Livro Artes Visuais Sergipe: Conexões 2010
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Livro Artes Visuais Sergipe: Conexões 2010
ARTES VISUAIS SERGIPE CONEXÕES 2010 Ivan Masafret (Org.) Antônio da Cruz Cauê Alves César Romero Clarissa Diniz Janaina Melo Léo Mittaraquis Zeca Fernandes ARTES VISUAIS SERGIPE CONEXÕES 2010 Aracaju, 2010 SOCIEDADE DE ESTUDOS MÚLTIPLOS, ECOLÓGICA E DE ARTES. DIRETOR PRESIDENTE Carlos Roberto Britto Aragão DIRETORA DE CULTURA E ARTES Cita Domingos COORDENADOR DO PROJETO Ivan Masafret PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO ELETRÔNICA Gabriela Etinger REVISÃO TÉCNICA Najara Lima FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE A786 Artes visuais Sergipe : conexões 2010 / Ivan Masafret (Org.). – Aracaju : Sociedade Semear, 2010. 298 p. : il. ISBN: 978-85-63988-00-3 1. Artes – Sergipe. 2. Arte moderna – Sergipe. 3. Arte pública. I. Masafret, Ivan. CDU 7(813.7) Este livro é de distribuição gratuita, venda proibida. Foi concebido com recursos públicos proveniente do edital Conexão Artes Visuais MInC Funarte Petrobras 2010. O Conexão Artes Visuais possibilita a artistas, curadores, pesquisadores e espectadores participar de uma grande rede de troca de ideias e experiências no campo das artes visuais. O programa — realizado pela Funarte com patrocínio da Petrobras, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura — já se disseminou por todo o Brasil, alcançando grandes centros urbanos e municípios menores. Em 2010, os trinta projetos viabilizados pela segunda edição do programa ampliaram esse intercâmbio. Dois dos proponentes contemplados publicaram seu próprio edital para convocar propostas de todo o país, uma novidade que torna o Conexão ainda mais democrático. Quarenta cidades brasileiras recebem exposições, intervenções, oficinas e debates. Além disso, livros e websites reúnem textos críticos e acervos artísticos, de forma a fomentar a documentação e a reflexão. Esse conjunto reflete a diversidade de linguagens hoje presente nas artes visuais, da fotografia ao grafite, da videoarte à instalação. Os artistas e produtores contemplados promovem eventos de caráter performático, ações de difusão da cultura digital, pesquisas que integram arte e ciência, além de atividades que fazem circular bens culturais e seus criadores por diversas regiões do país. As ações são registradas pelos proponentes em textos, fotos e vídeos. O material abastece o site do Conexão e servirá de base para a produção de um catálogo, o que garante a difusão dos resultados para um público ainda mais abrangente. A primeira edição do programa viabilizou, em 2008, cerca de 300 atividades, oferecidas gratuitamente a mais de 80 mil pessoas, em 42 cidades. Para nós é um grato prazer saber que muitos desses projetos continuam a evoluir, incentivando o trabalho de outros artistas e atraindo novos públicos para as artes. Esperamos que o “Artes Visuais Sergipe – Conexões 2010” siga essa trilha de sucesso, propiciando cada vez mais olhares diversos para as artes visuais no Brasil. Sérgio Mamberti Presidente da Funarte Em meados de dezembro de 2008, a Sociedade Semear executou o projeto Artes Visuais Sergipe: Conexões 2008, patrocinado pela Fundação Nacional de Artes – Funarte. O projeto abriu um canal de comunicação entre os artistas sergipanos, estudantes e amantes das artes visuais com profissionais que trabalham com o mercado de artes no Brasil e no mundo. Além desses encontros, o projeto propiciou diálogos individuais dos artistas com esses especialistas e, principalmente, fomentou a formação de um grupo de estudos sobre a arte contemporânea. As discussões ocorridas no grupo e o sucesso do projeto Artes Visuais Sergipe: Conexões 2008 permitiram a construção coletiva e posterior aprovação do projeto Artes Visuais Sergipe: Conexões 2010, no edital do Ministério da Cultura - MinC / Fundação Nacional de Cultura - Funarte, nessa edição com o patrocínio da empresa que mais investe em cultura e no potencial do povo brasileiro, a Petrobras. Para essa edição, a equipe da Sociedade Semear, sob as coordenações da sua diretora de Cultura e Artes, Cita Domingos, e do sociólogo Ivan Masafret, contando com a colaboração do grupo de estudos, convidaram especialistas brasileiros para proferirem palestras, discussões ou batepapos; organizaram as exposições Junto de Oito e Abstratos e fizeram o lançamento de revistas especializadas. E, para concretizar a presença de Sergipe no cenário das artes visuais, tiveram essa espetacular ideia: a publicação deste importante documento. O livro, organizado por Ivan Masafret, é fruto dos textos produzidos por ele e por Clarissa Diniz, curadora, editora da Revista de arte Tatuí, membro do coletivo Branco do Olho, do Grupo de Críticos do Centro Cultural de São Paulo; Janaína Melo, curadora e coordenadora de educação do Centro de Arte Contemporânea de Inhotim (MG); César Romero, artista visual, crítico de arte do jornal Correio da Bahia e vice-presidente da regional Nordeste da Associação Brasileira de Críticos de Arte; Cauê Alves, curador do Clube de Gravura do MAM de São Paulo, membro do Corpo Editorial da Revista Número, membro do Conselho Consultivo de Artes do MAM-SP e um dos curadores da exposição MAM(na)OCA; Léo Mittaraquis, graduado em Filosofia e mestre em Educação, Antônio da Cruz, artista plástico, cenógrafo e militante cultural, e Zeca Fernandes, curador. É com muita satisfação que apresento, em nome de todos os que fazem a Sociedade Semear, em especial a equipe que dedicou-se a esse projeto: Alan Adi, Vanessa Belo, Thiago Ismerim, Breno Lordello Domingos, Anapaula Lordello Domingos, Telma Souza Santana, Monica Domingos e Grazielle Andrade, esta importante obra, consciente de que essa publicação só foi possível graças aos esforços e às parcerias daqueles que acreditam e apostam no potencial e no talento dos brasileiros. Que, além de uma leitura prazerosa, este livro permita que todos possam viajar nesse universo de reflexão e sensibilidade, tão característico das artes e tão distante de muitos. Carlos Roberto Britto Aragão Diretor Presidente da Sociedade Semear SUMÁRIO 1 Apresentação Ivan Masafret .............................. 15 2 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte Clarissa Diniz ........................................................ 21 3 Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea Janaina Melo ... 57 4 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero ... 73 5 Escrita ao calor da hora Cauê Alves ..................111 6 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret ........157 7 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz .............................. 215 8 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo Mittaraquis .................................... 251 9 Resenha critica da exposição abstratos A arte abstrata Zeca Fernandes .................................... 289 Apresentação A ideia deste livro e do projeto como um todo faz jus ao seu nome, pois foi graças a uma rede multidisciplinar de profissionais que ele foi se constituindo, se conectando e, enfim, pôde se realizar. Entretanto, essa não é uma exceção dentro das ações realizadas pela Sociedade Semear, capitaneada por Carlos Britto, e nesse caso também pela diretora de Cultura e Arte, Cita Domingos. É justamente graças a essa diversidade de pensamentos, olhares e concepções que concebemos e executamos desafios. Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 surgiu da percepção de que as informações e discussões trazidas pelos convidados poderiam alcançar não apenas um público mais amplo, a partir da propagação e da distribuição dos livros, mas que notadamente perdurassem por um tempo maior que o da fala ou da lembrança. Nesse sentido, o texto escrito, publicado em forma de livro, é uma ferramenta ainda imprescindível para alimentar de forma ampla, duradoura e eficaz o público interessado nas artes visuais. Esta publicação é composta por sete artigos e uma resenha critica do curador Zeca Fernandes sobre o abstracionismo. Dos artigos, quatro deles trazem o conteúdo das palestras, proposta central do projeto: são os textos de Clarissa Diniz, Janaina Melo, Cesar Romero e Cauê Alves. Outros três artigos completam a obra e foram concebidos por convidados, a exemplo do artista plástico Antônio da Cruz e do filósofo e mestre em educação Léo Mittaraquis, que se somam a um texto meu sobre arte pública em Aracaju. A pernambucana Clarissa Diniz aborda no seu artigo É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte uma interessante discussão baseada nos conceitos de capital social e amor, além de ressaltar como esses elementos são constituintes fundamentais da sociabilidade. O texto flerta com várias áreas de conhecimento, como a economia, a sociologia e até a biologia de Humberto Maturana, tudo isso, evidentemente, relacionado às artes na contemporaneidade e às relações de confiança e reciprocidade que funcionam nesse sentido. A experiência com a arte contemporânea pode ser transformadora, capaz de alterar a percepção do mundo. A educação artística tende a promover de forma profícua não apenas essa interação, mas também a construção pedagógica de um processo de troca entre o próprio educador artístico e o público; entre o público e a obra e entre a obra e o espaço artístico. Sendo assim, Janaina Melo, em seu artigo Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea mostra sua experiência no Instituto Inhotim, em Minas Gerais, exemplificando como se dá na prática a capacitação do profissional de arte educação. O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais é o titulo do artigo aqui apresentado pelo artista baiano César Romero, que descreve o produto do artista como sendo uma invenção da linguagem. Na arte nada é por acaso, nada é sem sentido, muito pelo contrário: muito mais complexo e árduo do que o senso comum reverbera, o produto do labor artístico é algo intencional que culmina na publicização da obra. Nesse bojo podemos inserir a abrangência das artes visuais, o mercado, a relação com o museólogo e, consequentemente, com os museus, com o crítico de arte, além da moda como objeto artístico; sendo todos esses temas abordados de forma fluida e pedagógica por César Romero. Crítico de arte e curador de importantes mostras, Cauê Alves traz em seu artigo Escrita ao calor da hora, um painel significativo do seu trabalho em 10 textos feitos para instituições brasileiras de referência nas artes, tanto públicas quanto privadas. Cada texto é dedicado a um artista e foi elaborado no período que vai dos anos de 2004 a 2010. Segundo o autor, os textos apresentados resultam do contato direto do autor com os respectivos artistas. Cauê Alves menciona não apenas essa relação de proximidade, mas também o distanciamento, seus prós e contras. Já em relação ao artigo Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju, afirmo que se trata de uma utilização parcial dos resultados obidos em uma pesquisa realizada por mim em 2006 para um curso de pós-graduação em Artes Visuais. O tema da monografia refere-se ao mapeamento e análise dos espaços e dos monumentos comemorativos na cidade de Aracaju, em Sergipe, entendendo e conceituando ‘espaço de arte’ como um local simbólico e constantemente resignificado ou reafirmado a depender do contexto histórico, político, econômico, social e artístico em que está inserido. Esses conceitos hoje me servem de lastro para uma pesquisa mais extensa, que versa sobre o monumento comemorativo em situação de conflito na América Latina. O artigo Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada, de Antônio da Cruz, resulta exatamente da percepção da ‘timidez’ com que as obras de arte figuram nos locais públicos em Aracaju e em Sergipe, e da diminuta quantidade de publicações sobre arte no estado. Cruz tem todos os predicados para figurar entre os autores aqui contemplados, pois produz arte há mais de três décadas e labora não apenas como artista, mas também como militante, organizador e gestor cultural. Desde associações de artistas, galerias de arte, passando por eventos e outras possibilidades de movimento cultural, Cruz se fez engendrar em tudo o que soa como um projeto coletivo para ‘fazer a arte acontecer’. No seu texto está presente toda a miscelânea de artistas sergipanos e dos que por aqui chegaram e criaram; eles figuram uma narrativa pedagógica, que relembra seus nomes e feitos, além de políticas públicas voltadas ao segmento das artes no estado. Nesse significativo artigo, entre os artistas citados está Fábio Sampaio, exaltado por Leo Mittaraquis em seu texto A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio, que versa sobre a arte contemporânea em Sergipe, trazendo como referência esse artista cuja obra provoca, ao questionar a existência de uma ‘arte sergipana’ ou de uma arte ‘qualquer coisa, qualquer lugar’. Para Leo, a arte é fruto de seu tempo, espaço e ritmo e não se limita a essa alcunha regionalista. Através de um passeio por entre as obras do artista, Leo descreve e desvenda ironias, sarcasmos e poéticas do contemporâneo Fábio Sampaio. Finalizando o livro, temos o suplemento escrito por Zeca Fernandes curador da exposição Abstratos, no texto Zeca traz algumas pontuações sobre o abstracionismo em algumas de suas vertentes, pontuando de forma objetiva a influencia em Aracaju, no Brasil e no mundo. Ivan Masafret Coordenador do projeto Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Organizador do livro É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz É preciso ser dependente para ser autônomo. Para cultivar a capacidade de ação (autonomia), é preciso adubar o potencial de interação (dependência) ao plasmar, na relação com o outro, a si próprio e ao ambiente do qual se é parte constituinte. Nos sistemas sociais1 , faz-se óbvia tal relação de interdependência. Também o campo da arte permite entrever tal autoeco-organização do meio e seus membros, e faz pensar em como são travadas as relações simultaneamente autônomas e dependentes entre artistas, críticos, curadores, público, A concepção de sistema social utilizada neste texto refere-se àquela desenvolvida por Humberto Maturana (1997), segundo o qual, quando “os membros de um conjunto de seres vivos constituem, com sua conduta, uma rede de interações que opera para eles como um meio no qual eles se realizam como seres vivos, e no qual eles, portanto, conservam sua organização e adaptação, e existem em uma co-deriva contingente com sua participação em tal rede de interações”, temos um sistema social. 1 De acordo com Maturana, para a manutenção de sua identidade, todo sistema tende à conservação de sua organização, ou seja: num sistema social, por exemplo, seus membros hão de buscar sempre a permanência de suas características básicas, dadas pelas relações estabelecidas entre seus componentes, de modo a não permitir que o sistema se desintegre. Por isso dizemos, também, que todo sistema tende à conservação de sua adaptação, uma vez que se esforça por manter a congruência 23 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 produtores, entre tantos outros. Para além das relações estritamente profissionais – que se dão através de um claro conjunto de normas sociais e técnicas –, o sistema da arte instaura relações que, ainda que ligadas ao exercício da profissão, carregam intensa pessoalidade. Assim como a produção de arte que, quase sempre, enfatiza idiossincrasias do artista e dele não se desvencilha em totalidade, também as interações profissionais nesse campo se dão entre subjetividades bastante enfatizadas. Parece-me muito claro que, no interior do sistema da arte, predominam relações sociais de base pessoal – característica que traz, para esse sistema, peculiaridades que precisam ser consideradas em sua análise. estrutural entre seu ambiente (meio) e seus componentes (seres vivos). Assim, grosso modo, percebe-se que todo sistema tende a se adaptar – através da expulsão ou da inclusão – às transformações de seus membros, buscando conservar, a partir de contínua reestruturação, sua integridade. Fica evidente, portanto, a relação dinâmica entre autonomia e dependência no interior de um sistema e nos membros que dele são parte. 24 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz Dentre tais especificidades, uma é, para mim, mais visível e me inspira urgência em ser pensada e, sobretudo, debatida: as relações de confiança e reciprocidade que funcionam – creio – como forças organizadoras (e, por vezes, motrizes) do sistema social da arte. 2 Para contribuir com a análise dessas forças , farei uso, neste texto, do conceito de capital social – tomado de empréstimo das ciências sociais e, mormente, dos estudos econômicos –, por acreditar que tal conceito destrincha parte das formas de organização e produção do sistema de arte brasileiro 3, que me parece grandemente pautado em relações pessoais. Para exemplificar as questões tratadas no texto, serão utilizadas falas e citações retiradas do contexto do sistema de arte de Recife e Olinda, referentes ao período de 1970 a 2000. 3 Todo sistema possui uma infinidade de subsistemas, cada um repleto de peculiaridades. Dessa forma, quando me refiro ao “sistema de arte brasileiro”, exerço uma forçosa generalização que considera, como tal sistema, as organizações sociais constituídas em torno da parte da produção de arte brasileira que é incorporada pelos seus mecanismos mais conhecidos (e tradicionais) de legitimação e difusão, como bienais, salões, catálogos e outras publicações, bem como pelo meio acadêmico, da crítica de arte e da curadoria ligados, por sua vez, a tais bienais, salões etc. 2 25 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Aliado à concepção de capital social, farei uso da ideia de amor como base da sociabilidade, defendida pelo biólogo Humberto Maturana. Capital social e amor Em 1990, o Banco Mundial reconheceu o conceito de capital social ao lado de outros três tipos de capital – o natural, o financeiro e o humano –, definindo-o como “a capacidade de uma sociedade de estabelecer laços de confiança interpessoal e redes de cooperação com vistas à produção de bens coletivos”. Dessa forma, o capital social seria uma espécie de fundamento que ampara as relações travadas dentro de uma determinada sociedade, estabelecendo uma organização social capaz de produzir, com mais ou menos coesão, os bens e serviços de que necessita para manter sua própria conservação/sobrevivência. Como forma de capital não inerente a bens, serviços ou indivíduos, mas às relações tecidas entre os últimos, o capital social exige, para sua produção, uma rede de interações sociais 26 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz sedimentada – um sistema. É a partir dessas relações que ele nasce e essa é uma de suas particularidades: é um tipo de capital que se encontra apenas nas relações, na estrutura do sistema social – no espaço, portanto, do entre –, sendo ele um tipo de ‘valor’ que não pode ser apropriado privadamente, sendo, ao contrário, passível de ser igualitariamente utilizado por todos aqueles que o produzem. Capital social seria, por exemplo – como elucida um dos mais citados exemplos da literatura sobre o assunto –, o que permite que os membros de uma comunidade de judeus joalheiros de Nova Iorque minimizem os custos de suas transações ao estabelecer, entre si, o comércio e a circulação de pedras preciosas sem que se paguem os seguros, o que aumentaria muito os custos de todas as operações. Acontece que os membros de tal comunidade, ao confiarem uns nos outros, agem de acordo com uma rede de cooperação que facilita as atividades de todos, gerando capital social – uma espécie de ‘alicerce’ (e um ‘recurso’) do qual todos eles gozam e que 27 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 permite que sejam simplificadas atividades que normalmente exigiriam mais esforço por parte de cada um dos joalheiros. São as interações entre tais judeus que permitem que seja gerado o capital social do qual todos se beneficiam. Estudiosos do capital social afirmam que, para que ele exista numa determinada comunidade, é necessário que os indivíduos que dela fazem parte se relacionem pautados em redes de cooperação e reciprocidade e, sobretudo, confiança. Para que a confiança possa existir, por sua vez, é necessário que tais indivíduos partilhem das mesmas normas sociais (tenham 4 os mesmos direitos e deveres) e, para que isso ocorra, basta que eles façam parte de um mesmo sistema, uma vez que os membros de um sistema selecionam, em si mesmos, as condutas que o realizam enquanto tal, assegurando, teórica e consequentemente, que todos compartilhem Tais normas sociais normalmente são mais morais que legais, sendo, portanto, códigos não-escritos e não-falados, mas aos quais estão sujeitos todos os membros do sistema que os adota. A confiança social age como uma dessas normas não-legalizadas e, costumeiramente, profundamente atuantes. 4 28 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz das normas a que estão submetidos. A atitude cooperativa – base do capital social –, acredita o biólogo Humberto Maturana, é natural do ser humano, mas, em sociedades complexas e racionalmente estruturadas como a nossa, ela só se dá tranquilamente em conjunção com a confiança na reciprocidade alheia, pois, quando se confia mutuamente, normalmente se é recíproco às cooperações recebidas: eu coopero com você porque ‘sei’ que você cooperará comigo quando for necessário5. A teoria do capital social atribui a confiança e as regras de reciprocidade às normas e convenções sociais que julga como estruturadoras das sociedades. Para tal teoria, um indivíduo só É ilustrativa da necessidade humana de prescindir da confiança na reciprocidade do outro para conferir ajuda uma parábola do filósofo escocês David Hume, que, ainda no século XVIII, narra a história de dois agricultores de trigo. Um deles, já no período de colheita, percebe que precisa de ajuda para realizá-la, pois, se o fizer sozinho, não conseguirá abranger toda a plantação, e parte de seu trigo será perdido, faltando-lhe, assim, pão durante do ano. Seu vizinho, percebendo a situação, pensa em ajudálo, na esperança de que, quando chegar a vez de sua colheita, também ele possa contar com a colaboração do outro agricultor. 5 29 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 coopera com outro (ou é recíproco com uma ajuda recebida) porque acredita que, se não o for, sofrerá sanções sociais – a principal sanção seria a exclusão da rede/sistema do qual ele participa, perdendo, assim, o direito a usufruir do capital social. Contudo, acredito que, muito além das convenções sociais que recaem sobre as pessoas, a mais profunda motivação pela qual os seres humanos cooperam entre si é o amor. Segundo Maturana, o amor “é a condição dinâmica espontânea de aceitação, por um sistema vivo [como o ser humano], se sua coexistência com outro (os outros) sistema(s) vivo(s), (...) é um fenômeno biológico que não requer justificação: o amor é um encaixe dinâmico recíproco espontâneo, um acontecimento que acontece ou não acontece” e é ele “o fundamento do Todavia, o vizinho não tem certeza da confiabilidade do outro e, por ter dúvidas da reciprocidade esperada, resolve não ajudar para não correr o risco de prestar um favor sem recebê-lo de volta. Conclusão: ambos perdem suas colheitas. 30 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz fenômeno social e não uma consequência dele”6. Assim, as interações só acontecem enquanto há amor, pois, sem amor, não existe sociabilidade. Acredito, portanto, que o capital social surge naturalmente das relações mantidas entre as pessoas, uma vez que tais relações só durarão o tempo suficiente para produzi-lo se forem construídas por conta do amor – a ‘pegajosice biológica’ de que fala Maturana e que, segundo seu pensamento, é a responsável por assegurar a duração das interações sociais. Entender que o capital social não é a finalidade das relações, mas apenas uma orgânica e produtiva consequência delas, é percebêlo de um modo não-funcionalista. Se a ideia funcionalista do conceito compreende que os indivíduos desenvolvem suas relações interpessoais vislumbrando os benefícios que, Maturana, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte, 2002. 6 31 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 através delas, podem conseguir, a concepção que entende o amor como base estruturadora dessas interações sociais compreende, contrariamente, não haver premeditação na instauração de convivências que, se mantidas com intensidade e confiança, hão de gerar capital social. O que estimula tais convivências seria o amor, não o interesse em futuros benefícios. Dentre as principais características do capital social está a de que ele é o único tipo de capital que, quanto mais se usa, mais se tem. Ao contrário do capital natural, por exemplo, que vai se esvaindo caso não haja uma medida de reposição, o capital social produz a si mesmo quanto mais for usado, exatamente como acontece nas relações humanas pautadas na confiança: quanto mais se confia, mais confiança se gera. Entendendo, portanto, que as interações profissionais pautadas em relações pessoais geram uma forma específica de organização social, é minha intenção fazer ver, a seguir, como tal organização – uma espécie de rede informal de cooperação entre artistas, críticos 32 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz e outros profissionais, baseada no amor e na confiança recíproca – facilita o desenvolvimento de atividades várias, gerando um tipo de base (capital) em que diversas ações possam se assentar e se tornar possíveis. Num dado sistema, para que se tenha capital social, é necessário que os seus membros constituintes interajam repetidas vezes. Somente da convivência se desenvolvem a confiança, a reciprocidade e o amor necessários à instauração de uma rede de cooperação em que todas as partes saiam ganhando. Assim, no sistema de arte, é imprescindível a proximidade entre artistas e outros profissionais. Quanto menor o sistema, mais convivência haverá e, assim, mais capital social será gerado. Por isso, então, a grande relevância da criação de ambientes de convivência, tal qual ocorreu em Pernambuco, com a criação da Sociedade de Arte Moderna, ainda na década de 40: 33 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 (...) A notícia de que Hélio Feijó pretendia fundar uma sociedade de artistas [Sociedade de Arte Moderna do Recife, 1948] alegrou-me e encheu de esperanças de que enfim teríamos, nós artistas [“modernos”], uma possibilidade de nos encontrarmos regularmente: a única chance no momento era, uma vez por ano, na inauguração do Salão do Museu do Estado onde acadêmicos e modernos lutavam ferozmente pelos prêmios.7 Não só o hábito de se encontrar, mas, sobretudo, de se reunir de maneira informal, longe das pressões institucionais, é essencial ao desenvolvimento de capital social. Como a formação de redes de sociabilidade passa, necessariamente, por sentimentos de afetividade, as redes de amizade e amor crescidas não apenas nos encontros ‘oficiais’ do sistema de arte – como em vernissages 8, cursos etc – mas, mormente, amadurecidas Depoimento de Reynaldo Fonseca (artista). Retirado do livro Memória do Atelier Coletivo, de José Cláudio. Recife, 1978. 8 “Os vernissages eram mais para as pessoas se encontrarem, conversarem, e sempre as pessoas iam para essas exposições e depois esticavam num restaurante.” Fala de João Alberto (colunista social). Entrevista concedida à autora, 2006. 7 34 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz em vivências menos mediadas por instituições e mais envoltas em sentimentos extra-artísticos (como festas, viagens, conversas em bares), se fazem fonte primeira e constante para a manutenção do capital social: (...) Havia muitos encontros nas sextas-feiras na Escola de Belas Artes, com o pessoal de teatro, arquitetura (...). Informal mesmo. Nós íamos para um barzinho, e lá tinha uma senhora que fazia uma feijoada, uma carangueijada.9 (...) Reynaldo Fonseca dava festas na casa dele, chamava os alunos [da Escola] para lá. Vicente do Rego Monteiro participava do atelier e fazia farra com a gente! Então as pessoas interagiam, era uma integração muito grande!”10 “(...) Os bares com certeza sempre terão um papel, um copo, e uma cerveja importante e gelada para formar os artistas (...). É isso: o bar é o melhor lugar para se pensar arte... A partir dessas interações de amizade-amor não necessariamente artísticas, plasma-se o Depoimento de Sérgio Lemos (artista). Entrevista concedida à autora, 2006. 10 Depoimento de Maurício Silva (artista). Entrevista concedida à autora, 2006. 9 35 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 ambiente necessário para a posterior criação de experiências de arte que, para sua existência, exigem uma anterior rede de relacionamentos, como ocorreu com o grupo Camelo: “(...) No início éramos eu [Marcelo Coutinho], Ismael Portela, Jobalo, Paulo Meira e Oriana [Duarte]. Toda semana nos encontrávamos e bebíamos até cair. Os mais resistentes éramos eu e Paulo Meira. Todos iam dormir e nós continuávamos até a manhã do dia seguinte, frequentemente até o meio-dia do dia seguinte, completamente bêbados em um mercado público qualquer. Resolvemos pôr um nome no grupo. (...) Decidimos por uma das sugestões de Paulo Meira que era o ‘Camelo’. Estávamos nós três numa calçada da Av. Caxangá, comendo galeto de rua e bebendo cerveja, quando batemos o martelo. Os três criamos o conceito da imagem de um jumento com corcovas. (...) Éramos os ‘xiitas’ do Camelo pelo fato de que nós estávamos presentes o tempo inteiro, decidíamos tudo junto, levávamos tudo às últimas consequências, consumíamos todo o nosso dinheiro e tempo com o grupo. Além, é claro, de termos uma resistência hepática fora do normal. Enfim, havia uma sintonia muito fina entre nós. E qualquer pessoa de fora naturalmente teria muita dificuldade de entrar nessa sintonia.”11 Fala de Marcelo Coutinho. Entrevista concedida à autora, 2006. 11 36 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz Uma vez agrupados, os artistas do Camelo desenvolveram uma série de ações que, se não tivessem sido realizadas coletivamente, dificilmente teriam sido viáveis. Os membros do Camelo apoiavam-se mutuamente, contribuíam um com o trabalho do outro. As relações de confiança, reciprocidade e amor presentes entre os membros do grupo funcionavam como geradoras de energia e trabalho para facilitar a realização de obras que, sem tal apoio, seriam deveras mais difíceis de ocorrer 12, sobretudo num ambiente de pouco amparo institucional. No Camelo, havia uma grande quantidade de capital social. O equivalente à ideia de capital social lançada pelas ciências é a popular concepção de brodagem13. Nascida a partir da palavra inglesa brother (irmão), a expressão brodagem se “Durante o ano de 1997 programamos várias exposições do grupo no IAC [Instituto de Arte Contemporânea da UFPE] ao longo do ano. Nos reuníamos periodicamente e trabalhávamos para a exposição de cada um, dividindo tarefas e auxiliando na montagem”. Depoimento de Renata Pinheiro. Entrevista concedida à autora, 2006. 12 37 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 refere a um modo de convivência baseado na cooperação. Fazer algo ‘na brodagem’ significa agir com a ajuda de amigos, ‘irmãos’, como se os amigos formassem uma família. Só se é broder de alguém em quem se confia e se ama, e, assim, é formada uma rede de pessoas cuja interação gera brodagem, produz capital social. Contudo, num sistema maior – como uma sociedade inteira –, quando as partes das relações ‘de brodagem’ não são mais amigos, mas cidadãos e instituições, surgem inúmeras questões que tornam esse tipo de relação amplamente problemática – e são esses os aspectos que se poderia entender como os ‘negativos’ do capital social. Quando, no âmbito institucional, as relações se mantêm majoritariamente pautadas na confiança e amor interpessoal, e não em interações mais objetivas visando interesses “(…) Este projeto é coisa de brodagem, de amigos artistas que querem mostrar seu trabalho, com apoio dos demais”. Depoimento do artista Flávio Emmanuel, excerto da matéria Artistas incentivam intervenções urbanas, de Kéthuly Góes. Diário de Pernambuco. Recife, 1º de julho de 1997. 13 38 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz da coletividade, por exemplo, habitualmente ocorrem ‘injustiças’, como protecionismos e clientelismos – como deixa entrever Mary Gondim (diretora, durante quatorze anos, do Museu de Arte Contemporânea de PE), ao narrar o que aconteceu com o patrocínio antes concedido ao Salão dos Novos por uma seguradora depois que ela deixou a direção do museu: (...) A Sul América Seguros patrocinou o Salão 15 anos, 16 anos...! (...) Depois, quando eu saí, eles não quiseram mais. (...) [Quando a nova diretora foi procurá-los a respeito do patrocínio do ano seguinte, eles disseram] “Não, era com Mary Gondim, com você eu não quero negócio”. Eu não disse nada, não fui lá fazer a menor intriga.... Clarissa - Mas você conhecia alguém da Sul América? Nunca! Não sabia nem quem era! Mas ele acreditou em mim, eu acreditei nele, nunca vi nem a cara!”14 Essa demasiada ‘personalização’ das relações profissionais que, ao que me parece, é uma conduta profundamente arraigada na cultura brasileira como um todo, esteve (e está Depoimento de Mary Gondim. Entrevista concedida à autora, 2006. 14 39 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 ainda) amplamente presente no sistema de arte pernambucano. Tamanha influência de aspectos pessoais nas interações profissionais, ainda que gere muito capital social para aqueles que dessa condição usufruem, mantém, por outro lado, uma política institucional e de “ações de legitimação, de visibilidade e de divulgação que não passam pela ética, mas pelo compadrio, pela amizade, pelos interesses políticos, materiais ou não, por troca de favores etc”15, e que devem ser intensamente criticadas. Todavia, nem sempre é fácil criticar. O capital social dificulta também – e esse é mais um de seus problemas –, ainda que não impeça, o desenvolvimento do pensamento crítico e, sobretudo, o exercício desimpedido da crítica, pois aqueles que criticam normalmente imaginam que, fazendo-o, ficarão sujeitos a receber sanções sociais por parte dos criticados. Além disso, quando as relações Fala de Moacir dos Anjos (curador). Entrevista concedida à autora, 2006. 15 40 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz profissionais estão fortemente calcadas nas relações pessoais, ainda que sejam pensadas críticas, é dificultado o hábito de publicizá-las, pois se teme retaliações. Assim, fica instaurada uma profunda dificuldade em tecer críticas a respeito de questões profissionais sem recair em aspectos pessoais. Consequentemente, na ansiedade pela manutenção da harmônica inserção dentro de uma determinada comunidade rica em capital social, privilegia-se, ao invés do espírito crítico, o instinto bajulador: “(...) Por que que os jornais daqui [de Recife], tanto o Diário de Pernambuco quanto o Jornal do Commercio, não disseram nada no período de Arraes em que Ariano [Suassuna] foi Secretário de Cultura e fechou o Salão do Estado?! Não houve uma linha que criticasse, que chamasse a atenção a isso. Isso é conivência e covardia, porque Ariano é um cara mitificado aqui. Tanto que quando eu escrevi, criticando (...), muita gente veio falar comigo: “Montez, mas tu tá fazendo isso com Ariano?”. O que é que eu tô fazendo com Ariano?! Eu tô criticando o projeto dele, que tá cheio de equívocos! Então ele é mitificado a tal ponto que causa medo nas pessoas.” 16 O que naturalmente pode ocorrer, quando da demasiada interferência de aspectos pessoais 41 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 nas decisões profissionais, é o consciente ou inconsciente favorecimento de certos indivíduos em detrimento de outros – as famosas ‘panelinhas’: “(...) Em setores culturais do Governo estadual [Pernambuco] e municipal [Recife], associações de classe, como a AAPP/PE [Associação dos Artistas Plásticos Profissionais de Pernambuco], curadorias de exposições com patrocínio oficial, o que vemos a nível local, sempre que está em questão a escolha de artistas para participarem de determinados eventos, é politicagem, igrejinhas e a nefanda prática do ‘é dando que se recebe’ (...)”. Ainda que a presença de capital social nas relações possa vir a propiciar a existência de alguns tipos de favorecimento, quero ressaltar 17 que o capital social não causa, por si só, efeitos como o protecionismo. O que ocorre – em casos como o anteriormente citado – é a conjunção de uma série de fatores culturais e políticos que, Depoimento de Montez Magno. Entrevista concedida à autora, 2006. 17 Excerto do texto Sobrevôo de urubus nos céus da cidade, de Paulo Chaves. Diário de Pernambuco. Recife, 13 de agosto de 1992. 16 42 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz somados à boa quantidade de capital social que existe em determinados sistemas sociais, facilitam a expansão de tais condutas de ética duvidosa. É curioso perceber o quanto, inclusive, o capital social pode ter efeitos inibidores de condutas corruptas como as acima referidas dentro do seu agrupamento social de origem. Por conta de uma forte rede de confiança interpessoal, a proliferação de atitudes antiéticas é, inclusive, dificultada, uma vez que os membros dos agrupamentos, de tão próximos, ‘vigiam’ a si próprios e, inclusive, aplicam-se sanções. Contudo, quando os sistemas de diâmetros maiores são repletos de subsistemas que possuem capital social apenas internamente, sem que o sistema maior tenha, ele próprio, uma firme rede de cooperação, o que ocorre é que os pequenos grupos ricos em capital aproveitam-se da fragilidade do sistema maior para beneficiar a si mesmos. Isso ocorre sem que haja, por parte dos outros subsistemas, uma constante vigilância, uma vez que, em razão da redução do ‘raio de confiança’, são 43 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 menos aprofundados os contatos entre eles. Dessa forma, o espaço para o surgimento de ‘panelinhas’ ou similares vem menos pela existência do capital social do que pelas dificuldades envolvidas na propagação do capital do nível micro ao macro, visando gerar cooperação e compromisso social numa escala que seja política e economicamente válida e, consequentemente, mais acessível a todos. Tal dificuldade de propagação do capital social pode existir, também, por conta da comumente forte ‘divisão’ entre sociedade civil e Estado, que tendem, no Brasil, a se comportar como instâncias antagônicas. Nesse sentido, a ampliação da quantidade de capital social em uma sociedade pode também contribuir para a suavização desses limites, uma vez que uma de suas características é a capacidade de produzir sinergia entre instâncias sociais diversas, especialmente entre governo, organizações formais, informais (sociedade civil) e mercado. Essa sinergia, contudo, só se faz possível 44 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz quando a sociedade interage com o Estado numa relação colaborativa em que as duas partes saem ganhando, em detrimento de um tipo de relação baseada numa ideia competitiva na qual, para que a sociedade ganhe, o Estado precisa perder – ou vice-versa. Deve-se manter sempre muita cautela, contudo, para que, no seio de uma relação colaborativa (como ocorre com as ‘sociedades de amigos’ dos museus, os conselhos de administração participativa etc), a sociedade não tome para si a responsabilidade de cumprir obrigações que são do Estado (assim como uma instituição não deve cumprir a função de outra), substituindo a sua atuação nos momentos em que ele é falho. Ainda que atitudes emergenciais de preenchimento de lacunas governamentais possam ser bemvindas¹18, essas não devem chegar a se concretizar como política de cooperação. Por outro lado, o adensamento institucional dentro de um determinado sistema pode ocasionar a diminuição da quantidade de capital social existente no mesmo, pois, contando com apoios governamentais, os 45 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 indivíduos podem receber colaboração alheia sem, no entanto, ter a necessidade de ser recíproco. Não é necessário ‘devolver favores’ a instituições, basta apenas cumprir mínimas obrigações, o que, porventura, pode contribuir para a constituição de um sistema social menos colaborativo e mais individualista. A reciprocidade19 é um dos pilares das relações que geram capital social. É ela que está por trás de inúmeras condutas que, a priori, nos parecem gratuitamente avessas àquilo que é externo/estrangeiro. Além das habituais incompatibilidades de interesses “(...) O VII Salão de Artes Plásticas da Etepam (Escola Ténica Prof. Agamenon Magalhães) realizou-se graças ao empenho do artista plástico Mário Ricardo, seu curador. O Salão foi aberto, em 1992, apenas às categorias de Desenho e Gravura, visando de certa forma compensar a ausência [dessas linguagens] no Salão de Arte Contemporânea de Pernambuco – versão 92. (...).” Excerto do texto Remando contra a maré – nem tudo foram cores para as artes plásticas pernambucanas este ano, de Paulo Azevedo Chaves. Diário de Pernambuco. Recife, 29 de dezembro de 1992. 19 “Nenhum dever é mais importante do que retribuir um favor”, Cícero. 18 46 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz que rondam as relações entre as pessoas, é também por conta da ausência de confiança na reciprocidade alheia – medo de ser ‘usado’ – e, claro, por falta de relações de afeto, que muitos grupos, por exemplo, se fecham a novos membros. No entanto, quando ocorre insistência e demonstração de características confiáveis, a inserção de novos membros e condutas num sistema já estabelecido se dá com maior facilidade de penetração. Mas, obviamente, muitas vezes tais demonstrações são unicamente uma estratégia de inserção, produzindo agrupamentos circunstanciais e capital social suficientes apenas para atender, em curto prazo, a expectativas imediatas: 47 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 “(...) Jenner Augusto [artista baiano] teve muitas exposições aqui, com [a galeria de Carlos] Ranulpho. Isso foi uma jogada muito esperta de Ranulpho, porque uma vez ele fez uma exposição de Wellington Virgolino [artista pernambucano] em Salvador, e os baianos são muito xenófobos, só compram de baianos. E aí ele fez o acordo com o galerista, fez a exposição, mas não vendeu nada. (...) Aí alguém de lá disse: ‘rapaz, não é assim que você faz... Você convida um artista baiano para ir pra lá pra sua galeria e convida um Jorge Amado, um baiano pra escrever sobre esse artista que você trouxer pra cá’. Aí ele pegou, trouxe Carybé, trouxe Jenner Augusto e Mário Cravo e ele tinha uma editora, a Guariba (...). E nisso ele trouxe o Jorge Amado, e Jorge Amado escreveu um conto, não sei o que foi, com ilustrações de Jenner Augusto e de Carybé, e editou e fez a exposição deles aqui – vendeu tudo! Aí o pessoal ficou devendo um favor a ele, e ele levou a exposição de Wellington Virgolino... Vendeu tudo! [risos] Não ficou um quadro! Aí ele fez mais outra exposição de Wellington, aí Wellington abriu um mercado para ele! Aí tudo que Wellington produzia, Wellington vendia lá na Bahia.” 20 Depoimento de Sérgio Lemos. Entrevista concedida à autora, 2006. 20 48 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz O caso acima ilustra claramente como o capital social se dá entre outros atores do sistema da arte que não somente os artistas. Também críticos, jornalistas, curadores e galeristas estabelecem, entre si e com os artistas com os quais trabalham, redes de interações sociais pautadas na confiança e no amor. A afinidade existente, por exemplo, entre artistas e galeristas, e cultivada com amor e confiança, é absolutamente necessária para o desenvolvimento de determinados tipos de relacionamento pautados não em acordos contratuais, mas em acordos tácitos, frequentes no mercado de arte do mundo inteiro: “(...) Na minha vida toda, eu nunca tive contrato com galeria. E todos os acertos, assim como os consórcios, era tudo de boca. Até hoje. Fiz um único consórcio em que a pessoa que organizava preferiu fazer a cobrança através do banco. Foi o consórcio que deu mais trabalho.” 21 Fala de Gil Vicente [artista]. Entrevista concedida à autora, 2006. 21 49 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Além das relações interpessoais de confiança serem necessárias para o estabelecimento de acordos entre as partes, elas são facilitadoras das transações realizadas, como afirma Gil Vicente em seu depoimento, ao dizer que, na única vez em que os acordos não puderam ser feitos na base da confiança, havendo, então, a necessidade de certa legalização, o custo e o gasto de energia para a realização as atividades pretendidas foi bem maior. Essa é uma das principais características do capital social: ele minimiza os custos das transações. Outro fator que em muito contribui para a geração de capital social é a distribuição da informação. Para adquiri-la – e disso todos sabem – é necessário um gasto de energia constante (tempo e dinheiro, entre outros fatores), mas, se a informação, quando adquirida, for repassada, ela economiza os gastos de outros membros do sistema que, inclusos numa cadeia de reciprocidade, ao devolverem a conduta – difundindo, eles também, outras informações – anulam a necessidade de novos gastos alheios. Assim, todos recebem mais informações por menos. 50 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz Além disso, saber e poder se multiplicam mutuamente – não há relação de poder sem a existência de um campo de saber como, reciprocamente, todo saber assegura um determinado poder. Dessa forma, distribuir o saber é também distribuir o poder e, consequentemente, apostar na cooperação em detrimento da competição – capital social. Por fim, é necessário falar de uma forma implícita de capital, a noção de reputação, construída a partir de uma sucessão de experiências cooperativas, levadas a conhecimento público, dadas entre partes que se confiam mutuamente (e que possuem legitimidade social). A confiança – sentimento sem o qual não existe capital social – se dá, também, através da reputação, com base em raciocínios como: “se A confia em B, e B confia em C, então é muito provável que A confie em C”. Da reputação pode nascer confiança porque ela – a reputação – é adquirida com base em um comportamento consistente durante o tempo, constância essa que é valorizada pelos sistemas 51 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 sociais humanos como sinal de confiabilidade. Qualidades – pessoais e profissionais – como a integridade, a honestidade etc, são propiciadas pelo desenvolvimento de sistemas cujos membros interagem repetidamente; portanto, quanto menor o sistema, maior a incidência de interações repetidas e, consequentemente, maior a possibilidade do surgimento (e da manutenção) da reputação de seus membros, bem como maior a possibilidade de geração de capital social. Assim, apesar dos aspectos negativos que possa instaurar – se desmedido e utilizado por pessoas cujo interesse principal é o beneficiamento pessoal –, o capital social gera bases para o desenvolvimento de atividades que, sem ele, seriam por demais custosas para serem realizadas. Percebo que é por conta da existência de redes de amizade, cooperação, confiança, reciprocidade e amor que várias ações artísticas ocorrem – de exposições, cursos, à criação de novas instituições –, adensando o sistema de arte (o brasileiro, em especial). Entendo, portanto, que devamos reconhecer 52 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz os aspectos subjetivos de nossas relações de trabalho, aspecto tão peculiar à organização de nosso campo profissional. Talvez o sistema de arte seja um dos que mais exige o comprometimento pessoal daqueles que dele fazem parte – tal qual a produção de arte em si –, e admiti-lo não me parece apenas necessário, como também justo. Faz-se urgente tornarmonos cônscios dessa condição e diante dela posicionarmo-nos criticamente, por um lado utilizando o capital social como fonte geradora de energia produtiva e, por outro, buscando controlar suas consequências negativas, de modo a tornar tal capital um fator dinamizador, e não paralisador, de nosso campo artístico. 53 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, Aracy A. Arte e meio artístico: entre a feijoada e o x-burguer. São Paulo: Nobel, 1983. ARAÚJO, Maria Celina Soares D’. Capital Social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. BECKER, Howard S. Art Worlds. Los Angeles: University of California, 1997. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Tradução de Sérgio Micelli. São Paulo: Perspectiva, 2004. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. DAGSPUTA, Partha; SERIGALDIN, I. Social Capital: multifaceted perspective. Washington D.C.: The World Bank, 2000. 54 É preciso ser dependente para ser autônomo: relações pessoais, capital social e sistema de arte. Clarissa Diniz DINIZ, Clarissa. Crachá – aspectos da legitimação artística (Recife-Olinda, 1970 a 2000). Recife: 2006. HIGGINS, Sílvio Salej. Fundamentos teóricos do capital social. Chapecó: Argos, 2005. MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: UFMG, 1997. PINHEIRO, Jane; PITTA, Danielle Perin Rocha. Universidade Federal de Pernambuco; Centro de Filosofia e Ciências Humanas; Departamento de Ciências Sociais. Arte Contemporânea no Recife dos anos 90: Grupo Camelo, Grupo Carga e Descarga e Betânia Luna. Recife, 1999. ZOLBERG, Vera L. Constructing a sociology of the arts. England: Cambridge University, 1999. 55 Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea Janaina Melo 22 Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea Janaina Melo N o seu livro A arte como experiência, o filósofo americano John Dewey destaca que a experiência em arte é o resultado, o signo e a recompensa de uma interação. Interação entre organismos e ambientes, entre pessoas, lugares e coisas do mundo. Pensar sobre as relações que se pode estabelecer entre arte e educação é pensar na constituição de ambientes que são favoráveis à experiência na sua máxima potência e excepcionalidade. Experiência em arte e educação se constrói num processo de troca, contato e relação. Para instaurarmos um ambiente de conversa sobre as relações possíveis de se estabelecer hoje entre arte contemporânea e educação, antes é necessário enfatizar a potência que tem a arte de oferecer uma experiência única, capaz de transformar nossa relação com o outro e com as coisas do mundo. A arte é capaz de nos Janaina Melo é coordenadora de Arte e Educação do Instituto Inhotim, em Brumadinho – MG. 22 59 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 fazer olhar o mundo de modo diferente e esse convite favorece sobremaneira a constituição de ações que visam à educação. Através dessa experiência diferenciada e transformadora, como podemos construir o lugar da educação? Para profissionais que atuam em museus e centros culturais, essa indagação é recorrente e, associada à multiplicidade de relações estabelecidas no contato do educador com o público, a ação de arte educação em um museu se oferece como campo privilegiado para a percepção e compreensão dessa potencialidade das obras de arte e dos ambientes criados pelos enunciados artísticos. No Instituto Inhotim, instituição na qual atuo como educadora, consideramos que é fundamental instaurar ambientes de encontro, lugares que oportunizem a plena experiência e o aprofundamento das reflexões acerca dos contextos específicos da produção contemporânea. Buscando estratégias para promover uma experiência significativa com o público em seu contato com a obra de 60 Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea Janaina Melo arte, partimos do pressuposto que o saber é constituído por conhecimentos e vivências que se entrelaçam e que o educador e o visitante são detentores de experiências próprias, que devem ser compartilhadas no processo de mediação. Sendo a experiência um ponto central na formação do conhecimento, entendemos no Inhotim que a mediação é um processo essencialmente coletivo. Assim, os programas educativos atuam por meio da experiência oportunizada pelo encontro num determinado lugar. O ponto de partida é a conversa que se estabelece entre educador e público, entre o público e a obra, entre a obra e o museu. A percepção do quão importante é a potência de relações possíveis, que se dão através da troca e do ambiente experiencial enfocado, é que torna possível iniciar a construção de significados. Diante desse desafio e em consonância com as obras que compõem o acervo do Inhotim, os programas educativos demandam a organização de ações que, embora formuladas como programas específicos, atuam em 61 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 sinergia e com uma diretriz pedagógica comum. Preferimos, na nossa experiência, usar uma terminologia que preserve a potência dos lugares de fala: arte e educação. Eles serão tratados não como a instauração de um campo separado, mas como ponte, lugar de encontro, de presença, de contato para a elaboração de múltiplas oportunidades educativas. Para isso, é preciso pensar na prática de mediação e no papel do educador como o agente que instaura um lugar de convivência, território híbrido e capaz de ativar diferentes formas de diálogo entre afetos, lugares e enunciações. Em 2008, o Instituto Inhotim criou o projeto Descentralizando o Acesso, que tinha como objetivo principal desenvolver um programa especial de visitas escolares associado à capacitação de professores dos Ensinos Fundamental e Médio das redes públicas de ensino de Brumadinho (MG) e de municípios vizinhos – Mário Campos, Sarzedo, Ibirité, Igarapé, São Joaquim de Bicas, Bonfim, Itaguara, Piedade dos Gerais, Rio Manso, Itatiaiuçu, Crucilândia e Moeda. 62 Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea Janaina Melo Através do projeto, foram realizadas visitas orientadas de alunos das escolas ao Instituto Inhotim, além de dois encontros de formação para professores. Esse programa serviu como base para a preparação das visitas, contribuindo dessa maneira para o melhor aproveitamento das ações educativas. As atividades desenvolvidas na formação dos professores foram orientadas para o desenvolvimento de ações, pesquisas e projetos educativos que pudessem acontecer na escola, tanto antes dos alunos visitarem o Inhotim, em atividades preparatórias denominadas prévisitas, quanto após a visita, como espaço de aprofundamento de questões que tenham sido de interesse do grupo (professores e alunos), no que chamamos de pós-visita. Como desdobramentos dessa experiência – visita e capacitação de professores – esperávamos que as escolas, os professores e os alunos participantes pudessem construir estratégias particulares de apropriação e desdobramentos dos conteúdos oferecidos pelo acervo de arte contemporânea em ações educativas dentro e fora da escola. 63 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Para isso, nosso maior desafio era promover uma formação de professores que atuasse como um convite à experiência e oferecesse ao professor a oportunidade de aproximação, mas principalmente de apropriação do acervo de arte como agente articulador de estratégias educativas dentro da escola, território do qual nós, educadores de museus, sabemos muito pouco. Organizamos a formação em dois encontros com oito horas de duração e desenvolvemos uma metodologia especial que inverteu os lugares de fala e convidou o professor a criar com base na sua experiência prévia em sala de aula e naquilo que vivenciou no Inhotim. Na formação, o primeiro encontro sempre acontece no Inhotim e antecede a visita dos alunos. Nesse encontro, professores e educadores da instituição passam por três momentos principais: Primeiro momento – Visita orientada: durante a visita conduzida pelos educadores do Inhotim, os professores são estimulados a observar e anotar palavras que expressem sensações e percepções vivenciadas durante o trajeto. 64 Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea Janaina Melo Segundo momento – Compartilhando palavras: A percepção individual sobre a visita é socializada pelo grupo e, a partir das palavras e dos elementos anotados, são definidos os temas que devem orientar os próximos momentos do encontro. Terceiro Momento – Pesquisa de Campo: Organizados em grupos e dispondo de câmeras fotográficas, os professores saem pelo instituto registrando cenas que se relacionam com os conceitos e temas identificados nas palavras anotadas. Nesse processo, os registros fotográficos dão origem à construção de um banco de imagens que auxilia o professor durante o planejamento das atividades de pré-visita e oferece a oportunidade de elaboração de roteiros com pontos de parada e lugares de experiência para o desenvolvimento de práticas artísticas na escola, antes e depois de realizar a visita. Quarto Momento – Criando novos roteiros: Tomando o mapa do Inhotim como suporte, os professores desenham os trajetos que realizam durante a produção das imagens. Os roteiros 65 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 compartilhados com o grupo evidenciam os múltiplos percursos e possibilidades apreendidas durante a visita pelo museu. O segundo encontro do programa acontece na cidade pólo. Por isso, é necessário o deslocamento da equipe de arte e educação do instituto, que vai para a cidade construir com os professores, dentro da escola. Reconhecemos, nessa estratégia de deslocamento, o percurso realizado, as especificidades do ambiente escolar. Nosso convite é para o diálogo e, uma vez que convidamos professores para visitar e conhecer a nossa instituição, era importante que nós educadores também conhecêssemos as escolas e localidades. Promover o deslocamento e conhecer a ‘casa’ do professor constitui uma excelente oportunidade para estreitar os laços e fortalecer as possibilidades de diálogo. Nesse segundo encontro, o dia possui três momentos principais: Primeiro Momento – Retomada: Os temas e roteiros elaborados no encontro anterior são retomados, valendo-se de uma análise coletiva 66 Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea Janaina Melo das palavras-chave, dos trajetos desenhados sobre os mapas e dos conjuntos de imagens gerados pelos professores. Segundo Momento – Investigação: Baseando-se na análise do material construído durante o primeiro encontro, inicia-se uma discussão sobre a importância da realização de atividades de pré-visita com os alunos. Nesse momento, os professores elaboram roteiros para as visitas, com base nas experiências vivenciadas na cidade, no museu, na escola e na sala de aula. Terceiro Momento – Proposição: São conduzidas dinâmicas para pensar na elaboração de atividades que podem gerar resultados, tanto durante a visita dos alunos, quanto em desdobramentos futuros no ambiente escolar. Após o programa de formação, iniciam-se as visitas orientadas com os alunos que, acompanhados pelos professores, realizam a visita como parte de pesquisas já em andamento na escola, como espaço para consulta e coleta de informações, como ‘laboratório’ de experimentação de 67 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 práticas educativas já previamente vivenciadas na sala de aula, frutos das escolas coletivas e da multiplicidade de acessos. A última etapa do programa consiste em acompanhar as atividades de desdobramento das visitas e o programa de capacitação. Nessa etapa, os educadores vão até as escolas para acompanhar atividades realizadas pelos professores com os alunos. Nessas visitas, realizam entrevistas com os mestres, produzem registros fotográficos e participam de feiras e outros eventos culturais desenvolvidos pelas escolas. Se não há um único ponto de partida, também não existe apenas um ponto de chegada. O que percebemos nesse programa de mediação foi exatamente a oportunidade de instaurar um lugar de continuada transformação da relação existente entre arte e educação. Com a metodologia utilizada no programa, percebemos que ampliamos, na verdade, o nosso acesso, como educadores de uma instituição museológica, a estratégias e ações educativas extremamente ricas, desenvolvidas 68 Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea Janaina Melo por professores em escolas públicas urbanas e rurais. Aproximando o museu da escola, criamos um espaço onde aprendemos estratégias, proposições e ações inovadoras no trabalho com o acervo. Descobrimos, com as experiências desenvolvidas pelos professores nas escolas, como é possível se aproximar de múltiplas maneiras da arte contemporânea, não através da passividade, mas na atividade em sua máxima potência. Experimentar leva a conhecer. Conhecer traz a possibilidade de re-inventar e transformar. Penso que uma experiência ativa e participativa é o que permite desenvolver na educação novas formas de ver e pensar o mundo. Deslocar um objeto, intervir num espaço e promover a participação são questões chaves da pesquisa realizada nos programas educativos desenvolvidos pelo Instituto Inhotim. Convidar o público para propor questões e, através de múltiplas ferramentas, chegar a respostas que na verdade se anunciam como novas perguntas. O que interessa na mediação não é a resposta, e 69 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 sim a possibilidade de, através do contato com a arte, poder reformular sempre as questões iniciais. Talvez a pergunta permaneça sem resposta. Mas é bom que seja assim. 70 Encontro, deslocamento, processo, experiência em mediação de arte contemporânea Janaina Melo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Dewey, John - A Arte como Experiência, in Os Pensadores. São Paulo. Abril. 1974 Instituto Inhotim. Site: http://www.inhotim.org. br/ 71 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero Artistas – Um certo perfil A rtistas visuais levam o espectador a miragens poéticas. A arte é produção simbólica, movida pela necessidade interna de buscar sentimentos na liberdade da criação. Criar é organizar o caos, cria-se a partir do nada, portanto, criação. A finalidade da arte está nela própria. O criador vive o experimentar, buscando focos que estabeleçam rumos e estejam inseridos no cotidiano, no registro das ideações, nas capacidades de interagir e na participação coletiva. São necessários discernimentos, a busca da sociabilidade no encontro da arte com o outro, numa troca entre o fazer e o perceptivo, no redefinir das imagens sígnicas e figuras que acendam lembranças remotas. Um jogo sensível entre linguagens. A lógica e a emoção são coisas distintas, mas podem perfeitamente unidas, como se deve, fluir para um produto chamado arte. Somações de vivências, colcha de retalhos da memória, onde se constrói essência. Caminhos simultâneos, distintos, similares, podem fazer parte do 75 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 ideário de qualquer criador. Integrações entre linguagens visuais e verbalizadas aprimoram o produto. Quase todos os artistas, desde os primórdios da História da Arte, escreveram justificando seus trabalhos: Leonardo da Vinci, Paul Cézanne, Francisco Goya, Henri Matisse, Ives Klein, Joaquín Torres-García, Jesús Soto, Piet Mondrian, André Lhote, Auguste Herbin, Marcel Duchamp, Dubuffet, Gabo, Pane, Nitsch, Fontana, Pollock, Allan Kaprow, De Chirico, Ensor, Paul Klee, Malevitch, entre tantos. Também grupos, como De Stijl, Bauhaus, Cobra, Fluxus, Nobis, Rex. Os impressionistas muito teorizavam e cumpriam suas ideias. No Brasil, Lygia Pape, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Ferreira Gullar, Israel Pedrosa, Rubem Valentim, Cildo Meireles, Amélia Toledo, Marcos Coelho Benjamim, Edgard de Souza e Willys de Castro. Uns preferem o silêncio, como Alfredo Volpi, outros a extravagância e o escândalo, como Demien Hirst. Quem acerta mais? Quem é mais alma? Teóricos ou apenas de ação, ou os dois, artistas 76 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero valem sempre por inovarem, cuidarem de estranhamentos inventivos, de outro lugar da memória. Evocações que se atualizam no ato inventor. As grandes teorias da arte mudaram o mundo, as grandes ações também. Juntos, criaram um repertório que engrandece e dignifica a raça humana. O trabalho do artista O artista é um trabalhador como outro qualquer. Apenas lida com um produto sensível. Nem melhor, nem pior que outros profissionais. O que lhe dá importância é o produto final, o trabalho concluído e seu poder causador. Arte é invenção de linguagem. Tempo e aprendizagem levam à criação de um idioleto, códigos específicos de um artista criador. Cada artista é refém do seu fazer. Marca autoral, grafia e pensar. O artista é um ser humano que transmuta seu fazer em manobras da visão. Transfigurar, converter é sua labuta, tarefa, ação, até o encontro com sua fala pessoal, iconografia. Há um longo processo de descobertas, de experimentações, 77 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 ensaio e erro, que requer perseverança, credo e obstinação. Tudo é trabalhoso. Coerência, lucidez, paciência e interlocutores ajudam no caminho. O senso apurado da observação transita, remove-se no conhecer do mundo interior, na vida instintiva profunda. A intuição, um tipo de inteligência, não é tudo, mas imprescindível no processo gerador. O que é expresso foi impresso anteriormente em nossa estrutura psíquica. O artista é um operário, articulando forma, linha e cor, buscando resolver equações visuais. O estoque de ideações resulta num produto final, que não mais pertence ao obreiro e sim ao público, por mais restrito que seja. O trabalho finalizado, elo de ligação entre artista e o outro, faz a aliança, articulando possibilidades. Ao artista cabe coerência estilística, essência, atualizações, crença, trabalho continuado, cuidado com os materiais, tão banalizados hoje em nome da ‘contemporaneidade’ e invencionices que nem ele mesmo sabe conceituar. A liberdade da criação é irretocável, não se concebe um artista 78 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero aprisionado a técnicas, escolas ou possibilidades expressivas. Mas tudo deve ser justificável, na lógica, na proposição. Nada é por acaso. O inconsciente é soberano. Tudo está imerso em nossas vivências. O artista também tem a função de educador, não só de produtor de arte. É um engano, má vontade, superstição ou falta de informação achar que desenho e pintura não são necessários aos artistas que se intitulam contemporâneos. A natureza é feita de linhas e cores. Uma paisagem real, bolo de confeitaria, pastel de camarão, garrafa de cidra, viaduto, jardim, avenidas, carros, pranchas, instalações e o que habita o universo real. Tudo depende de como são transfigurados nos espaços. O que são os meios ilimitados que comportam as extensões limitadas? As silhuetas, os jogos de sombra e luz, as intervenções, o corpo humano e suas vísceras? Desenho e cor. Em resumo, desenho é linha e pintura é cor. Negar essas duas realidades é negar a releitura do mundo real, da fantasia, do fetiche, das ambiguidades, das fábulas, das estruturas de narrativas visuais. Qualquer trabalho artístico é a soma de 79 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 fragmentações. Trazem em seu bojo vivências atávicas. A capacidade de criar linguagem em metamorfoses é que define a obra do artista. Artes visuais As artes visuais têm hoje ampla abrangência. Na contemporaneidade, as fronteiras são fluidas e têm como base as manifestações que lidam com a visão. São consideradas artes visuais a pintura, desenho, escultura, gravura, fotografia, cinema, instalações, arquitetura, web design, identidade visual, decoração, paisagismo, vídeo, design, produção gráfica, arte digital, holografia, sinalização, gestalt, arte educação, comunicação visual e moda. Por tantas implicações e assuntos intermináveis e de longo percurso de estudos, vamos ressaltar apenas alguns aspectos ligados às artes visuais: mercado, patrimônio intangível, museus, crítica de arte e moda. É certo que outros autores comentariam e valorizariam outros aspectos. Mas dentro do 80 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero conceito de democracia, que encontra registro na Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, está disposto: constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil constituir uma sociedade livre, justa e solidária. Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. 81 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 A nobreza de nossa constituição nos socorre dos intransigentes e professores de Deus. Mercado Mercado é uma série de transações de compra e venda de bens ou serviços. Intenção entre compradores e vendedores, conforme a lei da oferta e da procura, seja em âmbito nacional ou internacional. Quando o mercado se torna grande, com grandes possibilidades de oferta, os bens tendem a ficar mais baratos. Existem vários tipos de mercado, suas especificidades, temporalidades e épocas de cada ano. Registrando de forma simplória, o mercado de abadás se dá no período de Carnaval, ovos da Páscoa nos meses de março e abril. O mercado de arte é subjetivo, heterogêneo e não se sustenta na visão economicista. As variáveis às vezes chegam aos extremos, tornando-se quase uma psicose. O tempo em seu bojo revelará suas verdades e mentiras. O risco é elevado e cabe aos vendedores e compradores a lisura de intenções. Tudo cabe no mercado de arte em termos do inusitado. 82 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero Pode-se ganhar e perder milhões. O acerto e o erro se assemelham, a euforia e o desgosto são próximos. Deve-se pensar em arte como paixão, como ‘vício’, quando existem ganhos, perdas e consequências. Não há futurologia no mercado de arte. Quem vende caro hoje, poderá não vender no futuro. Popularidade não é qualidade. Avaliações de obras de arte não têm caráter matemático, mas alguns sinais e sintomas, como trajetória do artista, conceito de obra, artista morto, produção limitada, tempo de trabalho, criadores de escolas, movimentos, grupos que registraram historicidade, premiações, fortuna crítica, técnica, obras assinadas, fases em que o artista foi mais inventivo, dimensões, conservação da obra e procedência. Alguns especialistas sugerem que o mercado de arte seja dividido em quatro grupos diferenciados: os clássicos, os consagrados, os emergentes e os iniciados. Os clássicos buscam se definir como inquestionáveis, os que 83 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 mudaram a História da Arte, como Vermeer, Rubens, Murillo, Paolo Uccello, Velásquez, Goya, Raffaello e também Picasso, Matisse, Cézanne, Toulouse-Lautrec, Ensor e Klimt, entre tantos. Aí cabe a pergunta: por que Picasso, Van Gogh e Cézanne são extremamente mais caros que Velásquez, Delacroix e Rubens? Por que Picasso, que teve uma produção imensa, é mais caro que Vermeer, um gênio de oferta pequena? Por que Van Gogh é mais caro que Paolo Uccello? A esfera dos clássicos não se refere à escola e sim à historicidade. Hoje, os impressionistas alcançam preços inimagináveis. O mercado dos consagrados, artistas de carreira internacional, com pequeno risco de erro, ainda com possibilidades palpáveis de aquisição, tem entre seus representantes Joaquín TorresGarcía, Maria Helena Vieira da Silva, Júlio Pomar, Pollock, De Kooning, Franz Kline, Rothko, Newman, Yves Klein e Lucio Fontana, entre outros. Eles trazem, mesmo assim, surpresas, e podem ficar ‘engarrafados’ em grandes leilões de casas conceituadas em Nova Iorque, Londres e Paris. Tempo de trabalho ativo é derrubado 84 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero por valores e talentos como Keith Haring e JeanMichel Basquiat, que produziram por apenas 10 anos e morreram muito jovens. São mitos. Como justificar essas situações? O mercado dos emergentes é aquele para quem quer começar uma coleção. São artistas que apontam para uma direção na seriedade de propostas, mas nada garante o risco. Bom observar seus movimentos e avaliações críticas. Vale pensar em Marepe, Juliana Teodoro, Jonathas de Andrade, Ana Galhardo e Anya Zholud. Enfim, há os iniciados que vivem nas ruas e feiras livres, cuja sucessão dos anos se incumbirá de colocá-los no lugar que possa merecer. Existem milhares de artistas nessa situação. Comprar arte, colecionar, é risco e paixão. No Brasil, o mercado de arte, tem sido ingrato com grandes artistas de notória competência e criatividade que hoje não atingem o preço que merecem e o valor artístico intrínseco ao seu fazer, como Abelardo Zaluar, Paulo Roberto Leal, Genaro de Carvalho, Antonio Maia, Dionísio Del 85 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Santo, Aldemir Martins, Rubem Valentim, Maria do Carmo Secco, Athos Bulcão e Sacilotto. Todas as injustiças um dia terão seu resgate, o triunfo dos fatos e o reconhecimento. No mercado de arte cabem profissionais de muitas áreas de atuação, que no percurso deste texto foram ou serão citados. Procuraremos salientar alguns por puro gosto pessoal. Assim, pequenos enfoques serão dados a museólogos, museus, críticos de arte, patrimônio cultural imaterial e, ainda, à moda, por ser pouco estudada e crível. Museólogo O museólogo é o profissional que cuida da ciência da museologia. Entre suas tarefas estão a administração, manutenção, organização e acondicionamento das obras de arte, peças históricas e exposições, que podem ser fixas ou temporárias. É um pesquisador que identifica, organiza, cuida da preservação e classificação de peças de valor artístico e histórico. Planeja, 86 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero organiza exposições, busca intercâmbios, parceiros, sempre tendo o cuidado educativo e pensando nas possibilidades de atrair público, formar multiplicadores, monitores e pessoal de apoio. O trabalho de um museólogo é um exercício de paciência, cautela, senso observante, capacidade de acumulação, análise, pensamento lógico, intuitivo, e um certo refinamento para cuidar da fragilidade dos objetos artísticos. Ordenação e clareza são indispensáveis. O curso tem duração de quatro anos, podendo se estender em cursos de pós-graduação. Os temas mais estudados são história da arte, história geral e do Brasil, arqueologia, antropologia, estética, noções de conservação e restauração. O mercado de trabalho para a profissão, que foi regulamentada em 1985, é amplo: administração de museus, centros culturais, centros de pesquisas, galerias, aquisição de obras de arte. É importante não esquecer nunca do trabalho educativo. 87 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Museus Como definição acadêmica, museus são organizações culturais que se prestam à conservação de objetos que são referências de atitudes artísticas, fenômenos da natureza, descobertas científicas e intelectuais da humanidade. O Conselho Internacional de Museus, o ICOM, na Assembleia Geral de Copenhagen, em 1976, definia: Museu é uma instituição permanente sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento e aberto ao público, que adquire, conserva, pesquisa e exibe para finalidades do estudo, da educação e da apreciação, evidência material dos povos e seu ambiente. (ICON, estatuto, artigo2, paragrafo1. 1974) Assim podem-se incluir zoológicos, aquários, jardins botânicos, planetários e parques nacionais. Existem várias categorias de museus: artes visuais, arqueologia, antropologia, etnologia, história cultural, tecnologia, história natural, industriais, agricultura, geologia e museus ao ar livre. O primeiro museu ao ar livre data de 1881, 88 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero o King Oscar Ll’s, em Oslo, e o segundo em 1891, o Skanser, em Estocolmo. O principal objetivo de um museu é exercer a comunicabilidade entre acervo e atuações paralelas com o grande público, buscando aproximações entre os indivíduos e a arte, humanizando condutas e compreendendo as mudanças que se misturam na existência e nas pessoas. Convém aos museus um tempo trinitário: passado, aqui-e-agora e as possibilidades do futuro. O futuro é formado por metas, reflexões pertinentes sobre possibilidades nas quais a comunidade e criadores se aproximem de suas missões, especialmente da construção de identidade e cultura. Os museus às vezes assustam o público, que por falta de informação não se aproxima e, pelo contrário, se retrai por medo de posturas imperativas, ou por não se sentir capaz de entender a arte. O povo gosta de cultura, mas não gosta de se sentir excluído. Os museus não buscam, como deveriam, o grande público. O status de um museu é sua capacidade de aglutinar a comunidade em seus 89 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 espaços. O esforço para criação de um público cativo e interessado passa por atitudes simples, cativantes, na humanidade das intenções, e não na arrogante postura de que cultura é privilégio para poucos. A atualidade firma a cultura como um grande ideal, dissipando diferenças entre os povos, ganhando outra realidade, mais igualitária e humana, no intercâmbio das mais diversas estéticas e encontros. No Brasil, a divulgação do que acontece em cada museu é pífia e, geralmente, tão distanciada que não aglutina. Um museu é um aparelho que deve ter dinamismo, quando se discute arte em processos de debates, seminários, palestras, congressos, exposições de acervos e temporárias, sem preconceito das formas de expressão. A arquiteta italiana Lina Bo Bardi, naturalizada brasileira, tinha um conceito inovador, quando em 1963 criou no Museu de Arte Popular no Solar do Unhão, em Salvador-BA, sua notável Exposição Nordeste. Mais tarde, em São Paulo, no ano de 1969, A Mão do Povo Brasileiro, no MASP, dissipava a hipocrisia vigente. 90 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero Nosso espírito nativo é história. O preconceito mais vem da desinformação que do conceito. O conceito é pensado, cerebrotônico, dentro de dados de realidade. Um museu, especialmente o de artes plásticas, necessita de boas bibliotecas, museólogos, restauradores, pesquisadores, conselho curatorial, setor de documentações, arquitetos, montadores, equipes de iluminotecnia, pessoal de manutenção e projeto de aquisições de novas obras, que atualizam e provocam novos interesses. Convém disponibilidade on-line na internet da programação. Quem vai a qualquer cidade quer conhecer museus, mas é muito mais importante que as pessoas da cidade conheçam seus museus. Museu é centro de referência e memória e tem seu lugar na cultura, sua profunda influência na memória individual e coletiva, na permanência e proteção do patrimônio material e intangível. Museu tem diversas funções e o novo não é o ‘excêntrico novidadeiro’ para formar opiniões distorcidas de contemporaneidade. 91 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Se “todo o poder emana do povo”, como reza nossa constituição, o alvo dos museus deveria ser o povo. O crítico e a crítica de arte As primeiras manifestações escritas sobre obras de arte e artistas vêm da Grécia Antiga, com Duride Di Samo, no século IV A.C., que passou parte de sua vida escrevendo sobre a arte de seu tempo. A crítica de arte surgiu como argumentação, pensar ordenado e reflexível, no século XVIII, no fervor de manifestações artísticas, mudanças de comportamento, mercado e aumento da importância da imprensa escrita. No Brasil, o primeiro crítico de arte foi Gonzaga Duque (1863-1911), nascido no Rio de Janeiro. Antes, os escritos sobre arte eram apenas descrições, relatos e comentários de acontecimentos artísticos. Gonzaga Duque deu ao Brasil, de forma inovadora, textos reflexivos e questionadores sobre a arte e sua utilidade. Seu primeiro livro, publicado em 1888, leva o título A Arte Brasileira e é uma referência válida até os 92 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero nossos dias, objeto de consultas e estudos. Alguns historiadores e pesquisadores apontam o pintor Manuel de Araújo Porto Alegre (18061879) como pioneiro, surgido na Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, fundada em 1826. Até que se encerrem as divergências, os dois foram desbravadores. Como profissão específica no Brasil, a atividade se deu com a criação da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), em 1949, ligada à Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), fundada no ano anterior em Paris, na França, como organização não-governamental (ONG). Foi uma das primeiras atividades da Unesco, criada em 1945. O crítico de arte passou a ser um especialista, com associação de classe, respeitando estatutos, buscando objetivos para debates, seminários, congressos, discutindo o papel da ABCA no cenário da cultura nacional e internacional. Em 2009, a ABCA completou 60 anos de formação e tem 155 associados. É óbvio que um bom crítico de arte não necessita de entidades 93 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 para se filiar, nem de estudos acadêmicos. Precisa de informações atualizadas. As associações de classe se baseiam em questões de respeito ao livre pensar, dignidade de sobrevivência, reconhecimento do trabalho e direitos. O trabalho crítico está no campo da produção de conhecimento, convivência e troca de saberes entre profissionais. A ABCA, através de seus associados, foi responsável pela fundação de museus e a criação da mais importante mostra brasileira, a Bienal Internacional de São Paulo. Entre críticos históricos brasileiros, podemos citar Mário Pedrosa, Sérgio Milliet, Mário Barata, Antonio Bento e Mário de Andrade, que deixaram um legado extraordinário, preservando nossa herança cultural. Eles foram as células iniciais da crítica moderna no país. A crítica de arte não é uma ciência. Tem seus sinais e sintomas, que dá legitimação, espaço e método para o exercício do trabalho e análise da produção do seu tempo. A ciência busca trabalhar com verdades absolutas. No século passado, Einstein e sua célebre Teoria da Relatividade, 94 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero junto com a física quântica, demonstraram que não existem verdades absolutas. O ser humano é falível, daí sua humanidade. A dialética abre espaço para a análise dos opostos. Assim, sujeito e objeto, crítico e arte, confluem para possibilidades da análise crítica. A crítica de arte já começa com uma contradição: traduzir para o verbal ou o escrito o que é expressão visual. Aí surge a possibilidade do crítico inventor, de gerar uma nova reflexão para o produto artístico e estabelecer pontes de contato entre a obra realizada e o público. São necessárias análises bem fundamentadas e critérios aos juízos de valor. O juízo de valor vai desde a formação do crítico, suas experiências do olhar, estudos, leituras, convívio com artistas e seus produtos, até o gosto pessoal. Entenda-sequeogostopessoalestásubjetivamente ligado a qualquer crítico de arte, das mais diversas áreas do conhecimento, como literatura, música, cinema, teatro, dança e tantos outros. Cabe aí a honestidade de intenções, a seriedade e o zelo 95 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 pelo nome. Perder a credibilidade é uma pesada desonra, que custa ao indivíduo a repulsa social e histórica. Aspectos como interesses dirigidos, pessoais, mercadológicos e político-partidários são abomináveis. A justeza do crítico e sua verdade devem dirigi-lo a reflexões e análises na justeza do possível. Ao crítico pragmático cabem curadorias, participação em júris de seleção e premiação, congressos, seminários, debates, formação de acervos particulares ou de instituições, interlocução com artistas, acompanhamento de carreiras, pesquisas e organização de contextos. O crítico de arte avaliza a aproximação entre a arte, o artista e o público. Contribui com a história da arte, documentando seu tempo. A crítica de arte contemporânea é formulada entre multiplicidades e interdisciplinaridades. A filosofia, sociologia, antropologia, historiografia, pedagogia, psicologia e a literatura contribuem com a interpretação da arte. A crítica de arte, em sua maior extensão, se dá pela palavra enquanto ação e nos aproxima do individual e 96 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero do coletivo. Abrange também o trabalho de fixar em catálogos, livros, revistas e jornais, envolver o público num ritual de ideações e visibilidades, buscando a formação de um pensar reflexivo, de um olhar diferenciado para o sensível. Qualquer obra de arte é sempre aberta. José Roberto Teixeira Leite coloca a crítica de arte como um ramo da literatura. Exemplos lapidares são os textos de Walmir Ayala e Jayme Maurício. O texto crítico finalizado pode ser obra de arte autônoma. O trabalho do crítico é buscar estratégias de comunicabilidade, apoiado nos fundamentos das ciências humanas. É despertar sentimentos e ativar os órgãos dos sentidos. Patrimônio Intangível O patrimônio cultural imaterial da humanidade busca o registro das manifestações culturais intangíveis dos diferentes povos. Há muito é estudado por antropólogos, sociólogos e historiadores. A partir de 2004, a UNESCO 97 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 buscou incentivar a necessidade do registro e o aprofundamento de questões para o levantamento de vivências coletivas e da vida psicossocial de indivíduos. Na vastidão continental do nosso país, encontramos bens imateriais que nos dão a noção de pertencimento e pátria, como o samba de roda, cantigas folclóricas, frevo, maracatu, Folia de Reis, bumba-meu-boi, Carnaval, congados, vaquejadas e outros. O Nordeste brasileiro, tão marginalizado pela chamada ‘cultura erudita’, é onde palpita a identidade nacional com maior pujança. Dessa maneira, tivemos a ‘sorte’ de não sermos tragados de forma tão brutal pela globalização, pela massificação dos costumes. Resistimos. A nossa alma nativa, apesar das já descaracterizações, mantém tradições que emanam do povo, como o São João, São Pedro, festas de largo, capoeira, maculelê, presépio, samba de roda do Recôncavo Baiano, os estandartes e monogramas dos santos de devoção, as manifestações afro-brasileiras, a 98 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero linguagem peculiar dos diferentes estados, mercados, feiras livres, santuários, viola-decocho, ofício das baianas de acarajé, Círio de Nossa Senhora de Nazaré, Feira de Caruaru, tambor de crioula do Maranhão, a Feira de São Joaquim, em Salvador, entre tantas. Um país é sua história, sua essência e tradições. O regionalismo vem de características predominantes de uma extensão geográfica com suas manifestações culturais bem definidas, valorizando os costumes do povo, sua realidade endógena. A cultura da oralidade, mesmo com infinitas versões, deve ser estudada, confrontada, discutida e preservada. A ideia da Aldeia Global, preconizada por Marchal McLuhan, é hoje uma realidade para o bem e para o mal, tendo como principal característica a presença de marcas mundiais. Na cultura, é quase um suicídio de pessoalidade, individualidade e nacionalismo. Nada contra o 99 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 progresso, a integração de povos, a interligação do mundo, dos meios de comunicação, todos originados no final do século XX. Cultura é o nosso acervo intelectual, espiritual, ideológico no sentido de alma, que caracteriza grupos, nações e civilizações. Radicalizar é estar na contramão do mundo contemporâneo, mas renunciar identidade é suicídio cultural. Em artes visuais, a grande resistência, buscando fixar o patrimônio cultural imaterial, está entre os artistas primitivos, ingênuos ou naïfs, que em sua ‘inocência’ transportam para o campo visual nossas manifestações populares, nos aproximando de nossos valores. Esses artistas nos devolvem nossa realidade atávica, nosso pertencimento e memória. Os naïfs são vistos com preconceito pela ‘cultura culta’, quando na verdade o que importa é o produto final, o resultado, a invenção de linguagem. Não importam os suportes, as técnicas sofisticadas, se o 100 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero produto é cópia banal, clichê do clichê, com ‘bulas’ delirantes. Aceitar as diversidades e conviver com o diferente é um exercício democrático. Entre os artistas primitivos, geralmente de grande receptividade popular, os que mais se destacaram traduzindo nosso patrimônio cultural imaterial foram Miriam Inês da Silva, Gerson de Souza, Heitor dos Prazeres, José Antonio da Silva, Maria Auxiliadora, Waldomiro de Deus e Rosina Becker do Valle. Esses são artistas, sem os desvios que se tenta impor à criatividade e singularidade popular. Entre os artistas eruditos que também se valeram de bens culturais intangíveis encontramos Rubem Valentim, Alfredo Volpi, Lula Cardoso Aires, Miguel dos Santos, Wellington Virgolino, Ronaldo Rego, Guignard, Aloísio Zaluar, Sante Scaldaferri, Fulvio Pennacchi, Mario Cravo Neto, Aldemir Martins, Emmanuel Nassar, Di Cavalcanti, Gilvan Samico, Tarsila do Amaral, Lívio Abramo e Humberto Espíndola. 101 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Preservar bens culturais e transmiti-lo às novas gerações é referência para a preservação da essência de um povo, de uma nação. Moda como arte Os estudos contemporâneos das artes visuais, que na atualidade têm vasto alcance, consideram a moda como fato concreto, para espanto de alguns e absorção reflexiva de outros. A moda é arte quando há descobertas de sistemas de códigos, linguagem, transfigurações e seus resultados interferem como fenômeno criativo. Há muito, os grandes museus do mundo realizam exposições de estilistas, revelando o ato criador. A roupa é o aspecto cenográfico do corpo, que se transforma em suporte. O corpo é suporte para invenções, que expressam um pensamento, um estilo, lugares e épocas. Os estilistas resolvem problemas de silhueta, caimento, textura, harmonia e cor, buscando transcender o artesanal e chegar a equações 102 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero artísticas de alto padrão. Importantes intelectuais, historiadores e antropólogos dedicaram parte de suas vidas a estudar a moda. Críticos de arte e curadores têm contribuído com ensaios e exposições de grandes estilistas. Hoje, os grandes centros de desenho de roupas estão entre Nova Iorque, Milão e Paris. Foi na alta costura que mais se desenvolveu o conceito de moda/arte. A moda é um elemento histórico que tomou corpo no século XV e se manteve até a nossa idade contemporânea. A profissionalização de forma sistêmica veio a partir dos anos 20, com quatro pilares pioneiros. O francês Jacques Doucet (18531929) escandalizou o mundo ao subir as saias das mulheres até tornar visíveis as ligas rendadas. Fundou em Paris uma das primeiras casas de alta costura, tornando-se famoso pela ousadia das cores e perfeito acabamento das peças que criava. Já o francês Paul Poiret (1879-1944) abriu sua casa em 1903, libertando a mulher dos espartilhos e convencendo a sociedade com uma proposta 103 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 mais solta e leve para o vestuário. Foi o inventor da técnica de moulage e draping. Criou as calças sherazade, túnicas-abajur e o sutiã. O também francês Jean Patou (1880-1936) abriu sua loja, a Maison Parry, em 1912, e foi o inventor da malha de banho e roupas para esportistas. Subiu as saias, popularizou o ‘casaquinho’ e desenhou gravatas. Coco Chanel (1883-1971) foi uma mulher inovadora. Chanel inventou as primeiras calças femininas, roupas para praia e montaria. Ela introduziu na alta costura o jérsei de malha, tecidos xadrez, calças boca de sino, jaquetas curtas, jóias falsas, colares de correntes e de pérolas com várias voltas, bolsas com alças de correntes, o tailleur e saias simples. Em 1921, criou o perfume Chanel nº 5. Nascia, em 1926, o ‘pretinho básico’, que virou lenda em todo o mundo. Em 1950, Paris tinha 105 casas de alta costura. Entre os grandes criadores de linguagem, destacam-se: 104 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero Nina Ricci – extremante requintada, tinha nas cores seu ponto alto. Trabalhou com Andy Warhol, em uma relação de troca saudável. Cristóbal Balenciaga – destacou-se com vestidos de cintura alta e casacos cortados como quimono. Suas criações das décadas de 50 e 60 são consideradas obras-primas. Christian Dior – tinha extrema habilidade em desenho. Criou o conceito new look, que revolucionou a arte de vestir. Hurbert Givenchy – criou a blusa Bettina e tem seu nome ligado ao cinema. Vestiu inúmeras atrizes, entre elas Audrey Hepburn, que veio a ser sua musa inspiradora em filmes como Bonequinha de Luxo, Cinderela em Paris e Sabrina. Valentino Garavani – um dos mais corretos criadores do planeta. Sua grife tem cortes diferenciados e suas coleções feminina e masculina ‘ready-to-wear’ o tornaram conhecido internacionalmente. 105 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Yves Saint Laurent – inventou o smoking feminino. Foi o primeiro estilista a lançar manequins negros. Em 1983, foi homenageado com a exposição de seu trabalho no Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque. Emanuel Ungaro – poucos tiveram a ousadia do desenho como ele. Não improvisava e sua arte está ligada à memória do barroco. A moda é arte e técnica apurada de interação, influências de atitudes que registram transformações da sociedade. 106 O artista como trabalhador: mercado e profissionalismo nas artes visuais César Romero REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANTES, Antônio Augusto. O que é Cultura Popular. Editora Brasilense, 1988. AYALA, Walmir. Dicionário de Pintores Brasileiros. Spala Editora, 1986. CASCUDO, Luis da Câmara. Civilização e Cultura. 2º Volume. Editora Civilização e Cultura, 1973. _______________________. Dicionário do Folclore Brasileiro. Instituto Nacional do Livro, 3ª edição, 1972. DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2002. DUMUR, Guy (org.) e outros. Histoire des Spectales. Paris: Encyclopédie de la Pléiade/Gallimard, 1965. DURAND, Gilbert. Les Structures Anthropologiques de l’Imaginaire. Paris: Bordas, 1969. 107 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 FROTA, Lélia Coelho. Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro. 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KLINTOWITZ, Jacob. César Romero – a Escritura do Brasil. São Paulo: Edição do Autor, 2001. LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário Crítico da Pintura Brasileira. Editora Artelivre, 1988. PEDROSA, Israel. O Universo da Cor. Rio de Janeiro: Senac, 2003. 109 Escrita ao calor da hora Cauê Alves 23 Escrita ao calor da hora Cauê Alves O bviamente, os curadores, além de uma formação sólida e de conhecimentos sobre história e teoria da arte, precisam gostar de arte. Nada melhor do que frequentar constantemente mostras, se dedicar a pensálas e elaborar seus pensamentos em textos. O contato direto com os artistas é fundamental para o desenvolvimento do pensamento sobre arte contemporânea. O diálogo, a proximidade e cumplicidade com os artistas podem enriquecer o processo de aprendizado. Desde que a crítica se tornou rarefeita nos grandes jornais diários, a Possui Bacharelado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2000), Licenciatura (2000) e Mestrado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2004). Tem experiência em História da Arte, Crítica, Curadoria, Teoria da Arte e Estética. É doutorando em estética e teoria da arte pela FFLCH-USP, membro do Corpo Editorial da Revista Número e curador do Clube de Gravura do Museu de Arte Moderna de São Paulo. É professor do curso Arte: história, crítica e curadoria, da PUC-SP; docente da Fundação Armando Alvares Penteado, FAAP, do curso de arquitetura e urbanismo da Escola da Cidade e do curso de artes visuais do Centro Universitário Belas Artes. Foi membro do Conselho Consultivo de Artes do MAM-SP (2005-2007) e realizou, entre outras curadorias, MAM[na]OCA: arte brasileira do acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo (2006-2007), a mostra Quase líquido, no Itaú Cultural (2008) e Da Estrutura ao Tempo: Hélio Oiticica, no Instituto de Arte Contemporânea (2009-2010). 23 113 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 reflexão sobre a arte parece ter se desenvolvido prioritariamente em catálogos e folhetos de mostras que também têm a função de apresentar o trabalho a um público não necessariamente familiarizado com arte contemporânea. A escrita sobre arte, nesses casos, em vez de partir de um distanciamento pleno em relação ao seu objeto, costuma surgir de uma adesão prévia ao trabalho de arte. Em vez de escrever sobre o trabalho de arte, escreve-se com o trabalho. É no interior dele que o texto retira seus próprios argumentos e sentidos. Nas próximas páginas o leitor irá encontrar dez pequenos textos que foram escritos nos últimos anos, entre 2004 e 2010, sobre Ana Holk, André Komatsu, Cinthia Marcelle, Débora Bolsoni, Fernando Vilela, Lia Chaia, Maurício Ianês, Rodrigo Matheus, Sara Ramo e Tony Camargo. Todos eles surgiram de um contato direto com os respectivos artistas e trabalhos. Se por um lado os textos são frutos de encomendas institucionais, seja de galerias comerciais paulistanas (Galeria Vermelho, Galeria 114 Escrita ao calor da hora Cauê Alves Virgílio ou Casa Triângulo) ou de instituições públicas (Paço das Artes e Centro Cultural São Paulo), por outro foram fundamentais para o desenvolvimento de uma escrita sobre arte e da formação de seu autor. A sua publicação aqui, entretanto, não tem qualquer pretensão de servir como exemplo para futuros curadores, ao contrário, eles são o testemunho da própria dificuldade dessa escrita institucional, uma vez que muitos deles são frutos de prospecções. Para que fossem divulgados no dia de abertura das mostras, alguns deles foram escritos antes mesmo de os trabalhos estarem acabados. Isso não justifica as imprecisões que inevitavelmente eles acabam trazendo, mas revela sua urgência, uma vez que foram feitos ao calor da hora e sem qualquer distanciamento temporal ou espacial. Débora Bolsoni: mímesis A partir de mínimas alterações em objetos cotidianos, utilitários e usados comercialmente para otimizar o tempo – carrinhos de mão, bobinas de papel, galões e filtros d’água, ou ainda lousas como a que vemos em bares com a 115 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 lista dos pratos do dia –, Débora Bolsoni investe seu trabalho de uma multiplicidade de sentidos. Seja pela simples mudança dos pontos de apoio ou pela parcial subversão de seu uso, sem que se tornem inúteis, as peças têm seu estatuto modificado. Não se trata apenas de uma blague, de mais um ready-made ou tampouco de antiarte. Há algo de francamente construtivo e maturado, além de geométrico, em sua obra. O exemplo mais evidente é a apresentação da triangulação que, a despeito de analogias sacras, organiza tabuletas retangulares com círculos circunscritos desenhados a giz. Em vez de apresentação, talvez representação - termo bombardeado por boa parte da arte do século XX - seja mais apropriado para caracterizar seus trabalhos. Cada peça poderia ser compreendida como um personagem atuando em cena, sem que, no entanto o aspecto teatral se sobressaia. Não há ostentação ou eloquência nesse teatro de formas simples e sutis, mesmo que o contexto de um salão real o exija. Entretanto, num olhar um pouco mais atento, a encenação logo se arranja: um 116 Escrita ao calor da hora Cauê Alves bobo da corte estende um tapete vermelho, ou melhor, rosado de papel de embrulho, para o rei que tem sua autoridade reforçada por dois sentinelas eretos em serviço. Mas nesse teatro sem atores, as peças, além de personagens, são como objetos cênicos que adquirem valor e função diversos de acordo com sua posição e uso. Não é raro em seu trabalho um mesmo elemento aparecer em contextos diferentes, o que acaba transformando sua aparência, embora ele mesmo não seja modificado em aspecto algum. Na porta de uma mercearia, as tabuletas são tabuletas, mas podem facilmente tornar-se objetos quase ordinários espelhados na antessala de um gabinete real, alvos para serem mirados, ou personagens plebeus em estado de prontidão. É como se um carrinho de mão disposto pela artista, por exemplo, antes de imitar a antipatia de um rei em particular, seus gestos e expressões faciais, conseguisse ter a potência de guardar as características mais universais do rei, de sua força e de seu trono, concentrando uma 117 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 espécie de essência de sua presença, de seus atributos e de tudo aquilo que lhe é próprio. Isso foi denominado de mímesis na história do pensamento. Essa noção, aspecto fundamental das artes poéticas, inclusive da dança, pintura, escultura, música e teatro, esteve próxima de grande parte de excelentes obras de arte da história. O trabalho de Débora Bolsoni, sem partir de noções ou conceitos prévios, pode muito bem estar entre elas. Cinthia Marcelle: Entre o singular e o universal A operação realizada por Cinthia Marcelle tem como premissa a estrutura do prédio do Centro Cultural São Paulo e a força de sua arquitetura. Trata-se de uma simples recombinação de dezenas de lâmpadas frias que cobrem linearmente o teto do edifício. A artista emenda fios azuis e vermelhos que formam uma espécie de gambiarra e, como em dinamites gigantes, agrupa bastões de luz em feixes. O explosivo luminoso, em vez de sugerir uma ameaça em potencial, aproxima-se da pulsação e da atividade 118 Escrita ao calor da hora Cauê Alves da própria instituição. Não se trata, entretanto, de uma crítica institucional, tampouco de uma simulação de um atentado terrorista. As dinamites que vemos difundindo claridade estão sendo detonadas. Como estamos no campo da arte, o que emana dessas esculturas pode carregar os sentidos figurados da luz. No centro de cada explosivo há um relógio sem divisões no qual um ponteiro em movimento contínuo e circular gira sobre um fundo sem demarcações. É como se o instante da explosão fosse alargado ao máximo até se tornar eterno. Não é possível mensurá-lo ou determinar seu início e fim. Do mesmo modo, não há finalidade para o tempo que transcorre senão o seu próprio movimento. Talvez a explosão que esteja em ação tenha relação com a explosão cósmica, com o big bang que deu origem à criação do universo e cujo movimento ainda não cessou. A série Unus Mundus – e o título é sugestivo – poderia corroborar tal hipótese. De um modo amplo, a série investiga a dimensão do mundo e 119 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 as relações entre acontecimentos únicos e ocorrências múltiplas. Interessa à artista coincidências e simultaneidades. Unus Mundus - Volta ao Mundo, apresentado na mostra coletiva, é um vídeo de uma ação aparentemente incomum: nove Kombis giram alguns minutos em torno de uma praça. Além de o registro de um acontecimento, trata-se de uma situação genérica: quantas Kombis nesse exato instante contornam praças pelo mundo? Quantas já deram ou ainda darão voltas em qualquer rotatória em alguma cidade? É a essa relação incógnita entre o singular e o universal que o trabalho de Cinthia Marcelle remete. Para a mostra individual, a artista apresenta um novo trabalho em vídeo: Unus Mundus Confronto. Enquanto o mundo continua a girar, um pequeno ruído é causado entre malabaristas sobre uma faixa de pedestre e carros afoitos em cruzar o farol. O poder do fogo e a habilidade dos acrobatas, que aos poucos tomam as ruas e criam uma situação inusitada, desafiam a 120 Escrita ao calor da hora Cauê Alves buzina estridente dos motoristas. Um evento ímpar como esse, ao mesmo tempo em que nos permite acionar situações idênticas e paralelas, exige uma reconfiguração de seu entorno e uma nova equação de forças. Essa experiência versa sobre um exemplo não exemplar que concentra acontecimentos semelhantes e díspares, que se repetem todos os dias em nossa vida, que podem ser generalizados, mas que jamais constituem um modelo. Tony Camargo: A unidade do diverso Para o público que já conhece as Planopinturas e os Fotomódulos de Tony Camargo, os desenhos que o artista exibe pela primeira vez em São Paulo podem surpreender. A limpeza formal e a ausência de pincelada, uma vez que as pinturas são feitas com uso de máscaras e compressor, contrastam com o excesso de elementos gráficos dos desenhos e o dado mais artesanal deles. Mesmo que cada uma das séries tenha um caráter próprio e nenhuma dependa da 121 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 outra para se afirmar, o ponto de interseção entre as pinturas e os desenhos parece estar nos Fotomódulos. Com a cor, Tony Camargo estabelece uma íntima relação entre as camadas de pintura e as cenas mais banais fotografadas. Diversos tons são explorados ao mesmo tempo numa superfície lisa pintada e em imagens como as de um balão de ar, uma peça de roupa ou uma placa inventada. Até as palavras se tornam elementos pictóricos. Há total continuidade entre as pinturas e as fotografias, como se uma interpenetrasse a outra, como se as cores das pinturas se reencontrassem consigo mesmas fora da tela, nas fotografias. E como se as cenas fotografadas, no sentido oposto, se dirigissem para o campo da pintura. O corpo do artista, sempre com rosto encoberto, tem papel central nas fotos. É ele quem porta os elementos coloridos que se desdobram nas superfícies pintadas. Os gestos e posições contorcidas de Tony Camargo, o tronco para um lado, a cabeça para outro e os pés cruzados são análogos às posições que seus personagens desenhados assumem. 122 Escrita ao calor da hora Cauê Alves Há neles um desequilíbrio e uma posição um tanto desajeitada. É dessa inabilidade e falta de destreza que surge a expressividade dos desenhos. Algo da posição das dançarinas e dos corpos das colagens da série Jazz de Matisse reaparece nesses trabalhos. Entretanto, as formas de Tony Camargo são mais animalescas. Suas figuras flutuam num espaço imaginário, pleno de cores, e se aproximam de formas infantis. Há nos desenhos contrastes entre cores puras que estão ausentes nas suas fotografias e pinturas. Aqui as linhas são inseparáveis da cor e trazem a espontaneidade de uma técnica que se liberta de seus procedimentos mais cristalizados. No processo desses desenhos, uma figura surge da outra, por isso elas parecem tão encaixadas entre si. A composição é permeada de fitas adesivas de diversas cores que se mesclam com os traços. Formas orgânicas são entrecruzadas por manchas retas e geométricas das fitas industriais. Tudo se passa como se os tons dos desenhos brotassem do interior da própria fita. 123 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Embora cada série de trabalhos seja feita de acordo com suas próprias necessidades e exigências, há claramente uma sintaxe do artista, certo modo de estabelecer relações que identificamos como sendo seu. Percorrendo diferentes técnicas, suportes e temas, Tony Camargo nos mostra que a falta de uniformidade não implica em incoerência. A diversidade não impede que se reconheça uma unidade em sua obra. Sara Ramo: Entre o cosmos e o caos Na tradição da filosofia antiga, cosmos, do grego kósmos, é a ordem do mundo, o princípio regulador e as leis da harmonia do universo. Além de significar, no sentido atual, o composto de matéria e energia do espaço sideral, cosmos se refere ao ordenamento da natureza e da cultura, tanto em relação ao Estado, como na organização de solenidades religiosas. Por oposição a caos, do grego cháos, o cosmos foi criado segundo um modelo eterno e perfeito. Conforme a tradição platônica, caos é a desordem e confusão que precede a intervenção do demiurgo, o artesão divino 124 Escrita ao calor da hora Cauê Alves que modela a matéria caótica preexistente. O caos é o estado de indiferenciação e de mistura dos elementos, está ligado ao desequilíbrio e à irregularidade do universo. O trabalho de Sara Ramo parece lidar diretamente com essas duas noções, cosmos e caos, embora não como oposições rígidas. Em Alguns dias passados no espaço, é como se a artista encarnasse um demiurgo mais humano e banal do que divino. Ela não chega a criar a realidade, mas pode moldar meteoros, estrelas ou galáxias que surgem a partir da percepção de pequenos acidentes cotidianos. Se o demiurgo é aquele que exerce um ofício, um criador de obras grandiosas, pode ser também o responsável pelo mal que o Criador supremo jamais poderia gerar. No microuniverso do trabalho, restrito aos limites de um quartinho dos fundos de uma casa, a ordem não é soberana. Bolhas da parede com infiltração e tufos de poeira (cósmica?) dividem o vazio do ambiente com a regularidade e geometria dos tacos do piso. 125 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 As imagens, como em pôsteres didáticos, são seguidas de definições científicas e, não sem ironia, uma mancha de leite no chão, a desordem por excelência, é convertida em Via Láctea do mesmo modo em que um balão furado se torna um buraco negro. Já no vídeo Meia volta, volta e meia, a relação entre cosmos e caos se dá de outro modo. Dentro de um quarto ocupado por móveis, objetos saem de seus lugares, são embaralhados e se deslocam como numa órbita ao redor e no interior do cômodo. Ao reencontrarem o local de partida, completando o movimento de translação – o equivalente a um ano na órbita da Terra em torno do Sol – algo de estranho acontece. Os móveis também mudaram de lugar e as referências não são mais as mesmas. A ordem virou caos e, quando foi restabelecida, teve seu equilíbrio alterado. Lidando claramente com analogias entre o micro e o macrocosmo, o trabalho de Sara Ramo nos mostra que as forças do universo estão em constante movimento e que às vezes, 126 Escrita ao calor da hora Cauê Alves para modificar a regularidade do mundo, não é necessário destruí-lo, mas apenas realizar mínimas alterações - e assim com cada coisa. Afinal, o tempo age sobre todos os sistemas. Como no efeito borboleta, as leis iniciais e que determinam certos fenômenos são extremamente sensíveis. Pequenos movimentos podem acarretar estados adversos e inimagináveis. André Komatsu: Tempo = ação/espaço O projeto de André Komatsu é menos uma obra acabada do que um processo que se desenvolve no tempo. Ele não chega a se constituir como uma narrativa, já que não há personagens ou acontecimentos que se encadeiam em série. Trata-se apenas de dois momentos: o primeiro, o incêndio da estrutura de uma pequena casa de madeira construída ao ar livre e, o segundo, o recolhimento das cinzas e a transferência delas para uma caixa dentro do espaço expositivo. O trabalho não forma um sistema fechado em que a mudança de um estado a outro tende sempre à desordem, embora parte da casa 127 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 incendiada se dissipe em calor e fumaça. A perda de energia, a destruição da estrutura arquitetônica e sua tendência ao esfacelamento são relevantes nesse processo. No entanto, em vez da valorização do declínio ou da aniquilação, interessa ao artista o processo de mudança contínua tanto dos objetos como do espaço. Além de ocupar livremente o exterior do prédio, resíduos desse processo ficam impregnados nas roupas do público. E depois de transportadas para dentro do Paço das Artes, qualquer deslocamento de ar tende a fazer com que as cinzas continuem a se dispersar. As premissas espaciais do trabalho de Komatsu se distanciam de uma compreensão apenas quantitativa do espaço, como se ele fosse constante, fixo e mensurável completamente por alguma unidade de medida. Ao contrário, sua noção parte de um espaço que em nada se opõe ao tempo. Trata-se justamente de um espaço móvel, qualitativo e que tende a ser percebido em seu devir. As arquiteturas projetadas pelo artista são sempre inabitáveis ou inacessíveis. Não são espaços confortáveis, concebidos 128 Escrita ao calor da hora Cauê Alves segundo proporções ideais a partir da escala do corpo. São lugares apertados, áridos e que antes de buscarem uma relação harmoniosa com o espectador, ou proporem uma participação, são agressivos e avessos ao contato direto. Em um dos seus vídeos, em que o artista recolhe ruínas e fragmentos de construções pelas ruas da cidade e tenta agregá-los ao seu corpo em mochilas ou bolsos, fica evidente a inadequação entre corpo humano e a matéria bruta da construção civil. Mesmo que em alguns trabalhos ele tente atribuir nova função ao entulho, é clara certa oposição entre esses dejetos, os espaços arquitetônicos dos quais eles resultam e sua relação com o corpo. A inadequação de certas construções em relação ao corpo havia sido formulada pelo artista em uma espécie de guarita inóspita, uma arquitetura de guerra e de controle que Komatsu projetou para sua individual no Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo. Fechado em si mesmo e inacessível, tratava-se de um espaço ameaçador que se 129 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 camuflava com o branco dos painéis destinados a organizar a mostra. Entretanto, enquanto nessa experiência a assepsia era uma estratégia de disfarce, aqui, em Tempo = ação/espaço, ela pode ser compreendida de modo inverso. A combustão da madeira não deixa de ser uma maneira de higienização, mas a transposição dos resíduos resultante desse processo para o espaço expositivo inverte essa lógica. O trabalho funciona, assim, como um agente contaminador que leva a sujeira do mundo da vida para dentro do asséptico e ‘neutro’ espaço expositivo. Trabalhando com as relações entre a ação no espaço e sua correspondência com o tempo, Komatsu parece compreender o par construção e desconstrução como inseparável. Antes de criar espaços congelados e determinados por relações fixas, ele lida com o processo de transformação da ruína em edificações e a inevitável ação do tempo que tende a corrompêlas e degenerá-las. 130 Escrita ao calor da hora Cauê Alves Rodrigo Matheus: Ficção e segurança Alguns dos mais ambiciosos trabalhos de Rodrigo Matheus estão ligados a marcas criadas especialmente para seus projetos. Poderíamos compreendê-las como ‘conceitos’, em sua conotação mais vulgar e publicitária, ou como entidades, enquanto instituição ou pessoa jurídica legalmente constituída. Entretanto, não sem certo sarcasmo, são também operações críticas em que a função da marca, geralmente usada para distinguir um produto entre seus semelhantes, é subvertida. Mais do que procurar associar imagens que potencializem as características comerciais do produto ou de ser um indicativo de qualidade, as marcas e logotipos criados pelo artista buscam se aproximar do estereótipo esperado dentro do ramo da empresa fictícia criada. A Engeoplan, ligada ao planejamento e à fabricação de objetos para escritório, na qual se insere área de fumantes, construído em 2003 no Paço das Artes, em São Paulo, é um exemplo do modo como o projeto de Rodrigo 131 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Matheus se insere na instituição. A assepsia e o antidesign de ambientes típicos de algumas repartições públicas são transportados para o espaço expositivo onde a reiteração de sua função adquire um significado irônico e mesmo político. Eficiência e discrição são onipresentes. A mesma Engeoplan, com o slogan ‘você vai sonhar com este lugar’, trabalhou com incorporação de imóveis. Em anúncio fictício publicado na Folha de S. Paulo - no caderno especial 31 artistas + I metrópole, em janeiro de 2004 - uma imagem fake e muito próxima das criadas para a venda de prédios residenciais na planta, zomba desse imaginário urbano recorrente em encartes de jornais e panfletos distribuídos em faróis. Para a individual do programa de exposições do CCSP, o artista mostra nova montagem de Centurium, apresentada recentemente no Museu de Arte da Pampulha, em Belo Horizonte. Um logotipo negro, hexagonal e com detalhes em dourado, que remete diretamente a um escudo e à proteção oferecida por empresas de segurança, sustenta a série. Além de trazer 132 Escrita ao calor da hora Cauê Alves uma imponente peça de metal, que inspira solidez e confiabilidade, adesivos com a marca foram colados em diversas portas internas e externas do prédio da Rua Vergueiro. Mais do que inibir a ação de criminosos, o que é bem possível que aconteça, interessa ao artista a falsidade e a ficção criadas a partir do selo, que pode ser visto também em casas e carros de Belo Horizonte e São Paulo. Entre as peças dessa série, Paratec, um sinalizador geralmente usado no topo de edifícios, se embrenha na tubulação aparente do Centro Cultural e chama a atenção para a estrutura do local. Abrigo, móvel como os usados para guardar mangueira e hidrante, completa o diálogo surdo com o encanamento da instituição. O equipamento anti-incêndio, além de desconectado das tubulações, está lacrado. Sua não funcionalidade se mescla ao ambiente, como se de fato essa escultura vermelha habitasse o local permanentemente. A ‘segurança’ não estaria completa sem Apoio Tático, uma estrutura de metal tão agressiva quanto uma metralhadora, com câmera na 133 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 ponta. Um rack desce do teto e um monitor de vídeo exibe um incógnito e angustiante filme de Marcelvs L., com uma única sequência, de uma casa que poderia estar sendo vigiada pela Centurium, mas que possui seus próprios recursos cerceadores. Como se, numa cadeia infinita, vigias precisassem de vigias... A sensação final é de que o logotipo, que aos poucos se cristaliza em nossa memória, sempre fez parte do nosso repertório. Mais do que transformar o mundo em ficção, o projeto nos mostra o quanto nossa vida é permeada de ficções construídas por nós mesmos. Ana Holk: Em obras Na metade da década de 1970, o Governo Federal iniciou as obras do que seria a maior usina hidrelétrica inteiramente brasileira: a Usina de Tucuruí, instalada no rio Tocantins, no Pará. Concebida em meio à retórica de um país que afirmava sua autoimagem como se ainda estivesse na iminência de integrar o seleto clube das nações desenvolvidas, sob 134 Escrita ao calor da hora Cauê Alves a égide de um Estado individado, mas que investia em grandes projetos que sustentariam o crescimento econômico para a região Norte e, assim, propiciaria a modernização definitiva do Brasil, a Usina de Tucuruí, depois de sucessivos adiamentos causados pela crise econômica em que o país mergulhou, só pôde ser inaugurada nove anos depois, em 1984. A série Canteiro de Obras, de Ana Holck, realizada com base nas fotos tiradas por volta da virada da década por seu pai, um engenheiro calculista que trabalhou intensamente no projeto da usina, revela aspectos do nosso contraditório e retardatário processo de modernização. As fotografias não dissimulam a monumentalidade da construção, metáfora do próprio gigantismo do ‘país do futuro’, um país com proporções continentais. Mas, se por um lado há nas imagens vestígios de uma utopia moderna e de crença no progresso tecnológico e na racionalidade como caminhos infalíveis para a superação do atraso de uma nação que estaria ainda na infância, há também, no trabalho de Ana Holck (e talvez o 135 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 aspecto envelhecido e a predominância de tons sépia na imagem reforcem isso), uma explícita justaposição de linhas e de estruturas não tão rígidas e que dão uma aparência menos sólida e um tanto instável à construção. A despeito de todo o otimismo que nos anos de 1970 já havia sido praticamente abandonado, a não ser pelo discurso ufanista do governo ditatorial brasileiro, é mais do que sabido que o projeto moderno não chegou a se realizar completamente no Brasil. E o trabalho de Ana Holck, concebido com certo recuo histórico, talvez nos forneça elementos que nos permitam compreender a dificuldade de sua efetivação. O próprio fato de a usina estar em obras, e essas obras terem sido mais longas do que o planejado, reforça a compreensão do inacabamento do projeto moderno. Por mais que alguns ângulos e enquadramentos sejam vertiginosos e não completamente convencionais, o trabalho da artista aponta para ambiguidades entre projeto e realização, entre construção e desconstrução ou entre o permanente e o provisório, que são bastante reveladoras. As conexões que a 136 Escrita ao calor da hora Cauê Alves artista estabelece entre a malha de ferro da construção, que posteriormente é coberta pelo concreto, e a grade sobreposta feita por ela, nos permitem repensar a relação entre o aparente e o escondido ou, a partir da sobreposição de novas camadas, entre imagem e realidade. Além de uma ressignificação de um arquivo pessoal e de uma nova atribuição de valores, Canteiro de Obras recoloca nossas contradições formadoras: a engenharia, o projeto e a dureza do ferro são justapostas à irregularidade, à fragilidade e à falta de apoio das linhas que a artista desenha diretamente sobre as ampliações e que depois são refotografadas. Nesse processo, desenho e fotografia se fundem e ocorre um entrelaçamento entre o primeiro plano com a grade e o espaço fotografado. A montagem em caixas de luz, backlights, muito usadas em anúncios e propagandas pela cidade, dialoga tanto com a imagem que o país fazia e divulgava de si mesmo, como com a realidade vivida nas ruas, que já não tinha nada da limpeza formal dos grandes projetos urbanísticos modernos. 137 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Lia Chaia: Vereda “un caminar entre las espesuras de los días futuros y el aciago fulgor de la dedicha como un ave petrificanto el bosque com su canto [...] voy por tu cuerpo como por el mundo, tu vientre es una plaza soleada, tus pechos dos iglesias donde oficia la sangre sus misterios paralelos, mis miradas te cubren como yedra, eres una ciudad que el mar asedia, una muralla que la luz divide” Octavio Paz, Piedra de sol O que separa Vereda do movimento da rua é basicamente uma porta de vidro fosco e uma ampla calçada, por vezes tomada de carros estacionados. Dialogando com a cidade, o trabalho de Lia Chaia é de escala privada: a obra se assemelha a um jardim ou quintal. Cobrir com cimento as paredes do interior do espaço expositivo, como se muros cercassem o visitante, é repor a clausura de tantos apartamentos e casas. Como, para a artista, a experiência da arte não está divorciada do mundo em que vive, 138 Escrita ao calor da hora Cauê Alves seu trabalho não cria um lugar alternativo ao restante da cidade, mas também não se limita a reproduzir a paisagem urbana. Afastada da utopia dos anos de 1960 – em que proposições como Éden, de Hélio Oiticica, propunham-se como possibilidade de realização de todas as experiências humanas, lugar de lazer e delícias onde se funda o eu e o sonho de uma nova vida –, Vereda se apresenta sóbria e ligada aos problemas de seu próprio tempo. Além de indicar um campo coberto pela vegetação, um atalho e o rumo que se dá a uma vida, o título da exposição contém outro significado. O elemento de composição vered-, que está na origem da palavra vereda, possui um nexo etimológico com o termo vereador, o legislador e administrador de caminhos e coisas de interesse municipal. Vereda, assim, desde o título, carrega essa dupla conotação: a do campo, lugar da natureza, e a da cidade, espaço onde se aglomeram indivíduos com direitos políticos que se orientam entre construções, muros e plantas domesticadas. 139 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Os trabalhos anteriores da artista já oscilavam entre essas duas alternativas. Em 1 Lúcia 2 Lúcias, em maio de 2003, na Galeria Vermelho, Lia mostrou Horizontes, em que aplicava cimento em fotografias de fachadas de prédios. Investigando a paisagem urbana, construções de diferentes tamanhos e distâncias eram tornadas homogêneas, como se estivessem todas no mesmo plano e não precisassem ser diferenciadas. Na mesma exposição, apresentou pinturas de vegetais sobre paredes e telas que compunham uma espécie de cenário de floresta. Depois de secas, a artista retirou as telas das paredes pintadas, abrindo janelas brancas no interior da pintura mural. Vereda pode ser compreendida como síntese dessas questões que vêm lhe interessando. O procedimento de cobrir a parede para posterior retirada do material reaparece aqui de outro modo. Com uma espécie de ponta seca, a artista faz entalhes e incisões que, ao invés de constituírem a matriz usada para a impressão de uma gravura, trazem à tona tons esverdeados que colorem as linhas do trabalho final. Como 140 Escrita ao calor da hora Cauê Alves cada parte precisa ser concluída antes da massa secar, a técnica também remete ao afresco. O verde na cidade, assim como nos muros de Vereda, está em segundo plano, atrás de camadas de cimento que, mesmo quando mescladas com anúncios publicitários, organizam o espaço urbano, estabelecem os limites entre dentro e fora e bloqueiam nossa visão do horizonte. Os desenhos de Lia brotam silenciosamente e avançam sobre a parede. Seu traço se desenvolve com a mesma espontaneidade das formas orgânicas e naturais, mas sem deixar de ser ‘coisa mental’, de se mostrar enquanto desenho. Tudo se passa como se essas folhas de hera, que se esparramam e logo se petrificam como fósseis, tivessem encarado a mitológica Medusa. A cidade consegue conviver com a vegetação apenas quando a imobiliza e controla. A preocupação da artista é com o embrutecimento e a frieza dominantes nos espaços em que vivemos. Na cidade, seu olhar se dirige às áreas verdes cada vez mais restritas em minúsculos 141 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 canteiros, às podas violentas que mutilam árvores para dar passagem a fios elétricos e à firmeza de raízes que resistem e destroem calçadas. Os arbustos geométricos que ocupam a área central de Vereda foram moldados pela vontade de racionalizar e domar a natureza. Fragmentos da Mata Atlântica, que ocupam livremente o espaço como bailarinas que arriscam movimentos não coreografados, são tão rigidamente esculpidos quanto os clássicos jardins franceses. Entretanto, trata-se apenas de imagens que se assemelham aos displays de bancas de jornal espalhados pelas ruas. Bemhumoradas, essas esculturas planas que logo revelam sua estrutura escancaram a artificialidade da publicidade e a função cenográfica que a vegetação adquiriu entre nós. Em intervenção realizada no evento Genius Loci – O espírito do lugar, em 2002, no bairro da Vila Buarque, em São Paulo, a artista já havia brincado com elementos da publicidade. Na ocasião, distribuiu sorrisos recortados de anúncios de revistas e convidou o público a estampá-los em 142 Escrita ao calor da hora Cauê Alves seus rostos, ironizando a felicidade como objeto de consumo e sua explícita artificialidade. Outro elemento que Lia retoma em Vereda é o uso do som. Aqui, ruídos urbanos se intercalam aos sons da mata. Em alguns momentos, gerando um barulho estrondoso, fundem-se cantos de pássaros, grunhidos de macacos e de automóveis em movimento. Distante de um elogio ingênuo e bucólico ao campo, em Vereda contrastam a poluição sonora da cidade e a tranquilidade da floresta. Se o visitante por alguns minutos fechar os olhos e se imaginar num éden, onde possa alcançar um estado de espírito sem perturbações, logo será interrompido. A cidade, que circunscreve o verde em parques cercados e jardins geométricos, faz questão de emitir sons que irão despertá-lo do delírio. Fernando Vilela: O livro do tempo De saída, a exposição de Fernando Vilela contradiz um chavão da gravura, o da reprodutibilidade. Seus enormes livros (200 x 200 cm) são peças únicas. Os volumes realizados em chapas de 143 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 PVC expandido foram impressos a partir de apenas três matrizes. Elas funcionam como módulos e vão se combinando e recombinando de maneira lúdica e sem obedecer a qualquer geometria. O raciocínio modular proporciona uma diversidade enorme de configurações. A composição gráfica se estrutura por forças que variam de sentido e intensidade, sempre girando em todas as direções. Se as imagens podem ser comparadas com a de um relógio, como se as tiras fossem ponteiros sobrepostos, o trabalho contraria completamente toda a regularidade e a repetição que o relógio implica. Ao folhearmos o livro, temos uma experiência temporal bastante singular. É como se esquecêssemos o mundo exterior e mergulhássemos no trabalho. Seu tempo não é contínuo, nem homogêneo ou retilíneo, e sim um tempo que dispensa a ordem cronológica. A primazia é dada ao aspecto gráfico, e não a uma suposta continuidade do movimento do tempo ou de uma narrativa qualquer. Mesmo porque há uma série de sobreposições que, mais do que espaciais, revelam simultaneidades de tempos. Estas últimas 144 Escrita ao calor da hora Cauê Alves são ainda mais evidentes ao contemplarmos os três livros abertos, que compõe um todo em que ordem e caos não podem ser compreendidos como opostos, mas como complementares, uma vez que estão integrados, assim como os vazios em relação às áreas impressas. A escala dos livros é compatível com a de uma porta. Virar uma página é também entrar num outro espaço. A relação corriqueira com o livro, entretanto, é literalmente invertida. Ele não está em nossas mãos, somos nós que estamos dentro dele, sugados em seu interior. Mesmo que os livros obedeçam a um planejamento rigoroso, durante a realização do trabalho o artista incorporou alguns acasos. Isso também se deve a questões técnicas, como o ressecamento da tinta sobre a tela da serigrafia. Em geral, a irregularidade das manchas sobre a chapa foi mantida. Ainda mais por serem impressões artesanais e de grandes proporções como essas (que contou com uma equipe de seis pessoas), jamais seria possível cercar plenamente o imprevisível. Essa consciência 145 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 dá mais vitalidade ao trabalho e evita que ele seja compreendido como se estivesse fora de próprio tempo de sua realização. Afinal, não se trata de um projeto que objetiva ser realizado sem surpresas e com exatidão. Ao contrário, o imprevisto é parte constituinte do processo tanto quanto do fluxo temporal. As chapas oscilam entre as mais silenciosas, com poucas áreas preenchidas, e as mais barulhentas, com várias sobreposições e excessos. Elas têm uma aparência ambígua: a impressão da imagem é feita em serigrafia, mas os veios da madeira – já que as telas foram realizadas a partir de xilogravuras – são tão visíveis quanto as ocasionais imperfeições. Há um aspecto precário no resultado final, como se fossem lambe-lambes, mas alguns brilhos logo desmentem essa sensação. O industrial e o artesanal se misturam, e a facilidade que a serigrafia denotaria é contrariada pelo processo trabalhoso que o tamanho exige. Realizados no ateliê do artista, localizado na Barra Funda, em São Paulo, que fica diretamente 146 Escrita ao calor da hora Cauê Alves voltado para a rua, os trabalhos se misturaram com o ritmo da cidade. Durante a impressão, as telas eram limpas na calçada, enquanto as provas secavam sobre os suportes para lixo e acabavam se mesclando com a sujeira urbana. Esse embaralhamento da imagem com seu entorno também ocorre, de outro modo, nas gravuras em acrílico transparentes inclinadas em relação à parede. As imagens impressas, graças à iluminação, projetam-se e se sobrepõem sobre outras à sua frente ou ao lado. Enquanto nos livros a sobreposição se faz num plano, aqui elas se expandem e ocupam o espaço tridimensional. Independentemente do aspecto simbólico do livro, que se mistura com a história da humanidade e acompanha o homem ao longo dos tempos, o trabalho de Fernando Vilela estabelece certas relações complexas com o sujeito, com o espaço em seu entorno e com a cidade, que vão além da contemplação e do mero reflexo. Nós nos envolvemos em seu trabalho a ponto de entrarmos no tempo dele, que é o mesmo que o nosso, mas que também parece nos conter e superar. 147 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Maurício Ianês: Êxtase e arte O clímax da videoinstalação de Maurício Ianês Minha língua é a pena de um hábil escriba é o êxtase. Num determinado instante, as imagens das quatro projeções sincronizadas se transformam completamente. Os olhos do artista se voltam para o interior e tudo se passa como se ele fosse transportado para fora de si. Como se atingisse outra dimensão, não mais nesse mundo sensível que habitamos e do qual nosso corpo é inseparável, o artista passa por uma experiência inexprimível, uma espécie de espasmo, um arrebatamento que provoca a perda dos sentidos e do controle sobre os movimentos corporais. Trata-se de um misto de exaltação mística, de um prazer supremo e também de assombro e perturbação. O pigmento negro e disforme que escorre da boca de Ianês revela a total falta de articulação da linguagem verbal ou escrita. É justamente da impossibilidade de comunicação exata por meio de signos convencionais, sejam sonoros, gráficos ou gestuais, que seu trabalho surge. 148 Escrita ao calor da hora Cauê Alves Sua língua é a ‘pena de um hábil escriba’, porque o sentido de sua expressão jamais poderia ser ditado ou transcrito por pena alguma. Se o texto de sua fala no momento do êxtase pudesse ser redigido, seria silencioso, um papel vazio, fundo sobre o qual repousam todos os sentidos. O inexprimível, mais do que ultrapassar qualquer possibilidade de expressão, é também aquilo que permite toda a expressão. É a raiz originária e primeira de onde brotam outras significações. Não se trata apenas do silêncio avassalador que nos faz calar frente a acontecimentos traumáticos, mas também daquele que permite a compreensão de que sem ele não haveria palavra, som ou sinal. A tinta que escorre da boca do artista é o que no limite sustenta todo sentido e expressão. O trabalho de Ianês costuma flertar com o limite, seja da expressão, da representação, do corpo ou da vida. A referência ao local em que se suicidou o poeta Paul Celan (1920-1970) aparece nas imagens laterais projetadas sobre as duas paredes da videoinstalação. Nelas, as águas, como o próprio fluxo do tempo, não 149 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 cessam de passar sob a ponte Mirabeau, no Rio Sena, onde Celan se atirou. Entretanto, o suicídio, além de uma questão fundamental para a filosofia contemporânea, como escreveu Albert Camus (1913 - 1960), pode ser o grande silêncio final, mas também ato poético extremo, contato último com o inexprimível. A morte é o limite máximo, fim do êxtase, saída de si e simultaneamente reencontro do homem consigo mesmo e com suas próprias invenções. O inexprimível é o solo comum de onde todos os sentidos surgem e para onde provavelmente retornarão. Por isso o artista desenha a palavra como luz, como intervalo, fenda sobre um fundo escuro. A desconfiança que Ianês demonstra em relação à linguagem é fruto da compreensão de que tanto a palavra como as imagens não podem simplesmente traduzir sem equívocos pensamentos ou experiências externas a elas. A linguagem como instrumento, aquela que a ciência pretendeu empregar de modo preciso, exato e sem ambiguidades, não é a mesma empregada na poesia e na arte. O modo como o artista se coloca não é traduzindo pensamentos 150 Escrita ao calor da hora Cauê Alves ou ideias, mas como alguém que, do interior das coisas, dá sentido a elas. O sentido do trabalho de arte não pode estar separado dele, tampouco num céu metafísico, num mundo ideal, fora da sombria caverna em que viveríamos, mas só pode ser encontrado no interior dele, sustentando por dentro o próprio trabalho. Embora não seja um projeto deliberado do artista, seu trabalho pode proporcionar um contato com questões metafísicas e seus limites. Esses temas essenciais da filosofia, sobre as quais a linguagem segundo Ludwig Wittgenstein (1889-1951) não poderia dar conta, jamais deixaram de estar no horizonte do homem ao longo da história. O projeto de Maurício Ianês, ao interrogar o inexprimível e o inefável, nos mostra, como a própria filosofia contemporânea o fez, que se é possível uma metafísica, ela estará primordialmente na arte e na poesia. O artista a apresenta de modo implícito e alusivo. Ao filósofo caberia tentar elaborá-la filosoficamente, sempre num momento posterior ao trabalho do artista. Como se sabe, a coruja de Minerva, a própria 151 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 filosofia, levanta voo somente ao entardecer. Mas se algo pode nos dar acesso direto e imediato ao inexprimível será, portanto, a própria experiência com a arte. 152 Escrita ao calor da hora Cauê Alves REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, C. . Tony Camargo: Mundo como pintura. São Paulo: Paço das Artes, 2008 (Catálogo). ALVES, C. . Entre o cosmos e o caos. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 2005 (Catálogo). ALVES, C. . André Komatsu: tempo=ação/espaço. São Paulo: Paço das Artes, 2006 (Catálogo). ALVES, C. . Rodrigo Matheus. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 2004 (Catálogo). ALVES, C. . Em Obras. Santa art magazine, Rio de Janeiro, p. 84 - 87, 10 nov. 2008. ALVES, C. . Ensaio sobre Lia Chaia. São Paulo: Associação Cultural Vídeo Brasil, 2004 (Catálogo). ALVES, C. . Ensayo sobre Lia Chaia. In: David Barro; Paulo Reis. (Org.). Parangolé. Fragmentos desde los 90: Brasil. 1a ed. São Paulo: Artedardo / Museo Patio Herreriano, 2008, v. 01, p. 168-173. 153 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 ALVES, C. . O livro do tempo. São Paulo: Galeria Virgílio, 2007 (Folder). ALVES, C. . Maurício Ianês: êxtase e arte. Temporada de Projetos 2009 (9+1). 01 ed. São Paulo: Paço das Artes; Imprensa Oficial, 2010, v. 01, p. 84-95. ALVES, C. . Entrevista com Maurício Ianês. São Paulo: Paço das Artes, 2009 (Folder). ALVES, C. . Débora Bolsoni. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 2005 (Catálogo). 154 Escrita ao calor da hora Cauê Alves 155 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada 24 em Aracaju Ivan Masafret 25 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret A autonomia do estado de Sergipe em relação à Bahia, estabelecida no dia 8 de julho do ano de 1820, e a mudança da capital, ocorrida 35 anos depois, em 1855, demonstram o quão importante o século XIX foi para a política e a sociedade sergipana. Isso se reflete em vários aspectos, políticos, econômicos e até na necessidade de afirmação da identidade do povo sergipano. Para tanto, foram criados e firmados símbolos e referências próprias de Sergipe nos quais a independência do estado e a nova capital foram evidenciados, prenunciando o novo e o moderno e, ao mesmo tempo, vinculando-se aos lastros de uma dita ‘origem ou formação comum e própria ao estado’. Tudo isso acabou Este artigo é baseado no segundo capítulo da monografia de pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Sergipe (UFS), defendida em 2008, com o titulo A arte pública em Aracaju: seus espaços e símbolos, sob a orientação do Prof. Dr. Frank Nilton Marcon. 25 Mestrando em Sociologia pela UFS, atua em projetos relacionados a arte e cultura. 24 159 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 se refletindo vivamente nos espaços públicos, principalmente na urbanização, na arquitetura e na arte pública (monumentos comemorativos). Na arte, e especificamente nos monumentos de arte pública – esculturas e painéis – percebemos que espaços como os prédios e praças mais importantes do centro econômico e político da época foram escolhidos para enfatizar todo o simbolismo da ‘autonomia estatal’ e da ‘nova capital’. Sergipe teria uma nova sede administrativa moderna e planejada, em oposição à antiga26 e barroca São Cristóvão. É dessa época a concepção de um dos símbolos mais importantes do estado, o seu brasão, composto por uma estrela, ícone representativo na bandeira nacional 27 , e por uma figura indígena, o Cacique Serigy, que simboliza os povos ‘originais’ da terra, que teriam tido uma A capital sergipana deixou de ser a cidade de São Cristóvão e passou a ser Aracaju, que se constituiu como cidade planejada. 27 Na bandeira nacional, cada um dos 26 estados brasileiros, mais o Distrito Federal, são representados por uma estrela. 26 160 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret importante participação na história de Sergipe. Ainda no brasão, podemos perceber ao lado da figura indígena a representação de um balão – símbolo do que havia de mais moderno na época – bem ao centro da composição. O balão carrega a palavra ‘porvir’, uma clara referência aos anseios do estado recentemente desanexado da Bahia e que pretendia associar o progresso ao conceito de originalidade de seu povo, no sentido de sua singularidade e procedência. Abaixo, a legenda exibe em latim a frase ‘Sub Lege Libertas’, que significa ‘Sob a Lei a Liberdade’ e, por fim, a data em que foi promulgada a primeira constituição do estado, 18 de maio de 1892. Esse brasão pode ser encontrado, ainda hoje, em todos os prédios públicos do governo estadual. Entretanto, Sergipe passou por importantes mudanças políticas e em sua sociedade e, aos poucos, foi sendo necessária a configuração de outros símbolos que afirmassem e representassem não apenas o estado, mas também a sociedade e suas diferentes matrizes étnicas. Já no século XX, 161 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 tornou-se imprescindível o surgimento de outras representações simbólicas para fins mais amplos, como por exemplo, o turismo. Todas essas características do estado sergipano estão presentes nas artes públicas, principalmente as existentes na capital, uma vez que ela agrega representativamente os diversos matizes formadores da cultura sergipana. Para uma diferenciação das fases sociais, políticas e culturais que refletiram na produção da arte pública sergipana, foram estabelecidos três períodos, cada qual com seu tempo, espaço e características específicas. Essa organização só é possível por conta dos muitos elementos encontrados, sejam eles históricos, socioespaciais e/ou simbólicos, os elementos acabam por criar possibilidades de delimitação de acordo com essas características, o que será melhor esclarecido no decorrer do texto. Com essas mudanças no cenário social, a necessidade de representação e seu conteúdo simbólico e ideológico acabam por, naturalmente, adequar-se aos novos tempos. 162 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret Contudo, cada momento histórico exigiu um discurso condizente com as ações políticas de seu período, com as reflexões intelectuais e com o dia-a-dia do sergipano, documentado através de jornais, livros e artigos. Mas será que na arte pública tais discursos estão/ foram representados? Se sim, de que forma se apresentaram? Essas são questões que analisaremos no presente artigo, que é um fragmento adaptado de um trabalho mais amplo, resultado de um ano de pesquisa. Para fins metodológicos, foram elaboradas categorias de diferenciação da arte pública, classificada de acordo com três vertentes: arte pública autônoma, arte pública institucionalizada pela iniciativa privada e a arte pública institucionalizada pelo poder público, sendo esta última a mais relevante para os desdobramentos deste artigo. A arte pública autônoma pode ser descrita como aquela em que o artista produz seu trabalho de forma voluntária, sem a figura do contratante, tendo a cidade como galeria. Sua 163 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 obra normalmente é suscetível à interferência e, em geral, é efêmera, a depender dos usos e da organicidade do espaço público. Já a chamada arte pública institucionalizada pela iniciativa privada conota uma realização tutelada pelo perfil ideológico, administrativo e simbólico da instituição ou empresa contratante: uma obra feita para um sindicato de trabalhadores, por exemplo, não terá o mesmo perfil que outra, encomendada por uma loja de departamentos. Nesses casos, o artista deverá se submeter e estar alinhado com o perfil exigido. Já a arte pública institucionalizada pelo poder público (APIPP), a mais enfatizada neste artigo, caracteriza-se por ser aquela em que, na obra, está evidenciado o discurso oficial do Estado (seja na instância municipal, estadual ou federal). Esse tipo de representação artística tende a aproveitar elementos simbólicos pré-existentes, sejam eles históricos ou inteiramente ‘novos’. É nessa segmentação da arte pública que percebemos os espaços nas suas diferentes 164 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret formas de abordagem de discurso, seja ele alegórico e/ou ideológico (MASAFRET, 2007). Na APIPP, a ideia de público está referenciada em dois aspectos: tanto na sua localização espacial – espaço público – quanto no seu pertencimento – é uma obra de arte pertencente ao Estado, logo, um patrimônio público. Esses aspectos são evidenciados de forma a atribuir uma ideia de reconhecimento ao Estado. Portanto, a principal característica da arte pública institucionalizada pelo poder público (APIPP) é a inserção da figura do contratante (instituição) na aquisição ou produção da obra. Sendo o Estado detentor da obra, há a possibilidade da sua interferência no que se refere ao espaço onde a obra ou monumento será abrigado, bem como em sua representação simbólica e estética. Essa interferência da instituição na arte pública, inevitavelmente, sempre ocorrerá. No âmbito menos ‘agressivo’ dessa interferência, o artista não é cobrado nem influenciado a respeito do conteúdo da obra. Assim, “o artista permanece antes de tudo um conformista: há assuntos que 165 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 não pode tratar e outros que lhe são impostos” (BASTIDE. 9: 1979). Ao classificar as obras consideradas APIPP em Aracaju, foi possível constatar conexões entre seus diferentes discursos, os espaços que ocupam na cidade e seu período histórico. Dessa forma, pudemos organizar as APIPP da capital sergipana em três períodos, cada qual com suas especificidades espaciais e discursivas, além das distinções entre as técnicas artísticas utilizadas. Arte pública na configuração da autoridade política da nova capital Em Aracaju, podemos classificar a produção de obras de arte públicas em três fases, a partir de seus aspectos simbólicos e representativos, refletidos nessas obras. Esses aspectos compreendem os momentos políticos e sociais que o estado de Sergipe e a sua capital, Aracaju, viviam. Desde as primeiras preocupações com a urbanização da cidade, passando pelas tensas disputas dentro da política local e nacional, até 166 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret a relação do poder público com a mídia e a propaganda do Estado como um produto. Dessa forma, percebemos, de acordo com os períodos históricos aqui selecionados, as diferentes formas de dispor da APIPP em Aracaju. Primeira Fase A primeira fase dessa produção artística remonta à mudança da capital sergipana (1855) e se estende até meados da década de 1930. Esse período foi selecionado levando-se em conta correlações entre as tipificações da arte pública, juntamente com as características políticas e sociais do estado. A arte pública nesse período marca seu território tanto no imaginário dos cidadãos quanto na historicidade da nova capital. Havia, portanto, a necessidade de firmar a nova cidade como poder representativo do estado legitimado. As obras públicas dessa primeira fase eram esculturas de bronze, de corpo inteiro ou apenas bustos, expostos nas primeiras praças construídas na nova capital. 167 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Dessa forma, podemos inferir que as primeiras obras de arte públicas da cidade de Aracaju foram monumentos dedicados principalmente a personalidades políticas, como por exemplo, o monumento comemorativo dedicado ao deputado Fausto Cardoso, construído na praça que hoje leva seu nome, erguida no mesmo local onde fora assassinado, em 1906. Sobre isso, a pesquisadora Ilma Fontes diz: Em 1912 a Praça Fausto Cardoso recebe um monumento em homenagem a esse grande líder político, plantando-se novos jardins com dois coretos em estilo art-noveau, orgulho dos sergipanos que dali fizeram palco para retretas e manifestações cívicas. (FONTES, Ilma. Site oficial da Prefeitura Municipal de Aracaju 28 ) Fica explícita a importância de Fausto Cardoso para a cidade de Aracaju, não apenas por ser o primeiro monumento público, mas por ter sido erguido com recursos da própria população da época, e não pelo estado. De acordo com Ilma Fontes, cujo texto encontra-se disponível no 28 www.aracaju.se.gov.br 168 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret site oficial da Prefeitura Municipal de Aracaju, a obra que retrata Fausto Cardoso reverencia a importância desse personagem histórico até os dias de hoje. Além desse, outro importante monumento que marca essa primeira fase é, sem dúvida, o que homenageia Monsenhor Olimpio Campos, que teve a vida e a morte vinculada a Fausto Cardoso. Tais obras de arte permanecem em um eterno convívio nas praças da mais importante centralidade histórica de Aracaju. Seus admiradores auxiliados pelo Governo do Estado e pelas Intendências municipais ergueram-lhe uma estátua na antiga Praça da Matriz, hoje Praça Benjamim Constant. Inaugurado oficialmente no dia 16 de julho de 1916, fere imediatamente a vista do observador, que conheceu de perto o Monsenhor, a imperfeita reprodução dos seus traços fisionômicos infielmente esculpidos no bronze pelo artista que a executou (GUARANÁ. 446, 1925 29 ). Além dos monumentos que se encontram nesse conjunto de praças da centralidade histórica de Aracaju, encontramos ainda outras obras importantes dessa época, como o obelisco que homenageia o fundador da cidade, Joaquim 169 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Inácio Barbosa, cravado na praça de mesmo nome, próximo ao Iate Clube de Aracaju, 30 construído por Lourenço Petrucci, em 1917 . Há também a Estátua de Tobias Barreto, datada de 1920, a de Lourenço Petrucci, na praça que leva o mesmo nome, localizada no bairro São José, e o monumento ao General Valadão, um dos últimos do período, construído em 1924, que adorna uma praça de mesmo nome, no centro de Aracaju. Segundo o pesquisador Marcelo Prudente Silva, a obra é supostamente de autoria de Oreste Gatti e Rafaelle Alfano. Segunda Fase Os primeiros anos da nova capital, até a década de 1930, mais especificamente, foram marcados por sua construção, pela alternância do poder político e pela modernização urbana. Retirado do dicionário bibibliográfico de Armindo Guaraná, de 1926. 30 Não encontramos uma obra figurativa, por não se ter até hoje nenhuma referência da fisionomia de Inácio Barbosa. Estão no topo do seu monumento uma estrela e o brasão do estado. 29 170 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret O ápice dessa modernização é entre 1921 e 1930, quando o antigo coreto da praça Almirante Cardoso dá lugar à instalação de um mictório público, possibilitando a permanência das pessoas mais tempo longe de casa ao tempo em que implantava uma política sanitarista introduzindo medidas higiênicas. (...) É aí que a Praça Olympio Campos recebe o tratamento de Parque (Teófilo Dantas), com vários recursos urbanísticos. (...) Foi construído um aquário (onde hoje está a Galeria de Arte Álvaro Santos). (...) Uma parte do Parque abrigava uma taba com a escultura metálica de dois índios circundados por quadro evocativo da primitiva selva, um recanto selvagem com plantas da Mata Atlântica. (...) A inauguração do Parque Theófilo Dantas, em 1828, foi um marco de visão administrativa que agradou toda a população. (FONTES, Ilma. Site da Prefeitura Municipal de Aracaju) O ‘centro Histórico de Aracaju’, segundo o 31 PDDU da prefeitura, é delimitado pelas ruas e avenidas Rio Branco, Ivo do Prado, Boquim, Itabaiana, Maruim, Santa Luiza, Santo Amaro, Santa Rosa, Apulcro Mota, travessa João Quintiliano Fonseca e Praça Olímpio Campos (art. 21 do PDDU de Aracaju, 2006). 31 Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU). 171 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Esse perímetro compreende a primeira etapa da construção da cidade. As três grandes praças existentes, Fausto Cardoso, Almirante Barroso e Olímpio Campos, sediam as principais obras urbanísticas, arquitetônicas e artísticas daquele período. Ali foram erguidas, ao todo, 16 obras de arte pública; dessas, pelo menos três não existem mais: o busto de Theófilo Dantas, o casal de sertanejos 32 e a escultura em bronze do Cacique Serigy, que desapareceu33. Outras nove foram produzidas em outro período e três foram executadas durante a primeira fase da arte pública em Aracaju. São elas: 1- Monumento a Fausto Cardoso (Praça Fausto Cardoso,1912) 2- Monumento Monsenhor Olympio Campos (em frente à catedral, 1916) 3- Herma de Teófilo Dantas (parque Teófilo Dantas, Praça Olímpio Campos, 1927) Produzido pelo artesão Beto Pezão. Essa escultura ficava originalmente onde hoje é o restaurante “Cacique Chá”, e não se sabe qual foi o seu destino. 32 33 172 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret Percebemos, pelo grande número e diversidade de obras nesse conjunto de praças, que esse espaço possui grande importância para a cidade, concentrando boa parte de sua história. Essas praças são o principal centro da política e da arte em Aracaju. A presença da Galeria de Arte Álvaro Santos, administrada pela prefeitura, os prédios dos três poderes e da antiga prefeitura expressam essa importância. O espaço das três praças está marcado no urbanismo e na sociedade aracajuana, uma vez que ali estão os primeiros prédios públicos da cidade, fazendo dessa área o epicentro tanto das artes públicas quanto do urbanismo da capital. De tão importante, ele é até hoje utilizado para manifestações populares, bem como dos governantes, tendo sido da sacada do Palácio Olímpio Campos 34 proferidos os discursos de posse dos governadores, a exemplo de Marcelo Déda (PT), em 2007. Esse é um espaço vivo, de forte poder simbólico para os sergipanos e, por tal motivo, o local com maior densidade de obras públicas da capital. 173 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Michel de Certeau, em sua obra A Invenção do Cotidiano 35, no capítulo intitulado Tempo e história, com muita propriedade traz a discussão sobre a relação existente entre a memória e o espaço. Ele questiona: “Qual a implantação da memória num lugar que já forma um conjunto?”, e nos diz: A ocasião é “aproveitada”, não criada. É fornecida pela conjuntura, isto é por circunstâncias exteriores. (...) sob a sua forma prática, a memória não possui uma organização já pronta de antemão que ela apenas encaixaria ali. Ela se mobiliza relativamente ao que acontece (CERTEAU, 162: 2003). Dessa forma, podemos compreender que o perímetro das três praças tem, graças à sua importância histórica, uma constante ressignificação, perceptível na diversidade das obras de arte ali encontradas, que representam O Palácio Olímpio Campos passou por uma grande restauração e foi reinaugurado em 2010, já como Palácio Museu Olímpio Campos. 35 Artes de Fazer. 34 174 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret diversos estilos, técnicas e períodos históricos. Há também uma apropriação constante da população, que reinventa o espaço, de acordo com seus novos usos cívicos, movimentos sociais e personalidades políticas. Nos novos usos, há sempre referência ao passado e à importância desses espaços para a capital e para o estado. A arte pública e a representação do sergipano Aracaju, a partir da década de 1930, já havia consolidado plenamente sua autoridade política dentro do estado de Sergipe. A cidade já se encontrava mais urbanizada, principalmente no que se refere ao seu centro comercial. Além disso, Aracaju era uma cidade cosmopolita,36 pois acompanhava as questões políticas que afligiam todo o país 37. Nesse período, já não era mais conhecida como a ‘nova capital’; o status adquirido pela ‘cidade menina38’ era de ‘a capital’, pura e simplesmente. Em 1930, Aracaju já era o município mais industrializado 175 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 e com a maior quantidade de habitantes do estado, tornando-se, assim, a capital sergipana de fato e de direito. Nesse segundo momento, que compreende o intervalo que vai de meados da década de 1920 até o fim de 1970, a APIPP já não homenageava com tanta frequência figuras sergipanas proeminentes. A sociedade, ou melhor, o estado, a partir de seus líderes políticos e de intelectuais influentes, começou a se preocupar com a representação da gênese de Sergipe. Tais características se deram por conta do momento político: as revoltas tenentistas, que culminaram na revolução de 1930 (Estado Novo), demonstraram-se um momento não Tratamos aqui de ‘cosmopolita’ no sentido de agregar pessoas e culturas não apenas de todo território sergipano, bem como de todo o Brasil e até de outros países. O termo não é utilizado no sentido mais moderno, ligado a uma ideia de individualismo e, em geral, agregado a grandes metrópoles. 37 Refiro-me aqui ao golpe de Getúlio Vargas e suas consequências. 38 ‘Cidade menina’ era como Aracaju era chamada popularmente por se tratar de uma nova cidade e ainda pequena (CABRAL, 2002). 36 176 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret muito propício para prestar homenagens a figuras políticas e sociais. Com as revoltas tenentistas comandadas por Augusto Maynard em 13 de julho de 1922, a situação política dentro de Sergipe se tornou muito frágil. O governador Graccho Cardoso foi derrubado e restituído duas vezes por Maynard, que posteriormente governaria esse estado no período de 1930 até 1935. Curiosamente 39, as duas únicas obras de APIPP que homenageiam personalidades políticas durante esse período são as do presidente Artur da Silva Bernardes40, de 1922, e de Getúlio Vargas, em 1939. Graccho Cardoso, que prometera ajudar ao Presidente da República e terminou sendo socorrido, sentiu a necessidade de demonstrar ao chefe da Nação o apreço que lhe dispensava. Assim, as homenagens foram se sucedendo. Inaugurou um busto de Artur Bernardes no salão nobre do Palácio Olympio Campos. (apud. Cf. M. Graccho Cardoso, Mensagem à Assembleia Legislativa, 07-09-1925, p.6. Apud. DANTAS, 172, 1999). A década de 1920 foi marcada pela forte influência da instabilidade política e, depois, pela 177 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 ideologia nacionalista, tanto do Estado Novo quanto dos integralistas que tiveram considerável inserção em Sergipe, o que propiciou uma forte relação do estado com símbolos nacionalistas. Nesse período, havia um movimento que pretendia ‘fomentar uma identidade brasileira’ a partir da descriminalização de expressões culturais vinculadas às culturas indígena e afro-brasileira, resultando na regularização de religiões afro-brasileiras e da capoeira, até então proibidas por lei. Em meados da década de 1970, o estado ainda estava sob o controle da ditadura militar e os aspectos identitários ainda eram marcadamente nacionalistas e bastante exaltados. No inicio desse período histórico, percebemos, de acordo com o historiador José Ibarê Dantas, que ‘Curiosamente’ por se tratar de duas personalidades estritamente vinculadas com aquele momento político, o Estado Novo. 40 Presidente de 1922 a 1926, sofreu forte instabilidade política gerada pelas revoltas tenentistas contra as oligarquias dominantes e pelo avanço do movimento operário, o que levou a governar permanentemente em estado de sítio (www.portalbrasil.net/ politica_presidentes_arturbernardes.html). 39 178 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret Aracaju passava por um momento de reformas, tanto no urbanismo quanto na educação: Além de outros feitos de valor inestimável, como estradas, energia elétrica, abastecimento de água, esgoto e construção similares ligadas à infra estrutura da cidade, cabe observar por outro lado que apresentou também sua contribuição à cultura do Estado. Afora a parte referente ao ensino, publicou obras literárias e científicas, algumas das quais depois de merecerem criteriosos estudos preliminares de especialistas no assunto, como ocorreu com a edição das obras completas de Tobias Barreto e com o dicionário Bibliográfico Sergipano escrito por Armindo Guaraná. (DANTAS:174, 175. 1999) Um grande marco dessa fase em Sergipe é a obra a que se referiu Ibarê Dantas, Etnias Sergipanas: contribuição ao seu Estudo, do antropólogo sergipano Feltre Bezerra, publicada em 1950 41. Outra importante obra citada é a do bibliógrafo (sic) Armindo Guaraná, cuja pesquisa traz uma imensa relação de bibliografias de personalidades sergipanas. Esta última serve até hoje como referência para pesquisadores da área. Temos um exemplo ainda anterior, de 1888, de Silvio Romero, com a obra Etnografia Brasileira. 41 179 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Havia, portanto, para os intelectuais sergipanos, a necessidade de se ‘pensar’ e de se reconhecer como povo. As perguntas às quais esses autores se propunham responder eram: quais as ‘origens do povo’ sergipano? Quais as suas características marcantes? Nas obras de arte pública elaboradas no período, foram representadas as etnias que se entendem como formadoras do povo brasileiro. O índio foi resgatado como símbolo de força, luta e coragem. O Cacique Serigy, por exemplo, tornou-se uma figura mítica, referência histórica à formação do estado de Sergipe. No palácio do Judiciário há uma importante representação dessa época: trata-se de um conjunto de dois painéis do artista Aderaldo Argôlo, datados de 1º de janeiro de 1965. O primeiro representa ‘a questão produtiva’ do estado, seu artesanato, sua cerâmica; nele estão representadas também o cultivo do arroz, coco e fumo – as principais culturas agrícolas – e por fim o petróleo, ápice da industrialização no estado. O segundo painel, mais representativo para a 180 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret discussão a que este trabalho se propõe, trata diretamente das matrizes étnicas do estado. A obra apresenta, de um lado, a figura de um índio e de um negro com arcos e flechas em riste, que apontam para o lado oposto da tela, onde estão representados os europeus. Ao fundo, vemos o mar (ou rio), com caravelas europeias. No que se refere à arte pública, esse é um período em que murais e painéis se destacam, diferentemente da fase anterior, marcada 42 principalmente pelas esculturas em bronze. Um artista bastante representativo desse período, Jenner Augusto, morou em Salvador e conviveu com intelectuais baianos conhecidos em todo o Brasil, como Jorge Amado, Carybé e Pierre Verger. Na obra de todos eles, a figura do negro ocupa uma posição central como representação da Bahia. Na capital sergipana, contudo, Jenner Augusto dava destaque para a figura indígena em seus murais. Alguns desses exemplos são os murais do antigo restaurante Cacique Chá, datados do 181 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 ano de 1949. Outro mural, feito originalmente para o aeroporto de Aracaju, foi trasladado para a sede da Energisa44, empresa fornecedora de energia do estado. Nesse painel, estão representados treze índios em tons ocre e preto; são exibidos também discretos cajus e uma arara solitária. O segundo período aqui delimitado para o estudo das obras de arte públicas pode ser caracterizado como uma ‘fase autoral’44. Nesses casos, os autores das obras são conhecidos. Jenner Augusto, por exemplo, possui vários painéis tombados pelo governo do estado: o painel do antigo Hotel Palace, hoje no Teatro Atheneu 45 ; o painel da Universidade Federal de Sergipe; o mural do aeroporto e o painel em Essa mudança da utilização de monumentos em bronze para painéis e grandes quadros pode ser entendido, entre outros motivos, pela dinâmica do fazer artístico no qual se buscavam outras soluções e suportes para suas expressões. Além disso, esse período, como já mencionado, não estava voltado à representação de personalidades em seus espaços públicos, e sim de uma ideia de origem, muito mais condizente com o espaço de telas e painéis, dando margem a uma melhor articulação simbólica. 43 Energisa. 42 182 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret azulejo do Edifício Walter Franco (Praça Fausto Cardoso). Este último ‘inaugura’ nas artes sergipanas elementos modernos, geométricos, juntamente com as primeiras representações simbólicas do estado, como o caju, o peixe, a cana de açúcar, o coco, além dos elementos sertanejos, como o jegue com o caçuá. Esses painéis ainda hoje são exibidos em prédios públicos ou em outros espaços urbanos a céu aberto. A maior parte deles continua a representar uma ‘percepção do poder público’ a cerca da sociedade sergipana. Muitas deles foram realizadas por artistas selecionados pela elite política e social da época. Consideramos aqui como ‘fase autoral’ o fato das obras estarem vinculadas não apenas ao conteúdo estético, mas também ao valor agregado da assinatura do artista, que tem um importante papel no status da obra. 45 Bem como no caso do painel da Energipe, esse também foi transladado do Hotel Palace para o teatro Atheneu. 44 183 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Ao adentrar hoje algumas agências do Banco do Estado de Sergipe 46 (Banese) pode-se encontrar alguns quadros de artistas sergipanos. Os mais frequentes são os de Caã, em geral com obras de teor bucólico; de José Fernandes e suas telas com temas ingênuos, ligados a símbolos como cajus e os pombos; e os de J. Inácio, um dos maiores artistas sergipanos, que não costumava utilizar os símbolos frequentemente atrelados à imagem do estado de Sergipe e da cidade de Aracaju. J. Inácio costumava dizer: “Tenho horror a arara, papagaio, cachorro; eu gosto de bananeira, mas eu faço muito porque o povo quer” (CRUZ, 2007). E, de fato, foi como ‘o pintor das bananeiras’ que o artista ficou conhecido, apesar de que sua obra mostra uma grande diversidade de temas. Voltando ao período que vai de 1930 a 1970 e às suas referidas obras, vemos caracterizadas nelas a ideia do indígena, do trabalho e da O Banese é ainda uma instituição pública do estado de Sergipe. 46 184 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret produção econômica do estado, com forte ênfase no ‘tipo sergipano’. Nos dois grandes painéis de Jordão Oliveira intitulados Economia de Sergipe (305 x 510 cm), de 1962, localizados no hall de entrada do Palácio Olímpio Campos, percebemos os elementos agrários como a cultura da cana, do coco e do sal. Essas pinturas estão também vinculadas à representação de um ‘povo sergipano’ mestiço, de pele escura: um misto de sertanejo e praieiro. Os símbolos da cultura em toda a cidade Entre as décadas de 1970 e 1980, as obras de arte pública passaram a se disseminar por outras localidades da cidade. Antes, elas estavam circunscritas a pontos restritos de Aracaju e agora a intenção dos artistas 47 é, sobretudo, propagar ideias positivas da capital e do estado, seja para os moradores ou para os turistas. Esses novos trabalhos surgiram já 47 Artistas e instituições que encomendam obras de arte. 185 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 influenciados pelas diversas técnicas e escolas. Uma importante influência foi a obra de Jenner Augusto, exposta no edifício Walter Franco. As décadas de 1980 e 1990 em Aracaju foram um período de grandes mudanças estruturais para a cidade. O turismo passou a ser imensamente incentivado em termos de infraestrutura. Como exemplo, podemos citar os inúmeros hotéis construídos nessa época. Os empresários da hotelaria passaram a investir nas áreas próximas à praia, em detrimento do centro comercial da cidade. Essa nova preocupação com o turismo também se refletiu em outros aspectos da infraestrutura, como no transporte e na urbanização de vários pontos da cidade. Os novos impulsos para o crescimento de Aracaju e de Sergipe representaram não apenas o interesse do poder público, mas também da iniciativa privada. Nas artes públicas, houve uma mudança na forma de representação simbólica: a percepção se torna simbolicamente mais atrelada ao comércio e à publicidade. A partir da década 186 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret de 1980, as instituições começaram a exaltar os valores locais e a incentivar o turismo nacional. Para exemplificar, recorremos a um exemplo de 1981, do Jornal de Sergipe, em que uma propaganda do banco Caderneta 48 exprime bem a ideia da época em relação aos valores históricos e culturais dos sergipanos. Nesta propaganda 49 do estado vemos fotos da ponte do imperador, dos casarões do município de São Cristovão com as frases “conheça e ame sua terra” e “uma campanha para você se orgulhar de Sergipe”. É também na década de 1980 que entra em cena o artista Eurico Luiz. Nascido em São Paulo, Eurico estudou na Faculdade de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e radicou-se em Sergipe, onde teve uma atuação decisiva na forma de produzir arte pública. Ele levou ao extremo a representação simbólica dos cajus e araras, em cores fortes e 48 49 Agencia bancária não mais existente. Jornal de Sergipe, 1º de fevereiro de 1981. 187 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 vivas, com um ar muito tropical. Até hoje suas obras são referências simbólicas da capital, principalmente para os turistas. Eurico Luiz apresentou de maneira pioneira em suas obras a diversidade da cultura popular. Os murais do Gonzagão 50 foram produzidos por ele e exibem, ao lado de suas seis portas, doze painéis, cada um representando folguedos e danças populares encontradas em Sergipe. Talvez o trabalho mais representativo do conjunto das obras de arte pública de Eurico Luiz seja o sinuoso obelisco da Praça do Iate Clube. Lá estão esculpidos em técnica mista uma grande arara em meio a imensos cajus. Na mesma praça estão também representados um golfinho e o brasão da cidade de Aracaju; no chão está composto um mosaico formando o mapa da cidade. Não podemos também deixar de mencionar que ali se encontra também O espaço para festas e apresentações populares encontra-se na Av. Heráclito Rollemberg. 50 188 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret uma importante obra em reconhecimento ao fundador da capital, Inácio Barbosa, morto um ano depois da fundação de Aracaju, o que faz da praça um importante marco histórico. As obras de Eurico Luiz que estão por vários pontos da cidade são os maiores exemplos da arte pública das décadas de 1980 e 1990. O artista plástico Eurico Luiz se considerava paulista de nascimento, baiano de coração e sergipano por adoção. Em Sergipe ele viveu mais de 30 anos, tendo sido a década de 1980 o seu auge produtivo. Tornou-se o artista ‘oficial’ do governo de então, quando produziu diversas obras públicas, tanto em Aracaju quanto em cidades do interior. Ficaram famosas suas cabines telefônicas em forma de caju e arara e os seus painéis com representações do folclore sergipano. Outras obras importantes de Eurico Luiz fincadas em Aracaju são o grande caju na cabeceira da ponte de acesso ao bairro Coroa do Meio e o peixe da colônia de pescadores, no bairro de Atalaia. Como percebemos, a arte pública em Aracaju deixou o centro 189 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 comercial e se expandiu pela cidade, criando outros trajetos. Consideraremos aqui trajetos os espaços delimitados dentro da cidade de Aracaju, onde a presença da arte pública é enfatizada e referendada por características sociais, históricas e urbanas. Neste artigo serão abordados apenas dois trajetos identificados como ‘trajeto orla de Atalaia’ e o ‘trajeto da centralidade histórica’. Trajetos contemporâneos da arte pública em Aracaju O ‘trajeto da centralidade histórica’ perpassa o espaço do centro histórico da cidade delimitado anteriormente e se expande das três praças para um perímetro maior. Esse perímetro é coberto pelo chamado ‘quadrado de Pirro’, que se estende do conjunto dos mercados (Thales Ferraz, Antônio Franco e Albano Franco) até a Praça Camerindo. Esse trajeto é marcado não apenas por obras do período de 1855 a 1930 (tratado anteriormente), pois ali está agregada uma série de intervenções de diversos períodos. 190 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret Tal característica demonstra mais uma vez a inclinação da capital sergipana no sentido de modernizar seus espaços mais antigos. Prova disso é a Galeria de Arte Álvaro Santos (GAAS), da Prefeitura Municipal de Aracaju. A GAAS se encontra no núcleo do trajeto histórico e é rodeada por painéis e uma escultura de estilo moderno. Os principais monumentos desse trajeto, além dos já citados, são os arquitetônicos, como a Ponte do Imperador, o Palácio Olímpio Campos e a Catedral Metropolitana. Configurando-se como uma importante centralidade do comércio popular, o centro de Aracaju conflui usos e significados que podem ser diferentes para a população e para os turistas, e ainda de acordo com seus horários de usos e públicos. Durante o dia, o comércio, e à noite, a prostituição. Trajeto Orla (Atalaia) Esse primeiro trajeto possui mais características específicas que o anterior. O calçadão da praia de Atalaia margeia a Avenida Santos Dumont, 191 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 que se estende desde o Farol da Coroa do Meio 51 até a Passarela do Caranguejo . Completamente reformada no governo de João Alves (20032006), a orla conta com uma série de ambientes, como quadras esportivas, lagos artificiais, oceanário 52, pistas de skate, praça de eventos e o Centro de Cultura e Arte de Sergipe, que abriga 48 miniboxes para a venda de peças de artesanato, além de diversos mobiliários urbanos. A orla de Atalaia é um espaço que centraliza um conjunto de obras de arte idealizado especificamente para esse local. É lá que o governo do estado vem agregando o maior número de obras públicas dos últimos dez anos. Nessa centralidade encontramos cinco conjuntos de arte pública institucionalizada, o que tem acontecido porque o projeto Orla utiliza um forte apelo para atrair renda e emprego através do turismo e do lazer. Concentração de bares e restaurantes na orla da Atalaia que recebe o nome do prato típico da capital sergipana, o caranguejo. 52 O oceanário é administrado pelo projeto Tamar, da Petrobras. 51 192 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret Arcos da praia de Atalaia A primeira obra a ser analisada no trajeto Atalaia destaca-se por possuir aspectos como temporalidade, dimensão e localização: os arcos constituem o maior e mais antigo monumento público erguido naquele local. Essa ‘obra de arte’ marca a entrada da orla, em seu principal acesso 53 , como um portal que convida os visitantes a conhecerem o espaço. Os arcos da orla nada mais são que um conjunto de quatro arcos de concreto revestidos com pastilhas cerâmicas de cor azul marinho tendo ao fundo a vasta extensão de areia. Para Walter Chou, o monumento construído pelo arquiteto Eduardo Carlomagno “foi imposto como marco na paisagem, não guarda referências a elementos anteriores na história da cidade” (CHOU, 2006:77). Acesso dos carros que vêm do centro e dos usuários dos ônibus, uma vez que o terminal fica muito próximo do local 53 193 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Praça da ‘sergipanidade’ A chamada ‘praça da sergipanidade’, cujo nome oficial é ‘espaço de convivência cultural’, foi inaugurada em 15 de março de 2006 e fica num local próximo aos arcos, à direita. Nesse espaço encontramos o que a professora Aglaé Fontes, coordenadora geral do projeto Grandes Personalidades, que deu origem a esse conjunto escultórico, chama de ‘vultos da história sergipana’. Ali encontramos dez esculturas de corpo inteiro, em bronze, que fazem parte da reestruturação da orla da Atalaia em Aracaju e foram produzidas pelo artista plástico carioca Otto Dumovich. Essas esculturas – estima-se que sejam de tamanho natural – representam os sergipanos Gumercindo de Araujo Bessa (jurista), Horácio Hora (artista plástico), Tobias Barreto Menezes (intelectual), Jackson de Figueiredo Martins (poeta e jornalista), Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero (intelectual), Mauricio Graccho Cardoso (jurista e político), Gilberto Amado (escritor, embaixador e jurista), Manuel José Bonfim 194 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret (médico e jornalista), José Calasans Brandão da Silva (escritor e historiador) e, finalmente, João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes (linguista e pesquisador da cultura popular). Apesar de representarem figuras humanas e estarem todas juntas na mesma praça, as esculturas não interagem entre si: cada uma olha para uma direção diferente, como se não se dessem conta da presença das outras personalidades. Além disso, tais esculturas, apesar de representarem ilustres sergipanos e até mesmo aracajuanos, encontram-se deslocadas de seus ‘locais de origem’. Comparemo-nas ao monumento a Fausto Cardoso, localizado na praça que leva seu nome: naquele local, Fausto Cardoso exercia sua militância política, sua interação social, além de ter sido assassinado naquela praça, tendo caído nas proximidades onde hoje está seu monumento. 195 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Segundo a professora e historiadora Aglaé Alencar, responsável pela organização do espaço, trata-se de mais uma iniciativa do governo para promover o resgate cultural. “É um trabalho cuidadoso que vem sendo estudado há algum tempo. Já que dispomos de uma área tão aprazível na Orla, nada melhor que aproveitar esse espaço para levar também conhecimento à população. As esculturas de Sylvio Romero e Tobias Barreto estão sendo instaladas e, ao lado delas, teremos informações sobre cada um deles. É importante que os sergipanos e turistas conheçam a importância destes intelectuais para nossa história”, disse Aglaé, acrescentando que as duas peças são as primeiras de uma série (Correio de Sergipe, 17 de junho de 2005). Podemos pensar que as figuras ilustres representadas nas esculturas, apesar de estarem em um mesmo espaço, quando vivas não conviviam entre si. A ‘praça da sergipanidade’ se encontra em um espaço e tempo descolado da história. A orla da Atalaia é um espaço novo, que ainda não se constituiu no imaginário sergipano como um local dotado de aspectos históricos, havendo, por esse motivo, um estranhamento entre as esculturas e o espaço que elas ocupam. Essa conquista deve ser facilitada por estarem as obras no mesmo nível da altura do público, sem o pedestal, o que possivelmente conferiria um 196 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret ar de superioridade, comum aos monumentos. As esculturas da ‘praça da sergipanidade’ são claramente inspiradas na ideia de outras instalações escultóricas, como a de Vinícius de Moraes, na Praia de Itapuã, na Bahia, local onde viveu por algum tempo, ou no exemplo mais notório, o do poeta Carlos Drummond de Andrade, na praia de Copacabana, localizada no Rio de Janeiro, local onde o poeta também viveu, sendo esta última uma obra inspirada na escultura de Fernando Pessoa em um café Lisboeta. Dessa forma, as obras da ‘praça da sergipanidade’, apesar de serem instrutivas para as novas gerações – uma vez que são acompanhadas de placas que contam, muito brevemente, quem foram essas figuras ilustres, onde nasceram, como viveram e quando morreram – não possuem uma conotação histórica satisfatória com o seu meio. Elas estão deslocadas do seu tempo e espaço original. Só muito recentemente o espaço da Orla de Atalaia foi considerado uma centralidade importante para o estado de Sergipe. 197 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Praça da ‘brasilidade’ O segundo espaço que possui um conjunto de obras públicas na Orla de Atalaia é a Praça da Brasilidade, inaugurada em 2006. Nesse local encontramos um conjunto formado por oito esculturas humanas, em tamanho natural 54, dessa vez não mais de personalidades sergipanas, e sim brasileiras. As esculturas foram produzidas pelo artista plástico mineiro Leo Santana. Posicionadas lado a lado, em uma fila, encontramos as representações de Juscelino Kubitscheck acenando, Getúlio Vargas, José Maria da Silva Paranhos Júnior (Barão do Rio Branco), Luiz Alves de Lima e Silva (Duque de Caxias), Izabel Cristina Leopoldina Augusta Michaela Gonzaga de Orleans e Bragança (Princesa Izabel), D. Pedro II, José Bonifácio de Andrade e Silva e Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes), este com direito a uma corda no pescoço e mãos amarradas. 54 Tamanho presumido. 198 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret Praça das Três Etnias Outros monumentos também dispostos na extensão da orla, resultado do projeto Grandes Personalidades, realizado pelo ex-governador João Alves Filho, homenageiam Inácio Barbosa, responsável pela transferência da capital administrativa de São Cristóvão para Aracaju. Nesse último conjunto escultórico existem quatro esculturas: a primeira delas representa o próprio Inácio Barbosa que, por não haver registro de sua imagem, foi homenageado com uma grande estrutura sem feições definidas, de contorno estilizado e que propõe a presença da figura de Inácio. Dessa maneira, Inácio Barbosa é representado por uma grande chapa de aço carbono de base curva, com a representação de uma figura humana com braços e cabeça recortados em ângulos retos, como percebemos na ilustração 19. Esse monumento é o de maior destaque do conjunto. A praça ainda faz referência a uma ideia de gênese do povo de Aracaju, representado por esculturas de três transeuntes: duas figuras masculinas, um negro e um branco, além de uma representação feminina de feições indígenas. 199 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 A segunda escultura do conjunto representa o branco, com uma escultura moderna, trajada de bermuda, camiseta, calçando sandálias e com um corte de cabelo bastante contemporâneo. O rapaz pode ser a representação de um turista ou de um transeunte que passa por ali cotidianamente. A terceira figura se refere à representação do negro, com uma escultura feminina, trajada com um vestido, sandálias de dedo, argolas, uma bolsa de palha e cabelos bem curtos. A imagem da mulher negra é representada também como uma turista ou uma transeunte comum que poderia estar passando por ali. A quarta e última figura é a indígena, que destoa das demais, primeiramente por estar mais deslocada das outras, sentada com um coco em uma das mãos, também de sandálias e de saia. No entanto, a ‘índia’ está com os seios à mostra e com um farto colar. Essa figura contrasta com as outras duas, uma vez que as representações do negro e do branco se encontram trajadas de forma contemporânea, ao contrário da índia. Podemos considerar esse conjunto escultural pertinente, no sentido de fazer referência, mais 200 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret uma vez, à relação do indígena com Sergipe, presente nas artes públicas desde a década de 1930, como já foi abordado neste artigo. Além do mais, a presença dos ‘turistas’ remete bem à formação de Aracaju, pois grande parte dessas pessoas, não apenas de outros municípios sergipanos, como também de outros estados, compõe a população da capital. As três praças construídas pelo projeto Grandes Personalidades buscaram evocar uma ideia de tradição e de história em um espaço novo, moderno, fora de um contexto histórico. Deduzimos, a partir dessas caracterizações, que as obras têm mais um apelo pedagógico e turístico do que preocupações estéticas. Uma concepção diferente das tradicionais estátuas para cultuar personalidades em praça pública está virando moda no Rio de Janeiro. Os ídolos são retratados com expressões descontraídas e situações reais, muitas vezes em tamanho natural. Os pedestais foram praticamente excluídos. No lugar de figuras militares e aristocráticas, entram os senhores da cultura popular brasileira (VITORAZZO, 2003). 201 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Para Walter Chou, “a intervenção dada à Orla de Atalaia é um exemplo do uso de políticas públicas na transformação das paisagens urbanas – pela necessidade de construção de imagens que comuniquem a ideia de modernidade das intervenções e de desenvolvimento local” (CHOU, 2006: 81). No que se refere ao teor simbólico da obra, percebemos que nos conjuntos escultóricos dedicados às três etnias formadoras da cidade de Aracaju, e do Brasil de maneira geral, o índio está descontextualizado diante do negro e do branco. Ainda no que se refere a uma valorização da diversidade étnica do estado, não encontramos nenhuma referência ao negro e ao índio entre os ‘heróis’ e ‘ilustres’ militares, políticos e intelectuais. Também na ‘praça da sergipanidade’, a figura do negro e do índio estão ausentes. No caso dos índios, povo de extrema importância histórica para a constituição do estado, foram esquecidas figuras como os caciques Japaratuba, entre outros. 202 Serigy, Siriri, Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret Na ‘praça da sergipanidade’, de fato foram privilegiados intelectuais nascidos em Sergipe, mas que viveram, produziram, tornaram-se notórios e morreram em outros estados ou até mesmo em outros países, o que faz transparecer a ideia de que os sergipanos são ou deveriam ser reconhecidos nacionalmente por sua cultura e seus relevantes serviços à nação. Considerações finais Conceituar a arte pública de uma maneira mais coesa mostrou-se indispensável para a elaboração deste trabalho. Para tanto, foi necessária uma fragmentação do termo em diversos conceitos que relacionassem a cidade, os artistas e as obras a outro ponto imprescindível para a análise do objeto: o responsável pela encomenda e pela preservação da obra de arte pública. A figura do responsável pela obra é parte indispensável à presente discussão, uma vez que a arte ocupa seu espaço na cidade não de maneira aleatória e sim objetiva. É nesse sentido – o da ocupação dos espaços públicos da cidade pela 203 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 arte – que percebemos os discursos implícitos e/ ou explícitos dos responsáveis pela arte pública a partir dos símbolos que se tornam presentes. Ao nos dedicarmos às obras cujo responsável é o poder público, constatamos uma recorrência de símbolos que se segmentam de acordo com os espaços da cidade e com os períodos histórico, político, econômico e social. Pudemos perceber que nas duas centralidades tratadas neste trabalho – a Aracaju histórica das praças Olímpio Campos, Almirante Barroso e Fausto Cardoso, e a centralidade moderna da Orla de Atalaia, também com suas três praças, a da brasilidade, da sergipanidade e das três etnias – substanciais distinções entre elas. Apesar da coincidência entre as duas centralidades (elas possuem três praças e estão repletas de monumentos de personalidades), na primeira, as personagens históricas estão em seus espaços e tempos reais, ou seja, os monumentos foram instalados pouco tempo depois da morte de seus representados ou em pleno período de suas atuações, eternizando, dessa forma, essas 204 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret personalidades. Em relação aos seus espaços, pudemos perceber que é na centralidade onde as personalidades viveram e conviveram que a representação dos atores históricos está dotada de sentido, ou seja, está de fato imersa em seus espaços ‘reais’ de convívio. No que se refere à segunda centralidade, a Orla de Atalaia, local de infraestrutura moderna – diferentemente do primeiro exemplo – encontramos um espaço que, apesar de ser considerado um símbolo para a cidade, não utiliza a praia como referência. Na verdade, a menção que se faz ao mar é praticamente nula, uma vez que todo projeto urbanístico está literalmente de costas para a praia e de frente para a avenida. Podemos dizer que a intervenção arquitetônica da Orla de Atalaia poderia ser construída em qualquer centro urbano, pois a paisagem natural do mar não é um fator que corrobora no entendimento do conjunto, e nem é valorizado pela intervenção. Apenas foi a célula inicial do processo de ocupação (do uso para lazer) (CHOU, 82, 2006). Apesar de possuir três praças com um grande conjunto de monumentos que tratam, na 205 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 maioria das vezes, de personalidades, elas são expostas de maneira completamente diferente daquelas da centralidade histórica, a começar pela disposição espacial. As obras da centralidade não estão afixadas em pedestais, mas diretamente no solo, como se fossem transeuntes, o que dá uma noção mais humana e menos ‘superior’ ou mítica das personalidades. Entre as personalidades nascidas em Sergipe, encontramos muitas personagens históricas que viveram grande parte de suas vidas em Pernambuco ou no Rio de Janeiro, tendo atuado pouco em seu estado natal. Dessa forma, o espaço em que se encontram está completamente deslocado de qualquer possibilidade real, mostrando que esses monumentos estão ali mais para um uso cênico do que histórico, servindo apenas como um conjunto interativo para fotos, como ‘espantalhos ao contrário’. Apesar de suas diferenças, ambas as centralidades têm suas propostas resolvidas. Enquanto uma ressalta o centro histórico 206 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret com a aura de seu ambiente arquitetônico e histórico, a outra está para uma modernidade interativa entre os elementos espaciais, sejam eles mobiliários urbanos, quadras de esporte ou obras de arte. São dois espaços, duas realidades e, consequentemente, duas percepções e distintos públicos, onde as obras se relacionam de forma distinta em suas centralidades. O que podemos perceber em Aracaju é a dispersão ou multiplicação dos espaços das obras de arte pública na cidade. Uma das principais manifestações da arte institucionalizada pelo poder público são os painéis instalados nos cinco terminais de integração da cidade. No entanto, o que ainda percebemos é a limitação do uso desses espaços nas temáticas, sempre vinculadas ao transporte. Em todas essas centralidades e espaços em que a arte institucionalizada pelo poder público aparece e foi aqui analisada, percebemos que, principalmente a partir da terceira fase do uso da arte pública, ou seja, a partir da década de 1980 em Aracaju, o discurso do estado esteve 207 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 atrelado a uma ideia de confecção e fixação de uma ‘identidade sergipana’. Porém, essa ideia ainda não está consolidada no imaginário dos sergipanos, apesar das fortes referências históricas e culturais desse estado. Aracaju enquanto cidade e, por conseguinte, Sergipe como estado não possui uma identidade consolidada, encontra-se como em busca de uma “marca da cidade”. Esta marca da cidade ainda não se mostra nítida nem para os próprios sergipanos, necessitando assim de uma idealização e utilização mais coesa dos meios de comunicação e entre eles a arte pública para que se crie esta marca, não por um símbolo e sim por uma idéia do estado. (...) Quando alguém vai a uma cidade, estado ou país elas já vão esperando algo. É esta marca que Sergipe ainda não conseguiu consolidar (Carlos Fortuna, Aracaju, 2007 55 ). Percebemos que este trabalho não se esgota aqui, uma vez que não apenas indica, mas possibilita caminhos de análises e estudos sobre a arte pública em Aracaju. 55 Entrevista com Carlos Fortuna. São Cristóvão (SE), 2007. 208 Tempos, espaços e trajetos: arte pública institucionalizada em Aracaju Ivan Masafret REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASTIDE, Roger. Arte e Sociedade. 3.ed. São Paulo: editora Nacional, 1979. BOVONE, Laura. Os Novos Intermediários Culturais. In: Fortuna, Carlos (org.) Cidade, Cultura e Globalização. Celta editora. Lisboa. 2001. CABRAL, Mário. Roteiro de Aracaju, BANESE, 3ª Ed, 2001. CARVALHO, Ana Conceição Sobral de. & ROCHA, Rosina Fonseca. (Org.) Monumentos Sergipanos: bens protegidos por lei e tombados através de decretos do Governo do Estado. Gráfica Sercore. 2006. CERTAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano, 1. Artes de Fazer. Ed. Vozes 9ª edição, Petrópolis. 2003. CHOU, José Walter Teles. Intervenções Arquitetônicas na formação de produtos turísticos. (tese de mestrado PRODEMA-UFS) 2006. 209 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 CRUZ, Antônio da. Antônio da Cruz: Múltiplos e Monumentais. Cinform, Aracaju. 2007b. ______________. José Inácio? Presente! 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O volume de investimentos para fazer com que a cultura venha a ser um instrumento poderoso para a nação está associado ao direcionamento econômico e à sensibilidade de quem administra estrategicamente o erário e os acumuladores de capital. No Brasil, com Antônio da Cruz é artista plástico e cenógrafo. Observador desse universo artístico. Começou a sua carreira propriamente em 1974, no Prêmio ASC de Pintura, na Galeria de Arte Álvaro Santos, de onde foi diretor de 2001 a 2005. Cruz é também o autor do Projeto Galeria em Aberto, a que se refere este texto, e integrou o grupo Guyme-hawc. 56 217 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 uma sociedade de primórdios aristocráticos e escravagistas, de economia fortemente rural, a exemplo do ciclo do gado e da cana de açúcar, ficou na memória de quem se sente elite o zelo moral de afastar o povo da apreciação de quase tudo que representasse “o bom gosto da ‘verdadeira cultura’”. Em Sergipe não tem sido diferente. Até os dias atuais, há uma insistente dicotomia em que a cultura popular é mero folclore e a cultura europeia é erudita. A ideia equivocada de que ‘o povo não compreende porque não tem cultura’ arraigou-se e se tornou estigma. Existe aí um componente ideológico muito forte. Torna-se necessário oferecer ao povo muito mais: variados e bons espetáculos, gratuitamente, para serem cultivados. A cultura europeia estilizada, com elementos da cultura negra e indígena, que no Brasil chamam de popular, passou a ser compreendida como valorosa e a receber a atenção das autoridades apenas recentemente. Por significar autoestima e identidade, além de dar retorno econômico e social vários setores organizados da sociedade 218 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz insistem em cobrar presteza dos mandatários. Sob o ponto de vista do que se chama evolução civilizacional, há uma grande defasagem entre o Brasil e outros lugares do mundo. Enquanto no Oriente as artes e as ciências eram lugarescomuns, a Europa estava na barbárie e o Brasil, ignoto, era um paraíso desprovido da sabedoria capciosa. Quando o Renascimento acontecia na Itália de 1500, os portugueses chegavam ao Brasil para lhe tirar a inocência, trazer o que era possível de conhecimento europeu e, definitivamente, transformá-lo ao seu modo. Sergipe esteve, até a década de 60 do século XX, muito atrelada socioculturalmente às capitais do Brasil, Salvador e Rio de Janeiro, cada uma com o seu período de influência, e estas à Europa. Aracaju se entregou ao mesmo desígnio. Cidade que saiu da sua evolução natural de povoado de pescadores para artificialmente ser a capital do estado no final do século XIX, até a década de 60 do século seguinte roubou a cena de cidades então importantes do interior, esvaziando-as. Estudiosos só despertaram para reconhecer tal fenômeno e a sua história mais de 50 anos 219 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 depois da sua fundação. Tal apatia histórica se reproduz em relação à memória artística e cultural do próprio lugar e, por consequência, às artes plásticas de todo o estado. Horácio Hora Estudar epistemologicamente a vida de um artista e a sua produção não é transformá-lo em mito, mas colocá-lo devidamente no contexto histórico e cultural. Cada artista cabe na fama que ele mesmo conseguiu pelos seus feitos. O resto é lenda. Vasculhando-se a história, verifica-se que a quase totalidade dos intelectuais e artistas sergipanos com brilho pelo Brasil afora conseguiram esse feito por sua luz própria, não pelo fato de que a sociedade e o estado, de modo proposital e consciente, se esforçassem em lhes oferecer todo o suporte para isso. Dentre as exceções, existe o caso de Horácio Hora, pintor laranjeirense que obteve do imperador D. Pedro II uma bolsa para estudar em Paris. Das suas obras conhecidas por aqui, algumas 220 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz se encontram em exposição no Museu Histórico de Sergipe, localizado em São Cristóvão, e outras poucas em coleções particulares. Por outro lado, o caso de Horácio Hora é exemplar quando se busca entender as relações de compadrio e clientelismo existentes até hoje na sociedade brasileira. Decorrente desta herança, os artistas próximos ao poder tenderão a auferir melhores e maiores dividendos. Somente com o aprofundamento da democracia os vícios residuais da aristocracia, inconscientemente impregnados no imaginário da sociedade, serão erradicados. Mas Horácio Hora não se rendeu de todo aos caprichos da classe dominante e ao seu classicismo. Gumercindo Bessa escreveu: ... fez acto de adiantada cultura, revoltou-se contra o ensino tradicional, contra o absolutismo na arte, contra o regime auctoritário da Academia, para acolher e cultivar a arte verdadeira, a arte sem pedantismo, a arte essencialmente expressiva. (Álbum Horacio Hora. 2003) Com uma população de religiosidade ibérica arraigada, Sergipe adquiriu um imenso acervo de cópias de imagens de Santos católicos romanos, pintadas ou esculpidas, tanto por 221 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 artistas anônimos como por mestres, sob encomenda da igreja e seus seguidores. Parte desse acervo está com particulares, enquanto outra se encontra nos Museus de Arte Sacra de Laranjeiras e de São Cristóvão. Retratos Como na Europa, a burguesia brasileira e a sergipana seguiram a aristocracia também encomendando retratos para notabilizar os homens públicos da classe. Políticos, funcionários públicos graduados e profissionais liberais estão retratados sob a ótica dos pintores nas cores e técnicas do francesismo acadêmico. Nos lares populares, retratos com tinta aquosa sobre papel, guarnecidos por uma moldura ovalada, foram coqueluche durante anos a fio. Esse é, ainda, um modo popular de memorização da imagem dos entes queridos. Tal objeto, que possui muito valor sentimental, é inexpressivo como arte e, decerto, encontra maior significância para a etnologia. Na virada do século XIX para o XX, em busca 222 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz de novas perspectivas, o mundo interiorano sergipano entabulou com a capital. Os descendentes dos imigrantes europeus que foram, nos primórdios da colonização, formar cidades rios acima no interior, agora vinham para o litoral, assim como os nativos. Aracaju, aos olhos de muitos, independentemente da origem, parecia ser promissora. Considerando que, no espectro das artes plásticas, incluem-se a arquitetura e o artesanato, uma das manifestações de destaque seriam os primeiros prédios imponentes das capitais. Em São Cristóvão (SE), evidencia-se o peso secular da arquitetura colonial. Na transferência da capital para Aracaju, há indícios de que a escassez de mão-de-obra especializada obrigou o poder público a importar de engenheiros a mestres de obra para construir os prédios no estilo em voga no Rio de Janeiro: o neoclássico de Paris. Não há aí qualquer traço de identidade arquitetônica sergipana. Os modelos de casas residenciais populares em alvenaria com platibanda se assemelham às demais do Nordeste: telhado colonial em duas águas, quartos laterais, um 223 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 corredor longo e escuro, fachada simples com portas e janelas estreitas. Quando não eram heranças do período colonial português, sofriam influências neoclássicas ou ecléticas. As casas de palha e taipa que chegaram a abrigar os moradores da recém-criada capital, caso resistissem como heranças residuais de habitações indígenas, mesmo precárias, poderiam servir de modelos arquitetônicos genuinamente sergipanos. Hoje, há uma estilização generalizada desse tipo de construção, lembrada apenas pelo aspecto da cobertura, não mais como padrão de moradia, mas atração exótica para atrair turistas, abrigando bares e restaurantes. Nas décadas de 1950 e 1960, a arquitetura de Aracaju se revigorou. Casas da Avenida Ivo do Prado, Rua Vila Cristina e das cercanias têm ótimos exemplares de uma arquitetura enxuta, ousada e bonita. Ali, a classe média exibe o bom gosto que pode desfrutar. Nesse período, surge o primeiro grande prédio de apartamentos de Aracaju: o Edifício Atalaia. Para conhecer a cerâmica sergipana dos habitantes dos primórdios da colonização, 224 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz somente localizando seus possíveis sítios arqueológicos. A cerâmica de Carrapicho ganhou grande projeção e tem entre os seus nomes mais expressivos o de Capilé. Há também outras cerâmicas de várias cidades ribeirinhas do Rio São Francisco. Os programas governamentais e a presença de pessoas com orientação de desenho aos artesãos, em Carrapicho e outras localidades entre as décadas de 1980 e 1990, influenciaram a produção. Os traços originais simples, produzidos pelos populares, associados meramente a fins utilitários da cerâmica, enriqueceram-se com curvas, texturas e formas. Hoje, em Aracaju, Beto Pezão e Wilton fazem cerâmica de forte identidade. Os Mestres Tonho e Véio, no sertão, transformam a madeira em expressões do homem forte. A renda artesanal produzida sob vários estilos é rica, assim como a tapeçaria com motivos regionais. A tapeçaria sofisticada encontra nos nomes de Antônio Mendes Queiroz, Luiz Adelmo e Alfredinho os seus grandes representantes. 225 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 ‘Exílio’ de artistas Uma expressão corrente em Sergipe entre aqueles que apreciam e acreditam no talento do artista, mas não sabem o que fazer por ele, é: ‘você está se perdendo aqui’. Significa que somente se atirando ao mundo o artista pode obter reconhecimento e sobreviver como tal. O campo não oferece o universo sofisticado que se imagina existir na capital, mas, tanto a indiferença quanto a falta de escola acabaram distanciando os potenciais artistas e a população das artes plásticas. O material de pintura era caro e escasso. O mármore, uma raridade. O processo de fundição em bronze, complexo e caro. Como provável exemplo dessa realidade, o busto de Jackson Figueiredo foi fundido em 1938, no Rio de Janeiro. A pedra calcária usada durante o período colonial nas construções, antes do adobe e do tijolo, poderia ser utilizada como o faz Zeus atualmente, mas o calcário é sensível a impactos e, quando exposto ao tempo, sofre erosão devido à ação abrasiva das partículas sólidas trazidas pelo vento. 226 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz Tudo isso dificulta a produção de qualquer artista, mesmo tendo talento. Aracaju se transformou em um centro comercial, sede do poder; um porto seguro e porta de saída. Muitos artistas vindos do interior partiram para outros estados, como Oséas dos Santos e Jordão de Oliveira, e para o mundo, como Antônio Maia, nomes constantes em longos e importantes capítulos da história das artes plásticas. J. Inácio em três momentos: o artista plástico vivo mais popular de Sergipe Quase a totalidade dos artistas até hoje é autodidata e de origem humilde, portanto, vem do seio do povo. Esses artistas vieram a sofrer influências do mesmo universo acadêmico que institucionalizou os rumos da arte no Brasil a partir da Missão Artística Francesa de 1816, até meados da década de 40 do século XX. Em 1820, foi criada a Academia e Escola Real das Artes, no Rio de Janeiro. Em 1826, foi fundada a Academia Imperial de Belas-Artes. O mesmo academicismo fez seus seguidores resistirem 227 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 ao movimento modernista, em 1872, quando surgiu o impressionismo. No Brasil, na Semana de 1922, o academicismo também renegou as novidades. Acadêmicos opunham-se, ridicularizando e agredindo fisicamente obras modernas, rotulando os artistas de comunistas e subversivos, e as obras como um atentado à moral e aos bons costumes. Em São Paulo, no ano de 1934, uma exposição de pintura de Flávio de Carvalho chegou a ser fechada pela polícia e aberta somente com ordem judicial. Nove anos após a Semana de Arte Moderna, os artistas cariocas realizaram o Salão Revolucionário de 1931, com a participação de Cândido Portinari, Vittorio Gobbis, Ismael Nery e Cícero Dias, vedetes do modernismo fluminense. Ao longo das décadas de 1930 e 1940, grupos de modernistas foram formados em Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre. Em Sergipe, sem Escola de Belas Artes e sem estímulo, na década de 1940, artistas como Jordão de Oliveira, Jenner Augusto, Álvaro Santos e o seu irmão Florival Santos 228 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz captaram elementos impressionistas, cubistas e abstracionistas e os imprimiram nas suas telas. Nas paisagens do mestre-de-muitosmestres Jordão de Oliveira, que lecionou no Rio de Janeiro, durante 41 anos, pinceladas apareciam soltas sem o claro-escuro tipicamente acadêmico, muito comum nos retratos que ele mesmo pintava. São pinturas luminosas. Jenner Augusto, além de toda a carga dramática regional, tema que lhe era caro, pintou formas compondo-as em planos, ao modo cubista de Portinari, ou como diz o poeta Vinícius de Moraes “... e com o amarelo adstringente dos cajus resumiste o cubismo de taipa...” 57. O índio brasileiro também é tema nacionalista frequente na pintura de Jenner. Elementos do impressionismo há muito são encontrados na pintura do ex-comunista e “anarquista” J. Inácio, o artista plástico de maior popularidade em Sergipe. Em seu aniversário Vide webgrafia – portal terra. http://terramagazine.terra.com. br/interna/0,,OI3026365-EI6581,00.html 57 229 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 de 93 anos, a Sociedade Semear prestou-lhe uma grande homenagem, criando o Prêmio J. Inácio. Seu filho, Caã, seguiu esse mesmo rumo, porém, com uma intensidade cromática mais acentuada pelas cores quentes. Ele cria situações de contrastes instantâneos com uma cor fria ao lado de uma quente, produzindo um efeito luminoso de uma coloração belamente desconcertante aos olhos. Indiferença Artística Enquanto em São Paulo e no Rio de Janeiro os acadêmicos se incomodavam com a presença dos modernistas, em Aracaju a indiferença da sociedade em geral continuava, como descrevia Álvaro Santos em um dos seus textos: A exposição é aberta, o povo entra, os homens em sinal de respeito com os chapéus na mão, as senhoras elegantes falando das filhas que também pintaram um quadro, ‘uma maravilha’ os rapazes entram fazendo hora para o cinema. As mocinhas por curiosidade e quando por acaso se deparam com nu: Jesus! Ouvem-se risinhos, as gracinhas tão sem graça...! (...) mas, ninguém adquire obra. (Citado na “Agenda de Aracaju”, 1991) 230 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz Ganhar visibilidade e vencer barreiras sociais rumo à ascensão foi sempre difícil para um artista. Um caso exemplar é o de Zé de Dome, um operário filho de uma tecelã, nascido na cidade de Estância, que viveu também em Salvador, falecendo 17 anos depois na cidade de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, onde viveu. Zé de Dome chegou a passar fome. Se não logrou fortuna, ganhou prestígio. Em Cabo Frio, a sua casaateliê foi frequentada por celebridades. O seu nome ganhou o mundo. Um prédio do século XIX, ao ser convertido em espaço cultural, em 1995, foi denominado Museu e Casa de Cultura Zé de Dome. Em Aracaju, como em Cabo Frio, virou nome de rua, no bairro Farolândia, graças a “Seu” Osvaldo, uma figura ímpar que era o grande moldureiro e amigo dos artistas. “Seu” Osvaldo conseguiu formar um acervo precioso desde a década de 1960 e, assim, constituiu a Galeria de Arte Zé de Dome. Grande parte desse conjunto de obras nasceu do escambo com os artistas que lhe propunham pagar os serviços de molduraria com obras de arte. Os filhos de “Seu” Osvaldo, representados por Marcelus, são os herdeiros desse significativo 231 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 acervo e têm realizado exposições permanentes na galeria, além de mostras temporárias em outros espaços, como os centros de compras. É bem certo que os sergipanos não puderam defender ardorosamente e em tempo real os manifestos futurista, dadaísta e o surrealista, por exemplo, tanto pelo desconhecimento, quanto pela distância ou defasagem das notícias. O contato dos artistas sergipanos com o Sudeste, entre meados de 1930 e 1940, fez brotar a vontade de pesquisar formas e, principalmente, a aplicação das cores com a riqueza típica daqueles movimentos modernistas. Assim aconteceu com os irmãos Álvaro e Florival Santos. No plano pessoal, mais precisamente biológico, o reservado Florival resistiu com a sua saúde de atleta às agruras da vida de artista até os 90 anos de idade. O irmão Álvaro Santos, que escrevia para os jornais, era opinativo e amante da vida boêmia, não teve a mesma longevidade, falecendo aos 43 anos em decorrência de uma enfermidade. Obras de Florival são encontradas nos palácios 232 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz do Governador e no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Já as de Álvaro, quase todas integram coleções particulares. Ambos foram homenageados pelos amigos e autoridades. A galeria municipal de arte, localizada na Praça Olímpio Campos, ostenta orgulhosamente o nome de Álvaro. Já a galeria do Cultart, Centro de Cultura e Arte, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), recebeu o nome de Florival. No rol dos contemporâneos desses dois mestres das artes plásticas sergipanas se inserem Jenner Augusto, José Inácio e Zé de Dome. Cada um traçou seu próprio rumo. Leonardo Alencar, Otaviano Canuto e o irrequieto ‘homem plural’ Celso Oliva, entre 1950 e 1960, surgiram no cenário seguindo a trilha do mestre Florival. Galeria Álvaro Santos Em 1966, foi construída a Galeria de Arte Álvaro Santos. Criou-se assim, mais uma oportunidade para os talentos que expunham nos clubes 233 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 e bibliotecas, naquele período os locais mais apropriados para isso. Wellington, François Hoald e Gilvan Rocha, cada um com a sua linguagem pictórica, vivenciaram esse momento como artistas. Nessa mesma década, Adauto Machado se torna definitivamente artista plástico e, no final do século XX, experimenta a arte digital, ganhando prêmios internacionais. Mesmo assim, ele continua produzindo obras com temas regionais, como as feiras sergipanas, e ministrando cursos de arte. Uma enorme tela de Adauto está exposta no hall de entrada da Assembleia Legislativa de Sergipe, no chamado Espaço Cultural Djenal Queiroz. Na década de 1970, Anete Sobral realizava a sua primeira exposição, na inauguração do Conservatório de Música; expondo também em Salvador, São Paulo e Brasília. O estanciano Félix Mendes, que se iniciou no Rio de Janeiro, assim como Anete, tem entre os seus motivos preferidos os costumes e os vários aspectos da vida sergipana no autêntico estilo naïf. O Salão FASC, que integrava os festivais de arte de São Cristóvão, revelou talentos como Anselmo Rodrigues, 234 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz Joubert Morais, José Fernandes, Gervásio e Melcíades. Nessa década, surge o artista Daniel Gonçalves, um servente da Galeria de Arte Álvaro Santos, (GAAS), que gostava de pintar marinas. Mais tarde, em homenagem ao artista, a sala do piso superior da GAAS recebeu o seu nome. Baltazar Góes, famoso pelas belas e claras paisagens de Aracaju, e Ewerton, com fortes imagens expressionistas, são dois artistas que, opostos nos temas e estilos, também se incluem na história da arte sergipana. Grupos, movimentos e cursos revelaram talentos. Melcíades e colegas da antiga Escola Técnica Federal organizaram em 1975 o grupo GuymeHawc e realizaram exposições, incluindo a I Coarte, em Aquidabã, com o apoio de João Francisco dos Santos, o Chico Buchinho. Nos anos de 1970, também chegou a Sergipe o paulista Eurico Luiz, que coordenou projetos importantes e tem vários trabalhos espalhados pela cidade de Aracaju. A exemplo de Leonardo Alencar e Canuto, estudou na Escola de Belas Artes da Bahia. João de Barros, o Barrinhos, 235 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 além de pintor de motivos sacros, foi um dos grandes incentivadores dos artistas. Luiz Adelmo instalou a Galeria Horácio Hora, onde seu irmão Abelardo Soares se lançou artista. Na cidade de Laranjeiras, Severo D’Acelino manteve por alguns anos a Galeria Castro Alves. Década de 1980 Na década de 1980, os artistas plásticos Bené Santana, Cláudio Vieira e Elias Santos formaram um trio imbatível, arrebatando prêmios nos vários salões. Hortência Barreto, Zeus, J. Silveira, Anete Sobral, Jorge Luiz, Bosco Rolemberg, Luiz Mangueira e Pythio fixaram suas imagens junto ao público a partir deste período. Nessa década, surgiram as Galerias J. 58 Inácio (estadual); a Florival Santos, no Cultart; Portinari, do marchand Jorge; e a Ludus Artes Galeria, do jornalista, crítico de arte e marchand Luduvice José. Todos esses espaços serviram para dinamizar o incipiente mercado 58 Centro de Cultura e Arte. (da Universidade Federal de Sergipe) 236 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz de arte sergipano. Foi também nessa década que o tímido Rafael, pintor de delicadas figuras em enigmáticos espaços cósmicos, mostrou a beleza das suas obras ao público. Com essa geração, foi intensificado o experimentalismo nas obras de arte. Na década de 1960, Otaviano Canuto desenvolveu um trabalho que agregava pedra, argamassa e tinta, compondo o painel Três Pintores, localizado no lado sul da Galeria de Arte Álvaro Santos. A existência de novos materiais, fruto da tecnologia ou da reciclagem de tantos outros, fez com que os artistas esquecessem preconceitos e enveredassem por novas concepções, fugindo da arte simplesmente representacional, como o retrato. As instalações e as intervenções assumem aspectos próprios que permitem releituras em vários ângulos, segundo o conceito do próprio observador, não mais obedecendo ao determinismo. O artista Hertz, que surgiu na década de 1970 nos Festivais de Arte de São Cristóvão (FASC), ousava com suas abstrações e instalações e estava em sintonia com o que acontecia nos grandes centros. 237 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Linguagens Diversificadas Hoje, todas as classes sociais são influenciadas pela tecnociência. Através das mídias, que utilizam uma grande diversidade de linguagens, há inúmeras possibilidades de releituras dos estilos dos movimentos modernistas se somando com a inventividade e a experimentação do artista contemporâneo, com o objetivo de ultrapassar os limites da aparência. A cor, a forma, o suporte da obra, convencional ou não, valorizam a subjetividade do espectador, levando-o à conceituação. A ‘deformidade’ das obras, que muitas vezes são objetos isolados, não se preocupa com a ordem estética, pois ela pressupõe excesso de racionalidade e menos organicidade. O suporte – no qual é feita a obra - é a própria obra. Nas instalações, há o envolvimento do espectador com o meio, ou seja, ali se dá uma completa interação. Elias Santos expôs, em 2001, no SESC Centro, “A Cor do Osso”. Inusitado. Um intrigante ‘banquete de ossos’ para profunda reflexão do público diante de tanta estranheza. Bené 238 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz Santana sacou peças de madeiras, refugos de construção, para montar a provocativa “Escamas da Sombra”, na Galeria de Arte Álvaro Santos. Três artistas também merecem destaque a partir da década de 1980: Wellington Lino da Costa, que além de pintar tem feito restaurações em vários prédios; Edidelson, chargista de mancheia que produziu, entre tantos outros, dois importantes painéis em espaços públicos que, de forma insensível e criminosa, foram apagados menos de dois anos depois de concluídos. Da parceria dos dois, em termos de execução, sobrevive a pintura muralista do viaduto que fica no cruzamento entre as avenidas Hermes Fontes e Saneamento. O terceiro é Otávio Luiz, que se formou e ensinou na Escola de Belas Artes da Bahia e atualmente leciona na UFS. Ele modelou em fibra de vidro e resina a gigantesca imagem de Nossa Senhora do Carmo, que fica em Carmópolis, e tem painéis cerâmicos em prédios da capital. Continua a migração. Fernando Cajueiro, que é natural de Nossa Senhora da Glória e morou 239 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 muito tempo no Rio de Janeiro, agora está em Aracaju. Mas, ainda no interior, as presenças de Pinto (agora em Aracaju) e Jocka, em Propriá; Deolando Vieira, em Neópolis; Nogueira e Mérito, em Laranjeiras; Zeus, em Pedra Branca; e Pedrinho Ará, em Carrapicho (Santana do São Francisco), compõem um elenco interiorano bem representativo. Aracaju acolheu estrangeiros que se integraram muito bem ao meio artístico, como José Carrera, Rina, Alfi Gristelli, Willy Valenzuela e Juan Tejera, assim como os patrícios Marcelo Uchoa e João Valdenio, ambos do Piauí; os alagoanos Jorge Maia e Costa de Lima; além dos baianos José Lima e Dionéia Patterson. Novos Talentos A década de 1990 continuou promissora em termos de surgimento de talentos. Leonardo Alencar, Adauto Machado e Eurico Luiz já haviam desencadeado o processo de surgimento de artistas com seus cursos, a partir dos anos de 1970. No Cultart, a Profª Eunice também ministrou aulas de pintura e desenho. Existem 240 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz ainda os pequenos cursos, como os ministrados na escolinha de arte Cores & Telas. Mais do que uma série de oficinas, Elias, Cláudio Vieira e Bené Santana criaram um movimento: o Núcleo Arte. O objetivo era dar aos muitos artistas a oportunidade de se mostrarem hábeis, sensíveis e criativos com seus instrumentos. Entre eles, podese citar Jacira Moura, Zil, Edjane Leite, Alice Cruz, Marcos Vieira, Márcia Guimarães e Fábio Sampaio. Mesmo que muitos desses artistas tenham começado a lidar com a arte bem antes, foi a partir dos anos de 1990 que o público passou a conhecer seus trabalhos. Alguns, com discrição. Outros, com força total. Augusto César é um explosivo surrealista; Ivan Santos, um poeta de versos e imagens; Marcelo Belarmino, exibindo suas pesquisas rupestres; Fyo e suas parabólicas, Marcelo Gaspar, com figuras humanas herméticas; Gilcó e as esculturas multiformes; Edson Ferreira, do traço a nanquim esmerado e próprio; Adelson, o médico das formas semi-abstratas; Karinne Santiago, a seguidora do mestre Elias; e ainda Inaldete, a sensível espiritualista de pinturas gestuais. Alguns 241 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 desses artistas compuseram grupos e montaram exposições coletivas. Fazendo jus à história, em Aracaju houve, de fato, um significativo crescimento das artes plásticas na década de 90 do século XX. As galerias de arte mais ativas passaram a ser mais frequentadas. Cresceram o público e o número de artistas. Espaços até então ignorados por serem considerados inadequados para exposições, a exemplo dos centros de compras e os bares, passaram a ser cobiçados como galerias alternativas de artes, atraindo o público. As empresas descobriram o ‘marketing cultural’, passando a investir em espaços, ainda que exíguos e por vezes inadequados para exposições de arte, onde prosseguem realizando mostras mensais com artistas de gerações e linguagens distintas. Foram criados mais espaços para exposições. A Galeria de Arte Álvaro Santos foi ampliada. O Yázigi criou um complexo contendo um teatro, um anfiteatro e uma galeria, iniciativa brilhante que compensou, em parte, o fim da Horácio Hora e da Ludus Artes Galeria e o afastamento 242 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz da Portinari da efervescência cultural. Ainda que a finalidade da sua galeria de arte não tenha como objetivo exclusivo a comercialização de obras, o Yázigi deu à cidade e aos artistas um belo e exemplar presente. Em 1993, o pequeno, mas provocativo projeto Galeria em Aberto, lançado no hoje extinto Bar Vai Levando, durante 15 dias ofereceu artes plásticas na forma de exposição em praças e escolas, além de oficinas e palestras sobre a história da arte aos alunos. Foi uma iniciativa própria, sem patrocínio governamental ou de empresas. Participaram, além deste autor, os artistas: Nogueira, Elias, Cláudio, Fyo e Marcelo Belarmino. Criada no início da década de 1990, a Associação Sergipana dos Artistas Plásticos (ASAP) foi reativada a partir de 1996. Já o Salão FASC 59 passou a ser organizado em Aracaju pela UFS. Artistas filiados à ASAP realizaram seminários e viagens de intercâmbio para Aracaju e várias outras cidades do Brasil. Entre os participantes destes intercâmbios, pode-se citar Zil Rezende, Tânia Arruda, Dayse Barreto, Nogueira, Marcos 243 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Vieira, Sueli Guarabyra e João Valdenio. Todas essas ações fizeram com que mais artistas fossem notados pelo público e as artes plásticas ganhassem a visibilidade merecida. Em 2000, o Governo do Estado, através da Secretaria de Estado da Cultura (Secult), publicou o catálogo Rumos, trazendo os artistas que estavam no momento em evidência. Entre 1997 e 2002, a Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Esportes (Funcaju) lançou as biografias de Pythiu, Melcíades, Zeus, Silveira e Zé Fernandes, por iniciativa do marchand e exdiretor da GAAS60, Dinho Duarte. Após a virada do milênio, nos anos de 2002 e 2003, até o Exército Brasileiro organizou a sua gincana de pintura, com premiações estimuladoras em várias categorias. Em 2002, aconteceu o primeiro Concurso de Escultura na Areia e, em 2003, o primeiro Salão Praieiro, 59 60 Universidade Federal de Sergipe Galeria de Arte Álvaro Santos. 244 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz ambos promovidos pela Prefeitura Municipal de Aracaju (PMA), através da Funcaju. Sem outra pretensão, senão a vontade de dar continuidade à dinâmica dos anos de 1990 e revigorar os talentos da terra, Fábio Sampaio tomou para si, em 2002, a responsabilidade de ser curador de uma grande coletiva que deveria acontecer na então apática Galeria J. Inácio, mas que acabou sendo realizada no antigo Palácio Olímpio Campos. O local, ex-sede oficial do governo Estadual, era um ‘ensaio’ de Pinacoteca que não chegou a se concretizar e, somente em 21 de maio de 2010, após uma vigorosa reforma, foi reinaugurado como Palácio-Museu Olímpio Campos (PMOC). A exposição, denominada Vinte de Noventa, foi realizada com a participação de 22 artistas, todos eles com destaque a partir da década de 1990. A maioria dos participantes integrou projetos importantes, como Emergentes, do Cultart, e Salão dos Novos, da Galeria de Arte Álvaro Santos, sendo inclusive premiados. Além disso, alguns desses artistas militaram na Associação 245 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Sergipana dos Artistas Plásticos e de Artes Visuais. Estiveram presentes da tradicional tela pintada em cavalete à provocativa instalação de Elder Dantas. Participaram da mostra Alex, Boby Cuspy, Edjane Leite, Jacira Moura, Karinne Santiago, Laécio Santos, Marcelo Roque Belarmino, Marcos Vieira, Milton Coelho, Nil Cavalcante, Nogueira, Rodrigo Reis, Tânia Alcântara, Walburga Arns, Willy Valenzuela, Joel Dantas, Ana Denise, Vicente Coda e os fotógrafos Benedito Letrado e Márcio Garcez. Sociedade Semear Outro presente recebido pelos aracajuanos, em 7 de fevereiro de 2003, foi a Sociedade Semear, um complexo cultural incluindo uma galeria que foi inaugurado com a última exposição, em vida, de Jenner Augusto. Cerca de um mês depois, o artista, que se encontrava com a saúde debilitada faleceu em Salvador, onde morava desde junho de 1949, e onde foi homenageado várias vezes, como em 1994, quando foi criada a galeria Espaço de Arte Jenner. Faleceu também no dia 30 de abril de 2003, em Aracaju, Hugo 246 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz Portela, pintor de temas regionais. No dia 15 de julho de 2008, a Secult61lançava o Dicionário 2 Séculos de Artes Visuais em Sergipe,62 tendo como verbete 130 artistas, destacandolhes seu perfil e sua produção artística. Certamente, muitos nomes não foram aqui citados e algumas datas com relação ao surgimento de artistas foram imprecisas, mas o espaço temporal e gráfico, assim como as pretensões, são todos pequenos para contar aqui toda a história das artes plásticas em Sergipe. Este texto é só uma provocação. Esperase que historiadores ou críticos devidamente credenciados se interessem pelo assunto, pois terão muito para contar às gerações futuras. Oxalá, depois disso as artes plásticas venham a ocupar condignamente os passeios, praças, fachadas de prédios e demais espaços das cidades, exibindo a vida com sensibilidade e inteligência nas terras sergipanas. Secretaria de Estado da Cultura (Sergipe) Financiado pelo edital – Conexão arte visuais – MINC, FUNARTE, Petrobras. de 2008. 61 247 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZAVEDO, Silvane Santos; CHOU, José Walter Teles; SANTOS, Elias (Orgs.) Dois Séculos De Artes Visuais Em Sergipe. Sociedade Semear, Aracaju. (2008). BARRETO, Hortência (org.). Véio. Secretaria do Estado de Sergipe. (2005). GOVERNO DE SERGIPE. Álbum Horácio Hora. Aracaju, secretaria de estado da Cultura, 2004. VIDEOGRAFIA PONTUAL, Adelina (roteiro e produção). Véio. REC produtores associados e CHÁ cinematográfico. (2005). WEBGRAFIA Portal TERRA, Terra Magazine. Jenner Augusto – Opiniões (Quinta, 24 de julho de 2008) - http://terramagazine.terra.com.br/ interna/0,,OI3026365-EI6581,00.html 248 Artes plásticas em Sergipe: a história que precisa ser contada Antônio da Cruz Fontes: Agenda de Aracaju 1991, da então Secretaria Municipal de Cultura); A Arte Como Investimento, Diva Benevides Pinho, Editora Nobel; Jenner Augusto Desenhos, Casa de Palavras; Revista de Aracaju no 10, Funcaju, 2003; Celso Oliva Homem Plural,editado pela então Secretaria Municipal de Cultura NOTA: a Secretaria Municipal de Cultura foi convertida em Funcaju, Fundação Cultural Cidade de Aracaju e depois em Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Esportes. 249 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis 63 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis C ontemporâneo. O que é ser contemporâneo? No campo da história, é o período que, por convenção, se inicia com a Revolução Francesa. E se uma dada produção artística se percebe como contemporânea, os artistas representantes dessa produção, reconhecem, conseqüentemente, sua condição histórica, ou seja, o diálogo, na maioria das vezes, conflituoso com o entorno. E se é como contemporânea que a arte desses artistas deve ser vista, apreendida, significa que um certo ‘aqui e agora’ é a referência principal de onde o material a ser trabalhado e transformado em objeto de arte é retirado. A arte sergipana... Tenho imensa dificuldade em tratar com esses termos: o substantivo e o adjetivo. Penso que, talvez, seja mais fácil para mim, dadas as minhas limitações, comentar, Possui graduação em Filosofia Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Sergipe (2007) e mestrado em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (2010). 63 253 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 tecer considerações sobre a arte que se produz em Sergipe. Certo que, se levamos em conta a relação artista/entorno, a realidade cultural desse lugar, sua história, sua formação agem como elementos orientadores, em maior ou menor grau, na concepção, nos projetos artísticos. Entretanto, as propostas individuais trazem o elemento da universalização. Esse componente pode se revelar de forma negativa ou positiva: ou se apresenta como uma colagem aleatória de escolas, estilos, soluções, ou é ruminado e transformado em algo realmente significativo. E não tem de ser obrigatoriamente (pois provavelmente não mais algo o será) referência da originalidade. E o entorno se apresenta: eis, por exemplo, o caso ‘Pivetta’, a ‘pichadora’ que ‘atacou’ a XXVIII Bienal de São Paulo, detida e, até o momento em que este texto foi produzido, aguardando sentença. Contudo, agora, Pivetta é convidada a participar da Bienal 2010. O cenário é uma bienal de arte, espaço em que a arte se desloca contando com excessiva 254 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis indulgência quanto à universalização. Uma inflação de empatia: seja o que for que se apresente, e se não estiver confinado nos ‘espaços históricos’, é contemporâneo. Isso posto, volto os olhos para a produção em artes plásticas em Sergipe. Sendo mais direto: entre os bons artistas que produzem no estado, quem opera com a contemporaneidade? Isto é: quem compreende que, se pretende ser contemporâneo, compromete-se em propor experiências/interferências, contrapondo a razão e rompendo a teia dos conceitos, construindo uma imagem a partir da pulsão, do espanto (thaumazein, como diziam os gregos), diante do mesmo. O que deve surpreender o artista plástico contemporâneo é, sim, a regularidade, a padronização tão passivamente aceita por todos nós, tão querida e vista como necessária. Fábio Sampaio. Sinto-me à vontade em apontálo como a referência da contemporaneidade em Sergipe. Fábio percebeu muito cedo o caminho que deveria trilhar para ser, de fato, um artista contemporâneo. Compreendeu que a arte 255 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 contemporânea deve refinar o conceito (este, sim) de ironia. Não foi ousadia, nem revolução. O que o move, sob a perspectiva que aplico ao seu trabalho, é a consciência e a sensibilidade; é o entendimento de que, se qualquer coisa criada/produzida é um elemento a mais a constar na realidade da cidade, que a ‘obra’ faça sentido, mesmo trajada de non sense. Sampaio convida os pichadores e, assim, por um lado, os reconhece como artistas, interventores, agentes que interagem. Por outro, neutraliza a ação no seu status de infração, de dano produzido por sujeitos que se movem nas sombras da madrugada, munidos de sprays. Ou seja, o artista está ciente de que a contemporaneidade não descarta a cidade como matéria-prima concreta, composta por muros, defensas de pontes, muretas de canais, tapumes. O que Sampaio propõe é uma independência possível, uma autonomia ao mesmo tempo anárquica e elegante. E nem mesmo anárquico é o termo adequado nesse sentido. O que vejo nas interferências de Sampaio pelas ruas 256 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis e demais espaços urbanos é um exercício que, de maneira alguma, visa negar o meio em que vivemos. Não é protesto por protesto, mas uma irônica interação com os elementos mesmos da área urbana. O artista parece dizer que, se não moramos e vivemos da melhor maneira, pelo menos estamos vivendo um tempo de reconhecimento da cidade como uma imensa galeria dela mesma. E arte se expõe e se afirma entre os carros particulares, os veículos que ‘garantem’ a rede de transporte público, a proteção de madeirite que oculta os primeiros estágios da construção dos edifícios, dos condomínios fechados. E se a arte é, frequente e, por vezes, equivocadamente, referência de perenidade, Fábio Sampaio investe no devir. Seu discurso é heracliteano. O que se pode esperar de um artista que se vale de tapumes que serão retirados de cena logo que o andamento da construção permitir? O melhor desse artista, sua criatividade plena de sarcasmo, cinismo, ludicidade, vai ao lixo ou desaparece na reciclagem. 257 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 O artista reconheceu a própria cidade como tela (estática e em movimento). Do interior dos veículos, a arte de Sampaio é vista por alguns segundos. Às vezes um mero relance. Sua arte vai passando lá fora e nos vê passar, valendo-se, então, de artimanhas. Quem não se vê à vontade (ou sem vontade) de freqüentar espaços culturais, galerias, coisas do gênero, forçosamente encontrará Sampaio em alguma esquina. E mais: ele não aposta sempre na individualidade. A criação em grupo lança à rua outros artistas, como é o caso do ‘Caju na Rua’. Aracaju, mais uma vez, é matéria-prima física e conceitual para que a arte seja possível. Desse modo, Sampaio investe na desintegração integradora. É ele e não é só ele. Os outros estão ali. Cada um com sua obra e todas as obras compondo uma grande peça de peças cuidadosamente espalhadas. O suporte é a cidade. O momento é a contemporaneidade. Se a arte é uma forma, ou talvez, como disse Nietzsche, a ação efetiva que rompe a trama conceitual, ou seja, põe em cheque a razão como RAZÃO, tenho o olhar mesmerizado 258 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis diante das telas de Sampaio intituladas, em conjunto, de ‘Vermelho, Verde Azul’, óleo sobre tela de 2003. Nas telas constam cabeças e cajus estilizados. O antro da razão, a cabeça; o caju, sumarento, rebelde a deixar cica, acoplado à castanha-combustível. Remeto-me ao gesto instintivo de colher a fruta, morder a carne amarela ou vermelha, sentir fiapos entredentes. Sampaio decapita o conceito jogando cabeça e caju. E sintetiza nas cores a intenção do artista: títulos não explicam nem identificam. Títulos em obras contemporâneas são parte da obra. Ou parte nenhuma – esquecidos mais adiante, fica-nos a imagem. Em “Peixes” não vislumbro (e por isso sou grato) nada de apologia ecológica. As pisciformes figuras estão lá, como a dar voltas em si mesmas ao mesmo tempo em que não se afastam da massa vermelha, um coágulo. Assemelham-se a iscas. Ou produtos da seção de congelados. Não há concessão, isso é certo. Não que isso seja uma posição típica e única do discurso contemporâneo. Michelangelo também não 259 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 cedia. Contudo, em Sampaio, o discurso parece, e creio que sejam, estilhaços lançados em direção à ‘comunidade de artistas plásticos’. O produto é bom. O artista é disciplinado e se envolve burocraticamente com os eventos. Hoje sabemos disso. Mas sua arte, sua produção é competente, tragicômica, bem humorada e, concomitantemente, de um humor sardônico. Não há queixa, não há reivindicação, senão a seguinte: olhe, olhe de novo, e novamente. Sua proposta, seu discurso artístico está ali. Nada de revolução social, nada de revolta. Nem quer salvar o meio-ambiente. Os peixes voltam em outra produção. Dessa vez, presos em globos azuis. Curvados, com traços de espécie antiga, representam um silêncio fóssil. Quando se juntou aos artistas na visita a Inácio, o artista plástico Fábio Sampaio não recorreu ao delírio verde inaciano, nem às cores fortes, solares, que lembram cestos cheios de frutas diversas na feira. Não... Sampaio decide inverter o discurso cromático inaciano. E as bananeiras, tão banais, se vêem aplainadas sobre o tampo de uma mesa de plástico. Sampaio. Elementos 260 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis outros à beira, parecem afastados, com suas funções em segundo ou terceiro plano. Ou função alguma de apenas estar ali. As bananeiras, desvestidas do verde, são cruas, impiedosas. Solidão sombria goeldiana. O ambiente é bem inaciano mesmo. O artista do eucatex. Sampaio visita Inácio, mas não se deixa levar pelo entediante bucolismo ribeirinho. O piso, de mapas gravados em preto e branco, ou contornos de mapas vazios, é calçadão. E em que parte do país pisamos? Brasil sem verdeamarelismo. O artista usa tinta, lápis, pincel e ironia. O não levar a sério de quem, na contemporaneidade, percebe a fragilidade dos discursos que defendem (?) uma arte transformadora. Sim, a arte transforma espaços ocupando-os. E não mais que isso. E somente isso basta. No mais é olhar, tomar aquele susto silencioso. Pôr as mãos no bolso do casaco e irse embora. Olhe e leve na memória, e que não seja por mais de dois ou três dias. Fábio Sampaio produziu a arte para as massas. E se valeu da própria massa como material 261 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 artístico sem que as pessoas soubessem. Sem que nós percebêssemos que as interferências se dão nos espaços que foram construídos com nosso aval. De uma maneira ou de outra. A trajetória do artista continua. A contemporaneidade do artista, da sua produção, impõe-se deliciosamente. É surpreendente. Excesso de advérbios? Proposital. Compreenderão bem isso (suponho) os que conhecem a tela produzida por Fábio Sampaio para a exposição ‘Natividade’. O título da obra: ‘Objeto não-identificado’. Natividade. O título é emblemático. E poderia muito bem ser UFO ou OVNI. A ufologia se viu às voltas com uma tela de Jacopo del Sellaio (suposto autor), na qual aparece ao fundo, no céu, uma forma ovóide ou elíptica e brilhante. É a conhecida ‘Madona com criança e São João Criança’. Fábio Sampaio, entretanto, não vai na onda febril dos OVNIS. Novamente, ciente da contemporaneidade em seu discurso estético, produz uma composição seca, em preto 262 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis e branco. Léxicos e significados. A estrela anunciadora em estranha simbiose com a figura (uma placa) elementar de um avião. O espiritual, a ascensão perde o senso litúrgico, o sagrado, próxima ao aparelho mais pesado que o ar. Redutor de distâncias entre cidades, construindo pontes aéreas. A obra de Fábio é atestado da ciência do artista quanto ao papel por ele assumido diante da cidade, da sociedade. Sampaio põe a obra ali. Pendura com um prego na parede ou instala. E não mais que isso. Cabe-nos dar continuidade percebendo o objeto e sua não ação afirmativa. É mais, e talvez só isso: uma ocupação. PARA UM ‘AMIGO’ COLOMBIANO QUE TEM UM PRIMO VENEZUELANO, QUE VIVE NO MÉXICO, QUE QUANDO VEM AO BRASIL, GOSTA DE DAR UMA DE TURISTA AMERICANO, GASTANDO SEM MISÉRIA E PRATICANDO TURISMO SEXUAL E AINDA ACREDITA NA BELEZA E NA UTILIDADE DA ARTE, JURANDO SÓ HAVER DISCÓRDIA NOS PAÍSES DO ORIENTE MÉDIO (Fábio Sampaio, Catálogo). Não, não é uma citação estético-filosófica. Ainda que a filosofia teletube possa até encontrar algo 263 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 aí. É o título de uma obra de Fábio Sampaio. E não poderia ser outro. Conta a história, apresenta o fato: a obra. E traz as conexões entre cidades sul-americanas e uma incidental presença norteamericana. Países. Cidades. O que faz Sampaio: Aracaju inteira, ou nem metade, pode ir lá. Eis o lá aqui. Contemporâneo, o jogo de palavras, de identidades que se confundem é bem a linguagem citadina. Aracaju, Sergipe, Sampaio. Isso dá reggae? Sim. E a cidade tem no artista a possibilidade de não incorrer, nas artes plásticas, no que se abusou ad nauseam na ‘poesia’, estacar no parnasianismo. Ou na verborréia romântica a xerocopiar Hilsts, Neides... Sampaio desviou (se chocando) das concessões feitas às entediadas donas-de-casa da zona sul e não cedeu ao acordo de cavalheiros e damas. O circo de horrores exposto ao sabor de chás das cinco. O freak de Sampaio é feito de fuligem, odores mal-cheirosos exalados pelos canais que cortam a cidade. E isso é diluído tal qual essence 264 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis absolue. O que ele entrega é colônia, e as notas urbanas ali diluídas tomam de assalto nossos sentidos. Vaca profana. A tela mostra. E os traços sugerem cortes de proveito da carne feita de momentos vividos nas calçadas, esquinas, balcões e salões. E é só embalar em nada agora. O produto está aprovado e consumido. Sampaio não fará o obséquio de lembrar: vejam a data de fabricação no fundo da lata. Aracaju, Sergipe, a arte sergipana, essa coisa inexistente. O que é a arte piauiense? A arte em Sergipe, como nos foi solicitado, sob o aspecto contemporâneo. Ora, a cidade recebeu isso. Foi eleita tela e chassis. Fábio compôs o tempo dessa arte no agora. Poucos dos que tentaram conseguiram isso: produzir de forma que não deixasse um fio de Ariadne que nos conduzisse ao passado. O que é na arte de Sampaio é aqui e agora. Impensável antes. Nada de arte pop. Nem arte pobre com instinto revolucionário. Artista como artista, Sampaio se vale e se garante pelo que produz, num gesto amplo de generosidade e confiança. 265 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Não se surpreende, mas se satisfaz. E manifesta surpresa à medida que coisa alguma possa nos surpreender, nos pegar distraídos. Sua arte é lançada, gravada em muros calçadas, cercas, tapumes. Mas também traz a cidade para dentro das galerias, dos salões, dos espaços que permitem, desavisados, que o artista inocule seu conceito de contemporaneidade. Caixas de fósforos em composição oferecem a oportunidade de se incendiar as novas Romas. Aracaju se vê, sob a interferência de Fábio Sampaio, como uma adolescente assustada e feliz ao mesmo tempo. Tipo: o que ele vai fazer comigo? E, em seguida: ah, não vejo a hora de saber, de ver. Uma tela de Fábio, intitulada ‘Sem Título’, lembra azulejos antigos. Ironia pura. A nostalgia se quebra na própria identidade do autor. Então não há lugar para lembranças nem saudades. Se for uma parede, ela tapa a visão para o ontem e nem apresenta vistas para o futuro. Encerra-se, ali, a mensagem. O momento de agora. Essa obra em particular pode ter sido uma daquelas 266 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis feitas para o fim, seguindo o que já foi feito e deu certo. Nada que denigra a imagem do artista. Mesmo o que foi feito casualmente, ali, de bobeira, preserva a retórica do artista. Está na tela, nas soluções breves. A arte em Sergipe não seguirá caminhos livres de pedras e cacos de vidro. Fábio Sampaio não permitirá, queira ele ou não. Sua arte, sua produção exposta em lugares não previstos a partir da funcionalidade, do fim, confirma isso. Qualquer dúvida que se tenha sobre a proposta de contemporaneidade presente no discurso (aí, sim) radical de Fábio Sampaio só pode se sustentar a partir do desconhecimento da obra do artista. Obra, aqui, significando o já produzido. Não sei se poderia chamar de o conjunto da obra. Inadequado demais, no caso. A dúvida, como dizia, não é, nesse aspecto, um direito. É um engano. Quem quer que recorde da exposição ‘Águas de Março’ deve lembrar da obra de Fábio Sampaio. O título, “Que tem gotas tão lindas que até dá vontade 267 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 de comê-las”, toma como referência uma música de Mautner cantada por Gilberto Gil. Ora, enquanto paus, pedras e ribanceiras são citadas por Jobim em um mosaico de eventos campestres, Fábio recorre a Mautner, o narciso em tarde chuva, ao maracatu atômico, às luvas e unhas negras, aos pára-raios. Sem fim de caminho... As ruas são o fim. É este o norte da arte em Sergipe, se aquela se quer contemporânea. E a contemporaneidade na arte implica em saber, sim, onde e como expor. E o que expor. Há espaços culturais que de espaço e cultura pouco ou nada oferecem. E há o espaço, como já se disse, não-previsto: as caixas de telefonia. Fábio ali presente com marcador. Na obra ‘Meio Verde’ mais uma vez a ironia se faz presente. Ao se ouvir ou ler o título sem que se veja a obra, é possível que pensemos em mato, folha... Como um Mondrian em 3D, a obra de Fábio é vista aérea. Os copos, como tubulação: grandes galerias de esgoto. A 268 cidade é ferramenta aparentemente A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis inesgotável. O olhar contemporâneo de Sampaio sabe disso. Em ‘Fotografia de apropriação de um cartaz de jazz’, Sampaio é generoso no requinte, econômico no material. O que parece muito está é bem distribuído, bem posicionado, bem dimensionado. Os elementos urbanos presentes são acordes da explícita música das ruas. Carrinhos de plástico, sapatos e tudo o mais. As formas geométricas, patês de casas, prédios, lojas. Reconstruir a cidade nela mesma ou através de seus ícones é um bom caminho também. Como diria Pound: funciona! A cidade e suas instituições. Os andares, os setores, os departamentos e os corredores. Neles os extintores. Esquecidos, anônimos. Formas cilíndricas, de vivo vermelho latejando um aviso: perigo de incêndio. Na série ‘Fé e Fogo’ Sampaio se vale de extintores e estampas de santos. O equipamento de segurança traz em si toda a significação do que é viver na cidade, no centro urbano, em prédios 269 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 e trabalhar em escritórios, em almoxarifados. O extintor é presença legalmente determinada e imposta. Na arte de Fábio, o equipamento apresenta o discurso da salvação. A contemporaneidade assistiu ao surgimento de igrejas, seitas... O sagrado sobrevivendo ao laico. E a era digital não barrou a sermonística. Os fiéis se ajoelham em templos majestosos, oração high tech. O fogo da culpa consome milhões. Almas danadas morrendo mil vezes. Sampaio aponta sutilmente uma porta, não necessariamente uma saída. No canto da sala das percepções congestionadas, o extintor, impassível. A arte de Fábio Sampaio não passa despercebida, ainda que ela, conforme as superfícies em que é suportada, passe mesmo. Klein a percebeu, a degustou, a sorveu. Sampaio é incluído no cenário cultural dos grandes centros. Onde paredes, muros, tapumes, calçadas, corredores esperam pelo artista. Interventor elegante, Sampaio conhece bem o ofício e sabe escolher quais objetos devem compor o momento exterior e urbano. Livre dos discursos 270 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis ideológicos engessadores, sem ter de prestar contas a grupelhos, esses eternos idealizadores de congressinhos (como o dizia o chatinho do Guattari que, no caso, está correto). Em ‘Paisagem em vermelho e verde’ Sampaio é irritantemente genial. É a arte de interrogar fingindo ignorância. Falsa disposição de aprender com outrem, ainda que sabedor da ignorância deste. Numa terra de tantos e tantos equívocos estéticos, onde ‘artistas plásticos’ se proliferam mais que postos de gasolina, funerária e lan house, é satisfatório (não reconfortante) ver que Sampaio, protegido pelo mais saudável cinismo, recorre às expressões naturalistas para estabelecer sua terapia de linguagem – o jogo de palavras e imagem. Que paisagem é esta? Tomada macho e fêmea. Fiação qual intestino. A urbe estripada escorre pelos domicílios, e a casa na árvore não é mais brincadeira de criança (mesmo ainda sendo brincadeira). No alto, entre galhos e folhas, se observa a cidade. Massa de concreto, plástico, vidro, aço, fiação, portas automáticas, vigilância vinte e quatro horas. 271 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 O que Fábio Sampaio vê, com dois olhos, nessa terra de cegos que se suportam como cavaletes: um sustentando a tela do outro. As instalações... hummmmm.... Natureza morta, transfusão entre jarra e copo. Certo. É o que resta, quando, ao longo dos trilhos da contemporaneidade, da infinita highway, a arte em Sergipe não alcança os vagões. E não é luxo apenas das artes plásticas. Vale também para a literatura. Fico a rever edições (nem melhoradas, nem ampliadas). É o que marca a diferença em Fábio Sampaio: recusou-se, sem alarde, a banhar-se no mesmo rio. Panta rei!!! E é assim: a meio caminho, as ligações apresentam rupturas. Vaza, pinga, e o sangue caramelo deixa parte ali. O paciente não recebe o total da cota. Quer mais? Corra atrás. O trem bala e o goldbus partem a todo o momento. A contemporaneidade é o fugidio agora. Sampaio sempre soube disso. Compreendeu que mais material a ser pensado haveria de encontrar entre skatistas do que num sarau insípido, onde telas medonhas (de causar labirintite) firmam simbiose com versinhos 272 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis aguados. Sampaio até aparece ali. Mas para dizer: “aqui eu não sou eu”. A condescendência é recomendável. Mas como ato de caridade. E por caridade os espaços aceitam quase tudo. Mesmo nas triagens. A caridade deve ser um princípio de convivência. Creio firmemente nisso. Mas estimular o equívoco causará mal maior: a ocupação dos espaços por um entulho cromático e formal que desmerece o esforço de se produzir uma realidade artística nessa terra. Galerias passam a funcionar como tábuas de salvação e legitimação de currículos que se esfarinhariam sob a mais acurada investigação. Sampaio escapa pela janela só para executar o movimento. Não antes de deixar algo lá a dizer: pô... vejam! As publicações são grandes oportunidades de registro. E se a contemporaneidade se locomove, capturemos os frames. Fixemo-los às páginas de cuchê fosco. Mas façamos valer a inserção. 273 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Quando faremos isso? Quando diremos aos pintores de domingo (ah... o velho Sartre): “vamos, tirem esse lixo daqui”. “Isso não é a arte que interessa agora. Se for arte, não é este o lugar dela”. Não é falta de matéria-prima: os sítios de refugo, lojas de material elétrico, brechós, material de construção, papelaria. Tá tudo aí. O depois é que pega. Quando se encontra na posse de tudo. Como fazer para tomar de assalto os cantos desprotegidos da cidade? Sampaio sabe como fazê-lo. Inclusive avisando antes. Mas o alerta soa tão estranho na passiva babel diária das ruas que ninguém parece entender até que se olhe, que se veja. Ou: jogue a pedra, confira o número e veja quantas casas você avança. O percorrer pelo fio intestinal, passar pelas casinhas, tão antiurbanas, espremidas em ruelas, enquanto espigões se agigantam na vizinhança. É isso: Sampaio não protesta, apenas aponta. Sua arte assumiu a cidade no geral e no particular. 274 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis As superfícies topográficas concebidas por Fábio Sampaio dizem aquilo que é preciso ouvir da arte contemporânea, face às implicações manifestas quando o tempo, o agora fixado, é exposto: Sergipe foi visto pelo mundo exterior. O campo artístico, em que agentes estruturadores e estruturados interagem compondo subcampos e intercampos, recebeu, comentou a produção contemporânea de artistas ‘sergipanos’. A contemporaneidade reconheceu os objetos. As galerias se prepararam para abrigá-los. O grande saque de Sampaio: a tela onde se lança ícones é vasta. É do tamanho da cidade. E não só plana. Suas projeções. O vão entre carros no estacionamento. Mas, por favor, nada de protestar contra a quantidade de veículos automotores. Eles são parte da composição. Se sair um, chegará outro. Arte móbile. A contemporaneidade espera por isso. É a voz necessária. E nem sempre é o grito que se faz ouvir, mas, sim, o sussurro. 275 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 Sampaio produz uma arte que nos fala ao ouvido. Um sopro, um assobio baixo. Baixa frequência a vibrar orelhas de cães. Quem fareja? O osso do aqui e agora não é duro de roer. E nem é pra isso. Lança-se. Um pega aqui e joga: outro pega no ar mais longe. Assim se institui a comunicação sem que se estabeleçam amarrações imobilizadoras. A contemporaneidade trepida, faz saltar arruelas e porcas, vaza lubrificante, desgasta dentes das rodas de engrenagem. Paisagem contemporânea. Terra que escapa, foge. Mangues terão de ser aterrados, casarios demolidos. É preciso dar lugar aos cubos, aos legos. Fim das pequenas salas de projeção. A magia foi transferida para os multiplex. E daí? Grupelhos de ‘artistas’ vão protestar contra o quê? Só mesmo para congestionar as calçadas e obrigar a gente a descer o meio-fio. Sampaio parece decidir por avisar tardiamente sem compromisso. “Algo esteve aqui. Parte disso foi criada por mim. Alguém viu? Sim. 276 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis Quem? Quem sabe? Passou, foi-se”. Mas a arte está ali. Perdura enquanto vale o tapume. Enquanto vale a demão de tinta aplicada antes da interferência. Enquanto os pichadores não se dão conta. E permanecerá eterna enquanto durar. E por alguns será lembrada. Será fotografada, até. E quem o faz talvez não compreenda, não tenha consciência que o que deveria desaparecer arrancado por pás, picaretas e pés-de-cabra foi eternizado num flash. Interferência sobre o interferente. O que pode render até outras intervenções. O histórico das ações. E assim a contemporaneidade na arte produzida em Sergipe presta testemunho. Os vagões seguem. Sampaio viaja. Não necessariamente nas cabines, talvez frequentemente apenso, vendo a brita e os dormentes se fundirem na velocidade do movimento, sustentado pela mão que se agarra à entrada do vagão. A arte contemporânea aplicada aos espaços urbanos recompõe esses espaços sem que seja necessário apelar para o protesto, a revolta. 277 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 O objeto interferente e o artista interventor carregam em suas presenças mesmas o desequilíbrio necessário para que ocorra o rápido diálogo renovado entre pessoa e a cidade. O veículo é o objeto. Sampaio guia o veículo a distância. Ou o deixa meio que sobre a calçada. Cabe ao transeunte, numa repentina atitude de interrogação e resposta, empurrá-lo. E o que importa é o que o objeto artístico desperta naquele momento urbano e individual: um sentimento de beleza ou sublimidade; de melancolia ou euforia. Novamente Sampaio se faz presente sem se afirmar. Insustentável leveza, ausência incômoda. Na rua não se encontra fácil a curadoria. A quem recorrer? A si mesmo. O transeunte reflete o acréscimo à paisagem. O que não estava ali antes. O que é agora e que em nada se garante estar ali depois. Ou se permanece, pode ter sua aparência modificada pelo vandalismo e pelas intempéries. E nada disso é corpo estranho. Compõe, recompõe, rearranja. E a locomoção (elemento complementar no processo de concepção dos objetos) assim se 278 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis dá: ou a arte vai às ruas, ocupando por breves ou mais ou menos longos tempos os locais selecionados; ou as ruas e tudo que faz das ruas o que são, são trazidas para dentro. Primeiro para a tela, espaço delimitado e portátil, depois para as galerias (ou para qualquer outro interior que se apresente como possível). Diferentes espaços, presença ou não de rituais de visita... ou de passagem. Nos espaços ‘apropriados’ cultua-se a aura benjaminiana. O objeto é sacralizado. Nada contra isso. É desse jeito que tem de ser. O cuidado. Os gestos econômicos, o copo de vinho barato nas mãos... Mas o que Fábio leva às ruas não prepara ninguém. O que se veste no momento é o ideal para a ocasião. O que se come e o que se bebe. E tudo isso passa a ser elemento do ‘trabalho’. A sensação é como se Sampaio estivesse ali, ombro a ombro, talvez invisível, a observar as reações, as apatias, o desassossego, ou a risada gratuita. Ou o neutro olhar de soslaio. O que é isso? Para que serve? Qual a mensagem? 279 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 A veloz contemporaneidade se vale, então, dos rápidos meios de comunicação. Pelo jornal, pela TV, pela internet, ficamos sabendo quem é o artista e o que significa aquilo visto horas antes enquanto se seguia o caminho que leva ao trabalho diário. E quem se importa? Ora, a arte de Fábio Sampaio, emblemática no campo da contemporaneidade, não há de se perguntar o que cada um pensa. Uma enquete aqui e ali, e pronto. Partamos para as especulações. Criemos as teses. Inventemos um pensamento do artista. Escrevamos. O pensamento escrito se fixa. Hoje é informação, amanhã será documento. Fábio Sampaio, artista plástico, não protesta? O discurso do artista não é político? O artista se recusa a interagir com os acontecimentos na cidade, sua matéria-prima? O autor deste texto vê Sampaio afastado da mobilização? Respondo assim: em 2006, Fábio Sampaio 280 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis aplica imensos band-aids no farol desativado e que fica no bairro Farolândia. Protesto contra o abandono, como afirmou a imprensa. Ou o projeto ‘Conelizados’. Fábio Sampaio e sua intervenção urbana. Arregimentando outros, formando grupos de pessoas que, lado a lado, vestindo camisas com desenhos de cones estampados, interrompem o trânsito por alguns momentos. A velocidade contemporânea parada, estancada por barreiras humanas. A mobilização de Sampaio é pessoal. Não vejo comportando dezenas e dezenas de pessoas, unidas em um só grito, numa só palavra de ordem. Precisamente ao contrário, Sampaio propõe, é certo, um exercício de consciência, e a mensagem, não obstante ser transmitida coletivamente e em público a céu aberto, é endereçada a cada um. Não nos esqueçamos de que Sampaio não abriu mão do objeto de arte para protestar, mobilizar, militar. Longe disso, as intervenções de Sampaio sempre trazem o selo intransferível do artista. Um band-aid cobre meus ferimentos, outro, os seus. Ou opto pelo silêncio falando de tudo ao cruzar dois curativos 281 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 sobre a boca. O compromisso de Sampaio é, sim, com a originalidade. Coisa que não precisa ser necessariamente inédita. Por vezes o mais criativo nasce do ridiculamente óbvio. O fato de se expor os objetos nas ruas, nos muros, colando, desenhando, riscando, pintando, não significa que a exposição é gratuita. Pague pra ver. Paguemos com a redução dos passos apressados ou com o pé no freio. Reduzamos a velocidade do pensamento. Vejamos o que o artista aprontou dessa vez. O que largou por aí. Ou seja: enquanto o protesto levado a cabo por multidões, de punhos erguidos, se homogeneíza, massa sem rostos. O protesto de Sampaio, tingido de ironia, apresenta a questão: o que fazer com os cones? O que fazer com os curativos gigantes? É melhor ignorar? Processar o artista por vandalismo contra uma edificação já arruinada? Esse aspecto contemporâneo desenha bem a trajetória artística de Fábio Sampaio. E ao longo dela o artista chamou as luzes para si. 282 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis Mesmo quando apontou ‘problemas’ urbanos de interesse social, Sampaio não se anulou. Permaneceu com sua identidade, com sua propriedade, socializando a obra dentro dos limites que se permite para que o objeto não se pulverize. O artista tem seus planos, quer se manter inserido no mercado e vender seu produto. Que moeda se utilizará é outra coisa. Não menos importante, é claro. E depende de onde e o que esteja sendo posto à venda. Talento tem preço sim, e pode ser medido e pesado. Na contemporaneidade, a arte ressoa no consumo de réplicas e ainda mantém, com os devidos cuidados tomados, a aura do artista, do autor. Sampaio está ciente disso e sabe bem aproveitar as imensas possibilidades. Os suportes são faróis ou as mãos dadas de um grupo uniformizado. E ainda há de romper a uniformidade das horas pelos dias de semana. Quando a cidade mais trabalha, produz, polui, e cresce, incha. Os espaços abertos oferecem seus ‘vazios’ como recipientes a serem preenchidos. Sampaio 283 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 percebeu a inocência que pode ser traída. A cidade não toma conta de si mesma. Se constrói e amplia suas superfícies. Bom demais. Funcional demais para ser desperdiçado. E assim, pelo menos duas dezenas de intervenções já foram realizadas por Sampaio. As ruas de Aracaju foram tomadas. E nada de subversão: contou com apoio institucional e tudo o mais. As artes plásticas em Sergipe têm caminho percorrido e a percorrer, definir. No que se refere à arte contemporânea, alguns artistas apontam a direção. Não estou afirmando aqui que essas direções são para serem seguidas em uníssono por todos. Nada disso. O que digo é que qualquer que seja o elemento escolhido para representar um discurso de valores estéticos contemporâneos, ele deve implicar na clareza do artista de que quando se afirma sua arte como contemporânea, afirma-se concomitantemente que não é clássica, não é moderna nem pop. É desse momento, mesmo que revisite outras ‘escolas’. Fábio Sampaio se revelou, desde há muito, 284 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis dotado de excepcional percepção do que é contemporâneo. Retomou o momento que passava. Parou o mundo por instantes e refez a paisagem. E ainda o faz. A paisagem sofre interferência e, nas mãos de Sampaio, a paisagem interfere, remodela objeto, quando entendemos que o entorno complementa a obra, mesmo quando a nega, quando se vê como contraponto ao proposto. Fábio Sampaio parece dizer que poucos objetos não são passíveis de serem usados artisticamente. Não sei dizer mais sobre isso, ainda. O que é possível tomar emprestado e dizer: eis a arte a que me propus? A cidade aceita, não raras vezes, passivamente, a intervenção. Não que não valorize, não a note, não se incomode. Mas recebe o que parecia estar faltando, embora não se soubesse o quê. É então que o transeunte, agente da contemporaneidade, quer queira, quer não, diz: ah, é isso. A opção pela ironia legitimou a originalidade da produção artística de Fábio Sampaio. Sua 285 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 proposta de dialogar com os espaços fez valer o elemento silêncio nos projetos. A coisa fica ali. Talvez alguém pare; talvez alguém pegue; talvez alguém arranque ou só passe a mão. Ou se afaste e fotografe, ou nada mais queira senão esquecer. A perenidade não é atributo indispensável à arte de Fábio Sampaio. Seja o que for que se pretenda como preservação da memória, o que restará da sua produção será a reprodução do produzido via tecnologia digital: fotos de suas intervenções. O que já acabou e nem faz sentido repetir. A cidade já levou o susto na justa medida para aquele evento. O que vicia a cidade. Quer doses outras de surpresas e o inédito se manifesta na falta reclamada pelas veias urbanas. Doses cavalares serão necessárias? Ou doses homeopáticas, com largos espaços de tempo entre uma e outra? O artista será cobrado pela contemporaneidade para produzir a originalidade em série? Ele pode se recusar e deixar que esperem. Fazer com que pensem que desistiu e que somente as 286 A cidade sob o olhar interventor de Fábio Sampaio Léo A. Mittaraquis paredes das galerias, dos espaços culturais, dos espaços improvisados em clínicas, escritórios de advocacia e câmaras de vereadores recebam suas obras. Instituições e segmentos dando alguma satisfação sem compromisso a um reduzido público que teme as ruas e o que elas oferecem de melhor e de pior. A arte contemporânea em Sergipe está bem representada por Fábio Sampaio. Olho suas intervenções, olho (apenas olho) suas paisagens, suas composições... Penso o que talvez a cidade vez em quando deve também pensar por motivos outros e significados outros que não os meus: “esse cara deveria sequer existir”. 287 A Arte Abstrata Zeca Fernandes A Arte Abstrata Zeca Fernandes A arte abstrata intriga, ofende, sensibiliza, chora, ri, fala, cala. A arte abstrata ou abstracionismo pode ser definida como uma forma de arte que não representa objetos próprios da nossa realidade. Ao contrário disso, usa as relações entre cores, linhas e superfícies para compor a realidade da obra, de uma maneira “não representacional”. Ou seja, ela tende a suprimir toda a relação entre a realidade e o quadro, entre as linhas e os planos, as cores e a significação que esses elementos podem sugerir ao espírito. A arte passa a ser abstrata quando o pintor rompe os últimos laços que ligam a sua obra à realidade visível. Surge a partir das experiências das vanguardas européias, que recusam a herança renascentista das academias de arte. No início do século XX, o termo também foi usado para se referir a escolas como o cubismo e o futurismo que, ainda que fossem representativas e figurativas, buscavam sintetizar os elementos da realidade, resultando em obras que fugiam da simples imitação daquilo que era “concreto”. O abstracionismo divide-se em duas tendências: Abstracionismo lírico e Abstracionismo geométrico. 291 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 O Abstracionismo lírico ou abstracionismo expressivo inspirava-se no instinto, no inconsciente e na intuição para construir uma arte imaginária ligada a uma “necessidade interior”; tendo sido influenciado pelo expressionismo, mais propriamente no Der Blaue Reiter. Aparece como reação às grandes revoluções do século, especialmente a I Guerra Mundial. Muitas artes naquela época procuravam se expressar por meio de música, sons. Mas o abstracionismo tinha o objetivo de se expressar por meio de desenhos abstratos, de forma figurativa. É desta forma que o abstracionismo lírico pretende igualar ou mesmo superar a música, transformando manchas de cor e linhas em ideias e simbolismos subjetivos. O artista russo Wassily Kandinsky foi o mentor deste gênero, utilizando cores puras em pinceladas rápidas, fortes e marcantes. O Abstracionismo geométrico, ao contrário do abstraccionismo lírico, foca-se na racionalização que depende da análise intelectual e científica. Foi influenciado pelo cubismo e pelo futurismo. O abstracionismo geométrico divide-se em duas correntes: •Suprematismo na Rússia •Neoplasticismo na Holanda Suprematismo, criado pelo russo Kazimir Malevich 292 A Arte Abstrata Zeca Fernandes em colaboração com o poeta Vladimir Maiakovski, no início do século passado, o suprematismo defende uma arte livre de finalidades práticas e comprometida com a pura visualidade plástica. Trata-se de romper com a idéia de imitação da natureza, com as formas ilusionistas, com a luz e cores naturalistas. Neoplasticismo, seu criador e principal teórico foi Piet Mondrian (1872-1944), pintor holandês. Depois de haver participado da arte cubista, continua simplificando suas formas até conseguir um resultado, baseado nas proporções matemáticas ideais, entre as relações formais de um espaço estudado. O artista utiliza, como elemento de base, uma superfície plana, retangular e as três cores primárias com um pouco de preto e branco. Essas superfícies coloridas são distribuídas e justapostas buscando uma arte pura. Abstracionismo no Brasil Se é fato que as primeiras experiências com a pintura não-figurativista no Brasil recuam aos tempos da I Guerra Mundial, tendo sido realizadas pelo pintor Manuel Santiago, sob a influência do Esoterismo ao qual se filiara na juventude, a verdade é que coube a Cícero Dias executar em Recife, em 1948, o primeiro mural abstrato da America do Sul. Radicado em Paris desde 1937, o pintor se aproximou gradativamente do abstracionismo, deixando de lado as alusões 293 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 ingênuas à infancia entre os canaviais, mas sem abrir mão do colorido tropical. É importante ressaltar a contribuição do cearense Antônio Bandeira, que após um começo expressionista em Fortaleza, transfere-se para Paris em 1949 onde domina com extrema habilidade cromática e textural, influenciados pela grandesa das cidades iluminadas, num contexto não figurativo. O terceiro pioneiro do abstracionismo brasileiro foi o romeno Sanson Flexor que chega em São Paulo em 1946 após longa jornada em Paris. No entanto o que contribui fortemente para que os artistas brasileiros adotassem uma linguagem não figurativista geométrica foi a atuação teorica do critico Mario Pedrosa no Rio de Janeiros no fim dos anos 40 e da criação da Bienal de São Paulo no início da decada de 50. Abstratos em Aracaju Me sinto inteiramente a vontade para falar do processo renovador das artes visuais em Aracaju. Uma vez que a maioria dos artitas sergipanos estão atentos, curiosos e sedentos por informação e conhecimento relacionados a arte. Uma prova desse enriquecimento cultural e desenvolvimento deste processo é o papel que a Sociedade Semear, através de Cita Domingos, 294 A Arte Abstrata Zeca Fernandes Diretora da Galeria Jenner Augusto, vêm realizando para inserir e consolidar a capital Sergipana dentro desse contexto abstrato, contemporâneo. Esta exposição Abstratos traz para a cidade de Aracaju artistas de extrema importância no cenário artístico nacional e internacional. Entre eles: Jenner Augusto pioneiro do modernismo em Sergipe e na Bahia, com passagens pelo abstracionismo no final da decada de 50 e 60, Antônio Bandeira, um dos pioneiros do abstracionismo no Brasil, Arthur Luiz Piza, Frans Krajcberg, o alemão Johnny Friedlander, o português Manuel Cargaleiro, Siron Franco, Fátima Tosca, Sergio Rabinovitz, Guel Silveira, Cesar Romero, Elisa Bracher e Burle Marx. É interessante observar nesta mostra a diferença cultural entre os diversos artistas, técnicas, composições e raizes. Por outro lado, em que pese relatar os diversos caminhos percorridos pelos artistas e suas obras, possibilita uma harmonização e contemporaneidade entre elas. A minha única preocupação na escolha desta exposição foi trazer para o público de Aracaju uma arte despretensiosa, inédita, sólida, bem realizada em diferentes técnicas e suportes diversos. 295 Impressão offset Gráfica Santa Marta Miolo Polen Soft 70 g/m² Capa Triplex 350 g/m² Laminação e verniz localizado Família tipográfica Frutiger Projeto da capa Gabriela Etinger com a colaboração de Ivan Masafret e Cita Domingos Tiragem 1.000 exemplares