com suas três praças, a da
brasilidade, da sergipanidade e das três etnias
– substanciais distinções entre elas.
Apesar da coincidência entre as duas
centralidades (elas possuem três praças e estão
repletas de monumentos de personalidades), na
primeira, as personagens históricas estão em seus
espaços e tempos reais, ou seja, os monumentos
foram instalados pouco tempo depois da morte
de seus representados ou em pleno período de
suas atuações, eternizando, dessa forma, essas
204
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
personalidades. Em relação aos seus espaços,
pudemos perceber que é na centralidade onde
as personalidades viveram e conviveram que a
representação dos atores históricos está dotada
de sentido, ou seja, está de fato imersa em seus
espaços ‘reais’ de convívio.
No que se refere à segunda centralidade, a
Orla de Atalaia, local de infraestrutura moderna
– diferentemente do primeiro exemplo –
encontramos um espaço que, apesar de ser
considerado um símbolo para a cidade, não utiliza
a praia como referência. Na verdade, a menção
que se faz ao mar é praticamente nula, uma vez
que todo projeto urbanístico está literalmente de
costas para a praia e de frente para a avenida.
Podemos dizer que a intervenção arquitetônica da
Orla de Atalaia poderia ser construída em qualquer
centro urbano, pois a paisagem natural do mar
não é um fator que corrobora no entendimento
do conjunto, e nem é valorizado pela intervenção.
Apenas foi a célula inicial do processo de ocupação
(do uso para lazer) (CHOU, 82, 2006).
Apesar de possuir três praças com um grande
conjunto de monumentos que tratam, na
205
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
maioria das vezes, de personalidades, elas
são expostas de maneira completamente
diferente daquelas da centralidade histórica, a
começar pela disposição espacial. As obras da
centralidade não estão afixadas em pedestais,
mas diretamente no solo, como se fossem
transeuntes, o que dá uma noção mais humana
e menos ‘superior’ ou mítica das personalidades.
Entre as personalidades nascidas em Sergipe,
encontramos muitas personagens históricas
que viveram grande parte de suas vidas em
Pernambuco ou no Rio de Janeiro, tendo
atuado pouco em seu estado natal. Dessa
forma, o espaço em que se encontram está
completamente deslocado de qualquer
possibilidade real, mostrando que esses
monumentos estão ali mais para um uso
cênico do que histórico, servindo apenas
como um conjunto interativo para fotos, como
‘espantalhos ao contrário’.
Apesar de suas diferenças, ambas as
centralidades têm suas propostas resolvidas.
Enquanto uma ressalta o centro histórico
206
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
Ivan Masafret
com a aura de seu ambiente arquitetônico e
histórico, a outra está para uma modernidade
interativa entre os elementos espaciais, sejam
eles mobiliários urbanos, quadras de esporte ou
obras de arte. São dois espaços, duas realidades
e, consequentemente, duas percepções e
distintos públicos, onde as obras se relacionam
de forma distinta em suas centralidades.
O que podemos perceber em Aracaju é a
dispersão ou multiplicação dos espaços das obras
de arte pública na cidade. Uma das principais
manifestações da arte institucionalizada pelo
poder público são os painéis instalados nos
cinco terminais de integração da cidade. No
entanto, o que ainda percebemos é a limitação
do uso desses espaços nas temáticas, sempre
vinculadas ao transporte.
Em todas essas centralidades e espaços em que
a arte institucionalizada pelo poder público
aparece e foi aqui analisada, percebemos que,
principalmente a partir da terceira fase do uso
da arte pública, ou seja, a partir da década de
1980 em Aracaju, o discurso do estado esteve
207
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
atrelado a uma ideia de confecção e fixação
de uma ‘identidade sergipana’. Porém, essa
ideia ainda não está consolidada no imaginário
dos sergipanos, apesar das fortes referências
históricas e culturais desse estado.
Aracaju enquanto cidade e, por conseguinte,
Sergipe como estado não possui uma identidade
consolidada, encontra-se como em busca de uma
“marca da cidade”. Esta marca da cidade ainda não
se mostra nítida nem para os próprios sergipanos,
necessitando assim de uma idealização e utilização
mais coesa dos meios de comunicação e entre eles
a arte pública para que se crie esta marca, não
por um símbolo e sim por uma idéia do estado.
(...) Quando alguém vai a uma cidade, estado ou
país elas já vão esperando algo. É esta marca que
Sergipe ainda não conseguiu consolidar (Carlos
Fortuna, Aracaju, 2007 55 ).
Percebemos que este trabalho não se esgota
aqui, uma vez que não apenas indica, mas
possibilita caminhos de análises e estudos sobre
a arte pública em Aracaju.
55
Entrevista com Carlos Fortuna. São Cristóvão (SE), 2007.
208
Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju
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OSÓRIO, Luiz Camillo. << http://pphp.uol.com.br/
tropico/html/textos/956,1.shl >> acessado em 15
de novembro de 2007.
213
Artes plásticas em Sergipe:
a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz 56
Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
A
tímida presença de obras de artes em locais
públicos e a escassez de publicações fazem
detectar a pouca importância dada às artes
plásticas em Sergipe. Essa constatação ajuda
a explicar, parcialmente, o desconhecimento
da população dos valores artísticos dessa área.
Mas, para entender o porquê disto, devem-se
analisar desde o modelo econômico, seus ciclos,
os valores sociais e religiosos da sociedade, até
o perfil do cidadão mediano sergipano.
O volume de investimentos para fazer com
que a cultura venha a ser um instrumento
poderoso para a nação está associado ao
direcionamento econômico e à sensibilidade
de quem administra estrategicamente o erário
e os acumuladores de capital. No Brasil, com
Antônio da Cruz é artista plástico e cenógrafo. Observador
desse universo artístico. Começou a sua carreira propriamente
em 1974, no Prêmio ASC de Pintura, na Galeria de Arte Álvaro
Santos, de onde foi diretor de 2001 a 2005. Cruz é também o
autor do Projeto Galeria em Aberto, a que se refere este texto, e
integrou o grupo Guyme-hawc.
56
217
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
uma sociedade de primórdios aristocráticos e
escravagistas, de economia fortemente rural, a
exemplo do ciclo do gado e da cana de açúcar,
ficou na memória de quem se sente elite o
zelo moral de afastar o povo da apreciação de
quase tudo que representasse “o bom gosto da
‘verdadeira cultura’”. Em Sergipe não tem sido
diferente. Até os dias atuais, há uma insistente
dicotomia em que a cultura popular é mero
folclore e a cultura europeia é erudita. A ideia
equivocada de que ‘o povo não compreende
porque não tem cultura’ arraigou-se e se tornou
estigma. Existe aí um componente ideológico
muito forte. Torna-se necessário oferecer ao
povo muito mais: variados e bons espetáculos,
gratuitamente, para serem cultivados.
A cultura europeia estilizada, com elementos da
cultura negra e indígena, que no Brasil chamam
de popular, passou a ser compreendida como
valorosa e a receber a atenção das autoridades
apenas recentemente. Por significar autoestima
e identidade, além de dar retorno econômico e
social vários setores organizados da sociedade
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Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
insistem em cobrar presteza dos mandatários.
Sob o ponto de vista do que se chama evolução
civilizacional, há uma grande defasagem entre
o Brasil e outros lugares do mundo. Enquanto
no Oriente as artes e as ciências eram lugarescomuns, a Europa estava na barbárie e o Brasil,
ignoto, era um paraíso desprovido da sabedoria
capciosa. Quando o Renascimento acontecia
na Itália de 1500, os portugueses chegavam
ao Brasil para lhe tirar a inocência, trazer o
que era possível de conhecimento europeu e,
definitivamente, transformá-lo ao seu modo.
Sergipe esteve, até a década de 60 do século XX,
muito atrelada socioculturalmente às capitais do
Brasil, Salvador e Rio de Janeiro, cada uma com
o seu período de influência, e estas à Europa.
Aracaju se entregou ao mesmo desígnio. Cidade
que saiu da sua evolução natural de povoado de
pescadores para artificialmente ser a capital do
estado no final do século XIX, até a década de
60 do século seguinte roubou a cena de cidades
então importantes do interior, esvaziando-as.
Estudiosos só despertaram para reconhecer
tal fenômeno e a sua história mais de 50 anos
219
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
depois da sua fundação. Tal apatia histórica
se reproduz em relação à memória artística e
cultural do próprio lugar e, por consequência,
às artes plásticas de todo o estado.
Horácio Hora
Estudar epistemologicamente a vida de um
artista e a sua produção não é transformá-lo em
mito, mas colocá-lo devidamente no contexto
histórico e cultural. Cada artista cabe na fama
que ele mesmo conseguiu pelos seus feitos. O
resto é lenda.
Vasculhando-se a história, verifica-se que a
quase totalidade dos intelectuais e artistas
sergipanos com brilho pelo Brasil afora
conseguiram esse feito por sua luz própria, não
pelo fato de que a sociedade e o estado, de
modo proposital e consciente, se esforçassem
em lhes oferecer todo o suporte para isso. Dentre
as exceções, existe o caso de Horácio Hora,
pintor laranjeirense que obteve do imperador
D. Pedro II uma bolsa para estudar em Paris.
Das suas obras conhecidas por aqui, algumas
220
Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
se encontram em exposição no Museu Histórico
de Sergipe, localizado em São Cristóvão, e
outras poucas em coleções particulares. Por
outro lado, o caso de Horácio Hora é exemplar
quando se busca entender as relações de
compadrio e clientelismo existentes até hoje na
sociedade brasileira. Decorrente desta herança,
os artistas próximos ao poder tenderão a auferir
melhores e maiores dividendos. Somente com
o aprofundamento da democracia os vícios
residuais da aristocracia, inconscientemente
impregnados no imaginário da sociedade, serão
erradicados. Mas Horácio Hora não se rendeu
de todo aos caprichos da classe dominante e ao
seu classicismo. Gumercindo Bessa escreveu:
... fez acto de adiantada cultura, revoltou-se
contra o ensino tradicional, contra o absolutismo
na arte, contra o regime auctoritário da Academia,
para acolher e cultivar a arte verdadeira, a arte
sem pedantismo, a arte essencialmente expressiva.
(Álbum Horacio Hora. 2003)
Com uma população de religiosidade ibérica
arraigada, Sergipe adquiriu um imenso acervo
de cópias de imagens de Santos católicos
romanos, pintadas ou esculpidas, tanto por
221
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
artistas anônimos como por mestres, sob
encomenda da igreja e seus seguidores. Parte
desse acervo está com particulares, enquanto
outra se encontra nos Museus de Arte Sacra de
Laranjeiras e de São Cristóvão.
Retratos
Como na Europa, a burguesia brasileira e a
sergipana seguiram a aristocracia também
encomendando retratos para notabilizar
os homens públicos da classe. Políticos,
funcionários públicos graduados e profissionais
liberais estão retratados sob a ótica dos
pintores nas cores e técnicas do francesismo
acadêmico. Nos lares populares, retratos com
tinta aquosa sobre papel, guarnecidos por uma
moldura ovalada, foram coqueluche durante
anos a fio. Esse é, ainda, um modo popular de
memorização da imagem dos entes queridos.
Tal objeto, que possui muito valor sentimental,
é inexpressivo como arte e, decerto, encontra
maior significância para a etnologia.
Na virada do século XIX para o XX, em busca
222
Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
de novas perspectivas, o mundo interiorano
sergipano entabulou com a capital. Os
descendentes dos imigrantes europeus que
foram, nos primórdios da colonização, formar
cidades rios acima no interior, agora vinham
para o litoral, assim como os nativos. Aracaju,
aos olhos de muitos, independentemente da
origem, parecia ser promissora.
Considerando que, no espectro das artes
plásticas, incluem-se a arquitetura e o artesanato,
uma das manifestações de destaque seriam os
primeiros prédios imponentes das capitais. Em
São Cristóvão (SE), evidencia-se o peso secular da
arquitetura colonial. Na transferência da capital
para Aracaju, há indícios de que a escassez de
mão-de-obra especializada obrigou o poder
público a importar de engenheiros a mestres de
obra para construir os prédios no estilo em voga
no Rio de Janeiro: o neoclássico de Paris. Não
há aí qualquer traço de identidade arquitetônica
sergipana. Os modelos de casas residenciais
populares em alvenaria com platibanda se
assemelham às demais do Nordeste: telhado
colonial em duas águas, quartos laterais, um
223
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
corredor longo e escuro, fachada simples com
portas e janelas estreitas. Quando não eram
heranças do período colonial português, sofriam
influências neoclássicas ou ecléticas. As casas de
palha e taipa que chegaram a abrigar os moradores
da recém-criada capital, caso resistissem como
heranças residuais de habitações indígenas,
mesmo precárias, poderiam servir de modelos
arquitetônicos genuinamente sergipanos. Hoje,
há uma estilização generalizada desse tipo de
construção, lembrada apenas pelo aspecto da
cobertura, não mais como padrão de moradia,
mas atração exótica para atrair turistas, abrigando
bares e restaurantes. Nas décadas de 1950 e
1960, a arquitetura de Aracaju se revigorou.
Casas da Avenida Ivo do Prado, Rua Vila Cristina
e das cercanias têm ótimos exemplares de uma
arquitetura enxuta, ousada e bonita. Ali, a classe
média exibe o bom gosto que pode desfrutar.
Nesse período, surge o primeiro grande prédio
de apartamentos de Aracaju: o Edifício Atalaia.
Para conhecer a cerâmica sergipana dos
habitantes dos primórdios da colonização,
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Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
somente
localizando
seus
possíveis
sítios
arqueológicos. A cerâmica de Carrapicho
ganhou grande projeção e tem entre os seus
nomes mais expressivos o de Capilé. Há também
outras cerâmicas de várias cidades ribeirinhas do
Rio São Francisco. Os programas governamentais
e a presença de pessoas com orientação de
desenho aos artesãos, em Carrapicho e outras
localidades entre as décadas de 1980 e 1990,
influenciaram a produção. Os traços originais
simples, produzidos pelos populares, associados
meramente a fins utilitários da cerâmica,
enriqueceram-se com curvas, texturas e formas.
Hoje, em Aracaju, Beto Pezão e Wilton fazem
cerâmica de forte identidade. Os Mestres Tonho
e Véio, no sertão, transformam a madeira em
expressões do homem forte. A renda artesanal
produzida sob vários estilos é rica, assim como
a tapeçaria com motivos regionais. A tapeçaria
sofisticada encontra nos nomes de Antônio
Mendes Queiroz, Luiz Adelmo e Alfredinho os
seus grandes representantes.
225
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
‘Exílio’ de artistas
Uma expressão corrente em Sergipe entre
aqueles que apreciam e acreditam no talento
do artista, mas não sabem o que fazer por ele,
é: ‘você está se perdendo aqui’. Significa que
somente se atirando ao mundo o artista pode
obter reconhecimento e sobreviver como tal.
O campo não oferece o universo sofisticado que se
imagina existir na capital, mas, tanto a indiferença
quanto a falta de escola acabaram distanciando os
potenciais artistas e a população das artes plásticas.
O material de pintura era caro e escasso. O
mármore, uma raridade. O processo de fundição
em bronze, complexo e caro. Como provável
exemplo dessa realidade, o busto de Jackson
Figueiredo foi fundido em 1938, no Rio de Janeiro.
A pedra calcária usada durante o período colonial
nas construções, antes do adobe e do tijolo,
poderia ser utilizada como o faz Zeus atualmente,
mas o calcário é sensível a impactos e, quando
exposto ao tempo, sofre erosão devido à ação
abrasiva das partículas sólidas trazidas pelo vento.
226
Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
Tudo isso dificulta a produção de qualquer artista,
mesmo tendo talento.
Aracaju se transformou em um centro comercial,
sede do poder; um porto seguro e porta de saída.
Muitos artistas vindos do interior partiram para
outros estados, como Oséas dos Santos e Jordão
de Oliveira, e para o mundo, como Antônio Maia,
nomes constantes em longos e importantes
capítulos da história das artes plásticas.
J. Inácio em três momentos: o artista
plástico vivo mais popular de Sergipe
Quase a totalidade dos artistas até hoje é
autodidata e de origem humilde, portanto, vem
do seio do povo. Esses artistas vieram a sofrer
influências do mesmo universo acadêmico que
institucionalizou os rumos da arte no Brasil a
partir da Missão Artística Francesa de 1816,
até meados da década de 40 do século XX. Em
1820, foi criada a Academia e Escola Real das
Artes, no Rio de Janeiro. Em 1826, foi fundada
a Academia Imperial de Belas-Artes. O mesmo
academicismo fez seus seguidores resistirem
227
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
ao movimento modernista, em 1872, quando
surgiu o impressionismo. No Brasil, na Semana
de 1922, o academicismo também renegou
as novidades. Acadêmicos opunham-se,
ridicularizando e agredindo fisicamente obras
modernas, rotulando os artistas de comunistas
e subversivos, e as obras como um atentado
à moral e aos bons costumes. Em São Paulo,
no ano de 1934, uma exposição de pintura de
Flávio de Carvalho chegou a ser fechada pela
polícia e aberta somente com ordem judicial.
Nove anos após a Semana de Arte Moderna,
os artistas cariocas realizaram o Salão
Revolucionário de 1931, com a participação
de Cândido Portinari, Vittorio Gobbis, Ismael
Nery e Cícero Dias, vedetes do modernismo
fluminense. Ao longo das décadas de 1930 e
1940, grupos de modernistas foram formados
em Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre.
Em Sergipe, sem Escola de Belas Artes e
sem estímulo, na década de 1940, artistas
como Jordão de Oliveira, Jenner Augusto,
Álvaro Santos e o seu irmão Florival Santos
228
Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
captaram elementos impressionistas, cubistas
e abstracionistas e os imprimiram nas suas
telas. Nas paisagens do mestre-de-muitosmestres Jordão de Oliveira, que lecionou no
Rio de Janeiro, durante 41 anos, pinceladas
apareciam soltas sem o claro-escuro tipicamente
acadêmico, muito comum nos retratos que ele
mesmo pintava. São pinturas luminosas.
Jenner Augusto, além de toda a carga dramática
regional, tema que lhe era caro, pintou formas
compondo-as em planos, ao modo cubista
de Portinari, ou como diz o poeta Vinícius
de Moraes “... e com o amarelo adstringente
dos cajus resumiste o cubismo de taipa...” 57.
O índio brasileiro também é tema nacionalista
frequente na pintura de Jenner.
Elementos do impressionismo há muito são
encontrados na pintura do ex-comunista e
“anarquista” J. Inácio, o artista plástico de maior
popularidade em Sergipe. Em seu aniversário
Vide webgrafia – portal terra. http://terramagazine.terra.com.
br/interna/0,,OI3026365-EI6581,00.html
57
229
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
de 93 anos, a Sociedade Semear prestou-lhe
uma grande homenagem, criando o Prêmio
J. Inácio. Seu filho, Caã, seguiu esse mesmo
rumo, porém, com uma intensidade cromática
mais acentuada pelas cores quentes. Ele cria
situações de contrastes instantâneos com uma
cor fria ao lado de uma quente, produzindo um
efeito luminoso de uma coloração belamente
desconcertante aos olhos.
Indiferença Artística
Enquanto em São Paulo e no Rio de Janeiro os
acadêmicos se incomodavam com a presença
dos modernistas, em Aracaju a indiferença da
sociedade em geral continuava, como descrevia
Álvaro Santos em um dos seus textos:
A exposição é aberta, o povo entra, os homens
em sinal de respeito com os chapéus na mão, as
senhoras elegantes falando das filhas que também
pintaram um quadro, ‘uma maravilha’ os rapazes
entram fazendo hora para o cinema. As mocinhas
por curiosidade e quando por acaso se deparam
com nu: Jesus! Ouvem-se risinhos, as gracinhas
tão sem graça...! (...) mas, ninguém adquire obra.
(Citado na “Agenda de Aracaju”, 1991)
230
Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
Ganhar visibilidade e vencer barreiras sociais
rumo à ascensão foi sempre difícil para um
artista. Um caso exemplar é o de Zé de Dome, um
operário filho de uma tecelã, nascido na cidade
de Estância, que viveu também em Salvador,
falecendo 17 anos depois na cidade de Cabo
Frio, no Rio de Janeiro, onde viveu. Zé de Dome
chegou a passar fome. Se não logrou fortuna,
ganhou prestígio. Em Cabo Frio, a sua casaateliê foi frequentada por celebridades. O seu
nome ganhou o mundo. Um prédio do século
XIX, ao ser convertido em espaço cultural, em
1995, foi denominado Museu e Casa de Cultura
Zé de Dome. Em Aracaju, como em Cabo Frio,
virou nome de rua, no bairro Farolândia, graças
a “Seu” Osvaldo, uma figura ímpar que era o
grande moldureiro e amigo dos artistas. “Seu”
Osvaldo conseguiu formar um acervo precioso
desde a década de 1960 e, assim, constituiu
a Galeria de Arte Zé de Dome. Grande parte
desse conjunto de obras nasceu do escambo
com os artistas que lhe propunham pagar os
serviços de molduraria com obras de arte. Os
filhos de “Seu” Osvaldo, representados por
Marcelus, são os herdeiros desse significativo
231
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
acervo e têm realizado exposições permanentes
na galeria, além de mostras temporárias em
outros espaços, como os centros de compras.
É bem certo que os sergipanos não puderam
defender ardorosamente e em tempo real os
manifestos futurista, dadaísta e o surrealista, por
exemplo, tanto pelo desconhecimento, quanto
pela distância ou defasagem das notícias. O
contato dos artistas sergipanos com o Sudeste,
entre meados de 1930 e 1940, fez brotar a
vontade de pesquisar formas e, principalmente,
a aplicação das cores com a riqueza típica
daqueles movimentos modernistas.
Assim aconteceu com os irmãos Álvaro
e Florival Santos. No plano pessoal, mais
precisamente biológico, o reservado Florival
resistiu com a sua saúde de atleta às agruras
da vida de artista até os 90 anos de idade.
O irmão Álvaro Santos, que escrevia para os
jornais, era opinativo e amante da vida boêmia,
não teve a mesma longevidade, falecendo aos
43 anos em decorrência de uma enfermidade.
Obras de Florival são encontradas nos palácios
232
Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
do Governador e no Instituto Histórico e
Geográfico de Sergipe. Já as de Álvaro, quase
todas integram coleções particulares.
Ambos foram homenageados pelos amigos
e autoridades. A galeria municipal de arte,
localizada na Praça Olímpio Campos, ostenta
orgulhosamente o nome de Álvaro. Já a galeria
do Cultart, Centro de Cultura e Arte, da
Universidade Federal de Sergipe (UFS), recebeu
o nome de Florival. No rol dos contemporâneos
desses
dois
mestres
das
artes
plásticas
sergipanas se inserem Jenner Augusto, José
Inácio e Zé de Dome. Cada um traçou seu
próprio rumo. Leonardo Alencar, Otaviano
Canuto e o irrequieto ‘homem plural’ Celso
Oliva, entre 1950 e 1960, surgiram no cenário
seguindo a trilha do mestre Florival.
Galeria Álvaro Santos
Em 1966, foi construída a Galeria de Arte Álvaro
Santos. Criou-se assim, mais uma oportunidade
para os talentos que expunham nos clubes
233
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
e bibliotecas, naquele período os locais mais
apropriados para isso. Wellington, François
Hoald e Gilvan Rocha, cada um com a sua
linguagem pictórica, vivenciaram esse momento
como artistas. Nessa mesma década, Adauto
Machado se torna definitivamente artista
plástico e, no final do século XX, experimenta
a arte digital, ganhando prêmios internacionais.
Mesmo assim, ele continua produzindo obras
com temas regionais, como as feiras sergipanas,
e ministrando cursos de arte. Uma enorme tela
de Adauto está exposta no hall de entrada da
Assembleia Legislativa de Sergipe, no chamado
Espaço Cultural Djenal Queiroz.
Na década de 1970, Anete Sobral realizava
a sua primeira exposição, na inauguração do
Conservatório de Música; expondo também em
Salvador, São Paulo e Brasília. O estanciano Félix
Mendes, que se iniciou no Rio de Janeiro, assim
como Anete, tem entre os seus motivos preferidos
os costumes e os vários aspectos da vida sergipana
no autêntico estilo naïf. O Salão FASC, que
integrava os festivais de arte de São Cristóvão,
revelou talentos como Anselmo Rodrigues,
234
Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
Joubert Morais, José Fernandes, Gervásio e
Melcíades. Nessa década, surge o artista Daniel
Gonçalves, um servente da Galeria de Arte Álvaro
Santos, (GAAS), que gostava de pintar marinas.
Mais tarde, em homenagem ao artista, a sala do
piso superior da GAAS recebeu o seu nome.
Baltazar Góes, famoso pelas belas e claras
paisagens de Aracaju, e Ewerton, com fortes
imagens expressionistas, são dois artistas
que, opostos nos temas e estilos, também se
incluem na história da arte sergipana. Grupos,
movimentos e cursos revelaram talentos.
Melcíades e colegas da antiga Escola Técnica
Federal organizaram em 1975 o grupo GuymeHawc e realizaram exposições, incluindo a I
Coarte, em Aquidabã, com o apoio de João
Francisco dos Santos, o Chico Buchinho.
Nos anos de 1970, também chegou a Sergipe
o paulista Eurico Luiz, que coordenou projetos
importantes e tem vários trabalhos espalhados
pela cidade de Aracaju. A exemplo de Leonardo
Alencar e Canuto, estudou na Escola de Belas
Artes da Bahia. João de Barros, o Barrinhos,
235
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
além de pintor de motivos sacros, foi um
dos grandes incentivadores dos artistas. Luiz
Adelmo instalou a Galeria Horácio Hora, onde
seu irmão Abelardo Soares se lançou artista.
Na cidade de Laranjeiras, Severo D’Acelino
manteve por alguns anos a Galeria Castro Alves.
Década de 1980
Na década de 1980, os artistas plásticos
Bené Santana, Cláudio Vieira e Elias Santos
formaram um trio imbatível, arrebatando
prêmios nos vários salões. Hortência Barreto,
Zeus, J. Silveira, Anete Sobral, Jorge Luiz, Bosco
Rolemberg, Luiz Mangueira e Pythio fixaram
suas imagens junto ao público a partir deste
período. Nessa década, surgiram as Galerias J.
58
Inácio (estadual); a Florival Santos, no Cultart;
Portinari, do marchand Jorge; e a Ludus
Artes Galeria, do jornalista, crítico de arte e
marchand Luduvice José. Todos esses espaços
serviram para dinamizar o incipiente mercado
58
Centro de Cultura e Arte. (da Universidade Federal de Sergipe)
236
Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
de arte sergipano. Foi também nessa década
que o tímido Rafael, pintor de delicadas figuras
em enigmáticos espaços cósmicos, mostrou a
beleza das suas obras ao público.
Com essa geração, foi intensificado o
experimentalismo nas obras de arte. Na década
de 1960, Otaviano Canuto desenvolveu um
trabalho que agregava pedra, argamassa e tinta,
compondo o painel Três Pintores, localizado no
lado sul da Galeria de Arte Álvaro Santos. A
existência de novos materiais, fruto da tecnologia
ou da reciclagem de tantos outros, fez com
que os artistas esquecessem preconceitos e
enveredassem por novas concepções, fugindo
da arte simplesmente representacional, como
o retrato. As instalações e as intervenções
assumem aspectos próprios que permitem
releituras em vários ângulos, segundo o conceito
do próprio observador, não mais obedecendo
ao determinismo. O artista Hertz, que surgiu na
década de 1970 nos Festivais de Arte de São
Cristóvão (FASC), ousava com suas abstrações
e instalações e estava em sintonia com o que
acontecia nos grandes centros.
237
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Linguagens Diversificadas
Hoje, todas as classes sociais são influenciadas
pela tecnociência. Através das mídias, que
utilizam uma grande diversidade de linguagens,
há inúmeras possibilidades de releituras dos
estilos dos movimentos modernistas se somando
com a inventividade e a experimentação do
artista contemporâneo, com o objetivo de
ultrapassar os limites da aparência. A cor, a
forma, o suporte da obra, convencional ou
não, valorizam a subjetividade do espectador,
levando-o à conceituação.
A ‘deformidade’ das obras, que muitas vezes
são objetos isolados, não se preocupa com a
ordem estética, pois ela pressupõe excesso de
racionalidade e menos organicidade. O suporte
– no qual é feita a obra - é a própria obra. Nas
instalações, há o envolvimento do espectador
com o meio, ou seja, ali se dá uma completa
interação. Elias Santos expôs, em 2001, no SESC
Centro, “A Cor do Osso”. Inusitado. Um intrigante
‘banquete de ossos’ para profunda reflexão
do público diante de tanta estranheza. Bené
238
Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
Santana sacou peças de madeiras, refugos de
construção, para montar a provocativa “Escamas
da Sombra”, na Galeria de Arte Álvaro Santos.
Três artistas também merecem destaque a partir
da década de 1980: Wellington Lino da Costa,
que além de pintar tem feito restaurações
em vários prédios; Edidelson, chargista de
mancheia que produziu, entre tantos outros,
dois importantes painéis em espaços públicos
que, de forma insensível e criminosa, foram
apagados menos de dois anos depois de
concluídos. Da parceria dos dois, em termos
de execução, sobrevive a pintura muralista
do viaduto que fica no cruzamento entre as
avenidas Hermes Fontes e Saneamento. O
terceiro é Otávio Luiz, que se formou e ensinou
na Escola de Belas Artes da Bahia e atualmente
leciona na UFS. Ele modelou em fibra de vidro e
resina a gigantesca imagem de Nossa Senhora
do Carmo, que fica em Carmópolis, e tem
painéis cerâmicos em prédios da capital.
Continua a migração. Fernando Cajueiro, que
é natural de Nossa Senhora da Glória e morou
239
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
muito tempo no Rio de Janeiro, agora está em
Aracaju. Mas, ainda no interior, as presenças de
Pinto (agora em Aracaju) e Jocka, em Propriá;
Deolando Vieira, em Neópolis; Nogueira e
Mérito, em Laranjeiras; Zeus, em Pedra Branca;
e Pedrinho Ará, em Carrapicho (Santana do São
Francisco), compõem um elenco interiorano bem
representativo. Aracaju acolheu estrangeiros que
se integraram muito bem ao meio artístico, como
José Carrera, Rina, Alfi Gristelli, Willy Valenzuela
e Juan Tejera, assim como os patrícios Marcelo
Uchoa e João Valdenio, ambos do Piauí; os
alagoanos Jorge Maia e Costa de Lima; além dos
baianos José Lima e Dionéia Patterson.
Novos Talentos
A década de 1990 continuou promissora em
termos de surgimento de talentos. Leonardo
Alencar, Adauto Machado e Eurico Luiz já
haviam desencadeado o processo de surgimento
de artistas com seus cursos, a partir dos anos
de 1970. No Cultart, a Profª Eunice também
ministrou aulas de pintura e desenho. Existem
240
Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
ainda os pequenos cursos, como os ministrados
na escolinha de arte Cores & Telas. Mais do que
uma série de oficinas, Elias, Cláudio Vieira e
Bené Santana criaram um movimento: o Núcleo
Arte. O objetivo era dar aos muitos artistas a
oportunidade de se mostrarem hábeis, sensíveis e
criativos com seus instrumentos. Entre eles, podese citar Jacira Moura, Zil, Edjane Leite, Alice Cruz,
Marcos Vieira, Márcia Guimarães e Fábio Sampaio.
Mesmo que muitos desses artistas tenham
começado a lidar com a arte bem antes, foi a
partir dos anos de 1990 que o público passou a
conhecer seus trabalhos. Alguns, com discrição.
Outros, com força total. Augusto César é um
explosivo surrealista; Ivan Santos, um poeta de
versos e imagens; Marcelo Belarmino, exibindo
suas pesquisas rupestres; Fyo e suas parabólicas,
Marcelo Gaspar, com figuras humanas
herméticas; Gilcó e as esculturas multiformes;
Edson Ferreira, do traço a nanquim esmerado
e próprio; Adelson, o médico das formas
semi-abstratas; Karinne Santiago, a seguidora
do mestre Elias; e ainda Inaldete, a sensível
espiritualista de pinturas gestuais. Alguns
241
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
desses artistas compuseram grupos e montaram
exposições coletivas.
Fazendo jus à história, em Aracaju houve, de
fato, um significativo crescimento das artes
plásticas na década de 90 do século XX. As
galerias de arte mais ativas passaram a ser
mais frequentadas. Cresceram o público e o
número de artistas. Espaços até então ignorados
por serem considerados inadequados para
exposições, a exemplo dos centros de compras
e os bares, passaram a ser cobiçados como
galerias alternativas de artes, atraindo o público.
As empresas descobriram o ‘marketing cultural’,
passando a investir em espaços, ainda que exíguos
e por vezes inadequados para exposições de arte,
onde prosseguem realizando mostras mensais
com artistas de gerações e linguagens distintas.
Foram criados mais espaços para exposições. A
Galeria de Arte Álvaro Santos foi ampliada. O
Yázigi criou um complexo contendo um teatro,
um anfiteatro e uma galeria, iniciativa brilhante
que compensou, em parte, o fim da Horácio
Hora e da Ludus Artes Galeria e o afastamento
242
Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
da Portinari da efervescência cultural. Ainda que
a finalidade da sua galeria de arte não tenha
como objetivo exclusivo a comercialização de
obras, o Yázigi deu à cidade e aos artistas um
belo e exemplar presente.
Em 1993, o pequeno, mas provocativo projeto
Galeria em Aberto, lançado no hoje extinto Bar Vai
Levando, durante 15 dias ofereceu artes plásticas
na forma de exposição em praças e escolas, além
de oficinas e palestras sobre a história da arte aos
alunos. Foi uma iniciativa própria, sem patrocínio
governamental ou de empresas. Participaram,
além deste autor, os artistas: Nogueira, Elias,
Cláudio, Fyo e Marcelo Belarmino.
Criada no início da década de 1990, a Associação
Sergipana dos Artistas Plásticos (ASAP) foi
reativada a partir de 1996. Já o Salão FASC
59
passou a ser organizado em Aracaju pela UFS.
Artistas filiados à ASAP realizaram seminários
e viagens de intercâmbio para Aracaju e várias
outras cidades do Brasil. Entre os participantes
destes intercâmbios, pode-se citar Zil Rezende,
Tânia Arruda, Dayse Barreto, Nogueira, Marcos
243
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Vieira, Sueli Guarabyra e João Valdenio. Todas
essas ações fizeram com que mais artistas
fossem notados pelo público e as artes plásticas
ganhassem a visibilidade merecida.
Em 2000, o Governo do Estado, através da
Secretaria de Estado da Cultura (Secult),
publicou o catálogo Rumos, trazendo os artistas
que estavam no momento em evidência.
Entre 1997 e 2002, a Fundação Municipal de
Cultura, Turismo e Esportes (Funcaju) lançou as
biografias de Pythiu, Melcíades, Zeus, Silveira e
Zé Fernandes, por iniciativa do marchand e exdiretor da GAAS60, Dinho Duarte.
Após a virada do milênio, nos anos de 2002
e 2003, até o Exército Brasileiro organizou
a sua gincana de pintura, com premiações
estimuladoras em várias categorias. Em 2002,
aconteceu o primeiro Concurso de Escultura
na Areia e, em 2003, o primeiro Salão Praieiro,
59
60
Universidade Federal de Sergipe
Galeria de Arte Álvaro Santos.
244
Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
ambos promovidos pela Prefeitura Municipal
de Aracaju (PMA), através da Funcaju.
Sem outra pretensão, senão a vontade de dar
continuidade à dinâmica dos anos de 1990 e
revigorar os talentos da terra, Fábio Sampaio
tomou para si, em 2002, a responsabilidade de
ser curador de uma grande coletiva que deveria
acontecer na então apática Galeria J. Inácio,
mas que acabou sendo realizada no antigo
Palácio Olímpio Campos. O local, ex-sede
oficial do governo Estadual, era um ‘ensaio’ de
Pinacoteca que não chegou a se concretizar e,
somente em 21 de maio de 2010, após uma
vigorosa reforma, foi reinaugurado como
Palácio-Museu Olímpio Campos (PMOC).
A exposição, denominada Vinte de Noventa, foi
realizada com a participação de 22 artistas, todos
eles com destaque a partir da década de 1990.
A maioria dos participantes integrou projetos
importantes, como Emergentes, do Cultart,
e Salão dos Novos, da Galeria de Arte Álvaro
Santos, sendo inclusive premiados. Além disso,
alguns desses artistas militaram na Associação
245
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Sergipana dos Artistas Plásticos e de Artes
Visuais. Estiveram presentes da tradicional tela
pintada em cavalete à provocativa instalação
de Elder Dantas. Participaram da mostra Alex,
Boby Cuspy, Edjane Leite, Jacira Moura, Karinne
Santiago, Laécio Santos, Marcelo Roque
Belarmino, Marcos Vieira, Milton Coelho, Nil
Cavalcante, Nogueira, Rodrigo Reis, Tânia
Alcântara, Walburga Arns, Willy Valenzuela,
Joel Dantas, Ana Denise, Vicente Coda e os
fotógrafos Benedito Letrado e Márcio Garcez.
Sociedade Semear
Outro presente recebido pelos aracajuanos, em
7 de fevereiro de 2003, foi a Sociedade Semear,
um complexo cultural incluindo uma galeria
que foi inaugurado com a última exposição,
em vida, de Jenner Augusto. Cerca de um mês
depois, o artista, que se encontrava com a saúde
debilitada faleceu em Salvador, onde morava
desde junho de 1949, e onde foi homenageado
várias vezes, como em 1994, quando foi criada a
galeria Espaço de Arte Jenner. Faleceu também
no dia 30 de abril de 2003, em Aracaju, Hugo
246
Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
Portela, pintor de temas regionais.
No dia 15 de julho de 2008, a Secult61lançava o
Dicionário 2 Séculos de Artes Visuais em Sergipe,62
tendo como verbete 130 artistas, destacandolhes seu perfil e sua produção artística.
Certamente, muitos nomes não foram aqui
citados e algumas datas com relação ao
surgimento de artistas foram imprecisas, mas
o espaço temporal e gráfico, assim como as
pretensões, são todos pequenos para contar
aqui toda a história das artes plásticas em
Sergipe. Este texto é só uma provocação. Esperase que historiadores ou críticos devidamente
credenciados se interessem pelo assunto, pois
terão muito para contar às gerações futuras.
Oxalá, depois disso as artes plásticas venham
a ocupar condignamente os passeios, praças,
fachadas de prédios e demais espaços das
cidades, exibindo a vida com sensibilidade e
inteligência nas terras sergipanas.
Secretaria de Estado da Cultura (Sergipe)
Financiado pelo edital – Conexão arte visuais – MINC,
FUNARTE, Petrobras. de 2008.
61
247
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZAVEDO, Silvane Santos; CHOU, José Walter
Teles; SANTOS, Elias (Orgs.) Dois Séculos De Artes
Visuais Em Sergipe. Sociedade Semear, Aracaju.
(2008).
BARRETO, Hortência (org.). Véio. Secretaria do
Estado de Sergipe. (2005).
GOVERNO DE SERGIPE. Álbum Horácio Hora.
Aracaju, secretaria de estado da Cultura, 2004.
VIDEOGRAFIA
PONTUAL, Adelina (roteiro e produção). Véio. REC
produtores associados e CHÁ cinematográfico.
(2005).
WEBGRAFIA
Portal TERRA, Terra Magazine. Jenner
Augusto – Opiniões (Quinta, 24 de julho de
2008)
- http://terramagazine.terra.com.br/
interna/0,,OI3026365-EI6581,00.html
248
Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada
Antônio da Cruz
Fontes: Agenda de Aracaju 1991, da então
Secretaria Municipal de Cultura); A Arte Como
Investimento, Diva Benevides Pinho, Editora Nobel;
Jenner Augusto Desenhos, Casa de Palavras;
Revista de Aracaju no 10, Funcaju, 2003; Celso
Oliva Homem Plural,editado pela então Secretaria
Municipal de Cultura
NOTA: a Secretaria Municipal de Cultura foi
convertida em Funcaju, Fundação Cultural
Cidade de Aracaju e depois em Fundação
Municipal de Cultura, Turismo e Esportes.
249
A cidade sob o olhar
interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis 63
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
C
ontemporâneo.
O que é ser contemporâneo? No campo da
história, é o período que, por convenção, se
inicia com a Revolução Francesa. E se uma
dada produção artística se percebe como
contemporânea, os artistas representantes dessa
produção, reconhecem, conseqüentemente,
sua condição histórica, ou seja, o diálogo, na
maioria das vezes, conflituoso com o entorno.
E se é como contemporânea que a arte desses
artistas deve ser vista, apreendida, significa
que um certo ‘aqui e agora’ é a referência
principal de onde o material a ser trabalhado e
transformado em objeto de arte é retirado.
A arte sergipana... Tenho imensa dificuldade
em tratar com esses termos: o substantivo e o
adjetivo. Penso que, talvez, seja mais fácil para
mim, dadas as minhas limitações, comentar,
Possui graduação em Filosofia Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Sergipe (2007) e mestrado em Educação pela
Universidade Federal de Sergipe (2010).
63
253
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
tecer considerações sobre a arte que se produz
em Sergipe. Certo que, se levamos em conta
a relação artista/entorno, a realidade cultural
desse lugar, sua história, sua formação agem
como elementos orientadores, em maior
ou menor grau, na concepção, nos projetos
artísticos. Entretanto, as propostas individuais
trazem o elemento da universalização. Esse
componente pode se revelar de forma negativa
ou positiva: ou se apresenta como uma colagem
aleatória de escolas, estilos, soluções, ou é
ruminado e transformado em algo realmente
significativo. E não tem de ser obrigatoriamente
(pois provavelmente não mais algo o será)
referência da originalidade.
E o entorno se apresenta: eis, por exemplo,
o caso ‘Pivetta’, a ‘pichadora’ que ‘atacou’
a XXVIII Bienal de São Paulo, detida e, até o
momento em que este texto foi produzido,
aguardando sentença. Contudo, agora, Pivetta
é convidada a participar da Bienal 2010.
O cenário é uma bienal de arte, espaço em
que a arte se desloca contando com excessiva
254
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
indulgência quanto à universalização. Uma
inflação de empatia: seja o que for que se
apresente, e se não estiver confinado nos
‘espaços históricos’, é contemporâneo.
Isso posto, volto os olhos para a produção em
artes plásticas em Sergipe. Sendo mais direto:
entre os bons artistas que produzem no estado,
quem opera com a contemporaneidade? Isto
é: quem compreende que, se pretende ser
contemporâneo, compromete-se em propor
experiências/interferências, contrapondo a razão
e rompendo a teia dos conceitos, construindo
uma imagem a partir da pulsão, do espanto
(thaumazein, como diziam os gregos), diante
do mesmo. O que deve surpreender o artista
plástico contemporâneo é, sim, a regularidade,
a padronização tão passivamente aceita por
todos nós, tão querida e vista como necessária.
Fábio Sampaio. Sinto-me à vontade em apontálo como a referência da contemporaneidade em
Sergipe. Fábio percebeu muito cedo o caminho
que deveria trilhar para ser, de fato, um artista
contemporâneo. Compreendeu que a arte
255
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
contemporânea deve refinar o conceito (este,
sim) de ironia. Não foi ousadia, nem revolução.
O que o move, sob a perspectiva que aplico ao
seu trabalho, é a consciência e a sensibilidade;
é o entendimento de que, se qualquer coisa
criada/produzida é um elemento a mais a
constar na realidade da cidade, que a ‘obra’
faça sentido, mesmo trajada de non sense.
Sampaio convida os pichadores e, assim, por um
lado, os reconhece como artistas, interventores,
agentes que interagem. Por outro, neutraliza a
ação no seu status de infração, de dano produzido
por sujeitos que se movem nas sombras da
madrugada, munidos de sprays. Ou seja, o
artista está ciente de que a contemporaneidade
não descarta a cidade como matéria-prima
concreta, composta por muros, defensas de
pontes, muretas de canais, tapumes.
O que Sampaio propõe é uma independência
possível, uma autonomia ao mesmo tempo
anárquica e elegante. E nem mesmo anárquico
é o termo adequado nesse sentido. O que
vejo nas interferências de Sampaio pelas ruas
256
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
e demais espaços urbanos é um exercício que,
de maneira alguma, visa negar o meio em que
vivemos. Não é protesto por protesto, mas uma
irônica interação com os elementos mesmos
da área urbana. O artista parece dizer que, se
não moramos e vivemos da melhor maneira,
pelo menos estamos vivendo um tempo de
reconhecimento da cidade como uma imensa
galeria dela mesma. E arte se expõe e se afirma
entre os carros particulares, os veículos que
‘garantem’ a rede de transporte público, a
proteção de madeirite que oculta os primeiros
estágios da construção dos edifícios, dos
condomínios fechados.
E se a arte é, frequente e, por vezes,
equivocadamente, referência de perenidade,
Fábio Sampaio investe no devir. Seu discurso
é heracliteano. O que se pode esperar de um
artista que se vale de tapumes que serão retirados
de cena logo que o andamento da construção
permitir? O melhor desse artista, sua criatividade
plena de sarcasmo, cinismo, ludicidade, vai ao
lixo ou desaparece na reciclagem.
257
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
O artista reconheceu a própria cidade como
tela (estática e em movimento). Do interior
dos veículos, a arte de Sampaio é vista por
alguns segundos. Às vezes um mero relance.
Sua arte vai passando lá fora e nos vê passar,
valendo-se, então, de artimanhas. Quem não
se vê à vontade (ou sem vontade) de freqüentar
espaços culturais, galerias, coisas do gênero,
forçosamente encontrará Sampaio em alguma
esquina. E mais: ele não aposta sempre na
individualidade. A criação em grupo lança à
rua outros artistas, como é o caso do ‘Caju na
Rua’. Aracaju, mais uma vez, é matéria-prima
física e conceitual para que a arte seja possível.
Desse modo, Sampaio investe na desintegração
integradora. É ele e não é só ele. Os outros
estão ali. Cada um com sua obra e todas as
obras compondo uma grande peça de peças
cuidadosamente espalhadas. O suporte é a
cidade. O momento é a contemporaneidade.
Se a arte é uma forma, ou talvez, como disse
Nietzsche, a ação efetiva que rompe a trama
conceitual, ou seja, põe em cheque a razão
como RAZÃO, tenho o olhar mesmerizado
258
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
diante das telas de Sampaio intituladas, em
conjunto, de ‘Vermelho, Verde Azul’, óleo sobre
tela de 2003. Nas telas constam cabeças e cajus
estilizados. O antro da razão, a cabeça; o caju,
sumarento, rebelde a deixar cica, acoplado à
castanha-combustível. Remeto-me ao gesto
instintivo de colher a fruta, morder a carne
amarela ou vermelha, sentir fiapos entredentes.
Sampaio decapita o conceito jogando cabeça e
caju. E sintetiza nas cores a intenção do artista:
títulos não explicam nem identificam. Títulos
em obras contemporâneas são parte da obra.
Ou parte nenhuma – esquecidos mais adiante,
fica-nos a imagem.
Em “Peixes” não vislumbro (e por isso sou grato)
nada de apologia ecológica. As pisciformes
figuras estão lá, como a dar voltas em si mesmas
ao mesmo tempo em que não se afastam da
massa vermelha, um coágulo. Assemelham-se
a iscas. Ou produtos da seção de congelados.
Não há concessão, isso é certo. Não que isso
seja uma posição típica e única do discurso
contemporâneo. Michelangelo também não
259
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
cedia. Contudo, em Sampaio, o discurso
parece, e creio que sejam, estilhaços lançados
em direção à ‘comunidade de artistas plásticos’.
O produto é bom. O artista é disciplinado e se
envolve burocraticamente com os eventos. Hoje
sabemos disso. Mas sua arte, sua produção é
competente, tragicômica, bem humorada e,
concomitantemente, de um humor sardônico.
Não há queixa, não há reivindicação, senão a
seguinte: olhe, olhe de novo, e novamente. Sua
proposta, seu discurso artístico está ali. Nada
de revolução social, nada de revolta. Nem quer
salvar o meio-ambiente. Os peixes voltam em
outra produção. Dessa vez, presos em globos
azuis. Curvados, com traços de espécie antiga,
representam um silêncio fóssil.
Quando se juntou aos artistas na visita a Inácio,
o artista plástico Fábio Sampaio não recorreu
ao delírio verde inaciano, nem às cores fortes,
solares, que lembram cestos cheios de frutas
diversas na feira. Não... Sampaio decide inverter
o discurso cromático inaciano. E as bananeiras,
tão banais, se vêem aplainadas sobre o tampo
de uma mesa de plástico. Sampaio. Elementos
260
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
outros à beira, parecem afastados, com suas
funções em segundo ou terceiro plano. Ou
função alguma de apenas estar ali. As bananeiras,
desvestidas do verde, são cruas, impiedosas.
Solidão sombria goeldiana. O ambiente é bem
inaciano mesmo. O artista do eucatex.
Sampaio visita Inácio, mas não se deixa levar
pelo entediante bucolismo ribeirinho. O piso,
de mapas gravados em preto e branco, ou
contornos de mapas vazios, é calçadão. E
em que parte do país pisamos? Brasil sem
verdeamarelismo. O artista usa tinta, lápis,
pincel e ironia. O não levar a sério de quem,
na contemporaneidade, percebe a fragilidade
dos discursos que defendem (?) uma arte
transformadora. Sim, a arte transforma espaços
ocupando-os. E não mais que isso. E somente
isso basta. No mais é olhar, tomar aquele susto
silencioso. Pôr as mãos no bolso do casaco e irse embora. Olhe e leve na memória, e que não
seja por mais de dois ou três dias.
Fábio Sampaio produziu a arte para as massas.
E se valeu da própria massa como material
261
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
artístico sem que as pessoas soubessem. Sem
que nós percebêssemos que as interferências
se dão nos espaços que foram construídos com
nosso aval. De uma maneira ou de outra.
A trajetória do artista continua. A
contemporaneidade do artista, da sua
produção,
impõe-se
deliciosamente.
É
surpreendente.
Excesso
de
advérbios?
Proposital. Compreenderão bem isso (suponho)
os que conhecem a tela produzida por Fábio
Sampaio para a exposição ‘Natividade’. O título
da obra: ‘Objeto não-identificado’.
Natividade. O título é emblemático. E poderia
muito bem ser UFO ou OVNI. A ufologia se viu às
voltas com uma tela de Jacopo del Sellaio (suposto
autor), na qual aparece ao fundo, no céu, uma
forma ovóide ou elíptica e brilhante. É a conhecida
‘Madona com criança e São João Criança’.
Fábio Sampaio, entretanto, não vai na onda
febril dos OVNIS. Novamente, ciente da
contemporaneidade em seu discurso estético,
produz uma composição seca, em preto
262
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
e branco. Léxicos e significados. A estrela
anunciadora em estranha simbiose com a
figura (uma placa) elementar de um avião. O
espiritual, a ascensão perde o senso litúrgico,
o sagrado, próxima ao aparelho mais pesado
que o ar. Redutor de distâncias entre cidades,
construindo pontes aéreas.
A obra de Fábio é atestado da ciência do artista
quanto ao papel por ele assumido diante da
cidade, da sociedade. Sampaio põe a obra ali.
Pendura com um prego na parede ou instala. E
não mais que isso. Cabe-nos dar continuidade
percebendo o objeto e sua não ação afirmativa.
É mais, e talvez só isso: uma ocupação.
PARA UM ‘AMIGO’ COLOMBIANO QUE TEM UM
PRIMO VENEZUELANO, QUE VIVE NO MÉXICO,
QUE QUANDO VEM AO BRASIL, GOSTA DE DAR
UMA DE TURISTA AMERICANO, GASTANDO SEM
MISÉRIA E PRATICANDO TURISMO SEXUAL E AINDA
ACREDITA NA BELEZA E NA UTILIDADE DA ARTE,
JURANDO SÓ HAVER DISCÓRDIA NOS PAÍSES DO
ORIENTE MÉDIO (Fábio Sampaio, Catálogo).
Não, não é uma citação estético-filosófica. Ainda
que a filosofia teletube possa até encontrar algo
263
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
aí. É o título de uma obra de Fábio Sampaio. E não
poderia ser outro. Conta a história, apresenta o
fato: a obra. E traz as conexões entre cidades
sul-americanas e uma incidental presença norteamericana. Países. Cidades.
O que faz Sampaio: Aracaju inteira, ou nem
metade, pode ir lá. Eis o lá aqui. Contemporâneo,
o jogo de palavras, de identidades que se
confundem é bem a linguagem citadina.
Aracaju, Sergipe, Sampaio. Isso dá reggae?
Sim. E a cidade tem no artista a possibilidade
de não incorrer, nas artes plásticas, no que se
abusou ad nauseam na ‘poesia’, estacar no
parnasianismo. Ou na verborréia romântica a
xerocopiar Hilsts, Neides...
Sampaio desviou (se chocando) das concessões
feitas às entediadas donas-de-casa da zona sul e
não cedeu ao acordo de cavalheiros e damas. O
circo de horrores exposto ao sabor de chás das
cinco. O freak de Sampaio é feito de fuligem,
odores mal-cheirosos exalados pelos canais que
cortam a cidade. E isso é diluído tal qual essence
264
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
absolue. O que ele entrega é colônia, e as notas
urbanas ali diluídas tomam de assalto nossos
sentidos. Vaca profana. A tela mostra. E os
traços sugerem cortes de proveito da carne feita
de momentos vividos nas calçadas, esquinas,
balcões e salões. E é só embalar em nada agora.
O produto está aprovado e consumido. Sampaio
não fará o obséquio de lembrar: vejam a data de
fabricação no fundo da lata.
Aracaju, Sergipe, a arte sergipana, essa coisa
inexistente. O que é a arte piauiense?
A arte em Sergipe, como nos foi solicitado,
sob o aspecto contemporâneo. Ora, a cidade
recebeu isso. Foi eleita tela e chassis. Fábio
compôs o tempo dessa arte no agora. Poucos
dos que tentaram conseguiram isso: produzir
de forma que não deixasse um fio de Ariadne
que nos conduzisse ao passado. O que é na
arte de Sampaio é aqui e agora. Impensável
antes. Nada de arte pop. Nem arte pobre com
instinto revolucionário. Artista como artista,
Sampaio se vale e se garante pelo que produz,
num gesto amplo de generosidade e confiança.
265
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Não se surpreende, mas se satisfaz. E manifesta
surpresa à medida que coisa alguma possa nos
surpreender, nos pegar distraídos. Sua arte é
lançada, gravada em muros calçadas, cercas,
tapumes. Mas também traz a cidade para
dentro das galerias, dos salões, dos espaços que
permitem, desavisados, que o artista inocule
seu conceito de contemporaneidade.
Caixas de fósforos em composição oferecem a
oportunidade de se incendiar as novas Romas.
Aracaju se vê, sob a interferência de Fábio
Sampaio, como uma adolescente assustada e
feliz ao mesmo tempo. Tipo: o que ele vai fazer
comigo? E, em seguida: ah, não vejo a hora de
saber, de ver.
Uma tela de Fábio, intitulada ‘Sem Título’,
lembra azulejos antigos. Ironia pura. A nostalgia
se quebra na própria identidade do autor. Então
não há lugar para lembranças nem saudades. Se
for uma parede, ela tapa a visão para o ontem e
nem apresenta vistas para o futuro. Encerra-se,
ali, a mensagem. O momento de agora. Essa
obra em particular pode ter sido uma daquelas
266
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
feitas para o fim, seguindo o que já foi feito
e deu certo. Nada que denigra a imagem do
artista. Mesmo o que foi feito casualmente, ali,
de bobeira, preserva a retórica do artista. Está
na tela, nas soluções breves.
A arte em Sergipe não seguirá caminhos livres
de pedras e cacos de vidro. Fábio Sampaio
não permitirá, queira ele ou não. Sua arte, sua
produção exposta em lugares não previstos a
partir da funcionalidade, do fim, confirma isso.
Qualquer dúvida que se tenha sobre a proposta
de contemporaneidade presente no discurso
(aí, sim) radical de Fábio Sampaio só pode se
sustentar a partir do desconhecimento da
obra do artista. Obra, aqui, significando o já
produzido. Não sei se poderia chamar de o
conjunto da obra. Inadequado demais, no caso.
A dúvida, como dizia, não é, nesse aspecto,
um direito. É um engano. Quem quer que
recorde da exposição ‘Águas de Março’ deve
lembrar da obra de Fábio Sampaio. O título,
“Que tem gotas tão lindas que até dá vontade
267
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
de comê-las”, toma como referência uma
música de Mautner cantada por Gilberto Gil.
Ora, enquanto paus, pedras e ribanceiras são
citadas por Jobim em um mosaico de eventos
campestres, Fábio recorre a Mautner, o narciso
em tarde chuva, ao maracatu atômico, às luvas
e unhas negras, aos pára-raios. Sem fim de
caminho... As ruas são o fim.
É este o norte da arte em Sergipe, se aquela se
quer contemporânea. E a contemporaneidade
na arte implica em saber, sim, onde e como
expor. E o que expor. Há espaços culturais que
de espaço e cultura pouco ou nada oferecem.
E há o espaço, como já se disse, não-previsto:
as caixas de telefonia. Fábio ali presente com
marcador. Na obra ‘Meio Verde’ mais uma vez a
ironia se faz presente. Ao se ouvir ou ler o título
sem que se veja a obra, é possível que pensemos
em mato, folha... Como um Mondrian em 3D,
a obra de Fábio é vista aérea. Os copos, como
tubulação: grandes galerias de esgoto.
A
268
cidade
é
ferramenta
aparentemente
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
inesgotável.
O olhar contemporâneo de
Sampaio sabe disso.
Em ‘Fotografia de apropriação de um cartaz
de jazz’, Sampaio é generoso no requinte,
econômico no material. O que parece muito
está é bem distribuído, bem posicionado,
bem dimensionado. Os elementos urbanos
presentes são acordes da explícita música das
ruas. Carrinhos de plástico, sapatos e tudo o
mais. As formas geométricas, patês de casas,
prédios, lojas. Reconstruir a cidade nela mesma
ou através de seus ícones é um bom caminho
também. Como diria Pound: funciona!
A cidade e suas instituições. Os andares, os
setores, os departamentos e os corredores.
Neles os extintores. Esquecidos, anônimos.
Formas cilíndricas, de vivo vermelho latejando
um aviso: perigo de incêndio.
Na série ‘Fé e Fogo’ Sampaio se vale de extintores
e estampas de santos. O equipamento de
segurança traz em si toda a significação do que
é viver na cidade, no centro urbano, em prédios
269
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
e trabalhar em escritórios, em almoxarifados.
O extintor é presença legalmente determinada
e imposta. Na arte de Fábio, o equipamento
apresenta o discurso da salvação.
A contemporaneidade assistiu ao surgimento de
igrejas, seitas... O sagrado sobrevivendo ao laico.
E a era digital não barrou a sermonística. Os fiéis
se ajoelham em templos majestosos, oração high
tech. O fogo da culpa consome milhões. Almas
danadas morrendo mil vezes. Sampaio aponta
sutilmente uma porta, não necessariamente
uma saída. No canto da sala das percepções
congestionadas, o extintor, impassível.
A arte de Fábio Sampaio não passa despercebida,
ainda que ela, conforme as superfícies em que
é suportada, passe mesmo. Klein a percebeu,
a degustou, a sorveu. Sampaio é incluído
no cenário cultural dos grandes centros.
Onde paredes, muros, tapumes, calçadas,
corredores esperam pelo artista. Interventor
elegante, Sampaio conhece bem o ofício e
sabe escolher quais objetos devem compor o
momento exterior e urbano. Livre dos discursos
270
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
ideológicos engessadores, sem ter de prestar
contas a grupelhos, esses eternos idealizadores
de congressinhos (como o dizia o chatinho do
Guattari que, no caso, está correto).
Em ‘Paisagem em vermelho e verde’ Sampaio
é irritantemente genial. É a arte de interrogar
fingindo ignorância. Falsa disposição de aprender
com outrem, ainda que sabedor da ignorância
deste. Numa terra de tantos e tantos equívocos
estéticos, onde ‘artistas plásticos’ se proliferam
mais que postos de gasolina, funerária e lan
house, é satisfatório (não reconfortante) ver
que Sampaio, protegido pelo mais saudável
cinismo, recorre às expressões naturalistas para
estabelecer sua terapia de linguagem – o jogo
de palavras e imagem. Que paisagem é esta?
Tomada macho e fêmea. Fiação qual intestino.
A urbe estripada escorre pelos domicílios, e a
casa na árvore não é mais brincadeira de criança
(mesmo ainda sendo brincadeira). No alto, entre
galhos e folhas, se observa a cidade. Massa de
concreto, plástico, vidro, aço, fiação, portas
automáticas, vigilância vinte e quatro horas.
271
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
O que Fábio Sampaio vê, com dois olhos,
nessa terra de cegos que se suportam como
cavaletes: um sustentando a tela do outro. As
instalações... hummmmm....
Natureza morta, transfusão entre jarra e copo.
Certo. É o que resta, quando, ao longo dos trilhos
da contemporaneidade, da infinita highway, a
arte em Sergipe não alcança os vagões. E não
é luxo apenas das artes plásticas. Vale também
para a literatura. Fico a rever edições (nem
melhoradas, nem ampliadas). É o que marca a
diferença em Fábio Sampaio: recusou-se, sem
alarde, a banhar-se no mesmo rio. Panta rei!!!
E é assim: a meio caminho, as ligações apresentam
rupturas. Vaza, pinga, e o sangue caramelo deixa
parte ali. O paciente não recebe o total da cota.
Quer mais? Corra atrás. O trem bala e o goldbus
partem a todo o momento. A contemporaneidade
é o fugidio agora. Sampaio sempre soube disso.
Compreendeu que mais material a ser pensado
haveria de encontrar entre skatistas do que
num sarau insípido, onde telas medonhas (de
causar labirintite) firmam simbiose com versinhos
272
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
aguados. Sampaio até aparece ali. Mas para dizer:
“aqui eu não sou eu”.
A condescendência é recomendável. Mas como
ato de caridade. E por caridade os espaços
aceitam quase tudo. Mesmo nas triagens. A
caridade deve ser um princípio de convivência.
Creio firmemente nisso. Mas estimular o
equívoco causará mal maior: a ocupação dos
espaços por um entulho cromático e formal
que desmerece o esforço de se produzir uma
realidade artística nessa terra.
Galerias passam a funcionar como tábuas de
salvação e legitimação de currículos que se
esfarinhariam sob a mais acurada investigação.
Sampaio escapa pela janela só para executar o
movimento. Não antes de deixar algo lá a dizer:
pô... vejam!
As publicações são grandes oportunidades de
registro. E se a contemporaneidade se locomove,
capturemos os frames. Fixemo-los às páginas de
cuchê fosco. Mas façamos valer a inserção.
273
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Quando faremos isso? Quando diremos aos
pintores de domingo (ah... o velho Sartre):
“vamos, tirem esse lixo daqui”. “Isso não é a
arte que interessa agora. Se for arte, não é este
o lugar dela”.
Não é falta de matéria-prima: os sítios de refugo,
lojas de material elétrico, brechós, material de
construção, papelaria. Tá tudo aí. O depois é
que pega. Quando se encontra na posse de
tudo. Como fazer para tomar de assalto os
cantos desprotegidos da cidade? Sampaio sabe
como fazê-lo. Inclusive avisando antes. Mas o
alerta soa tão estranho na passiva babel diária
das ruas que ninguém parece entender até que
se olhe, que se veja.
Ou: jogue a pedra, confira o número e veja
quantas casas você avança. O percorrer pelo
fio intestinal, passar pelas casinhas, tão antiurbanas, espremidas em ruelas, enquanto
espigões se agigantam na vizinhança. É isso:
Sampaio não protesta, apenas aponta. Sua arte
assumiu a cidade no geral e no particular.
274
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
As superfícies topográficas concebidas por Fábio
Sampaio dizem aquilo que é preciso ouvir da arte
contemporânea, face às implicações manifestas
quando o tempo, o agora fixado, é exposto:
Sergipe foi visto pelo mundo exterior. O campo
artístico, em que agentes estruturadores e
estruturados interagem compondo subcampos
e intercampos, recebeu, comentou a produção
contemporânea de artistas ‘sergipanos’. A
contemporaneidade reconheceu os objetos. As
galerias se prepararam para abrigá-los.
O grande saque de Sampaio: a tela onde se
lança ícones é vasta. É do tamanho da cidade.
E não só plana. Suas projeções. O vão entre
carros no estacionamento. Mas, por favor, nada
de protestar contra a quantidade de veículos
automotores. Eles são parte da composição. Se
sair um, chegará outro. Arte móbile.
A contemporaneidade espera por isso. É a voz
necessária. E nem sempre é o grito que se faz
ouvir, mas, sim, o sussurro.
275
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
Sampaio produz uma arte que nos fala ao
ouvido. Um sopro, um assobio baixo. Baixa
frequência a vibrar orelhas de cães. Quem
fareja? O osso do aqui e agora não é duro
de roer. E nem é pra isso. Lança-se. Um pega
aqui e joga: outro pega no ar mais longe.
Assim se institui a comunicação sem que se
estabeleçam amarrações imobilizadoras. A
contemporaneidade trepida, faz saltar arruelas
e porcas, vaza lubrificante, desgasta dentes das
rodas de engrenagem.
Paisagem contemporânea. Terra que escapa,
foge. Mangues terão de ser aterrados, casarios
demolidos. É preciso dar lugar aos cubos, aos
legos. Fim das pequenas salas de projeção. A
magia foi transferida para os multiplex. E daí?
Grupelhos de ‘artistas’ vão protestar contra o
quê? Só mesmo para congestionar as calçadas
e obrigar a gente a descer o meio-fio.
Sampaio parece decidir por avisar tardiamente
sem compromisso. “Algo esteve aqui. Parte
disso foi criada por mim. Alguém viu? Sim.
276
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
Quem? Quem sabe? Passou, foi-se”.
Mas a arte está ali. Perdura enquanto vale o
tapume. Enquanto vale a demão de tinta
aplicada antes da interferência. Enquanto os
pichadores não se dão conta. E permanecerá
eterna enquanto durar. E por alguns será
lembrada. Será fotografada, até. E quem
o faz talvez não compreenda, não tenha
consciência que o que deveria desaparecer
arrancado por pás, picaretas e pés-de-cabra
foi eternizado num flash. Interferência sobre
o interferente. O que pode render até outras
intervenções. O histórico das ações. E assim
a contemporaneidade na arte produzida
em Sergipe presta testemunho. Os vagões
seguem. Sampaio viaja. Não necessariamente
nas cabines, talvez frequentemente apenso,
vendo a brita e os dormentes se fundirem na
velocidade do movimento, sustentado pela
mão que se agarra à entrada do vagão.
A arte contemporânea aplicada aos espaços
urbanos recompõe esses espaços sem que seja
necessário apelar para o protesto, a revolta.
277
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
O objeto interferente e o artista interventor
carregam em suas presenças mesmas o
desequilíbrio necessário para que ocorra o
rápido diálogo renovado entre pessoa e a
cidade. O veículo é o objeto. Sampaio guia o
veículo a distância. Ou o deixa meio que sobre
a calçada. Cabe ao transeunte, numa repentina
atitude de interrogação e resposta, empurrá-lo.
E o que importa é o que o objeto artístico
desperta naquele momento urbano e individual:
um sentimento de beleza ou sublimidade; de
melancolia ou euforia. Novamente Sampaio se
faz presente sem se afirmar. Insustentável leveza,
ausência incômoda. Na rua não se encontra fácil
a curadoria. A quem recorrer? A si mesmo. O
transeunte reflete o acréscimo à paisagem. O que
não estava ali antes. O que é agora e que em nada
se garante estar ali depois. Ou se permanece, pode
ter sua aparência modificada pelo vandalismo e
pelas intempéries. E nada disso é corpo estranho.
Compõe, recompõe, rearranja.
E a locomoção (elemento complementar no
processo de concepção dos objetos) assim se
278
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
dá: ou a arte vai às ruas, ocupando por breves
ou mais ou menos longos tempos os locais
selecionados; ou as ruas e tudo que faz das ruas
o que são, são trazidas para dentro. Primeiro
para a tela, espaço delimitado e portátil, depois
para as galerias (ou para qualquer outro interior
que se apresente como possível).
Diferentes espaços, presença ou não de rituais
de visita... ou de passagem. Nos espaços
‘apropriados’ cultua-se a aura benjaminiana. O
objeto é sacralizado. Nada contra isso. É desse
jeito que tem de ser. O cuidado. Os gestos
econômicos, o copo de vinho barato nas mãos...
Mas o que Fábio leva às ruas não prepara
ninguém. O que se veste no momento é o ideal
para a ocasião. O que se come e o que se bebe.
E tudo isso passa a ser elemento do ‘trabalho’.
A sensação é como se Sampaio estivesse ali,
ombro a ombro, talvez invisível, a observar as
reações, as apatias, o desassossego, ou a risada
gratuita. Ou o neutro olhar de soslaio. O que é
isso? Para que serve? Qual a mensagem?
279
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
A veloz contemporaneidade se vale, então, dos
rápidos meios de comunicação. Pelo jornal, pela
TV, pela internet, ficamos sabendo quem é o artista
e o que significa aquilo visto horas antes enquanto
se seguia o caminho que leva ao trabalho diário.
E quem se importa?
Ora, a arte de Fábio Sampaio, emblemática
no campo da contemporaneidade, não há
de se perguntar o que cada um pensa. Uma
enquete aqui e ali, e pronto. Partamos para as
especulações. Criemos as teses. Inventemos um
pensamento do artista. Escrevamos.
O pensamento escrito se fixa. Hoje é informação,
amanhã será documento.
Fábio Sampaio, artista plástico, não protesta?
O discurso do artista não é político? O artista
se recusa a interagir com os acontecimentos na
cidade, sua matéria-prima? O autor deste texto
vê Sampaio afastado da mobilização?
Respondo assim: em 2006, Fábio Sampaio
280
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
aplica imensos band-aids no farol desativado e
que fica no bairro Farolândia. Protesto contra
o abandono, como afirmou a imprensa. Ou o
projeto ‘Conelizados’. Fábio Sampaio e sua
intervenção urbana. Arregimentando outros,
formando grupos de pessoas que, lado a lado,
vestindo camisas com desenhos de cones
estampados, interrompem o trânsito por alguns
momentos. A velocidade contemporânea
parada, estancada por barreiras humanas.
A mobilização de Sampaio é pessoal. Não vejo
comportando dezenas e dezenas de pessoas,
unidas em um só grito, numa só palavra de
ordem. Precisamente ao contrário, Sampaio
propõe, é certo, um exercício de consciência,
e a mensagem, não obstante ser transmitida
coletivamente e em público a céu aberto, é
endereçada a cada um. Não nos esqueçamos de
que Sampaio não abriu mão do objeto de arte
para protestar, mobilizar, militar. Longe disso,
as intervenções de Sampaio sempre trazem o
selo intransferível do artista. Um band-aid cobre
meus ferimentos, outro, os seus. Ou opto pelo
silêncio falando de tudo ao cruzar dois curativos
281
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
sobre a boca. O compromisso de Sampaio é,
sim, com a originalidade. Coisa que não precisa
ser necessariamente inédita. Por vezes o mais
criativo nasce do ridiculamente óbvio.
O fato de se expor os objetos nas ruas, nos muros,
colando, desenhando, riscando, pintando, não
significa que a exposição é gratuita. Pague
pra ver. Paguemos com a redução dos passos
apressados ou com o pé no freio. Reduzamos
a velocidade do pensamento. Vejamos o que o
artista aprontou dessa vez. O que largou por aí.
Ou seja: enquanto o protesto levado a cabo
por multidões, de punhos erguidos, se
homogeneíza, massa sem rostos. O protesto
de Sampaio, tingido de ironia, apresenta a
questão: o que fazer com os cones? O que fazer
com os curativos gigantes? É melhor ignorar?
Processar o artista por vandalismo contra uma
edificação já arruinada?
Esse aspecto contemporâneo desenha bem
a trajetória artística de Fábio Sampaio. E ao
longo dela o artista chamou as luzes para si.
282
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
Mesmo quando apontou ‘problemas’ urbanos
de interesse social, Sampaio não se anulou.
Permaneceu com sua identidade, com sua
propriedade, socializando a obra dentro dos
limites que se permite para que o objeto não
se pulverize. O artista tem seus planos, quer
se manter inserido no mercado e vender seu
produto. Que moeda se utilizará é outra coisa.
Não menos importante, é claro. E depende de
onde e o que esteja sendo posto à venda.
Talento tem preço sim, e pode ser medido e pesado.
Na contemporaneidade, a arte ressoa no consumo
de réplicas e ainda mantém, com os devidos
cuidados tomados, a aura do artista, do autor.
Sampaio está ciente disso e sabe bem aproveitar
as imensas possibilidades. Os suportes são faróis
ou as mãos dadas de um grupo uniformizado.
E ainda há de romper a uniformidade das horas
pelos dias de semana. Quando a cidade mais
trabalha, produz, polui, e cresce, incha.
Os espaços abertos oferecem seus ‘vazios’
como recipientes a serem preenchidos. Sampaio
283
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
percebeu a inocência que pode ser traída. A
cidade não toma conta de si mesma. Se constrói e
amplia suas superfícies. Bom demais. Funcional
demais para ser desperdiçado. E assim, pelo
menos duas dezenas de intervenções já foram
realizadas por Sampaio. As ruas de Aracaju
foram tomadas. E nada de subversão: contou
com apoio institucional e tudo o mais.
As artes plásticas em Sergipe têm caminho
percorrido e a percorrer, definir. No que se
refere à arte contemporânea, alguns artistas
apontam a direção. Não estou afirmando aqui
que essas direções são para serem seguidas em
uníssono por todos. Nada disso. O que digo é
que qualquer que seja o elemento escolhido
para representar um discurso de valores
estéticos contemporâneos, ele deve implicar
na clareza do artista de que quando se afirma
sua arte como contemporânea, afirma-se
concomitantemente que não é clássica, não é
moderna nem pop. É desse momento, mesmo
que revisite outras ‘escolas’.
Fábio Sampaio se revelou, desde há muito,
284
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
dotado de excepcional percepção do que
é contemporâneo. Retomou o momento
que passava. Parou o mundo por instantes e
refez a paisagem. E ainda o faz. A paisagem
sofre interferência e, nas mãos de Sampaio, a
paisagem interfere, remodela objeto, quando
entendemos que o entorno complementa a
obra, mesmo quando a nega, quando se vê
como contraponto ao proposto.
Fábio Sampaio parece dizer que poucos
objetos não são passíveis de serem usados
artisticamente. Não sei dizer mais sobre isso,
ainda. O que é possível tomar emprestado e
dizer: eis a arte a que me propus?
A cidade aceita, não raras vezes, passivamente,
a intervenção. Não que não valorize, não a note,
não se incomode. Mas recebe o que parecia estar
faltando, embora não se soubesse o quê. É então
que o transeunte, agente da contemporaneidade,
quer queira, quer não, diz: ah, é isso.
A opção pela ironia legitimou a originalidade
da produção artística de Fábio Sampaio. Sua
285
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
proposta de dialogar com os espaços fez valer
o elemento silêncio nos projetos. A coisa fica
ali. Talvez alguém pare; talvez alguém pegue;
talvez alguém arranque ou só passe a mão.
Ou se afaste e fotografe, ou nada mais queira
senão esquecer.
A perenidade não é atributo indispensável à
arte de Fábio Sampaio. Seja o que for que se
pretenda como preservação da memória, o
que restará da sua produção será a reprodução
do produzido via tecnologia digital: fotos de
suas intervenções. O que já acabou e nem
faz sentido repetir. A cidade já levou o susto
na justa medida para aquele evento. O que
vicia a cidade. Quer doses outras de surpresas
e o inédito se manifesta na falta reclamada
pelas veias urbanas. Doses cavalares serão
necessárias? Ou doses homeopáticas, com
largos espaços de tempo entre uma e outra?
O artista será cobrado pela contemporaneidade
para produzir a originalidade em série? Ele
pode se recusar e deixar que esperem. Fazer
com que pensem que desistiu e que somente as
286
A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio
Léo A. Mittaraquis
paredes das galerias, dos espaços culturais, dos
espaços improvisados em clínicas, escritórios de
advocacia e câmaras de vereadores recebam
suas obras. Instituições e segmentos dando
alguma satisfação sem compromisso a um
reduzido público que teme as ruas e o que elas
oferecem de melhor e de pior.
A arte contemporânea em Sergipe está bem
representada por Fábio Sampaio. Olho suas
intervenções, olho (apenas olho) suas paisagens,
suas composições... Penso o que talvez a cidade
vez em quando deve também pensar por
motivos outros e significados outros que não os
meus: “esse cara deveria sequer existir”.
287
A Arte Abstrata
Zeca Fernandes
A Arte Abstrata
Zeca Fernandes
A
arte abstrata intriga, ofende, sensibiliza, chora,
ri, fala, cala.
A arte abstrata ou abstracionismo pode ser definida
como uma forma de arte que não representa objetos
próprios da nossa realidade. Ao contrário disso,
usa as relações entre cores, linhas e superfícies para
compor a realidade da obra, de uma maneira “não
representacional”. Ou seja, ela tende a suprimir toda a
relação entre a realidade e o quadro, entre as linhas e
os planos, as cores e a significação que esses elementos
podem sugerir ao espírito. A arte passa a ser abstrata
quando o pintor rompe os últimos laços que ligam a
sua obra à realidade visível.
Surge a partir das experiências das vanguardas
européias, que recusam a herança renascentista das
academias de arte.
No início do século XX, o termo também foi usado
para se referir a escolas como o cubismo e o futurismo
que, ainda que fossem representativas e figurativas,
buscavam sintetizar os elementos da realidade,
resultando em obras que fugiam da simples imitação
daquilo que era “concreto”.
O abstracionismo divide-se em duas tendências:
Abstracionismo lírico e Abstracionismo geométrico.
291
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
O Abstracionismo lírico ou abstracionismo expressivo
inspirava-se no instinto, no inconsciente e na intuição
para construir uma arte imaginária ligada a uma
“necessidade interior”; tendo sido influenciado pelo
expressionismo, mais propriamente no Der Blaue
Reiter. Aparece como reação às grandes revoluções
do século, especialmente a I Guerra Mundial.
Muitas artes naquela época procuravam se expressar
por meio de música, sons. Mas o abstracionismo tinha
o objetivo de se expressar por meio de desenhos
abstratos, de forma figurativa. É desta forma que
o abstracionismo lírico pretende igualar ou mesmo
superar a música, transformando manchas de cor e
linhas em ideias e simbolismos subjetivos.
O artista russo Wassily Kandinsky foi o mentor deste
gênero, utilizando cores puras em pinceladas rápidas,
fortes e marcantes.
O Abstracionismo geométrico, ao contrário do
abstraccionismo lírico, foca-se na racionalização
que depende da análise intelectual e científica.
Foi influenciado pelo cubismo e pelo futurismo.
O abstracionismo geométrico divide-se em duas
correntes:
•Suprematismo na Rússia
•Neoplasticismo na Holanda
Suprematismo, criado pelo russo Kazimir Malevich
292
A Arte Abstrata
Zeca Fernandes
em colaboração com o poeta Vladimir Maiakovski,
no início do século passado, o suprematismo defende
uma arte livre de finalidades práticas e comprometida
com a pura visualidade plástica. Trata-se de romper
com a idéia de imitação da natureza, com as formas
ilusionistas, com a luz e cores naturalistas.
Neoplasticismo, seu criador e principal teórico foi Piet
Mondrian (1872-1944), pintor holandês. Depois de haver
participado da arte cubista, continua simplificando
suas formas até conseguir um resultado, baseado
nas proporções matemáticas ideais, entre as relações
formais de um espaço estudado. O artista utiliza, como
elemento de base, uma superfície plana, retangular e as
três cores primárias com um pouco de preto e branco.
Essas superfícies coloridas são distribuídas e justapostas
buscando uma arte pura.
Abstracionismo no Brasil
Se é fato que as primeiras experiências com a pintura
não-figurativista no Brasil recuam aos tempos da I
Guerra Mundial, tendo sido realizadas pelo pintor
Manuel Santiago, sob a influência do Esoterismo ao
qual se filiara na juventude, a verdade é que coube a
Cícero Dias executar em Recife, em 1948, o primeiro
mural abstrato da America do Sul. Radicado em Paris
desde 1937, o pintor se aproximou gradativamente
do abstracionismo, deixando de lado as alusões
293
Artes Visuais Sergipe Conexões 2010
ingênuas à infancia entre os canaviais, mas sem abrir
mão do colorido tropical.
É importante ressaltar a contribuição do cearense
Antônio Bandeira, que após um começo expressionista
em Fortaleza, transfere-se para Paris em 1949 onde
domina com extrema habilidade cromática e textural,
influenciados pela grandesa das cidades iluminadas,
num contexto não figurativo.
O terceiro pioneiro do abstracionismo brasileiro foi o
romeno Sanson Flexor que chega em São Paulo em
1946 após longa jornada em Paris.
No entanto o que contribui fortemente para que os
artistas brasileiros adotassem uma linguagem não
figurativista geométrica foi a atuação teorica do
critico Mario Pedrosa no Rio de Janeiros no fim dos
anos 40 e da criação da Bienal de São Paulo no início
da decada de 50.
Abstratos em Aracaju
Me sinto inteiramente a vontade para falar do processo
renovador das artes visuais em Aracaju. Uma vez
que a maioria dos artitas sergipanos estão atentos,
curiosos e sedentos por informação e conhecimento
relacionados a arte. Uma prova desse enriquecimento
cultural e desenvolvimento deste processo é o papel
que a Sociedade Semear, através de Cita Domingos,
294
A Arte Abstrata
Zeca Fernandes
Diretora da Galeria Jenner Augusto, vêm realizando
para inserir e consolidar a capital Sergipana dentro
desse contexto abstrato, contemporâneo.
Esta exposição Abstratos traz para a cidade de Aracaju
artistas de extrema importância no cenário artístico
nacional e internacional. Entre eles: Jenner Augusto
pioneiro do modernismo em Sergipe e na Bahia, com
passagens pelo abstracionismo no final da decada
de 50 e 60, Antônio Bandeira, um dos pioneiros do
abstracionismo no Brasil, Arthur Luiz Piza, Frans
Krajcberg, o alemão Johnny Friedlander, o português
Manuel Cargaleiro, Siron Franco, Fátima Tosca, Sergio
Rabinovitz, Guel Silveira, Cesar Romero, Elisa Bracher
e Burle Marx.
É interessante observar nesta mostra a diferença
cultural entre os diversos artistas, técnicas,
composições e raizes. Por outro lado, em que pese
relatar os diversos caminhos percorridos pelos
artistas e suas obras, possibilita uma harmonização e
contemporaneidade entre elas.
A minha única preocupação na escolha desta
exposição foi trazer para o público de Aracaju uma
arte despretensiosa, inédita, sólida, bem realizada em
diferentes técnicas e suportes diversos.
295
Impressão offset
Gráfica Santa Marta
Miolo
Polen Soft 70 g/m²
Capa
Triplex 350 g/m²
Laminação e verniz localizado
Família tipográfica
Frutiger
Projeto da capa
Gabriela Etinger com a colaboração
de Ivan Masafret e Cita Domingos
Tiragem
1.000 exemplares