Edição Especial: II SiGeSex - Composição

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Edição Especial: II SiGeSex - Composição
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)
Composição : revista de ciências sociais / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. –
Edição especial: II Simpósio de Gênero e Sexualidade: Corpos Vigiados e Laicidade
do Estado. 20, 21 e 22 de Maio de 2015- Campo Grande, MS : A Universidade, 2015.
.
Semestral
Revista eletrônica: http://www.revistacomposicao.ufms.br/index.php
ISSN 1983-3784
1. Ciências Sociais - Periódicos. 2. Ciências Humanas – Periódicos. I. Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul.
CDD (22) 300.5
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Brian Ferreiro – Universidade Nacional de Missiones
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José Zanardini – Universidade Católica de Assunção
Laerte Fernandes – O Estado de São Paulo
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Normas e Critérios para publicação
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
Reitora: Célia Maria da Silva Oliveira
Composição, Revista de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul
ISSN 1983-3784
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Aparecido Francisco dos Reis
Ana Maria Gomes
Iracema Cunha Costa
Manoel Rebelo Junior
Coordenação Geral: Aparecido Francisco dos Reis
Editoração eletrônica:
Aparecido Francisco dos Reis
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Revisão: Os próprios autores
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Revista indexada em:
Descrição dos procedimentos de seleção de trabalhos para publicação
Critérios para publicação: Revista Composição
Art. 1 – Composição, Revista de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, destina-se à publicação de matérias que, pelo seu conteúdo, possam
contribuir para a formação de pesquisadores e para o desenvolvimento científico, além de
permitir a constante atualização desconhecimentos nas áreas de Antropologia, Ciência
Política, Sociologia e afins.
Art. 2 - A periodicidade da Revista será, inicialmente, semestral, podendo alterar-se de
acordo com as necessidades e exigências do Curso de Ciências Sociais; o calendário de
publicação da Revista, bem como a data de fechamento de cada edição, serão, igualmente,
definidos por essas necessidades.
Art. 3 - A publicação dos trabalhos deverá passar pela supervisão de um Conselho de
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Redação composto por quatro professores do curso de Ciências Sociais da UFMS,
escolhidos pelos seus pares.
Art. 4 - Ao Conselho Editorial caberá a avaliação de trabalhos para publicação.
Parágrafo 1º - Os membros do Conselho Editorial serão indicados pelo corpo de
professores do curso de Ciências Sociais, com exercício válido para o prazo de quatro
anos, entre autoridades com reconhecida produção científica em âmbito nacional e
internacional.
Parágrafo 2º - A publicação de artigos é condicionada a parecer positivo, devidamente
circunstanciado, exarado por membro do Conselho Editorial.
Parágrafo 3º - O Conselho Editorial, se necessário, submeterá os artigos a consultores
externos, para apreciação e parecer, em decorrência de especificidades do assunto tratado.
Art. 4 - Composição publicará trabalhos da seguinte natureza:
I - Artigos originais, de revisão ou de atualização, que envolvam, sob forma de estudos
conclusivos, abordagens teóricas ou práticas referentes à pesquisa em Antropologia,
Ciência Política, Sociologia e afins e que apresentem contribuição relevante à temática
em questão.
II - Traduções de textos fundamentais, isto, é daqueles textos clássicos não disponíveis
em língua portuguesa que constituam fundamentos da área específica da revista e que,
por essa razão, contribuam para dar sustentação e densidade à reflexão acadêmica, com a
devida autorização do autor do texto original.
III - Entrevistas com autoridades reconhecidas na área temática da revista, que vêm
apresentando trabalhos inéditos, de relevância nacional e internacional, com o propósito
de manter o caráter de atualidade do periódico.
IV - Resenhas de obras inéditas e relevantes que possam manter a comunidade acadêmica
informada sobre o avanço das reflexões na área temática da revista.
Art. 6 - A entrega dos originais para Composição deverá obedecer aos seguintes critérios:
I - Os artigos deverão conter obrigatoriamente:
a) título em português e inglês;
b) nome do(s) autor(es), identificando-se em rodapé dados relativos à produção do artigo,
ao(s) seu(s) autor(es) e filiação institucional completa, bem como a auxílios
institucionais, endereço institucional, telefone institucional e endereços eletrônicos;
c) resumo em português (máximo de 6 linhas, ou 400 caracteres) e abstract fiel ao resumo,
acompanhados, respectivamente, de palavras-chave e key words, ambos em número de 3,
para efeito de indexação do periódico;
d) texto com as devidas remissões bibliográficas no corpo do próprio texto;
e) notas finais, eliminando-se os recursos das notas de rodapé;
f) referências bibliográficas.
II - Os trabalhos devem ser encaminhados dentro da seguinte formatação:
a) uma cópia anexada ao endereço eletrônico no padrão Microsoft Word 6.0 ou superior;
b) uma autorização para publicação devidamente assinada pelo autor também anexada ao
endereço eletrônico;
c) a extensão do texto deverá se situar entre 10 e 20 páginas redigidas em espaço duplo;
d) caso o artigo traga gráficos, tabelas ou fotografias, o número de toques deverá ser
reduzido em função do espaço ocupado por aqueles;
e) a fonte utilizada deve ser a Times New Roman, tamanho 12;
f) os caracteres itálicos serão reservados exclusivamente a títulos de publicações e a
palavras em idioma distinto daquele usado no texto, eliminando-se, igualmente, o recurso
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a caracteres sublinhados, em negrito, ou em caixa alta; todavia, os subtítulos do artigo
virão em negrito;
III - Todos os trabalhos devem ser elaborados em português ou inglês, e encaminhados
para o email com o texto rigorosamente corrigido e revisado.
IV - Eventuais ilustrações e tabelas com respectivas legendas devem ser contrastadas e
apresentadas separadamente, com indicação, no texto, do lugar onde serão inseridas.
V - As referências bibliográficas e remissões deverão ser elaboradas de acordo com as
normas de referência da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT - 6023).
VI - Os limites estabelecidos para os diversos trabalhos somente poderão ser excedidos
em casos realmente excepcionais, por sugestão do Conselho Editorial e a critério do
Conselho de
Redação.
Art. 7 - Não serão aceitos textos fora das normas estabelecidas, com exceção dos casos
previstos no artigo anterior, e os textos recusados serão devolvidos para os autores
acompanhados de justificativa, no prazo máximo de três meses.
Art. 8 - Uma vez publicados os trabalhos, Composição reserva-se todos os direitos
autorais,
Inclusive os de tradução, permitindo, entretanto, a sua posterior reprodução como
transcrição, e com a devida citação da fonte.
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EDITORIAL
Esse número especial de Composição, Revista de Ciências Sociais da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, traz os artigos completos dos trabalhos
apresentados no II Simpósio de Gênero e Sexualidade: Corpos Vigiados e Laicidade do
Estado. São comunicações de pesquisa de diversas áreas do conhecimento e de
pesquisadores de muitas universidades brasileiras, representando diferentes Unidades da
Federação.
Nesta edição, os artigos estarão focados nas temáticas de gênero e sexualidade, na
perspectiva de muitos olhares das ciências humanas. A riqueza vem justamente da
diversidade dos estudos que contemplam a Sociologia, Antropologia, História, Geografia,
Enfermagem, Direito, Serviço Social, Turismo, Psicologia, entre outras. Desde já, um
agradecimento a todos que enviaram o artigo completo e que estiveram na UFMS no mês
de maio para apresentar seus trabalhos.
Prof. Dr. Aparecido Francisco dos Reis – editor.
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SUMÁRIO
A experiência homossexual nas fronteiras da transformação social ................................ 9
A herança patriarcal no filme amarelo manga ............................................................... 29
A sexualidade e a homoafetividade: reflexões com michel foucault e norbert elias ...... 43
Registro das narrativas de vida da mulher terena sobre sexualidade e relações de gênero,
aldeia urbana marçal de souza campo grande, ms .......................................................... 62
As representações de masculinidades e feminilidades nos romances de banca de diana
palmer nos anos de 1990 ................................................................................................ 78
Ensinando sexualidades hegemônicas: a educação heteronormativa nas escolas .......... 95
Estresse ocupacional em mulheres policiais militares de campo grande, mato grosso do
sul. ................................................................................................................................ 111
Gênero e sexualidade na contracultura punk ................................................................ 126
Gênero e sexualidade na sala de aula: narrativas de professora e alunas(os) do ensino
fundamental. ................................................................................................................. 142
Gênero na educação: pedagogias que formam corpos, saberes e comportamentos ..... 156
Homossexualidade e homofobia em “amor à vida” (2013/2014)................................. 169
Homossexualidade & marginalidade em madame satã (karim aïnouz, 2002) ............. 183
Meninos não choram e meninas falam baixo: a concepção de gênero das profissionais
da educação infantil e a interferência na constituição de ser menino e menina. .......... 199
Mercado sexual e trabalho: conversa entre mulheres para compreender a realidade e
atuar na garantia de direitos .......................................................................................... 217
Não apenas o exército islâmico apedreja lgbts: relatos do cotidiano escolar de uma
travesti apedrejada em uma escola do interior do estado de são paulo. ....................... 237
Não discriminação por orientação sexual e identidade de gênero: objetivo constitucional
não materializado ante a violação da laicidade do estado ............................................ 258
O canto de aquiles e o amor: a quem pertence o seu coração? ..................................... 285
O cuidado de si: práticas nos processos de subjetivações ............................................ 298
O discurso religioso em contraposição aos direitos homoafetivos: algumas reflexões a
partir de um estudo feito com alunos do ensino médio da cidade de Dourados/MS .... 316
O espaço escolar, um espaço de identidades marcadas, identidades deformadas ........ 327
O gênero em sala: análise de atividades feitas nas aulas de sociologia em GuarapuavaPR e as contribuições para o ensino. ............................................................................ 344
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Os caminhos da expertise em gênero: reflexões sobre o enfrentamento às violências
contra as mulheres no MS e o Papel do estado. ........................................................... 361
Os homens na violência de gênero: autores ou vítimas? .............................................. 377
Possibilidades sexuais e de gênero no cotidiano escolar: vivências experimentadas no
enfrentamento das normas. ........................................................................................... 395
“Quem Tem Medo das Minorias?” A Imprensa Gay e o Movimento de Afirmação
Homossexual no Brasil (1978-1981) ............................................................................ 410
Representações do feminino na obra de almodóvar ..................................................... 430
Representações sociais da atuação do profissional docente na educação infantil e no
ensino fundamental ....................................................................................................... 441
Sexo x gênero: o que pessoas adultas pensam sobre esses conceitos? ......................... 460
Sexualidade no contexto do ensino de ciências e biologia: concepções e abordagens –
reflexões de um tcc. ...................................................................................................... 479
Erotismo monocromático: a influência de “50 tons de cinza” na erotika fair .............. 491
As políticas escolares de combate à violência representada pelo bullying em campo
grande/ms ..................................................................................................................... 513
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A EXPERIÊNCIA HOMOSSEXUAL NAS FRONTEIRAS DA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Felipe Pancheri Colpani1
Resumo: Este artigo tem como perspectiva trazer os principais apontamentos de uma pesquisa de Mestrado
que teve como objetivo analisar a atual experiência homossexual na contemporaneidade. Em como estes
indivíduos se interconectam no espaço geográfico em rede para a sua produção existencial e para a
desconstrução das estruturas de poder que lhes oprimem. Territorializados no hipercorpo biotécnico da
Aldeia de Controle Global, a nossa interioridade virtual passou a habitar as novas máquinas e híbridos da
mutação tecnocultural. A subjetividade agora, transcende o limite da pele para dar novas simulações e
performatividades nos territórios virtuais. Nas regiões do ciberespaço, territórios, máquinas e tribos
dispersas espacialmente passam a se misturar. Os entes virtuais passam a coabitar uma imensa rede social
global, um ciberespaço circunscrito sob um registro rizomático de eixos, pontos, orientações e
conectividades, que dissolve com as fronteiras entre corpus e máquinas, real e virtual. A produção desejante
plugada à rede de conexões, passa a configurar na superfície espacial da multiplicidade, da heterogeneidade,
das tecnologias de simulação. Nos insere também em novos mecanismos de dominação, por máquinas
desterritorializadas da materialidade pré-existente. Agora, as forças hegemônicas do Império PatriarcalCapitalista passam a governar os corpus por meio de tecnologias moleculares e laços invisíveis. No
ciberespaço, a experiência homossexual contemporânea sugere múltiplos estratos de produção existencial,
em um intercâmbio incessante entre online e offline, real e virtual, corpus, máquinas e territórios. Os novos
engendramentos maquínicos da mutação tecnocultural têm se constituído como meios espaciais para troca,
inscrição e compartilhamento de signos, memória e experiências. As máquinas virtuais tornaram-se
verdadeiros territórios de produção existencial. Como um espelho do real da máquina social, podem vir a
se configurar para alguns homossexuais como armários digitais; mas também, se autoproduzem como
territórios políticos, de emancipação, luta e reinvindicações para a troca de registro virtual da máquina
social.
Palavras-chave: experiência homossexual, mutação tecnocultural, multiplicidade,
máquinas virtuais, ciberespaço.
A mutação tecnocultural tem reconstruído a forma como lidamos com os corpus
e com as categorias de identidade, gênero e sexualidade, entendidas agora como
tecnologias de simulação e próteses biotécnicas de produção corporal.
A produção desejante na contemporaneidade se tem assentado em um enorme
<<hipercorpo híbrido, polimorfo e tecnobiológico>>. Todos corpus passam a se
interconectar sob um rede social global, em um espaço uno e prostético que dissolve com
1
Mestrando do PPGED: Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de
São Carlos, campus Sorocaba. Membro do Grupo de Pesquisa “Educação, Comunidade e Movimentos
Sociais”, atuando na linha “Feminismos, Sexualidade e Política”. Tem experiência nas seguintes áreas:
Geografia Humana, Filosofia Pós-Moderna e Estudos Pós-Feministas. Trabalha na interface com a
interdisciplinaridade, navegando pelos seguintes temas e/ou conceitos: Território e as Novas Máquinas de
Subjetivação; Produção Política do Espaço; A Luta Social das Minorias; Corpo e Desejo nas Fronteiras da
Pós-Humanidade. Bolsista pela FAPESP: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. E-mail
para contato: [email protected].
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as fronteiras entre homens e máquinas, real e virtual, público e privado; realidade e ficção
científica.
A interconexão entre corpus, máquinas e híbridos que percorrem a Aldeia Global
plugam as mentes a um mecanismo de transnomadismo psíquico entre os entes virtuais,
rompendo com os limites dos corpus, em um intercambio incessante entre territórios e
máquinas, on-line e off-line. A virtualidade está a se trasmudar a todo instante em
decorrências dos fluxos de conexões e os corpus estão a engendrar de forma sucessiva
novas próteses, tanto materiais como virtuais, para lidar com a mutabilidade e a
aceleração do mundo contemporâneo.
A produção existencial na contemporaneidade se apresenta no seio de uma
pluralidade de experiências, de desencarnação, de reinvenção, reconstrução, de
multiplicação do humano a novos vetores heterogêneos de produção existencial. Os novos
engendramentos maquínicos da mutação tecnocultural tem desterritorializado os corpus
da materialidade pré-existente através de uma rede internacional, plugando-os a novos
mecanismos de sociabilidade e dominação.
O fluxo da vida passa a se fundir em um hipercorpo coletivo e tentacular, sem
forma, prostético, equipado por territórios e tribos dispersas que agenciam através do
mecanismo físico-químico da conexão. A interconectividade maquínica entre as forças
moleculares passam a modular de forma contínua a entidade virtual macroscópica,
gerando novas atualizações e desdobramentos a máquina virtual.
Os códigos sociais de raça, gênero e sexo que demarcam a nossa territorialidade,
e logo, nossa produção existencial na sociedade, se tem enfraquecido a um novo centro
de gravidade que metamorfoseou e mundo e as coisas a novos processos termodinâmicos
e focos mutantes de produção existencial.
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O hibridismo da produção ciberespacial tem permitido a invenção de novas
velocidades, espaços-tempos e próteses que tem redimensionado as concepções
reacionárias e universalizantes das estruturas que governam a materialidade dos corpus.
O espaço em rede de conexões tem se constituído como um território políticoexistencial para os homossexuais e outras tribos subalternas. Os novos engendramentos
maquínicos se apresentam como espaços sociais de projeção, de memória e
acontecimentos contínuos. Emergidos em uma rede transdiscursiva de agenciamentos
coletivos, os homossexuais podem se apropriar das novas práticas sociais do ciberespaço
para a reconstrução contínua de sua virtualidade.
O espaço geográfico contemporâneo tem-se configurado como uma grande rede
social sistematiza por eixos e orientações, movimentos de des-territorialização e
encontros de tribos - um novo sistema coagulado numa superfície registrada por uma
heterogeneidade de elementos espaciais que se misturam e se atravessam
contraditoriamente, permitindo a passagem de fluxos e práticas que desconhecem
fronteiras e escalas. As tribos e os territórios passam a misturar na Aldeia de Controle
Global. A interioridade virtual se ramifica nos tentáculos polimorfos dos novos sistemas
maquínicos.
Hoje, as técnicas têm sido inseridas em um sistema informacional. Elas nos
circunscrevem em um meio geográfico high tech, caracterizado por um ritmo acelerado,
com novos mecanismos de subjetivação em decorrência da inteligência artificial e da
cibernética.
A rede de conexão, por meio das novas máquinas que estão sendo acopladas ao
nosso território, interligam as mentes a uma Aldeia de Controle Global, ou ao que
MILTON SANTOS (2009), denominou de Espaço Social Global, que determinam
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acontecimentos no seio de um atravessamento esquizofrênico e caótico de forças: virtuais
e reais; globais, regionais e locais, que se misturam em um único espaço.
Cada sistema operacional molecular se interconecta com o sistema operacional
global em um intercâmbio processual entre os modos virtuais que compõe a rede em uma
superfície destituída de fronteiras e escalas espaciais. Através do mecanismo da conexão,
os corpus passam a ter a mente desterritorializada da materialidade da carne e plugada às
máquinas preenchidas por novos territórios, nos inserindo em um novo sistema de
dominação e espacialidade. Passamos agora a nos territorializar a novos nichos de
subjetivação, que permitem agrupar pelo afeto e deslocar os pequenos centros de poder
que atuam em rede.
Além de proporcionar novas experiências, na rede as minorias podem se conectar
para a produção de novas unidades políticas e frentes de transgressão ao
heterocapitalismo.
A análise centrou no materialismo histórico, que me permitiu o delineamento da
paisagem social contraditória na no qual estes homossexuais estão inseridos, aliado a
produção discursiva no Facebook, daquilo que é enunciado e registrada pela linguagem.
Uma simbiose teórico-metodológica que deveio a maquinar o cenário de produção
existencial no qual estas singularidades produzem sentidos e se posicionam em suas
relações sociais e políticas.
A coleta de práticas discursivas a partir de uma etnografia virtual, ocorreu no
maior grupo fechado de homossexuais brasileiros no Facebook - uma agência de corpus
e enunciações que conecta todos a um ponto central: a singularidade do desejo
homossexual. Um ciberespaço de constituição de novas experiências e afetividades, como
também um armário digital.
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Neste grupo, há uma coalescência de forças que se misturam: forças de
transgressão e forças hegemônicas de captura à norma, se constituindo como um território
indutor de processos e conexões que podem, inclusive, romper com as codificações
reacionárias dos simulacros capitalistas.
Constata-se que, a experiência homossexual na atualidade, se assenta em um
intercâmbio incessante entre real e virtual, on-line e off-line, corpus e máquinas. Em uma
produção ininterrupta de novas experiências e simulações, perpassando por uma
maquinação onde atuam múltiplas frentes de forças políticas: forças de transgressão [de
decodificação da estrutura heterocapitalita], como também, por forças reacionárias e
neoconservadores, que acabam por manter a cadeia simbólica do Império PatriarcalCapitalista.
Pode-se dizer, portanto, que o território contemporâneo é contraditório,
sedimentado na luta, no registro político das reinvindicações sociais, emergido a um novo
sistema organizacional – em uma rede polimorfa de conexões e de novos agrupamentos
pelo afeto.
A experiência homossexual na atualidade se fabrica no seio de uma
heterogeneidade de corpus, máquinas e afetos que percorrem as próteses de uma natureza
misturada. O transnomadismo psíquico entre corpus e máquinas pulveriza o espaço
geográfico e nos coloca em interconexões com as outras tribos e nichos culturais dispersos
territorialmente. Passamos a coexistir em tenra teia de virtualidades, de múltiplas
simultaneidades entre territórios, corpus e acontecimentos em uma grande rede social
híbrida.
As experiências e práticas sociais não se separam da produção espacial. As ações
moleculares estão a reconstruir a paisagem a todo instante. O território simbólico é
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sistematizado de ponta a ponta por forças de captura, maquinando uma densa rede
simbólica-discursiva que está a fixar os agentes sociais nos simulacros globais do
heterocapitalismo, sistema que hoje se encontra em crise profunda.
A experiência homossexual hoje, se produz em um território de poder altamente
codificado por uma heteronormatividade, a estrutura de poder que oprime e regula a
produção desejante. Um sistema de programação que codifica o nosso inconsciente por
meio simulacros globais, por um conjunto de valores fabricados no seio de uma
moralidade violenta, que tem como modelo de simulação universal a heterossexualidade,
tornando-se no decorrer da história uma simulação compulsória, inibindo uma produção
existencial livre e sem amarras.
O heterocapitalismo é uma codificação reacionária. É um sistema simbólico
cristalizado historicamente pela repetição de atos, habitus e discursos a fim de se manter
a hegemonia de um determinado grupo social. O que veio a programar nosso sistema
operacional com códigos de captura ligados às ficções políticas da heterossexualidade
compulsória, que tem como modelos de simulação, a masculinidade hegemônica e os
papéis anatômicos de gênero... herança do domínio do Império Patriarcal-Capitalista sob
nossas cabeças.
O território refere-se ao substrato material, apropriado, usado e codificado pelas
forças hegemônicas. Produto de relações objetivas, históricas e atuais. Um campo de
atuação, posicionamento e disputas entre forças políticas e agentes sociais, por meio dos
diferentes tipos de capital [econômico – fatores da produção capitalista; social – relações
e práticas sociais; simbólico-cultural – ficções científico-culturais da Cultura Política
Totalitária do Império Patriarcal-Capitalista].
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O arranjo simbólico da Gaia foi historicamente computadorizado por inteligências
hegemônicas, engendrando na superfície um conjunto de códigos e modelos de simulação
reacionários. O hardware da identidade veio a ser cristalizado historicamente no gozo
desejante de um modelo simulacional heterocapitalista, que privilegia o homem branco
burguês e heterossexual.
Preencheu-se o campo virtual dos corpus com cenas e representações a serem
simuladas. Com tecnologias de simulação baseadas em modelos universais da
masculinidade hegemônica e dos papéis anatômicos de gênero, configurando um sistema
de software em nosso sistema operacional. Um sistema de legitimação dos regimes
hegemônicos sedimentados no decorrer da história.
O motor que regula os modelos de simulação reacionários foram e ainda
continuam a se manter por meio da interconexão entre as instituições e forças
hegemônicas que asseguram o funcionamento da máquina social: a escola, a família, a
universidade, o mercado. Cada sub-máquina possui seu regime de funcionamento interno,
maquinado por um sistema simbólico-discursivo. Cada regime de funcionamento, por sua
vez, não existe isoladamente e se conecta a outros tantos regimes das outros sub-máquinas
para a legitimação da grande máquina totalitária.
A nova geografia do ciberespaço se autoproduz no registro de um jogo de forças
políticas. Forças que atuam em um campo caótico e transversal de coexistências e
simultaneidades, forças hegemônicas e forças minoritárias. A maneira como cada força
se utiliza do território não é a mesma. Cada força é dotada de uma potência,
intencionalidade e um mapa político de táticas e estratégias, que estão a transformar a
paisagem e a tatuar novas marcas antropomórficas ao corpus de Gaia.
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A produção existencial pode vir engendrar novos sistemas de próteses ao espaço
através do remanejamento de ações políticas. Na física das máquinas de guerra, por meio
da técnica, as tribos produzem materialidade ao corpus de Gaia [próteses artificiais por
meio de sistemas de engenharia e sistemas de comunicação], e também, idealidade
[sistemas de software configurados por tecnologias de simulação de crenças e ideologias,
que se fundem na produção de sistema operacional coletivo].
A programação virtual de cada ator, a ser autorepresentada na sociedade
capitalista do espetáculo, está a sofrer atualização e reconstrução em conexão com os
outros modus virtuais acoplados ao espaço. A ação de afetar e ser afetado gera novos
desdobramentos a nossa imagem, que está sempre se desfazendo para dar germe a novas
formas mutantes.
O sistema operacional é a instância inconsciente, preenchida por ficções, mitos e
outras cristalizações desejantes de um determinado período histórico. Na interconexão
entre corpus, máquinas e territórios, os microsistemas operacionais vêm a se
autopreencher dos simulacros que contornam o campo social.
A codificação de um corpus por ficções científicas nos insere na organização da
produção social. Uma produção sedimentada historicamente por uma moralidade branca,
heterossexual, patriarcal e capitalista. Os códigos sociais de cor, gênero, sexo, dentre
outros marcadores sociais, demarcam a produção existencial dos indivíduos, estruturando
uma programação virtual impotente e registrada na falta. Os sistemas simbólicos de
simulação demarcam posições e máscaras, fixam os corpus no processo de reprodução
capitalista, em uma vida circunscrita na opressão e na repressão do desejo.
A tribo homossexual se depara na atualidade com uma pluralidade de identidades
móveis que se intercambiam. A simulação da identidade perpassa por um conjunto móvel
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e polimorfo de diferentes substâncias de expressão: de afetos e espaços que estão a gerar
efeitos nos corpus a todo instante.
A mobilidade da nossa programação virtual dissolve com a rigidez e organização
racionalizante de uma identidade, tida antes como fixa e natural. Com a fragmentação das
identidades, os homossexuais podem vir a maquinar múltiplas performatividades sem
amarras internas. A construção da experiência homossexual na contemporaneidade ainda
perpassa rigidamente pelas ficções políticas da sexualidade, em um atravessamento de
masculinidades majoritárias e masculinidades minoritárias.
A produção existência homossexual contemporânea é fragmentada em dois
núcleos de constituição política: a da homossexualidade hegemônica - que agrega aqueles
que ainda estão codificados nos sistemas do heterocapitalismo, através de suas
tecnologias de simulação globais (a heterossexualidade compulsória, a masculinidade
hegemônica e o consumo de massa); e o núcleo da emancipação política - que concentra
aqueles que estão preocupados em simular uma política de cunho reformistas e
squizorevolucionário, de luta social e de desconstrução da heteronormatividade. Tem-se
também aqueles que caminham pelas fronteiras.
Os dois núcleos se intercambiam e maquinam uma paisagem de identidades
fragmentadas, que se interconectam na rede, os inserindo numa mecânica de contínua
reconstrução de suas programações virtuais. A paisagem social, no qual estes jovens estão
inseridos, é materializada através de uma sucessão de meios, sistemas de próteses e
interconexão entre forças políticas. O espaço geográfico no qual vivemos é um produto
histórico, materializado a partir de um jogo de forças, interesses e ações políticas.
Grande parte das simulações da homossexualidade são transposições do simulacro
da heterossexualidade. A produção da homossexualidade, portanto, ocorre no registro
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simbólico da heterossexualidade compulsória. Nesse sentido, ela acaba mantendo os
mesmos códigos do sistema opressor, o mesmo registro de manutenção. As produções
desejantes daqueles que rompem com os binarismos e sistemas universais que governam
os corpus, passam a serem capturadas por meio de normatização e padronização dos
comportamentos.
As ficções heterocapitalísticas são tão enraizadas em nosso inconsciente que
muitos não se dão conta desta imposição que é essencialmente social. Aprendemos a
desempenhar papéis sociais, fixos e imutáveis, estruturas essencialmente repressivas a
nossa potência de existir. Moldamos a nossa programação virtual [self] para suprir as
expectativas sociais.
Conforme FREUD (2010) salienta estamos todos submetidos aos códigos de nossa
cultura de uma forma ou outra, sacrificando nossa produção desejante. Os sistemas
simbólicas das forças hegemônicas fazem de tudo para territorializar nossos impulsos
vitais em formações psíquicas reativas, fazendo eclodir uma intensa repressão social entre
os corpus, estimulando recalcamentos e relações afetivas com metas inibidas.
O território é equipado de ponta a ponta por forças de captura através de uma rede
simbólica-discursiva, que está sempre a nos territorializar na norma. A desconstrução
cultural deve se engajar na dissolução da heterossexualidade compulsória e de seus
simulacros globais, tais como a da masculinidade hegemônica e dos papéis de gênero. A
influência e a pressão do regime regulador da heteronormatividade é tão forte que até
mesmo que está inserido na construção de uma performance minoritária acabamos sendo
capturados por algum código ou padrão da rede de poder do heterocapitalismo.
Nos sistemas maquínicos, os homossexuais podem vir a reconstruir a identidade
nos encontros com o outro e se agenciar para movimentos de fuga e de desconstrução da
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heteronormatividade. A rede social do Facebook pode muito bem servir como um meio
estratégico, um agenciador de forças de transgressão. O Facebook reflete o palco das lutas
sociais na contemporaneidade. A atuação política no Facebook pode vir a indicar
caminhos, eixos e orientações que podem golpear as formações reacionárias e
neoconservadoras da cultura política totalitária.
Os homossexuais e outras forças bárbaras podem se apropriar destes novos
mecanismos de subjetivação que as máquinas propõem como focos mutantes de
reinvenção e de fabricação do diferente, do novo que se mistura com a multiculturalidade
da contemporaneidade.
O caráter híbrido e plural da contemporaneidade tem nos colocado em fronteiras
com novas experiências. A interconexão entre almas e máquinas nos insere em uma
simulação com novas performances, liga o self a uma esfera mais ampla de relação: em
uma sincronia de teleinteração entre corpus, máquinas e outros híbridos tecnoculturais.
A construção da identidade homossexual em tempos de fluidez, perpassa por uma
pluralidade de agências de sociabilidade, preenchidas por habitus que orientam e moldam
o comportamento (mas não determinam) e por uma paisagem social de descobertas e
experiências.
A interconectividade contemporânea entre instituições, sistemas virtuais e
sistemas materiais, põe a identidade em um movimento de reconstrução contínua, a ser
interpretada e simulada sob infinitas maneiras. A identidade homossexual, neste sentido,
vem a se produzir na interface de múltiplos territórios existenciais que percorrem o
cotidiano: as agências sociais [família, escola, universidade]; os novos territórios virtuais
e as dimensões incorpóreas do inconsciente [virtualidade].
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A sucessão de experiências [sociais, afetivas e sexuais] devém a dar mutação a
identidade e enfrentamento as inquietações existenciais que afetam grande parte dos
homossexuais. Podemos descrever a formação da identidade homossexual a partir de três
estágios. São fases não-lineares que se intercalam no processo de produção e
fragmentação da identidade.
Denomino o primeiro estágio de <<quem sou eu?>> É a fase dos primeiros
questionamentos existenciais, marcada por muita confusão e desconhecimento. O “posso
ser homossexual?” passa a ser um pensamento inquietante e uma linha de
desterritorialização.
O inconsciente passa a ser habitado por um duelo de forças: forças emancipatórias
do desejo e forças hegemônicas do campo social [medo e pressão social – duas forças de
captura da heteronormatividade]. O indivíduo passa a se confrontar internamente com
este atravessamento caótico: onde as forças de captura se confrontam com pulsões
desejantes e fantasias de um desejo que quer se desdobrar de si.
O segundo estágio chamo de <<mutação existencial>>. Fase de bifurcação e de
novos focos mutantes de produção existencial. É uma fase difícil, de muitos
questionamentos com relação a identidade e a sexualidade. É a fase pré-armário e das
novas pulsações libidinais. O que vai desdobrar o desejo deste estágio será a sucessão de
acontecimentos e experiências no qual os jovens se deparam.
Se o indivíduo não tiver boas expectativas quanto a sua descoberta, ele pode vir a
conviver com a repressão desejante e seus efeitos, tais como, melancolia e depressão; ou
viver sob a regulação constante de um armário. É um estágio marcado por sentimentos de
aceitação concomitantes a sentimentos de vazio e negação, sentimentos que transmudam
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de acordo com o impacto da homossexualidade para o indivíduo e o seu nível de
enfrentamento.
O terceiro e último estágio é o da <<produção desejante>>. É a fase de aceitação
e em seguida, de afirmação e de projeção de sua nova identidade. Fase de incorporação
de novas tecnologias de simulação. Neste estágio, os jovens a produzir experiências
compartilhadas entre membros da mesma tribo.
É a fase que parte dos homossexuais buscam enfrentar a saída do armário e a
desconstruir a heteronormatividade. Momento de um novo compromisso ético-político:
agora o indivíduo incorpora a homossexualidade a sua produção existencial, propiciando
a autoaceitação e afirmação política em relação à identidade minoritária.
Os novos engendramentos maquínicos se constituem como uma porta de entrada
ao universo da cultura homossexual. São espaços onde você pode conhecer as práticas,
costumes e hábitos que maquinam a identidade homossexual na contemporaneidade. As
redes sociais, por exemplo, podem se configurar como espaços político, potências de
intervenção no outro e pelo outro.
No Facebook, por exemplo, nos deparamos com uma terra fértil para a
reconstrução de nossa identidade, podendo incorporar novos sentidos e a quebrar
estereótipos. É um também um território existencial, de vivência de novas afetividades.
O sistema de interconexão nos possibilita uma infinidade de usos e subjetivação, tudo vai
depende dos agenciamentos. É um território existencial diferenciado dos sistemas
materiais.
As redes sociais trazem novos redimensionamentos a nossa subjetividade por se
constituírem como uma prática social construída no registro de um sistema em rede de
conexões,
permitindo
uma
simulação
existencial
nômade
em
um
espaço
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desterritorializado da materialidade pré-existente e circunscrito em uma natureza
misturada. Na coleção de redes que nos atravessam, um novo processamento de
experiências e práticas sociais têm se produzido.
As minorias precisam ter a autoconsciência da necessidade antropogeográfica de
ocupar, proliferar e engendrar suas próteses [conjuntos de signos e substâncias de
expressão] nos múltiplos espaços que contornam o mosaico da pós-modernidade.
Precisamos precisam produzir espaços de guerra contra os totalitarismos que nos
oprimem.
Com o engajamento das forças políticas bárbaras para a transformação social,
Gaia deve passar por um estado de homeostase: por um processo de equilíbrio dinâmico,
de grande flexibilidade em decorrências das perturbações bioquímicas e antropomórficas.
No agenciamento entre as forças mutantes, o organismo vital tende a transmudar,
adaptando as novas mudanças socioambientais. A capacidade de adaptabilidade a um
espaço é uma função vital dos modos virtuais.
Os filhos da mutação habitam uma <<disfunção genético-social>> da polimorfia
que distorce o eu ao múltiplo da esquizofrenia generalizado do capitalismo pós-moderno.
Os corpus habitam um novo código genético-social em uma nova territorialidade,
coabitada agora por tribos nômades e bárbaras que lutam pela mudança de registro virtual
da máquina social capitalista. O momento agora é de <<desdobramento maquinico>>.
Toda máquina possui um motor que é superaquecido pelas forças desejantes. O desejo é
a força virtual que faz a grande máquina funcionar e se desdobrar a novos arranjos [novos
valores, novas próteses].
Toda sociedade, portanto, possui um regime virtual, um sistema simbólico que
organiza o sistema operacional coletivo [que por sua vez configura os nossos sistemas de
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software com as tecnologias de simulação do conjunto hegemônico simbólico]. A
polifonia desordenada e o fluxo da mutação traz consigo a adrenalina e os calafrios do
novo. As próximas contingências devêm a dar continuidade na aventura [pós]humana,
com novas objetivações da interioridade.
As reivindicações bárbaras, imersas na cristalização do imenso desejo coletivo de
produzir novas funções existenciais, devem se apropriar do processo de virtualização que
nos atravessa para a invenção de novos espaços-tempos, em uma cooperação maquínica
que pode nos colocar em um novo centro de gravidade.
Nada detém a mutação e o novo motor da máquina social deve ser organizada no
seio desejante de uma solidariedade maquínica entre as tribos. Entretanto, não há
desdobramento de sociedade sem a luta social, e a desconstrução político-cultural ainda
é um movimento contínuo que deve ser sempre pensado estrategicamente, captando o nó
de tendências e forças que a potência virtual nos contempla. E assim vamos dando
passagem ao fluxo da atualização, rompendo fronteiras para a transitoriedade para uma
nova era e um novo corpus tecnobiológico: uma nova organização social a partir da
realidade corrompida pela desordem da crise contemporânea.
Através da mutação no seio das mudanças genotípicas, as tribos minoritárias
podem vir a alterar a faixa de variação das variáveis que contornam a máquina social,
proporcionando flexibilidade e componentes mais estáveis a superfície desejante. É
importante neste sentido, engajar-se em um desenvolvimento criativo de novas máquinas
e funções, com novas transações e simbioses.
A autorenovação do sistema vital deve contornar uma transferência de
organização e organismo. As minorias precisam ter a tomada de autoconsciência de que
possuem um potencial inerente para superar a si mesmo para criar novos maquinismos e
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novos tipos de comportamento, desdobrando o registro valorativo da máquina social a
novos eixos. A microevolução deve conectar-se a macroevolução para novos focos de
mutação randômica.
A criação de valores faz parte da evolução humana. A sobrevivência germina da
interação das tribos com o seu meio geográfico, o que vem a configurar um sistema
operacional coletivo que está sempre se desfazendo para incorporar novas variedades
genéticas e culturais.
A realidade universal deve passar por uma bifurcação generalizada e transmutação
de valores pelo engendramento contínuo de novas próteses pelas camadas subalternizadas
no decorrer da modernidade. A mente humana é capaz de criar um mundo exterior que
espelha a realidade interior [virtualidade]. O momento é de tomar posse da potência de
criação para a impressão de novas marcas, sonhos, fantasias, mitos: uma recriação da
cultura para o bifurcamento da moral universal a novos sensos de valores.
O espaço social é de pura produção e registro de forças, afetos e perceptos. Temos
que nos constituir como sujeito da práxis transformadora e da desconstrução,
incorporando novos meios valorativos para um novo desarranjo espacial ao corpus sem
órgãos de Gaia.
Na ação e na maquinação social, os homens fazem com que as próteses e os
sistemas virtuais tomem formas adequadas às suas necessidades. O corpus simbólico foi
construído historicamente de forma específica, desigual e moldado ao longo de uma
modernidade por agentes, máquinas e processos sociais com intenções demarcadas por
modelos universais e regimes simbólicos hegemônicos.
A desconstrução do sujeito racional foi fundamental. Conforme HARAWAY
(2004), as forças minoritárias não têm saudades da lógica dominadora. Agora, se faz
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necessário produzir novas escrituras que implique em um compromisso com a mudança
social. Como KARL MARX (1985) salienta, todo progresso histórico acontece a partir
de uma luta social. O sofrimento e o sacrífico do homem branco rico heterossexual e
colonizador é um preço a ser pago para se chegar a mudança social.
O real é essencialmente múltiplo, dinâmico e heterogêneo, não se assenta numa
estrutura universal, circunscrita numa rede simbólica que vem a legitimar o poder de um
Império Patriarcal-Capitalista. O real deve perpassar agora pelo registro social da
multiplicidade. A criação de uma Metafísica teve como projeto a fabricação de uma
realidade preenchida por sistemas fixos e organizacionais, mantendo um controle da
subjetividade dos corpus e uma aparência de natureza por meio de explicações unívocas
e sem movimento.
Hoje o sistema capitalista da produção social tem passado por sérios distúrbios,
em decorrência de sua exaustão. O desenvolvimento desenfreado das forças produtivas
tem levado o capitalismo ao seu limite. É neste movimento que os fluxos revolucionários
escapam pelas fissuras, promovendo novas rupturas sociais e desdobramentos a paisagem
social.
O movimento de ruptura com uma tradição universal de pensamento, enraizado
na Cultura Política Totalitária de um Império Patriarcal-Capitalista, indica habitar as
zonas do novo para a produção social de novos modos de composição de ser e estar no
mundo.
As articulações entre forças políticas hegemônicas geraram categorias de
pensamento voltadas ao Universal pela busca incessante da verdade por meio da abstração
generalizada, permitindo uma colonização não só de Gaia, mas também das ideias. O
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processo de decodificação dos códigos universais, apresenta-se como uma força de
transgressão às formações fixas dos conjuntos patriarcais-capitalistas.
Neste contexto, as forças bárbaras precisam preencher um novo campo de
imanência. Tatuar Gaia com novos conjuntos de signos e valores que contemplam a
diversidade étnica-cultural. O mapeamento de táticas e estratégias se faz importante na
contemporaneidade. É se furtar da crise [econômica, social e cultural] para o
delineamento de uma nova humanidade, registrada na multiplicidade e na
heterogeneidade molecular, o que indica colocar o inconsciente, a materialidade e a
idealidade em devir, fazendo emergir em superfície novos focos mutantes de produção
existencial.
O pensamento precisa se readequar a mutação cultural. O avanço do Capitalismo
em conexão com a pregada dos Ideais Iluministas [difundida sob conjuntos positivistas e
racionalizantes] destonou as linhas virtuais e as possiblidades de uma liberdade do
pensamento. Agora, a crítica deve percorrer por uma produção de uma nova imagem do
pensamento e do mundo, que difere do pensamento abstrato sobre a realidade, nos moldes
do platonismo.
Os saberes em conexão com a multiplicidade cultural passariam a buscar uma
relação que se integra a Gaia, aos Cosmos e ao Ser. Um pensamento que traz consigo a
potência do acontecimento, aquilo que acontece no dado empírico, no embate entre as
forças que estão a transformar a paisagem continuamente. Um pensamento que se constrói
enquanto atualização em vias de se desdobrar ao novo.
Os seres e animais operar sua existência em um processo de composição por linhas
de segmentariedade. O espaço vivido é continuamente produzido no seio de linhas
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virtuais que redirecionam as forças de des-territorialização. Um processo de arranjo e
desarranjo da paisagem social, de encaixe e desencaixe.
As tribos minoritárias constituem hoje como forças em potencial de revolução
social. Trazem consigo o desejo pelo novo, possuem a potência do virtual responsável
por desestabilizar as estruturas reacionárias para novos acoplamentos ao corpus de Gaia.
Cabem os grupos humanos se articularem entre si para a remanejamento de linhas de
transformação, constituindo-se em um processo por onde os fluxos virtuais e as
intensidades do desejo vão percorrer e se materializar.
Nosso desejo segue produzindo zonas de virtualidade que podem contribuir
efetivamente para a nossa manutenção e autoconservação. Temos a potência que parte da
nossa condição vital para criar as condições necessárias para uma evolução sustentável.
O bem verdadeiro e supremo devém a ser o conhecimento da união entre corpus e Gaia e
como essa simbiose produz efeitos em nossa alma (virtualidade).
O padrão majoritário tornou-se vazio, oco. As tecnologias de simulação globais
só nos inserem em programações e ficções banais que emergem de uma sociedade do
espetáculo capitalista e opressora. O totalitarismo do Império Patriarcal-Capitalista
favoreceu o interesse do progresso e do controle da vida ao limitar as possibilidades de
muitos em prol do acúmulo e domínio por poucos.
As tribos bárbaras e minoritários desafiam a cadeia hegemônica de signos e põe
a ordem totalitária em questionamento contínuo. Um processo que deve continuar a todo
vapor, promovendo novos engendramentos. Se chegou o grande momento das forças
bárbaras se apropriarem da totalidade das forças produtivas a fim de atingirem a revolução
social.
Referências
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DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia I. São Paulo:
Editora 34, 2010.
HARAWAY, D. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final
de século XX. In HARAWAY, D; KUNZRU, H; TADEU, T. (org.). Antropologia do
ciborgue: as vertigens do pós-humano. São Paulo: Autêntica, 2013.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política (vol. I: o processo da produção
capitalista). São Paulo: Nova Cultural, 1985.
SANTOS, M. Pensando o espaço do homem. São Paulo: EDUSP, 2009.
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A HERANÇA PATRIARCAL NO FILME AMARELO MANGA
Daiane Stefane Lima Antunes1
Samuel Fernando da Silva Junior2
RESUMO: O presente artigo analisa o filme brasileiro Amarelo Manga (2003) com direção de Cláudio
Assis e roteiro de Hilton Lacerda, o referido filme retrata o cotidiano de uma periferia de Recife. A história
da trama se desenrola em um dia, o espectador adentra no contexto imagético de Cláudio Assis e se depara
com personagens que travam uma luta para se firmarem como indivíduos ao decorrer de toda a película.
Desse modo, vemos uma luta simbólica entre os personagens do filme, as mulheres e os homens estão
inseridos em um cenário onde a herança do patriarcado se apresenta com mais ênfase. Nesse contexto, o
presente trabalho atenta-se em analisar o filme numa perspectiva histórica, tendo em vista, a herança
patriarcal que rodeia as relações da película. Tal herança nos remete ao início da formação da sociedade
brasileira, portanto, como arcabouço teórico, a análise se fundamenta através do historiador Sérgio Buarque
de Holanda e do sociólogo Gilberto Freyre. Tendo em vista, a discussão de exploração e dominação do
sistema patriarcal, partimos da cientista social Heleieth I. B. Saffioti. Portanto, o presente artigo
compreende a herança patriarcal que rege as relações sociais entre os gêneros do filme em questão, tendo
em vista, o contexto geográfico e social que o objeto da presente pesquisa se enquadra.
O filme Amarelo Manga3 (2003) é uma produção do cineasta recifense Cláudio
Assis, com roteiro de Hilton Lacerda. A referida produção cinematográfica retrata o
cotidiano de Recife. A história da trama se passa em um dia e apresenta personagens
marginalizados que buscam firmar a sua presença num ambiente conferido pela ordem da
herança patriarcal.
Essa ordem patriarcal é a problemática posta como objeto nesse artigo, pois a
herança patriarcal sedimenta as relações sociais entre os gêneros no nordeste imagético
de Cláudio Assis. Codificando os personagens em lugares pré definidos socialmente,
1
Graduanda do curso de História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Esse trabalho é o
resultado parcial do trabalho de conclusão de curso. E-mail: [email protected]
2
Graduando do curso de História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail:
[email protected]
3
Ficha técnica: ASSIS, Cláudio; SACRAMENTO, Paulo; LACERDA, Hilton. Amarelo Manga. [FilmeVídeo]. Produção: Cláudio Assis e Paulo Sacramento. Direção de Cláudio Assis. Roteiro: Hilton Lacerda.
Fotografia: Walter Carvalho. Trilha Sonora: Jorge Du Peixe, Lúcio Maia. Direção de Arte: Renata Pinheiro.
Figurino: Andrea Monteiro. Montagem: Paulo Sacramento. Montagem de Som: Ricardo Reis. Elenco:
Chico Díaz, Dira Paes, Jonas Bloch, Leona Cavalli, Matheus Nachtergaele, Taveira Júnior. Brasil. 2003.
100 min. Ficção. Colorido.
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conferidos pela dominação masculina que é a prisma ideológica dos resquícios da herança
patriarcal.
Portanto, no viés histórico que propomos compreender essa herança patriarcal.
Partimos realizando uma breve análise de como se estruturou a sociedade patriarcal na
formação da sociedade brasileira. Para tanto compreendermos como se perpetua a herança
patriarcal em Amarelo Manga.
A Formação da Sociedade Patriarcal Brasileira
A formação da sociedade brasileira foi estruturada no sistema patriarcal e
escravocrata de colonização, tal formação inicia-se com a chegada do colonizador
português4, esse se instala na terra americana, e passa a se relacionar com a população
ameríndia residente em tais terras. Nesse enredo, Gilberto Freyre em seu clássico Casa
Grande & Senzala, salienta que:
O sistema patriarcal de colonização portuguesa do Brasil, representado pela
casa-grande, foi um sistema de plástica contemporização entre as duas
tendências. Ao mesmo tempo que exprimiu uma imposição imperialista da raça
adiantada à atrasada, uma imposição de formas europeias (já modificado pela
experiência asiática e africana do colonizador) ao meio tropical, representou
uma contemporização com as novas condições de vida e de ambiente. A casagrande de engenho que o colonizador começou, ainda no século XVI, a
levantar no Brasil grossas paredes de taipa ou de pedra e cal, coberta de palha
ou de telha-vã, alpendre na frente e dos lados, telhados caídos em um máximo
de proteção contra o sol forte e as chuvas tropicais – não foi nenhuma
reprodução das casas portuguesas, mas uma expressão nova, correspondendo
ao nosso ambiente físico e a uma fase surpreendente, inesperada, do
imperialismo português: sua atividade agrária e sedentária nos trópicos; seu
patriarcalismo rural e escravocrata.5
Cabe salientarmos que esse viajante português “vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que
custa ousadia, não riqueza que custa trabalho. A mesma, em suma, que se tinha acostumado a alcançar na
Índia com as especiarias e os metais preciosos. Os lucros que proporcionou de início, o esforço de plantar
a cana e fabricar o açúcar para mercados europeus, compensavam abundantemente esse esforço – efetuado,
de resto, com as mãos e os pés dos negros – mas era preciso que fosse muito simplificado, restringindo-se
ao estrito necessário as diferentes operações.” (BUARQUE, 1995, p. 49)
5
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime patriarcal. 52
ed. São Paulo: Global, 2013. p. 35.
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Nesse contexto, a chegada do homem europeu e as relações com os nativos
americanos não resultou numa relação amistosa devido à grande complexidade que tal
encontro representava, pois era a junção de dois mundos, ou seja, dois lados cheios de
simbolismo e representações. Assim, algumas etnias indígenas se sentiram ameaçadas
com a presença desses portugueses, outras etnias se relacionaram em busca de uma “troca
de favores” que resultasse numa estabilidade de sua etnia, e outras populações indígenas
se mantiveram numa eterna resistência a presença do colonizador.6
Dessa forma, a relação entre esses dois mundos, do homem europeu e do indígena,
foi de uma grande complexidade social e cultural. E dentro desse turbilhão, houve intrigas
de poder em volta das relações sociais entre os sexos, pois o sistema de gênero e sexo é
uma construção sócio-cultural, um sistema de representação que atribui significado
“Muitas se recusaram a colaborar, mantendo a posição de hostilidade, como os aimorés, por exemplo.
Para os Tupis, no entanto, grupo predominante na costa brasileira no século XVI, as relações com o outro
constituíam elemento básico em sua tradição cultural, conforme enfatizou Viveiros de Castro, daí a extrema
abertura ao contato que tanto surpreendeu os europeus e possibilitou a colonização.” (ALMEIDA, 2003, p.
29) A relação entre os habitantes ameríndios e o homem europeu na terra americana foi o elemento
estruturador da colonização, pois na conjuntura da época uma relação amistosa entre o indígena e o europeu
acarretava no avigoramento do projeto colonizador português, como Sérgio Buarque de Holanda afirma:
“No Brasil, a exploração litorânea praticada pelos portugueses encontrou mais uma facilidade no fato de se
achar a costa habitada de uma única família de indígenas, que de norte a sul falava um mesmo idioma. É
esse idioma, prontamente aprendido, domesticado e adaptado em alguns lugares, pelos jesuítas, as leis da
sintaxe clássica, que há de servir para o intercurso com os demais povos do país, mesmo os de casta diversa.
Tudo faz crer que, em sua expansão ao largo do litoral, os portugueses tivessem, sido sempre antecedidos,
de pouco tempo, das extensas migrações de povos tupis e o fato é que, durante todo o período colonial,
descansaram eles na área previamente circunscrita por essas migrações.” (BUARQUE, 1995, p. 105) Nesse
arranjo, visualizamos, que a relação amistosa numa determinada área repleta de indígenas de uma mesma
etnia facilitava em êxito os interesses do homem europeu, pois “o fato de acharem essas terras habitadas de
uma só raça de homens, falando a mesma língua, não podia deixar de representar para eles inestimável
vantagem” (BUARQUE, 1995, p. 106). Entretanto, “integrados a colonização, as populações indígenas
perdiam, junto com a guerra, suas culturas, identidades étnicas e todas as possibilidades de resistência,
passando a constituir massa amorfa a inerte a disposição de missionários, colonos ambiciosos e autoridades
corruptas que dispunham deles a vontade.” (ALMEIDA, 2003, p. 27)
Ver: VASCONCELOS, Cláudio A. de. A questão indígena na província de Mato Grosso: conflito, trama
e continuidade. Campo Grande: Ed.UFMS, 1999.
CARVALHO, Francismar Alex Lopes. Os "senhores dos rios" e as suas alianças: um estudo sobre as
fronteiras e as trocas culturais no movimento das Monções. Revista Territórios e Fronteiras, v. 6, n. 1, p.
81-94, jan./jun. 2005.
CUNHA, Manuela C. (org.) História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia das Letras/FAPESP, 1992.
6
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social7. Assim, cada grupo social que entrava em contato naquela temporalidade tinha a
sua abordagem simbólica à cerca das relações entre os indivíduos, e por sua vez,
visualizavam as relações de gênero de formas diferentes acarretando em conflitos sociais.
Nesse enredo, com o passar do povoamento nas terras coloniais, os africanos 8
foram desembarcando resultando num trio de etnias, principais, que viviam nos trópicos,
sendo essas a indígena9, africana e portuguesa. Consecutivamente, o contato dos homens
europeus com as populações indígenas e com as populações africanas foram se
perpetuando na colônia, e a formação da família patriarcal foi se delineando. Tal estrutura
familiar tem por definição:
Um núcleo composto pelo chefe da família (patriarca), sua mulher, filhos e
netos, que eram os representantes principais; e um núcleo de membros
considerados secundários, formados por filhos ilegítimos (bastardos) ou de
criação, parentes, afilhados, serviçais, amigos, agregados e escravos. No
comando tanto do grupo principal como do secundaria, estava o patriarca
responsável por cuidar dos negócios e defender a honra da família, exercendo
LAURETIS, Teresa. A Tecnologia de Gênero. In: HOLLANDA, Heloisa (Org.). Tendência e Impasses –
O FEMINISMO COMO CRITICA DA CULTURA. Rio de Janeiro. Rocco, 1994.
8
A necessidade da presença de nativos africanos na colônia foi para colocar em prática o projeto agro
exportador que a Metrópole traçava para a Colônia, assim a mão de obra indígena foi direcionada para o
“mercado interno” enquanto a agro exportação demandava a escravidão africana. Como pontua Florentino:
“Na verdade, o aproveitamento do escravo indígena não pareceria ter sido ocasional, estando inscrito nos
planos iniciais da colonização. Prova disso seria que, entre os privilégios recebidos pelos donatários, estava
o de escravizar uma quantidade ilimitada de nativos, além de poder exportar um número restrito dos
mesmos para a Metrópole. Logo, porém, os indígenas revelaram-se escassos para o atendimento do projeto
agroexportador. Foi quando entraram em cena os africanos sem, no entanto, deslocar-se por completo o
trabalho indígena de áreas periféricas” (FLORENTINO, 1997, p.71).
9
Cabe frisarmos que a mão de obra indígena para o projeto colonizador português não foi vista como uma
mão de obra capaz de assumir todo o projeto colonizador, logo, acarretou numa relação conflituosa em
torno da “dinâmica” indígena. Como Sérgio Buarque de Holanda, salienta: “Os antigos moradores da terra
foram, eventualmente, prestimosos colaboradores na indústria extrativa, na caça, na pesca, em
determinados ofícios mecânicos e na criação do gado. Dificilmente se acomodavam, porém, ao trabalho
acurado e metódico que exige a exploração dos canaviais. Sua tendência espontânea era para atividades
menos sedentárias e que pudessem exercer-se sem regularidade forçada e sem vigilância e fiscalização de
estranhos. Versáteis ao extremo, eram-lhes inacessíveis certas noções de ordem, constância e exatidão, que
no europeu formam como uma segunda natureza e parecem requisitos fundamentais da existência social e
civil. O resulta eram incompreensões reciprocas que, de parte dos indígenas, assumiam quase sempre a
forma de uma resistência obstinada, ainda quando silenciosa e passiva, as imposições da raça dominante.”
(BUARQUE, 1995, p. 48)
7
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autoridade sobre toda a sua parentela e demais dependentes que estivessem sob
sua influência.10
Nesse arranjo, a constituição da família brasileira é a adaptação da portuguesa nos
trópicos, pois:
A família brasileira seria o resultado da transplantação e adaptação da família
portuguesa ao nosso ambiente colonial, com suas normas, costumes e tradições
familiares, por sua vez, influenciados pela sociedade europeia, tendo gerado
modelo com características patriarcais e tendências conservadoras em sua
essência.11
Em torno dessa estruturação, as relações entre os indivíduos foram se delineando,
os homens portugueses, muitas vezes, por falta de mulheres brancas12 relacionavam-se
com as mulheres indígenas e africanas 13 . Logo, a estrutura familiar patriarcal se
concretizava na colônia, e tal estrutura possuía uma importância vital ao funcionamento
do projeto colonizador, já que:
O próprio Estado, que, enquanto ordem pública, deveria estar acima das
questões familiares, esbarrava nestas quando necessitava intervir. Mas os
governantes sabiam que essa família exclusivista, dobrada sobre si mesma e
extremamente organizada, era, por sua vez, o sustentáculo do Estado, pois
impedia que a população, tão escassa e quase nômade, se diluísse neste imenso
país. A família patriarcal era, portanto, a espinha dorsal da sociedade e
desempenhava os papéis de procriação, administração econômica e direção
política. Na casa-grande, coração e cérebro das poderosas fazendas, nasciam
os numerosos filhos e netos do patriarca, traçavam-se os destinos da fazenda e
educavam-se os futuros dirigentes do país. Cada um com seu papel, todos se
moviam segundo intensa cooperação. A unidade da família devia ser
preservada a todo custo, e, por isso, eram comuns os casamentos entre
parentes. A fortuna do clã e suas propriedades se mantinham assim indivisíveis
sob a chefia do patriarca.14
10
ALVES, Roosenberg Rodrigues. Família patriarcal e nuclear: conceito, características e
transformações. In. II Seminário de Pesquisa da Pós-graduação em História UFG/UCG. Goiânia-Goiás, (114), set, 2009. pp. 02-03.
11
Ibidem, p. 04.
12
A falta de mulheres brancas tinha dois motivos principais: o primeiro era que as mulheres europeias não
visualizavam a sua vinda para a colônia portuguesa como algo promissor, e o segundo era que muitas
mulheres brancas procuravam a vida de freiras.
13
Cabe salientar que a empresa colonizadora portuguesa foi moldada pela estrutura ambiental e social da
colônia, como Sérgio Buarque de Holanda afirma: “Num conjunto de fatores tão diversos, como as raças
que aqui se chocaram, os costumes e padrões de existência que nos trouxeram, as condições mesológicas e
climatéricas que exigiam longo processo de adaptação, foi o elemento orquestrador por excelência.
Favorecendo a mobilidade social, estimulou os homens, além disso, a enfrentar com denodo as asperezas
ou resistências da natureza e criou-lhes as condições adequadas a tal empresa.” (BUARQUE, 1995, p. 46)
14
ALVES, Roosenberg Rodrigues. Op. cit. p. 05.
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33
Dessa forma, vemos a importância da família patriarcal para a constituição da
sociedade brasileira, entretanto, cabe ressaltar, que tal estrutura familiar não era o único
modelo familiar vigente na colônia, já que:
Pesquisas mais recentes têm evidenciado que estas não foram as
predominantes, mas, sim, aquelas com estruturas mais simplificadas e menor
número de integrantes: famílias pequenas, famílias de solteiros e viúvos,
famílias de mães e filhos sem pais, famílias de escravos. Ou seja, também no
passado a noção de família se alterava conforme os grupos sociais e as regiões
do país. Os escravos forros viviam de um jeito; o poderoso da elite senhorial,
de outro. O que não variava era o hábito, muito comum, de integrarem amigos
e parentes à família.15
Entretanto, a família patriarcal desempenhou uma importância social, política e
econômica na sociedade da época. Nesse arranjo, pontuamos que o controle e a imposição
do sexo masculino sobre os indivíduos foram se perpetuando. Já que as famílias de estilo
patriarcais são formadas por:
Vínculos biológicos e afetivos que unem o chefe os descendentes, colaterais e
afins, além da famulagem e dos agregados de toda sorte, hão de preponderar
sobre as demais considerações. Formam, assim, como um todo indivisível,
cujos membros se acham associados, uns aos outros, por sentimentos e de
deveres, nunca por interesses ou ideias.16
E esse vínculo constituiu um aparelho de forte controle do grupo familiar frente a
sociedade, fundindo-se com a exterioridade, ou seja, com o público. Como Sérgio
Buarque de Holanda relata:
Dos vários setores de nossa sociedade colonial, foi sem dúvida a esfera da vida
doméstica aquela onde o princípio de autoridade menos acessível se mostrou
as forças corrosivas que de todos os lados o atacavam. Sempre imerso em si
mesmo, não tolerando nenhuma pressão de fora, o grupo familiar mantém-se
imune de qualquer restrição ou abalo. Em seu recatado isolamento pode
desprezar qualquer princípio superior que procure perturba-lo ou oprimi-lo.
Nesse ambiente, o pátrio poder é virtualmente ilimitado e pouco freios existem
para a sua tirania. (...) O quadro familiar torna-se, assim, tão poderoso e
exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto
doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A
nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem
necessariamente as preferencias fundadas em laços afetivos, não podia deixar
de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades.
Representando, como já se notou acima, o único setor onde o princípio de
autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a ideia mais normal do
15
16
Ibidem, p. 06.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1995. p. 79.
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poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O
resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios a
comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão
do público pelo privado, do Estado pela família. 17
O poder masculino que permeava as relações familiares patriarcais, colocavam as
mulheres numa relação de submissão e dependência. Entretanto, nessa conjuntura não
havia uma regra geral, como Heleieth Iara Bongiovani Saffioti, salienta:
A mulher branca da casa-grande desempenhava, via de regra, importante papel
no comando e supervisão das atividades que se desenvolviam no lar. É preciso
não esquecer que aquelas atividades não diziam respeito meramente aos
serviços que hoje são designados domésticos. A senhora não dirigia o trabalho
da escravaria na cozinha, mas também na fiação, na tecelagem, na costura;
supervisionava a confecção de rendas e o bordado, a feitura da comida dos
escravos, os serviços do pomar e do jardim, o cuidado das crianças e dos
animais domésticos, providenciava tudo para o brilho das atividades
comemorativas que reuniam toda a parentela. (...) Há indícios de que parcela
ponderável de mulheres da camada dominante levasse vida ociosa. Incapazes
de impor a disciplina a escravaria doméstica e aos filhos, refestelavam-se nas
redes, mal vestidas e desgrenhadas acalentadas pelo cafuné das negras.
Todavia, a figura da mulher indolente, abandonada a rede, ralhando com os
escravos e assistindo passivamente aos namoros de seu marido com as
escravas, parece ter sido mais frequente no Nordeste açucareiro, embora não
fossem raros casos semelhantes no sul do país.18
Assim, visualizamos uma dualidade do condicionamento das mulheres na
sociedade patriarcal, pois não eram raros, casos de mulheres que tomavam a gerência do
patrimônio da família, quando seu marido estava ausente ou falecesse. Entretanto, a
mulher quando transformada em chefe domiciliar deveria justificar juridicamente este
encargo.19 Portanto, compreendemos que as ações das mulheres eram condicionadas ao
“alvará” do homem.
Deste modo, para manter-se esse controle e domínio sobre as mulheres, muito
cedo já começava-se a educar os adolescentes para desempenhar tal domínio, como
Gilberto Freyre expressa:
17
Ibidem, pp. 81-82.
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. A mulher na sociedade de classes. 3ª ed. São Paulo, Expressão
Popular, 2013. pp. 245-246.
19
ALVES, Roosenberg Rodrigues. Op. cit.
18
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A segregação do menino, uma vez atingida a puberdade, nos clubes ou casas
secretas dos homens, chamadas baito entre as tribos do Brasil Central, parece
que visava assegurar ao sexo masculino o domínio sobre o feminino: educar o
adolescente para exercer esse domínio. Eram casas vedadas as mulheres (a não
ser as velhas, masculinizadas ou dessexualizadas pela idade) e aos meninos,
antes de iniciados. Nelas se guardavam as gaitas e os maracás que mulher
nenhuma se lembrasse de querer avistas mesmo de longe: significava a morte
certa. Durante a segregação o menino aprendia a tratar a mulher de resto; a
sentir-se sempre superior a ela; a abrir-se em intimidades com a mãe nem com
mulher nenhuma, mas com o pai e com os amigos.20
Tal iniciação era realizada para ensinar e impor o domínio do masculino frente
aos outros indivíduos. Assim aos meninos que atingiam a puberdade havia a emergência
em os ensinarem a se relacionar com as mulheres, logo, senhores de engenho realizavam
tais práticas com seus filhos procurando que esses iniciassem a sua vida sexual 21
precocemente para se afirmarem como homem (no sentido sexual), e consecutivamente,
estarem aptos a assumirem os negócios da família. Pois, obviamente, era apenas o filho
homem que poderia assumir o cargo de patriarcal sucessor.
Os mecanismos de controle e dominação das relações de gênero não eram apenas
fruto dos senhores de engenho, a igreja – como sempre – também efetuava tal controle,
entretanto, essa instituição era mantida, em sua maioria, pelo patriarca da localidade.22
O filme Amarelo Manga é permeado pela dominação masculina que tem por
herança a estrutura familiar patriarcal, já que no contexto geográfico da película, o
nordeste, a estrutura familiar patriarcal era quase exclusividade. Essa herança patriarcal
20
FREYRE, Gilberto. Op. cit.. p. 207.
Em torno da vida sexual na colônia Gilberto Freyre salienta a ocorrência frequente de doenças
sexualmente transmissíveis acarretando numa epidemia: “É claro que, sifilizadas – muitas vezes ainda
impúberes – pelos brancos seus senhores, as escravas tornaram-se, por sua vez, depois de mulheres feitas,
grandes transmissoras de doenças venéreas entre brancos e pretos. O que explica ter se alagado de gonorreia
e de sífilis a nossa sociedade do tempo da escravidão.” (FREYRE, 2013, p. 400) Essas epidemias venéreas
demonstram o domínio do poderio patriarcal frente as relações entre os gêneros na estrutura colonial, já
que “foram os senhores das casas-grandes que contaminaram de lues as negras das senzalas. Negras tantas
vezes entregues virgens, ainda molecas de doze e treze anos, a rapazes brancos já podres da sífilis das
cidades. Porque por muito tempo dominou no Brasil a crença de que para o sifilítico não há melhor
depurativo que uma negrinha virgem.” (FREYRE, 2013, pp. 399-400)
22
Ver: VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de
Janeiro, ed. Nova Fronteira. 1997.
21
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condiciona os indivíduos e os dispõem em estereótipos que devem ser seguidos para não
serem marginalizados do convívio social ou “mal falados” pelos indivíduos que
constituem a sociedade a sua volta.
Em torno dessa problemática adentraremos, a seguir, sobre a herança patriarcal
que estruturou o sistema de dominação-exploração nas relações de gênero. Tendo em
vista, que tal herança patriarcal infiltra-se em todas as estâncias da sociedade – no privado
e no público. Em Amarelo Manga essa herança se expressa em todas as relações dos
personagens.
A Dominação-Exploração Patriarcal em Amarelo Manga
As transformações sociais que surgiram na sociedade brasileira23, como o fim da
Monarquia e o início da República, alteraram a constituição da estrutura familiar
patriarcal. O poder concentrado num único agente, que no caso é o pai (patrão), não supria
as novas necessidades que solapavam na sociedade. Assim, de uma família patriarcal
vemos a constituição de uma família nuclear burguesa24. Porém, cabe ressaltar, que:
A desorganização da família patriarcal, entretanto, não se processou
uniformemente em todo o país. Ainda nos dias atuais, a organização familiar
brasileira preenche toda uma gama que vai desde a família semi-patriarcal até
a família conjugal moderna, desligada da parentela e mais distante da tradição.
A medida que a família foi, variavelmente e segundo a dinamização da ordem
econômica, perdendo suas bases patriarcais, decresceu a prepotência de seu
chefe em consequência da sua perda de parcela das funções políticas e
econômicas anteriormente desempenhadas. 25
Entretanto, as mudanças sociais que ocorreram não excluíram em sua gama os
mandamentos do sistema patriarcal, ou seja, sua ideologia. Essa estrutura familiar deixou
seus vestígios e demandas em várias esferas da sociedade. Assim, a herança patriarcal
Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nordestino: invenção do “falo” – uma história do
gênero masculino (1920-1940). 2 ed. São Paulo: Intermeios, 2013.
24
Na estrutura da família nuclear não havia um poder total do patriarca, já que não se agrupavam parentes
em torno do poder do pai.
25
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. A mulher na sociedade de classes. 3ª ed. São Paulo, Expressão
Popular, 2013. p. 255.
23
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constitui-se num sistema de dominação-exploração que expõe as mulheres a situações de
perigo e dispostas às vontades masculinas, e predispõe os indivíduos em estereótipos que
necessitam ser seguidos para se enquadrarem nas convenções sociais.
Contudo, nas relações de gênero, não há um protagonista da dominação e um
antagonista na relação. Nas relações sociais entre os gêneros há um equilíbrio entre o
dominador e o dominado, pois mesmo que o dominador exerça o seu papel de dominação
em sua totalidade, tal função lhe acarreta num aparelhamento de anulação de atitudes que
pode lhe resultar em descrédito social. Aquele que é dominado, resiste a dominação, pois
no jogo de poder a resistência é tão presente como o próprio poder.26
Em Amarelo Manga os exploradores e explorados pela ordem patriarcal
necessitam firmar a sua dominação a todo o momento, seus atos, sua consciência e seu
inconsciente são voltados para esse objetivo. Uma cena que enaltece tal premissa é o
sonho de Isaac (interpretado por Jonas Bloch), este sonha que uma mulher está dançando
exclusivamente para ele, assim seu inconsciente enaltece seus desejos de controle perante
o feminino.
As três mulheres principais do filme Kika (interpretada por Dira Paes), Deyse
(interpretada por Magdale Alves) e Lígia (interpretada por Leona Cavalli) são
massacradas pela subordinação da dominação-exploração masculina. Essa dominação
não tem como único protagonista os homens, como já frisado, pois as mulheres “ainda
que não sejam cúmplices deste regime, colaboram para alimentá-lo”27.
E elas são visualizadas neste regime como:
Objetos de satisfação sexual dos homens, reprodutoras de herdeiros, de força
de trabalho e de novas reprodutoras. Diferentemente dos homens como
26
27
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. O poder do macho. São Paulo, Moderna. 1987.
Id. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo. 2004. p.102.
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categoria social, a sujeição das mulheres, também como grupo envolve
prestação de serviços sexuais a seus dominadores28.
Assim, o sistema patriarcal não tem limite de atuação, não se restringe apenas ao
privado, muito pelo contrário, ele está presente em toda a sociedade. Esse sistema afeta
todas as estruturas de poder, como já vimos, no Brasil Colônia a Igreja era o poder
perpetuado pelo sistema patriarcal, porém não apenas ela, o poder judiciário é outro
exemplo de instituição inflamada pelos preceitos patriarcais. O seguinte caso ilustra tal
premissa, no séc. XIX:
Ana Eleutéria, mulher simples, analfabeta, costureira, solteira, vivia só e
costumava frequentar bares em Santa Cruz de Corumbá, localizada na fronteira
com a República da Bolívia. Numa noite, Ana Eleutéria, saiu de casa para se
divertir. Ao retomar, parcialmente embriagada, foi acuada por Antonio, jovem
de 23 anos, que insistia em manter com ela relações sexuais. Para se defender
Ana deu-lhe uma facada na virilha, o que provocou intensa hemorragia,
provocando a morte do jovem. Por mais de dois anos ela aguardou julgamento
presa na cadeia da cidade. Mas, antes de ser julgada, a ré morreu de malária,
conforme consta do exame de corpo de delito procedido no cadáver de Ana no
dia 25 de setembro de 1873, como consta dos autos. 29
Esse caso evidencia a dominação masculina, pois mesmo tendo se defendido
contra a agressão de Antonio, sua defesa lhe coloca na posição de ré e acentua ainda mais
a linha divisória que a justiça julga as relações entre os homens e as mulheres, já que são
expostos a ambos a conduta que estes devem seguir30. Assim, “do mesmo modo como as
relações patriarcais, suas hierarquias, sua estrutura de poder contaminam toda a
sociedade, o direito patriarcal perpassa não apenas a sociedade civil, mas impregna
também o estado”31.
28
Ibidem. p. 105.
RODRIGUES, Marinete Aparecida Zacharias. Honra feminina e costumes: a violência física e simbólica
em Mato Grosso, no século XIX. In: VI Encontro de Pós-Graduandos da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2011, São Paulo. VI EPOG, 2011.
30
Ibidem.
31
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo, Editora Fundação
Perseu Abramo. 2004. p. 127.
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Nesse enredo, o patriarcado possui uma grande complexidade de artimanhas para
colocar as mulheres como culpadas das situações de violência que lhe ocorrem. Por
exemplo:
Se uma mulher é ameaçada de estupro por um homem armado, e resolve,
racionalmente, ceder, a fim de preservar o bem maior, ou seja, a vida, sua
atitude atuará contra ela perante o Direito brasileiro, cujos fundamentos são
positivistas, ou seja, os mesmos que informam o (neo)liberalismo. O juiz
interpretaria a cessão como consentimento.32
Logo, visualizamos que o consentimento é analisado pela justiça brasileira como
uma aceitação, mesmo que a situação, na sua lógica, forneça argumentos plausíveis para
compreender que a vítima estava numa situação de perigo. Assim, as mulheres são
preferidas que sejam submissas e auto disponíveis, se saem desse padrão, são “retalhadas”
de adjetivos que denigram a sua imagem, colocando-as, muitas vezes, em posição de vilã
ou culpada pela própria sorte.
Desse modo, a herança patriarcal atribui a mulher a condição de culpada, assim,
as mulheres são presenteadas com a culpa (culpada pela própria sorte, culpada por estar
ali à noite, culpada por usar aquela roupa tida como inadequada e outras inúmeras
eventuais situações), mesmo que a situação tenha lhe ocasionado ônus.
Assim, o filme Amarelo Manga abrange a problemática da herança patriarcal,
redimensionada para o cenário imagético de uma periferia recifense. As relações entre os
gêneros que a película expõe ao espectador são suplantadas nos regimentos viris da
herança patriarcal.
Logo, a linha desse sistema de dominação-exploração se camufla no sofrimento
carregado de angústia da personagem Lígia, que por resistir a dominação masculina que
lhe é imposta, sofre por não ter alguém que realmente a mereça, pois para essa
32
Ibidem. p. 118.
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40
personagem o domínio dos homens a sua volta suprime todo o amor que ela pode esperar
de algum homem, assim, ela sofre por amar errado, afirmando: “Eu não tenho encontrado
alguém que realmente me mereça, só se ama errado.”33
Outra personagem que expressa o sofrimento do poderio da herança patriarcal é
Kika, essa expressa em boa parte da película o sofrimento que sua condição de mulher
privada34 lhe proporciona, entretanto, ao descobrir a traição de Wellington Kanibal alterase buscando controlar a sua vida e sair da margem do poderio masculino que seu esposo
representava. A personagem Deyse expressa o sofrimento perante o sistema de
dominação-exploração que a herança patriarcal redige sobre os personagens da película,
essa personagem é visualizada como uma mulher pública, entretanto, necessita ser vista
como privada.
Os três homens principais do filme Dunga (interpretado por Mateus Nachtergaele)
Wellington (interpretado por Chico Díaz) e Isaac são os exploradores da trama, dominam
e usurpam as mulheres. Dunga é o personagem que mais se configura contraditório, pois
na condição de homossexual se posta como opositor das mulheres e reprodutor de
discursos sexistas e preconceituosos em volta delas, colocando-se como um complexo
homem homossexual.
Wellington e Isaac são os dominadores heterossexuais, que se postam como
indivíduos que merecem obediência das mulheres, e quando essa obediência é negada não
lhe custa usar a força física, que nesse caso é geralmente superior à força das mulheres
por requisitos biológicos, para firmar o seu papel de macho.
33
ASSIS, Cláudio. Amarelo Manga, 2003.
Para a compreensão dos conceitos de mulher pública e privada. Ver: PERROT, Michelle. Mulheres
Públicas. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.
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Por fim, Amarelo Manga se apresenta como uma película peculiar pelo
engajamento das relações patriarcais, nessa as mulheres são massacradas pela dominação
masculina, porém, resistem e lutam contra tal lógica sexista que se aflora cotidianamente
ao seu redor, e os homens desenvolvem uma série de atitudes que delimitam a
desigualdade entre os gêneros, regidos pela ideologia patriarcal.
Referências
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nordestino: invenção do “falo” – uma
história do gênero masculino (1920-1940). 2 ed. São Paulo: Intermeios, 2013.
ALVES, Roosenberg Rodrigues. Família patriarcal e nuclear: conceito, características
e transformações. II Seminário de Pesquisa da Pós-graduação em História UFG/UCG.
Goiânia-Goiás, (1-14), set, 2009.
ASSIS, Cláudio; SACRAMENTO, Paulo; LACERDA, Hilton. Amarelo Manga. [FilmeVídeo]. Produção: Cláudio Assis e Paulo Sacramento. Direção de Cláudio Assis. Roteiro:
Hilton Lacerda. Fotografia: Walter Carvalho. Trilha Sonora: Jorge Du Peixe, Lúcio Maia.
Direção de Arte: Renata Pinheiro. Figurino: Andrea Monteiro. Montagem: Paulo
Sacramento. Montagem de Som: Ricardo Reis. Elenco: Chico Díaz, Dira Paes, Jonas
Bloch, Leona Cavalli, Matheus Nachtergaele, Taveira Júnior. Brasil. 2003. 100 min.
Ficção. Colorido.
CARVALHO, Francismar Alex Lopes. Os "senhores dos rios" e as suas alianças: um
estudo sobre as fronteiras e as trocas culturais no movimento das Monções. Revista
Territórios e Fronteiras, v. 6, n. 1, p. 81-94, jan./jun. 2005.
CUNHA, Manuela C. (org.) História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia das
Letras/FAPESP, 1992.
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime
patriarcal. 52 ed. São Paulo: Global, 2013.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das
Letras. 1995. p. 79
LAURETIS, Teresa. A Tecnologia de Gênero. In: HOLLANDA, Heloisa (Org.).
Tendência e Impasses – O FEMINISMO COMO CRITICA DA CULTURA. Rio de
Janeiro. Rocco, 1994.
RODRIGUES, Marinete Aparecida Zacharias. Honra feminina e costumes: a violência
física e simbólica em Mato Grosso, no século XIX. In: VI Encontro de Pós-Graduandos
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
2011, São Paulo. VI EPOG, 2011.
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo, Editora
Fundação Perseu Abramo. 2004.
Composição: Revista de Ciências Sociais da UFMS
ISSN: 1983 - 3784
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____________________________. O poder do macho. São Paulo, Moderna. 1987.
____________________________. A mulher na sociedade de classes. 3ª ed. São Paulo,
Expressão Popular, 2013.
PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil.
Rio de Janeiro, ed. Nova Fronteira. 1997.
VASCONCELOS, Cláudio A. de. A questão indígena na província de Mato Grosso:
conflito, trama e continuidade. Campo Grande: Ed.UFMS, 1999.
A SEXUALIDADE E A HOMOAFETIVIDADE: REFLEXÕES COM MICHEL FOUCAULT E
NORBERT ELIAS
Sexuality and homoaffection: reflections on Michel Foucault and Norbert Elias
Francisco de Assis da Costa Filho1
Demóstenes Dantas Vieira2
RESUMO: O presente trabalho adota como objetivo principal analisar a construção da homoafetividade
na sociedade ocidental, para tanto traçamos algumas considerações sobre a homossexualidade na
civilização greco-romana até a contemporaneidade. Vale salientar que delineamos a nossa análise partindo
das reflexões de Michel Foucault e Norbert Elias no que se refere aos conceitos de interdição, configurações
e dispositivos disciplinares como mecanismos para fazer “calar” o diálogo acerca da sexualidade e
homoafetividade. Utilizamos como aporte teórico, principalmente, os estudos de Foucault (1998), Elias
(1980) e Palmeira (2006). As conclusões apontam para a necessidade de se pensar políticas públicas em
que seja possível desenvolver práticas de diálogo para que se possa conciliar as diversas expressões da
sexualidade humana, através da prática da conversação, da “desmitificação” do sexo.
Palavras-Chave: Homoafetividade. Configurações. Dispositivos disciplinares.
ABSTRACT: This paper adopts meant to examine the construction of homoafetividade in Western society,
therefore we draw some considerations on homosexuality in the Greco-Roman civilization to the
contemporary. It is noteworthy that outline our analysis starting from the reflections of Michel Foucault
and Norbert Elias regarding the interdiction of concepts, configurations and disciplinary measures as
mechanisms to "shut up" about sexuality and the homoafetividade dialogue. We used as theoretical support
mainly Foucault's studies (1998), Elias (1980) and Palmeira (2006). The findings point to the need to think
about public policy where it is possible to develop practices of dialogue so that we can reconcile the various
expressions of human sexuality, through the practice of conversation, of "demystification" of sex.
Graduado em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, mestrando em
Ciências Sociais e Humanas pela mesma instituição. E-mail: [email protected]
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Graduado em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, Especialista em Educação pelas
Faculdades Integradas de Patos – FIP e Mestre em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado
do Rio Grande do Norte – UERN. E-mail: [email protected]
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Composição: Revista de Ciências Sociais da UFMS
ISSN: 1983 - 3784
Edição Especial: II SiGeSex – Corpos vigiados e Laicidade do estado
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Keywords: Homoafetividade. Settings. Disciplinary measures.
Introdução
Identidade, gênero, sexualidade e homoafetividade são temas que chamam a
atenção de todos ou de grande parte das pessoas, seja nas academias, nos grupos de
amigos, estudantes e/ou família. Essas discussões ficaram fora dos debates científicos e
do próprio senso comum por muito tempo, uma vez que não se tinha abertura que
proporcionasse esse tipo de diálogo. Observa-se, contudo, que mesmo com uma abertura
por parte da sociedade e a constante produção científica e literária sobre o tema, tais
discussões ainda assumem uma postura “velada”, ora por se tratarem de possíveis
ameaças à moral e aos bons costumes, em uma sociedade que se diz laica, porém,
arraigada por uma moral cristã fortemente disseminada, ora porque uma minoria se sente
incomodada e afrontada, considerando estes temas “imorais” e que não deveriam ser
levantados em debates públicos.
Este trabalho propõe-se a refletir sobre a sexualidade e a homoafetividade e como
estes campos ou dimensões da vida privada do indivíduo são abordados nessas discussões
contemporâneas e públicas. Sabe-se que o tema proposto da homoafetividade é complexo,
delicado e incômodo, pois traz consigo uma carga de preconceitos e discursos que
perpassaram épocas e ainda não são aceitos por grande parte da sociedade, como referido
inicialmente. Para uma reflexão sobre o tema e sua melhor compreensão, as ideias de
Michel Foucault e Norbert Elias irão nortear este artigo.
Não é intenção desse trabalho travar uma discussão onde se mostre toda a
caminhada e trajetória da discussão a respeito da sexualidade e da homoafetividade, desde
os seus primórdios até a atualidade. Apenas oferecer elementos para, dentro de um
diálogo epistemológico e científico, tecer reflexões sobre os temas propostos e, de
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maneira objetiva, apresentar conclusões acerca dos mecanismos de interdição e
configurações que levam a sexualidade e a homoafetividade a serem “sufocadas”,
causando danos irreparáveis aos indivíduos.
A sexualidade e a homoafetividade na história e na mitologia greco-romana
A sexualidade humana desperta interesse desde sempre, mesmo quando não se
tinha conceitos ou estudos formados sobre ela, contudo, as maneiras de relacionamentos
ou de como se relacionar entre os indivíduos sempre mereceu destaque, de modo igual
merece destaque a representação e repressão no decorrer da história e do tempo. Foucault
(1998) mostra um pouco essa repressão cometida durante um longo tempo. Isso faz com
que se observe a opressão que o gênero sofreu. Nesse sentido, ele traz à tona as reflexões
sobre a construção da verdade, a partir de mecanismos sociais e que o discurso se
materializa.
Foucault (1996), escreve que a verdade só pode ser constituída a partir de sujeitos em
suas diversas relações sociais, por conseguinte, relações de poder. Em Foucault a verdade
perpassa essas relações, e seu entendimento perpassa as diversas relações sociais e processos
de regularidade intimamente relacionados à consolidação do que é certo, do que é justo e
honrado, assim como daquilo que é errôneo, injusto e desonra. Em Foucault, a verdade se
manifesta através do discurso, que por sua vez, não pode ser neutro. Segundo Foucault (1996,
p. 124) “não existe enunciado em geral, enunciado livre neutro ou independente; mas, sempre
um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel meio
aos outros, apoiando-se neles.” Este papel está relacionado às justificativas sociais e aquilo
que Foucault (1996) irá chamar de “vontade de verdade”.
Partindo desse pressuposto, a justificativa de nossas ações, constitui-se como “jogo
de verdade” que se dá no tocante que elas são permissíveis dentro dos sistemas disciplinares,
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de processos reguladores que permeiam o sujeito. Foucault denomina esses mecanismos de
dispositivos disciplinares (1998) regime discursivo (1986), regularidades discursivas (1972)
e de coerção de privação, coerção de obrigações e coerção de proibições (2005) etc. Nesse
sentido,
As práticas discursivas, por sua vez, perpassam a alienação, dominação e
aceitação. Ajudam a reprimir desejos, vontades e “verdades”:
[...] As crianças, por exemplo, sabe-se muito bem que não têm sexo: boa razão
para interditá-lo, razão para proibi-las de falarem dele, razão para fechar os
olhos e tapar os ouvidos onde quer que venham a manifestá-lo, razão para
impor um silêncio geral e aplicado. Isso seria próprio da repressão e é o que a
distingue das interdições mantidas pela simples lei penal: a repressão funciona,
decerto, como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção
ao silêncio, afirmação da inexistência e, consequentemente, constatação de
que, em tudo isso, não há nada para dizer, nem para ver, nem para saber. Assim
marcharia com sua lógica capenga, a hipocrisia de nossas sociedades burguesas
(FOUCAULT, 1998, p. 10).
Foucault (1998) escreve sobre a relação entre poder, saber e sexualidade, trazendo
à tona uma discussão sobre os mecanismos sociais que levaram a opressão, ocultação e
supressão das manifestações sexuais. Como se pode perceber, e mais adiante se tratará
dessa questão, o diálogo sobre a sexualidade dar-se inicialmente em casa, materializandose na figura dos pais, e depois, ele é incorporado pelas diversas instituições como igrejas,
escolas e consultórios, mas sempre como forma de se obter o controle de algo privado,
individual e subjetivo.
As práticas homossexuais sempre foi tema polêmico e permanece assim na
modernidade. Entretanto, pode-se também perceber contradiscursos que levam a
construção de uma abertura para discussão, tolerância e conhecimento acerca das
múltiplas identidades homoafetivas. Paralelamente, também se produz discursos
discriminatórios e excludentes que denigrem a imagem do homossexual e o estigmatizam.
Hoje, que muitos chamam de pós-modernidade, essas pessoas, grupos ou comunidade
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tem suas imagens exploradas e associadas a caricaturas e estereótipos folclóricos, racistas
e discriminatórios.
A modernidade ou a pós-modernidade trouxe muitos benefícios como o
conhecimento, avanços e estreitamento de relações, tanto no âmbito econômico como
intelectual, porém, também trouxe muitas outras coisas que desconstroem conceitos e
tentativas de harmonização entre os povos, pessoas e sociedades. A intolerância religiosa,
de gêneros, condição sexual ou condição financeira são exemplos desses malefícios.
Na historiografia ainda há pouco material que fala sobre o tema no percurso
histórico e, se temos uma escassez de material que coloca esse tema em relação à
homoafetividade masculina, quase nada se tem em relação à feminina, mesmo sabendo
que essas práticas e sentimentos sempre existiram na história humana desde os seus
primórdios, dentro ou fora da religião. Quando se cita a religião é na perspectiva do que
Foucault chamou de mecanismos de interdição. Palmeira (2006, p. 20) discute:
Sabe-se que a sexualidade estava amplamente presente nos templos religiosos
antigos, fossem estes sumérios, assírios, cananitas, babilônicos ou até egípcios.
Algum tipo de relação unissexual havia e era comum entre os sacerdotes ou
mestres de cerimônia religiosa. Sabe-se que nos templos sumérios os mesmos
vestiam roupas de mulheres para serem revestidos de poderes pela deusa Ishtar,
se prostituíam com homens frequentadores dos templos para simbolicamente
recolherem fértil sêmem de entidade, mas na prática, visavam manter
financeiramente os templos. Acredita-se que garotos e homens usados
exclusivamente para tais práticas, passaram a ser explorados nos templos.
Estes eram chamados no hebraico de qedošîm, mais comumente traduzido por
santos, veja alguns textos bíblicos para a ocorrência da palavra: Ireis 14, 2224, Deuteronômio: 23,17-18.
Palmeira (2006) encontrou fontes que falavam das práticas homoeróticas e sua
relação com cultos religiosos dentro e fora dos templos. Rituais que eram comuns a deuses
e deusas ligados à fertilidade e verdadeiras orgias em “louvor” aos “patronos” dessa
fertilidade que seria aumentada, ou seja, mais abençoada. Rituais de masturbações em
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frente a imagens de deuses para que fossem derramadas bênçãos, prosperidade e
fertilizados.
É interessante notar que se acreditava que colocar sêmen dentro de outro homem
traria fertilidade em abundância. Havia outros cultos desse gênero como rituais de nudez.
O que chama atenção nesse processo de cultos a divindades é que o período chamado na
bíblia de “Exílio da Babilônia”, iniciado em 598 a.C, no reinado de Nabucodonosor e
terminado apenas no ano de 537 a.C no reinado de Ciro depois da conquista Persa, na
volta para a “Terra de Judá” ou Jerusalém, eles começaram a criar leis para que as práticas
pagãs não contaminassem o povo escolhido e, uma dessas práticas era justamente a
homoafetividade que, era comun em terras estrangeiras e pagãs. Mais tarde esse conjunto
de leis se consolidou como o livro do Levítico.
Palmeira (2006) mostra que, no ano de 1964, um arqueólogo egípcio descobriu
uma tumba onde foi encontrado dois cadáveres de dois homens “em um abraço eterno”,
similar às tumbas de casais heterossexuais que eram sepultados da mesma forma para
passar a eternidade juntos. Isso gera um questionamento sobre a história da
homossexualidade em um recorte temporal específico, pois essa tumba data de 2.500 anos
a.C. Este com certeza é um dos relatos mais antigos que se tem notícia sobre a
homoafetividade, comprovado por evidências ainda irrefutáveis.
As mitologias grega e romana estão recheadas de histórias de amantes do mesmo
sexo. Um dos casos mais emblemáticos foi a relação entre Aquiles, o bravo e quase
imortal guerreiro, e o jovem Pátroclo, contado na Ilíada, obra homérica. Mesmo que essa
obra não mostre evidencias de relações sexuais entre os dois e pelo fato deles também
terem seus envolvimentos amoroso com mulheres, deixa transparecer certo carinho
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diferente, a ponto de o jovem guerreiro desejar que apenas os dois sejam glorificados por
uma possível vitória contra os troianos.
A morte de Pátroclo, segundo a obra homérica, fez com que Aquiles se enchesse
de ódio e saísse da guerra como vencedor e depois chorar a perda irreparável do seu
amigo. Mesmo sem uma fonte segura da união entre Aquiles e Pátroclo ou até mesmo da
veracidade de suas existências, os relatos mostram que essa prática era comum e quase
que aceita de forma unânime.
Contam-se também histórias do deus grego Dionísio (Baco em Roma), que fazia
seus cultos e festas onde as orgias homoafetivas eram comuns, portanto, os deuses
também tinham características humanas e desejos carnais e realizavam tais desejos.
Em relação ao aparecimento inicial da homoafetividade na história propriamente
dita, não se tem certeza ou dados seguros. Contudo, Palmeira (2006, p.20) mostra algo
interessante em suas pesquisas, vejamos:
Alguns autores sugerem que a pederastia tenha surgido em dorian, última tribo
a imigrar para a Grécia, os que apoiam a teoria dizem que os homens mais
velhos sequestravam adolescentes. Com a divulgação dessa prática na cidade
de Esparta e Tebes, os soldados começaram a cuidar de recrutas novatos,
assim, enquanto em campo de batalha estivessem um ao lado do outro,
definitivamente permaneceriam fieis até a morte. Não apenas isso, mas o amor
entre os homens era honrado e visto como garantia da eficiência militar e
liberdade civil. Em várias inscrições, vasos, figuras, observa-se dois homens
em atividade carinhosa, neles o mais velho, erastes, com barba, é quem guia o
mais novo, eromenos, na relação.
Mesmo sem uma data, ano específico ou ainda um século determinado
observamos que a homoafetividade era algo praticado e, por incrível que pareça, não era
tão discriminado como nos dias atuais. Obviamente que não eram todas as civilizações
ou sociedades que a viam com naturalidade, mas com certeza toleravam e, sobretudo,
aceitavam de maneira pacífica.
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A explanação feita logo acima mostra um compromisso, ao contrário do que se
possa pensar: esses homens e/ou mulheres eram fieis aos seus parceiros. Algo a ser levado
em consideração é que mesmo a homoafetividade sendo aceita, tolerada, considerada
“normal”, tinha uma particularidade na Roma antiga. Para o cidadão romano era
permitido sem problema algum ter relações homossexuais e penetrações anais, contudo,
essa prática era tida comum se fosse entre homens livres e escravos, sendo esse último o
passivo da relação, pois era inadmissível um cidadão livre, romano, poderoso, ser
surpreendido sendo o passivo, o penetrado na relação.
Seria algo que deplorava a imagem desse indivíduo e ele seria alvo de chacotas e
discriminação por parte da sociedade romana. Em Roma era comum esse tipo de
relacionamento contanto que o passivo fosse sempre o escravo. E o que dizer das
mulheres homossexuais?
Ainda na época do Império romano, sabe-se de práticas que envolvessem a
homossexualidade feminina, como escreve Theodore Jennings: “o culto ao
deus Dionísio envolveu práticas homossexuais entre as mulheres na Grécia e
essa prática pode ter continuado, na roma antiga, quando esse culto foi
importado sob o nome do deus Baco. A evidência dessa transição pode ser
encontrada nos escritos de Livy sobre a descoberta e a supressão do plano
chamado de Bacchanalian em Roma durante o ano de 186 a.C”. (PALMEIRA,
2006, p. 34).
Observe que mesmo em menor proporção, as mulheres também tinham as mesmas
práticas. Quando falamos aqui em práticas, não devem ser entendidas como algo exterior,
fora do ser ou uma prática puramente instintiva, mas algo com sentimentos, desejos e
consentimentos, pois do contrário seria apenas uma atitude animalesca para desfrutar de
um prazer efêmero e passageiro.
Até então tudo andava dentro de uma normalidade e os homoafetivos podiam se
expressar sem maiores consequências, como a repressão e a morte. Todavia, isto estava
prestes a acabar, pois com a chegada oficial do cristianismo com o Imperador Constantino
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começou uma onda de perseguição e mortes. O início dessa “caça às bruxas” se deu com
os sacerdotes efeminados. Eles foram os primeiros a serem exterminados.
Em 14 de maio de 390 d.C, foi criado um decreto que condenava todos que eram
identificados como efeminados e a punição era a morte na fogueira. A Igreja cristã
católica começa seu poderio na educação, moral, ética e na família. Ela ditaria como se
deveria viver, falar, agir e pensar. Começa um tempo de perseguições, ameaças e morte
que chega à Idade Média e ganha mais força ainda com a nova prática da Santa Inquisição,
que usava os versículos de Levítico 18,22 e 20,13 para julgar, condenar e sentenciar a
morte.
Nesses períodos, os homossexuais eram culpabilizados, baseados nesses
versículos bíblicos, de toda sorte de miséria, fossem de cunho biológico, como doenças,
fenômenos naturais como enchentes ou secas, terremotos ou maremotos, geadas ou
insolações etc. O que interessava à Igreja era condená-los por não aceitar algo que há
muito era “permitido”, mas em nome da fé, moral e bons costumes era permitida a
matança exagerada e sem nexo. Essa perseguição não ficou a cargo apenas da Igreja
católica, mas também de outras denominações:
Em período mais recente, já com reformadores em destaque, percebe-se
opressões e execuções. Uma delas é sob o comando de João Calvino e seus
sucessores em Genebra. Historicamente, cruzadas contra hereges, bruxas,
mulçumanos, judeus, mataram muito mais que a caçada a homossexuais,
lembrando que todas elas tinham sustentação bíblico-cristã (PALMEIRA,
2006, p. 35).
Percebe-se que a modernidade vai chegando e com ela também se insiste o
preconceito, separação, discriminação e o que é pior tudo utilizando o nome de um Deus
que se contradiz a partir das práticas dos seus seguidores, pois se o próprio Jesus – seu
Filho – diz que Ele é amor, seus seguidores insistem em dizer o contrário pregando uma
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justiça e punição para os pecadores, oferecendo sua salvação sem mesmo saber se tais
indivíduos querem ou precisam dessa salvação.
Na atualidade a questão da homoafetividade é tratada com muito cuidado, temos
grupos políticos, religiosos, sociais que estão divididos contra e a favor. Logo abaixo
temos um pequeno relato de Palmeira (2006, p.36) que traz uma pesquisa feita nos
Estados Unidos da América na década de 1940, onde os resultados foram surpreendentes:
O que mais chama a atenção nos Estados Unidos da América do Norte, entre
todos os movimentos surgidos no início do século XX, todas as descobertas
científicas e todos os posicionamentos político-sociais, fora a divulgação em
1948 do “relatório Kinsey”, feito por Alfred Kinsey, sob o tíulo: Sexual
Behavior in the Human Male surpreendendo quase todos os norte americanos
pela constatação que 4% de todos os homens pesquisados consideravam-se
exclusivamente homossexuais e que 37% dos mesmos já haviam tido qualquer
tipo de experiência sexual com outro homem. Outro sim, que há um grupo de
46% que mostra uma grande variação na orientação sexual entre a
heterossexualidade e a homossexualidade. 25% dos homens entre 16 e 25 anos
tiveram mais do que apenas experiências unissexuais isoladas, sendo que
durante três anos reagiram com sentimentos homossexuais. Segundo o
“relatório Kinsey”, mais homens heterossexuais do que homossexuais relatam
que a sua primeira experiência sexual foi com um homem ou rapaz, (62%
contra 39%). Essa constatação chamava a atenção para uma realidade diferente
da imaginada até o momento. Havia mais gays homens e mulheres do que se
imaginava e se esperava no país. Mais tarde o mesmo autor divulgou outro
livro sob o título: Sexual Behavior in the Human Female. O chamado “relatório
Kinsey” continua a ser o maior estudo já conduzido sobre a sexualidade
humana.
Com esse relatório surge uma “cara” nova para a questão homoafetiva. A partir
desse estudo, os jovens americanos criam coragem, saem do “armário” e vão às ruas lutar
pelos seus direitos. Começam a crescer grupos de apoio ao orgulho gay, como também
surgem grupos que tentam combater essas iniciativas. Tais grupos partem de maneira
agressiva para o contra-ataque e chegam a matar, isso faz lembrar a Idade Média e de sua
santa Inquisição, mais uma vez começa o “caças às bruxas gay”.
O que aconteceu nos Estados Unidos serviu de vitrine para o mundo, para
comunidades locais e internacionais: cresceram as entidade de apoio e contra a
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discriminação, a comunidade científica tira a homossexualidade da lista das doenças e
transtornos mentais. Outro grande avanço foi iniciado na década de 1970, nos Estados
Unidos, com grandes discussões da década de 1980, mas só tendo êxito em 2004, quando
o prefeito da cidade de São Francisco aprova licenças matrimoniais para casais do mesmo
sexo.
No Brasil, na década de 1970, iniciou-se de forma tímida a luta contra o
preconceito e a discriminação contra os homossexuais, recebendo o nome de movimentos
gays. É válido salientar, que tais movimentos não contavam apenas com homossexuais,
mas também aderiram a estes movimentos amigos, familiares e simpatizantes pelas
causas e reivindicações. Ou seja, vemos uma onda de solidariedade tímida, porém sensata.
No Brasil existem aproximadamente 150 grupos lutando contra toda forma de
discriminação. Lembrando que é uma constante em noticiários, jornais e internet,
absurdos contra os homoafetivos. Nas escolas, crianças que por algum motivo tem um
jeito mais delicado, já são taxadas de uma maneira pejorativa e este estigma os
acompanhará pelo resto de suas vidas estudantis. Na família, trabalho, igrejas, enfim, em
todos os campos de suas vidas eles precisarão usar de paciência e tranquilidade para
enfrentar tais situações, porém, sem se cansarem nem desistirem de lutar e, mostrar que
são bons no que fazem principalmente nos estudos e trabalho, para que assim consigam
um posto de destaque.
A luta desses movimentos não é pelo direito de se casar simplesmente, mas pelo
direito a terem direitos. Fazer valer a Constituição que garante vida digna, educação,
direito a ir e vir, segurança e todos os direitos básicos. O que os grupos ou movimentos
querem é apenas isso.
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Configuração, Interdição e Repressão: conceitos e mecanismos que tentam impedir
uma discussão de uma “nova” lógica da sexualidade
Nesse contexto histórico e sociológico antigo e contemporâneo podemos fazer
algumas reflexões à luz do pensamento de Foucault e Elias para entendermos as questões
pertinentes da sexualidade e da homoafetividade hoje, questões tais como: o por que ainda
hoje a sexualidade e a homoafetividade são vistas como algo proibido e que não deveriam
ser assuntos de debate? Como em uma sociedade dita evoluída os espaços de discussão
sobre estes temas ainda são minoria, ou seja, mesmo nas academias não se tem tantas
iniciativas que fomentem esse debate? Ou ainda, como e por que os indivíduos temem
debates que possam ajudar a diminuir discriminações, preconceitos e até mortes, usando
uma capa moralista e cristã, dizendo que defendem a vida, a moral e bons costumes?
Conforme supracitado, a sexualidade e a homoafetividade sempre foram vistas
de maneira meio deturpada pelas mais diversas sociedades, na antiguidade clássica mais
tolerada, porém, não totalmente aceita. Na contemporaneidade menos aceita e menos
tolerada a ponto de se perder a vida por reconhecer-se homoafetivo, trans ou qualquer
outra forma de expressão sexual. Aqui o sujeito sofre uma tentativa de ser silenciado.
Dentre vários autores, podemos enxergar em Norbert Elias, um aporte teóricoepistemológico que subsidia a compreensão da homoafetividade como forma de
configurações sociais, em que se constituem tipos de sujeito, grupos e identidades. Para
Elias (1980), o individuo vive em uma interdependência, ou seja, uma grande teia ou rede
de relações em que uns dependem, em menor ou maior proporção, dos outros. Vejamos
o que diz o próprio Elias:
Dizer que os indivíduos existem em configurações significa que o ponto de
partida de toda investigação sociológica é uma pluralidade de indivíduos, os
quais, de um modo ou de outro, são interdependentes. Dizer que as
configurações são irredutíveis significa que nem se pode explicá-las em termos
que impliquem que elas têm algum tipo de existência independente dos
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indivíduos, nem em termos que impliquem que os indivíduos, de algum modo,
existem independentemente delas (ELIAS; SCOTSON, 1980, p. 184).
Essa teia se dá na família, trabalho, escola e em toda parte em que há pessoas se
relacionando, pois os indivíduos não conseguem viver de forma isolada e individual, sem
o “modelo” dessa rede de interpelações, todavia, os indivíduos não se percebem dentro
dessa dinâmica, interagindo nessa rede. Para o autor, o poder é um elemento que torna ou
faz com que todos os indivíduos se relacionem, mesmo sem ter consciência da
interdependência, porém assim como o modelo de poder imposto pelo Estado também
nas relações individuais ou coletivas em todas as sociedades o poder se apresenta em
maior ou menor grau, fazendo com que a rede se apresente e se fortaleça dentro dos
espaços sociais. Elias (1980) nos mostra que o poder, embora necessário, causa
sofrimento, pois prende o indivíduo a um equilíbrio desigual onde quem tem poder pode
dominar quem não o tem ou quem o tem em menor grau, o autor advoga que o poder traz
consigo outros dois conceitos que ajudam a tirar proveito em causa própria, esses dois
conceitos seriam o de medo e o de desconfiança.
Pensando nesse jogo em que os indivíduos vivem e convivem cotidianamente
Elias constrói um novo conceito: configurações. Esse conceito explica as disposições para
agir, as formas pelas quais os sujeitos agem, suas práticas. Com este conceito o autor
evidencia a pluralidade dos indivíduos e paradoxalmente a interdependência existente nas
relações. É interessante observar em Elias (1980) que ele deixa claro em um dado
momento que uma configuração posterior surgiu como uma “consequência” de uma
configuração anterior, lembrando aqui que estas configurações são as maneiras ou o agir
do individuo.
Esse agir humano e individual podemos trazer para a nossa discussão acerca da
homoafetividade, ou seja, essa nova maneira de expressão da sexualidade, mesmo
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sabendo que não se trata de uma opção ou vontade do ser, mas trata-se de uma condição
inata do individuo, pois ninguém poderia escolher, de forma deliberadamente, algo que
pudesse prejudicá-lo e arriscar até mesmo a ser morto por essa escolha. Esse novo agir
entra no conceito de configuração por ter uma livre expressão do sujeito, não cabe aqui
entrar no mérito da questão se é aceita ou não, mas como forma de escolher expressar sua
condição e preferência sexual. Esse diálogo com Elias nos enriquece, pois podemos
identificar as relações que homoafetivos tentam manter com um mundo heteronormativo,
com regras, normas e “vícios” que por muito tempo anularam e ainda tentam abafar a
expressão da sexualidade “gay”, deixando-a às margens da sociedade e sendo entendida
como algo que faz parte de um submundo, contudo, a reflexão à luz de Norbert Elias
proporciona um novo olhar sobre o tema. Homoafetivos estão constantemente em
interdependência, às vezes, precisando do outro, outras vezes, sendo protagonistas nessas
relações.
O sujeito homoafetivo na contemporaneidade assume um protagonismo próprio e
firme, pois não se deixa calar pela heteronormatividade e suas ações. Mesmo vivendo em
interdependência o sujeito se reconhece como autor de sua própria existência, usando o
poder, que para Elias controla a sociedade e as relações sociais, a seu favor, ou seja, ele
tem mais consciência e conhecimento o que o torna mais capaz de se impor.
Foucault abordou as questões da sexualidade e da homoafetividade em três
volumes intitulados “História da Sexualidade I, II e III, sendo que o primeiro, “A vontade
de saber”, trata das questões do saber/discurso e como este é importante para combater a
Repressão que os indivíduos enfrentam aceca da sexualidade expressada. O segundo
volume “O uso dos prazeres” que mostra o indivíduo como sujeito de sua sexualidade
rompendo com a ideia de sujeição aos mecanismos de interdição como família, escolas,
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igrejas etc. Enxerga-se aí todo um campo de moralidade, princípios éticos e subjetivações,
fazendo com que o indivíduo volte para si e faça uma experiência profunda ou não, mas
com resignificações de si mesmo. O terceiro e último volume “O cuidado de si”. Dessa
maneira Foucault inaugura uma nova fase para a sexualidade já que faz uma abordagem
desde a antiguidade clássica até a contemporaneidade.
Foucault utilizando ou
referenciando Platão em sua obra “O banquete” fala como era vista a questão da
intolerância ou tolerância para casos de relações entre os mesmos sexos:
Quanto às noções de "tolerância" ou “intolerância", elas também seriam muito
insuficientes para dar conta da complexidade dos fenômenos. Amar os rapazes
era uma prática "livre", no sentido de que era não somente permitida pelas leis
(salvo em circunstâncias particulares), como também admitida pela opinião.
Ou melhor, ela encontrava sólidos suportes em diferentes instituições
(militares ou pedagógicas). Ela possuía cauções religiosas em ritos e festas
onde se interpelavam, a seu favor, as potências divinas que deviam protegê-la.
Enfim, era uma prática culturalmente valorizada por uma literatura que a
cantava, e por uma reflexão que fundamentava sua excelência. Mas a isso tudo
se misturavam atitudes bem diferentes: desprezo pelos jovens demasiado fáceis
ou demasiado interessados, desqualificação dos homens efeminados, dos quais
Aristófanes e os autores cômicos zombavam frequentemente, rejeição de certas
condutas vergonhosas como a dos devassos que, aos olhos de Cálicles, apesar
de sua ousadia e de sua franqueza, era bem a prova de que nem todo prazer
podia ser bom e honrado. Parece que essa prática, não obstante ser admitida,
não obstante ser comum, era envolta em apreciações diversas, e atravessada
por um jogo de valorizações e desvalorizações suficientemente complexas para
tornar dificilmente decifrável a moral que a regia (FOUCAULT, 1998. p. 169170.)
Fala-se também em uma complexidade que havia nesses atos:
[...] E tinha-se uma clara consciência dessa complexidade; pelo menos é o que
sobressai na passagem do discurso onde Pausânias mostra o quanto é difícil
saber se em Atenas se é favorável ou hostil a uma tal forma de amor. Por um
lado, ela é tão aceita — ou melhor: atribui-se-lhe um tão alto valor — que se
honra, no enamorado, condutas que, em outrem, são julgadas loucuras ou
desonestidades: as preces, as súplicas, ás insistências obstinadas e todos os
falsos juramentos. Mas, por outro lado, vê-se os cuidados com que os pais
protegem seus filhos das intrigas ou exigem dos pedagogos que as impeçam,
enquanto se ouve os camaradas reprovarem entre eles a aceitação de
semelhantes relações (FOUCAULT, 1998. p. 169, 170.)
Observe que mesmo sendo uma pratica comum não era vista por toda a sociedade
com “bons” olhos, já que teria alguns “critérios” e normas para ser aceita. Contudo, assim
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como para Elias, essas práticas da sexualidade para Foucault se tornam protagonizadas
pelo próprio sujeito, sendo este quem comando seus desejos e vontades.
Michel Foucault pensou a sua obra como um ponto a ser analisado mais
profundamente, esse ponto era a lógica da sexualidade, que segundo ele já chegou com
um grande atraso para discussões nas academias ou para o próprio senso comum, apenas
no início do século XIX, que tais práticas discursivas foram permeando a sociedade. Esta
análise se refere primeiro ao sujeito que passa a ser o senhor de seus desejos e de sua
sexualidade e, segundo, este sujeito que convive em um sistema binário, coercitivo e com
normas rígidas, como supracitado.
Foucault fala na Hipótese repressiva e nos dispositivos ou mecanismos de
interdição. Válido lembrar que estes dispositivos/mecanismos que agem na intenção de
calar a voz da sexualidade e do sujeito surgem de maneira sutil e mascarada na imagem
da família, igreja, escola, trabalho dentre outros campos para coibir o que se chamava de
sexualidade desviantes e patológicas. Com o aumento das falas ou discursos sobre a
sexualidade surgem também o desejo de fazer com que esses discursos acabem, porém,
segundo Foucault nunca se falou tanto em sexo como na atualidade, a intenção de calar
fazia o efeito contrário, e a ideia de reprimir, inibir, coagir, aniquilar e sepultar o desejo
sexual tornava mais evidente e mais fascinante o querer saber mais.
As normas, regras e leis impostas pela sociedade visa manter um controle sobre o
indivíduo, levando-o a se anular e alienar para que não se conscientize dessa situação de
“escravatura” social e intelectual. Os mecanismos de repressão são construções sociais
para limitar e aprisionar as pessoas aos objetivos de quem está no poder. Sexualidade e
poder para Foucault andam juntos, sendo por meio deste oque individuo é “adestrado”,
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controlado, chegando a perder a noção de individualidade, não individualismo, mas de
subjetividade, dando lugar ou espaço para a sujeição.
Mesmo com tantos mecanismos e dispositivos de repressão, mesmo com tais
configurações no sentido de ações do sujeito como protagonista de sua sexualidade, de
seus desejos e vontades, com todas estas situações o individuo, em particular
homoafetivo, tem reconhecido seus espaços, não guetos ou grupos gays, mas espaços
sociais como trabalho, igrejas, família e outros espaços dentro da cultura e, nesses
espaços, o individuo luta para transformar a sua realidade, identidade e direitos negados.
O individuo tanto em Foucault com em Elias tem um protagonismo, é sujeito de poder
também. Ele vivendo em uma multiplicidade de situações, culturas, identidades e
sexualidade, sendo esta muitas vezes negada, ele atenta para a sua transformação.
Indivíduos gays que professam uma fé religiosa, como o catolicismo, tem muito
claro a questão de sua fé. Se reconhecem católicos praticantes e não diferem sua crença e
valores religiosos de sua sexualidade, tida pela igreja como algo não natural. Alguns gays
católicos do sudeste, especificamente, na cidade do Rio de Janeiro fundaram um grupo
para
discutir
como
atuar
mais
na
igreja
local,
inclusive
tem
um
site
diversidadecatolica.com.br e recentemente promoveram um encontro nacional de gays
católicos, contudo, essa iniciativa não se configura uma prática comum e fácil dentro da
igreja, uma vez que essa instituição ainda tem valores conservadores muito enraizados e
antigos em seu seio, porém, já se abre uma janela para discussão.
Recentemente também o Papa Francisco, líder espiritual dos católicos abriu uma
outra janela para a discussão do tema “gay” na igreja, reconhecendo-os como participante
da mesma fé e igreja de Jesus Cristo. Segundo o Pontífice, falando para alguns repórteres
em voo de volta à Roma, “Se uma pessoa é gay e procura Deus e a boa vontade divina, quem
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sou eu para julgá-la?", disse, uma das frases mais célebres de todos os tempos vinda de um
papa para um grupo considerado pecador e excluído do seio da igreja, pode-se ver uma aceno
muito maior que apenas uma afirmação pontifícia e de cunho político.
Considerações Finais
As noções de sexualidade e homoafetividade são discutidas na academia e em
grupos de amigos e família, porém estes temas são ainda oprimidos, pois há na sociedade
uma força que vai na contramão da história com intuito de abafar tais discussões como
falado anteriormente. Este trabalho objetivou discutir os conceitos de configuração,
interdição e como a homoafetividade se apresenta na contemporaneidade, de maneira
sucinta e objetiva. Não foi intenção abordar discussões mais profundas sobre estes
tópicos, mas apenas esclarecer um pouco mais. Foi feita uma breve viagem história e
sociológica para entendermos as configurações, que na verdade são as práticas e ações do
sujeito, e os mecanismos e dispositivos que tentam impedir a livre ação desses sujeitos.
Abordou-se a questão do protagonismo do individuo e de como ele se torna senhor de sua
atuação no mundo.
Discutir essas questões de sexualidade e homoafetividade é para além de um
diálogo histórico-sociológico, é um problema espistemológico e de uma complexidade
tamanha, pois no âmbito das Ciências Sociais requer uma problematização e não apenas
um levantamento de questões soltas e clichês. Não é a sexualidade e a homoafetividade a
grande questão, mas como viver e conciliar estas duas dimensões da vida humana dentro
de um contexto que se apresenta heteronormativo e sem abertura para um diálogo. Michel
Foucault e Norbert Elias serviram para delinear as reflexões e com seus conceitos
entender as ações do sujeito inserido nessa sociedade normativa.
Referências
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BIBLIA. Português. Bíblia sagrada. 9ª reimpressão. São Paulo: Editora Paulus, 2013.
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das
relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
ELIAS, N. Introdução à Sociologia. Braga (Portugal): Pax, 1980.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade do saber. Rio de Janeiro,
Edições Graal, 1998.
_______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo:
Martins Fontes, 1985.
_______. Arqueologia do saber. São Paulo: Graal, 1972.
_______. A ordem do discurso. São Paulo: Graal, 1996.
_______. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões. Petrópolis: Vozes, 2005.
PALMEIRA, Dallmer D. Rodrigues de Assis. A homossexualidade desconstruída em
Levítico 18,22 e 20,13. São Bernardo do Campo, 2006. Dissertação de Mestrado.
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REGISTRO DAS NARRATIVAS DE VIDA DA MULHER TERENA SOBRE SEXUALIDADE E
RELAÇÕES DE GÊNERO, ALDEIA URBANA MARÇAL DE SOUZA CAMPO GRANDE, MS
Cristiane Pereira Lima 1
Léia Teixeira Lacerda 2
Maria Leda Pinto3
Resumo: Este trabalho apresenta os resultados finais do Projeto de Iniciação Científica: Relações de
Gênero, Corpos e Sexualidade nas Práticas Educativas das Populações Indígenas Terena do Pantanal SulMato-Grossense, desenvolvido no período de agosto de 2013 a julho de 2014 que consistiu em conhecer
como as mulheres e indígenas concebem e se posicionam em relação à sua sexualidade, por meio de
narrativas das mulheres indígenas pertencentes à etnia Terena, com o objetivo de analisar, em uma
perspectiva educativa, histórica e antropológica a constituição das relações de gênero e sexualidade nas
práticas pedagógicas desenvolvidas nas Escolas indígenas da Região Pantaneira Sul-Mato-Grossense. A
pesquisa foi desenvolvida por meio de um levantamento, a fim de conhecer teoricamente o que já foi
produzido sobre o assunto proposto para essa investigação. Para tanto, foram levantadas as Dissertações e
Teses do Banco de Dados do Portal Domínio Público da Capes; documentos históricos, leitura de livros,
periódicos especializados da área de Educação, História e Antropologia. No desdobramento da pesquisa,
os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas com os moradores da Aldeia Urbana
Marçal de Souza, naturais da Região Pantaneira Sul-Mato-Grossense. Os resultados foram analisados por
meio das contribuições teóricas de estudiosos da História Indígena, da Educação Escolar Indígena, da
Antropologia Indígena e Estudos de Gênero e Sexualidade.
Palavras-chave: Educação Indígena, Relações de Gênero, Terena e Cultura.
Introdução
O interesse em estudar as concepções de sexualidade, corpo e gênero, bem como
as práticas educativas da etnia Terena surgiu após conhecer as atividades de pesquisa e
de extensão do Laboratório de Educação Escolar Indígena e Educação Preventiva das
Doenças Sexualmente Transmissíveis e da Aids, coordenado pela Profa. Dra. Léia
Teixeira Lacerda, além da minha participação no Curso de extensão em Gênero e
1
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2012). Discente do
Curso Pedagogia na UEMS. Agência de Financiamento: PIBIC-AFF/CNPq/UEMS. Email Eletronico:
[email protected].
2
Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Docente do Curso de Pedagogia e dos
Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
(UEMS), Unidades Universitárias de Paranaíba e Campo Grande. E-mail Eletrônico: [email protected].
3
Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Docente do Curso de Pedagogia e Letras e dos
Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
(UEMS), Unidade Universitária de Campo Grande. E-mail Eletrônico:[email protected].
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Diversidade na Escola/ GDE, oferecido pela Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul.
Para desenvolvimento desta pesquisa foram realizados leituras de textos dos
seguintes autores: Rosely Fialho de Carvalho (1995); Gilberto Azanha (2004); Circe
Maria Bittencourt & Maria Elisa Ladeira (2000); além disso, também foram revisadas as
contribuições de Silvia Camurça & Taciana Gouveia (2004); Maria Cristina da Silveira
(1987; 1994), Guacira Lopes Louro (1992; 1997); José Carlos Rodrigues (1975); Joan
Scott (1992-1993), entre outros.
Além do levantamento de dados, acima mencionado outro fator da pesquisa que
deve ser considerado é a realização do trabalho de campo, com observação participativa,
a produção e aplicação de entrevistas semiabertas/semiestruturadas com as mulheres da
Aldeia Urbana Marçal de Souza, apresentando os conhecimentos e os saberes dessas
mulheres Terena sobre a dinâmica das relações de gênero e da sexualidade.
A relevância deste trabalho evidencia-se no registro das histórias de vida vividas
por esse povo dentro da sua comunidade, bem como nos contatos interétnicos, em uma
inter-relação com a sociedade envolvente, em que a propagação de suas práticas culturais,
seus costumes e crenças, se ressignificam e ressignificam a maneira como o Outro os vê
e como eles se apresentam em suas relações sociais.
No Estado de Mato Grosso do Sul vivem atualmente, indígenas de nove etnias
distintas: Atikum, Guarani-Kaiowá, Guarani- Ñandeva, Guató, Kadiwéu, Kamba, Ofaié
e Terena. Juntos esses indígenas perfazem um expressivo contingente populacional,
considerado um dos maiores do Brasil (LACERDA & JOSÉ DA SILVA, 2006, p.4).
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Roberto Cardoso de Oliveira nos relata em seu livro “Do índio ao bugre: o
processo de assimilação dos Terena” escrito em 1976, que:
Os Terena representam, um dos subgrupos Guaná ou Txané que, ao lado de
outras tribo desse grupo Aruák, aparecem como os índios que mais
contribuíam à formação do Sudoeste brasileiro, seja como produtores de bens
para o consumo dos primeiros moradores portugueses e brasileiros naquela
região, seja como mão de obra aplicada nas fazendas que começam a proliferar
depois da Guerra do Paraguai, sem esquecer, ainda, o papel por eles
desempenhado naquele conflito, quando foram levados a lutar contra o exercito
paraguaio. (OLIVEIRA, 1976, p. 21-22).
Dessa perspectiva, Fialho de Carvalho (1995) também registra em sua Dissertação
de Mestrado em Educação intitulada “Subsídios para a compreensão da educação escolar
indígena Terena do Mato Grosso do Sul”, sobre a organização social dos Terena, que:
No Chaco, os Terena viviam juntos, com outras tribos da família Guaná como
os Laiana, Echoaladi e Quiniquináo. Possuíam uma organização social
dividida em três camadas. Os Naati que eram uma espécie de lideres ou
nobreza; os Waherê-Txané que eram homens comuns, e por ultimo os Kauti
que eram os cativos. Havia ainda os Xunaxati, conseguiam matar um inimigo
em combate, e, dessa forma, obter ascensão social. Qualquer individuo, das
três camadas, poderia tornar-se Xuna-Xati, conseguindo assim prestigio social
dentro do grupo. Desse modo os Kauti conseguiam tornarem-se homens livres.
(FIALHO DE CARVALHO, 1995, p.10).
No começo do Século XVIII, os índios Terena já haviam entrado em terras
brasileiras na região do atual Estado de Mato Grosso do Sul. Nesse processo de migração,
os Terena estabelecem contato interétnico com os colonizadores europeus que estavam
em busca de escravos e pedras preciosas e adquirem doenças infecciosas. Esse contato —
que ocorreu também com outros grupos — ocasionou a diminuição da população
indígena, conforme Darcy Ribeiro nos apresenta em sua obra “ Os índios e a civilização”
publicado em 1996:
As doenças representaram sempre o primeiro fator da diminuição das
populações indígenas. A história das nossas relações com os índios é em
grande parte, uma crônica de chacinas e, sobretudo, de epidemias. Cada grupo
indígena que se aproximou de núcleos europeus e de seus descendentes, nestes
quatro séculos, teve de pagar alto tributo em vidas às doenças que a civilização
lhe trouxe. (RIBEIRO, 1996, p. 230).
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Entretanto, uma parcela da população Terena se instalou na região de Miranda em
fins do Século XVIII, demonstrando que essa etnia conseguiu manter conforme Oliveira
(1976), relativa estabilidade demográfica o que já, seria altamente auspicioso, tendo em
vista as possibilidades de sobrevivência indígena brasileira, que chegaram a aumentar
demograficamente nas últimas décadas e seguramente continuam com essa tendência.
(1996, p. 27).
Segundo Bittencourt & Ladeira a história indígena Terena pode ser evidenciada
em três momentos:
O primeiro deles foi à saída do Êxiva, transpondo o rio Paraguai, e a ocupação
da região do atual estado de Mato Grosso do Sul. Este período foi longo,
durando muitos anos, com migrações que foram feitas em todo o decorrer do
século XVIII. Foi um período em que os Terena ocuparam um território vasto,
dedicando-se à agricultura e estabeleceram alianças importantes com os
Guaicuru e com os portugueses. Este foi o período dos Tempos Antigos. Em
seguida, um acontecimento importante afetaria a vida dos Terena, a Guerra do
Paraguai. O momento mais significativo da vida dos Terena foi a Guerra do
Paraguai (1864-1870). Esta guerra, na qual participaram muitos países - Brasil,
Paraguai, Argentina e Uruguai - envolveu também os escravos de origem
africana e povos indígenas habitantes das regiões próximas ao rio Paraguai. Os
Terena e Guaicuru aliaram-se aos brasileiros e lutaram para preservar seu
território. Após a Guerra do Paraguai, muitas mudanças aconteceram na região
e, para os Terena, ela significou a perda da maior parte do seu território, que
passou a ser disputado pelos proprietários de terras brancos, que chegavam
cada vez mais para plantar e criar gado. Este foi o período denominado Tempos
da Servidão. E o terceiro momento correspondeu à delimitação das Reservas
Terena, iniciado com a chegada da Comissão Construtora das Linhas
Telegráficas chefiadas por Rondon, e continua até o presente. Essa época, do
começo deste século até os dias de hoje, é marcada por uma maior proximidade
com a população branca, os purutuyé, com mudanças nos hábitos e costumes
Terena. Os Terena têm sido obrigados a se submeter a trabalhos para os
proprietários de terras particulares. Este momento ainda está sendo vivido
pelos Terena, que estão fazendo sua história, buscando maior autonomia
enquanto povo, e mais direitos como cidadãos brasileiros. Este período não
possui ainda um título. Cada criança ou jovem Terena pode denominá-lo como
desejar.(BITTENCOURT & LADEIRA, 2000, p. 26).
Toda essa trajetória histórica registrada pelas autoras evidencia a tenacidade do
povo Terena diante das adversidades vividas principalmente em consequência da Guerra
do Paraguai e do trabalho realizado aos proprietários de terras particulares, pois, no que
diz respeito à educação, os Terena estão buscando formação nas Universidades públicas
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e particulares, bem como melhores condições de vida para si e para sua comunidade. Em
consequência dessa formação na atualidade esses indígenas possuem e demonstram maior
preparo na luta pelos seus territórios tradicionais, a preservação da sua língua materna e
a vivência dos seus rituais de passagem.
Nesta perspectiva, conhecer como as mulheres Terena concebem e se posicionam
em relação às concepções estabelecidas nas relações de gênero e nas vivências da sua
sexualidade, só é possível, diante do conhecimento que possuem sobre a importância de
seu papel na sociedade vivido em constante contato interétnico.
Breve estudo sobre o conceito de gênero
Os estudos de gêneros surgiram com os movimentos de mulheres que iniciou sem
prestígio acadêmico, depois foi ganhando autonomia como campo de pesquisa
acadêmica, atingindo hoje status mais consistente. Com o passar do tempo o conceito de
gênero teve a finalidade de evidenciar a dominação e exploração que em muitas
sociedades as mulheres haviam sendo submetidas.
Segundo Furlani, os estudos sobre as relações de gênero surgem a partir das
décadas de 1970 e 1980 e logo se opõem ao conceito de papeis sexuais concebidos em
uma perspectiva da Biologia (2012, p. 297).
Desse modo, gênero é um conceito útil para explicar muitos dos comportamentos
de mulheres e homens na sociedade, ajudando a compreender grande parte dos problemas
e dificuldades que as mulheres enfrentam no trabalho, na vida pública, na sexualidade, na
reprodução, na família. (CAMURÇA & GOUVEIA, 2004, p.12).
Para Louro esse conceito se difundiu no Brasil na década de 1980 como, objeto
de estudo para pesquisas na área das Ciências Humanas, que tinham como objetivo dar
visibilidade à mulher, como dona da sua própria história, entretanto, as concepções desse
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conceito foi mudando aos poucos, pois os resultados das pesquisas têm evidenciado
profundas reflexões teóricas que salientam que esse conceito:
Não significa o mesmo que sexo; ou seja, enquanto sexo se refere à identidade
biológica de uma pessoa, gênero está ligado à sua constituição social como
sujeito masculino ou feminino. Uma decorrência imediata para o trabalho
prático. Agora não se trata mais de focalizar apenas as mulheres como objeto
de estudo, mas os processos de formação da feminilidade e da masculinidade,
ou os sujeitos femininos e masculinos. (LOURO, 1997, p.02).
Nessa perspectiva, o conceito de “gênero” concebido por Louro é:
Gênero, bem como a classe, não é uma categoria pronta e estática. Ainda que
sejam de naturezas diferentes e tenham especificidade própria, ambas as
categorias partilham das características de serem dinâmicas, de serem
construídas e passiveis de transformação. Gênero e classe não são também
elementos impostos unilateralmente pela sociedade, mas com referência a
ambos supõe-se que os sujeitos sejam ativos e ao mesmo tempo determinados,
recebendo e respondendo às determinações e contradições sociais. Daí advém
a importância de se entender o fazer-se homem ou mulher
como um processo e não como um dado resolvido no nascimento. O masculino
e o feminino são construídos através de prática sociais masculinizantes ou
feminizantes, em consonância com as concepções de cada sociedade. Integra
essa concepção a ideia de que homens e mulheres constroem-se num processo
de relação. (LOURO, 1992, p. 57).
Portanto, o conceito de gênero ― desenvolvido pela teórica feminista na década
de 1980 e mais tarde aprofundado por Scott (1989) ― diz respeito a um sistema de
relações de poder baseado em um conjunto de qualidades, papéis, identidades e
comportamentos opostos atribuídos a mulheres e homens.
As relações de gênero são concebidas pela sociedade, ou seja, essa sociedade
estabelece como devem ser as relações entre mulheres e homens; o que é ser homem e o
que é ser mulher, ou o que é ser feminino e/ou masculino. Camurça & Gouveia (2004)
salientam que as relações de gênero produzem uma distribuição desigual de poder,
autoridade e prestígio entre as pessoas, de acordo com o seu sexo. Essas autoras concebem
que as relações de gênero são relações de poder. (2004, p.13).
Gênero e Sexo são construções sociais, ou seja, esse conceito não é igual em todos
os lugares e se modifica conforme a cultura, as crenças e os costumes, levando em
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consideração a religião, as leis, a vida familiar e a política de cada sociedade, podendo
variar de acordo com a classe social da pessoa, do grupo étnico e da faixa etária. Logo,
para Scott (1992, p. 86):
No seu uso mais recente, o termo gênero parece ter aparecido primeiro entre
as feministas americanas que queriam insistir na qualidade fundamentalmente
social das distinções baseadas no sexo. A palavra indicava uma rejeição ao
determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença
sexual” [...] Nos Estados Unidos, o termo gênero é extraído tanto da gramática,
do uso da linguística, quanto dos estudos de sociologia dos papéis sociais
designados às mulheres e aos homens. Embora os usos sociológicos de
‘gênero’ possam incorporar tônicas funcionalistas ou essencialistas, as
feministas escolheram enfatizar as conotações sociais de gênero em contraste
com as conotações físicas de sexo (SCOTT, 1992, p. 86).
De acordo com os dados apresentados na obra Gênero e Diversidade na Escola:
Formação de Professoras/es em Gênero, Orientação Sexual e Relações étnico-raciais,
publicada pela Secretaria de Políticas para as Mulheres/SPM em 2009 nos apontam que:
O modo como homens e mulheres se comportam em sociedade corresponde a
um intenso aprendizado sociocultural que nos ensina a agir conforme as
prescrições de cada gênero. Há uma expectativa social em relação à maneira
como homens e mulheres devem andar, falar, sentar, mostrar seu corpo,
brincar, dançar, namorar, cuidar do outro, amar etc. Conforme o gênero,
também há modos específicos de trabalhar, gerenciar outras pessoas, ensinar,
dirigir o carro, gastar o dinheiro, ingerir bebidas, dentre outras atividades
(BRASIL, 2009, p. 40).
Dessa perspectiva, Camurça & Gouveia, afirmam que da mesma forma que todas
as pessoas aprendem o seu próprio nome, aprendemos também sobre seu próprio gênero,
ou seja como é ser uma mulher ou um homem. (2004, p.19). Desde pequenas as crianças
observam essas situações nas relações sociais e começam a imitar a mãe ou o pai,
aproximando-se daquele que lhe parece ser mais semelhante, é dessa forma que se
constrói a identidade de gênero, identidade está que gradativamente se constituirá ao
longo da vida, criando por meio de normas e dos valores que a sociedade apresenta para
as mulheres e para os homens.
Conforme os dados registrados na obra Gênero e Diversidade na Escola (2009)
mesmo que tenha ocorrido alguma mudança no modo das sociedades verem e pensarem
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a maneira como o homem ou a mulher deve ser, ainda há alguns cuidados e regras, que
tanto o menino como a menina devem seguir, para que tenham aceitação no meio social:
[...] ainda assim exige-se da moça:
• Que se guarde o máximo possível, retardando a iniciação sexual;
• Que seu leque de experimentação sexual seja reduzido, não chegue
próximo ao dos homens, para não serem chamadas de “galinhas”;
• Que não seja “atirada”, embora a mídia ressalte a sensualidade dos
corpos femininos;
• Que tenha o casamento e a maternidade como horizonte próximo.
[...] Por outro lado, do rapaz exige-se:
• Que antecipe o máximo possível a primeira experiência sexual;
• O prazer de reunir múltiplas experiências sexuais, às vezes
simultâneas;
• Um apetite sexual intenso como prova de sua virilidade, estimulada
desde pequeno por homens próximos a ele quando apontam o corpo de
mulheres na TV ou nas ruas;
• Certo desprezo pelo cultivo dos sentimentos amorosos. (BRASIL,
2009, p.52).
Esses modelos de comportamento sexual e social podem se tornar verdadeiras
prisões e sofrimento, pois quando os rapazes e as moças não se encaixam nos padrões e
nos estereótipos de gênero designados pela sociedade, qualquer desvio de conduta correm
o risco de sofrer críticas e discriminação social.
Portanto, as identidades de gênero são constituídas nas instituições sociais,
sobretudo na escola, na família, e também nas mensagens veiculadas pela indústria
midiática: impressa, televisiva, radiofônia, entre outros. (SILVA & MELLO, 2011, p.51).
Outro aspecto que deve ser considerado na discussão das relações de gênero são
os estudos sobre o corpo tendo como abordagem o cotidiano das práticas escolares, que
surgiram a partir do Século XIX, quando o corpo e os fenômenos associados à vida como:
doenças, mortalidade e natalidade, tornam-se problema de saúde pública e também
passam a ser preocupações das autoridades governamentais por meio das legislação dos
Estados Modernos.
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Diante desses fenômenos e da preocupação dos dirigentes governamentais, há a
necessidade de refletirmos sobre novos saberes e procedimentos para a regulação da vida
e do corpo. Assim, as condições para a manifestação da Biologia e do modo de pensar e
lidar com o corpo humano e o organismo biológico são investigadas e constituídas. Desse
modo, o corpo mais do que pura fisiologia ou uma natureza biológica, passa a ser pensado,
como uma “superfície de inscrição dos acontecimentos”. (FOUCAULT, 1998, p. 22).
Nessa perspectiva, abordar as vivências da sexualidade é um tema, ainda
concebido com muito pudor e represália, na sociedade atual, pois conforme Lacerda &
Lima (2013) salientam em seu artigo “Relações de gênero, corpos e sexualidade para os
Terena do Pantanal Sul-Mato-Grossense: Saberes e Códigos Culturais”:
[...] desde quando nascemos vivenciamos esse assunto como algo proibido, ou
seja, pouco ou nada sobre a dinâmica da sexualidade de crianças e jovens nas
reuniões familiares e muito menos sobre as vivências sexuais. Sabemos que
toda sociedade é constituída de cultura e há uma preocupação com a maneira
como se manifesta a sexualidade, tendo em vista os comportamentos de
proibições ou aceitação. O fato de um indivíduo ser do sexo feminino ou
masculino diante da sociedade já o faz submeter-se coercitivamente e até
mesmo inconscientemente aos padrões regulados por essa sociedade.
(LACERDA & LIMA, 2013, p. 5).
Além disso, é importante considerar a dinâmica das vivências da sexualidade de
acordo com Jeffrey Weeks (1999), como algo que envolve uma série de crenças,
comportamentos, relações e identidades socialmente construídas e historicamente
modeladas que permitem aos homens e às mulheres viverem, de determinado modo, seus
desejos e seus prazeres corporais. Silva & Mello (2011), também registra que a
sexualidade [...] é plural, o que implica afirmar a inexistência de um único modo correto,
estável, desejável e sadio de vivenciá-la plenamente.
Percurso metodológico para o registro das narrativas
Para a realização do levantamento de dados da presente pesquisa dividimos as ações
em três pontos fundamentais: 1ª.) revisão bibliográfica, para conhecimento teórico do que
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já foi produzido sobre o assunto destinado à investigação. 2ª.) realização de visitas
técnicas, a fim de conhecer a população indígena da Aldeia Urbana Marçal de Souza,
localizada no Município de Campo Grande - MS, onde foi executada a coleta dos dados,
iniciando com a observação participante e anotações no Caderno de Campo. Nessa mesma
etapa, foi investigado por meio das narrativas discursivas das mulheres dessa Aldeia
Urbana pertencentes a etnia Terena como se constituíram as relações de gêneros e as
vivências da sexualidade na comunidade e nas práticas pedagógicas desenvolvidas não
só na Escola localizada nessa Aldeia como também nas Escolas indígenas da região
Pantaneira Sul-Mato-Grossense, dada a sazonalidade que esses indígenas vivenciam entre
a cidade de Campo Grande e as aldeias pantaneiras. 3ª.) organização e redação do
relatório dos dados coletados.
Entre o passado e o presente: vozes da mulher terena sobre identidade, relações de
gênero e as vivências da sexualidade
Os dados coletados junto aos professores da comunidade da Aldeia Urbana Marçal
de Souza situada no município de Campo Grande, MS, evidenciaram o modo de ser e de
viver de homens e mulheres diante das relações de gênero na comunidade, na escola, na
vida familiar e amorosa.
Nas entrevistas realizadas constatamos uma grande separação dos papeis
desempenhados pelas mulheres Terena daqueles desempenhados pelos homens Terena.
Desta forma, por mais que eles possuam costumes e crenças diferentes da cultura não
indígena, as relações de gênero muitas das vezes também são determinadas pelo sexo, ou
seja, estão vinculadas a educação e a criação que tiveram no âmbito familiar, para que
essa convivência entre os gêneros seja igualitária ou desigual.
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Uma das relevâncias desta proposta de trabalho está na ampliação do
conhecimento sobre uma realidade até então pouco estudada na Antropologia Brasileira,
assim o fazendo na perspectiva de dar mais visibilidade as mulheres Terena e produzir
novos conhecimentos que possam contribuir para a garantia de direitos a comunidade,
sobretudo às mulheres que ali vivem.
Outro aspecto evidenciado durante a pesquisa de campo consiste em que —
segundo as mulheres Terena entrevistadas — no período em que se encontram na cidade,
convivem com a sociedade envolvente, dificultando as vivências dos rituais de passagem
da cultura Terena, não que esses rituais não sejam vividos, mas quando se trata de
permanecer nos territórios tradicionais é mais difícil ocorrerem possíveis modificações
como pontua a Senhora EBS entrevistada na Aldeia Urbana Marçal de Souza, que salienta
a sua concepção de família, casamento, educação dos filhos, por meio da comparação
entre os valores culturais vividos no passado, em relação aos valores concebidos pelas
novas gerações, fazendo uma crítica em relação ao tempo presente, conforme destaca o
trecho abaixo:
[...] a constituição da família ficou sem validade nenhuma. Porque eu preferiria
educar meu filho como eu acho que é e não como a lei manda ser. Existe a
oficialização do casamento até então por dever e desejo dos pais, mais hoje a
sociedade indígena não e mais assim. Encontramos dificuldades quando
tentamos oficializar um casamento, pois os jovens mantém relação sexual sem
estar casados. A juventude de antes casava virgem a moça e o rapaz, por isso
existia o respeito um pelo outro. Hoje a menina namora daqui um pouco ela já
esta mantendo relação sexual com o rapaz ai vem as consequências, vem os
filhos, hoje varia muito a idade de ter filhos, pois tem moças que estudam e
querem ir para a faculdade. E outras que com doze anos já são mães.
No trecho a seguir EBS destaca as contradições, historicamente vividas, entre esse
tempo presente e o passado, no que diz respeito aos casamentos interétnicos com os não
indígenas, a tenacidade dessa etnia na preservação identitária da sua cultura, as relações
entre os pais e os filhos, a ancestralidade no cultivo da terra, a vulnerabilidade da
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juventude diante das drogas e a ausência de perspectiva de futuro para os seus
descendentes.
O casamento com os não índios são poucos, acredito que era para ter muito,
mas isso ainda acontece pouco no sentido de preservar a cultura Terena. Avalio
a Família Terena como um povo que tem uma etnia muito forte tanto os
homens como as mulheres, porque culturalmente o povo terena tem como
sobrevivência a agricultura, tanto homem como mulher ajudam na plantação.
Hoje já ninguém quer ir para a roça, plantava todo mundo junto, pai, mãe e
filhos. Quando eu via os meus pais indo para a roça eu achava muito lindo e
tinha muito orgulho para mim era um exemplo de família que o que eles sabiam
passam para os filhos. É um povo forte e trabalhador onde ambos buscam o
sustento de sua família. Muitas das vezes com a falta de respeito dos próprios
filhos, e se a gente for comparar com antigamente, a gente vê jovens
envolvidos em drogas que antigamente não se via, hoje não se tem o respeito,
esse amor de família como antigamente, isso entristece, pois eu fico pensando
como será a outra geração , e ai os meus netos o que sobra pra eles , pois a
mudança se segue cada vez mais.
Outro aspecto destacado por esta Senhora Terena, diz respeito à atuação da mulher
nesse contexto com a inserção no trabalho doméstico e nas plantações para que os maridos
pudessem deslocar-se dos territórios tradicionais — que não oferecem oportunidade de
trabalho — para atuarem em funções qualificadas nas cidades do Estado, na busca de
melhores condições de vida para si e a família. Dessa mesma perspectiva, as mulheres
Terena que residem nas cidades também se qualificam e ocupam postos de trabalho com
carteiras assinadas, evidenciando uma importante conquista para sua história de vida.
A mulher indígena é a que mais trabalha na aldeia por falta de capacitação de
mão de obra os maridos vão para a destilaria e elas ficam na roça plantam,
produzem e saem para vender. Nas cidades nós temos várias mão de obra
qualificadas como: o pedreiro e carpinteiro. Como aqui na cidade não possuem
estrutura para mantermos nossas atividades artesanais as mulheres buscam
qualificações para aprenderem a trabalhar em casa de famílias, cabeleireira,
manicure e caixas de supermercados. Hoje as mulheres conseguem ter carteiras
assinadas, e possuem todos os direitos trabalhistas.
A alternância de papeis entre homens e mulheres também foi registrada na
narrativa de EBS e evidencia, no trecho abaixo, uma dualidade entre os comportamentos
vividos por mulheres e homens que historicamente são constatados por meio de uma linha
tênue de tempo entre o passado e o tempo atual.
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O discurso dessa mulher Terena destaca os aspectos contraditórios que constituem
essas alternâncias de comportamento vividas nas relações de gênero — em razão das
necessidades de sobrevivência no cotidiano vivido — fortemente demarcada nessa
sociedade indígena.
Hoje os homens já estão ficando bem mais companheiros, eu falo que é pela
vivencia. Hoje nos temos homens que cuidam da cozinha e da casa, por conta
do reconhecimento que eles têm daquele tempo que falavam que eu sou
homem e não deixo você trabalhar, então esse era o trabalho porque ele estava
trabalhando de uma outra forma para trazer dinheiro para casa e ela também.
Antigamente o homem sentava-se à mesa e a mulher tinha que servir a comida
dele. Então isso já mudou muito devido as necessidades financeiras de
sobrevivências nos espaços urbanos.
Na sequência a narrativa de EBS destaca as questões da posse da terra, a fecunda
relação familiar que se consolida por meio de exemplos e do diálogo entre gerações, a
transmissão dos valores culturais e principalmente a necessidade de diálogo entre mães e
filhas, no que diz respeito à gravidez precoce das meninas, às relações sexuais antes do
matrimônio e, sobretudo à concepção de filhos em uma tenra idade.
Antigamente os pais tinham autonomia, e esse mundo não é mais exclusividade
do índio desde que o Brasil foi descoberto segundo os brancos ele deixou de
ser um território indígena e ele passou por varias mudanças e esta cada vez
pior. Sim. A educação que os meus pais me deram que a qual hoje eu analiso
que foi uma coisa muito cruel, mais eu agradeço a Deus por isso, porque eu
consegui fazer muita coisa com outras pessoas através do exemplo que eles me
deram, muitas vezes orientando, aconselhando dentro daquilo que eu aprendi
com eles. Às vezes eu penso que se todos os jovens tivessem essa educação
talvez não tivesse tantos netos sendo criados pelas avós. Antigamente seria
muito mais fácil, hoje é muito mais difícil para a família porque não tem mais
o dialogo de antigamente você vê meninas com 10, 12 anos já sendo mulher
porque não tem o diálogo com a mãe, esse companheirismo com a mãe. (ESB,
FEMININO, 59 ANOS, TERENA, ALDEIA LIMÃO VERDE, CAMPO
GRANDE, MS, 28/07/2014).
Essa narrativa evidencia a incorporação e a alternância de valores e
comportamentos vividos pelo povo Terena, principalmente nessa comunidade estudada.
Neste sentido para EBS os casamentos interétnicos poderiam ocorrer com maior
frequência, entretanto a tenacidade de seus membros na preservação dos seus saberes,
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conhecimentos e códigos culturais os relacionamentos se mantêm entre os membros da
comunidade.
Os dados foram analisados por meio dos estudos e resultados das pesquisas
desenvolvidas no campo da educação, da antropologia e da história que descrevem e
registram o modo de ser dessas populações e sua cultura. A mesma trará reflexões para
o atual debate sobre as relações de gênero no espaço do cotidiano indígena em que o
discurso dominante sobre as relações de gênero é o da existência de igualdade e
neutralidade de gênero.
Considerações finais
Os dados da pesquisa evidenciaram como se constituem as relações de gêneros,
sexualidade, corpos e identidade na etnia Terena. É possível perceber que há funções que
são exercidas tanto por homens quanto por mulheres. Essas funções são marcadas por
espaços e comportamentos pré-determinados culturalmente, que regem os indivíduos,
destacando o que é feminino e masculino, com atribuições no campo privado e público.
No discurso das mulheres Terena, percebemos uma efetiva ação com relação ao
processo de reconhecimento e direitos igualitários entre mulheres e homens. A
comunidade visitada possui relativa clareza do tema, porém ainda é necessário uma maior
discussão sobre a questão das relações de gênero e prevenção das Doenças Sexualmente
Transmissíveis e da Aids. O esclarecimento e o diálogo sobre os papéis desempenhados
por homens e por mulheres indígenas Terena é de fundamental importância para a
compreensão dessa alternância de valores culturais entre o passado e o presente.
Compreender que essa comunidade têm ordens e ritmo próprio se faz de
fundamental importância para toda a comunidade, assim como para todos aqueles que
estão imbuídos e inseridos no processo de convívio e contato, para a melhor compreensão
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dessa temática.
Um dos objetivos desta pesquisa foi analisar em uma perspectiva educativa,
histórica e antropológica a constituição das relações de gênero e sexualidade, por meio
das histórias de vida vividas por essas mulheres em suas nas práticas educativas
transmitidas oralmente de mãe para filha e vice e versa, com o intuito de conhecer como
as mulheres indígenas Terena concebem e se posicionam em relação à sua sexualidade,
por meio de suas narrativas que foi realizada na visita de campo a Aldeia Urbana Marçal
de Souza.
Por fim essa pesquisa pretende contribuir com as comunidades indígenas e não
indígenas bem como com o desenvolvimento do diálogo entre os saberes tradicionais e
os saberes científicos, no que diz respeito à melhoria das relações sociais. Relações
compreendidas em uma perspectiva das relações de gêneros e das vivências da
sexualidade no cotidiano dessas etnias.
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AS REPRESENTAÇÕES DE MASCULINIDADES E FEMINILIDADES NOS ROMANCES DE
BANCA DE DIANA PALMER NOS ANOS DE 1990
Roberta Manuela Barros de Andrade1
Antonio Marcos Fonseca do Nascimento2
Taiane Alves de Lima3
Tatiane Lima de Freitas4
RESUMO: Diana Palmer é uma das autoras mais lidas de romances sentimentais mundo afora. No Brasil,
seus livros viraram “best sellers” de bancas de revistas, estando no patamar dos mais vendidos durante todo
a década de 1990. Entrementes, a forma peculiar como a autora descreve as relações de gênero em seus
romances é motivo de controvérsias entre seus próprios leitores. O perfil traçado como característico para
suas personagens, tanto masculinos quanto femininos, parece entrar claramente em choque com os valores
que regiam as relações entre os sexos na última década do século XX, o que torna o seu sucesso estrondoso
digno de um maior escrutínio acadêmico. Assim, tomamos como pergunta-chave deste estudo: como as
relações de gênero são apresentadas por Diana Palmer e em que medida refletem posicionamentos
patriarcais encontrados na sociedade maior. Baseados neste contexto, este trabalho tem, pois, como foco
analisar as representações de masculinidade e de feminilidade presentes nas obras da autora durante o
período histórico citado. O presente trabalho tem como objetivo produzir uma análise do discurso, nos
moldes de Thompson (1995), destas representações a partir de três de suas obras mais populares neste
período: “Acreditar outra vez”, “Anjo do Oeste” e “Adeus ao Amor”. Para tal, traçamos uma relação entre
o seu discurso e a ideologia que o suporta no que diz respeito às representações do masculino e do feminino
ali presentes.
Palavras-chave: Literatura de Massa, Romances Sentimentais, Relações de Gênero,
Patriarcalismo, Dominação Masculina.
Romances Sentimentais e Categorizações de Gênero
Os romances sentimentais5, aqueles que centram seu enredo em contar histórias
de amor, são responsáveis por mais da metade de toda a produção mundial de ficção
vendida na América do Norte. Esta categoria de romance gera um montante de 1,52
bilhões de dólares em vendas anuais, superando qualquer outro gênero disponível, hoje,
1
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora Adjunto M da
Universidade Estadual do Ceará (UECE). Coordenadora do Laboratório de Cultura, Consumo e Mídia
(LABCCOM) do Curso de Ciências Sociais da UECE. E-mail: [email protected]
2
Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Bolsista do Programa de
Educação Tutorial (PET) do Curso de Ciências Sociais da UECE. Participante do Laboratório de Estudo
em Cultura, Consumo e Mídia (LABCCOM). Email: [email protected]
3
Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Participante do
Laboratório de Estudo em Cultura, Consumo e Mídia (LABCCOM). Email: [email protected]
4
. Graduanda em Letras pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Participante do Laboratório de
Estudo em Cultura, Consumo e Mídia (LABCCOM). Email:[email protected]
5
. O romance sentimental é uma obra de ficção cuja temática trata de sentimentos e paixões. Trata-se, pois,
de histórias de amor que concentram sua atenção sobre os estados emocionais e os conflitos internos das
personagens (SAMONÁ,1980).
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no mercado. A empresa canadense Harlequin-Silhouette6 domina, hoje, 80% do mercado
global de romances, especializando-se na venda de romances sentimentais a preços
acessíveis, e até recentemente, postos à venda, quase que exclusivamente, em
supermercados de grande porte e em banca de revistas. A venda em banca de revista
rendeu a alcunha, no Brasil, para este tipo de ficção, de “romances de banca de revista”.
Neste mercado bilionário, o Brasil se destaca como um dos países mais lucrativo para tais
editoras.
Entre os anos de 1980 e 1990, somente, aqui, a Harlequin-Silhouette, em parceria
com a Nova Cultural, produziu, a preços populares, mais de 25 coleções diferentes, com
mais de 80 subdivisões. As coleções mais famosas deste período foram “Julia”, “Sabrina”
e “Bianca”, cujo sucesso foi tão estrondoso que se tornaram sinônimo de romances de
banca de revista e ícones de uma geração. O sucesso destes romances pode ser atestado
pelas pesquisas de Andrade e Silva (2013, 2011, 2010a, 2010b) que indicam a sua leitura
ávida, no Brasil, por mulheres de todas as idades e de todas as classes sociais.
Entrementes, estes romances não devem ser encarados como mera opção de lazer
para seus incontáveis fãs. Estes fornecem roteiros específicos de socialização para as
mulheres na medida em que constroem categorizações de gênero. Tais romances
expressam valores e práticas que modelam, orientam e esculpem desejos e modos de viver
a sexualidade. Ali, os gêneros se criam como unidades ficcionais, embrenhados em
contextos historicamente constituídos. Trata-se, aqui, de entender como as dominações
6
. Harlequin Books passou a se chamar Harlequin-Silhouette, após sua fusão, em 1984, com a Silhouette,
maior editora do mercado norte americano de romances. Os romances editados pela Harlequin-Silhouette
são, na contemporaneidade, vendidos em mais de 108 países e traduzidos para 26 línguas (DUNGEE,
2003). Em 2007, os últimos dados do censo norte americano informavam que 50 milhões de mulheres ao
redor do mundo liam os livros publicados pela Harlequin-Silhouette (BUN, 2007).
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de gênero são construídas e incorporadas ao imaginário feminino, resultando em seu
processo de naturalização.
Neste contexto, nos perguntamos: o que é gênero? Aqui, trabalhamos com o
conceito de gênero a partir da óptica de Shapiro (1981), que o concebe como as
construções sociais, culturais e psicológicas que se impõem sobre as diferenças biológicas
e que não são redutíveis nem derivadas daquelas. Se o gênero varia de acordo com a
cultura, no modo como organiza o comportamento e ação, e se modifica de acordo com
a linguagem, nos indagamos aqui: como a construção de gênero se faz nos livros
sentimentais e através de qual linguagem se manifesta.
Lembramos com Bourdieu (2002) que existem mecanismos históricos
responsáveis pela des-historização e eternização das estruturas da divisão de gêneros. Se,
de acordo com Bourdieu, há espaços de construção e manutenção destes processos de
eternização tais como a escola, a família, a igreja, o esporte e o jornalismo, acrescentamos,
aqui, um dos espaços mais eficientes de categorização das relações entre os sexos: os
romances sentimentais.
Neles, as mulheres incorporam esquemas de pensamento no que diz respeito à
classificação de gêneros que estão estruturados em conformidade com os mesmos
mecanismos de dominação da sociedade maior. Assim, as mulheres reproduzem, em sua
prática de leitura, um habitus que se estrutura sob a dominação entre os sexos. Neste
sentido, cremos que os atos de reconhecimento de padrões de comportamentos
estabelecidos nos romances para os gêneros são, como o pensou Bourdieu (2002), atos de
reconhecimento que são, ao mesmo tempo, atos de submissão.
Assim, selecionamos para fins deste trabalho, a produção literária de Diana Palmer,
nos anos de 1990, quando ainda era publicada dentro das séries Júlia e Sabrina. Diana
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Palmer iniciou sua carreia em 1979. Porém, em 2003, alcança a marca de possuir mais de
noventa e cinco livros, traduzidos em mais de 100 países, sendo considerada uma das
mais bem sucedidas escritoras de romances populares de todos os tempos.
Selecionamos a obra de Diana Palmer, em especial, porque, suas histórias se
caracterizam por criar protagonistas cujos padrões de comportamento revelam que a
emancipação da mulher no mercado de trabalho, já mais do que consolidada nos anos de
1990, não modificou as condições de subordinação das mulheres ao sistema de
dominação masculino. Em seus romances, a mulher continua sob o jugo da dominação
sexual, doméstica e laboral, difundindo esquemas de percepção, pensamento e ação
(BOURDIEU, 2002), tipicamente patriarcais.
A maior parte de suas obras se passa em uma pequena cidade imaginária,
localizada no estado norte-americano do Texas, Jacobsville. Os três romances
selecionados para este estudo fazem parte do ciclo de Jacobsville. Assim, em Diana
Palmer, todos os habitantes desta pequena cidade estão conectados entre si, e cada um
deles merece uma história de amor a ser narrada. Cada romance escrito conta uma história
de amor diferente, com personagens que em romances anteriores eram secundárias, e se
tornam protagonistas no romance seguinte. Por ser situada, no estado do Texas, conhecido
pelas suas enormes criações de gado, não é à toa que quase todos os protagonistas de seus
romances são fazendeiros.
Em Jacobsville, há a maior concentração de homens traumatizados do planeta,
quer seja pelas guerras aonde lutaram- muitos são ex-mercenários ou combatentes da
guerra do Golfo-, quer seja porque advém de famílias desestruturas, com inúmeros casos
de torturas psicológicas e físicas originadas em seus progenitores. As mulheres não são
diferentes, em geral, são rancheiras, pobres, abandonadas e maltratadas por um dos pais
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ou por ambos, que quando se encontram com os heróis da trama, estão sempre em uma
situação-limite, da qual se salvam através da ação redentora do nosso herói. Assim, os
heróis são quase sempre homens poderosos. São homens rudes e viris que, via de regra,
fazem julgamentos injustos e precipitados a respeito do caráter e da moral das jovens
heroínas. Nas três obras selecionadas para este estudo, temos três fazendeiros típicos dos
romances de Diana Palmer
No primeiro romance, “Acreditar outra vez” (1993), temos a história de um
fazendeiro, pai abandonado pela esposa, que necessita desesperadamente de uma mulher
para assumir o papel de mãe de seus três filhos indisciplinados. Para solucionar o
problema, surge a irmã do homem que fugiu com sua esposa, a quem detesta, pois,
acredita que esta seja culpada por apoiar o irmão a fugir com sua esposa.
No segundo romance, “Adeus ao amor” (1990), encontramos a história de um
fazendeiro milionário que, ao se tornar administrador da herança do primo, tem que
conviver com a sua viúva, mulher a quem odeia, pois, a considera culpada pela morte do
primo. Infelizmente, a jovem viúva é a mulher a quem amou no passado e rejeitou devido
a uma, aparentemente, grande diferença de idade entre ambos.
No terceiro romance, “Anjo do Oeste” (1995), descortina-se a história de um
fazendeiro, divorciado, que foge à ideia de uma segundo matrimônio, mas que é
impulsionado para o amor, quando sua filha adolescente o convence a ser instruída nas
artes dos rodeios por uma ex- artista de rodeios, falida, e quase aleijada, também bem
mais jovem do que o protagonista.
Neste contexto, tomamos como pergunta-chave deste estudo: como as relações
de gênero são apresentadas por Diana Palmer e em que medida refletem posicionamentos
patriarcais encontrados na sociedade maior. Este trabalho tem, pois, como foco analisar
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as representações de masculinidade e de feminilidade presentes nas obras da autora
durante o período histórico citado. O presente trabalho tem como objetivo produzir uma
análise do discurso, nos moldes de Thompson (1995), destas representações a partir de
três de suas obras mais populares neste período: “Acreditar outra vez” (1993), “Anjo do
Oeste” (1995) e “Adeus ao Amor” (1990).
As Mulheres de Diana Palmer e o Espaço Público
Discutir o papel da mulher no espaço público, como bem nos lembra Bourdieu
(2002), remete-nos à divisão de trabalho existente entre homens e mulheres. Esta divisão
os leva a assumirem posições desiguais em termos de poder, prestígio e riqueza na
sociedade. Mesmo diante dos progressos das mulheres em países de todo o mundo, o
feminino ainda carrega, cremos, características culturalmente construídas e consolidadas
por uma sociedade machista e patriarcal. Esta sociedade é delineada com clareza nos
romances de Palmer.
Todos os romances objetos de análise desta pesquisa, “Acreditar outra vez”,
“Adeus ao amor” e “Anjo do Oeste”, foram publicados durante a década de 90 do século
XX. Nesta época, os direitos e conquistas femininas, no Ocidente, já tinham se
consolidado, uma vez que, as mulheres já possuíam, legalmente, os mesmos direitos e
deveres concedidos ao homem como cidadãs. Apesar da suposta igualdade entre os sexos
que a sociedade afirma existir oficialmente, Diana Palmer traça perfis masculinos e
femininos de forma diametralmente oposta, nos quais são notáveis os processos de
dominação masculinos, que se revelam em características marcantes de cada gênero.
Nas obras analisadas, o perfil da mulher ainda é construído com base na teoria de
que o feminino compõe o “sexo frágil”, aquele que precisa da proteção, supervisão,
auxílio e suporte da figura masculina. A partir da análise dos romances, percebemos que
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as figuras femininas envolvem-se em problemas no decorrer da narrativa que não
conseguem resolver sozinhas ou mesmo em parceria com outras figuras femininas da
narrativa, quer sejam mães, irmãs ou amigas. As mulheres construídas por Diana Palmer
vivem à sombra de uma figura masculina. O pai, o irmão, o marido ou até mesmo o futuro
marido são os responsáveis por resolver todos os empecilhos que possam surgir na vida
destas mulheres, provocando sempre uma relação de dependência da mulher em relação
ao homem, o que coloca as personagens de Diana Palmer diretamente dentro da lógica
patriarcal.
O patriarcalismo se caracteriza por delinear um alto grau de dependência
econômica e social dos demais membros do grupo familiar em relação à autoridade
patriarcal. O pai detém o poder sobre a propriedade familiar e dispõe dos bens de outros
membros a seu bel prazer. Mas, correlata à autoridade sobre os bens, cabe-lhe a obrigação
de se responsabilizar pela sobrevivência dos membros do grupo doméstico, mantendo
uma condição de tutela sobre as mulheres (AGUIAR,1997). Em Diana Palmer, as
personagens masculinas detêm o poder patriarcal sobre as mulheres, fragilizando-as ou
infantilizando-as no decorrer da narrativa.
— Venha querida — disse com carinho, no mesmo tom que usava quando ela
tinha seis anos, ignorando que agora Jane estava com vinte e cinco. — Pode
vir, está tudo bem. Eu não vou deixar você cair — concluiu Tim. — Não
consigo... — suspirou ela em agonia. — Ponha os braços ao redor do meu
pescoço — disse Todd, com ar autoritário. — Deslize para cá e quando sua
outra perna tiver passado por sobre a sela, segurarei você. Vá com calma.
(PALMER, 1995, p.07)
Desta forma, podemos nos indagar, há igualdade entre os gêneros nessas obras
romanescas de tanto prestígio, campeãs de venda e especialmente direcionadas ao público
feminino? É clara a visão patriarcal empregada nos romances aqui abordados, uma vez
que, as características que se relacionam à fragilidade estão sempre interligadas a figura
feminina enquanto as que se relacionam a força e ao rigor são atribuídas ao homem. A
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mulher vive, nestes romances, sobre a proteção paterna ou sobre uma figura a ela similar,
até o momento do seu casamento onde é entregue a proteção e aos cuidados do marido
sendo este agora seu novo responsável.
Neste sentido, aqui, gênero é pensado como em Strathern (1988), isto é, como
uma diferenciação categórica entre homens e mulheres que assumem conteúdos
específicos em contextos particulares. O gênero, aqui, se refere à apreensão das diferenças
entre homens e mulheres. Trata-se de uma categorização que se alimenta do imaginário
sexual. Mas, se as identidades de gênero dos malinésios, na obra de Stratherm, são
múltiplas, materializadas em vários contextos sociais, transformando-se de acordo com
as interações que põem em jogo, em Palmer, temos apenas uma identidade feminina para
a mulher, aquela baseada na tradição, sob os auspícios do poder patriarcal, que é regida,
nas narrativas investigadas, sob a autoridade pessoal dos heróis das histórias de Palmer.
Lembremo-nos, com Weber (2004), que o poder patriarcal é caracterizado como
um sistema de normas baseado na tradição, que se incorpora ao princípio da obediência
ao senhor. Assim, as relações de poder na dominação patriarcal se fundam sobre a
autoridade pessoal. A autoridade é garantida assim pela sujeição pessoal. O controle sobre
a mulher se estende ainda sobre os filhos, que serão por ele sustentados à medida que
forem reconhecidos como tais. O pai é quem detém o poder na esfera familiar, seu nome,
mesmo após a morte, carrega a força e o peso da tradição da familiar.
— Bem, você certamente não parece uma campeã — disse ele, irônico.
—
Monta como uma principiante. Tão graciosa quanto uma tábua balançando na
sela. Como uma amazona ruim desse jeito chegava às finais? Graças ao
poderoso nome do seu papaizinho? (PALMER, 1995, p. 06).
No trecho transcrito acima, percebemos que o sentido trabalhado neste ponto da
obra é o de que a mulher não é capaz de conquistar sucesso sozinha. Se a fama do pai não
lhe rende o reconhecimento como boa amazona, as habilidades eqüestres ensinadas por
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seu amado vão lhe angariar o reconhecimento desejado, acabando por consolidar a
subjugação da mulher em relação ao homem. Neste sentido, em Diana Palmer,
presenciamos a figura masculina como centro de poder, responsável por tomar as decisões
e conduzir a vida em todos os sentidos e campos, inclusive no familiar. Como foi acima
exposto, é a partir da figura paterna que a família adquire um real valor perante a
sociedade.
No entanto, a fraqueza da mulher desenhada nas obras de Diana Palmer não está
apenas em não conseguir assumir uma postura independente e autônoma, dentro da qual
ela seria capaz de resolver seus problemas e de desempenhar qualquer tipo de atividade,
sem o auxílio da figura masculina. Essa mulher ainda possui outra fraqueza: a sexual. As
protagonistas das obras analisadas, na presente pesquisa, não conseguem resistir ao apelo
sexual masculino.
Descontrolam-se ao entrar em contato com os corpos fortes e viris dos heróis da
trama e embora seu desejo seja o de afastar-se daquele homem (que julgam cobiçar apenas
seu corpo e não seu coração), elas sempre acabam por sucumbir diante do forte instinto
sexual feminino que é despertado quando o masculino assim o exige. A mulher,
simplesmente, não tem forças suficientes para dizer “não” quando sob o assédio
masculino. Em Diana Palmer, uma lição é clara: a fragilidade feminina é tanta que a
mulher submete-se aos desejos sexuais masculinos ainda que contra a sua vontade. Estas
mulheres, quando se trata de sexo, não possuem livre arbítrio.
Segurou-a com mais firmeza, roçando os lábios nos dela. — Não pode negar o
que sente, Jane. Basta eu envolvê-la nos meus braços que você perde seu
próprio domínio. Se eu quiser beijá-la, você não oferecerá resistência. Está
completamente rendida, meu anjo — sussurrou num tom sedutor (PALMER,
1995, p. 39).
Além das características de fragilidade e dependência presentes na mulher
esculpida nos romances de Diana Palmer, a figura feminina conta ainda com outra
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característica que lhe é peculiar, o desejo de casar-se, de ter filhos e assim constituir uma
família. Lembramos, aqui, que a família, é a base do patriarcalismo, que se caracteriza
como um sistema econômico baseado na organização familiar. Mas, se a superação do
patriarcado dá-se, nas sociedades modernas, mediante a diferenciação entre a esfera
econômica e a política, quando a empresa capitalista se separa do grupo doméstico, as
relações de dominação sobre as mulheres ainda se perpetuam no universo de Diana
Palmer. O micro cosmo no qual as personagens flutuam, uma grande fazenda, que está
sob o domínio dos protagonistas masculinos, replica o universo patriarcal de forma óbvia.
Se a distinção entre a esfera pública e privada permitiu a emancipação dos filhos
adultos em relação à autoridade do chefe da família, e de seu jugo doméstico
(AGUIAR,1997), na sociedade imaginária de Diana Palmer, tal não modificou a
condições de subordinação das mulheres como esposas e filhas sujeitas ainda a este
sistema de dominação. Não é à toa, pois, que as mulheres de Diana Palmer expressam,
insistentemente o desejo de se casarem, tendo que, ao longo da trama, lutar contra o desejo
oposto dos seus protagonistas masculinos, de preservarem sua liberdade. Toda a trama
gira, pois, em torno, da mulher desejosa de perpetuar a sua submissão pelo casamento e
do homem que se nega a aceitar esta instituição porque com ela, caminham as
responsabilidades do “chefe da família”.
— Já passei por um casamento e não acredito mais nessa instituição.
Entretanto, você não pode negar que quase geramos faíscas quando estamos
perto um do outro. Não haverá nenhuma consequência ou repercussão.
— Não está falando sério, espero? Pensa em se casar com um homem e passar
o resto de sua vida ao lado dele? — acrescentou com um riso irónico.
— Isso mesmo. (PALMER, 1995, p.47)
Desta forma, os livros investigados de Diana Palmer, para esta pesquisa, destacam
que o lugar da mulher na sociedade não é dado por sua posição em relação ao mercado,
mas em relação à família, seja aquela formada por seu marido ou pai. A posição da mulher
no mercado de trabalho é desconsiderada quer seja porque seus rendimentos sejam
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precários quer sejam por suas idas e vindas no mercado de trabalho, derivadas de suas
obrigações domésticas, não contribuem como fator preponderante nas relações de poder
instituídas na vida doméstica.
Em “Anjo do Oeste” (1995), Jane, a protagonista, é ex artista de rodeio, mas o que
quer que esta tenha adquirido ao longo do exercício desta atividade, seja status social ou
ganhos financeiros, não se comparam com o poder de Todd, que sendo o “chefe da
fazenda”, possui o domínio total sobre seus familiares e empregados. Em “Acreditar outra
vez” (1993), Melody deixa seu emprego, num piscar de olhos, abrindo mão de sua única
fonte de renda, para se dedicar completamente à tarefa de cuidar dos filhos de Emmet,
tornando-se dependente financeiramente do fazendeiro. Em “Adeus ao Amor” (1990),
Beatrice, por determinação do testamento de seu ex-marido, fica sob a tutela de Ted que
irá administrar seus bens, dependendo totalmente de sua boa vontade para o seu sustento
até que se case novamente.
Deste modo, é possível traçar outro padrão marcante nas mulheres de Diana
Palmer: o desejo de se casar, ter filhos e construir uma família. As obras sempre terminam
com o típico casamento entre os protagonistas e o já consolidado e esperado final “e foram
felizes para sempre”. A trajetória da mulher nos romances sempre a conduz ao casamento.
E se o macho não estiver pendendo, na relação, para este desfecho, é papel das
protagonistas de Palmer fazer com que os homens atinjam esta meta.
Depois do casamento fracassado ele deve estar com receio de se arriscar em
um outro. Todavia, com o incentivo correto ele acabará cedendo, Não acha que
vale a pena lutar?
— Lutar — Jane riu com ironia. — Não posso. Ele não quer nem ouvir falar
em casamento.
— Apenas uma questão de tempo — Copper reiterou. — Burke a ama. E você
sente o mesmo por ele. Ele me parece um sujeito do tipo convencional. Além
disso, tem uma filha para cuidar. ( PALMER, 1995, p.56)
Cabe, pois, a mulher salvaguarda a instituição do casamento,nos moldes do
patriarcalismo, e portanto ser parte ativa nos processos de dominação que nele subjazem.
E quando a meta é finalmente alcançada, elas se sentem gratas em serem convidadas a
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partilhar da vida de seus amados, ainda que não acreditem serem, no fundo, merecedoras
desta honra. Mas, os noivos logo ressaltam que a principal qualidade exigida para a
função de esposa e mães, é a beleza, interior e exterior da protagonista. Assim, as
categorizações de gênero em Diana Palmer, funcionam, tal como o previu Bourdieu
(1992), como habitus sexuados, fundamento in natura da arbitrária divisão que se
estabelece na unidade doméstica, simbolizada aqui, pelo casamento, que se torna um lugar
de elaboração e de imposição de princípios de dominação.
— Todd, você não quer se casar com uma pessoa como eu. — Muito pelo
contrário — corrigiu ele. — Quero alguém exatamente como você. Uma
mulher com um coração tão bonito quanto o rosto e o corpo. Quero você, Jane.
Agora e para sempre. Jane não conseguiu acreditar no que estava acontecendo.
Fitou-o com um novo ar de esperança (PALMER, 1995, p. 43).
Assim, o modelo de família descrito por Diana Palmer é rígido e hierárquico. O
homem é a figura central do matrimônio a quem a mulher deve se subjugar, pois, dele
depende para ser feliz. Em Diana Palmer, temos a noção de que a mulher só existe na
medida em que o homem engloba, representa ou incorpora a mulher. Neste sentido, as
mulheres são sujeitos incompletos, à espera do beijo de amor que as torne dignas de
exercerem o papel de esposas e mães.
Sexo, virilidade e dominação.
Nos romances investigados, nas representações do masculino e do feminino
traçadas por Diana Palmer, podemos notar diversas situações nas quais há uma construção
contínua do homem como ser viril e da mulher como ser frágil, sempre subjugada por
esta virilidade marcante. A virilidade masculina é apresentada, nos romances, como prova
de que o homem deve e está no poder e que merece estar nele. Em “Acreditar outra vez”,
Emmet, além de fazendeiro, se apresenta em rodeios, espaços naturais nos quais a
virilidade masculina é conhecida e reconhecida na sociedade maior.
— Todas as exibições de um rodeio são perigosas se o cara for idiota ou
descuidado. E eu não sou nenhum dos dois.
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Ela sabia disso e também que Emmett era uma lenda dos rodeios;
acompanhava a carreira, adorava rodeios, mas nunca diria a ele (PALMER,
1993, p.06)
No trecho acima, vemos que esta virilidade é alvo de escrutínio feminino e de
admiração, o que torna a virilidade uma característica obrigatória nos “homens de
verdade”. Assim, aqui, coadunamos com o pensamento de Bourdieu (1999): a
masculinidade é uma imposição do sistema de dominação, um dever do homem, que é
“evidente por si mesmo”. A admiração feminina requer que o homem acabe passando,
obrigatoriamente, por rituais, em sua maioria em forma de jogos esportivos violentos,
para manifestar as características ditas viris de sua raça. Esta visão de mundo, como vista,
é expressa de forma clara nos romances de Diana Palmer.
Esta virilidade dominante está presente de maneira mais visível na descrição dos
corpos masculinos desta autora. Os homens são viris, e ao serem viris, são altos e
musculosos, possuindo feições rudes, que se não bonitas, são extremamente atraentes ao
sexo oposto. Essas regularidades de ordem física são um ponto essencial para entender
como funciona a divisão do trabalho social no mundo de Palmer. A virilidade se traduz
em força que irá determinar uma divisão de papéis clara: a mulher é dona de casa e o
homem o provedor. Mas não se trata de um provedor qualquer, o provedor é um homem
sofisticado que tem direito a ter todos os luxos que o sistema pode ofertar. Neste sentido,
o interesse do herói, nas humildes mulheres de Diana Palmer, é um prêmio a ser adquirido
pelas suas pobres e desvalidas heroínas.
Não ficara ofendida, era normal que um homem sofisticado como Ted não
ligasse para ela, pensava. Um milionário com o nome sempre ligado aos das
mulheres mais belas e ricas do Texas, apesar de sua conhecida oposição ao
casamento, não ia dar a mínima para uma garota mal arrumada, que vivia atrás
de um balcão de venda. (PALMER, 1990, p.12)
Entrementes, em Palmer, quanto mais frágil a mulher se torna, mais ela é
merecedora do amor dos seus viris protagonistas. Há, aqui um exacerbamento das
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categorizações de gênero, em uma total radicalidade de suas expressões. A mulher, em
Palmer, deve ser exponencialmente sofredora. Enquanto ela não demonstra toda a sua
fragilidade, ela não está apta a ser esposa e mãe.
Triste, ela ficou olhando Ted sair e sentiu uma profunda desolação, um
desamparo total e doloroso. Se ele não a quisera quando era alegre,
despreocupada, bonita e saudável, imagine agora que estava feia, amargurada,
ferida no corpo e na alma, descrente de tudo! E mesmo que ele a quisesse, nada
mais tinha para lhe oferecer. (PALMER, 1990, p.35).
Se as personagens femininas têm em comum a fragilidade e o sofrimento, o que
os três personagens masculinas tem em comum? O gênio forte, a rudeza, a virilidade e o
fato de humilharem sexualmente constantemente suas parceiras. Todas as três mulheres
carregam o fardo de não terem experiência sexual. Aqui, a virilidade masculina se
transforma em potência sexual. A virilidade em seu aspecto ético, como bem o lembra
Bourdieu (1992), como uma questão de honra, mantém-se indissociável da virilidade
física, através, sobretudo, das formas de potencia sexual, como a defloração da noiva que
é esperada de um homem que seja realmente homem. Mas, este processo de defloramento
é, em Diana Palmer, cheio de conflitos. As mulheres inocentes de Palmer tentam aos
homens. A principal armadilha criada por esta mulher é a sua inocência sexual, da qual
os homens de Palmer fogem, pois, tal inocência é uma oferta, cujo preço a pagar é o
casamento. Para fugir da tentação, os homens humilham fortemente suas inocentes evas.
— Você nem sabe o que fazer ao certo — comentou meio impaciente. —
Precisa de um manual de instruções? (PALMER, 1995, p.39)
— E você não me quer?
As feições dele se alteraram por um instante, voltaram a ficar inexpressivas no
momento seguinte e foi terrível a frieza com que disse:
-Quero uma mulher e você está à mão. É só. (PALMER, 1990, p.14)
Você é quase uma criança — ele hesitou —, pouco mais que um cabo de
vassoura com duas pedrinhas como seios. Saia da minha vida de uma vez por
todas! — acrescentou, com raiva contida, e voltou para o salão.(PALMER,
1990, p.17)
A segunda etapa do processo de defloração, e portanto, de domínio do
masculino sobre o feminino, é o ritual da aprendizagem. Cabe ao homem, sexualmente
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ativo, ensinar a mulher inexperiente quais as reações sexuais desejadas no ato sexual.
Mas, algumas vezes, a aprendizagem não se faz suavemente, o emprego da força é
necessário. Quando o processo de resistência feminino aos avanços sexuais esvanece, é
quando o prazer sexual aparece. O gozo feminino é a prova de sua virilidade, é a forma
suprema de submissão. É o reconhecimento erotizado da dominação.
Deslizou as mãos para as nádegas firmes e puxou-a fazendo-a colar-se a ele e
sentir o ardente volume de seu sexo excitado. Ela quis recuar, porém Emmett
a manteve firme.
— Está tudo certo, Melody… Fique quieta. Nunca tinha sentido um homem
"assim"?
— Não — respondeu ela, embaraçada.
— Há uma primeira vez para tudo. Eu preciso esquecer e você precisa
aprender. Pense nisso como… como uma troca de favores.
— Não é uma boa idéia — entristeceu-se ela.
— Eu sei. Mas será doce para nos dois. (PALMER, 1993. p.36).
Neste sentido, como nos lembra Bourdieu (1992), o próprio ato sexual é pensado
sobre o primado da masculinidade. Dessa maneira, o ato sexual é mais um indício da
relação social de dominação, pois ela existe, tendo como princípio um masculino - ativo
- e um feminino - passivo. O orgasmo é uma prova da dominação masculina. Ao homem
viril se espera que ele possibilite o gozo feminino. Tal simulação é colocada como uma
expressão da virilidade masculina e da submissão feminina.
Os dedos apertaram com suavidade os mamilos enrijecidos e o corpo dela
contraiu-se todo, fazendo-a gemer e enterrar as unhas nas costas dele.
(PALMER, 1990, p.36)
Os lábios dele se comprimiram sobre os dela com violência, a ansiedade
fazendo-o considerar- apenas o que desejava, sem pensar nela. Forçou até que
Melody fez o que ele queria: abriu os lábios e, com um gemido, Emmett enfiou
a língua ardente entre eles, explorando a suavidade úmida da boca
inexperiente.
Ela gemeu, também, e o abraçou quando ondas de prazer desconhecido
percorreram-lhe o corpo.
— Eu sei. Boas meninas não deixam os homens fazerem isso. Mas deixam sim,
Melody. Faz parte de ser humano…(PALMER,1993, p.22)
Mas, mesmo quando o orgasmo feminino não é alcançado, como na primeira
relação sexual de Jane, a sua inexistência é justificada pelo delírio de desejo no qual o
homem se encontra. O macho, em sua virilidade, não consegue mais se controlar. A
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natureza viril justifica a aplicação da força. Não é culpa do homem, se a mulher, virgem,
não conhece ainda a força do desejo que impede a sua contenção.
Na primeira vez — Sim. Deus, aquilo foi uma insensatez. — Todd fechou os
olhos, torturado pela lembrança. — Eu não sabia até ser tarde demais. Depois
pensei que iria morrer de prazer e vergonha porque você havia me pedido para
parar e eu não pude. — Beijou-a com delicadeza. — Não sabe o que isso, não
é? Desejar uma pessoa quase com desespero. Naqueles segundos de loucura,
eu teria sido capaz de matar para possuí-la. Estava excitado demais para
conseguir me deter. Desculpe.(PALMER, 1995, p.53)
Mas este a ato sexual, sinônimo de posse, só pode se dá a partir do matrimônio,
quando há a regulação oficial do mundo da casa e da rua. A força da dominação masculina
se justifica pelo matrimônio. O matrimônio torna o coito com a virgem socialmente e
eticamente aceitável. Mas, há uma resistência inicial do homem a esta imposição que é
ao mesmo tempo legitimação da dominação.
E você é virgem… Sei que não é moderno, nem sofisticado, mas me ensinaram
que a inocência é algo muito especial e que não se brinca com ela. Entende?
— Melody assentiu e ele continuou: — Meus pais diziam que um homem
decente não brinca com uma mulher pura, que há muitas querendo brincar sem
casar, que se um homem seduz uma virgem casa com ela e a torna mãe de seus
filhos. Por isso, não transo com mulheres sem experiência (PALMER, 1993,
p.42).
Os romances de Diana Palmer são, assim, princípios incorporadores de
esquemas inconscientes de percepção e de apreciação da dominação masculina. Os
romances em questão funcionam como uma imensa máquina simbólica que tende a
ratificar a dominação masculina. Em Diana Palmer, há a descrição detalhada de como o
comportamento de homens e mulheres, em diversas esferas de atividade, deve ser
percebido e introjectado.
Enquanto, nos anos de 1990, as feministas apontam as formas de rebelião das
mulheres contra o patriarcado, no controle da sexualidade e da reprodução, as obras de
Diana Palmer, aqui analisadas, fazem o caminho inverso. Elas constroem um universo no
qual homens e mulheres são percebidos de forma sexista. Os três romances selecionados
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consagram a ordem estabelecida, em especial no que diz respeito à dominação masculina,
trazendo-a como conhecida e reconhecida, tornando-a natural e evidente.
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ENSINANDO SEXUALIDADES HEGEMÔNICAS: A EDUCAÇÃO HETERONORMATIVA NAS
ESCOLAS
Daniel de Oliveira Medeiros Ribeiro1
Resumo: Neste trabalho realizou-se uma análise da bibliografia acerca da educação heteronormativa nas
escolas, baseada em noções de normalidade e anormalidade concernentes às formas como se apresentam as
masculinidades e feminilidades. Foram examinadas as maneiras através das quais se expressa o
comprometimento tácito para a formação escolar de homens e mulheres “de verdade” (LOURO, 2013).
Aliados aos esforços mais sutis, presentes nas atividades prosaicas do dia-a-dia das escolas, estão a
regulação sexual e o abafamento da curiosidade das crianças em relação à sexualidade, por meio da inclusão
desta no currículo escolar sob o nome de educação sexual – a qual, novamente, visa à normalização. A ideia
foi representar a escola como a instância cultural e socialmente incumbida de transmitir, "ensinar" para as
crianças e adolescentes, as formas de viver "corretamente" – conforme as normas sociais mais amplamente
aceitas – o gênero que lhes foi atribuído e uma sexualidade condizente com este. Pretendeu-se, desse modo,
analisar como as escolas contribuem para a construção de indivíduos bem ajustados aos padrões de
normalidade estabelecidos pela sociedade – assim como para a dos desajustados, os desviantes da norma e
dos padrões constituídos; como contribuem para produção e reafirmação das formas hegemônicas de
masculinidades e feminilidades – e, por conseguinte, das suas formas subordinadas – e que tipos de
mecanismos são empregados no processo. A educação sexual entra na equação como a forma institucional,
de, abertamente, conter sexualidades desviantes e suprimir a curiosidade. Tencionou-se, portanto,
considerar o papel da educação sexual na limitação da livre expressão da sexualidade e criatividade das
crianças, com vistas ao estabelecimento de uma suposta sexualidade normal confinada à “escolha
apropriada de objeto e ao sexo reprodutivo marital” (BRITZMAN, 2013). Por último, examinou-se também
a possibilidade de que a crença na obrigatoriedade de uma oposição diametral entre masculino e feminino
seja o item instituidor das discriminações de gênero e de orientação sexual. A pesquisa deu-se pela revisão
da literatura recente (e preferencialmente nacional) sobre o tema. Por outro lado, autores já clássicos – até
por se constituírem no arcabouço teórico para os estudos que serviram de alicerce a este – também foram
lidos e mencionados conforme a necessidade.
Palavras-chave: poder disciplinar; heteronormatividade; sexualidade; educação.
Introdução: Poder disciplinar, escola e sexualidade
Cruz e Freitas, em sua análise da formação da sociedade disciplinar, a partir da
leitura de Michel Foucault, afirmam que “os saberes construídos na Modernidade são
normativos e usados para a construção do poder disciplinar. O sujeito moderno, para ser
útil, dócil e produtivo, necessita ser disciplinado, daí a necessidade das normas
disciplinadoras na constituição do sujeito moderno” (CRUZ e FREITAS, 2011: 39). Na
compleição da relação saber-poder, o indivíduo moderno torna-se, assim – além do objeto
1
Graduando do curso de Bacharelado Interdisciplinar em Ciências Humanas. Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF)
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sobre o qual incide o poder disciplinar –, ele próprio, fonte do poder, já que é fonte do
saber do qual se o extrai – sendo a disciplina “a técnica específica de um poder que toma
os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos* de seu exercício”
(FOUCAULT, 2008, p.143 apud CRUZ e FREITAS, 2011: 40).
Mais do que isso, porém, o poder possui um grande potencial criador. Como
lembram Arán e Peixoto, na teoria formulada por Foucault, “o poder não atua
simplesmente oprimindo e dominando as subjetividades, mas opera de forma imediata na
sua construção” (ARÁN e PERIXOTO, 2007: 132). O sujeito moderno, como alvo de tal
técnica disciplinar do exercício do poder – que visa o adestramento, o aperfeiçoamento –
, uma vez que se torna útil, dócil e produtivo – uma vez submetido às estratégias de poder
que se lhe impõem –, torna-se também produto das relações de saber-poder.
Direcionando a discussão para a educação, Moura (2010) sugere que pensá-la “a
partir de Foucault significa empreender um esforço para analisar o papel da instituição
escolar na legitimação e efetivação dos saberes e na formação de sujeitos e subjetividades
adequados às estratégias de poder vigentes” (MOURA, 2010: 15). Ou seja, submetê-los
a um sistema de técnicas de poder disciplinador e normalizador – baseado em certo tipo
saber –, com vistas à validação desse saber e à produção de sujeitos dóceis e submissos.
A instituição escolar, desse modo, pode ser vista como uma ferramenta ou um meio
através do qual o poder disciplinar e normalizador é exercido.
Ao marcar os desvios, dividir os alunos e o saber em séries e graus, a escola
salienta as diferenças, recompensando os que se sujeitam aos movimentos
regulares impostos pelo sistema escolar. O poder normalizador permeia
todas as relações existentes no espaço escolar, criando padrões,
sancionando condutas, punindo desvios*. As punições escolares não
objetivam acabar com ou recuperar os infratores, mas diferenciá-los dos
normais, confinando-os a grupos restritos que personificam a desordem, a
loucura ou o crime (MOURA, 2010: 16).
Ao salientar diferenças e recompensar os que agem de maneira adequada, a escola
trabalha para produzir indivíduos bem ajustados aos padrões de normalidade
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estabelecidos em dada sociedade, através dos discursos reguladores. Por outro lado,
produz também os desajustados, os desviantes da norma e dos padrões constituídos.
Tudo isso permanece verdadeiro quando se debate o tratamento dado ao sexo e à
sexualidade na escola. Primeiramente, sobre a importância da sexualidade nas relações
de poder, Foucault nota que ela “não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados da
maior instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de
ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias” (FOUCAULT, 2010: 114).
Além disso, avança Loponte (2002), “a sexualidade [...] como uma invenção social se
constitui historicamente a partir de inúmeros discursos que a regulam e normatizam,
produzindo saberes e verdades” (LOPONTE, 2002: 286) a seu respeito. Madureira e
Branco (2013) confirmam que “segundo Foucault (1976/1997), a partir do final do século
XVII, o sexo não é ‘convidado a se calar’, ao contrário, o sexo é colocado em discurso, é
incitado a se manifestar” (MADUREIRA e BRANCO, 2013: 83). Tal observação de
Foucault, acerca da necessidade de se falar sobre o sexo, e se “falar publicamente”
(FOUCAULT, 2010: 30) a seu respeito, pois que é através do discurso que se o
administra, é especialmente aplicável ao espaço escolar.
Como afirma o autor, importa falar do sexo como algo que se deve “gerir, inserir
em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão
ótimo” (FOUCAULT, 2010: 31). Na posição de instituição incumbida do exercício do
poder disciplinar sobre as crianças e adolescentes, de criar padrões e fazê-los cumpriremse – e, portanto, da produção tanto de sujeitos aptos a assumirem um papel social como
dos inaptos, por não se encaixarem no estabelecido como normal – parece lógico que seja
na escola que se inicie a regulação do sexo por sua inserção em discursos úteis. E mais,
tendo, no século XIX, sido “sistematizada uma scientia sexualis, voltada para a produção
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de verdades sobre o sexo” (MADUREIRA e BRANCO, 2013: 83), cabe também à
instituição escolar participar no processo, bem como articular a sexualidade a variadas
estratégias de poder, “como a tentativa por diversos meios de reduzir o sexo à função
reprodutora” conjugal (ALENCAR, 2015: 2).
Mas não é só disso que se trata. Santos et al lembram que, de acordo com Louro,
“a escola se constitui como um espaço produtor de diferenças e que através de diversos
investimentos e estratégias atua na produção de determinados sujeitos, sexualidades e
identidades hegemônicas” (SANTOS et al, 2014: 3). Devido, em grande parte, às
diferenças produzidas na escola – e nos padrões, ali disseminados, de normalidade –, “as
pessoas, guiadas pelo senso comum, acreditam existir uma divisão muito nítida e simples
entre as identidades sexuais. Nesse sentido, haveria os “normais” (heterossexuais) e os
“anormais” (os homossexuais e os bissexuais)” (MADUREIRA e BRANCO, 2013: 83).
De modo que, além de tentar restringir o sexo à reprodução, o poder disciplinar exercido
pela instituição escolar visa igualmente à produção de um certo tipo de subjetividade
baseado em noções hegemônicas de sexualidades e identidades sexuais e de gênero.
Masculino e feminino: As formas hegemônicas
O conceito de masculinidade hegemônica parece útil para esclarecer com melhor
precisão a que se referem as ditas noções hegemônicas supramencionadas. Connell (1987)
diz ter elaborado o termo a partir da interpretação Gramsciana de hegemonia – aludindo,
dessa maneira, a uma dominação alcançada por processos culturais e através da prescrição
de determinadas formas de organização da vida particular.
Ascendency of one group of men over another achieved at the point of a gun,
or by the threat of unemployment, is not hegemony. Ascendency which is
embedded in religious doctrine and practice, mass media content, wage
structures, the design of housing, welfare/taxation policies and so forth, is
(CONNELL, 1987: 184).
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Em Gender and Power, Connell (1987), ao cunhar o termo masculinidade
hegemônica, afirma que as formas de feminilidade e masculinidade são fundadas, em sua
própria interrelação, sobre o fato [structural fact] da dominação dos homens sobre as
mulheres. É, ainda, esse fato a base sobre a qual se determinou a hegemonia de uma forma
de masculinidade sobre as outras: “‘hegemonic masculinity’ is always constructed in
relation to various subordinated masculinities as well as in relation to women”
(CONNELL, 1987: 183). Essas outras masculinidades são, assim, subordinadas por
fugirem à regra segundo a qual masculino e feminino devem permanecer diametralmente
opostos – em especial as homossexuais e bissexuais, que funcionam, afinal, como um
contraponto à forma hegemônica, inerentemente heterossexual (OLIVEIRA, 1998).
Comentando Connell, Masseder dispõe que
segundo ele, o essencialismo define a masculinidade como um conceito
universal baseado na hereditariedade biológica; o positivismo define o
masculino (numa perspectiva a-histórica) como uma estrutura única, um
arquétipo. No normativo é definida uma identidade padrão, onde a
masculinidade é o que os homens devem ser (...); e a semiótica define a
masculinidade através de um sistema de símbolos diferentes, no qual os
espaços masculino e feminino são contrastantes, sendo a masculinidade
definida como o não feminino. (MASSEDER, 2011: 53).
Colocado nesses termos, ambas a masculinidade e a feminilidade hegemônicas se
delineiam – sendo, no entanto, qualquer forma de feminilidade, por princípio, já
subordinada às formas de masculinidade. Padrões de comportamento social são fixados
para cada um dos sexos e postos em posições conflitantes, de maneira que um antagonize
o outro – com, talvez, apenas a heterossexualidade consistindo em um paradigma comum
aos dois. Qualquer desvio na conduta representa o afastamento do indivíduo da forma
hegemônica de masculinidade/feminilidade em direção a uma forma subordinada de uma
ou outra. Em suma, feminino e masculino não se podem misturar: o que pertence a um
não pode jamais pertencer ao outro e tudo o que foge a essa regra torna-se anormal.
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É, contudo, fundamental enfatizar como a sexualidade feminina é sempre
construída em função da masculina, a identidade normativa, o padrão neutro. Sobre essa
questão, Loponte (2002) aponta para Thomas Laqueur (1999) e o que já diziam estudiosas
feministas: que “é a sexualidade da mulher que está sempre em constituição, ela é a
categoria vazia”. E prossegue: “Apenas a mulher parece ter ‘gênero’, uma categoria
definida a partir de uma diferenciação sexual cuja norma sempre tem sido masculina”
(LOPONTE, 2002: 286).
Mais identidades normativas e mais desvios
Tudo isso dito, é desnecessário notar que em uma sociedade cujos padrões de
normalidade estão tão firmemente estabelecidos, desses mesmos padrões culturais deriva
uma série de desigualdades – algumas das quais já foram evidenciadas. Além disso, não
importa o quão reduzido seja o espaço de manobra e adequação no interior da norma –
isto é, nos casos em que esse espaço existe –, é em função dela que se vai determinar todo
o resto.
Em sua leitura de Judith Butler, Arán e Peixoto afirmam, sobre a identidade
normativa em nossa sociedade, que
as regras que governam a identidade inteligível são parcialmente estruturadas
a partir de uma matriz que estabelece a um só tempo uma hierarquia entre
masculino e feminino e uma heterossexualidade compulsória (ARÁN e
PEIXOTO, 2007: 133).
“Em nossa sociedade”, afirma Louro (2013), “a norma que se estabelece,
historicamente, remete ao homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão,
e essa passa a ser a referência que não precisa mais ser nomeada” (LOURO, 2013: 17).
Todos os sujeitos sociais que aí não se inserem, estes sim serão nomeados, e o serão a
partir de tal referência. Toda diferença o é primeiramente em relação a essa identidade
normativa: a mulher é “o outro” do sujeito masculino, o “segundo sexo”; a pele negra é
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“de cor”, porque a cor branca deixa de sê-lo ao se tornar o padrão neutro de comparação
para as outras; o sujeito homossexual é aquele que faz um mau uso de sua sexualidade,
visto como a sexualidade heterossexual foi a que se constituiu historicamente como
“certa”, normal.
Assim, os sujeitos que escapam ou se distanciam do padrão passam a ser
considerados problemáticos, justamente porque aqueles cujo comportamento é
considerado normal ocupam a “posição não problemática” (LOURO, 2013: 46) – e, dirse-ia, hierarquicamente superior: por se constituir na razão pela qual se classificam os
divergentes como problemáticos, tal posição torna-se automaticamente preponderante
sobre as outras, e as subordina.
Meyer (2013) fala de estudos contemporâneos que procuram descobrir como e em
que instâncias sociais se dá a produção da norma e da diferença. Tais estudos, sobre o
espaço escolar e suas práticas pedagógicas, indicam exatamente o mesmo que Louro
pontuou quanto à identidade que é a norma em nossa sociedade, “que é aceita e legitimada
e que se torna, por isso mesmo, quase invisível” (MEYER, 2013: 26). Acrescenta Meyer
que operamos sempre partindo dessa identidade e da premissa de sua invisibilidade.
Ainda sobre a identidade normal em nossa sociedade, Furlani (2013), ao discursar
sobre trabalho de Tomaz Tadeu da Silva (2001), nota o que primeiro apontaram “grupos
culturais subordinados” norte-americanos: o “currículo escolar como local de expressão
do privilégio da cultura branca masculina, europeia, heterossexual” (FURLANI, 2013:
80). Isso considerado, lembram Longaray e Ribeiro (2010) que é precisamente o ambiente
escolar que “determina o que os sujeitos podem ou não podem fazer, posicionando-os na
sociedade”. Citada pelas autoras na sequência do texto, Louro (apud LONGARAY e
RIBEIRO, 2010: 1) sumariza: “a escola está absolutamente empenhada em garantir que
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os seus meninos e meninas se tornem homens e mulheres ‘verdadeiros’ que correspondam
às formas hegemônicas de masculinidade e feminilidade”, participando, assim, (a escola)
de forma infalível na construção dos sujeitos e de suas identidades de gênero e sexual
(LONGARAY e RIBEIRO, 2010) – bem como, possivelmente, incentivando “o
preconceito, a discriminação, o sexismo”, já que
na escola, o currículo, as disciplinas, as normas regimentais, as formas
de avaliação, os materiais didáticos, a linguagem, constituem-se como
instâncias que refletem e reproduzem as desigualdades de gênero, de
sexo, de raça, etc. (FURLANI, 2013: 70).
A instituição escolar é, desse modo, uma instância social que se pode, sem
dúvidas, considerar como (re)produtora/perpetuadora de uma ou outra forma de
hegemonia. Colocando em termos claros, não existe disputa sobre se a escola se orienta
ou não pelo padrão normativo exposto acima – ele é, sim, claramente, sua referência, e
não há nada de novo em reafirmar tal fato. Segundo Louro, é consenso que a instituição
escolar se norteia – e tem a obrigação social de fazê-lo – pela ideia de que “haveria apenas
um modo adequado, legítimo, normal de masculinidade e de feminilidade e uma única
forma sadia e normal de sexualidade, a heterossexualidade” (LOURO, 2013: 45-46).
Longaray e Ribeiro ecoam Louro, partindo de uma importante vinculação da
heterossexualidade compulsória e naturalizada (BUTLER, 2010) às formas hegemônicas
de masculinidade e feminilidade:
A heterossexualidade, neste sentido, é reforçada na sociedade, e
também na escola*, como a única forma ‘normal’, natural e legítima
de expressar os desejos e prazeres; dessa forma há um conjunto de
regras, normas, valores, mecanismos que busca definir a
heterossexualidade
como
a
identidade
sexual
‘normal’
(LONGARAY e RIBEIRO, 2010: 2).
No mesmo tópico, Louro complementa, a respeito da construção da
heterossexualidade em sua correlação com a homossexualidade, que “a produção da
heterossexualidade é acompanhada pela rejeição da homossexualidade. Uma rejeição que
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se expressa, muitas vezes, por declarada homofobia” (LOURO, 2000: 80 apud
LONGARAY e RIBEIRO, 2010: 2).
Alguns exemplos
Em estudo sobre a introdução do debate da sexualidade no currículo escolar, na
forma da educação sexual, Deborah Britzman (2013) levanta questões importantes.
Primeiramente, segundo a autora, uma investigação sobre como a sexualidade tem sido
abordada nas escolas, ao longo do tempo, permitiria um melhor entendimento de “como
a educação sexual tem sido usada para sustentar desigualdades sociais e de gênero, bem
como hierarquias sociais” (BRITZMAN, 2013: 94). Quando o sexo é inserido no
currículo escolar, ela afirma,
nós dificilmente podemos separar seus objetivos e fantasias das considerações
históricas de ansiedades, perigos e discursos predatórios que parecem catalogar
certos tipos de sexo como inteligíveis, enquanto outros tipos são relegados ao
domínio do impensável e do moralmente repreensível (BRITZMAN,
2013: 90).
Refletindo, pois, sobre os “quatro grandes conjuntos estratégicos” 2, percebidos
por Foucault, “que desenvolvem dispositivos específicos de saber e poder a respeito do
sexo” (FOUCAULT, 2010: 114-115), a autora afirma que “inauguraram a crença agora
comum de que o sexo deve também ser equacionado com perigo” (BRITZMAN, 2013:
99). Disso resultou uma “pedagogia de produção da normalidade”, baseada na ideia de
que uma forma adequada de pedagogia seria capaz de oferecer proteção contra os perigos
do sexo e produzir uma sexualidade normal. Através do que Britzman chamou de “formas
normais” de educação sexual, “as crianças devem ser constituídas como uma população
problema que necessita de uma educação ou de uma normalização” (BRITZMAN, 2013:
Sendo estes, a “histerização do corpo da mulher”, a “pedagogização do sexo da criança”, a “socialização
das condutas de procriação” e a “psiquiatrização do prazer perverso”, aos quais correspondem,
respectivamente, quatro figuras que se tornaram o objeto central dos “empreendimentos do saber”: a
“mulher histérica”, a “criança masturbadora”, o “casal malthusiano” e o “adulto perverso” (FOUCAULT,
2013: 115-116).
2
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100). Dessa forma, dentro daquilo que é considerado normal, há uma especial
preocupação em fazer com que o sexo esteja limitado à utilidade e em restringir a
sexualidade à “escolha apropriada de objeto e ao sexo reprodutivo marital” (BRITZMAN,
2013: 97). Na forma normativa da educação, o foco é colocado, portanto, sobre esse
objeto que seria a escolha correta, assim como em privilegiar as subjetividades tidas como
normais e confinar a sexualidade à reprodução, contendo a curiosidade sobre outras
formas do seu exercício: “a educação tenta instalar a culpa relativamente à sexualidade e
essa culpa está em tensão com a produção do prazer” (BRITZMAN, 2013: 98).
Todavia, o modo normativo de subjetivação, instituído pelo poder disciplinar nas
relações presentes na instituição escolar, vai bastante além da educação sexual. Os
discursos normalizadores estão presentes em quase todas as disciplinas, assim como em
outros momentos da experiência escolar – “a pedagogia da sexualidade”, nas palavras de
Louro, “é muitas vezes sutil, discreta, contínua, mas, quase sempre, eficiente e duradoura”
(LOURO, 2013: 17).
A partir de artigo de Philip R. D. Corrigan, sobre sua vivência escolar, Louro
(2013) fala a respeito da fabricação de certa forma masculinidade, numa grande escola
inglesa. Acompanhando a narrativa de Corrigan, Louro conta como “a ‘produção do
menino’ era um projeto amplo, integral, que se desdobrava em inúmeras situações e que
tinha como alvo uma determinada forma de masculinidade [...] dura, forjada no esporte,
na competição e numa violência consentida” (LOURO, 2013: 17). Em contraponto à
experiência de Corrigan, Louro coloca a sua própria, numa escola brasileira
predominantemente feminina. Ali, os métodos e, sobretudo, os objetivos eram distintos:
em perfeita oposição à dureza competitiva ensinada aos meninos ingleses, as meninas de
sua escola eram educadas para a submissão, a discrição e uma obediência recatada. “Os
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propósitos desses investimentos escolares”, ela afirma, “eram a produção de um homem
e de uma mulher ‘civilizados’, capazes de viver em coerência e adequação nas sociedades
inglesa e brasileira, respectivamente”. Em outras palavras, “a formação de homens e
mulheres ‘de verdade’” (LOURO, 2013: 18).
Várias abordagens sobre a construção de identidades masculinas ou femininas no
ambiente escolar podem ser realizadas. A propósito da formação das masculinidades,
Welzer-Lang aponta para a dominação (sobre as mulheres), bem como para a homofobia,
como fortemente presentes neste processo. Observa que a educação de meninos em
lugares monossexuados – embora, como se está vendo, não só nesses lugares, mas
também em espaços de convivência mútua de meninos e meninas – lhes infunde a idéia
de que “para ser um (verdadeiro) homem, eles devem combater os aspectos que poderiam
fazê-los serem associados às mulheres” (WELZER-LANG, 2001: 462). Ou seja, lhes
impõe o – já referido – conceito de masculinidade hegemônica, aquela que busca “excluir
qualquer variação de comportamento masculino que não se adéqüe a seus preceitos”
(OLIVEIRA, 1998) – nomeadamente, algum desvio da norma heterossexual, assim como
padrões de comportamento social vinculados à posição da mulher.
Corsino e Auad (2014) fazem uma análise das relações raciais e de gênero nas
aulas de educação física. Durante sua pesquisa de campo em um trabalho anterior, Auad
percebeu como
as professoras potencializavam as diferenças hierarquizadas entre meninas e
meninos, reforçando habilidades “das” meninas e outras “dos” meninos, de
modo a estimular uma interiorização das expectativas do que é mais adequado
aos meninos e, em oposição, do que é propício às meninas (CORSINO e
AUAD, 2014: 65).
Essa diferenciação acabava por criar um inevitável trânsito de algumas crianças
por territórios que, pela norma, não lhes pertencia – ou, nos termos de Louro, elas saíam
daquela “posição não problemática” dos que se enquadram na norma e aceitam de bom
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grado a regulação infligida pelo sistema escolar. As crianças que “cruzavam as fronteiras
estabelecidas” eram, desse modo, “vistas como meninas e meninos que saíam dos
padrões, como um desvio, ou seja, como um caso que necessitaria de atenção individual,
pois tais transgressões eram consideradas problemas” (idem).
Os autores chamam ainda a atenção para a prática comum de separação de
meninos e meninas nas classes de educação física. Segundo afirmam, tal procedimento é
motivado “pela falsa sensação de igualdade e, principalmente, pelo pretendido
silenciamento dos conflitos de gênero” (CORSINO e AUAD, 2014: 68). Todavia, como
observou Corsino em pesquisa prévia, os conflitos nunca desapareciam por completo.
Somente em parte era alcançado o seu silenciamento, já que, ainda que velados – em
comparação aos mais óbvios e graves conflitos das aulas “misturadas” – os choques
permaneciam presentes, evidenciando-se em ocasiões em que, por exemplo, “alguns
meninos excluíam os colegas, como foi o caso do menino que privou o colega de jogar,
alegando que ele era uma ‘bicha’” (CORSINO e AUAD, 2014: 70). Ou seja, a separação
serve apenas como uma cortina de fumaça para o problema das relações de gênero na
escola. Mesmo que não o resolva inteiramente no que afeta aos professores, essa
separação evita o trabalho de se lidar com conflitos mais severos e possibilita que se feche
os olhos aos conflitos menores existentes – podendo ser considerados mesmo como parte
do processo regulador e normalizador, na forma de uma violência consentida. Ademais,
permite que se mantenha uma distinção entre o que pertence ao universo masculino e o
que pertence ao feminino – que, caso contrário, se interpenetrariam.
Outro bom exemplo sobre a reprodução de um discurso normalizador na sala de
aula é fornecido por Luciana Loponte (2002). O campo das artes é historicamente
dominado pelos homens, em razão, parcialmente, do que teoriza a autora por meio do
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conceito de “pedagogia do feminino” 3. Mas é em sua experiência como professora que
se manifesta nitidamente de que modo um determinado discurso naturalizante pode se
perpetuar na escola:
Como professora de artes plásticas na educação básica, por muito tempo
reproduzi nas aulas este modo de ver a história da arte como algo “dado”,
imutável, uma mera narrativa de fatos cronologicamente organizados nos
livros de que dispunha. Para uma leitura desavisada, é mais do que “natural”
que os homens sejam líderes dos movimentos artísticos e que a representação
de imagens de mulheres predomine sobre as produções artísticas feitas por elas
próprias. É esse modo de ver que prevalece nos livros mais comuns e de mais
fácil acesso sobre a arte, inclusive àqueles dirigidos às crianças (LOPONTE,
2002: 288).
Acompanhando o que se dá nos livros de arte ou nas aulas de educação física, os
processos de naturalização, diferenciação e normalização se estendem por toda parte no
currículo escolar. Somente alguns exemplos foram citados, mas poder-se-ia facilmente
citar outros tantos de disciplinas como a biologia, a história e até a matemática (SOUZA
e FONSECA, 2010) etc..
Considerações finais
Partindo do argumento de Pilar Pérez-Soba (2000), segundo o qual a “ideologia
que legitima e sustenta o patriarcado” propaga-se através da educação – visto como esta
“é um dos instrumentos fundamentais com que todo sistema conta para perpetuar-se”
(PÉREZ-SOBA 2000: 182 apud COUTINHO, 2007) –, Coutinho afirma que, portanto,
as próprias mulheres acabam “absorvidas pelo sistema”, de modo que “elas mesmas
corroborem sua discriminação, justificada pelo longo processo de naturalização”
(COUTINHO, 2007) que vêm sofrendo há séculos. Tudo isso só ocorre porque a
identidade que se fez norma em nossa sociedade remete ao homem branco de classe
“Uma pedagogia visual que naturaliza e legitima o corpo feminino como objeto de contemplação,
tornando esse modo de ver particular como a única ‘verdade’ possível” (LOPONTE, 2002: 284).
3
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média, cristão, cis 4 e heterossexual – e porque a norma se faz cumprir, entre outros
lugares, na escola.
É ainda interessante repassar a importância de todos os “investimentos escolares”
extracurriculares para “a formação de homens e mulheres ‘de verdade’”, além das outras
variadas vivências experimentadas no espaço escolar, que contribuem para reafirmar e
validar o padrão único que deve ser seguido por todos. Louro lembra que, desde muito
cedo, crianças aprendem “piadas e gozações, apelidos e gestos para dirigirem àqueles e
àquelas que não se ajustam aos padrões de gênero e de sexualidade admitidos na cultura
em que vivem” (LOURO, 2013: 28). Sendo a escola o principal local de sociabilidade
dessas crianças, é ali onde reproduzem tudo isso. Alarmantemente, tais hostilidades são,
porém, aceitas até com menos consternação do que o comportamento desviante daqueles
a quem são dirigidas.
Por fim, sobre “os apelos em prol da tolerância e do respeito aos diferentes”, Louro
chama atenção para a necessidade de se abandonar a ingenuidade que os sustenta, “que
ignora ou subestima as histórias de subordinação experimentadas por alguns grupos
sociais e, ao mesmo tempo, dar-se conta da assimetria que está implicada na ideia de
tolerância” (LOURO, 2013: 50). Sem dúvidas, a ideia por trás da tolerância aos diferentes
sugere a superioridade de um – aquele que tolera – sobre o outro – o tolerado. Em termos
ainda mais claros: a assimetria é tamanha que se insinua que a pessoa que não corresponde
à norma estabelecida precisaria obter uma autorização para ser diferente. Em suma, se
são apenas esses os avanços feitos em direção a uma educação igualitária, ainda há um
longo caminho pela frente até que se chegue lá.
4
Aqueles que, ao nascer, foram designados com um gênero e se identificam com ele.
*Grifos meus.
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Referências
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BRANCO, Angela Maria Cristina Uchôa de Abreu; MADUREIRA, Ana Flávia do
Amaral. Identidades Sexuais Não-hegemônicas: Processos Identitários e Estratégias para
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ESTRESSE OCUPACIONAL EM MULHERES POLICIAIS MILITARES DE CAMPO GRANDE,
MATO GROSSO DO SUL.
Drª Ana Maria Gomes – Professora - UFMS
Esp. Mariene L F. Naegeli – FAF da PMMS
Considerações preliminares
Um tema que tem preocupado os pesquisadores e profissionais que estudam a
questão da saúde é o da qualidade de vida. No entanto, não podemos falar de qualidade
de vida sem compreender que as condições de vida das pessoas variam segundo o grupo
social no qual estão inseridas e que a desigualdade, consequência de menor parcela de
direitos e poder, permeia o cotidiano dos diferentes grupos que compõem a sociedade.
Essa abordagem pressupõe também a redução dessa desigualdade se queremos atingir
uma vida saudável.
Em particular as mulheres, submetidas à assimetria existente entre o gênero
feminino e gênero masculino, veem o problema de manter a qualidade de vida se
apresentar de forma mais premente. Divididas entre o mundo do trabalho e as inúmeras
tarefas atribuídas tradicionalmente à mulher, muitas profissionais se ressentem de um
cotidiano estafante, como assinala Carrasco (2003). A expressão dupla (ou tripla) jornada
de trabalho, indica que, mesmo trabalhando fora de casa, ainda são atribuídos à mulher
os serviços domésticos (ou sua supervisão) e o cuidado com os filhos, sendo que a divisão
das tarefas domésticas é, em grande medida, uma exceção que foge à regra.
“Em consequência, quase solitariamente colocadas diante do problema
de ‘conciliar’ tempos e trabalhos (familiar e no trabalho fora do lar), as
mulheres sofrem como ’variável de ajuste’ entre os rigores de ambos os
trabalhos: as necessidades humanas (biológicas e relacionais) e as
necessidades produtivas e organizativas da empresa, com custos
importantes - particularmente para elas – da qualidade de vida.” (p.26).
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Um relatório da Organização Internacional do Trabalho (2012), indica que,
anualmente no Brasil, as mulheres trabalham dez dias a mais do que os homens, somando
o tempo trabalhado dentro e fora de casa. A jornada semanal das mulheres costuma ser
de 58 horas, enquanto a dos homens de 52,9 horas. Isso equivale há 20 horas a mais por
mês. Ainda para a OIT a mulher entrou no mercado de trabalho e terminou acumulando
as atividades fora de casa, assim como com as atividades domésticas e familiares. Pois a
saída da mulher do lar não foi acompanhada por uma mudança na divisão sexual do
trabalho.
Conciliar trabalho e vida pessoal ainda é um dos maiores desafios das pessoas,
e em particular das mulheres, em face às muitas exigências do mundo moderno. Dividido
entre obrigações e vida pessoal, muitas das profissionais se ressentem de não ter tempo
para a família, lazer e saúde, e se “apavoram” quando começam a perceber e sentir os
sinais de estresse em seu corpo, decorrente da agitação, pressões, cobranças, etc.
Uma das profissões nas quais a mulher se integrou a partir da segunda metade do
sec. XX foi a de segurança e, para Minayo et al (2007, p. 2769), dentre as várias
profissões, os profissionais de segurança correspondem a um dos segmentos mais
vulneráveis aos acidentes e à morte no exercício de sua profissão e estão entre os que
mais sofrem de estresse, pois os riscos que correm são mais elevados, mesmo para
aqueles/as que exercem quase que exclusivamente atividades de gestão e comando. A
natureza do serviço do/a policial militar apresenta risco de morte, contato com a violência,
significativa responsabilidade pela vida de outras pessoas, atenção para perceber qualquer
situação de perigo e agir de forma preventiva, sem que haja perda do controle da situação.
O estresse ocupacional, segundo Codo et al. (1995), leva a sintomas como fadiga,
ansiedade, perda de concentração, insônia, predisposição a acidentes, gastrite, etc.
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No atendimento psicoterápico para mulheres policiais em Campo Grande, Mato
Grosso do Sul, observamos relatos de situações de estresse serem expressos através de
conflito com os filhos e parceiro. A mulher queixa-se de que se tornou impaciente, mais
sensível ao barulho e às atividades das crianças, grita e bate nelas com mais frequência,
fica distante ou queixosa com o companheiro, aumentando os conflitos entre o casal.
Ao estudar a saúde das policiais, consideramos fundamental adotar a perspectiva
das relações sociais de gênero, como o fazem Merchant-Hamann e Costa (2000, p. 19),
que frisam a importância deste conceito para a saúde. “O olhar de gênero se afasta do
enfoque restrito ao risco epidemiológico para enxergar os fenômenos na perspectiva de
condições e situações de vulnerabilidade, que confere um maior alcance, integralidade e
contextualização.” Sendo que esse enfoque, para esses autores, “…constitui uma das mais
importantes contribuições para desnaturalizar os fenômenos e os eventos ligados ao
processo saúde-doença…”
Adotar a perspectiva das relações sociais de gênero é acompanhar Louro (1997,
p. 103), quando diz:
“Uma compreensão mais ampla de gênero exige que pensemos não
somente que os sujeitos se fazem homem e mulher num processo
continuado, dinâmico (portanto não dado e acabado no momento do
nascimento, mas sim construído através de práticas sociais
masculinizantes e feminizantes, em consonância com as diversas
concepções de cada sociedade); como também nos leva a pensar que
gênero é mais do que uma identidade aprendida, é uma categoria imersa
nas instituições sociais (o que implica admitir que a justiça, a escola, a
igreja, etc. são ‘generificadas’, ou seja, expressam as relações sociais
de gênero). Em todas essas afirmações está presente, sem dúvida, a
ideia de formação, socialização ou educação dos sujeitos”.
Este trabalho busca compreender o estresse ocupacional entre mulheres da Polícia
Militar (PM) em Campo Grande, estado de Mato Grosso do Sul, a partir da perspectiva
teórica das relações sociais de gênero, considerando não só o espaço de atuação
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profissional, mas também o cotidiano que estas mulheres enfrentam, em todas as
instancias de sua vida. Consideramos também, que o estudo do estresse ocupacional em
mulheres policiais, além de ser um tema atual, oportuniza dar maior visibilidade a esse
grupo social.
Os dados para este trabalho foram coletados a partir de dois procedimentos:
- Relatos feitos em atendimento psicoterápico oferecido dentro da instituição.
- Entrevistas com mulheres Policiais Militares.
Os eixos que nortearam nossa pesquisa foram os seguintes: fatores que dificultam
seu ambiente de trabalho por ser mulher, impacto do trabalho profissional na vida desta,
ascensão na carreira e desafios enfrentados dentro da corporação.
Os nomes usados neste trabalho são fictícios, visando preservar a identidade das
entrevistadas.
A mulher na polícia militar
A Polícia Militar, criada no Brasil no século XIX, é um órgão que tem entre suas
responsabilidades, exercer a segurança pública para a preservação da ordem e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio. Suas principais funções são apurar infrações
penais contra a ordem pública ou em detrimento de bens, serviços e interesses do Estado
ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja
prática tenha repercussão interestadual.
Em Mato Grosso do Sul a Polícia Militar é encarregada da segurança em um Estado
cujo território possui uma área de 358.158,7 km², com uma população atualmente
estimada em 2.000.000 de habitantes, e uma faixa de fronteira com 1.517 km de extensão,
sendo 1.131 km de fronteira com o Paraguai e 386 km com a Bolívia.
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Tradicionalmente confinada ao trabalho doméstico, aos cuidados dos filhos, ou a
profissões ligadas tradicionalmente a elas, tais como professoras e enfermeiras, as
mulheres brasileiras só vão se incorporar massivamente ao mercado de trabalho a partir
da década de 1980. Na policia militar a admissão de mulheres, iniciou-se no Estado de
São Paulo em 1955, mas a grande concentração de admissões ocorreu nos anos 1980.
(Conceição e Souza, 2013)
Em Mato Grosso do Sul, a primeira turma de mulheres a ser incluída na PM foi
de soldados no ano de 1982 e a primeira turma de oficiais foi em 1984.
No entanto, segundo estudiosos da questão da mulher na PM em vários estados, a
inclusão do contingente feminino não foi uma demanda social e sim uma motivação
interna vinda da própria policia. Ainda segundo Conceição e Souza, (p. 2). “A intenção
era humanizar a imagem corporativa, na época de redemocratização política do país”.
A mulher, a partir do momento em que decide ingressar na PM, vai enfrentar
barreiras biológicas e sociais, por sua condição de mulher. Graça declara que o que a fez
continuar, foi a solidariedade de amigas mulheres.
“Tive muitas dificuldades, minha filha com um ano e meio, fazer
curso de formação dia todo, família não morava aqui, as amigas
ajudaram, pensei em desistir, mas as amigas não deixaram”.
A mulher PM vai enfrentar desafios tanto no interior da corporação, como em seu
cotidiano fora da PM, pois estas como outras mulheres profissionais, ainda estão
encarregadas de todo o trabalho na esfera privada de suas vidas.
Ao serem perguntadas sobre a forma em que iniciam seu dia, as entrevistadas
relatam iniciar já cansada, indisposta, sempre correndo, com horários para cumprir,
ocupada com os afazeres domésticos e com os filhos. Observamos através das falas destas
o impacto que as responsabilidades do trabalho doméstico tem na vida dessas mulheres.
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“Sim estresse sim todos os dias, você tem que atender seu meio
familiar”. (Graça)
Diferentemente do homem, cujo cotidiano está organizado em torno de atividades
no espaço público e, por essa razão sua ausência da casa já é esperada e aceita como
normal, a mulher é cobrada quando se ausenta do espaço doméstico.
“Você dedica muito tempo em horas trabalhadas, você deixa de
ter tempo para a família e é cobrada por ela também”. (Graça)
Como subir na hierarquia militar e ainda enfrentar trabalho, casa e estudar para
ascender na PM?
“Acaba não tendo tempo para estudar, tem que trabalhar, tem a
casa.”. (Patrícia)
Elas demonstram perceber a diferença que existe entre o cotidiano delas e o
dos homens sem, no entanto, terem consciência da desigualdade dessa situação.
“Um homem que trabalha 12h, ele vai chegar em casa vai tomar
café se tiver pronto e vai dormir. A mulher não, ao chegar a casa
tem jornada dupla e tripla, não sei se você vai acostumando a
essa carga e ao estresse”. (Deise)
As características do cotidiano do/a profissional PM, diferem de outros tipos de
trabalho, como coloca Graça:
“Por conta da profissão até por conta da graduação é um
ambiente tenso, temos que pensar lá fora na família e quando vai
para rua também, o ambiente da PM é diferenciado dos outros
ambientes de trabalho”.
Apesar da inserção da mulher na PM datar já de muito tempo, ela ainda permanece
em pequeno número e com barreiras para obter promoções. Elas terão menos chances de
ingressar na carreira, pois esta é limitada pela quantidade de vagas disponíveis no
concurso para mulheres, depois têm que passar por teste de aptidão física que é pensada
para homens. Quando dentro da corporação, discriminação por ser mulher, discriminação
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nas tarefas, menos possibilidades de alcançar um cargo superior. Os relatos abaixo
mostram as dificuldades encontradas por elas:
“Sempre tem as piadinhas, como: Você é do administrativo? Tem
cara de ser do administrativo. Você já prendeu alguém? Sabe
segurar numa arma? E etc”. (Célia)
Milene corrobora com o que diz a colega:
“Meu relacionamento com os colegas é bom apesar de sermos
excluídas algumas vezes por sermos mulheres”.
Espera-se que a mulher ocupe o lugar reservado a ela pela sociedade.
“No meio masculino querem que você vá pra cozinha, vai pra
limpeza, você é muito mais cobrada, eu já senti isso, colegas
minhas colegas, você fazer o mesmo que o homem faz e você
ainda não está fazendo bem feito”. (Graça)
Apesar da arma e do uniforme, ela ainda é vista como objeto sexual por muitos
colegas.
“Cantada de oficial casado, chamar assim: quero sair com você,
na cara dura mesmo”. “Não vejo mudança (na corporação), uma
mulher comandante geral acho impossível”. (Deise)
Da condição de mulher PM.
Mas não é só a hierarquia que diferencia a PM de outras profissionais, pois, se por
um lado hoje no Brasil, balas perdidas matam crianças e adolescente, homens e mulheres,
por outro lado nos últimos anos no Brasil, o número de policiais mortos ou atacados
mesmo estando de roupas comuns e fora de serviço, é grande. Graça relata que mesmo
estando fora do trabalho, a tensão pelo fato de ser PM permanece.
“Leva para dentro de casa, quando você está de civil você sai na
rua com medo, se cuidando e todo lugar que você vai. Cuidado
24 horas acaba sendo um estresse como, por exemplo, ataques
do PCC”.
Bezerra, (2012, p. 21) corrobora com essa reflexão quando diz: “Para lidar com o
sentimento de insegurança, a condição policial acaba por exigir um estilo de vida
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diferenciado. O exercício da atividade profissional invade a vida social e pessoal. Sua
vida como um todo tem como parâmetro a condição policial”.
Do ponto de vista biológico, mulheres e homens são, inquestionavelmente
diferentes. São as práticas sociais masculinizantes e feminizantes que tornam essas
diferenças, desigualdade. O mundo do trabalho foi pensado e construído para os homens,
da mesma forma em que a estrutura do espaço doméstico foi pensada para a mulher. Do
ponto de vista das representações do masculino e do feminino em nossa sociedade, um
está excluído do espaço do outro. Dessa maneira na PM, as características fisiológicas da
mulher não são contempladas ou respeitadas, pois como afirmam mais acima Conceição
e Souza (2013), a entrada de mulheres na PM, não foi acompanhada de adequação de sua
estrutura e equipamentos para as necessidades destas.
Graça retrata essa realidade em sua fala:
“Tem algo particular da mulher, a TPM, menstruação, às vezes
quando você vai viajar ficar em algum lugar que não tem espaço
para mulher e você tem q se adaptar , cuidar do comportamento
roupa, ambiente mais masculino, se adaptar no espaço para
homem”.
Deise é outro exemplo pelo que passa a mulher PM.
“Outro fator é fisiológico quando fica menstruada, quando fui
pra rua operacional trânsito, para me adaptar tomei 4 meses de
anticoncepcional para ver se dava ou não para saber se meu
organismo tinha como se adaptar”.
Como afirma Bezerra (2012, p. 21), a estrutura militar tem suas bases na
hierarquia e na disciplina e elas fazem parte da cultura da instituição policial militar.
Então uma ordem não pode ser questionada, não importa a razão.
“Teve uma vez, quando estava amamentando, um superior meu
tinha me liberado para amamentar minha filha, mas ele (o outro)
não. Ele disse: vamos atender mais essa ocorrência e minha
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farda toda molhada de leite e por isso minha filha desmamou.
Meu peito duro e encharcando, essa situação”.
A humilhação de ter a roupa molhada de leite e a preocupação com a filha,
decorrência de sua condição de mulher, aparece no relato de Deise. Por essa razão, a
criação de uma estrutura, que também contemple as necessidades específicas da mulher,
deve ser criada no interior da PM, permitindo a esta desenvolver seu trabalho sem o
adicional de estresse em razão das diferenças fisiológicas entre homens e mulheres.
A hierarquia masculina
Cappelle e Melo, (2010, p. 19) consideram que “A Polícia Militar, analisada como
um espaço organizacional de interação social, pode ser considerada uma espécie de gueto
masculino no qual se admitiu o ingresso de mulheres há pouco tempo”. Portanto, os
valores desse gueto são valores tradicionalmente associados ao masculino. Dulce
Whitaker, (1989, p. 64) é uma das autoras que mostra como os sexos masculinos e
femininos são socializados para se tornarem homens e mulheres tais como a sociedade
em que estão inseridos determina que se tornem. Os homens devem ser corajosos
enfrentando todos os perigos, matando feras, enfrentando dragões, enquanto que as
mulheres devem ser frágeis, dóceis com pouca iniciativa esperando que os homens
venham salvá-las. Enquanto as mulheres, diz Whitaker,
“No que se refere à construção da representação do masculino e do feminino, espera-se das
meninas e depois das mulheres, comportamento dócil, meigo,
obediente, enquanto as atitudes agressivas dos meninos são justificadas,
com a alegação de ser esta uma das suas características naturais. Na
escola alguns mestres (ou mestras) chegam a confessar serem
involuntariamente mais afetuosos com as meninas e mais exigentes com
os meninos porque menino tem que ser preparado para a iniciativa,
enquanto menina deve ser incentivada à doçura, ao desprendimento e a
doação de si mesma.” (p.64)
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A mulher, socializada para corresponder a valores como submissão, sensibilidade
e fragilidade, ao adentrar em uma corporação na qual os valores como coragem,
agressividade e força são valores predominantes e esperados de seus profissionais, tem
que fazer um esforço para mudar esses comportamentos levando a ansiedade e, muitas
vezes, a estresse.
“Mudei muito após minha entrada na polícia militar, antes era
extremamente sensível e submissa. E psicologicamente também,
sinto algumas dificuldades, o que pode ter levado a alguns
problemas de saúde, hoje tenho diabetes tipo 1 auto-imune”.
(Célia)
Até a família nota a diferença entre o antes e o depois da entrada na PM, diz Célia:
“Fui casada por 13 anos com um policial militar, e entrei na
polícia depois de casada. Ele sempre dizia que eu não era a
mesma desde o dia que entrei na escola de formação de soldado”.
A mulher considerada meiga, frágil, sentimental tem que passar para um
comportamento no qual os valores associados ao masculino, como frieza, racionalidade,
destemor são considerados os adequados ao PM. No entanto ao chegarem ao lar, os
valores se invertem.
“Nós PM somos pessoas, é como se nós não tivéssemos
sentimento na hora de autuar uma conduta, ah não sei, você tem
que ir lá e agir, você trás para você, filhos, seu marido namorado
e você tem que chegar em casa e ser totalmente diferente pelo
menos para mim é difícil”. (Milene)
Junto com a farda, ela coloca uma carapuça e essa carapuça corresponde a um
desgaste grande.
”As vezes que tive que colocar o azulão para atuar na atividade
fim, sinto a necessidade de me vestir de uma carapuça de
“operacional”, e de uma agressividade que sei que não tenho. É
um esforço muito grande para mim.” (Célia)
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Os valores esperados como profissionais no interior da corporação, são aqueles
identificados com o masculino. No entanto, no interior da família o esperado é que a
mulher continue a ser doce, meiga, frágil. Dessa forma a mulher PM, tem que passar de
um papel ao outro, provocando desgaste e tensão e levando ao estresse.
“Tive muita dificuldade, chorava muito escondido, e tinha
vergonha por ser muito sensível. Mas precisava ter minha
independência financeira”. (Célia)
O treinamento e as exigências da PM considerado ainda enquanto um gueto
masculino, como referem Cappelle e Melo acima, foram pensados para homens, em
consequência, conflitos dessa ordem vão aparecer para a mulher PM.
Patrícia deixa claro esse conflito, quando diz:
“A dificuldade foi no 1º mês, o curso de formação acaba sendo
um choque para nós mulheres, não da ralação, mas sim da minha
vaidade, de repente você se vê de uma forma horrível cabelo
amarrado assim (preso), calça jeans e camiseta”.
Afinal, a mulher foi socializada para sempre estar bonita, cheirosa e bem arrumada.
Ela é socializada tendo como objetivo um determinado padrão de beleza para a mulher.
Como reverter isso?
Milene relata como essas exigências se transformam em barreiras para a mulher
ocupar mais espaço na PM.
“Porem, o curso de patrulhamento não será possível fazer, pois
exige que raspem o cabelo, o que eu não faria por não achar
coerente”.
Além da falta de adequação de estrutura e equipamento voltados para a mulher,
Cappelle e Melo (2010, p.19), observam que essa incorporação vem acompanhada da
reprodução de práticas sociais excludentes, reproduzindo os papeis de gênero destinado
às mulheres, afirma Calazans, (2004, apud BEZERRA, 2012, p. 22).
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“As mulheres ingressaram nas polícias, no Brasil, no momento de
reestruturação produtiva, de ampliação da globalização e de
feminização do mundo do trabalho. Dessa forma observa-se que mesmo
na inclusão das mulheres na força policial, é evidente a permanência de
modos de exclusão-dominação, posto que suas habilidades colocam-se
como inatas, e são encaradas simplesmente como um modo “natural”
de ser mulher.”
Graça chama a atenção para características femininas que poderiam ajudar muito a
humanizar a PM, aproveitando melhor os recursos oferecidos por estas.
“A policia deveria dar mais oportunidade para mulher, a partir
do momento que abre o concurso somente 30% que é para as
mulheres. Eu espero alguma mudança, as mulheres são mais
humanas elas conseguem ver o outro ajudar não com tanta
frieza”.
Mas para valorizar as habilidades femininas, ao invés de esperar que a mulher
corresponda aos padrões masculinos, essas habilidades não só teriam que ser valorizadas,
mas também os próprios valores que imperam na PM, teriam que ser desconstruídos e
reconstruídos, a partir de valores mais equânimes entre o gênero feminino e o gênero
masculino.
Apesar das desigualdades existentes, as entrevistadas consideram que existem
ganhos em relação ao crescimento pessoal ao integrar a PM:
“Depois que entrei na PM, quando a gente entra no curso de
formação, sou uma pessoa muito melhor depois que entrei na
PM”. (Patrícia)
A mesma entrevistada continua, nomeando todas as conquistas ao se tornar uma
mulher PM.
“Tudo o que eu tenho e o que sou conquistei na PM por isso
tenho o maior orgulho de ser policial. Nós superamos nossos
limites, superamos as dificuldades, se existe medo a gente
consegue vencer. Sou outra pessoa depois que entrei na policia.
Eu consegui, depois do curso, me libertar do relacionamento que
só me fazia mal, vê que não precisa de ninguém de nada, foi um
ganho para minha vida, mais independente mais segura, faltava
força, fortalecimento eu tirei de letra, serve até hoje vejo que sou
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totalmente independente. Agente tem que ser forte e isso vai
fortalecendo a gente”. (Patrícia)
Conclusão
Os resultados dos dados coletados mostram que as policiais, por terem que se
esforçar mais para alcançar o mesmo nível de reconhecimento profissional do homem,
estão sujeitas a um cotidiano estafante, enfrentando as várias responsabilidades, sejam
profissionais, ou no âmbito doméstico. Os conflitos vivenciados no ambiente de trabalho
interferem negativamente na vida familiar, tornando-as mais vulneráveis aos sintomas de
estresse.
Experiências vividas por si mesmas e/ou por colegas de trabalho, as entrevistadas
revelaram um ambiente profissional onde a natureza da atividade, as disputas
profissionais, o peso das relações fortemente hierarquizadas e as tensões decorrentes da
presença feminina nesse ambiente masculino, se misturam, escamoteiam, ou acirram
conflitos que afetam as mulheres em suas condições de gênero – ou seja – por serem
mulheres, consideradas mais frágeis, inadequadas ao cargo/função em que se encontram,
entre outros tratamentos discriminatórios.
De acordo com as entrevistadas, não existem políticas institucionais para mudar
essas situações e a busca por soluções é sempre individual. A situação vivenciada pelas
policiais, como mostra nossa pesquisa, gera mais estresse, podendo levar ao adoecimento,
ao desestímulo e a problemas que repercutem inclusive em suas relações privadas.
As próprias mulheres, nos atendimentos clínicos, relacionam o cotidiano do
trabalho ao estresse. As condições inadequadas, as atividades profissionais, a dupla
jornada de trabalho e sofrimento, fazem emergir a necessidade de investigar e aprofundar
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o conhecimento sobre a situação da mulher PM, para uma melhoria de sua qualidade de
vida e promoção de saúde, identificando alguns fatores estressantes.
A diferença de gênero no contexto de trabalho, onde a mulher tem que se esforçar
mais para alcançar o mesmo nível de reconhecimento profissional do homem, também a
torna mais vulnerável ao estresse.
Outro fator que agrava esse quadro de estresse são as pressões dos superiores que
podem gerar um quadro de esgotamento físico e mental. Em casos extremos, nos quais o
estresse apresenta distúrbios de ansiedade, irritabilidade, depressão, impossibilitando as
trabalhadoras de exercerem sua função, estas são afastadas de trabalhos operacionais para
administrativos, local tradicional da mulher em órgãos de segurança.
Podemos inferir neste trabalho, que o tipo de desgaste e pressão à que as servidoras
da Polícia Militar estão submetidas permanentemente nos ambientes e nas relações com
o trabalho são fatores importantes no aparecimento de doenças.
A OIT (2012) aponta em seu relatório, que políticas públicas devem facilitar o
processo de conciliação entre o trabalho, vida pessoal e vida familiar, devendo existir
melhorias no transporte público, maior acesso a creches, jornadas de trabalho flexíveis e
uma maior divisão do trabalho doméstico no interior da família. Às recomendações da
OIT, acrescentamos que a igualdade de gênero, implica necessariamente na divisão do
trabalho doméstico com os homens.
Apesar de a presença de mulheres na polícia, muitas vezes, ainda reproduzir os
padrões de gênero vigentes na sociedade, sua inclusão deve ser compreendida de maneira
mais dinâmica, com base nas estratégias adotadas por homens e mulheres para
conviverem e se posicionarem na organização. Isso pode se concretizar dependendo das
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relações de poder estabelecidas pelos e pelas policiais em seu cotidiano de trabalho
(Capelle e Melo, 2010).
Os dados obtidos não são generalizáveis, porém apresentam indicativos
importantes para uma aproximação para compreender a realidade vivenciada pela mulher
PM, com vistas a propor melhorias no contexto de trabalho, bem como a continuar a
investigar outras essa camada social da população.
Concluímos também, da necessidade da PM, enquanto instituição, criar uma
estrutura adequada para a mulher, assim como repensar os valores existentes em seu
interior aproveitando melhor as características do feminino na corporação. A existência
de uma relação desigual de gênero na corporação, vai se refletir também, nas diversas
esferas da vida social da mulher e acaba por interferir no desenvolvimento desta enquanto
profissional, em seu cotidiano fora da corporação e em sua saúde. De tal forma, faz-se
necessário problematizar mais e mais essas questões, considerando que o trabalho
realizado pela mulher no interior da familia, não é só dela, mas é responsabilidade da
sociedade como um todo.
Para finalizar, acompanhamos Capelle e Melo, (2010) quando dizem:
“...ainda leva algum tempo e alguns esforços adicionais para que um
número expressivo de mulheres atinja os escalões mais elevados da
hierarquia. Contudo, uma vez que comecem a ter acesso aos cargos de
comando, as autoras acreditam que pode emergir um lugar e um perfil
de policial militar feminina que verdadeiramente valorize as diferenças
de estilo, habilidade, postura e perspectiva”. (p. 76)
Referências
BEZERRA, Cláudia de Magalhães. Estresse Ocupacional Autoatribuído em Mulheres
Policiais Militares da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo
Cruz. Dissertação de mestrado, 2012.
CAPPELLE, Mônica Carvalho A. e MELO, Marlene C. L. Mulheres policiais, relações
de poder e de gênero na polícia militar de Minas Gerais. RAM, Rev. Adm. Mackenzie
(Online) vol.11 nº 3 São Paulo Maio/Junho 2010.
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CARRASCO, Cristina. A sustentabilidade da vida humana: um assunto de mulheres? In
FARIA, Nalu e NOBRE, Miriam. A produção do viver. São Paulo: SOF, 2003.
CODO, W. e SAMPAIO, J. (orgs). Sofrimento Psíquico nas Organizações. Petrópolis:
Vozes, 1995.
CONCEIÇÃO, Ana Cristina e SOUZA, Edinilsa R. Morbimortalidade de Mulheres
Policiais Militares. Cadernos de Segurança Pública | Ano 5, Número 04, Março de 2013.
MERCHÀN-HAMANN, Edgar e COSTA, Ana M. et al. (Orgs.) Saúde, equidade e
gênero: um desafio para as políticas públicas. Brasília: UNB, 2000.
LOURO, Guacira. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis: Vozes, 1997.
MINAYO, M. C. S, SOUZA, E. R, CONSTANTINO, P. Riscos percebidos e
vitimização de policiais civis e militares na (in) segurança pública. Cad. Saúde
Pública, Rio de Janeiro, nº 23, 2007.
WITHAKER, Dulce. Mulher & Homem: O mito da desigualdade. São Paulo:
Moderna, 1989.
GÊNERO E SEXUALIDADE NA CONTRACULTURA PUNK1
Raphael de Almeida Silva2
Resumo: O movimento punk surge em meados da década de 1970 nos E.U.A. e quase na
mesma época na Inglaterra, atingindo seu ápice em 1977. O punk chega ao Brasil
aproximadamente no fim da década de 1970, onde, em meados dos anos 80 assume
feições politizadas. Nesse contexto, temáticas como anticapitalismo, machismo,
homofobia, racismo e afins começam a ser discutidos no meio punk, tanto em debates,
quanto em músicas e produções artísticas. Esse trabalho tem por objetivo mostrar a ótica
que tem a contracultura Punk a respeito das questões de gênero e sexualidade.
Palavras-chave: Contracultura; Punk; Gênero; Sexualidade;
Introdução
O movimento punk, o qual tem sua origem oscilante entre E.U.A. e Inglaterra, se
firma como movimento contra cultural próximo ao fim da década de 70 e inicio da década
de 80. A “proposta”, se é que podemos falar em uma, do movimento punk com o seu
1
A orientação desse artigo foi feita pelo professor Dr. Tiago Duque, atualmente é professor do Curso de
Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Campus de Campo Grande) e do
Mestrado em Educação (Campus do Pantanal - Corumbá).
2
Graduando do 1º semestre em Ciências Sociais na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS), Campus de Campo Grande. E-Mail para contato: [email protected]
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surgimento era a de rebelar-se, contra a apatia da sociedade, contra os valores impostos
socialmente e etc. O movimento Punk surge como o “grito de revolta” em meio à inércia
e apatia de uma sociedade cada vez mais acomodada, esse grito se apresenta nas mais
diversas formas, através de bandas, fanzines, imagens, estética e afim (BIVAR, 2007).
Conforme vai se firmando enquanto movimento contra cultural, o movimento
punk vai se politizando também e deixando de ser meramente um estilo musical, vai
adquirindo trejeitos de cultura, criando publicações, estéticas, dialetos e etc. O
Movimento Punk adquire, ao longo de sua história, características politizadas, onde
dentre as discussões, surge as de gênero e sexualidade, e ainda que, em uma cena punk
não haja uma homogeneização política no punk, é de se esperar uma postura
questionadora, inconformada e rebelde dos indivíduos que o integram.
A metodologia utilizada para a produção deste artigo foi a análise de produções
referentes ao universo punk, fanzines, letras de músicas e afins, tal como a aplicação de
um questionário, por intermédio de redes sociais, a indivíduos integrantes do Movimento
Punk nos mais diversos estados do Brasil. Na aplicação desse questionário foram
enfrentadas algumas dificuldades, a maioria dos entrevistados concordou em responder o
questionário apenas mediante a confirmação de que suas identidades individuais seriam
preservadas. Portanto, aqui será feita uma análise sobre as respostas dos 19 questionários
respondidos, onde algumas serão apresentadas, utilizando-se de nomes sugeridos pelos
entrevistados a fim de preservar suas identidades. Na web é possível encontrar uma gama
de páginas e grupos Punks em redes sociais, blogs e afins, os quais também foram
consultados, que procuram abordar sobre a temática Punk, tanto no Brasil quanto no
mundo.
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A intenção desse artigo é gerar a discussão sobre aspectos voltados para a temática
de gênero e sexualidade de uma contracultura que já se mantem viva e atuante há mais de
30 anos. Tal interesse originado por eu, enquanto indivíduo integrante do Movimento
Punk há alguns anos, haver participado e presenciado dos mais diversos aspectos dessa
história.
Questões de gênero e sexualidade sempre se fazem presentes em nossa sociedade,
no movimento punk não é diferente, contudo, há reflexos sobre como é
abordado/apresentado os quais merecem ser observados e analisados. Afinal, qual o
sentido de uma contracultura se ela não vai contra os valores morais e éticos impostos
pela cultura vigente?
Contracultura, Movimento Punk e suas ramificações.
O que define uma contracultura? O que faz com que possamos identificar algum
movimento/grupo como contra cultural?
Para responder as seguintes questões, primeiramente devemos compreender o que
se entende por cultura. Segundo Roque de Barros Laraia apud Edward Burnett Tylor,
Cultura é “todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes
ou qualquer ou capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma
sociedade” (2001, P. 25). Partindo da análise da palavra, é possível compreender
Contracultura como aquilo que vai contra o que compreendemos por culturalizado, aquilo
que compõe as diretrizes que compõe nossa vida em sociedade ainda que
“inconscientemente”, tal como as divisões de gênero, papéis sociais e afins. O que é a
Contracultura se não a afirmação do indivíduo ou de um grupo sobre suas próprias vidas,
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em contraste com o que é socialmente e historicamente imposto pela Cultura e a
sociedade.
Segundo Carlos Alberto M. Pereira (1992), a Contracultura é observada na
história, significativamente, em meados da década de 50, representada inicialmente pelos
Beats (ou Beatniks), contudo, foi somente a partir da década de 60 que fomos
apresentados a movimentos contra culturais mais significativos, o mais conhecido deles
talvez seja o movimento Hippie. O grande marco deixado pelo movimento Hippie como
Contracultura foi, certamente, o Festival Woodstock, ocorrido em Nova Iorque em 1969.
Após o Movimento Hippie outros processos de movimentação contra cultural
também surgiram, contudo, o Movimento de Contracultura a ser abordado nesse trabalho
é o Movimento Punk e as formas como são abordados gênero e sexualidade em seu meio.
O Movimento Punk tem sua origem ainda hoje como motivo de discussão onde
E.U.A. e Inglaterra buscam a ‘tutoria’ da origem do punk. Há quem diga que o punk surge
nos Estados Unidos juntamente com bandas como New York Dolls, Mc-5, Stooges, etc,
que tocavam um rock com características que mais tarde seriam incorporadas ao punk.
No início da década de 70, nos Estados Unidos passaram a surgir várias bandas que
tocavam em bares, um deles o CBGB, em partes o “berço do punk”. Contudo, é somente
em 1977 que o punk atinge seu ápice e torna-se conhecido no mundo.
Mas ainda nesse ano de 1979 é quando se origina o “braço veloz” do punk, o
Hardcore Punk, que surge trazendo batidas mais velozes na musicalidade, letras mais
politizadas e críticas. Nesse período também em que surge na Inglaterra o Street Punk,
ou Oi! como ficou popularmente conhecido, outra variação do punk. O Street Punk era o
punk rock vindo dos subúrbios, surge com a iniciativa de fazer um punk rock mais
realista, que falasse da realidade vivida nos subúrbios e pela classe operária. Contudo, é
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com a chegada do Anarco Punk que o Movimento Punk, no fim da década de 70, que o
Punk adquire ideias anarquistas e uma visão mais politizada, a qual foi sendo fixada com
o decorrer da história. Bandas como Crass e Oi Polloi foram algumas das precursoras do
estilo, suas letras agressivas e uma maior politização do Movimento, ideias como o DIY
(Do It Yourself ou Faça Você Mesmo) passaram a ser parte do cotidiano punk.
O Movimento Punk chega ao Brasil no fim da década de 70, se firmando nos anos
de 79/80, começando no estado de São Paulo através de bandas como Restos de Nada,
AI-5, Condutores de Cadáver e Cólera (BIVAR, 2002).
Uma vez que o processo de comunicação e diálogo entre o Movimento Punk no
Brasil e no resto do mundo era dificultado pela ditadura e por outros empecilhos, os punks
só se comunicavam por cartas basicamente, com isso surgiu uma enorme confusão
política na cena em seu inicio 3 . Após o término da ditadura civil-militar o acesso à
informação tornou-se mais fácil, em termos, e passaram a surgir mais escritos libertários
no país, dando base para postura futuras do Movimento Punk.
Os primeiros esboços de uma discussão sobre gênero e sexualidade surgem por
volta da segunda metade dos anos 80 com o aparecimento do Queercore ou Queerpunk.
O Queercore, como ficou conhecido posteriormente, é uma ramificação do Punk surgida
na metade dos anos 80, não tendo um lugar de origem específico, é possível encontrar
elementos do que veio a ser o Queercore tanto entre as bandas de hardcore americanas,
como os Big Boys, quanto nas bandas anarcopunks britânicas, como The Apostles4. Essas
bandas e as que vieram a seguir possuíam integrantes que eram dissidentes da
heteronormatividade. Originalmente o nome era Homocore, tendo sido substituído pelo
3
4
http://www.poraobrazil.com/home/punk80br/
http://en.wikipedia.org/wiki/Queercore
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termo Queercore por este refletir melhor a diversidade de identidades no movimento. A
primeira publicação sobre o Queercore surge no fanzine Maximum RocknRoll, esta foi
um manifesto intitulado “Don’t Be Gay” e tendo surtido efeito nas publicações e escritos
futuros.
Por volta dos anos 90 é a vez do surgimento, nos Estados Unidos, das Riot Grrrl5,
aparecendo pela primeira vez num fanzine feminista criado por Allison Wolfe, da banda
punk Bratmobile. Surgiu também, em 1991, para o zine “Bikini Kill (Girl Power)”, o
“Manifesto Riot Grrrl”, onde são explicitados pontos que tem como objetivo gerar o
questionamento das garotas sobre o que é o sexismo e sobre todas as imposições do
Patriarcado. Porém, as Riot Grrrls não pararam por aí, passaram a se rebelar esteticamente
e por vezes sexualmente, se relacionando com outras garotas como uma forma de mostrar
que elas eram tão capazes quanto os homens de exercerem atividades nos mais variados
quesitos. No Brasil a vertente Riot Grrrl ganha força com bandas como Dominatrix,
Cínica e Bulimia, formadas por garotas, adeptas das ideias feministas e que eram
participantes do Movimento Punk6. Na música “Liberte-se” da Bulimia7, podemos notar
um forte apelo à liberdade sexual e de gênero, segue aqui um trecho da mesma:
Liberte-se – Bulimia
“As pessoas se preocupam tanto em serem aceitas numa sociedade hipócrita
que acabam escondendo seus sentimentos mais sinceros
A ignorância e a repressão te sufocam, e te fazem temer os que tem ideias
próprias
Não esconda o que sente, não tenha vergonha de ser como é
Não seja mais um a apoiar essa repressão!
Não seja mais um covarde; a apoiar essa repressão
5
Schilt, Kristen, '"A Little Too Ironic": The Appropriation and Packaging of Riot Grrrl Politics by
Mainstream Female Musicians' in Popular Music and Society, Vol. 26, 2003
6
MARQUES, G. M. ; PEDRO, Joana M. . O feminismo Riot: geração e violência. Labrys (Edição em
Português. Online) , v. 22, p. 1-15, 2012.
7
http://letras.mus.br/bulimia/76800/
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Liberte-se!”
Passado esse caos que foi o início do Movimento Punk, no fim dos anos 90 e início
dos anos 2000 ele já estava mais do que firmado, tanto musicalmente, quanto
politicamente. Apesar de estar em constante evolução, o movimento punk já possuía suas
bases postas.
Organização do Movimento Punk no Brasil e expressões artísticas.
Assim, passam a surgir coletivos e grupos Punks que procuravam a modificação
da sociedade e dos ideais por ela impostos. Uma dessas discussões passou a ser a
desconstrução do Patriarcado, do sexismo e da homofobia tanto na sociedade quanto em
seu próprio meio. Surgiram mais bandas questionando as relações de gênero e sexualidade
que permeavam a sociedade, surgiram fanzines focados na desconstrução dos préconceitos sobre essas relações, etc. É nesse momento que o movimento punk passa a se
tornar mais organizado politicamente e a promover debates, participar de manifestações
dos mais diversos cunhos, tal como a Parada Gay8 e até mesmo promover eventos em
prol de causas feministas e “Lgbt”, como o Queerfest9, cuja última edição ocorreu em
2008 no estado de São Paulo.
Zines10 são exemplos de publicações punks, ou com escritores que fazem parte do
movimento punk que se propõe a desconstruir a visão de sociedade patriarcal e
heterosexista, além deles temos também bandas punks, hardcore, queercore, riot e outras
variações do punk que se propõem a fazer músicas com temáticas sobre gênero e
8
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2011/06/935117-skinheads-tambem-participam-de-paradagay.shtml
9
https://agendacult.wordpress.com/2008/03/15/queerfest-2008-dias-15-e-16-de-marco/
10
Bikini Kill Zine #2. 1991, EUA; Zine Alice #0. 2005, São Paulo; CLIT ZINE #1. 2012, Brasil; Zine
Pandora #3. 1993, São Paulo; Zine Grito de Revolta das Mulheres Libertárias #1. 2002, São Paulo;
Anarcofeminista, anos 90
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sexualidade. Bandas como Pansy Division, Gayrilla Biscuits, Limp Wrist, Homomilitia,
Big Boys e The Dickies, são exemplos de bandas que buscam levar as causas de gênero e
sexualidade para o Movimento Punk. No trecho “Society wants a straight man”, ou “A
sociedade quer um homem hétero”, escrito pela banda Gayrilla Biscuits na música “No
homossexual Surrender”11 observa-se perfeitamente isso. Os padrões são criados pela
sociedade, assim como os bloqueios culturais e morais que criminalizam as relações que
fogem à heteronormatividade, e todo aquele e toda aquela que acabar por romper com
esse padrão é julgado podendo, inclusive, ser agredido.
No Brasil também temos bandas que colocam em xeque essa normatização de um
único gênero ou sexualidade como padrão e normatizado, alguns exemplos são: Teu Pai
Já Sabe?, Bulimia, Anti-Corpos e Nerds Attack. Tanto as letras, quanto as posturas dessas
bandas levam ao enfrentamento a uma sociedade preconceituosa que busca padronizar
relações sociais, ignorando a individualidade do ser. Segue como exemplo uma música
da banda Teu Pai Já Sabe? chamada “Vida de Mentiras”12:
Vida de Mentiras - Teu Pai Já Sabe?
“Tua vida nunca te pertenceu, se você for encarar isso como uma vida real
Sempre obrigado à seguir os padrões estéticos heterossexistas
Vida de mentiras, vida de mentiras!
Cobrado por amigos e família, a ter uma postura de macho
Obedecendo aos valores familiares
Vida de mentiras, vida de mentiras!”
11
12
http://letras.mus.br/gayrilla-biscuits/739463/
http://letras.mus.br/teu-pai-ja-sabe/1442743/
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Em entrevista recente ao site “nadapop.com.br” A banda Teu Pai Já Sabe? e
nessa entrevista o Felipe, baixista da banda, deixa uma mensagem importantíssima para
o movimento punk e a sociedade em geral, segue abaixo:
“Acho que vale sempre a pena questionar os próprios privilégios.
Será que eu, gay, branco, homem, não enfrento menos agressões do que
minhas amigas negras, lésbicas ou transsexuais? Como é que eu me comporto
em relação a isso? Parece ridículo (e é), mas o que tem de gay machista,
elitista e bi/lesbo/transfóbico por aí… Fora isso, sigamos com todos os sonhos
do mundo.” 13
Uma análise da visão dos Punks sobre o Movimento.
Utilizando-se da metodologia previamente enunciada, trago aqui, de forma
sucinta, as questões levantadas pelo questionário aplicado, expondo também algumas das
respostas mais satisfatórias sobre algumas questões abordadas. Foram analisados 19
questionários, entre os entrevistados temos: 10 homens identificados como Cisgênero14,
8 mulheres Cisgênero e uma mulher Transgênero15. As idades variam de 16 à 39 anos,
sendo os entrevistados dos seguintes estados: 12 de São Paulo e região, 2 do Rio de
Janeiro, 2 do Mato Grosso, 1 do Mato Grosso do Sul, 1 do Paraná e 1 do Ceará. Seguese agora a análise feita a partir das respostas obtidas no questionário:

Das identidades sexuais: 1 se declarou gay, 10 se declararam bissexuais e 8
declaram “outros”. É interessante notar que dos 8 que se declaram “outros”, 4 deles
buscaram se declarar como “livres” de rótulos e amarras como as definições por gênero,
ressaltando a característica transgressora do punk.

Do tempo no movimento punk: houve desde entrevistados que afirmam estar há
cerca de 4 anos no movimento punk, até entrevistados que já estão há 12 anos. Dois dos
entrevistados fizeram parte do movimento punk, mas nos dias de hoje afirmam não se
13
(http://nadapop.com.br/queercore-com-a-banda-teu-pai-ja-sabe/)
Cisgênero é o/a indivíduo/a que se reconhece como pertencendo ao gênero que foi designada quando
nasceu.
15
Transgênero é o/a indivíduo/a que possui uma identidade de gênero oposta ao sexo designado
normalmente no nascimento
14
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sentirem mais pertencentes ao mesmo, um deles tendo dito ter se decepcionado com o
que esperava e com o que viveu em seus anos de Movimento Punk.

Dos entrevistados, 2 se aproximaram do Movimento Punk por intermédio de
amigos, 11 por conta do cunho político presente no Movimento, 5 se aproximaram por
causa da estética e/ou sonoridade e 1 não soube responder. É interessante notar que a
exemplo desses 11, a maioria das pessoas que procuram se integrar ao Movimento Punk,
o faz por ver dentro dele, resposta para seus anseios e revoltas com as mais diversas
questões que tramitam pelo que compreendemos por política.

Ao serem questionados se já possuíam sua identidade de gênero e sexualidade
afirmada antes de entrar no Movimento Punk, 9 afirmaram já possuírem gênero e
sexualidade afirmadas, enquanto os outros 9 disseram que não. Desses 9 que ainda não
haviam se afirmado, 8 dos compreendem que o Punk teve seu papel nessa busca pela
afirmação de gênero e sexualidade. Um dos fatores que leva a muitos indivíduos vir
realmente buscar por essa identificação somente após estarem inseridos no Movimento
Punk, é o fato de a maioria iniciar muito jovem no Punk, grande parte por volta dos 12/14
anos de idade.

Quando questionados se dentro do Movimento Punk eles se sentiam livres para
expressar sua sexualidade e identidade de gênero, 11 disseram que sim, enquanto 8
negaram esse sentimento de liberdade. Analisando as respostas das pessoas, as quais
afirmam não sentirem-se livres, todas afirmaram que isso se deve a o fato de
compreenderem que o Movimento Punk não é um lugar livre dos “vícios sociais”, e que
mesmo sendo uma contracultura ainda é possível ver traços de pensamentos machistas,
homofóbicos e preconceituosos de alguma forma.

Quando perguntados se já haviam sofrido algum desconforto, agressão ou
humilhação por sua identidade de gênero ou orientação sexual dentro do Movimento
Punk, 5 afirmaram já terem sofrido tais agressões enquanto 14 disseram que não. Porém,
dentre os 14 que afirmam não haverem sofrido algo do tipo, uma parcela destes relatam
terem tomado conhecimento ou visto algum tipo de agressão, humilhação ou desconforto
causado a punks dentro do Movimento. Das 5 pessoas que afirmam ter em todos os casos
relatados os acusados das agressões são homens Cisgênero, inseridos dentro do
Movimento Punk.
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
Quando questionados se buscam expressar seu gênero ou orientação sexual pelo
visual punk, 8 afirmaram que sim, enquanto os outros 11 entrevistados não compreendem
como necessária a afirmação de gênero e sexualidade por meio da estética Punk. Duas
respostas chamaram a atenção nessa questão e souberam explicitar de forma objetiva e
didática o porque compreendem como necessária essa autoafirmação, seguem em
sequência:
“Sim. É necessário que eu afirme meu gênero nesse meio onde ele é
rechaçado. É um ato político, afinal, no movimento punk o silenciamento de
mulheres é algo naturalizado, por isso performar o meu gênero em um meio
onde ele historicamente não pode existir é um ato subversivo." (Niara)
“Sim, e acho importante. É importante você assumir ou afirmar sua
sexualidade em uma contra cultura que infelizmente ainda é enxergada como
vilã da sociedade. Acho importante pela representatividade que aquilo trás,
como quando um punk se assume "queer" e mostra isso, outro também se sente
motivado a fazer o mesmo." (Maya)

Quando questionados se acreditam que as bandas Punks contemplam, através das
questões levantadas em suas músicas, as identidades de gênero e sexualidade deles
enquanto indivíduos inseridos no Movimento Punk, 12 afirmaram que sim, são
contemplados. 4 negaram tal hipótese e 3 não souberam responder. Dos 12 que se sentem
contemplados, alguns ressaltam a importância de tais bandas no Movimento Punk, pois
as mesmas acabam por fomentar o debate e as discussões de gênero e sexualidade dentro
do próprio Movimento.

Ao serem questionados se já haviam ouvido falar ou conheciam a temática Queer,
15 afirmaram saber o que era, e inclusive foi-se feita uma crítica interessante pela
entrevistada que identifica como mulher trans*, a crítica dela segue-se abaixo:
“A teoria queer ela é muito falha quando aplicada para nós trans, pois ela
não te define a ideia e nós, trans, temos que se auto afirma enquanto mulheres
e temos que ter cuidados necessário com corpo para ser aceita ex: imagine
uma trans mulher com barba perna cabeluda etc. A teoria queer aceita ela
porem a sociedade jamais, essa ideia desconstrução da sexualidade e do
gênero e totalmente utopia para mim" (Raphaely).
Para além dos 15 que afirmam conhecer a teoria queer, 4 afirmaram não ter conhecimento
algum sobre a temática, tendo no máximo já ouvido a mesma ser citada por alguém.

Quando questionados se conheciam alguma banda Queerpunk, 12 afirmaram sim
conhecer, citando exemplos e um dos entrevistados faz uma pontuação interessante em
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sua resposta sobre a importância de bandas e da temática Queer no meio Punk, segue-se
abaixo a mesma:
“Acho que é uma coisa MUITO importante dentro do punk, sobre ter voz e
falar sobre o que você pensa, quem é, o que te incomoda, o que quer e o que
despreza. Dar nomes aos bois, cuspir na cara de quem tem que cuspir. Acho
que esse espaço tem MESMO que ser tomado, pois de gente falando sobre “um
mundo onde cabem vários mundos” mas incapazes de lidar com algo diferente
do que lhe é padrão está cheio por aí." (DxNx)
Na mesma questão, 7 dos entrevistados negaram ter conhecimento sobre bandas
reconhecidamente Queerpunks.

Ao serem questionados se acreditam que falta representação de gênero e
sexualidade no Movimento Punk 12 afirmaram que sim, acreditam faltar, inclusive,
destaco abaixo dois comentários que apresentam questões fundamentais para a
compreensão do perfil do Movimento Punk:
"Sim, quantas punks trans você conhece?" (Raphaely).
"Sim. O meio punk, assim como todos os outros é dominado por homens e pela
ideologia patriarcal. As mulheres desde sempre são silenciadas e a
despolitização ajuda a evitar questionamentos." (Niara).
Ainda dentro das respostas sobre representatividade, 4 acreditam que não veem
uma falta de representatividade dentro do Movimento Punk, e afirmam que essa
representatividade se faz evidente por intermeio de bandas, zines ou por demais elementos
da cultura Punk. Dos entrevistados, 3 não souberam responder à questão.

Quando questionados se já presenciaram situações positivas a respeito de gênero
e sexualidade no Movimento Punk, 15 afirmaram que sim, inclusive citando exemplos,
como saraus, eventos como o Queerfest, e rodas de conversa sobre o tema, experiências
sexuais e afins. 4 negaram ou não se recordam de terem presenciado situações positivas
referentes à gênero e sexualidade e a forma abordada no Movimento Punk.

Quando questionados se já haviam presenciado situações negativas a respeito de
gênero e sexualidade dentro do Movimento Punk 11 afirmaram que sim, já presenciaram
desde agressões físicas a agressões psicológicas e verbais de membros do Movimento
Punk a outros indivíduos também inseridos no mesmo Movimento. 5 relatam que não
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presenciaram nenhum tipo de situação do gênero e 3 não souberam responder ou não se
recordam de nenhuma situação.

Ao serem questionados se consideram gênero e sexualidade uma temática
importante a ser abordada no Movimento Punk, todos os 19 entrevistados afirmaram que
sim, acreditam ser importante tendo inclusive realizado algumas pontuações sobre, das
quais, duas seguem-se abaixo:
"Sim, porque como eu disse antes, porque o punk é sobre ter voz e vez, é sobre
botar o dedo na cara de quem te agride ou incomoda, é sobre gritar contra o
mundo. Não se pode falar em grito de revolta ou em expressão do inconforme
quando se está pronto a calar o oprimido do cotidiano." (DxNx)

Quando questionados se, na cena da qual os entrevistados fazem parte, o
Movimento Punk procura debater, desconstruir e discutir as questões de gênero e
sexualidade 15 afirmam que sim, buscam sempre promover debates, eventos e demais
formas de falar sobre o tema. 4 disseram que na cena em que fazem parte isso não é
procurado ou não enxergam como necessário. Um dos entrevistados que afirma que na
cena da qual faz parte é procurado discutir, debater e desconstruir questões de gênero e
sexualidade faz um comentário instigador, o qual segue-se abaixo:
“O Punk como agente multiplicador na descontração de representações
sociais, que são embutidas por todos os meios de comunicação e de poder,
representações estas, heteronormatizadas, cristã, de pele branca, de tão
enraizado muitos punks ainda não conseguiram descontruir determinado
vícios sociais, sendo assim, é necessário continuar tratando o assunto, com
palestras, festivais, discussões para chegar um dia onde o medo não existirá
quando o tema for tratado, pois vejo que ele precisará ser discutido sempre."
(NTN).

Quando questionados se acreditam ser necessária alguma mudança na forma com
que o Movimento Punk trata as questões de gênero e sexualidade 15 afirmaram que sim,
é necessário que haja alguma mudança no método, enquanto 4 afirmam que não, e que a
forma como é abordado apresenta-se como boa até o presente momento. Sobre essa
questão, dois comentários dos entrevistados que acreditam ser necessária uma mudança,
revelam-se interessantes para a discussão, os quais serão expostos logo abaixo:
"Sim, as pessoas privilegiadas precisam rever seus vícios e até que ponto seus
privilégios interferem nas vivencias e produções. É necessário maior abertura
nesse ponto, lidarmos mais com o tema, abrirmos maior espaço em todos os
âmbitos, de voz, pras bandas, zines, eventos. O cenário é predominantemente
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masculino e isso raramente é posto em pauta. É preciso pontuar e expor toda
essa problemática para construirmos uma cena mais igualitária." (Gritão).
Em vista do que foi até aqui exposto, seguimos então para as considerações finais
desse artigo.
Considerações Finais
Em vista do que foi abordado ao longo desse artigo, podemos pensar em algumas
provocações. Os valores culturais de uma sociedade permeiam todas as instituições e
relações da mesma, os valores que esta sociedade tem por padrão e que são culturalizado,
espera-se que sejam passados através das gerações, mesmo que através de uma ótica eles
sejam ruins. Logo, é de se esperar que todas as expressões culturais nessa sociedade
apresentem os mesmos valores, ainda que em graus maiores ou menores. Nas
contraculturas não é diferente, portanto o Movimento Punk não foge a essa regra.
Vivemos numa sociedade pautada em princípios heteronormativos, cissexistas e afins,
portanto, ainda que uma Contracultura seja na teoria, e em partes na prática, conflituosa
com a Cultura socialmente aceita, essa mesma Contracultura carrega em si os mesmos
valores da sociedade que combate, porque pelo processo de socialização, todos os
indivíduos que fazem parte dessa Contracultura, foram habituados pela socialização a
determinados valores e expressões culturais.
O Movimento Punk possui uma pluralidade de indivíduos que o compõe, e
partindo do princípio de que não há uma “regulamentação” por assim dizer de quem pode
ou não ser punk, assim, existem em suas fileiras todos os tipos de indivíduos, desde
aqueles com maior ânsia por desconstruir privilégios a fim de se se aproximarem ao
máximo de uma liberdade das amarras sociais que nos são postas, até aqueles que só se
interessam pela parte sonora e estética do punk, esquecendo-se do cunho político do
Movimento, e assim seguindo a reproduzir pensamentos machistas, homofóbicos, dentre
outros preconceitos que necessitam ser desconstruídos para uma retomada do Punk
enquanto Contracultura e, além disso, Movimento de Ação Política.
Levantar questões de gênero e sexualidade dentro do Movimento Punk é, não só
buscar a desconstrução de privilégios e afins, mas também buscar uma retomada da
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revolta e da luta constante por uma sociedade menos desigual, o que, com o passar dos
anos tornou se uma das essências do punk, a inconformidade e a constante luta por
mudanças. O reconhecimento de privilégios e a desconstruções dos padrões morais e
culturais é algo que deve ser mais e mais aplicado dentro do Movimento Punk (e na
sociedade em geral), para que assim possa se legitima-lo como uma forma autentica e
coerente de combate às opressões. Iniciativas como coletivos que discutam relações de
gênero e sexualidade e seus efeitos fazem-se sempre necessárias para fomentar a
discussão e desconstrução de privilégios, por isso, é essencial que não somente as cenas
Queerpunk e Riot Grrrl busquem levar esses questionamentos, que se fazem necessários
dentro do Movimento Punk, para inclusive questionar relações de poder.
Referencias:
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GÊNERO E SEXUALIDADE NA SALA DE AULA: NARRATIVAS DE PROFESSORA E
ALUNAS(OS) DO ENSINO FUNDAMENTAL.
Juliana Gomes Santos da Costa*
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Resumo: O texto a seguir trata-se de um relato de experiência que mostra o olhar de uma docente para sua
prática pedagógica, através de narrativas que evidenciam o processo de produção e reprodução identitária
que ocorrem na escola. Tais escritas narram vivências e reflexões do processo de ensino-aprendizagem de
duas turmas do quarto ano do ensino fundamental de escolas públicas estaduais de Campinas. As
experiências narradas trazem questões que perpassam gênero e sexualidade, discutindo e construindo
reflexões de como se dá a correlação destes temas na educação de crianças. Sendo assim, o texto focaliza a
experiência docente em duas escolas da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo nos anos de 2013
e 2014, colocando em diálogo experiências docente/discentes e rotinas escolares, que proporcionaram
narrativas e reflexões de práticas pedagógicas. A investigação narrativa foi feita contando com registros
escritos pela docente e momentos de narrativas escritas e orais pelos alunas(os) do ensino fundamental que
foram subsidiados pela teoria histórico-cultural e pautados pela Pedagogia histórico-crítica. O texto traz
reflexões que evidenciam aspectos importantes sobre o “olhar” das crianças, seus posicionamentos, suas
questões a partir do que cada uma traz construído em sua educação escolar e não-escolar acerca de gênero
e sexualidade. Metodologicamente, a pesquisa se estruturou em vários momentos que estiveram em
movimento constante: aula, conhecimento sistematizado permeado de conversas sobre a realidade e as
questões de alunas(os) de quartos anos do ensino fundamental, escritas e desenhos para registros, rodas de
debate, teatro, etc. Tiveram ainda dois papeis que se tornaram diversos papeis e inversos em alguns
momentos: (1) docente/pesquisadora/aluna/sujeito (professora de ensino fundamental de escola pública
estadual
da
cidade
de
Campinas);
(2)
Alunas(os)/”ensinantes”/”pesquisadores”/sujeitos
(alunas(os)/crianças de quarto ano do ensino fundamental de escola pública estadual da cidade de
Campinas). Como princípio teórico-metodológico, operou-se com os conceitos de narrativas orais por parte
de alunas(os) e docente e narrativas escritas por parte da docente. As narrativas da docente em questão são
relatos de momentos vividos no cotidiano da escola, da curiosidade de alunas(os) para questões de gênero
e sexualidade, aprofundamentos feitos a partir de conversas e da aula como acontecimento para uma
formação maior do que o conteúdo da grade curricular. Assim um conhecimento construído por meio da
conversa, de discordâncias e concordâncias, buscando a educação integral de aluna(o) “ensinante” e da
docente/pesquisadora. Apontamos que os momentos de formação com as crianças/alunas(os) do ensino
fundamental possibilitaram um olhar que pode ser visto como simples para questões tão complexas como
gênero e sexualidade, mas que são sofisticadas e aprofundadas. Tais sujeitos que fazem parte dessa
sociedade e que estão em processo de formação não somente escolar, mas principalmente humana nos
surpreendem com suas reflexões que, por vezes, desconstroem a maneira de olhar imposta e os
posicionamentos que reproduzem diferença enquanto desigualdade. Com essa reflexão vislumbramos a
prática pedagógica como um espaço de reflexão sobre a promoção de diferenças, nos fazendo pensar em
como educar para um outro mundo possível.
Palavras-chave: Ensino Fundamental; Gênero e Sexualidade; Escola Pública; Narrativa
docente.
* Professora do (Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica-PARFOR, do curso de
Pedagogia na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC Campinas).
Este trabalho é a experiência docente de uma professora de ensino fundamental
que atua desde 2010 com crianças entre 8 à 12 anos e tem em relação a temática gênero
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e sexualidade duas experiências em escolas públicas estaduais na cidade de Campinas,
com contextos distintos nos anos de 2013 e 2014, sendo ambas turmas de quarto ano do
ensino fundamental. Em 2013 uma escola localizada numa área tida como de classe
média, com uma estrutura escolar satisfatória, com famílias participativas na vida dos
alunos e em 2014 em outra escola, mais uma vez num quarto ano, a experiência se deu
em outro bairro, localizado na periferia de Campinas, uma escola também com uma
estrutura satisfatória e já tendo crianças em que as famílias não seriam tão presentes na
vida escolar de seus filhos, colocações vindas da equipe gestora e de outras professoras
da escola por meio de reuniões e organização da rotina escolar das crianças.
Nossa perspectiva teórica tem como base a pedagogia histórico-crítica que em
relação à educação escolar deve identificar as formas como está expresso o saber objetivo
que foi produzido, construído historicamente, vendo neste um movimento dialético, de
produção e de transformação contínua. Assim como, também deve converter o saber
objetivo em saber escolar, para que o conhecimento seja assimilado pelos alunos no
espaço da escola e nos tempos escolares. Por fim, e tão importante, deve-se prover meios
para que os alunos assimilem o saber objetivo, não somente na questão do resultado e sim
percebendo e discutindo o processo e as tendências para transformação do processo.
A tendência crítica pensando na concepção de criança reconheceria a criança
como um ser histórico-cultural, de determinada classe social, de uma determinada cultura
que depende de onde essa criança nasceu, viveu e vive. Ainda essa criança ao contrário
da tendência romântica estaria no mundo em que os adultos também estão, porém ocupam
seu papel social enquanto criança, e isso significa que elas têm características próprias
desta faixa etária.
O narrar de uma experiência
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A necessidade de escrever sobre a experiência docente parte da necessidade de ter
de alguma maneira o registro de momentos, de dúvidas, discussões e aprendizado dos
alunos e da docente. Pensada a aula diária durante um ano letivo como um espaço único
de troca e tendo essa “aula como acontecimento” (Geraldi, 2010) acreditamos que de
alguma maneira deva ter um momento de reflexão para o professor pensar no que
representa a aula, a escola, as rodas de conversa e tudo que só a sala de aula com crianças
e suas questões quentes efervescendo pode nos dar. Frente a isso a escolha dessa docente
em formação que está aprendendo a ser professora foi usar a narrativa escrita e oral, por
vezes construída com as/os alunas(os), somente pelas crianças ou somente pela professora
em seus momentos de reflexão e estudo sobre a aula.
No entendimento do que se tem por professor-pesquisador e transformador, temos
que a formação é um processo continuo, não somente nos cursos de formação que são
oferecidos aos professores seja pela Universidade ou pela escola com temas definidos,
mas muito mais uma formação continua cidadã e humana que toma como tema a sala de
aula, as questões que nascem naquele espaço e que suscitam tantas coisas, assim
(...)formar um professor que não abdica do aprender porque a vivencia
da curiosidade, da vontade de ver/fazer coisas novas e realidades que
não estão dadas, é a possibilidade que tem de contagiar o seu aluno. É
um professor que por apropriar-se do seu trabalho, indaga-o e indaga as
teorias. É um professor que, capaz de se indignar com as contradições,
agrega outros na tarefa de suportar o mundo e de guia-lo por uma
historia que não negue a existência humana. Um professor que se
capacita para contribuir com a elaboração de uma teoria pedagógica que
aposte na infância como produtora de um futuro, de um mundo
diferente (...) (Dickel, 1998, p. 67)
Frente a formação de uma professora e a rotina durante um ano com crianças de
quarto ano do ensino fundamental temos a escolha por narrativas escritas, entendendo que
Através da abordagem biográfica o sujeito produz um conhecimento
sobre si, sobre os outros e o cotidiano, revelando-se através da
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subjetividade, da singularidade, das experiências e dos saberes. A
centralidade do sujeito no processo de pesquisa e formação sublinha a
importância da abordagem compreensiva e das apropriações da
experiência vivida, das relações entre subjetividade e narrativa como
princípios, que concede ao sujeito o papel de ator e autor de sua própria
história.(Souza, 2008, p. 45)
Assim, a escrita de narrativas das experiências em sala de aula tinham a ideia
inicial de escrever sobre a formação, sobre a carreira de uma professora de ensino
fundamental público, mas aos poucos se torna tantas coisas, diário pessoal e profissional,
historia de vida de uma professora e turmas, escritas sobre polêmicas de sala, conversas
de corredores, de pátio, viraram planejamento e avaliação de prática pedagógica e ainda
poesia. Sem a pretensão em questão, surgem muitas escritas e nesse artigo nossa
preocupação é em apresentar escritas que expressam a historia de uma turma e discussões
vindas deles e sobre eles frente a vida escolar para além das paredes frias e com
preocupação com conversas aquecidas pelo entendimento de diversidade, corpo,
imposição, sexualidade, preconceito, identidade, gênero, respeito, vontades.
A pesquisa com histórias de vida inscreve-se neste espaço onde o ator
parte da experiência de si, questiona os sentidos de suas vivências e
aprendizagens. A escrita da narrativa abre espaços e oportuniza, às
professoras e professores em processo de formação, falar-ouvir e lerescrever sobre suas experiências formadoras, descortinar possibilidades
sobre a formação através do vivido. A construção da narração inscrevese na subjetividade e estrutura-se num tempo, que não é linear, mas num
tempo da consciência de si, das representações que o sujeito constrói de
si mesmo.(Souza, 2008, p. 45)
Frente a questões sobre sexualidade cercada de risos, mãos escondendo o rosto e
cochichos entre elas, as crianças me fazem escrever, me fazem ler, me fazem brigar, me
fazem pesquisar. As questões surgem quando a aula e tudo que ela traz, começa a ser
tratada como momento de aprender, quando temos crianças mais soltas, menos medo e
menos “pecado”, mais conhecer e mais conversa, que as mãos deixem de esconder o rosto
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e que a sexualidade venha mais do que como conteúdo de aula, venha como conhecimento
de vida.
A sexualidade é questão recorrente em conversas pela sala de aula e pelos cantos
da escola, por ser calado, já que “Há ainda, portanto, diante de um possível
estranhamento, a tendência de buscar invisibilizar a sexualidade, como se ela fosse um
assunto privado, ou que não pertence à escola. (Duque, 2014, p. 258), mas em meio a
tantas curiosidades e negativas repetidas pelos adultos o assunto sexualidade é “gritado”
pelo corpo e olhares e faz com que a professora busque para além dos conteúdos do livro
de Ciências e repense o corpo como mais do que uma página de um livro didático
(...) há transgressões de diferentes ordens. O mais incrível dessas
transgressões é que elas denunciam, se por um lado o poder das nossas
normas, por outro, o quanto estas são contingenciais e falíveis. E,
quando pensadas nessa perspectiva, especialmente sendo
problematizadas em espaços formativos, desvelam-se facilmente como
algo passível de mudança. Ainda, o mais incrível é que quando damos
visibilidade a essas transgressões e, especialmente, ao quanto elas
demonstram a falibilidade das nossas normas, descobrimos que são
muitas e acontecem em todos os lugares. (Duque, 2014, p. 256)
A mudança na prática acontece mesmo contando com inúmeras surpresas nas
questões das crianças se dispor a narrativas orais, rodas sem mãos ao rosto e conversas
francas sobre sexualidade e sobre o que há tempos essas crianças assistem como natural,
a naturalidade imposta por tantos e ainda por professores que não vivenciaram a mudança,
mudança de olhar, de conversas e de prática pedagógica, entendendo assim que a
educação escolar numa concepção crítica, reflexiva, histórica tem o processo dialético
como base, tem a construção cotidiana de uma educação que supere a “receita” de ensinar
o que uma “grade” propõe, o interesse se dá em pensar a educação como integral, num
olhar para criança como um sujeito histórico-social-cultural. Sabemos também que as
concepções acerca de criança não são hoje únicas nem estáticas, o que reforça a ideia de
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que dependemos das influências que temos do meio e do outro para que possamos
construir e rever nossas concepções.
Apresentamos assim as narrativas elaboradas pela docente e os momentos em que
as narrativas orais, discussões e rodas aconteceram com as turmas de quarto ano do ensino
fundamental. Nesse momento os sujeitos dessa pesquisa se misturam, os papeis se
apresentam diversos e inversos e tentamos de alguma maneira organizá-lo em a
professora: docente/pesquisadora/aluna/sujeito (professora de ensino fundamental de
escola pública estadual da cidade de Campinas) e ainda professora universitária de um
curso
de
Pedagogia-PARFOR;
as
alunas
e
alunos:
Alunas(os)/”ensinantes”/”pesquisadores”/sujeitos (alunas(os)/crianças de quarto ano do
ensino fundamental de escola pública estadual da cidade de Campinas).
As narrativas
Festa junina – “Anarriê”
Semanas e semanas dedicadas a história da festa junina, as escolas se
dedicam por meses para isso.
São bandeirinhas e mais bandeirinhas recortadas...são doces e músicas
e dança para se fazer algo para outros olharem.
Não adianta discutir, é rotina escolar há décadas... me basta olhar, tentar
algum proveito em meio a interrupções na aula para ensaios,
reclamações de crianças que precisam fazer “parzinhos” para quadrilha,
em meio a isso uma quadrilha se organiza e me questiona em
interrogatório.
Por que temos que fazer pares? Por que não podemos dançar de outro
jeito? Por que todo ano?
E eu sem resposta indico que negociem com as professoras do ensaio,
com as professoras de Educação Física. Mas, então é inegável, essa
negociação com as profissionais que trabalham o corpo é de aprisionar
o corpo, o corpo feminino precisa acompanhar o corpo masculino.
Já vencidos, tanto a professora quanto a turma e com seus corpos
colocados de braços dados e frente da quadrilha, a dança vai começar:
Olha à cobra!!! Não, é mentira. Olhem as cobras
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Ninguém percebe, ou melhor todos percebem, muitas faltas, tanta gente
que não vem no dia do grande baile e aí os ensaios caem por terra e
tentam, então, montar os “parzinhos” com o que tem de meninas e
meninos... mas, aí, somos surpreendidos por cobras, olhos arregalados
e corpos posicionados.
“Vamos dançar juntos, e daí?” É a fala de dois meninos, conhecidos
pelo futebol moleque, pelas brigas no recreio e o comportamento de
“macho” que se tem. Eles dão os braços e resolvem que irão abrir a
quadrilha, como um casal de noivos, como um casal, como duas pessoas
que brincam ou como uma provocação para aqueles olhos arregalados
que sem entender não conseguem nem negar, chamar a atenção ou
mesmo proibir e quando vemos estão lá... “Anarriê!!” e como já
expressa a palavra francesa “voltar todos aos seus lugares”, assim todos
voltam, as crianças rindo e os craques tranquilos depois de um grande
baile, mas ninguém volta mais para seus lugares como os professores
que segurando os queixos voltam para suas salas, resmungando o baile
de meninos como casal de noivos, mas não podendo deixar de
reconhecer que bailaram belamente e “Anarriê!”
A preocupação inicial era dar significado a festa junina, ultrapassar os ensaios e a
reprodução anual que para os alunos, por vezes, não faz tanto sentido, além de um dia
sem aula, dedicado a dança e comilança. Assim, após uma pesquisa, a aula é planejada
para falar de outro significado da festa de Junho, como festa da colheita, remetendo a
questões da área rural, de plantações e assim abrir uma possibilidade para o trabalho com
outras disciplinas, discutindo geografia, área rural, historia, alimentação, aulas que são
compostas por vídeos e teatro que revelam esse outro sentido da festa junina. Mas,
“Anarriê”.
Todas as atividades foram feitas durante o período de ensaio e antes do grande
baile e mesmo após com rodas de conversa sobre o que tinham para registrar, contar, para
desenhar. Então, qual é a surpresa quando após desenhos, conversas sobre os pratos que
foram trazidos e nossas aulas interdisciplinares e, como não podia deixar de ser, o assunto
é o casal de noivos. A surpresa são falas que trazem “Como eles são crianças, tudo bem”,
outro aluno já completa “Mas se eles fossem adultos, aí não, né?” pergunta da docente:
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por que não poderia? As carinhas são curiosas, mas parecem dizer que essa pergunta tem
resposta e a professora é a única que não sabe.
Surgem falas que mostram que não são das crianças, são de pessoas que educam
essas crianças, como “homem com homem não pode’, “homem fica com mulher”,
“mulher com mulher até pode dançar, mas homem não”, “isso é (...) posso falar o que é?”
Sim, você pode falar. “Não posso não, é palavrão”. Resmungam todos os nomes que já
escutaram, mas que não sabem reconhecer até que ponto são ofensivos, palavrão ou não,
assim “viados, gays, bichas e bichinhas” são os adjetivos que saem. O que temos com
isso é uma roda de muito tempo, com crianças falando sobre sexualidade, homossexuais,
heterossexuais, diversidade, cultura. O que é surpreendente é o quanto os meninos se
sentem reprimidos, reproduzem falas para expressar o que em casa se pensa que é “um
homem”. As meninas por sua vez se mostram mais tranquilas na discussão, são as que se
contrapõem a fala dos meninos, começam a questioná-los, não é regra, mas é notório que
naquela turma a divisão acontece
dessa forma, as meninas se colocam como
questionadoras em sua maioria e os meninos enquanto “respondentes” utilizando falas de
outros e outras que os formam.
Os rumores nos corredores
São cochichos e mais cochichos... “Ele fala, tenho duas mães...”
Os corredores ficam marcados de rumores da vida do outro, da vida
daquele menino que tem duas mães...
“Que horror!!!” Como pode um corredor guardar tantos rumores, tantos
terrores, terrores de cada um...
É tempo destinado a olhar para o querer do outro, o amor dos outros, a
casa dos outros, o quarto dos outros...
A escola cercada de “futricanças” da vida do aluno, mas e a
aprendizagem? E o aluno? E o meu trabalho de professora? E o
respeito?
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Isso é despeito, desrespeito, como pode? Uma mãe amar alguém que
fuja ao que se tem como normal, natural, divino, romântico...
Os corredores se armam, começam a disparar comentários do menino:
ele é um aluno mediano, como a maioria da escola, tem notas ok,
comportamento ok, não briga, não tem problemas tão grandes até (...).
O corredor saber que sua mãe está casada com outra mulher, para o
menino, tranquilo, mas os corredores correm em desespero para contar
a todos o diferencial desse aluno e assim manter todos armados. Já o
mais interessado diz “tenho duas mães” com ponto final e o corredor
ecoa com suas vozes estridentes “ele fala, tenho duas mães”. Fala
acompanhada de pontos de exclamação e interrogação, mas que
podiam nos dar três pontos para conhecermos a historia de um
menino/aluno, parte da escola, sujeito, autor que tem memórias e que
tem ouvidos, olhos, senti e aprende. Pode ter duas mães, dois pais, avós,
avôs, tios e tias e o que mais identificar como família, podendo andar
pelos corredores e que este corredor se cale, que não corra por ele
preconceitos arcaicos e “futricanças” de pessoas avessas ao querer e
amar do jeito que lhe agradar.
Frente a comentários diários e questões que entram pela porta da sala de aula, me
vejo em busca ao estudo e ainda a como trazer isso para aula e como responder a perguntas
que estouram como pipoca. Pensando ingenuamente que os corredores não sairia por aí
falando e falando, acreditei que os alunos não trariam para sala perguntas relacionadas a
questão do menino com duas mães, mas fui surpreendida pelas crianças me perguntando
se eu sabia e me questiono
(...) nós devemos enfrentar o desafio de problematizar as normas de
gênero e sexualidade na formação de professores/as para além do
respeito à diversidade, isto é, para além da crença na existência de um
grupo dos/as iguais e em um grupo dos/as diversos. A questão está em
pensarmos sobre o modo como queremos interagir com a diferença —
se ficaremos no estranhamento normalizador e na melhor das hipóteses
respeitável, ou se usaremos da visibilidade da diferença como aposta
nas experiências de gênero e sexualidade ainda não vividas. (Duque,
2014, p.662)
A fila- Trenzinhos rosas e azuis (primeira parte)
São tentativas, são tentativas cansativas, repetidas de enfrentar a fila,
alias as filas, sempre de meninas e meninos e nunca única.
As filas desde sempre nas escolas são duas e dividem as crianças assim,
as meninas “rosas” de um lado e os meninos azuis em outra fila do lado,
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alias que fique claro que aos berros se diz, “você está na fila errada”, é
tão forte os lugares que cada corpo deve estar, que não aceitar
passivamente isso parece loucura, falta de conhecimento ou
provocação, provocar das meninas em relação aos meninos ou dos
meninos puxando os cabelos das tidas como “princesas”.
A tentativa inicial acontece em 2013, mas o fracasso logo vem. A escola
tem no chão com pintura em tinta branca onde devem ficar as filas de
meninos e meninas de cada turma, as crianças chegam e já se colocam
entre os riscos brancos, não se arriscam, não rabiscam e eu arrisco e não
consigo a ideia de fila única, pois único é o pensamento, a organização
é essa, de anos, de todos, de sexos, de gênero. Batalha perdida e luta
perseguida.
A fila (segunda parte)
Dessa vez a batalha começa sem o desejo tomar conta da paratica pedagógica da
professora e sim a partir de uma roda de conversa inicial, após brigas constantes nas filas,
provocações e disputas de meninos e meninas. Já é 2014, outra escola, outra turma e uma
sempre renovada professora com suas frustrações e esperanças.
Em roda é perguntado “No banco não temos fila para meninas e meninos
separadas, nem no açougue, nem na padaria, por que na escola?”. Olhares atentos,
provocadores e potencializadores. Como pensado o que vem é a ordem de nucas rígidas
voltadas para os olhos dos colegas, a reprodução é recorrente, “estamos acostumados”,
“sempre foi assim”. Outros pontos são ditos, “É verdade e ainda as meninas sempre
entram primeiro na sala de aula e vão primeiro para o recreio”. È vem a tona
comportamentos de anos, proteção dada a fila das meninas, tidas como frágeis, sensíveis
e choronas.
Então arrisco-me “Somos todos iguais e diferentes, seria bom estarmos juntos não
acham? Não tem quem é mais fraco ou mais forte, porque é menino ou menina, porque é
mais alto ou mais baixo e outras diferenças, podíamos tentar”.
Centopeia
Composição: Revista de Ciências Sociais da UFMS
ISSN: 1983 - 3784
Edição Especial: II SiGeSex – Corpos vigiados e Laicidade do estado
151
A Centopeia nasceu, são pés que formam a fila mais longa daquela
escola, a fila é ainda algo para ser repensado e mesmo superado, mas os
trens feitos de ferro, pelos trilhos com suas cores pintadas por outros dá
lugar a uma centopeia colorida a mão, cabelos longos, curtos,
bermudas, vestidos, sandálias e tênis e chinelos e suas cores indefinidas.
O que se vê no pátio é a centopeia reboladeira que caminha, corre,
escorrega em si mesma e nessa batalha a cabeça, o corpinho e o
bumbum da Centopeia mudam todos os dias, são outras pinturas, outras
posturas e outras figuras.
A aula está organizada para contemplar o projeto “Confabulando Fábulas” e a
preocupação é ampliar o repertorio das crianças em relação a fabulas e a questão do
entendimento do que seria a moral, qual a importância disso e como formar moralmente
as crianças. Apresento nessa aula de língua portuguesa a fábula da vez
A Rosa e a Borboleta – Fábula
Uma vez uma borboleta se apaixonou por uma linda rosa. A rosa ficou comovida,
pois o pó das asas da borboleta formava um maravilhoso desenho em ouro e prata. Assim,
quando a borboleta se aproximou voando da rosa e disse que a amava, a rosa ficou
coradinha e aceitou o namoro. Depois de um longo noivado e muitas promessas de
fidelidade, a borboleta deixou sua amada rosa. Mas ó desgraça! A borboleta só voltou
muito tempo depois.
- É isso que você chama fidelidade? – choramingou a rosa. – Faz séculos que você
partiu, e além disso você passa o tempo de namoro com todos os tipos de flores. Vi quando
você beijou dona Gerânio, vi quando você deu voltinhas na dona Margarida até que dona
Abelha chegou e expulsou você... Pena que ela não lhe deu uma boa ferroada!
- Fidelidade!? – riu a borboleta. – Assim que me afastei, vi o senhor Vento
beijando você. Depois você deu o maior escândalo com o senhor Zangão e ficou dando
trela para todo besourinho que passava por aqui. E ainda vem me falar em fidelidade!
Moral: Não espere fidelidade dos outros se não for fiel também.
“a”
Moral da história: nada de projeto, nada de fábula e nem moral. Vamos
confabular? Isso mesmo, dentre tantas possibilidades a questão que não
quer calar, antes de discutir a fidelidade e mesmo de ter um momento
de teatro para representar a fábula contada, a negação é a preocupação,
a necessidade de confirmar o não.
“Não pode...a borboleta é menina e a rosa também”
“Não entendi gente, o que houve turma?”
“Pro são duas meninas, veja que terminam com “a”, então está
no feminino, não pode”
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ISSN: 1983 - 3784
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Moral: Discussão grupal
O sim e o não dividem opinião.
O pecado e o errado de mãos dadas sentam em cadeiras próximas na
roda. Caem pétalas
Lagartas e borboletas conversam.
Pode e não pode, pode e não pode
Um sopro de vento diz “Se elas se amam, por que não? Elas se amam,
amar não faz mal”
Tudo fora do normal, frente ao argumento de amor os espinhos ainda
tentam espetar, mas são surpreendidos por tesouras e cortar-se verdades
sem perfumes.
Moral: Caiam na real
Em meio a moral e o antes imoral no teatro as crianças pensam em representar a
fábula “normal”. A história acaba sendo contada com rosa e outras flores, alguns meninos
se nomeiam como cravos e entram no jardim. A borboleta é pequena, serena e morena.
Encontra-se com sua Rosa, com ela brinca, ama e briga, terminam.
Termina o teatro, as flores se vão, o vento esfria as discussões e as gotas de chuva
são finas, assim como a sutileza de olhares que repensam, calam, se abalam e nos falam
“se amam, por que não?”
Concluímos
Com os momentos vividos e aqui apresentados de maneira mais sucinta buscamos
revelar a formação escolar, humana, integral de crianças/alunas(os) do ensino
fundamental e revelar ainda olhares para questões de gênero e sexualidade, mostrando
que as conversas, as dúvidas e colocações de crianças são para nós a simplicidade e a
complexidade, nos traz leituras diversas e aprofundadas dentro de um pensamento infantil
permeado de influencias culturais e educação recebida a partir de adultos.
Composição: Revista de Ciências Sociais da UFMS
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As crianças que ocupam o papel de alunas e alunos na escola precisam ser
compreendidos como parte dessa sociedade e como sujeitos em processo de formação,
formação essa mais do que escolar, pois frente ao que lhes forma enquanto pessoas
históricas nos surpreende suas reflexões que, por vezes, desconstroem a maneira de olhar
imposta por adultos e os posicionamentos que reproduzem hierarquias construídas e
defendidas como naturais, que tem colocando o que é mais ou menos legitimo.
Com essa reflexão repensamos a prática pedagógica e a formação de professores,
formação acadêmica e formação cotidiana, para esse caráter formativo temos como
possibilidade de reflexão e ação baseada na sua prática pedagógica a narrativa como
ferramenta rica para o conhecer a si e aos outros, conhecer profissional e pessoal,
conhecer o que acredito que sou e estou
(...) o professor, ao narrar de maneira reflexiva suas experiências aos
outros, aprende e ensina. Aprende, porque, ao narrar, organiza suas
ideias, sistematiza suas experiências, produz sentido a elas e, portanto,
novos aprendizados para si. Ensina, porque o outro, frente às narrativas
e aos saberes de experiências do colega, pode (re)significar seus
próprios saberes e experiências (CLANDININ, 1993 apud FREITAS e
FIORENTINI, 2007, p. 66 )
Por fim, acreditamos que os espaços de educação, a escola e a sala de aula se
colocam como um lugar de reflexão sobre a promoção de diferenças, nos fazendo pensar
em como educar crianças, adultos, enfim pessoas para um outro mundo possível, em que
a diferença não seja vista erroneamente como desigualdade.
Sala de aula
São 4 horas por dia, paredes frias, pessoas frias e conhecimentos por
vezes frios querendo esfriar raios de sol...
É um espaço que pode se tornar tudo, mar, deserto, rua, congresso. Tem
criança com seu corpo, rosto, gosto, a sala pode ser um arcabouço ou
um alvoroço, pode ser nave espacial, lua, floresta, tem meninos,
meninas, tem “periquitas” e papagaios, tem um universo de conversas
e possibilidades, porque não olhar para isso como um céu que sem fim,
nos faz caminhar, ir e voltar, querer, mudar, rever, cansar...
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Sem ser um céu de bondade e um inferno cheio de desejos... Desejo de
perguntar, mas não poder... De querer olhar e ser perseguido pelo certo
e errado, ensinado no puro erro... No puro meninas e meninos,
separados pelo corpo, na distância de uma educação que os prende e
repreende, que a sala de aula seja tudo, menos um espaço de silêncio,
preconceito, empobrecido de conversas e de formação para um ser
integral e não um “respondedor” e “aceitador” de coisas.
Referências
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Contribuições para o debate. In GERALDI, C..M. G., FIORENTINI, D., PEREIRA, E.
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sexualidade e formação de professores/as. Revista Educação | Santa Maria | v. 39 | n. 3
| p. 653-664 | set./dez. 2014.
FREITAS, M. T.M. e FIORENTINNI, D. As possibilidades formativas e
investigativas da narrativa em educação matemática. Horizontes, v. 25, n. 1, jan.jun. 2007, p. 63-71.
GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João Editores,
2010b.
SAVIANI, D. Pedagogia Histórico crítica: primeiras aproximações. 8 ed. Campinas,
SP: Autores Associados, 2003.
SCALCON, Suze. À procura da unidade psicopedagógica: articulando a psicologia
histórico-cultural com a pedagogia histórico-crítica . Campinas, SP: Autores Associados,
2002.
Souza, Elizeu Clementino de, (AUTO)BIOGRAFIA, IDENTIDADES E
ALTERIDADE: MODOS DE NARRAÇÃO, ESCRITAS DE SI E PRÁTICAS DE
FORMAÇÃO NA PÓS-GRADUAÇÃO. Revista Fórum Diversidade. Ano 2, Volume
4 – p. 37-50 – jul-dez de 2008
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GÊNERO NA EDUCAÇÃO: PEDAGOGIAS QUE FORMAM CORPOS, SABERES E
COMPORTAMENTOS1
Jorge Luiz Zaluski2
Dra Rosemeri Moreira3
Resumo: A elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) nº 5.692, de 11 de agosto de 1971,
proporcionou mudanças educacionais em todo o cenário educacional brasileiro. No entanto, algumas das
medidas tomadas na legislação procuraram manter determinados padrões sociais, assim como definir e
projetar expectativas de como homens e mulheres deveriam se comportar, relacionar, trabalhar, dentre
outras relações consideradas naturais destinadas a determinado sexo. Diante disso, esta pesquisa utiliza de
gênero como categoria de análise, a fim de observar como a LDB influenciou as relações sociais e a
formação de gênero(s) durante o período em vigor. Para isso, entre os materiais utilizados para investigação,
destaco um caderno simples de uma das disciplinas do período, correspondente ao ano letivo de 1982 em
Guarapuava-PR, este que torna possível a percepção e análise de gênero.
Palavras chave: educação, gênero, legislação.
A Lei de Diretrizes e bases da Educação (LDB) nº 5.692, de 11 de agosto de 1971,
estabeleceu novas diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus. Isso fez com que
surgissem mudanças em todo o cenário educacional brasileiro, ale´m de necessidades
vistas como fundamentais para o ensino, estavam medidas tomadas que buscavam atender
a falta de pessoal qualificado para o trabalho, tendo em vista que neste período o país
apresentava um novo discurso de modernidade, e a escola foi compreendida como um
dos setores responsáveis para atender tais interesses. Tal medida teve suas mais variadas
reflexões em torno da sociedade. Desta forma, a investigação histórica que perpassa pela
instituição escolar, não deve estar pautada apenas em seu espaço físico, mas sim, como
1
As reflexões apresentadas neste texto, fazem parte da pesquisa em andamento para o
PPGH/UNICENTRO.
2
Mestrando do Programa de Mestrado em História e Regiões – Universidade Estadual do Centro-Oeste
(UNICENTRO) e bolsista CAPES. Graduado em História – UNICENTRO – 2008, Ciências Sociais –
Faculdades Guarapuava – 2015. E-mail: [email protected]
3
Professora do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO).
Possui mestrado em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM, 2007) e doutorado em História
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, 2011). Atualmente pesquisa os seguintes temas:
relações de gênero e as instituições armadas; teorias feministas, ecofeministas e movimentos sociais.
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este sistema de ensino foi pensado historicamente, e, como todas as relações em torno do
ensino, sejam elas, regimentos, leis, propostas pedagógicas, currículo, docentes,
discentes, assim como hierarquias, etnia, gênero, classe social, dentre tantas outras
manifestações, têm total relevância para pensar sobre o sistema educacional.
Percebemos a importância de debater sobre o ensino básico e as construções de
gênero provocadas a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, LDB nº. 6.692, de
11 de agosto de 1971. Tais propostas estipuladas na legislação são possíveis de
investigação não apenas pela lei e o que corresponde a sua elaboração e pretensão, mas
sim, pela produção de materiais em virtude desta lei. Diante disso, este texto tem como
objetivo, perceber e compreender sobre expectativas educacionais pautadas na formação
de gênero através de um caderno utilizado por uma aluna matriculada na sétima série do
ensino fundamental, no ano letivo de 1982 em Guarapuava – PR, ano em que a devida
legislação ainda estava em vigor.
Ao fazer uma observação histórica em torno do sistema educacional, é possível
perceber que a educação escolar não é algo fixo, desde as preocupações em educar
crianças, jovens, adultos, idosos, homens, mulheres, dentre tantos outros, seja do ensino
fundamental até o superior, suas variações ao longo do tempo expressam não apenas a
disputa sobre o saber cientifico, mas sim como medidas ou propostas provenientes de
hierarquias sociais que influenciaram e ainda se fazem presentes, na formação e
organização social.
Pensar sobre estas classificações e suas relações com a educação, é perceber que
o ensino também é um campo de disputas. A LDB elaborada em 1971, expressa
posicionamentos que marcam disputas e jogos de interesses que tornaram-se obrigatórios
para todo o sistema de ensino brasileiro. Entre um dos maiores pontos está o ensino
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técnico, que entre seus interesses buscou formar pessoas para atender um mercado de
trabalho especializado, características de novos discursos de modernidade presentes
naquele momento. Como aponta estudo de Tomaz Tadeu Silva (2006) o currículo,
legislação, dentre outras normativas educacionais, são resultantes de disputas de
interesses, do qual é selecionado o que deve ou não compor as ementas e objetivos
educacionais.
Pensar a educação como uma região, faz percebe-la como espaço de disputa.
Como aponta Bourdieu, existem forças simbólicas que marcam o processo de construção
e definição enquanto região. Assim, cabe destacar ao menos duas características
essenciais para refletir sobre o termo e sua relação com o ensino. A primeira, de que são
buscadas formas diferenciadas de afirmar-se e ser reconhecida enquanto ciência,
característica essa que não será debatida aqui, mas se torna fundamental para perceber a
ciência como um espaço de disputa. A segunda, de que muitos valores sociais são
buscados ou reforçados através da ciência, e com isso foram naturalizados determinados
comportamentos sociais, ganhando desta forma maior relevância e garantindo a suposta
“ordem natural”. Exemplo disso pode ser percebido através da LDB/1971, criada em um
momento em que o país vivia sobre um regime militar.
Pensar o sistema de ensino como uma região em disputa, é perceber suas
alterações ao longo do tempo, estas que são resultantes de diferentes conflitos. Além
disso, pensar sobre a região, faz-se necessário também compreender que entre as disputas,
jogos de interesses, e demais relações sociais, provocam a construções de outras regiões,
como a exemplo da LDB de 1971 e suas alterações ao longo do tempo. Estas interferiram
em outras práticas, outras formas de perceber disputas e hierarquias sociais da qual
manifestaram-se em escolas, grupos de amigos, residências, corpo, dentre outras atitudes
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cotidianas marcadas como aponta Pierre Bourdieu, 2007, p. 124, para a “conservação ou
transformação das relações de força”. Supostamente o que estaria em jogo neste
momento, seria talvez a continuidade de uma moralidade, normas de comportar-se, visto
que entre os itens de maior interesse na legislação estava uma educação voltada para
determinados comportamentos morais e sua relação com o patriotismo.
Gênero e as pedagogias de pertencimento ao feminino
Quando levantadas as propostas educacionais com a Lei nº 5.692, de 11 de agosto
de 1971, é possível observar que além do interesse pautado em um regime militar,
buscava-se qualificar pessoas para o trabalho especializado. Foram vários os debates em
torno do desenvolvimento econômico, e para isso concretizar-se necessitaria que a
população estivesse capacitada para atender as novas demandas. Em Guarapuava – PR,
por exemplo, nas décadas de 1970 e a primeira parte de 1980, foram tomadas várias
medidas e propostas de modernização que perpassavam por situações que envolviam
construções, história, relações, dentre outras. (TEMBIL, 2007) Além disso, estava
também a necessidade de mão de obra qualificada para atender as novas ofertas de
trabalho, que em sua maioria estavam em torno das novas empresas abertas no período.
(SILVA, 2007)
A LDB não estipulava qual curso profissional deveria ser ofertado, mas sim,
apontava que os cursos deveriam atender a necessidades locais. Assim, as propostas
curriculares foram pensadas conforme cada instituição, mas que deveriam conter como
base no ensino o currículo obrigatório de base comum, e um específico, destinado ao
ensino técnico.
Como entre os objetivos estava em formar para o trabalho, a LDB previa um
levantamento das potencialidades dos alunos para possíveis profissões enquanto
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cursavam o ensino fundamental dois, antigas 5º à 8º séries da época, e que o
aprimoramento dar-se-ia no ensino médio como resposta ao que foi cursado nas séries
antigas conforme os interesse dado pelo aluno/a. Alguns colégios atribuíram ao seu
currículo uma disciplina denominada Indústria Caseira, esta que tinha como objetivo
qualificar meninas para o trabalho doméstico, casamento, dentre outros cuidados dos
quais eram percebidos e destinados como pertencentes a mulheres.
Levantamento este que pode ser constatado através da documentação do Colégio
Estadual Ana Vanda Bassara, colégio este que foi frequentado pela aluna que forneceu o
caderno que segue como fonte de investigação histórica.
Percebido tais diferenças e propostas baseadas que tinham como base o sexo, tal
observação utiliza-se dos estudos de Joan Scott que propõe uma reflexão do gênero como
uma categoria de análise, esta que afasta-se do ser biológico e o compreende através das
relações sociais construídas historicamente. Segundo a autora, é possível ainda perceber
como determinados comportamentos permitem a construção de homens e mulheres. Para
ela: “O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais” – a criação
inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e as mulheres.”
(SCOTT, 1995, p. 76) Tais reflexões além de trazer contribuições para análises sobre a
educação e gênero, são possíveis de perceber o corpo através da categoria gênero. “O
gênero é segundo, essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado”.
(SCOTT, 1995, p. 76)
Assim, tais observações sobre a educação, permitem identificar que estas são
resultantes de propostas que contribuem para a formação de gênero. Desde o currículo,
ou a LDB, apontada como espaços de confronto, disputa e relações de força, inclui-se
ainda que estas normas, legislação e propostas curriculares estão generificados, ou seja,
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apresentam gênero, são pensadas para determinado público, e manifestam-se imponto
maneiras de pensar, agir, porta-se, relacionar-se, educar-se, aprender, dentre tantas outras
que sustentam-se conforme o esperado do qual tem por base o gênero. As atribuições de
ser homem ou mulher, ou de que homem e mulher deveriam assumir os que “competiria
socialmente”, são manifestações pensadas e estruturadas pelo gênero. Assim, os discursos
em torno da região também são confrontados através do gênero.
Ainda segundo a observação de Scott, é possível perceber que: “O uso do “gênero”
coloca a ênfase sobre todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas que não
é diretamente determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade”.
(SCOTT, 1995, p. 07,). Assim, ao utilizar o gênero como categoria de análise, deve ser
afastado todas as diferenças que são pensadas sobre o sexo apontado como “feminino e
masculino” por exemplo, pois não é o órgão sexual que irá responder pelas devidas
relações, e sim o gênero, que é construído conforme as relações ocorrem por definições,
regiões e diferentes lugares que foram estruturados por divisões sexuais.
Dallabrida e Teive 2012, já apontaram em alguns de seus estudos como as
reformas educacionais realizadas no Estado Novo limitaram o conhecimento e pensaram
o currículo em torno de gênero, este que fora pensado em que as mulheres teriam como
fundamental atribuições de donas de casa. A LDB de 1971, por mais que esteja pensada
em torno do gênero, apresenta limitações que foram pensadas tendo como base diferenças
sexuais, das quais buscavam reforçar posicionamentos do que seria ser homem ou mulher
naquele período.
A preocupação com o lar e sua relação como pertencente a mulher, já havia sido
motivo de debate por um longo tempo. No Brasil, o pensamento patriarcal, por exemplo,
do qual limitava as ações da mulher em que o homem teria total controle sobre ela,
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contribuiu para naturalizar vários posicionamentos em que a mulher era tratada como
gestora do lar, mãe, e assim sendo deveria cumprir com obrigações maternais. Como
exemplo disso, a própria educação escolar, que além dos debates em torno do que ser ou
não ensinado para meninas, a saída destas de casa para atuarem no magistério fora
construída sobre uma ótica masculina. Conforme Guacira Lopes Louro 2007, p, 455, pode
ser percebido que: “Foi também dentro desse quadro que se constituiu, para a mulher,
uma concepção do trabalho fora de casa como ocupação transitória, a qual deveria ser
abandonada sempre que se impusesse a verdadeira missão feminina de esposa e mãe.”
São várias as possibilidades de análise dos diferentes espaços ocupados por
mulheres, assim como foram construídas as relações de gênero. Pensar sobre a ocupação
da mulher no espaço doméstico e seu vínculo com a sociedade, era apenas uma das formas
de justificar diferenças hierárquicas. Problemática esta que Guacira pôde também
identificar em alguns de seus estudos, pois por uma lado a busca pela modernidade abriria
diferentes espaços para a mulher relacionar-se, mas por outro, com base nas disciplinas
voltadas ao lar, de certa maneira tentaria privar a mulher de determinados conhecimentos
e atitudes, e isso também vinha sendo praticado em Guarapuava. Formas de pensar sobre
as mulheres, suas devidas atribuições de dona de casa, e preocupação com o lar e
harmonia social, continuaram presentes nos currículos escolares. Ainda conforme Louro,
2007, p. 458, é possível perceber que: “Assim, muitas aprendizagens até então restritas
ao lar passariam para o âmbito da escola. Esse processo, “escolarização do doméstico”,
não iria se constituir, no entanto, numa mera transposição de conhecimentos do mundo
doméstico para a escola; implicaria sim uma reelaboração de tais saberes e habilidades.”
Tal observação vem ressaltar análises anteriores, de que o currículo, a ciência
ensinada na escola, iria contribuir para naturalizar algumas das relações sociais marcadas
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pelo gênero, entre elas estaria a hierarquia, etnia, idade, classe social, dentre outras
possíveis de serem percebidas em diferentes grupos de mulheres. A escola por sua vez
implicaria em tornar aquele conhecimento, até então conhecido pelo senso comum, e de
forma adaptada para a escola justificaria a continuidade de determinadas ações e como
deveriam ser no cotidiano.
Desta maneira, pensar sobre o gênero no âmbito educacional, faz necessário
observar como são produzidas as relações de diferenciação, como os seres humanos
constroem as diferenciações do que irá atribuir como pertencentes a homens ou mulheres,
pois o gênero se constrói socialmente, pensados como determinados entendimentos do
ser masculino ou feminino historicamente, ou seja, podem apresentar mudanças ao longo
do tempo.
Gênero e corpo: pretensões para o ser feminino
Falar de gênero, principalmente na educação, faz-se necessário perceber como
ocorrem as relações entre os diferentes grupos existentes, sejam eles, professores/as,
alunos/as, servidores/as, dentre outras relações binárias, assim como determinados
regimentos, normas, leis que são estruturadas através do gênero.
A disciplina já apontada de Industria Caseira, do Colégio Estadual Ana Vanda
Bassara, tinha como objetivos atender a legislação em vigor. Diante disso, em consulta
com materiais produzidos na época, entre eles um caderno de brochura 48 folhas capa
mole, correspondente a disciplina de indústria caseira confeccionado pela aluna L.M.Z,
no ano de 1982, traz consigo registros do que se esperava do comportamento, atitudes,
dentre outras características de uma menina, posteriormente mulher ao receber uma
formação específica para o casamento e o lar.
É necessário destacar aqui que o conteúdo do caderno é um registro de
informações vistas como necessárias naquele período. Não cabe neste momento
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questionar se foram seguidas ou rejeitadas, percebido a necessidade de tal análise, se
pretende dialogar na dissertação com outros documentos selecionados para a pesquisa,
entre eles entrevistas com alunas daquele período.
No caderno é possível identificar uma espécie de mulher ideal, como se fosse algo
universal, um modelo para todos os relacionamentos, característica esta que é impossível
de ser observada ou concretizada, pois caso fosse apontada como existente, estaria aqui
rejeitando resistências, atitudes, conquistas, dentre tantas outras formas das quais as
mulheres vem ao longo do tempo abrindo espaço para reconhecimento, debate e
conquistas sociais, e retomando à discursos já superados pela pesquisa historiográfica
como o da existência de uma mulher universal.
No entanto, torna-se fundamental a observação de diferentes fontes, como as
anotações registradas no caderno, para perceber como se davam, ou o que o sistema de
ensino pretendia que uma menina quanto adulta passasse a agir, comportar-se ou
promover na sociedade.
Em meio a tantos interesses é possível encontrar nos registros a preocupação com
o casamento, e os questionamentos de: “O que é o amor? Onde está o príncipe
encantado?” (CADERNO, 1982, p. 7-8) É possível identificar páginas de listas do que
cada noivo/a deve preparar e ter antes de se casar. Entre tantos objetos e situações que são
destinadas especificamente para homens ou mulheres, percebe-se que as listas e
determinados comportamentos são generificados, ou seja, apresentam definições de
gênero. Assim, as informações e conhecimentos passados reforçariam as divisões sociais
pensadas sobre o gênero. Ser homem ou mulher naquele momento, estava também em
seguir determinados padrões de comportamento e utilizar-se de determinados objetos que
contribuiriam para a definição do pertencimento de gênero. Do qual a escola pode ser
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percebida também como manifestações de gênero. Segundo Louro, 1997, p, 78, ao
estabelecer reflexões sobre a escola identificou que: “Neste sentido, a escola, como um
espaço social que foi se tornando, historicamente, nas sociedades urbanas ocidentais, um
lócus privilegiado para a formação de meninos e meninas, homens e mulheres é, ela
própria, um espaço generificado, isto é, um espaço atravessado pelas representações de
gênero.”
Tal reflexão contempla ainda nas manifestações que marcam a diferenciação entre
os corpos, do que seria pertencer ao masculino ou ao feminino. Característica esta que
também é debatida em torno do sexo, pois este também é resultante de ralações e
definições históricas. Como aponta Thomas Laqueur, de que o sexo, pensados os corpos
com definições através dos órgão sexuais passaram a existir conforme os significados
atribuídos ao contexto histórico, surgindo definições que passaram a diferencia-los apenas
no século XVIII através de tratamentos médicos, dos quais ao longo do tempo, a relação
corpo/sexo ganhou atribuições políticas das quais passariam a definir a existência do
corpo. Para o autor, “tanto o mundo de sexo único como no de dois sexos, é situacional:
é explicável apenas dentro do contexto da luta sobre gênero e poder. (LAQUEUR, 2001,
p. 23).
O sexo por muito tempo foi utilizado para fazer definições, e/ou divisões sociais.
Percebido que tanto o sexo como o gênero são resultantes de construções sociais, a
utilização do gênero como categoria de análise, permite refletir de como as relações
sociais, divisões, normas de comportamento, regimentos, vestimentas, dentre tantos
outros instrumentos utilizados cotidianamente, foram pensados em torno do gênero,
ganhando proporções que parecem quase como naturais, como a exemplo do
comportamento feminino pautado na “doçura, delicadeza e bondade”, ou então o
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comportamento masculino como “rude, forte e viril”. Apontar que aqui não cabe o debate,
não é excluido.
Cabe ainda destacar que, ao pensar a disciplina de Indústria Caseira para atender
aos interesses da LDB, os itens além de generificados, apresentam uma expectativa para
a noiva, pois como demostra principalmente nas páginas dezesseis até a vinte e três do
caderno, era de responsabilidade da noiva adquirir vários objetos para a realização do
matrimonio. Não é possível encontrar nenhum registro no caderno que expresse como
conseguir tais itens, assim consequentemente não era levado em consideração a posição
econômica da aluna, importando apenas a aquisição dos objetos listados para o noivado.
Assim, a concretização do matrimonio poderia ser comprometida também devido o ter ou
não dos itens listados.
Apresentar estes objetos como importantes não apenas ao noivado, mas de que
relações entre os casais pautavam-se também pensadas em objetos que foram
generificados. Ou seja, atribui-se do gênero para explicar ou justificar determinados
posicionamentos.
O consumo de determinados objetos também contribuía para afirmação e
reconhecimento enquanto pertencente ao gênero. Os corpos pensados enquanto femininos
ou masculinos, teriam suas particularidades, na educação escolar por exemplo, muito do
que era vivenciado fora da escola era reafirmado dentro dela. Segundo Guacira Lopes
Louro, "nossos corpos constituem-se na referência que ancora, por fim a identidade. E,
aparentemente, o corpo é inequívoco, evidente por si, em consequência, esperamos que o
corpo dite a identidade, sem ambiguidades nem inconstância." (LOURO, 2013, p. 14)
Assim, as diferentes formas de manifestação em que são pensadas como maneiras
de diferenciar-se em relações binárias, é possível identificar relações que tratam o corpo.
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Ponto este debatido também na disciplina de Industria Caseira, pois entre as necessidades
e objetivos pensados para atender as expectativas do que fora pensado como futuras
mulheres, estavam os cuidados com o corpo, cabelo, pele, rosto, roupas, maneiras de
portar-se, marcas que expressam preocupações e interesses sobre o gênero.
Características esta que com/o corpo também podem ser compreendido como uma região
de conflito, construção e reconstrução, que além de contribuírem para a definição de
gênero, demostram ações politizadas, posicionamentos que interferem na percepção ou
definição como região simbólica. Ou seja, entre as disputas e as demais relações que
contribui para a construção de gênero, o corpo torna-se uma região em que existem
diferentes posicionamentos, debates que marcam conflito e disputas de forças.
Tal análise se torna relevante na medida em que são confrontadas e observadas as
relações que pautam-se em torno de todo um sistema de ensino. A aprovação da LDB de
1971, não marca apenas uma atitude militar vivenciada no período, traz consigo diferentes
formas e objetivos educacionais dos quais muitos deles já faziam parte de boa parte da
sociedade, isto por alguns estarem vistos como naturais, como a relação da mulher e a
dona de casa por exemplo. A pesquisa histórica sobre o tema contribuirá para que além
de compreender o período, motivos e algumas das reflexões provocadas pela lei,
interferiram na construção das relações sociais e que, a partir desta consequentemente na
formação de gênero.
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HOMOSSEXUALIDADE E HOMOFOBIA EM “AMOR À VIDA” (2013/2014)
Ademir Farias Corrêa
Curso de História CPAQ/UFMS
PIBIC/UFMS
Resumo: Esse trabalho tem como objetivo realizar uma discussão acerca da homossexualidade e da
homofobia, por meio da leitura da novela “Amor à Vida”, exibida pela Rede Globo de televisão, que teve
grande repercussão ao abordar esse tema, levando as pessoas a refletirem sobre a homossexualidade e a
homofobia no Brasil Contemporâneo.
Introdução
Mesmo em nossos dias muitas pessoas sofrem preconceito por sua orientação
afetivo-sexual, que as torna pessoas excluidas da sociedade, vivendo com medo de se
relacionar, vivendo num mundo fechado e por muitas vezes com medo de se assumir sua
opção sofrem calados muitos e muitos anos, até que um dia tomam coragem pra se
assumirem sua opção homoafetiva e acabam sofrendo preconceitos da sociedade de uma
maneira geral.
Apesar de nos últimos 50 anos a homossexualidade ter sido alvo de uma
atenção particular, os registros teóricos sempre permitem verificar que esta
sempre existiu. Assim, o presente artigo começa por apresentar algumas
variações nas posições acerca da homossexualidade ao longo da história antes
de descrever formas sob as quais se traduz, na atualidade, a intolerância contra
a minoria homossexual, que tornam difícil para as pessoas homossexuais a
decisão de revelar a sua orientação sexual. 1
Para muitos homossexuais a escolha de não revelar a sua homossexualidade, é
fruto do medo do preconceito e da violência que ele poderá sofrer. Já que no inicio do
século XX, os homossexuais eram tratados como uns doentes, e sofriam desse mesmo
medo de serem hostilizados por parte da sociedade heterossexual dominante. No que
tange às lésbicas, isso parece se aprofundar:
Assumir uma identidade lésbica envolve aproximar-se da subcultura lésbica e,
ao mesmo tempo, gerenciar a comunicação dessa informação estigmatizada
1
POESCHL, Grabrielle; VENÂNCIO,Joana; COSTA,Daniel: Conseguência da (não) revelação da
homossexualidade e preconceito sexual: O ponto de vista das pessoas homossexuais. Pag.33à 53
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para com o restante da sociedade. As lésbicas tendem a ser habitantes de dois
mundos, o heterossexual e o gay.2
Ao se assumirem lésbicas, as mulheres têm que lidar com varias informações,
pois o fato de assumir a sua orientação afetivo-sexual, se insere de forma desigual nas
relações sociais. Assim, muitas se vêêm obrigadas a tomar a decisão de assumir, já que
a heteronormatividade, cria uma imagem da mulher mãe e esposa que são papéis
primordiais para as mulheres.
A homossexualidade foi considerada até recentemente (17 de maio de 1990)
doença a ser tratado, e os médicos exigiam para si o direito de curar as pessoas que fugiam
do padrão normal da social.
Mas o que significava, em meados dos anos 30, a entrada desse debate
sobre a homossexualidade no campo da medicina? Que medicina era
essa? Qual o lugar da medicina no conjunto das demais ciências? E,
principalmente, qual era o lugar da medicina legal.··.
Eram tantas perguntas a responder ou a ser explicar sobre o comportamento
humano, em relação a sua homossexualidade, afim de explicar qual seria o verdadeiro
desvio da sua sexualidade, os médicos eram dotados de uma subjetividade semidivina e
um acesso verdadeiro sobre suas palavras tornando um ministério sagrado exercer a
medicina, porque antes da racionalidade médica, outra visão dominante era o da igreja
católica, que exercia grande influencia no campo da medicina, o que fugia dos padrões
da heteronormatividade, que era considerado um pecado gravíssimo pela igreja.
Trabalhado a idéia de loucura e crime que dava ao médico o triste papel de
testemunhar a fraqueza humana, do lado avesso da vida no papel de que a
2
GOMIDE, Silvia Del Valle. Representação das identidades lésbicas na telenovela Senhora do Destino.
Dissertação (Mestrado em Comunicação), Programa Pós-Graduação em Comunicação, Universidade de
Brasília, 2006
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homossexualismo era um lado pervertido do ser humano e estava condenado a ser
discriminado pela sociedade e ser punido pelo Estado.
O Movimento de Afirmação Homossexual
O que escapa da saúde é considerado anormal e esse pensamento prevaleceu por
muitas décadas, até que um movimento iniciado em nova York, na década de 60,
inaugurou um período de visibilidade dos homossexuais, que viviam na clandestinidade,
observava-se uma ruptura aos modelos tradicionais da sociedade, criticando assim os
valores tradicionais da sociedade heterossexual dominante, tornando assim esse grupo
que era considerado a minoria tornar-se visível para a sociedade, construindo uma cultura
totalmente política, se abrindo para as diferenças erótico-afetivo.
O movimento homossexual para sair da invisibilidade começou no século de 20,
onde muitos grupos se uniram para contrapor ao modelo tradicional imposto pela
sociedade, que só existe: O homem para mulher e a mulher para o homem e os outros são
desvio de orientação, porque nossa sociedade é totalmente preconceituosa a determinados
assuntos, principalmente no que diz respeito à homossexualidade, que muitos sofrem as
opressões por toda as partes da sociedade principalmente no seu seio familiar.
Movimento iniciado em nova York, na década de 60, inaugurou um período de
visibilidade dos homossexuais, que viviam na clandestinidade, observava-se uma ruptura
aos modelos tradicionais da sociedade, criticando assim os valores tradicionais da
sociedade heterossexual dominante, tornando assim esse grupo que era considerado a
minoria tornar-se visível para a sociedade, construindo uma cultura totalmente política,
se abrindo para as diferenças erótico-afetivos.
O ser homossexual’ mostra-se visível na forma e no conteúdo da fala e
gesto e nas roupas- como uma declaração publica da identidade
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homossexual ‘assumida’. Na pratica social adota-se o papel ‘passivo’,
de quem ‘dá’, próprio à mulher. 3
Percebe-se que o homem pode manter relações sexual com uma pessoa do mesmo
sexo sem perde seu status, isso porque assume o papel de ativo na relação, quebrando a
ordem natural da heteronormatividades, que o homem só deve deitar-se com uma mulher
e vice-versa.
No período em tela, ao contrario do que comumente se pensa, a
repressão policial sobre a homossexualidade não era tão intensa. A não
ser quando esses homossexuais ultrapassavam os limites das normas
aceitas para o bom comportamento e decência. Nesse sentido, as
travetis, que na década de 1970 eram chamadas de bonecas ou de “os”
(no masculino) eram alvo de investidas e batidas policiais, constituindo
um prato cheio para a imprensa sensacionalista da capital
pernambucana.4
No período da década de 1970, já se ouvia falar dos travestis, mais ele não podiam
fazer qualquer manifestação fora do limite aceitável, se não a policia fazia batida para
reprimir, tudo isso em nome da moral e dos bons costumes, sofrendo um processo de
marginalização, e isso era um prato cheio para a imprensa que era contra os movimento
homossexual.
Tais instrumentos de combate dinamizaram a capacidade de opor
resistência pela possibilidade de aglutinação em torno de um valor que
é ao mesmo tempo força propulsora: o prazer. O prazer de poder rir à
custa do outro todo-poderoso; de dar mostras de, embora todo o poder
a que está submetido, resta ainda a possibilidade de negar-lhe vigência
pela sua ridicularização, pelo seu desnudo, exibindo-lhe seus ridículos,
feitos de contradição e injustiças.5
Muitos em busca do prazer se uniam em torno de apenas um valor que os moviam
“o prazer”, o que lhes davam força para combater a discriminação sofrida por ele, a classe
FRY, Peter. Para Inglês ver – identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar editores
S.A, 1982. (cap. IV p. 87-115)
3
4
SILVA, Sandro José da. Quando ser gay era uma novidade: aspecto da homossexualidade masculina na
cidade do Recife na década de 1970. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura Regional),
Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife 2011.
5
RODRIGUES, Rita de Cassia Colaço. De Daniele a Chrysóstomo: Quando travestis, bonecas e
homossexuais entram em cena. Tese (Doutorado em História Social), Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade federal Fluminense, Niterói 2012.
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dominante que tinha o poder em suas mãos e discriminava qualquer tipo de movimento
que fosse contra a ordem da moral e dos bons costumes, e o pior que fosse contra a moral
dos princípios da família. Tanto os negros quanto as mulheres tinham uma longa história
de lutas que, no passado, visavam assegurar direitos plenos de cidadania que lhes eram
sistematicamente negados.
Esses movimentos lutavam pela liberdade de expressão, já que não tinham o
direito de se expressar e garantir mais espaço na sociedade, querendo que seus direitos
fossem respeitados como cidadão, e o movimento feminista levantava a bandeira de
igualdade de salário por igual trabalho e pela socialização do salário domestico.
Nos fim da década de 1970, com a abertura política, começam a se formar grupos
operários, que logo se estendeu a outras categorias, como a união dos estudantes e
intelectuais se contrapondo a cultura da Europa e a da Americana, se voltam as questões
voltadas ao corpo, o erotismo, a subversão de valores e de comportamento, passando a
ser discutido de forma mais aberta, como o uso de droga, a psicanálise, o corpo, o rock.
A partir da segunda metade dos anos 1980, passou-se a discutir muito
mais a sexualidade em várias instâncias sociais. A preocupação em
engaja-se no combate à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
(SIDA/Aids) fez com que organismo oficiais, tais como o ministério da
Educação e da Cultura, passassem a estimular projetos de educação
sexual – em 1996, o MEC inclui-a como tema transversal nos seus
Parâmetros Curriculares Nacionais. Porém, as condições que
possibilitaram a ampliação da discussão sobre a sexualidade também
tiveram o efeito de aproximá-la da idéia de risco e de ameaça, colocando
em segundo plano sua associação ao prazer.6
Passou a se discutir muito a sexualidade, pois fazia ligação com o surto da AIDS,
que estava ligada a liberdade sexual e achavam que os homossexuais eram os
propagadores da AIDS, fazendo assim com que muitos órgãos se unissem para combater
6
SOUSA NETTO, Miguel Rodrigues de. Homoerotismo no Brasil Contemporâneo: Representação,
Ambiguidades e Paradoxos. Tese ( Doutorado em História Social), Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade Federal de Uberlândia, 2011.
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a síndrome que colocava os homossexuais como principal suspeito de transmissão, já que
eram considerados marginais e viviam nos guetos.
As Homossexualidades na Televisão
A televisão (TV) é um importante canal de comunicação para se discutir
determinados assuntos polêmicos que estão no cotidiano dos telespectadores, tornandose cada vez mais natural em todos os espaços família, escolas.
As informações sobre determinados temas polêmicos adentram a casa das pessoas
por meio da mídia, que a todo instante nos traz novas informações sobre o cotidiano, tanto
as noticias podem ser boa ou má a determinados segmentos da sociedade que ainda é
totalmente tradicional, como por exemplo, discutir sobre a homossexualidade.
Há quem acredite que a TV inventou um modo de vida, configurandose como sutil e eficiente campo de veiculação do político e comercial,
ao mesmo tempo em que fornece instrumento para a construção de
identidade e ressignificação de mensagens, o que não pode dispensar
uma boa reflexão.7
Um canal importante dentro da televisão para se discutir a sexualidade, são as
telenovelas, que por meio das representações, que leva os telespectadores a
pensar/discutir as questões da atualidade, dando as pessoas que acompanham as
telenovelas outra visão, desconstruindo o tradicional.
E muitos autores vêem na teledramaturgia, o melhor instrumento para levar as
informações, cutucando a ferida da sociedade conservadora apresentando aos
telespectadores as novas formas de relações afetivas, fornecendo informações que ficam
7
BORGES, Dulcina Tereza Bonati. A Cultura Popular das Telenovelas: Recepção, Sexualidades e
Subjetividades em “Paraíso Tropical- 2007”. Tese (Doutorado em Cultura e História), Programa de PósGraduação em História, Universidade Federal de Uberlândia, 2011.
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mais fácil a formação de opinião já que se identificam com a representação retratada nas
novelas.
A representação em torno da sexualidade, por meio da mídia televisa, muitas vezes não
alcança o resultado, pois depende da forma em que o assunto é abordado na trama, as
vezes o discurso cientifico e a linguagem da mídia nem sempre caminham lado a lado.
O discurso cientifico e a linguagem da mídia nem sempre se pactuam
de maneira harmoniosa. Os motivos são muitos e variam em grau e
proporção de acordo com o tema abordado. O homossexualismo, como
um polemico e rico assunto a ser veiculado no horário nobre da
televisão brasileira, em telenovelas, desperta uma série de reflexão de
cunho social, político e lingüístico. Como veículo divulgador e
formador de opinião, a televisão, muitas vezes assume um perfil nem
sempre criterioso na transmissão de determinados assuntos e, como
órgão particular, muitas vezes deixa de ser usada como veiculo
qualitativamente comprometido com alguns valores que lhe propiciem
nem sempre um retorno tanto político quanto de aceitação publica. 8
Muitas vezes a mídia televisiva aborda temas sem dar a devida importância e
deixando de ser um fator de comunicação eficaz, já que a televisão é o mais fácil caminho
de expor as questões, sendo um passatempo ou lugar de distração, levando a sociedade
temas como a homossexualidade, tornando um fator educativo para a sociedade aceitar a
discutir determinados temas.
Os números de audiência revelam que as telenovelas são produtos mais
consumidos da industria cultural brasileira. Seu notório poder de formar e projetar
identidades, por meio de trocas simbólicas, faz com que este objeto seja por excelência
legitimado, mesmo que ainda não seja considerado uma cultura legitima. O processo de
legitimação desse campo, além de envolver os produtores e consumidores, envolvem
também o sistema de ensino.
8
TREVIZANI, William Caldas. O discurso da Telenovela Sobre A Homossexualidade.Dissertação
(Mestrado em Processo Comunicacionais), Programa de Pós-Graduação Comunicação Social,
Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2002.
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As formas que os autores dão ao assunto, não repercute de forma aceitável, que
leva o publico a não fazer as devidas discussão tornando apenas um tema corriqueiro,
tornando insiguinificante, como uma coisa comum do dia-a-dia, sem grande repercussão,
se aceitou ou não por parte do telespectador. lenise
Outro atrativo da telenovela é ser uma obra aberta, construída
juntamente com outros elementos no decorrer de sua exibição. Apesar
de haver um roteiro inicial, as pesquisas de opinião publica os “fatos” e
“acontecimentos” durante o período de exibição da telenovela, o
desempenho do elenco, os interesses da emissora e das empresas que
anunciam seus produtos interferem no desenrolar da trama. 9
Por ser uma obra aberta os autores podem ao longo da trama mudar o sentido do
enfoque, ou seja, se o publico não estiver satisfeito com os personagens eles podem opinar
e isso é feito por de uma pesquisa de opinião publica, que mostrara o grau de aceitação,
pois as novelas ocupam o lugar privilegiado e de fácil acesso como fonte de informação,
desempenhado um papel importante sobre as questões sociais.
A Homossexualidade em “ Amor à Vida”.
A novela Amor à vida, foi produzida pela Rede Globo de televisão; sendo exibida
em horario nobre, iniciando em 20 de maio de 2013 e tendo seu final em 31 de janeiro de
2014, contendo 221 capitulos , escrita por Walcyr Carrasco e foi a segunda telenovela a
exibir o beijo gay e a primeira da Rede Globo a exibir um beijo homossexual.
A novela teve varios casais homossexuais na sua trama, como o casal Niko e Eron,
vividos pelos atores Thiago Fragoso e Marcelo Antony, um era chefe e dono de um
restaurante o outro era advogado do hospitalSan Magno de propriedade da familia
Khoury, mais nem teve tão destaque como o personagem de Félix, vivido por Mateus
Solano, que no inicio da trama era um vilão, que o passar dos capitulos tornou-se um vilão
9
BORGES, Lenise Santana. Repertório sobre lesbianidade na novela Senhora do Destino: possibilidades
e de transgressão. Tese (Doutorado em Psicologia Social), Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Social, Pontifíca Universidade Católica de São Paulo, São Paulo 2008
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adorado pelos telepectadores, com os seus famosos bordões: “salguei a santa ceia”,
“sapateei no santo sepulcro”, “piquei salsinha na tabua dos dez mandamentos” entre
outros; trazendo um lado comico a telenovela, mas não deixando de aborda a temática
“homossexualidade”.
Temos como objeto de estudo a novela “Amor à Vida”, no qual buscamos fazer
um levantamento sobre a homofobia sofrida pelo personagem “Fèlix” na trama, e que
desde o inicio da novela sofre calado a sua orientação afetivo-sexual, sendo reprimido por
seu Pai o doutor César Khoury, um homofóbico que para ele (César), “o filho das outras
pessoas podem ser gay, mas o meu filho não?”.
Ao decorrer da novela, Félix é desmacarado por sua mulher Edith, vivida pela
atriz Barbara Paez, que revela a toda familia que Félix é um homossexual, recebendo
apoio da sua mãe Pilar vivida pela atriz Suzana Vieira, dizendo a ele que já sabia que ele
era gay desde de criança.
FINAL FELIZ MATEUS SOLANO
"É um pequeno passo na dramaturgia, mas um grande passo na
sociedade" ator que interpretou o Félix de "Amor à Vida", sobre
o esperado beijo gay em Niko (Thiago Fragoso) .THIAGO
FRAGOSO
"FOI MARA"ator que interpretou Niko em "Amor à Vida".
Com clima de fim de Copa do Mundo, a novela "Amor à Vida",
da Globo, mostrou o primeiro beijo entre homens em novelas. A
trama de Walcyr Carrasco conseguiu emplacar o beijo entre o exvilão Félix (Mateus Solano) e o mocinho Niko (Thiago Fragoso).
A cena foi ao ar às 23h08. O capítulo marcou 44 pontos de
audiência, segundo prévia do Ibope (cada ponto corresponde a 65
mil residências na Grande São Paulo), e 71% de share (televisores
ligados no horário). A média era de 35 pontos. As antecessoras
"Salve Jorge" e "Avenida Brasil" tiveram, em seus últimos
capítulos, 46 e 51 pontos, respectivamente.
Em nota emitida ao fim do capítulo, a Globo afirmou que "toda
cena de novela é consequência da história, responde a uma
necessidade dramatúrgica e reflete o momento da sociedade".
"O beijo entre Felix e Niko selou uma relação que foi construída
com muito carinho pelos dois personagens. Foi, portanto, o
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desdobramento dramatúrgico natural dessa trama", afirma o
texto.
Com o final da novela amor à vida, a emissora de televisão Rede Globo bateu
recorde, devido a construção bem feitas nos minimos detalhes, ja que a novela ta
refletindo o momento em que a sociedade está vivenciando.
Comentários nas redes sociais sobre a novela “Amor à vida”
William Bonner, jornalista:
"A cena final valeu a novela inteira."
Comentários nas redes sociais sobre a novela “Amor à vida”
Luciano Huck, apresentador:
"Lindo final. Parabéns."
Carlos Tufvesson, estilista:
"Impossível no dia de hoje não lembrar de Bruno Gagliasso,
você é parte dessa construção!"
Bruno Gagliasso, ator que gravou beijo gay para "América"
(2005) --a cena não foi ao ar:
"A arte venceu!!!!! Muito feliz."
Jean Wyllys, deputado federal:
"Estou em prantos! Amor à vida! Que emocionante essa cena!
Que redenção linda!"
Preta Gil, cantora:
"Foi lindo!!! Parabéns Mateus e Thiago pela excelente, doce e
amorosa cena, o beijo foi tão natural."
Os comentários nas redes sociais sobre o beijo gay da novela teve uma repercussão
positiva, a cena não teve um aspecto forçado, pois os atores que interpretavam fizeram-a
de maneira natural, já que essa cena era tão aguarda.
APROVAÇÃO POPULAR
Quando Felix e Niko, apareceram juntos pela primeira vez no
capítulo, o coro tomou conta do bar Soda Pop, no largo do
Arouche, região central de São Paulo: "Beija! Beija!"
Seguiu-se um suspiro de decepção quando o ex-vilão deu só uma
leve acariciada no ombro do pretendente.
Mais adiante, com o beijo, o bar veio abaixo com gritos. Os
fregueses aplaudiam de pé. "Foi ótimo", disse o comerciante
Leandro Cardoso, 33, aos beijos com o namorado. "Achei que não
fosse rolar, que eles fossem ficar só se olhando. Foi bonito", disse
o vendedor Jair Silva, 28, namorado de Leandro.
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No Public Bar e After Bar, na avenida Brigadeiro Faria Lima,
zona sul da capital, cerca de 60 pessoas acompanharam o capítulo
num telão.
Diante do beijo, houve comemoração, com gritos e aplausos.
Muita gente apanhou o telefone para postar nas redes sociais. "Já
era hora. Não... Já tinha passado muito da hora", disse a radialista
Marina Felipe, 30.
O beijo era tão aguardado que pareceu um final de copa do mundo, ao aparecer a
cena teve uma comemoração, vibração que foi comparada mesmo iguala uma final, mais
a unica diferença entre ser campeão e final da novela, a novela ganhou de goleada em
cima do preconceito que ainda vemos em nosso cotidiano
RECORDE
O Ibope deste dramalhão rasgado e mal escrito registrou 48
pontos --algo como 3,1 milhões de espectadores na Grande São
Paulo. Hoje, quando vai ao ar o último capítulo, espera-se
desempenho semelhante em matéria de números.
Do ponto de vista comercial, o sucesso parece assegurado. O final
da trama pode ter oito intervalos comerciais e bater recorde de
anunciantes, informou a coluna "Outro Canal", de Keila Jimenez.
Na grade da Globo, prevê-se um capítulo com 110 minutos de
duração.
Por que, mesmo tão ruim, "Amor à Vida" chega tão bem ao final?
Ao exibir hoje o 221º capítulo, a novela terá possivelmente batido
o recorde mundial de abordagem de temas polêmicos numa
mesma novela. Nenhum (repito, nenhum) teve tratamento sério
por parte do autor, mas muitos causaram barulho.
A principal aposta, a "bicha má", um personagem gay
terrivelmente cruel (e caricato), foi abandonada no meio do
caminho. Sagaz, Carrasco percebeu que Félix inspirava carinho
do público. Desistiu, então, do que havia previsto originalmente
e providenciou a redenção do personagem. Foi o pulo do gato de
"Amor à Vida".
Vendendo cachorro-quente na rua 25 de Março, o ex-vilão foi
absolvido dos mais variados crimes que cometeu, incluindo
tentativa de assassinato, fraude, roubo e planejamento de
sequestro. Para completar, teve início o romance com Niko
(Thiago Fragoso), um dos poucos personagens de boa alma em
toda a novela.
Um pouco como Jorginho em "Avenida Brasil", Niko acabou
sendo a "mocinha" de "Amor à Vida". Espera-se hoje que beije o
super-herói Félix. Beijando ou não, a audiência está assegurada.
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ISSN: 1983 - 3784
Edição Especial: II SiGeSex – Corpos vigiados e Laicidade do estado
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O final da novela era tão aguardado que bateu recorde audiência, no qual os
telespectadores adotou o ex-vilão, a novela podia ter ou não o beijo gay pois já teria a
audiência garantida pelo simples fato da redenção do vilão ter se transformado em
mocinho, sendo avsolvido de varios crimes.
MOCINHOS GAYS
A novela mostrou diversos personagens gays e relacionamentos
estáveis como o de Eron (Marcello Antony) e Niko (Thiago
Fragoso), que formavam uma família no início de "Amor à Vida".
Na reta final da trama, Niko, separado de Eron, passou a ser alvo
das atenções do ex-vilão Félix (Mateus Solano).
Culpa paterna Aos poucos, "Amor à Vida" (Globo) tem mostrado
o lado criminoso e autoritário de César (Antonio Fagundes), pai
do vilão da trama, Félix (Mateus Solano).
A novela mostrou diversos gays, mas nenhum teve uma grande repercussão como
a que teve Niko e Felix, um casal adotado pelo telespectadores, no ínicio da novela Félix
teve sua opção homoafetivo reprimida por seu pai o que não aceitava a sua opção, já que
para ele (pai) seu filho deveria ser macho.
Considerações Finais
Ao analisar a novela Amor à vida, coloco em discussão a homossexualidade e a
homofobia, que muitos homossexuais ainda têm medo de se assumir a sua orientação
afetivo-sexual, por medo de sofrerem violência física ou psicológica, reprimindo a sua
vontade e deixando de viver a sua vida em função, do que as outras pessoas e até mesmo
a sua família vai dizer.
Refêrencias
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180
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Zahar editores S.A, 1982. (cap. IV p. 87-115)
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181
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HTTP://WWW1.FOLHA.UOL.COM.BR/FSP/CORRIDA/150420-O-QUE-ELESDISSERAM.SHTML ÁS 00H:17MIM DO DIA 10-03-15: Caderno Ilustrada
Folha de São Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/150297-amor-a-vidatermina-com-1-beijo-entre-homens-em-novela.shtml as 00h:25 mimdo dia 10/03/15
Caderno Ilustrada
Folha de São Paulo:
HTTP://WWW1.FOLHA.UOL.COM.BR/FSP/COTIDIANO/150298-NAS-REDESSOCIAIS.SHTML EM 10/ 03/15 AS 00H:33MIM. Caderno Ilustrada
Folha de São Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/150050-redencao-dabicha-ma-alavanca-dramalhao.shtml acessado em 10/03/15 as 00h:42mim: Caderno
Ilustrada
Folha de São Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/149322-mapa-davida.shtml dia10/03/15 as 00h: 48mim, caderno Ilustrada
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HOMOSSEXUALIDADE & MARGINALIDADE EM MADAME SATÃ (KARIM AÏNOUZ, 2002)
Diego Aparecido Cafola1
Resumo: Pretendemos analisar neste trabalho as algumas cenas de preconceito do filme Madame Satã, de
Karim Aïnouz (2002). Adotamos metodologicamente o levantamento bibliográfico e documental acerca de
Madame Satã, das homossexualidades no Brasil e, sobretudo, a decomposição da obra fílmica. Podemos
afirmar, até o presente ponto da pesquisa que a violência que Madame Satã sofre é referente à sua
sexualidade, aliada a questões de classe e raça/etnia.
Palavras-chave: Marginalidade; Homossexualidades; Madame Satã.
HOMOSEXUALITY & MARGINALITY IN MADAME SATÃ (KARIM AÏNOUZ,
2002)
Resumo: We aim to analyze in this study some of the bias scenes in the film Madame Satã, by Karim
Aïnouz (2002). We adopted methodologically the bibliographic and documentary survey about ‘Madame
Satã’, about the homosexualities in Brazil and, above all, the analysis of the filmic work. We can assert, to
the present point of the research, that the violence endured by ‘Madame Satã’ is related to his sexuality,
combined with class and race/ethnicity issues.
KEYwORDS: MARGINALITY; HOMOSEXUALITIES; MADAME SATÃ.
“Eu sou bicha porque eu quero! E Não deixo de ser homem por causa disso não”.
(Madame Satã)
Figura 1 – foto da esquerda João Francisco dos Santos e à direta o ator Lázaro Ramos interpretando João
no filme de Karim Aïnouz (2002).
Discente do curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus Aquidauana
(UFMS/CPAQ). Bolsista PIBIC/UFMS. Integrante do Laboratório de Estudos em Cultura&Diversidade,
Política&Sexualidade – LabDiS (UFMS/CPAQ) e Grupo de estudos em Gênero, Família, Sexualidade e
Direitos Humanos (UFMS/CPAN). Endereço de e-mail: [email protected].
1
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De João a Madame.
É evidente a violência que sujeitos fora da norma vigente vivenciam, seja por
raça/etnia, sexualidade ou performance de gênero. Esses sujeitos são marginalizados, por
meio de violência e/ou injuria, passam por situações diversas de preconceitos. Podemos
ter uma visão sobre este fato pela leitura do Relatório Anual de Assassinato de
Homossexuais no Brasil, realizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). Este relatório
apresenta alguns dados, retirados de jornais, a respeito da violência letal que sujeitos que
possuem orientação afetiva sexual fora da norma. Relacionado a violência letal no ano de
2014,
foram documentados 312 assassinatos de gays, travestis e lésbicas no
Brasil(...). Um assassinato a cada 28 horas! (...) O Brasil continua sendo
o campeão mundial de crimes homo-transfóbicos. 2014 começa ainda
mais sangrento: só em janeiro foram assassinados 42 LGBT, um a cada
18 horas.2
Esse número pode aumentar se considerarmos se pensarmos que muitos dos que
morrem em razão de sua orientação afetivo-sexual e performance de gênero que não são
noticiados, pois o GGB se embasa apenas nas notícias dos jornais para nos apresentar
esses dados.
As situações de preconceitos, expressas por meio de injúria, exclusão e violência
física, que muitas das vezes são letais, perpassam o filme Madame Satã do diretor
cearense Karim Aïnouz 3 , lançado no ano de 2002. Esta obra mostra a vida de João
2
Disponível em: https://homofobiamata.files.wordpress.com/2014/03/relatc3b3rio-homocidios-2013.pdf.
Consultado em: 02 de maio de 2015.
3
Karim nasceu em Fortaleza, Ceará no ano de 1966. Estudou cinema na Universidade de Nova York.
Estreou como diretor de longas-metragens com Madame Satã (2002) Diretor e escritor de obras
audiovisuais. Dirigiu curtas como, por exemplo, Seams (1993) e Paixão Nacional (1996). Escreveu e dirigiu
longas-metragens: O Céu de Suely (2006), Viajo porque preciso, Volto Porque Te Amo (2009), Praia do
Futuro (2014), um episódio de Cathedrals of Culture (2014) e Diego Velázquez ou le réalisme sauavge
(2015) um filme documentário para Tv. Ele é co-autor dos filmes Abril Despedaçado (2001) por Walter
Salles, Cinema, aspirinas e urubus (2005) por Marcelo Gomes e Cidade Baixa, de Sergio Machado. Dirigiu
também, Alice uma série de TV da HBO de 13 episódios. Em 2012 ele foi convidado como júri para as
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Francisco dos Santos (Lázaro Ramos) na década de 1930 no bairro da Lapa da cidade do
Rio de Janeiro. João sonha em se transformar em artista, em um grande astro dos palcos.
Foi preso várias vezes, e, em uma desses casos, quando deixa o cárcere, passa a viver com
Tabu (Flávio Bauraqui) e Laurita (Marcélia Cartaxo), essa última personagem sendo
prostituta e tendo uma filha chamada Firmina que João ajuda a criar. O protagonista
mantém relações afetivo-sexuais com Renatinho (Fellipe Marques), também realiza
encontro com Álvaro (Guilherme Piva) que estava à procura de uma moça assim, com
lábios e pernas carnudas, igual a Madame Satã e acaba se tornando vítima de um golpe
de Satã e Tabu.
Bem como evidencia a vivencia em dois principais núcleos de sociabilização: o
Cabaré Lux que Gregório (Floriano Peixoto) e Vitória (Renata Sorrah) são donos e realiza
apresentações artísticas, João também participa deste espaço como trabalhador no
começo da trama; o bar Danúbio Azul que fica no bairro da Lapa e têm como proprietário
Amador (Emiliano Queiroz), este espaço aparece no transcorrer da obra e é
frequentemente visitado pelos personagens e na segunda metade do filme Francisco dos
Santos começa a trabalhar em uma atividade parecida como segurança do local e após ser
contratado para trabalhar realiza alguns shows, e após uma de suas apresentações no
Danúbio, José (Ricardo Blat) entra em conflito com o protagonista. É nessa conjuntura
que o diretor demonstra uma série de situações de marginalidade e preconceito que o
personagem principal vivencia e mostra o processo de transformação da personagem
principal, que era marginalizada e desconsidera pela sociedade, no mito Madame Satã
que ficou conhecido pela sua obra nacional e internacionalmente.
seções Cinéfondation e curtas metragens do Festival de Cannes 2012 e para o Prêmio Carow Heiner de
Berlinale 63.
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Pretendemos entender, como estes sujeitos são representados, no filme, a
sociedade e suas ferramentas de controle e por que determinados posicionamentos
referente a esses sujeitos são diferentes dos demais. Foram escolhidas algumas sequências
da película para serem analisadas. Essas sequências representam a vivência de situações
de agressão física ou verbal que João sofre no transcorrer da narrativa e o protagonista
responde, nessas circunstâncias da mesma maneira.
O Malandro da Lapa
A Película é baseada em uma história real, a vida do malandro mais conhecido do
bairro da Lapa no Rio de Janeiro, Madame Satã. Para alguns, “o lugar da perdição no Rio
foi, ao longo de boa parte do século XX, a Lapa: bairro boêmio, reduto da malandragem
cujo expressão mais célebre foi Madame Satã”4. É neste espaço de deliciosas perdições
que João Francisco dos Santos se sociabiliza e constrói sua vida, suas relações.
O bairro da Lapa é caracterizado por uma vida noturna ativa nos dias de hoje,
possuindo fama internacional. Além dos moradores locais, pessoas de todo o mundo
frequentam este espaço que, antes foi moradia para muitos marginais como, tais como
“pederastas, prostitutas, proxenetas e outras pessoas do mais baixo nível social”5 palavras
de um policial do filme a respeito deste bairro. Se a Lapa é conhecida pela sua vida
noturna, não é de hoje que esta fama foi construída. Ela foi berço de artistas, serviu de
palco para muitos outros marginais além de Madame Satã se divertirem e comporem suas
obras.
Luís Martins preferiu batizá-la [a Lapa] de “Montmartre carioca”, lembrando
que na Lapa pontificaram Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Jaime Ovalle,
Villa-Lobos. Escritores e poetas, jornalistas e pintores faziam dos cabarés,
4
LUSTOSA, Isabel (org.). Lapa do desterro e do desvario: uma antologia. Rio de Janeiro. Casa da Palavra,
2001. p. 12.
5
Aïnouz, Karim. Madame Satã. 2002. Fala do policial na primeira sequência do filme entre 1m14s - 2m50.
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bares, cafés e até da velha leiteria do bairro espaço dos seus encontros de todas
as noites. Manuel de Barros foi buscar inspiração para seu “Poema do beco”
na rua Morais e Vale, onde morou (...).6
A obra fílmica que nos serve de fonte e objeto para análise histórica baseia-se na
figura de João Francisco dos Santos. João, filho de Manoel Francisco dos Santos e
Firmina Teresa da Conceição, nascido em uma família de dezessete irmãos, na cidade de
Glória de Goitá, interior de Pernambuco. “Nasci no dia 25 de fevereiro de 1900 e tive 17
irmãos. Minha mãe me pariu na Fazenda Tamboatá lá mesmo em Glória de Goitá”7. Após
o falecimento do pai em 1907 a situação da família ficou mais difícil. Foram despejados
de sua casa. E quando tinha seus oito anos apareceu Laureano que
se agradou muito de mim e virando-se para a minha mãe comentou dona
Firmina que moleque mais do esperto a senhora tem aí. Se a senhora aceitar
me dar esse moleque pra criar eu ensino a ele minha profissão e dou estudo e
tudo mais. Levei um susto danado e olhei aflito pra minha mãe. Ela respondeu
que não de jeito nenhum que eu ajudava muito. Aliviado eu fiquei embora
tivesse preferido ouvir ela dizer não dou porque amo o meu filho. Mas fiquei
aliviado. O seu Laureano pensou um pouco e acrescentou que se ela me dessa
ele dava uma eguinha em troca por a senhora sabe que animal tem mais força
e ajuda mais que criança. E eu aflito de novo e minha mãe respondeu sim seu
Laureano assim eu faço a troca.8
Posteriormente, João mudou-se para o Rio de Janeiro, indo morar no bairro da
Lapa, mais especificamente “num sobradinho na Rua do Lavradio” 9 , número 171.
Madame Satã se ambientou a conviver na noite do bairro com baixa luminosidade, nas
ruas e becos estreitos ou nos bares. Madame Satã é uma personagem vista pela sociedade
hegemônica como um marginal, possuindo várias características em um único corpo:
negro, homossexual, malandro, pobre e sincrético, inicia suas vivências na primeira
metade do século XX. E é nesse período da história de vida que o filme se baseia para
retratar este personagem.
6
LUSTOSA, Op. cit.. p 13.
MADAME SATÃ. Memórias de Madame Satã. Rio de Janeiro: lidador, 1972, p. 2
8
Idem, p. 7.
9
Idem, p. 2.
7
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João, Caranguejo ou Madame?
João foi conhecido também pelos nomes de Caranguejo da Praia das Virtudes e
Madame Satã. No transcorrer da película ele passa por uma série de situações que o fazem
responder de alguma maneira, em algumas situações usa da violência em resposta a essas
situações vexatórias.
Na intenção de ser artista, fez apresentações no bar que frequentava, também
participou do
concurso de Fantasias do Teatro República sendo que esse concurso famoso
era promovido pelo Bloco Caçadores de Veados. Era realmente um desfile que
atraía turistas de todas as partes do Brasil e de países estrangeiros. Todos
aplaudiam muito e as bichas concorrentes ganhavam prêmios bons e retratos
em alguns jornais e iam ficando famosas.10
Segundo Madame Satã, em 1938 após ser preso junto com outras bichas, foi
indagado pelo novo delegado, Dulcídio Gonçalves.
Aí ele quis saber qual eram os nossos apelidos de bichas.
- Eu sou conhecida como Capivara.
- Me chamam de de Nega Loma.
- Deliciosa.
- Iaiá.
Chegou na minha vez de dizer o meu apelido de bicha e eu fiquei quieto
diante do homem.
- E o seu?
Era comigo.
- Não tenho não senhor.
- Não tem apelido?
Como era novo nesse distrito ele não sabia que eu era o Caranguejo da
Praia das Virtudes e eu é que não ia dizer. E também não era esse o
apelido que eu queria ouvir porque Caranguejo da Praia das Virtudes
era apelido de malandro e valente. Apelido de boneca era outra coisa.
- Acho que estou te reconhecendo.
Bonito. Já gelei e pensei comigo mesmo que ia tirar uns dias de xadrez.
- Não foi você que se fantasiou de Madame Satã e ganhou o desfile das
bichas no República esse ano?11
10
11
Idem, p. 59.
Idem, p 63-64.
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O delegado o reconhece como o ganhador do concurso com a roupa parecida com
a do filme Madam Satan (1930), de Cecil B. DeMille, que João nunca chegou a assistir.
João continua a conversa dizendo:
- O doutor me desculpe mas a minha fantasia era de morcego.
- Que morcego nada. Vai me dizer que você entende mais de fantasia
do que os americanos? Aquilo era fantasia de Madame Satã.
- Não. Era morcego.
- Taí um bom apelido pra você. Madame Satã.12
Após esse dia as pessoas que ali estavam espalharam seu novo apelido, mesmo
que das primeiras vezes demonstrou resistência deste novo nome, porém a partir deste
momento ficou conhecido e se reconheceu como Madame Satã. Se transformou em mito
no bairro da Lapa, seja pela sua valentia, suas brigas, sobretudo com as autoridades, pois
não levava desaforo para casa. Ou pelas características paradoxais malandro (valente,
viril, corajoso) e homossexual (passivo, tranquilo, submisso). Ganhou lugar nas páginas
dos boletins de ocorrências (B.O), nos jornais e na noite da Lapa, bem como ficou
conhecido entre os policiais e nas delegacias próximas ao bairro que morava. Antes
mesmo de ser conhecido como Madame Satã, sua presença nas delegacias e no presídio
da Ilha Grande se tornaram frequentes. Passou parte de sua vida transitando entre a Lapa
e aquele presidio. Somando todas as vezes que foi preso e a quantidade de tempo que
ficou no xadrez contabilizou aproximadamente 28 anos de detenção.
Pouco antes de sua morte quando estava internado no hospital, houve notícias nos
jornais Folha de S. Paulo e o Globo, deste último, trago uma pequena nota:
No Hospital poucos ignoraram que Francisco dos santos, do quarto 603, é
Madame Satã, um personagem quase lendário da antiga Lapa. As
recomendações são para que seja tratado como os outros doentes: visitas só às
12
Idem, p. 64.
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terças, quintas e domingo, e no horário certo. Só a atriz Norma Benguel 13
conseguiu, às 9h, burlar a burocracia e fazer-lhe uma visita especial.14
Meses depois de internado, Madame Satã morreu, deixando fragmentos de sua
vida em jornais, revistas e livros. Antes de sua morte, produziu um livro biográfico
publicado em 1972, intitulado “Memórias de Madame Satã” narrado para Sylvan Paezzo,
entrevistas ao jornal O Pasquim e serviu de inspiração para autores e diretores produzirem
obras relacionadas a sua vida, foi tema de carro de escola de samba, sendo produzido um
samba enredo referente a ele. Foi objeto de estudo de pesquisadores e estudiosos de
diversas áreas. Sua história se torna interessante pela multiplicidade que possui.
“tu tá fantasiado de homem ou de mulher?”: um corpo fora da norma.
Madame Satã possui várias características que o caracterizam foram da norma e
no que se refere a sua sexualidade, segundo ele em sua narrativa, na obra “Memórias de
Madame Satã”, teve uma experiência sexual com mulher e com homem, funcionando no
ato sexual “como homem e como mulher”, ele declara:
me tornei bicha por livre vontade e não fui forçado pelos outros. Comecei
minha vida sexual aos 13 anos quando as mulheres da Lapa organizavam
bacanais das quais participavam homens e mulheres e bichas. Com essa idade
de 13 anos eu fui convidado para alguns e funcionei como homem e como
bicha e gostei mais de ser bicha e por isso fui bicha. 15
Entendemos que sua diferenciação para homens mulheres e bichas vem de uma
construção histórica das categorias “homem” e “bicha”. Segundo Peter Fry “a categoria
13
Norma Bengell nasceu no Rio de Janeiro, no ano de 1935 e faleceu na mesma cidade em 2013, foi uma
atriz, cineasta, produtora, cantora e compositora brasileira. Atuou em mais de 60 (sessenta) obras entre TV
e cinema, diversos deles na Europa. Considerada uma das maiores musas do cinema e teatro brasileiro nas
décadas de 50, 60 e 70. Norma iniciou sua carreira no início dos anos 1950, sendo lançada no meio artístico
pelo produtor Carlos Machado. Dirigiu O Guarani (1997), Eternamente Pagu (1987) e Infinitamente
Guiomar Novaes (2003). Em 1962, fez história ao protagonizar o primeiro nu frontal do cinema brasileiro
no filme Os Cafajestes.
14
Madame Satã faz 75 anos no hospital. O Globo. Matutina, Rio, página 13, 26.02.1976. Disponível em:
http://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?navegacaoPorData=197019760226. Consultado em:
10 de Fevereiro de 2015.
15
Madame satã. Memórias de madame satã. Rio de janeiro: lidador, 1972, p.
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190
‘bicha’ se define em relação à categoria ‘homem’ em termos do comportamento social e
sexual”16. No caso do homem seu comportamento é o masculino e o comportamento da
bicha está ligado ao feminino. Outra característica é que o homem é o ativo, aquele que
penetra a mulher ou a bicha. E a bicha é a passiva, sendo penetrada pelo homem,
assumindo assim, o lugar da mulher. Isso indica uma hierarquia dos sujeitos: “O ato de
penetrar e o de ser penetrado adquirem, nessa área cultural, através dos conceitos de
‘atividade’ e ‘passividade’, o sentido de dominação e submissão. Assim o ‘homem’
idealmente domina a ‘bicha’”17.
Nesse contexto sexual está pratica seria a normatizada, ou seja, para estar dentro
dos padrões sexuais desse meio, seria entre os que assumem a “atividade” e, os que
assumem a “passividade”. A pratica sexual fora da norma, neste caso, está ligado
intimamente a questão do papel de gênero expresso pelo corpo do sujeito. E a relação
entre um homem com outro homem, ou uma bicha com outra bicha, se encaixariam fora
dos padrões normativos.
João Francisco percorre um caminho de transformação e em um certo ponto da
película assume uma postura social de “bicha”. Como podemos perceber na afirmação
que serve de epigrafe desse texto “Eu sou bicha porque eu quero! E Não deixo de ser
homem por causa disso não”. Se afirmando como tal e não aceitando a posição de
submisso, enfrenta o sujeito que lhe profere provocações. Essa hierarquia supracitada
serve de base para a justificativa social de certas atitudes contra as pessoas que possuem
16
FRY, Peter. da hierarquia à igualdade: a construção histórica da Homossexualidades no Brasil. In:
______. Para Inglês ver – identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar editores S.A,
1982, p. 90.
17
FRY, Peter. da hierarquia à igualdade: a construção histórica da Homossexualidades no Brasil. In:
______. Para Inglês ver – identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar editores S.A,
1982, p. 90.
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ISSN: 1983 - 3784
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características fora da norma. A epigrafe expressa um momento do filme ao qual ele
responde aos insultos e ofensas que foi exposto após fazer uma apresentação performática
travestido de mulher.
Após passar um tempo na cadeia, João é solto, vai até o Danúbio, o bar de Amador,
ao fundo toca uma música tranquila, “noite cheia de estrelas”, ele adentra ao bar,
cumprimenta Amador. O mesmo convida ele para trabalhar no estabelecimento “porque
assim tu evita tumulto na casa e a freguesia fica vendo que o local é calmo. (...) e vem
mais cliente e gasta mais”18. A frase de Amador nos faz pensar de outra maneira a respeito
do malandro. No filme a figura do malandro, que é marginalizada pela cultura
hegemônica, em seu próprio cotidiano é vista com bons olhos, pelo menos pelos
comerciantes, pois auxilia para manter a ordem, evitando possíveis brigas, pois sua figura
representa respeito ou medo para alguns. Logo após fechado o acordo de trabalho com
pagamento por semana e “mais refeições e café pequeno. Mais a bebidinha da Laurita”,
João pede para fazer uma suposta festa em comemoração do aniversário da Laurita com
uma apresentação dele em homenagem à Laurita. Sua apresentação com Danúbio lotado,
João fez outra apresentação.
18
Aïnouz, Karim. Madame Satã. 2002. 1h7m36s – 1h7m39s.
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Após sua próxima apresentação, mostrada na obra, ainda estão no bar organizando
o estabelecimento, um sujeito
que
está
aparentemente
alcoolizado realiza um pedido
de uma bebida, enquanto João
Francisco dos Santos alegre,
cantando, começa a dançar
com o Amador. O sujeito vê a
cena da dança e fala:
Sujeito: Uma branquinha.
Amador: Nós já tamos fechando, viu?
Sujeito: (palmas) pode continuar com a maricagem. Faz de conta que
eu não tô aqui.
Amador: O senhor desculpa, mas a gente tá fechando o bar.
Sujeito: Vocês tão querendo que eu vá embora pra continuar com essa
sujeira, não é?
João: O cavalheiro tem que entender que a minha pessoa acabou de
fazer um espetáculo e que agora é hora de descanso.
Sujeito: tu tá fantasiado de homem ou de mulher? Vamos, fala, fala.
Viado! Beiçola de merda! Cala tu! Então como é que é? Tu vai falar
comigo ou, ficar calado?
João: Por que é que o senhor tá fazendo isso comigo?19
João não encontrava problemas em ser bicha e, como ele diz, escolheu ser bicha.
A narrativa do filme nos traz esse entendimento a respeito da indignação da personagem.
Como afirma em suas memorias: “eu achava que ser bicha era uma coisa que não tinha
nada demais. Eu era porque queria mas não deixava de ser homem por causa disso”. e
aliado a sua frase “por que é que o senhor tá fazendo isso comigo?”, entende que não há
problema em ser o que, porém vivência situações que afirma ao contrário, para os outros
se torna um problema em ser o que é. bicha ou ser negro e receber em forma de ofensas
19
Idem,
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193
pelas características de seu corpo. O sujeito que profere os xingamentos, denomina a
dança de João e Amador um ato sujo, próximo ao lixo, que nos remete a tentativa do
ofensor em inferiorizar os outros dois. Causando um estranhamento. Ou seja, fora dos
padrões sociais hegemônicos um ato repulsivo, e classificar isso como sujeira
A sequência continua e o sujeito fala:
Sujeito: Porque é que tu acha? Tu gosta quando eu pego no teu braço,
não é? Dum dum de merda.
João: eu acho que o senhor não devia falar assim com a minha pessoa.
Sujeito: Olha só para isso. Tem mais merda na cara do
que qualquer meretriz aqui da Lapa.
João: Vai cuidar de tua vida, almofadinha de bosta.
Sujeito: Eu não disse que ele era valente?
João: Tu não passa de um cururu qualquer sujo de barro
vermelho.
Sujeito: Viado!
João: Eu sou bicha porque eu quero! E Não deixo de
ser homem por causa disso não.
Sujeito: é assim mesmo. É por causa de um crioulo
como você que esse lugar tá nessa merda!
Amador: Chega, chega, chega.
Sujeito: Viado! Safado!
Amador: Vai embora pra casa, meu filho. Vai embora. Pensa no teu
espetáculo de amanhã.
Sujeito: Safado. Boca de chupa-rola!
Amador: Vai pra casa, vai. Esfria a cabeça. Vou pegar uma água pra
você.20
Podemos perceber na fala do sujeito que enfrenta João que, a primeira tentativa
de violência verbal na pergunta “tu tá fantasiado de homem ou de mulher?” para tentar
inferiorizar utilizando pela sua performance que destoa da norma, logo após profere
palavras de baixo calão. A indignação de João é evidente. Ouvir de um estranho ofensas
como “beiçola de merda ou viado” referente a sua sexualidade e outra referente a sua cor
de pele como, por exemplo, “dum dum de merda”, que no linguajar popular referenciando
a cor de pele de uma forma pejorativo e inferior não é agradável. O sujeito como Madame
Satã, que não leva desaforo para casa, responde a essa situação de uma maneira violenta.
20
AÏNOUZ, Karim. Madame Satã. Videofilmes, Rio de Janeiro, 2002. 1hs26m50s -1h29m12.
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Pois chega em casa pega sua arma e volta ao Danúbio, profere alguns tiros no Sujeito que
o ofendeu, levando-o a cometer um assassinato.
Considerações Finais
Está presente pesquisa ainda não está finalizada, porém podemos perceber
alguns pontos do filme. A personagem carrega em seu corpo uma multiplicidade de
características e vira alvo mais “atraente” de preconceitos e violência. Ser negro,
homossexual, malandro, pobre e sincrético, em um momento do Brasil que os
mecanismos de controle estão batendo forte para a higienização da população, um
discurso médico legal que repreendia as sexualidades divergentes, o sujeito necessitava
arrumar meios de sobrevivência. João encontra na malandragem um certo respeito dos
demais moradores de sua querida Lapa, pois é assim que João se referenciava o bairro
que morava, criando uma relação intima com o local que vivia.
Muitos dos problemas a respeito de raça/etnia, sexualidade que estão postos na
vida de João apresentados no filme, estão também presentes atualmente na vida de
milhares de sujeitos que possuem uma ou várias características similares deste
personagem. Essas características fazem com que ele passe por situações constrangedoras
e de violência. Para tal analise foram escolhidas, especificamente, cenas e sequências em
que o protagonista da película passa por situações de injúria e violência. Um “corpo que
foi capaz de abarcar diversas possibilidades, exibindo uma capacidade de adaptação e
resposta tanto aos esforços disciplinares do início do século XX, quanto aos processos de
subjetivação mais recentes, que não se pautam mais em modelos fixos”. Essas
características não se somam para dar ênfase aos preconceitos sofrido pela personagem,
mas se inter-relacionam e em casa contexto social se transforma em situações diferentes.
Por exemplo, no Danúbio Azul que fica no bairro que morava foi bem recebido e sua
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figura era de importância e fazia a diferença. Porém, em outros locais é excluído e
humilhado.
A ascensão da boemia na Lapa entre 1910 e 1940, período e local ao qual o
personagem do file, João Francisco dos Santos, estava inserido. A abolição do trabalho
escravo no final do século XIX e a importação de mão-de-obra imigrante, a crise
econômica, ocorrida principalmente pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque em
1929, gerado um desemprego que aumentava cada vez mais. Uma busca por uma
identidade nacional, a tensão causada pela primeira Guerra Mundial e o fantasma da
Segunda Guerra pairando pelo mundo, o golpe de Getúlio Dornelles Vargas em 1930
junto com um discurso médico-legal repressor, no que se refere as sexualidades
divergentes, com direito de definir o destino dos sujeitos, como afirma Herschnann,
já numa primeira leitura, uma preocupação recorrente nesse conjunto de obras
se destaca: retirar o debate da questão da homossexualidade da esfera da moral,
da religião ou do direito e colocá-lo no seu contexto “devido”, qual seja, o da
medicina, campo marcado, nessa hora, por uma reivindicação: “o direito de
curar.21
E Lima em 1935, na Europa, publica “A inversão dos sexos” ou José Ricardo Pires
de Almeida, médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que em 1906
publicou “Homossexualismo/A libertinagem no Rio de Janeiro”. O direcionamento de
alguns dos médicos não era para um crime ou punição, eles entendiam que eram
problemas internos de “configuração anatomobiológica” – configuração psíquica e que
poderiam resolver buscando maneira de cura-los.
Se no século XXI, presenciamos sujeitos que lutam e continuam lutando pela
criação de leis que garantem o direito dos negros, homossexuais, pela cota dentro das
universidades brasileira, pela união civil de pessoas do mesmo sexo. No deparamos com
21
HERSCHNANN, Michael & PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (orgs). A invenção do Brasil Moderno:
Medicina educação e engenharia nos anos 20 – 30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. P.89.
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sujeitos que possuem um certo tipo de poder que lutam contra como, por exemplo, Marco
Feliciano (Presidente em 2013 da Comissão de Direitos Humanos e Minorias) e Jair
Bolsonaro (Deputado Federal) sujeitos que lutam contra os direitos de negros e/ou
homossexuais.
Quando vemos a quantidade insignificante de professores universitários e a
quantidade imensa de pessoas de negros vivendo em situações de miséria ou de
vulnerabilidade social, podemos ter uma ideia de que a situação entre negros e brancos
não está nem perto de ser igualitária. Cerca de oitenta anos depois do período representado
no filme, que mostra a vida de João, essas questões, principalmente de violência contra
negros e homossexuais, ainda continuam em pauta. O filme do ano de 2002, se mostra no
presente ano de 2015 cada mais atual e servindo de referência para pensarmos essas
questões que nos rodeiam até hoje.
Referências.
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Brasil. In: ______. Para Inglês ver – identidade e política na cultura brasileira. Rio de
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Editora UNICAMP, 1990.
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Madame Satã faz 75 anos no hospital. O Globo. Matutina, Rio, página 13, 26.02.1976.
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MENINOS NÃO CHORAM E MENINAS FALAM BAIXO: A CONCEPÇÃO DE GÊNERO DAS
PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO INFANTIL E A INTERFERÊNCIA NA CONSTITUIÇÃO DE
SER MENINO E MENINA.1
Analu Nunes Melo2
Hellen Carolline Pinho Rohr3
Daniela Fernanda Viduani Sopran Gil4
Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar as concepções de gênero das profissionais da educação
infantil e saber se elas interferem na constituição de ser menino e menina. No primeiro momento,
realizamos um estudo bibliográfico e, posteriormente, uma pesquisa de campo. Para enriquecer nossa
pesquisa, elaboramos uma entrevista de caráter semiestruturado como instrumento de coleta de dados. As
entrevistadas foram uma auxiliar de professora, uma professora e a coordenadora de uma instituição de
educação infantil de Campo Grande – MS. Os resultados mostram que as entrevistadas possuem uma
concepção polarizada, marcada pela diferença biológica (mulher/homem) e consideram as características
sexuais como sinônimos de gênero, o que não procede, segundo estudos utilizados como base dessa nossa
pesquisa. Consequentemente, elas acabam por interferir na construção da identidade dos pequenos,
contribuindo para o disciplinamento dos corpos infantis, tendo como referência princípios de segregação
presentes em uma sociedade que exclui os que não seguem as regras impostas pelo seu contexto. Contudo,
as pessoas entrevistadas acreditam que debater esse assunto nos cursos de graduação é de grande
importância para a formação dos/das profissionais da educação infantil. Vale ressaltar aqui que essas
profissionais foram e continuam sendo produzidas por todo o seu contexto histórico, cultural e social.
Palavras-chave: 1 Gênero – 2 Identidade – 3 Criança - 4 Educação Infantil.
Introdução
A partir das nossas experiências nos estágios supervisionados, percebemos que a
carência de discussão sobre gênero no âmbito escolar demonstra a importância de se
problematizar questões ligadas a esse tema, por isso, optamos por nos debruçar sobre ele,
procurando contribuir com os nossos pares, já que a compreensão real dos significados
dos termos inerentes a gêneros abre possibilidades para uma relevante reflexão.
1
Artigo apresentado ao Curso de Licenciatura em Pedagogia, no ano de 2014, na disciplina de Trabalho
Conclusão de Curso, da Faculdade Mato Grosso do Sul - FACSUL, como exigência parcial para obtenção
do título de graduação.
2
Egressa do curso de Pedagogia da Faculdade Mato Grosso do Sul.
3
Egressa do curso de Pedagogia da Faculdade Mato Grosso do Sul.
4
Professora Mestra e Orientadora do Trabalho de Conclusão do Curso de Pedagogia da Faculdade Mato
Grosso do Sul – FACSUL.
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No primeiro momento, leituras foram feitas, com o intuito de se ter uma
fundamentação teórica que nos oferecesse um aporte para a escrita deste artigo. Com
embasamento teórico fundamentado nas ideias de Brasil (2006), Carvalho (2011), Felipe
e Guizzo (2013), Gonini e Lima (2009), Louro (2010; 2011), Ludke e Boing (2004),
Meyer e Soares (2013), Rosa (2013), Sabat (2013), Schwengber (2013), Souza-Leite e
Mattos (2009), e Triviños (1987), este trabalho tem como objetivo conhecer a concepção
de gênero das profissionais da educação infantil e sua interferência na constituição de ser
menino e menina e, a partir daí, desconstruir conceitos próprios, atribuindo-lhes as
definições adequadas.
Para dar conta dessa reflexão, optamos pela pesquisa de caráter qualitativo, tendo
a entrevista semiestruturada como instrumento de coleta de dados. Entrevistamos uma
professora, uma auxiliar de professora e uma coordenadora de uma instituição de
educação infantil de Campo Grande – MS.
A sistematização da pesquisa, por meio deste artigo traz, primeiramente, três itens
para aprofundamento teórico: a construção histórica do gênero; afinal, o que é gênero; a
interferência do gênero no disciplinamento dos corpos infantis, seguidos da descrição da
metodologia de pesquisa, de análise e discussão dos dados e, por fim, das considerações
finais.
1 A construção histórica do gênero
Segundo Souza-Leite e Matos (2009) antes da invenção da escrita, toda a história
era registrada por meio da arte “A cultura ocidental na era Paleolítica (+/- 100 mil a.C. a
10 mil a.C.) traz uma arte religiosa riquíssima e abundante em temas sobre a cultura, a
sociedade, a sexualidade e a condição de sagrado do corpo da mulher.” (SOUZA-LEITE,
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2009, p. 15) Essa mulher era vista como sagrada, pois eram consideradas como
proporcionadoras de vida5.
Já no período Neolítico, deusas eram representadas como mulheres adoradas, sem
retratação de qualquer tipo de dominação masculina sobre o sexo feminino. Nessa época
da história, o corpo da mulher era visto como sagrado, pois esta era quem podia gerar a
vida e garantir a perpetuação da espécie. Acompanhando as afirmações de Souza-Leite
(2009, p. 18), “não há indícios de que os homens fossem oprimidos, mas sim, de que a
organização religiosa e familiar das sociedades de parceria era pacífica e igualitária,
matrística”.
Foi a partir do momento em que a sociedade começou a se organizar, tendo como
base o patriarcado, que a dominação começou a se implantar na sociedade. Nessa fase, o
homem era quem saía para caçar, enquanto a mulher era responsável pelos filhos e pela
casa. Sendo assim, o homem começou a se perceber como capaz de dominar a natureza e
participante no processo de reprodução, passando a exercer poder sobre o meio e sobre a
própria mulher. Consequentemente, os homens passaram a dominar toda a sociedade no
âmbito político, social, religioso e econômico, sendo garantido a eles um espaço público
em detrimento do privado, que deveria ser ocupado pela mulher. Esta, por sua vez, passou
a ser dominada pelo sexo masculino e tabus começaram a existir, como exemplo, manter
a virgindade antes do casamento se tornou fator primordial na sociedade, pois esta era
uma forma de o homem ter a certeza de que era o pai da criança.
5
Souza-Leite (2009, p. 15) retoma as ideias de Leroi-Gourhan (2007) e Gimbutas (1992), em que
relacionam o sexo feminino como proporcionador de vida.
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A contestação dessa dominação teve início em torno do século XIX, quando os
movimentos feministas começaram a se organizar visando reconhecer socialmente as
mulheres, pois “a segregação social e política a que as mulheres foram historicamente
conduzidas tivera como consequência a sua ampla invisibilidade como sujeito”.
(LOURO, 2011, p. 21)
Seguindo o pensamento de Louro (2011), o discurso frequentemente utilizado
para tentar explicar o motivo da desigualdade entre homens e mulheres é a característica
biológica entre os dois sexos. Porém, um dos objetivos das feministas é mostrar que essa
desigualdade reside apenas no âmbito das concepções sociais e históricas sobre o que é
ser homem e o que é ser mulher, contudo, isso não significa que, pensando assim, estamos
negando a diferença biológica, afinal esta é claramente visível.
2 Afinal, o que é gênero?
A palavra sexo é usada cientificamente para caracterizar as diferenças biológicas
nos órgãos sexuais femininos e masculinos. Ao usar o termo gênero, estamos afirmando
as diferenças entre os sexos, porém, ao contrário da biologia, estamos partindo do
contexto social e histórico. Segundo Louro (2011, p. 25):
Ao dirigir o foco para o caráter “fundamentalmente social”, não há, contudo, a
pretensão de negar que o gênero se constitui com ou sobre corpos sexuados,
ou seja, não é negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construção
social e histórica produzida sobre as características biológicas.
Nas relações interpessoais, cada indivíduo possui uma ideia do que é ser homem
e do que é ser mulher, o que é masculino e o que é feminino, e isso pode influenciar o
discurso de cada um. E não podemos esquecer que esse indivíduo é produzido por sua
realidade, portanto, reproduz tais imagens a partir de sua construção histórica, econômica,
social e cultural.
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Ao se discutir gênero, estamos discutindo também as relações de poder6 que estão
imbricadas dentro de todos os contextos de uma sociedade. Dialogando com Louro (2010,
p. 11): “As identidades de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por
relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade”. Essas
relações de poder são aquelas em que um indivíduo é colocado numa posição de ser
melhor que outro, assim, um sujeito passa a ser o dominado e o outro, dominador.
Entretanto, “o poder não apenas nega, impede, coíbe, mas também faz, produz, incita”.
(LOURO, 2011, p. 44) Pois, para “negar”, “impedir”, ele precisa produzir o outro, formar
corpos educados 7 e moldados para agir de acordo com o sistema que se estabelece
socialmente. Para considerar algo ou alguém diferente, tem-se por base um modelo para
comparação.
Felipe e Guizzo (2013, p. 33) sustentam que “o conceito de gênero está
relacionado fundamentalmente aos significados que são atribuídos a ambos os sexos em
diferentes sociedades.” Sendo assim, conclui-se que as discussões sobre gênero
acontecem no campo social, cultural, político, e são historicamente construídas. Todavia,
faz-se necessária uma reflexão constante, coerente e embasada em estudos que
desmistifiquem todos os modelos estabelecidos de ser, vestir, falar, agir, enfim, de viver,
os quais grande parte dos sujeitos vêm sendo induzidos a seguir.
2.1 A construção da identidade de gênero
6
LOURO (2011, p. 42) relembra Michel Foucault (1987) e diz que o autor "desorganiza as concepções
convencionais – que usualmente remetem à centralidade e à posse do poder – e propõe que observemos o
poder exercido em muitas e variadas direções, como se fosse uma rede que ‘capilarmente’ se constitui por
toda a sociedade”.
“O corpo educado: pedagogias da sexualidade” é o nome da obra literária em queGuacira Lopes Louro é
a organizadora. 3. ed., Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010.
7
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O constante processo de construção de identidade de gênero diz respeito à forma
como cada indivíduo se enxerga, ou seja, como se identifica diante das diferenças que
foram, ao longo do tempo, formadas entre os sexos, levando em consideração suas
vivências, seus valores e suas concepções.
As diversas identidades que o sujeito possui são flexíveis, mutáveis, e
acompanham o indivíduo por toda a sua vida, interferindo no seu comportamento como
participante de um sistema que foi pré-estabelecido politicamente, socialmente,
culturalmente e historicamente
As mudanças dessas identidades acontecem também de acordo com as
necessidades do grupo social, ou seja, em ser visto, ou, conforme as palavras de Louro
(2010, p. 12), em “responder afirmativamente a uma interpelação e estabelecer um sentido
de pertencimento a um grupo social de referência”, em um contexto amplo em que todos
os indivíduos estão inseridos.
Somos sujeitos de muitas identidades. Essas múltiplas identidades sociais
podem ser, também, provisoriamente atraente e, depois, nos parecem
descartáveis; elas podem ser, então, rejeitadas e abandonadas. Somos sujeitos
de identidades transitórias e contingentes. Portanto, as identidades sexuais e de
gênero (como todas as identidades sociais) têm o caráter fragmentado, instável,
histórico e plural, afirmado pelos teóricos e teóricas culturais. (LOURO, 2010,
p. 12)
No contexto em que vivemos, está determinado que homens e mulheres devem
assumir uma identidade heterossexual, sendo que toda e qualquer forma de sexualidade
vivida que difere desse padrão estabelecido se torna um insulto aos demais sujeitos que
seguem este modelo social e sexual machista.
2.2 Todos nós temos um corpo
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Vivemos em uma sociedade cujas manifestações corporais vêm sendo observadas
e avaliadas pelos demais sujeitos. O corpo fala e é a partir dele que nos fazemos ser
compreendidos. É formado e constituído pela biologia e ganha significado através da
cultura. Rosa (2013, p. 19) menciona as ideias de Santos (1998, p. 69), que diz que o
corpo “já não é mais só biologia [...], não é mais só cultura [...]: o corpo que se produz
aqui é o resultado desta interação”. A cultura modifica, incita e propõe novas formas de
ser, estar e sentir-se pertencente a um grupo social. Entretanto, quando esse indivíduo
busca não fazer parte desse ciclo, acaba por se tornar parte das minorias segregadas.
Acompanhando as ideias de Schwengber (2013, p. 74):
Cada um de nós traz marcas que foram tecidas na trama da vida, em tempos e
espaços determinados, as quais foram compondo um corpo que carrega sua
historicidade – história que não determina, mas que provavelmente fala tanto
dos seus limites quanto de suas possibilidades de mudanças.
Um sujeito traz consigo uma bagagem histórica e concepções que interferem
diretamente na constituição de seu corpo. Nesse contexto, podemos observar que o corpo
é alterado a partir de estímulos sociais, transformando a realidade e até mesmo sua
dimensão biológica, dependendo do contexto histórico e cultural do indivíduo.
3 A interferência do gênero no disciplinamento dos corpos infantis
Na educação, principalmente infantil, muito se fala das estruturas cognitivas,
motoras e afetivas das crianças, contudo, as interferências do gênero na formação dos
pequenos também devem ser debatidas nas escolas e em cursos de graduação (FELIPE,
2013 apud FELIPE; GUIZZO, 2000). Profissionais dessa área devem se reconhecer como
contribuintes na construção da identidade das crianças, porém não podem permitir que
comportamentos pré-estabelecidos, seja para ambos os sexos, tornem-se fator primordial
nesse processo.
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205
Consideramos importante aqui ressaltar o quanto educadores e educadoras
precisam estar em constante processo de atualização para que tenham a
possibilidade de assumir atitudes e posições reflexivas em relação às situações
que acontecem cotidianamente nos espaços educacionais, em relação ao
gênero, à sexualidade, à raça, à etnia, dentre outros. (FELIPE e GUIZZO, 2013,
p. 39)
Uma das contribuições dos estudos de gênero é proporcionar ao educador a
reflexão em não determinar, por exemplo, comportamentos, objetos, cores como sendo
do sexo feminino e/ou masculino. Cabe aqui ressaltar que grande parte dos educadores
foram formados e produzidos em um contexto que “não disponibiliza outras formas de
masculinidade e feminilidade”. (FELIPE; GUIZZO, 2013, p. 33) Por esse motivo,
acabam, muitas vezes, reproduzindo o que aprenderam, estabelecendo regras de
comportamento para suas crianças e reforçando o discurso das relações desiguais entre os
sexos, como: “meninos não choram e meninas falam baixo”.
4 Metodologia
Para viabilizar a pesquisa e transpor o senso comum em conhecimento científico,
optamos pela pesquisa de abordagem qualitativa, e utilizamos como instrumento de coleta
de dados a entrevista semiestruturada. Para Triviños (1987, p.146), esse tipo de entrevista
“[...] ao mesmo tempo em que valoriza a presença do investigador, oferece todas as
perspectivas possíveis para que o informante alcance a liberdade e a espontaneidade
necessárias enriquecendo a investigação. [...]”
Por meio dessa pesquisa, objetivou-se compreender a concepção de gênero das
profissionais da educação infantil e sua interferência na constituição de ser menino e
menina. Na primeira etapa, realizamos um estudo, por meio de leitura de livros e artigos
que problematizassem o tema escolhido por nós.
Na segunda etapa, para a coleta de dados, entrevistamos uma professora, uma
auxiliar de professora e a coordenadora de uma instituição de educação infantil de Campo
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Grande – MS. A escolha dos sujeitos de pesquisa se deve ao fato de que nossos critérios
foram: profissionais atuantes da educação infantil, graduadas e graduandas de Pedagogia,
e as que possuíam mais tempo de carreira na instituição. O campo de pesquisa escolhido
é o nosso local de trabalho, onde vivenciamos cotidianamente estereótipos de gênero na
construção da identidade das crianças pequenas. Nesse sentido, durante a análise,
trouxemos também elementos da observação cotidiana das práticas pedagógicas
vivenciadas.
Para manter o rigor da pesquisa, os nomes das entrevistadas foram mantidos em
sigilo, de forma que, para identificá-las, denominamos a auxiliar de professora como A1,
a professora como P1 e a coordenadora, C1, o nome da instituição também foi mantido
em sigilo.
5 Apresentação, análise e discussão dos resultados
A pesquisa, objeto desse estudo, busca problematizar a concepção de gênero das
profissionais da educação infantil e como isso interfere na constituição de ser menino e
ser menina. Buscamos identificar se o entendimento dessas profissionais em relação ao
tema gênero contribui com suas práticas nas salas de atividades e de que forma isto
influencia a construção da identidade dos/as pequenos/as.
5.1. Formação acadêmica
Em nossa entrevista, as três primeiras perguntas dizem respeito à formação
acadêmica de cada uma das profissionais escolhidas a partir de nossos critérios.
 A1 – 47 anos de idade, cursa o sexto semestre de Pedagogia e trabalha há seis
anos na área da educação, nas salas de atividade. Atua com crianças de um e
dois anos.
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207
 P1 – 29 anos, formada em Pedagogia, pós-graduada em Educação Infantil e em
Alfabetização e Letramento. Trabalha há seis anos na área da educação, e
atualmente desenvolve atividades com crianças de três e quatro anos.
 C1 – 33 anos, formada em Pedagogia, pós-graduada em Psicopedagogia e
mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional. Trabalha há dezenove
anos na área da educação, sendo coordenadora da instituição onde esta pesquisa
foi realizada há pouco mais de um ano.
5.3 Concepções de gênero
A compreensão de gênero exige que análises históricas e culturais sejam
consideradas. Vale ressaltar que esses conceitos carregados de fatores externos estão em
constante processo de ressignificação, formando diferentes sujeitos. A partir dessas
considerações, questionamos as entrevistadas, que também foram produzidas a partir
desse meio, quais eram suas concepções de gênero e se essas questões foram e/ou estão
sendo trabalhadas nos cursos de graduação.
A1 diz que, segundo a educação familiar que recebeu, a diferenciação de gênero é
um fator de grande influência em seu convívio social. Porém, destaca que, questões a
respeito de sexualidade não eram discutidas em âmbito familiar.
Felipe e Guizzo (2013, p. 37) ressaltam:
A maioria das famílias vê a infância como um período de inocência e pureza,
pois nessa fase da vida acreditam que as crianças devem ser “protegidas” e
“preservadas” de determinados tipos de conhecimentos como, por exemplo,
aqueles que de certa maneira se vinculam à sexualidade.
Ela acredita também que, por meio de discussões de gênero na graduação, os/as
pedagogos/as irão se conscientizar e buscar nova visão sobre o assunto, para que não
venham interferir negativamente na construção das diversas identidades das crianças ao
longo de sua vida. Sobre isso, Felipe e Guizzo (2013, p. 39) salientam:
O pouco conhecimento sobre as temáticas de gênero e sexualidade apresentase como um dos fatores pelos quais professores e professoras, na maioria dos
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casos, continuam ensinando, mesmo que “discretamente”, modos de ser e de se
comportar de maneira diferenciada e desigual para meninos e meninas.
A1 tem a convicção de que essas discussões oportunizam a troca de conhecimento,
e que o gênero deve ser trabalhado de forma socializadora, para que não haja separações
ou distinções.
Questionada sobre as discussões de gênero em seu curso de graduação, P1 afirma:
Questões de gênero foram discutidas, mas trabalhar com esse tema foi bem
polêmico, porque surgiram muitas dúvidas. Mas foi bom porque isso foi me
esclarecendo. Estávamos em um processo de formação, logo, logo estaríamos
aqui, na prática, então teríamos que saber exatamente como lidar com essas
questões. Sempre nos perguntávamos: se um menino quer passar batom, o que
fazer? Se o menino quiser usar rosa, o que fazer? E o que sempre discutíamos
era: o palhaço não faz maquiagem, por que a criança em sala de aula não pode
usar maquiagem? Não pode se pintar só porque é menino? Eu acho que
trabalhamos com a diversidade, e o preconceito não é da criança, o preconceito
é nosso, dos adultos8.
A fala da entrevistada nos permite perceber que há avanços, contudo, observamos
cotidianamente que em sua prática existem retrocessos, já que foi possível observarmos
em seu ambiente de trabalho muitos elementos que deixam claro a segregação dos
gêneros, que ocorre discretamente, por exemplo: números nas cores rosa e azul, enfeites
de ursos rosa destinados para meninas e carrinhos para os meninos. Nessa perspectiva,
Sabat (2013, p. 98) indica:
[...] tais elementos, ensinam modos específicos de feminilidade e
masculinidade, ensinam formas corretas de viver a sexualidade, ensinam
maneiras socialmente desejáveis para os sujeitos, levando em conta o sexo de
cada um, de acordo com os modos por meio dos quais tais identidades são
representadas.
É importante ressaltar que P1 também é produzida como professora e como mulher por
seu meio e, devido a isso, sua prática acaba se tornando um reflexo dessa produção.
Também é notável, a partir de suas afirmações, que desconhece o verdadeiro significado
do termo gênero, confundindo diferenças sociais com diferenças biológicas dos
indivíduos. Afirma, por sua vez, que a forma como trabalha questões de gênero em sala
8
Trecho retirado integralmente da fala da professora.
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com os/as pequenos/as é conversando com eles/as sobre as diferenças dos órgãos sexuais
femininos e masculinos a partir das curiosidades de cada um.
Como podemos apreender, o conceito de gênero descreve o que é socialmente
construído e é utilizado em contraposição ao sexo que está circunscrito ao
biológico. Nessa compreensão, gênero distingue-se de corpo, ou seja, não se
refere ao corpo biológico, natural. Assim, o sexo de um indivíduo é uma
entidade à parte e com existência em si mesma. (CARVALHO, 2011, p. 64)
Já C1 ao expor as suas concepções, nos disse:
Eu acho que gênero é uma questão que está sendo muito discutida agora, mas
ainda existe certa barreira para as pessoas aceitarem-nas. Eu acho que hoje
temos outra visão sobre esta relação de gênero, nós mesmas fomos educadas
em ambiente em que homem fazia algumas coisas e mulher fazia outras. Hoje
não existe mais isso, hoje existe o compartilhamento de ações, atividades em
conjunto. Então, não há mais essa separação de gênero, é claro que nós
encontramos pessoas que ainda fazem isso, e até crianças. 9
Observamos que, para C1, gênero é constituído por fatores externos, culturais e
históricos, entretanto, ao nos explicar suas concepções, ela acaba hesitando em alguns
momentos e não responde com clareza a nossa indagação.
Gonini e Lima (2009, p. 57), por sua vez, retomam as ideias de Louro (1997;
1995), nas quais está ancorada a nossa afirmação, ao dizer:
O termo “gênero” passou a ser utilizado como forma de se falar da organização
social entre os sexos, de insistir no caráter social da definição entre
feminilidade e masculinidade, sendo que cada cultura define o que é ser
masculino e feminino [...]. O sujeito se constrói masculino ou feminino através
dos padrões determinados pela cultura, em que os corpos recebem um
significado e ao mesmo tempo são por ela modificados.
Faz-se necessário, então, pluralizar as concepções de gênero e entender que a
sociedade é constituída por sujeitos que constroem suas identidades a partir de diferentes
convicções. Esses sujeitos, produzidos por esse meio social, passam a olhar para os
demais de forma excludente, fazendo com que quem não se enquadre nesse perfil padrão
se sinta “anormal” e “desviante”. Portanto, pode-se concluir que a sociedade, ao mesmo
tempo em que produz sujeitos, exclui-os também.
9
Trecho retirado integralmente da fala da coordenadora.
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5.4 Concepções de feminino e masculino
Indagamos as entrevistadas sobre seus conhecimentos acerca do feminino e do
masculino, buscando saber se suas concepções interferem no comportamento dos/as
pequenos/as. A1, sobre suas ideias no que tange a feminino e a masculino, respondeu-nos:
Eu acho que isso é uma coisa assim que..., que na verdade... é..., como vou
dizer? Eu não sei como te dizer..., é assim..., é uma coisa que eu acho que
colocaram isso, vieram e colocaram: esse é feminino e esse é masculino, mas
todos são seres humanos, todos têm o mesmo sentimento, assim todo mundo
sente, todo mundo tem suas emoções, suas dores. Então, eu acho que não
deveria haver feminino e masculino.10
É possível perceber que A1 sabe que essas concepções não foram naturalmente
construídas quando afirma: “colocaram isso, vieram e colocaram”. Feminino e masculino
são termos culturalmente, historicamente e socialmente usados na diferenciação de
comportamentos, objetos e valores destinados a homens e mulheres. Pelo mesmo viés,
Carvalho (2011, p. 63) sustenta nossa ideia quando diz que “os significados do masculino
e feminino imbricam-se em toda a rede de significações sociais”.
Já P1 nos afirma que, durante sua rotina, incita as crianças a construírem sua
identidade e estimula a sua autonomia, porém, ao expor suas ideias, diz: “Minha
concepção é assim: que há diferença entre o que é de menino e o que é de menina, mas só
que você não precisa ser rígido.”11
Por meio de observações, testemunhamos que em determinados momentos de sua
rotina, P1 se dirige às crianças dizendo: “Princesas sentam-se de pernas cruzadas”.
Automaticamente, todas as meninas se sentam e cruzam as pernas. Nessa situação, o termo
“princesas” é visto como símbolo de feminilidade e delicadeza para se dirigir às meninas.
Sabemos que esse comportamento da P1 é reflexo de mecanismos sociais e, devido à
10
11
Trecho retirado integralmente da fala da auxiliar de professora.
Trecho retirado integralmente da fala da professora.
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própria formação, ela acaba por não respeitar as diferentes manifestações corporais e
culturais das crianças. Louro (2011, p. 28) explica:
Papéis seriam, basicamente, padrões ou regras arbitrárias que uma sociedade
estabelece para seus membros e que definem seus comportamentos, suas
roupas, seus modos de se relacionar ou de se portar... Através do aprendizado
de papéis, cada um/a deveria conhecer o que é considerado adequado (e
inadequado) para um homem ou para uma mulher numa determinada
sociedade, e responder a essas expectativas.
Sustentadas por estas ideias, notamos que P1 determina papéis nos quais os/as
pequenos/as acabam se sentindo obrigados/as a se enquadrar, haja vista as características
pré-determinadas pela educadora como sendo específicos para o sexo feminino e aquelas
que são de exclusividade do masculino.
Já C1, com muita insegurança, respondeu: “Concepções? Feminino e masculino?
É tão difícil você definir o feminino e o masculino, porque é algo natural, né? É alguém
que nasce homem e outro que nasce mulher. E, assim, deixe-me pensar: feminino e
masculino.”12
Percebemos que C1 acredita na naturalização do gênero, já que afirma que o
homem nasce homem e a mulher nasce mulher. Louro (2011, p. 85), por sua vez, contesta
essa concepção ao dizer:
Ora, se a identidade heterossexual fosse, efetivamente, natural (e, em
contrapartida, a identidade homossexual fosse ilegítima, artificial, não natural),
por que haveria a necessidade de tanto empenho para garanti-la? Por que
“vigiar” para que os alunos e as alunas não “resvalem” para uma identidade
“desviante”? Por outro lado, se admitimos que todas as formas de sexualidade
são construídas, que todas são legítimas, mas também frágeis, talvez possamos
compreender melhor o fato de que diferentes sujeitos, homens e mulheres,
vivam de vários modos seus prazeres e desejos.
É de grande valia saber que somos produzidos por diversos mecanismos sociais, e
que a produção da diferença não é inata ao sujeito: “[...] a tarefa mais urgente talvez seja
exatamente essa: desconfiar do que é tomado como ‘natural’”. (LOURO, 2011, p. 67).
12
Trecho retirado integralmente da fala da coordenadora.
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Afinal, para considerar o/a outro/a como diferente, sempre existe um modelo hegemônico
de comparação que é tido como normal, padrão.
5.5 Seria a escola um ambiente onde o sexo feminino deva predominar?
A1 nos relata:
Eu aceitaria que, de repente, posso até pensar assim, que ele não tenha
habilidade nenhuma. Às vezes, eu penso, mas, aí, você vai ver, vai trabalhar
junto, observar e você vê que tem, né? Porque, se ele escolheu estar ali, não foi
à toa. Porque há “N” profissões para homem e ele escolheu a pedagogia. Então,
de repente, né?13
Ela nos demonstra que ainda há ressalvas sobre a inserção de um homem na
docência da educação infantil ao ressaltar: “Posso até pensar assim, que ele não tem
habilidade nenhuma”. É notável, em sua afirmativa, um preconceito em relação à presença
do sexo masculino em sala, e, consequentemente, a entrevistada acaba pré-julgando as
habilidades masculinas para esse trabalho.
P1, para responder a tal questão, faz uso da história da pedagogia. Ela relembra
que a pedagogia era escolhida por mulheres devido ao fato de estas poderem ser mães.
Dessa forma, saberiam como se relacionar com as crianças, pois conheceriam as suas
necessidades.
Para
problematizarmos
as
respostas
das
entrevistadas,
faremos
uma
contextualização histórica a respeito da feminização do magistério 14 . Esse processo
iniciou-se por volta da segunda metade do século XIX. Com as mulheres já restringidas
ao espaço privado e destinadas a cuidar dos maridos e da educação dos filhos, nenhuma
profissão seria adequada para o sexo feminino. Com isso, Louro (2011, p. 100) explica
que “em seu processo de feminização, o magistério precisa, pois, tomar de empréstimo
13
14
Trecho retirado integralmente da fala da auxiliar de professora.
Termo utilizado por Louro (2011), para explicar o processo de feminização do magistério.
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atributos que são tradicionalmente associados às mulheres, como o amor, a sensibilidade,
o cuidado, etc. para que possa ser reconhecido como uma profissão admissível ou
conveniente.”
Nesse contexto, a docência passou a ser vista como a profissão indicada para as
mulheres, pois envolvia práticas educativas, e o cuidado era visto como tarefas femininas.
Portanto, segundo Carvalho (2011, p. 65):
A questão central quanto ao trabalho docente é que sua feminização não diz
respeito apenas à entrada das mulheres na ocupação de professora, mas ao
deslocamento de significados – de escola, ocupação, ensino, mulher,
maternidade, masculinidade, criança –, que resultou na contiguidade observada
entre as representações de mulher, mãe e professora.
A concepção de que a escola é um lugar onde o sexo feminino deve predominar
foi construída a partir de ideais daquela época (século XIX), prevalecendo até os dias
atuais. Isso explica a ressalva de A1 e o resgate histórico feito por P1, ao serem
questionadas sobre a inserção do homem na docência.
C1 tem a concepção de que o/a professor/a nasce com esse dom ou vocação. Essa
crença surgiu na época em que o Brasil era dominado por Portugal: "O modelo de
professor era o religioso, envolvendo a docência numa aura de vocação e sacerdócio,
mesmo em se tratando de professores leigos." (LUDKE; BOING, 2004, p. 1.173). Porém,
na sociedade atual, ser professor/a exige formação acadêmica, especificidades
pedagógicas e práticas de caráter educativo, contribuindo na formação de indivíduos
capazes de romper com paradigmas baseados em princípios de desigualdade, formando
uma nova sociedade, justa e igualitária.
Considerações finais
Como proposta inicial, buscamos compreender as concepções de gênero das
profissionais de educação infantil e avaliar se suas práticas interferiam na construção da
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identidade de gênero das crianças. Para alcançar nossos objetivos, fizemos uma análise
histórica do processo de construção do gênero, contudo, este, além de ser uma concepção
histórica, é também constituído a partir do contexto social e cultural, estando em
constantes adaptações.
Essa pesquisa possibilitou-nos perceber que o conceito de gênero, embora
discutido nos cursos de graduação das entrevistadas, ainda é pouco compreendido dentro
do seu ambiente de trabalho. Notamos que elas possuem uma ideia polarizada,
confundindo as diferenças biológicas com as concepções de gênero. Por ser o espaço de
educação infantil de grande influência na construção das diversas identidades das
crianças, acreditamos que o debate do tema “gênero” contribua relevantemente com as
práticas dos/as pedagogos/as, de modo que não interfiram no disciplinamento dos corpos
infantis.
Estamos abertas às intervenções da academia e sempre sujeitas a novos
questionamentos, pois acreditamos que as discussões não podem terminar sem outros
olhares e aprofundamento. Nós temos a concepção de que questões de gênero estão em
constante ressignificação, acompanhando as mudanças do contexto social em que
estamos inseridos, permeando as relações entre os sujeitos e constituindo as diversas
identidades de cada indivíduo ao longo da vida.
Referências
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2006. Estabelece Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em
Pedagogia, licenciatura. Brasília, 2006.
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docentes. Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n. 89, p. 1159-1180, set./dez. 2004. Disponível
em: <http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 3 nov. 2014.
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CARVALHO, Eronilda Maria Góis de. Relações de gênero, cuidado e trabalho docente
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MERCADO SEXUAL E TRABALHO: CONVERSA ENTRE MULHERES PARA COMPREENDER
A REALIDADE E ATUAR NA GARANTIA DE DIREITOS
Estela Márcia Rondina Scandola
Silvana Colombelli Parra Sanches
1 Do lugar que falamos e das aproximações sucessivas da realidade
Vive-se em meio a contradições econômicas, políticas e culturais. Pensar sobre
elas por vezes é um árduo exercício, cujas respostas já não nos satisfazem. Por exemplo,
como em uma região com tanta riqueza, o centro-oeste brasileiro, há tanta precarização
de políticas públicas? Como há tantos serviços criados, tantas leis protetivas e
concomitantemente tantas pessoas desassistidas? Por que em tempos de discurso de
avanços de liberdades, inclusive a sexual, há tanta violência, tanta compra de sexo? As
respostas fáceis, lineares não respondem, não revelam a complexidade dos
acontecimentos. A aproximação com a realidade sem dispor-se a pensar, re-pensar
também não é reveladora.
A concentração de riquezas e poderes conjugam-se na região centro-oeste como
constitutivos da nossa realidade e isso vai sendo demonstrado por diferentes formas e,
sem dúvida a demonstração se dá por meio da apresentação de políticas públicas tão
benfazejas para aqueles que já tem tanto e tão tacanha para aquelas pessoas sobreviventes
nas desigualdades. As liberdades estão condicionadas pela organização econômica que se
junta com o patriarcado criando um cenário de não direitos às mulheres.
Dentre os direitos mais negados, sem dúvida, estão os direitos sexuais que quase
nunca se expressam como reconhecimento de direitos, mas se (in) visibilizam pela sua
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negação quando se discutem temas como a violência sexual, as gravidezes indesejadas, o
aborto, as diversidades. A tal liberdade sexual mostra-se uma falácia porque baseia-se no
patriarcado, no poder de homens adultos, e, muito pouco se avançou para compreender e
libertar definitivamente mulheres, crianças e jovens. Neste sentido, durante a década de
80 no Brasil, a intelectual feminista Saffioti (2001) já se preocupava com a precisão da
sociedade em delimitar os campos em que a mulher pode operar, da mesma forma como
escolhe os terrenos em que o homem pode atuar. Segundo esta autora, a educação
dispensada à chamada “mulher de bem” na sociedade brasileira, deixa muito pouco
espaço ao gozo do prazer. No outro extremo dos particularismos a que as mulheres estão
sujeitas, se encontram as trabalhadoras do sexo, as quais são consideradas
[...] ‘el mal ejemplo’, ‘las perdidas’, ‘las desviadas’ y el estigma está tan instalado que,
aunque en la mayoría de nuestros países el trabajo sexual no es delito, las mujeres que lo
ejercemos somos blanco permanente de la violencia institucional, tanto desde las fuerzas
policiales como desde las entidades de salud y el poder policial. Muchas veces, las
organizaciones de la sociedad civil también reproducen la discriminación, cuando nos
toman como objetos de estudio en lugar de tratarnos como sujetos de derecho (TOBAR
et al.; 2007, p.11).
É a partir desse olhar, comprometido com a luta por direitos humanos integrais,
indivisíveis e comprometido com a história dos grupos com os direitos mais violados, que
se expressa o pensar sobre a relação dos direitos das trabalhadoras sexuais e o
enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes, em uma perspectiva que
não há contraposição, mas perspectivas de encontros. Não se trata, então, de direitos das
mulheres de um lado e das crianças e adolescentes de outro, mas de direitos
interdependentes que se necessitam em busca de integralidade. E, todos esses direitos,
encarnados em uma realidade de desigualdades.
Este artigo discute esses direitos a partir da influência das mulheres trabalhadoras
sexuais na produção do conhecimento. Estar com elas em diferentes espaços – nas ruas,
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nas boates, nos eventos – move a lente treinada das pesquisadoras para situações
inusitadas e surpreendentes. Conviver com Rosarinas, Lourdes, Ledas, Fátimas e Beths,
mulheres que se mostraram à sociedade e construíram coletivos, além da decisão
permanente de ouvi-las, exercitar a alteridade, compromete totalmente a percepção e a
fala, sobretudo guia o agir científico. A não neutralidade impõe-nos a busca da
objetivação permanente, decisiva.
2 Aprendizados sobre trabalho e mercado sexual
O primeiro exercício consistiu em pensar sobre como se referir às mulheres que
trabalham no mercado sexual, cuja pergunta que guiava era: Como devo lhe chamar?. No
entanto, no II Foro Latinoamericano de VHI\SIDA, em Cuba, no ano de 2003, houve o
encantamento pela Elena Reynada, da secretaria executiva da Red de Trabajadoras
Sexuales de Latinoamerica Y Caribe e liderança da Asociación de Mujeres Meretrices de
la Argentina. Em mesa composta por órgãos como a Organização Mundial de Saúde
(OMS), a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), além de Fidel Castro – que
discursou por três horas e meia –, e a presença maciça da população, Reynada iniciou
sua fala ao dizer:
Yo no soy una nochera, yo no soy una quenga, yo no soy una esquinera,
yo no soy puta, yo no soy una dama de la noche, yo no soy acompañante
de hombres... Yo no soy esto o aquello; yo soy una mujer. Yo soy una
mujer trabajadora, yo soy una mujer trabajadora del sexo.
Ao adotarmos o posicionamento que a Federação Latina nos apresentou
resolvemos um primeiro impasse que é: como devo chamar as mulheres que estão no
mercado sexual? As disputas entre “profissionais do sexo” e “prostitutas” foram
substituídas pela inclusão da terminologia trabalho. Há aqui o convencimento de que o
termo trabalho vinculado à prática sexual é identificador do grupo social ao qual pertence
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Elena, e, expande-se, neste sentido, para a compreensão do mundo do trabalho a partir
das próprias mulheres que estão no mercado sexual. No entanto, aquilo que é trabalho
para uns não é trabalho para outros. Ao comparar, por exemplo, as mulheres trabalhadoras
do cuidado doméstico, cuja tarefa é atender as necessidades de reprodução e
sobrevivência familiar, que é aquela que cuida dos filhos durante longo tempo, quando
precisa abrir crédito, alguém pergunta: "Você trabalha?". Ela fala: "Não, não trabalho!"
Por quê? Porque é um trabalho que, embora tenha valor, não é colocado preço. Também
não há registro formal do trabalho e, assim, mesmo cuidando do desenvolvimento pessoal
de crianças, jovens e mesmo do companheiro, isso não é considerado trabalho pela
maioria da sociedade.
Na história, definiu-se trabalho como aquele que tem preço, que faz o mundo
econômico girar e, aquele que, embora garanta a reprodução deste próprio mundo, não é
chamado de trabalho. Há outro jeito de olhar que é importante para a discussão do
trabalho sexual: o trabalho que “a moral dominante” quer que seja trabalho, e, portanto,
legaliza-o – aquilo é trabalho.
Aquilo que a sociedade não legaliza e não é considerado trabalho legalmente, não
adquire importância para as políticas que cuidam do trabalhador e da trabalhadora.
Observa-se que há o trabalho que a sociedade define como tal e há o trabalho que a lei
define. E existe trabalho que a sociedade, no senso comum e no acordo moral, social e de
manutenção da ordem, não o vê e a lei não o reconhece. Estaria aqui o caso do trabalho
sexual?
Um dos pressupostos fundamentais para o capitalismo sobreviver é de que há
pessoas que vendem a força de trabalho para as que têm os meios de produção. É sobre o
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preço pago pela força de trabalho e o preço da mercadoria que ocorre o lucro – este
enriquece alguns; outros continuam vendendo a força de trabalho e não conseguem repor
suas forças. Este ciclo resulta na manutenção da ordem entre os que vendem, os que
compram e os que lucram. O preço sobre o trabalho a ser realizado no mercado sexual é
definido por diferentes formas e isso depende da própria organização do mercado,
podendo ser intermediado pelos donos de locais onde ocorre o contrato de trabalho, pelos
donos onde ocorre a execução do trabalho ou mesmo agenciadores e donos de pontos de
rua. Nessas diferentes formas ocorrem autonomias e explorações no apreçamento dos
serviços.
Formas distintas também ocorrem no apreçamento: o contrato de horário e o
contrato de serviço, sendo que no primeiro os serviços prestados podem ser diversos e
podem ter ou não controle por parte da trabalhadora; no segundo, o acordo se estabelece
entre a compra e a venda de serviços diretamente com o cliente e a trabalhadora.
O que a profissional do sexo comercializa é o prazer, as fantasias e não o corpo
em si. Esta afirmação aparece tanto em trabalhos acadêmicos (SANCHES, 2003) como
em livros autobiográficos (SURFISTINHA, 2005). Como afirmou uma liderança em um
evento: "Eu não vendo meu corpo. Se eu estivesse vendendo meu corpo, não tinha mais
cabelo não tinha mais nada. Eu vendo fantasia." É essa venda de fantasia que utiliza a
força de trabalho e causa desgaste às trabalhadoras, seja do seu corpo, da sua mente, e vai
influenciando sua vida como ocorre com outros trabalhadores de outras cadeias
produtivas, como a relacionada ao frigorífico. O frigorífico de frango contrata mulheres
porque as mulheres foram educadas, por gerações, para terem mais destreza com
trabalhos que exigem detalhes. O frango que se compra no supermercado, a sobreasa,
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leva nove cortes para ficar pronta e assar na churrasqueira. São as mulheres que fazem
esse trabalho e precisam de alta concentração para atingir as metas colocadas pela
velocidade da esteira. As mulheres contratadas para esse trabalho, geralmente a partir de
seis meses, vão desenvolver Lesão por Esforço Repetitivo (LER) e vão ficar inválidas. A
partir daí não poderão mais atuar naquele trabalho e, em alguns casos, em nenhum outro.
Ficam lesionadas no corpo, ficam deprimidas, a alma adoece, e os problemas do trabalho
atingem toda a sua vida e sua família de forma impactante e fatalista.
A diferença entre a trabalhadora do frigorífico e a trabalhadora sexual é a forma
como a sociedade “valora” moralmente o uso do corpo. Uma mulher trabalhadora no
comércio sexual vai usar todo o seu corpo sexuado. Algumas vão beijar, outras vão ter
relações sexuais penetrativas vaginais, outras anal, outras vão fazer sexo oral, outras vão
abraçar e outras vão ficar do lado do cliente, conversando com ele, acompanhando-o no
restaurante, fazendo striptease. A trabalhadora sexual utiliza muitas partes do corpo,
planeja o seu trabalho, desenvolve diferentes técnicas e utiliza grande criatividade para
cumprir as metas acordadas com o cliente e com o dono das casas. No caso do corpo das
mulheres que cortam sobreasas de aves, o corpo é utilizado para dar sustentação aos
braços e mãos que vão se movimentar para os cortes. Toda a possibilidade de criatividade
é mal vista, pois pode atrapalhar a padronização do trabalho e o corpo integral não é
percebido como sendo um ser vivo, mas apenas um fornecedor de força de trabalho que
exige habilidades físicas, desconsideradas as mentais.
A valoração da honra do trabalho, apregoada em muitas situações discriminatórias
contra as mulheres trabalhadoras do mercado sexual, está ligada à moral dominante de
manutenção dos órgãos sexuais das mulheres à reprodução, ou seja, a manutenção da
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espécie a partir da decisão machista de quem são as mulheres “honestas”, aquelas que
dispõem do corpo sexuado para os homens, enquanto eles dispõem conforme lhes convém
sexualmente. Isso resulta na negação do corpo sexuado para todo o restante do viver.
Assim, a questão central dos problemas morais dominantes com a prostituição
nada tem a ver com vender uma parte ou outra do corpo humano: tem a ver com o uso do
corpo sexuado. Tanto faz a mulher que corta frango quanto a mulher que está na rua e vai
fazer um programa sexual, no que se refere ao uso do corpo. O que está em jogo é a moral
sexista que consagra partes do corpo e amaldiçoa outras. Há diferença no valor sagrado
do braço e da vulva, no desgaste do corpo sexuado integral e por partes, na destinação do
uso da criatividade. Também a criatividade é de boa índole ou não. A criatividade para
melhorar o trabalho no frigorífico é bem vinda e controlada; e, a criatividade para o
trabalho sexual, moralmente condenável.
Um dos encontros entre o machismo (os homens devem ser criativos sexualmente
e as mulheres subservientes, inclusive definindo quando devem ser criativas ou não) e o
modo de produção capitalista (a criatividade é bem vista a serviço da produção), tem
terreno fértil no controle dos corpos sexuados, impondo a sua utilização à conveniência
do lucro. O trabalho sexual como uso do corpo sexuado criativo incomoda a nós todos/as,
pois significa repensar o que na nossa vida fomos forjados em senso comuns e pré
conceitos sobre o mundo da prostituição, a honestidade, a honra, os papéis sexuais
formadores das personalidades, identidades e comportamentos. Também pode incomodar
a insurgência das mulheres que, controlando seus corpos, controlam a produção e,
também podem decidir sobre ambos.
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Aprofundar o conhecimento sobre o mercado sexual torna-se uma exigência
importante para trabalhar visando à garantia dos direitos dos trabalhadores/as deste grupo
social. Junto com as mulheres, já conseguimos identificar diferentes tipos de apresentação
do mercado sexual com prostituição.
1. Casas tradicionais que podem ser mais ou menos configuradas em três tipos: as
que atendem pessoas muito ricas, as que atendem pessoas de nível médio,
funcionários públicos, e as casas de prostituição que fazem o programa “de R$
5,99". Nós identificamos essas casas muito presentes ainda. É a casa que ainda
coloca luz vermelha na frente ou números grandes. É a casa que o caminhoneiro
na beira da estrada ainda para. É a casa onde o peão de fazenda ou homens ricos
mantém freqüência.
2. Comércio da internet individualizado, que pode ocorrer para agendamento de
programas com encontros pessoais, sendo o mais comum a utilização de salas de
bate-papo.
3. Turismo com trabalho sexual agregado, ou seja, um grupo de turistas vem e as
mulheres vão servir àquele grupo, seja em casas e pesqueiros que os turistas
alugam, seja em agências que propiciam hotéis, locação de casas e as próprias
mulheres. Geralmente não há contratação das mulheres em grupo. Elas são
convidadas individualmente.
4. Boates e uisquerias (muitas são casas de prostituição tradicional chamadas de
boates, mas outras têm a centralidade do trabalho nos shows e venda de bebidas).
Nesses locais, não fica muito explícito quais são as atividades que vão ser
executadas dentro da boate. O trabalho das mulheres vai desde fazer o show,
cantar, fazer striptease, servir bebidas Nesse caso, pode ocorrer agenciamento
para atender sexualmente os clientes ou não. Em alguns lugares são encontrados
quartos contíguos ou poderá ir para outro hotel/motel.
5. Casas de massagem – podem ser anunciadas como tal em jornais e informam
que precisam de moças e não é necessário ter prática. Geralmente são diurnas.
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Trabalhar nessas casas não tem regras muito definidas. É possível ficar nas casas
para aprender o “ofício” e não receber pelos programas realizados.
6. Agências – têm formas diferentes de trabalhar e se adaptam para uma festa, um
grupo de contratantes, um atendimento individualizado, ou seja, fica a serviço do
cliente. Geralmente o contato é totalmente virtual, especialmente por telefone
celular ou internet, inclusive o pagamento não ocorre diretamente para a mulher,
mas para a agência.
7. Repúblicas - são experiência de trabalhadoras sexuais que se juntam numa casa,
pagam o aluguel coletivamente e combinam as regras da casa. Nesse caso, mesmo
sendo uma casa, não podemos considerar como local fechado para o trabalho, pois
é de fácil abordagem por gente de fora.
8. Prostituição de rua, que é bastante tradicional e fica em locais já conhecidos pela
população, podendo ou não ter cafetões/cafetinas agenciando ou sendo “donos/as”
de uma região ou trecho. Cada cidade tem a sua dinâmica de rua. Há cidades que
o expediente ocorre apenas à noite. Em outras regiões, como postos de
combustíveis próximos às cidades, por exemplo, em que se pode encontrar
trabalhadoras do sexo a qualquer hora do dia. Elas são responsáveis pelo próprio
bem estar como roupa, agasalho ou ainda banco para descanso. Uma constante é
que a prostituição de rua ocorre em local esperado da cidade, segregado, marginal
e boêmio, em uma relação permanente entre (in)visibilidades.
9. Rituais Religiosos com atividade sexual. São situações de cárcere privado, de
rituais religiosos vinculados a atividades sexuais. Ao promover a retirada da
mulher desta atividade, é possível que fique contra quem a libertou, ao invés de
ficar a favor de ser libertada, porque ela acredita e foi levada a isso por designação
divina e não relaciona o que faz à concretude do viver, mas à crença de
necessidades de transcendência.
10. Pessoas ou grupos que se organizam para atendimento a um público específico
como deficientes e internos do sistema penitenciário. Geralmente o contrato de
trabalho é individual e as formas de acesso aos clientes são mediadas por alguém
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que já faz o trabalho. Assim, as regras de apreçamento e de trabalho são distintas
e podem ser acordadas em cada realidade.
Diante da diversidade de apresentação do mundo do trabalho sexual, há que se
considerar ainda que é preciso aprofundar sobre cada contexto e, entre eles, os diferentes
públicos que podem estar presentes, podendo ter mais ou menos presença de mulheres
mais idosas, jovens, adolescentes, homossexuais masculinos e travestis.
O mercado sexual não existe isoladamente. Pelo contrário, é partícipe do processo
sociohistórico de apreçamento da força de trabalho nos corpos sexuados. São, portanto as
relações desiguais de classe, gênero, geração, orientação sexual e etnicorraciais que
compõem o conjunto de fundamentos que desenham as fortalezas e fragilidades das
trabalhadoras que vivenciam submissões e autonomias, sofrimentos e prazeres em todo o
mundo do trabalho.
3 Desaprendizados sobre riscos e desgastes no trabalho sexual
Neste panorama, discutir sobre riscos no trabalho é fundamental para avançar em
prevenção e proteção ao trabalho. Não há como não dimensionar de forma diferente a
carga de trabalho das mulheres que vão atender em garimpo, levadas por um barco ou
avião e que somente poderão sair quando terminar o período contratado, diferentemente
de cinco a oito mulheres que alugam uma casa, combinando as regras do local com
demanda espontânea de clientes, anúncios em jornal ou internet. São dois locais de
trabalho com carga de trabalho e autonomia sobre o processo de trabalho muito diferentes,
muito embora possam guardar similaridades como riscos físicos e biológicos. Mesmo
esses riscos existindo nos dois casos – sífilis e espancamento, por exemplo –, a forma de
enfrentá-los é diferente a depender das relações de trabalho em ambos os casos.
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Todas as profissões têm desgaste: para assistentes sociais e docentes há o desgaste
emocional, para trabalhadores da construção civil há o desgaste de braços, pernas,
coluna.. E, em todas as profissões, os trabalhadores regulam o sofrimento e o desgaste.
Isso é a essência da sua humanidade. É no trabalho, em muitas situações, que há o
encontro com o prazer. Conversar sobre prazer, sofrimento, riscos, precisa ser a tônica da
discussão quando essa é feita sob a ótica da saúde do (a) trabalhador(a) e este inserido
num mundo de contradições e possibilidades.
As doenças que acometem docentes podem e devem ser discutidas, aprofundadas,
assim como o sentido da profissão que até hoje oscila entre educar e transmitir. Também
compreender o sentido de ser trabalhadora sexual é tão importante quanto os riscos do
trabalho ao qual esta pessoa está inserida. Se de um lado há os problemas de visão,
varizes, stress, do outro existem as relações que se estabelecem, os resultados do
trabalho... Para o policial, o risco de vida e a satisfação quando se soluciona um problema
de violência... Para compreender o impacto que o trabalho traz na vida das pessoas, é
preciso conhecer o modo como as pessoas trabalham, o seu meio, a forma como a
sociedade vê o seu trabalho, compreender o sentido que o trabalhador dá a sua ação. É
preciso conhecer o trabalho das pessoas a partir da ótica dos trabalhadores e trabalhadoras
daquela profissão. Por isso, ouvir as trabalhadoras sexuais é o caminho e fundamento do
que precisamos conhecer.
Conversando com um mototaxista é possível ouvir que, diante do stress do
trânsito, todos os dias de manhã pensa em fazer daquele dia o último e procurar algo mais
seguro. Mas também quando pensa na liberdade das ruas, nos relacionamentos que
estabelece, fica novamente inseguro e segue, no dia seguinte, na mesma profissão. E é
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muitas vezes um discurso que a gente ouve das trabalhadoras sexuais, do digitador, da
telefonista. Ou seja, não é somente a prostituta que às vezes quer dar um tempo no
trabalho que faz. Outras profissões estão plenas de pessoas que querem mudar de
profissão ou pelo menos manifestam-se assim em algum momento. Há discursos dos mais
variados em todas as atividades profissionais que envolvem dores, prazeres, incertezas,
ideias, sonhos.
É na conversa entre pessoas que estão envolvidas no mercado sexual que se
conhece os riscos e as formas por meio das quais estão regulando-os. Em outras categorias
os riscos podem ser físicos, biológicos, químicos, psíquicos... E no trabalho sexual, quais
os riscos? Construindo com elas um roteiro de entrevista, a curiosidade aguça e temos
uma sequência interessante:
1 -Pode ser infectada por diferentes fungos, bactérias, vírus. Que tipos e em quais
ambientes?
2 -Que produtos utiliza para a sua higiene? Que substâncias psicoativas utiliza ou
é obrigada a utilizar pelo cliente, pelos donos das casas?
3 -Que violência física sofre? Leva porrada? Que tipo de fantasias têm os clientes
sobre sexo? Que exigências físicas e psíquicas lhe impõem?
4 -Quanto precisa trabalhar para ter o mínimo para as necessidades? Quais as
condições de negociação dos valores dos programas? Com quem divide?
5 -Como prepara o corpo para o trabalho? Como repõe a força de trabalho e a
criatividade?
6 -Quanto de autonomia tem frente ao mercado sexual, ao dono da casa ou da rua,
frente ao cliente?
Perguntas como essas poderiam melhorar a capacidade de medidas protetivas no
trabalho sexual. Entretanto, o fundamental é conhecer as relações de poder que estão
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presentes neste “nicho” de mercado, sobretudo, quem regula o número de programas a
ser feito? Maria Benguela1 com certeza não regulava.
No trabalho realizado na antiga Rodoviária de Campo Grande - Mato Grosso do
Sul,2 onde circulavam em baixa temporada de pesca em torno de 120 mulheres, além das
abordagens, atendimentos, encaminhamentos e acompanhamentos aos serviços das
políticas sociais, realizaram-se oficinas que duravam de 40 minutos a 2 horas a depender
do assunto, do dia e do horário que temos disponíveis (trabalhadoras sexuais e
educadoras). O Projeto Afrodite, desenvolvido pelo IBISS-CO realizava as oficinas
somente com mulheres. O que se queria, numa sapiência acadêmica, era saber o que elas
conheciam de riscos para o HIV, na medida em que é o Programa de DST/HIV/Aids que
apoiava financeiramente o projeto. Radicalizava-se na metodologia de ouvir as mulheres,
muito embora a humildade científica não tivesse sido vivenciada. A política nacional e
os discursos midiáticos tinham formado, nas pesquisadoras, a ideia da Aids como o perigo
para as mulheres no trabalho sexual. Fez-se inicialmente uma atividade na qual uma
mulher entrevistava a outra sobre os riscos no trabalho e ao final havia as oficinas para
conhecer os resultados. Oitenta mulheres tinham sido entrevistadas. As anotações
estavam em cadernos e lembranças das conversas com as demais do território. Os dados
levantados por elas e lançados num quadro foram a partir do maior para o menor medo,
apreensão, preocupação. Obteve-se as seguintes informações:
1
Maria Benguela é uma personagem da novela Chica da Silva, escrava negra que atende num quarto dos
fundos da taberna. Ela é encarregada de “tirar o cabaço” dos rapazes do tijuco. Numa das cenas marcantes,
o dono da taberna diz: “Maria Benguela, tem mais um aí e é um cliente especial.” E ela falou: “Mas eu já
atendi oito hoje, tô tão cansada...”. E o dono da taberna responde: “Trabalha pra mim e vai atender quantos
eu quiser!”
2
Com a inauguração de um novo terminal, a rodoviária à qual nos referimos neste artigo foi desativada em
2010.
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a. Esgano e/ou violência física – medo de sair com um desconhecido de quem não
se conhece as práticas sexuais desejadas; também é difícil se livrar do cliente
depois que está sozinha com ele; menor força que o cliente e a impossibilidade de
se defender fisicamente; mesmo quando conseguem se livrar da situação não
conseguem fazer a denúncia para livrar outras da possibilidade;
b. reconhecimento por parentes e conhecidos – um número significativo informa
a familiares e vizinhos que exerce outras profissões (o que também é verdade) e
fica o tempo todo do trabalho preocupada em ser “encontrada” por parentes,
vizinhos e outros conhecidos, o que poderia trazer sofrimento, especialmente a
filhos e pais; nesse caso, especificamente com os filhos, o medo de perder a guarda
por causa da profissão;
c.Gravidez – tanto do companheiro fixo quanto do cliente; a gravidez aparece
como uma possibilidade pós-violência sexual, como exigência do tanto do
parceiro afetivo quanto do cliente de não-uso do preservativo e do somente
localizado na relação com o cliente, a gravidez por um ‘descuido’; gravidez
significa não-trabalho, não-renda, não-aceitação em casas e boates, como também
a perda de clientes;
b.HIV – incerteza sobre o futuro, medo da discriminação, da morte e também a
dificuldade de continuar no trabalho.
Ouvir as mulheres diverge muito do que se vê na televisão, que é um dos
principais veículos de disseminação de notícias e que padroniza o Brasil a partir de São
Paulo e Rio de Janeiro, sedes das suas redes. Nos meios de comunicação, a prostituição
aparece geralmente nas reportagens sobre violência e nas novelas. Nas novelas
especificamente há uma predominância do glamour das casas de prostituição e, sendo
elas servindo às burguesias de cada época, isso vai formando uma ideia de que as
mulheres ou são destituídas de qualquer poder, portanto, completamente a mando das
cafetinas ou são glamurosas e sempre contentes com o trabalho. A ideia maniqueísta do
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sim ou não de estar na profissão precisa ser colocada sob a ótica do trabalho. Também
em outras profissões há contradições e o sair ou o ficar depende das condições de trabalho.
Colocar essa questão para o mundo da prostituição e não analisar o contexto é revitalizar
o preconceito moralizante: se fica é porque quer, se sai é porque é honesta e só estava na
prostituição para sustentar a família. Em muitas situações ainda há o reforço do homem
bom que tirou uma prostituta do mundo do pecado, mesmo que isso ocorra de forma
subalternizada, lhe conferindo o cargo de amante.
É preciso fazer uma radicalidade objetiva, reconhecendo que a neutralidade é
impossível para compreender as diferentes formas que o mercado sexual se apresenta e a
presença de trabalhadores e trabalhadoras em diferentes funções. Não é uma discussão se
deve ou não existir mercado sexual, mas o reconhecimento da sua existência como
integrante da sociedade, independentemente do juízo de valor que se queira fazer. E que
o mercado de trabalho visa sempre o lucro e à exploração da força de trabalho.
No caso do mercado sexual, muitas vezes, as trabalhadoras mulheres jovens,
crianças, adolescentes são a própria mercadoria, ou seja, alguém lucra com o seu
agenciamento, com a sua venda. Mas compreender isso implica mudar a forma como as
políticas sociais agem diante do mercado prostitucional. As mesmas condições
verificadas em outros mercados acontecem também nesse. A mulher que está ilhada em
um lugar de difícil acesso ou num barco pesqueiro no Pantanal tem a mesma descrição
de escravidão moderna de um grupo de homens aliciados para o trabalho de destoca e
passagem de agrotóxico sem condições de moradia, alimentação e transporte.
As políticas sociais reproduzem os valores morais hegemônicos. Aos homens do
trabalho legalizado e considerado honesto há atuação de diferentes órgãos como o
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Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho, Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e o SUS. Para as mulheres do trabalho sexual, nãoreconhecimento social e legal. Só restam a elas as organizações da sociedade civil
engajadas no Programa da AIDS para lhes acompanhar à Delegacia de Polícia se houver
hematomas e quase nunca poderão reclamar direitos trabalhistas. O Ministério da Saúde
só vê as trabalhadoras do mercado sexual pela ótica da Aids, o único setor que, embora
diminua suas ações, ainda realiza algo que acaba por atuar no reconhecimento do grupo
social em questão.
E, finalmente, é necessário enfrentar a discussão dos riscos de cada trabalho e o
encontro, nesse caso, do comércio sexual com o trabalho da criança e do adolescente. A
partir daí, a discussão do adolescente vai ficar mais fácil. Porque, se quer o/a adolescente
como uma pessoa em desenvolvimento e se quer que jovens e crianças tenham vida plena
– não vida plena na visão moralizadora, cerceadora dos direitos sexuais, mas vida plena
em que se sente que as pessoas querem ser felizes, que os adolescentes querem ser felizes,
querem desenvolver autonomia –, se conceber a prostituição como trabalho, vai ficar mais
fácil desenhar que trabalho é, que impactos traz ao desenvolvimento saudável da
sexualidade de crianças e adolescentes.
Os riscos do trabalho sexual, especialmente aqueles psicológicos, são decisivos
para se posicionar contrário à presença de crianças, adolescentes e jovens no mundo do
trabalho sexual. Mas é exatamente esse público que é bastante requisitado, posto que a
decisão de quem entra ou não nesse mercado não é da trabalhadora, seja ela criança ou
adulta, mas do cliente. E há a preferência por corpos jovens. Então, se vai haver meninos
ou meninas, a idade deles e delas não está colocada como autonomia. O que vai ser
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oferecido, como será o trabalho, o tipo de serviço que será oferecido não é de autonomia
da mulher, como se conhece. No caso da infância e juventude, muito menos será acordado
porque não está em pauta o querer ser e sim o aliciamento e a exploração. É o mercado
que regula a demanda e busca à oferta de trabalho sexual. É no mercado que se processa
o convencimento do trabalho como satisfação. No caso do mercado sexual, a ideia de
acesso ao lazer e consumo, desconectada de condições e relações de trabalho tem
prejudicado a compreensão das contradições existentes e mantenedoras das assimetrias
entre trabalhadoras e donos do mercado de trabalho e, sem dúvida a utilização do trabalho
infanto-juvenil neste mercado.
4 Por fim, o que podemos e devemos fazer?
Compreender o mundo da prostituição não é como fazer uma especialização, um
mestrado e ter um título. É preciso que seja para apoiar os grupos e organizações de
trabalhadoras sexuais para melhorar suas condições de trabalho. É fazer o encontro de
quem está fora com quem está dentro, por exemplo, de outras mulheres com trabalhadoras
sexuais. Reduzir distâncias socioculturais a partir do exercício da alteridade que pode
acontecer também, por meio da academia e da produção universitária a respeito. É fazer
com que luzes sejam lançadas dos dois lados para iluminar o mercado sexual com o que
se conhece e quem estuda imerso na realidade, com o pé no barro.
As trabalhadoras do mercado sexual querem e precisam ser compreendidas com
integralidade e direitos em saúde, segurança, trabalho, assistência social... significa,
depois de muitas leis já existentes, retornar à luta pelo “Direito de Ter Direitos”, que tanto
defendíamos antes da Constituição de 1988, para as crianças, indígenas, negros... é
começar de novo!
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Pensar a partir do trabalho é pensar as contradições do mundo do trabalho que
podem trazer desgastes diversos, mas também podem ser a centralidade do viver, a
identidade do ser social. Todo trabalho precisa ser estudado no seu contexto específico.
Falar da prostituição como se fossem todos os ambientes, locais e modos de organização
da mesma forma é um equívoco. Cada território da prostituição contém especificidades,
particularidades e sociabilidades referentes ao mundo do mercado sexual vinculado a
diferenças ambientais, geográficas, econômicas, geracionais, gênero e orientação sexual,
entre outras.
É preciso que se permita pensar sobre a prostituição como um processo de
trabalho que pode ser uma opção da pessoa, mas não pode ser a única opção. Precisa ter
outras. Eu quero ser digitador, mas eu depois não quero mais ser digitador. Eu quero ser
balconista, mas daqui há algum tempo não quero mais. Eu quero trabalhar no shopping,
mas após um período quero mudar de emprego. Ou seja, preciso dizer que eu trabalho no
shopping, mas eu quero ser prostituta daqui a pouco. Eu quero ser uma garota de
programa. Eu preciso que a prostituição seja uma opção de trabalho e não a única, em que
se coloca um carimbo e nunca mais a pessoa passará a ser de outra profissão. Ou, se tiver
outra profissão, também quero ser uma profissional do sexo. Eu posso ter essa
possibilidade de mudar e ter essa possibilidade de ir e vir de acordo com o meu querer.
Nesses desafios que se desenham para todas as pessoas que se recusam à mesmice,
algumas perguntas poderiam guiar a prosa: qual sociedade queremos? quais são as
hipocrisias que se precisa enfrentar para que ela se concretize? Deve-se continuar
discutindo sexualidade a partir da reprodução/ exploração ou também a partir dos direitos
sexuais, inclusive da proteção à violência e da defesa do prazer?
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Investir na proteção das trabalhadoras e na sua organização, sobretudo no
enfrentamento da discriminação e da garantia dos direitos específicos e aqueles que já
pautamos para o conjunto da sociedade, na medida em que a emancipação dos povos só
é possível com todos: nenhum direito a menos, a ninguém!
Investir na construção de autonomias – econômica, social, de gênero, das
mulheres trabalhadoras, pode incidir diretamente nos direitos de crianças e adolescentes
que estão sendo inseridas no mercado sexual. Se para as mulheres é difícil regular os
riscos no trabalho, às crianças e adolescentes, isso torna-se ainda mais complexo. Destinar
aos infantes o papel de fazer os enfrentamentos das relações assimétricas do mercado
sexual, é retirar-lhes o próprio direito de serem protegidas. É papel dos adultos a sua
proteção. E, sem dúvida, a melhor parceria que podemos ter são os adultos e adultas que
são trabalhadores/as desse mercado sexual, porque os conhece melhor que protetores
externos. São as mulheres organizadas que vão poder trilhar os caminhos e indicar os
passos. Qualquer ação sem as mulheres que estão trabalhando no mercado sexual poderá,
de novo, ter um conjunto de intenções distantes da real necessidade e com um olhar a
partir de quem não vive o problema.
Os desafios são imensos, mas nenhum problema foi enfrentado sem gentes que
colocaram as utopias à frente e o sangue pulsando nos pés e mentes que fazem o caminho.
Referências
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11ª impressão, 2001.
SANCHES, Silvana Colombelli Parra Sanches. As relações interpessoais das
profissionais do sexo feminino de Campo Grande no ambiente do Terminal Rodoviário.
Monografia de graduação. Bacharelado de Ciências Sociais. Orientadora Dra. Ana
Maria Gomes. UFMS, 2003, 80p.
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SURFISTINHA, Bruna. O doce veneno do escorpião - o diário de uma garota de
programa. Panda books, 2005.
TOGAR, Yanira; et al. 10 años de acción (1997-2007): la experiência de organización
de la Red de Trabajadores Sexuales de Latinoamerica y el Caribe. 1ª ed. Buenos Aires.
REDTRASEX, 2007.
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ISSN: 1983 - 3784
Edição Especial: II SiGeSex – Corpos vigiados e Laicidade do estado
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NÃO APENAS O EXÉRCITO ISLÂMICO APEDREJA LGBTS: RELATOS DO COTIDIANO
ESCOLAR DE UMA TRAVESTI APEDREJADA EM UMA ESCOLA DO INTERIOR DO ESTADO
DE SÃO PAULO.
Tássio Acosta1
UFSCar - Universidade Federal de São Carlos - Campus Sorocaba
CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
Muitas pessoas ficam horrorizadas com relatos, fotos e vídeos compartilhados nas
redes sociais (como o Facebook e o Youtube) de pessoas sendo agredidas verbal e
fisicamente, apedrejadas, e até mesmo assassinadas pelo ISIS2 por não estarem de acordo
com a heteronormatividade e com o heterosexismo hegemônicos. Entretanto, essa
realidade está presente no cotidiano da sociedade brasileira, onde Travestis costumam
sofrer os mesmos tipos de exposições vexatórias que atentam à dignidade humana. Este
artigo é uma análise parcial da dissertação de Mestrado em desenvolvimento a respeito
da formação escolar e identitária das Travestis da região de Sorocaba, a partir de uma
entrevista com duração total de 1h20min, que consiste em um relato sobre a sua infância,
família, cotidiano escolar e realidade atual. Fatos marcantes de sua vida escolar, tais como
a violência verbal sistemática que sofreu, o apedrejamento que não resultou na
culpabilização dos responsáveis – mas na condenação da própria vítima, cuja agressão foi
justificada por meio das suas escolhas de vestimenta e expressões –, e uma cistite,
desenvolvida como consequência da constante proibição da sua ida ao banheiro escolar
1
Graduado em Licenciatura em História (UniSantos), possui uma Especialização em Ética, Valores e
Cidadania na Escola (USP) a respeito da Transexualidade no Período Escolar e atualmente cursa Mestrado
em Educação (UFSCar) onde trabalha as questões da Formação Escolar e Identitária das Travestis de
Sorocaba. [email: [email protected]]
2
Exército Islâmico, organização paramilitar fundamentalista religiosa, cujos assassinatos contra pessoas
LGBTs envolvem práticas como apedrejamentos ou arremessar os indivíduos do ponto mais alto da cidade,
e que são difundidas na internet através das redes sociais.
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feminino. Essa proibição fez com que, após uma reunião, o corpo docente e gestor
permitissem a ela usar o banheiro masculino apenas dez minutos antes ou depois do início
do horário de aula para que não houvesse problemas com os outros alunos e, até mesmo,
foi cogitada a possibilidade de permitir que ela tivesse acesso ao banheiro dos professores.
Aborda-se a Teoria Queer como metodologia de análise, pela sua compreensão de que
tanto os corpos quanto os gêneros são construções sociais com o intuito de dar
inteligibilidade aos indivíduos através de tecnologias de gêneros muito precisas,
compactuando com os aprisionamentos de suas vivências através de processos
estigmatizantes pautados nas relações de poder. Principalmente no caso específico das
Travestis, por não haver uma possibilidade de identidade fixa através de acontecimentos
lineares para a subjetivação de suas identidades performativas. Torna-se claro que suas
experiências negativas no ambiente escolar contribuíram para um agravamento da
exclusão e para que o cotidiano violento passasse a ser parte integrante do seu processo
de formação , onde o ambiente escolar é compreendido como um local de sofrimento,
discriminação, agressão verbal e física, contribuindo para uma real possibilidade de
evasão escolar e consequente exclusão social. Documentos Nacionais como a 2a
Conferência Nacional LGBT, Brasil Sem Homofobia e o Programa de Direitos Humanos
são ineficazes quando o assunto é enfrentar a violência causada pela discriminação da
orientação sexual e/ou identidade de gênero.
Introdução
O ambiente escolar, enquanto dispositivo disciplinar, busca a normatização dos
corpos em padrões de comportamentos restritos, fixos e pautados na heteronormatização,
onde identidades que fujam do binarismo masculino-feminino tornam-se abjetas e,
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consequentemente, devam ser enquadradas em uma sistematização que tem o intuito de
engessá-las. O poder disciplinar tem por correlato uma individualidade não só analítica e
“celular”, mas também natural e “orgânica”. (FOUCAULT, 2013: 150)
O início das normatizações comportamentais escolares se dá ainda na primeira
infância, quando meninas e meninos levam seus brinquedos para as escolas. Lá, os
meninos devem brincar com bonecos e carros competitivos, enquanto as meninas devem
brincar com bonecas e utensílios domésticos cooperativos. Com o avanço da idade, a
normatização comportamental continua presente através dos banheiros divididos por
gênero e das atividades esportivas, que determinam que as meninas devem jogar vôlei, e
os meninos devem jogar futebol.
Pessoas que não se enquadrarem nessas normas serão estigmatizadas e,
possivelmente, excluídas do processo educacional, enquanto todos os outros alunos serão
incluídos e vivenciarão o desenvolvimento pleno de seus aprendizados. A escola, assim
como a família, constitui um núcleo de fundamental importância para a sociabilização
das crianças e jovens onde, caso ocorra algum tipo de estigmatização e/ou exclusão, isso
poderá constituir um fator determinante para uma possível evasão escolar ou para um
processo de aprendizagem pautado em humilhação, exclusão e violência, seja ela moral,
psicológica, verbal, física ou até mesmo sexual.
[...] as reflexões queer afirmam que a ordem política e cultural da
heterossexualidade compulsória garante os privilégios políticos, culturais e até
econômicos daqueles/as que vivem dentro de suas prescrições. [...] uma linha
de pensamento e pesquisa foi um ato político de ressignificação da injúria.
(MISKOLCI, 2014: 09)
O banheiro, enquanto uma das mais diversas formas de tecnologia de gênero, tem
todo um mecanismo disciplinador com o objetivo de criar corpos dóceis. As reiterações
que produzem os gêneros e a heterossexualidade são marcadas por um terrorismo
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contínuo. Há um heteroterrorismo a cada enunciado que incentiva ou inibe
comportamentos. (BENTO, 2011, p. 552).
A vivência escolar das pessoas não-heteronormativas consiste em um processo de
estigmatização e violência sistematizada. O presente artigo visa analisar uma entrevista
feita com uma Travesti de Sorocaba para a dissertação de Mestrado em andamento, que
trata da formação escolar e identitária das Travestis de Sorocaba. Seu nome e as
informações pessoais que poderiam levar à sua identificação foram modificados ou
trabalhados de forma genérica para impossibilitar qualquer reconhecimento.
A heteronormatividade seria a ordem sexual do presente, na qual todo mundo
é criado para ser heterossexual, ou - mesmo que não venha a se relacionar com
pessoas do sexo oposto - para que adote o modelo da heterossexualidade em
sua vida. Gays e lésbicas normalizados, que aderem a um padrão
heterossexual, também podem ser agentes da heteronormatividade.
(MISKOLCI, 2013: 15)
Sendo assim, compreende-se que a heteronormatividade é responsável pelo
engessamento das vivências individuais de todos os sujeitos nos mais distintos ambientes
e, reiteradamente, dentro do contexto escolar, seja através da chamada de presença, dos
banheiros segregados, das práticas esportivas ou até mesmo do material didático.
Desenvolvimento
Os processos de formação identitária não são lineares ou padronizados igualmente
a todas as pessoas: cada qual tem a sua especificidade e singularidade, aquilo que lhe dá
sentido à vida e objetiva naquilo que mais condiz com o seu entendimento e necessidade
para aquele momento específico que está sendo vivenciado.
A escola, enquanto lugar de normatização social e padronização comportamental,
busca enquadrar todas as pessoas em um mesmo comportamento: aquele que é tido como
“correto” a ser seguido e cumprido. Pessoas que não se enquadrarem nos dispositivos
disciplinares são penalizadas e culpabilizadas por suas ações, mesmo que as
compreendam como autênticas e como seus direitos individuais.
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Pessoas que fujam do binarismo masculino-feminino serão as que mais sofrerão
ações coercitivas de engessamento identitário, onde a escola buscará reiteradamente o
enquadramento. Meninos serão obrigados a cumprir funções socioculturais impostas
como masculinas enquanto meninas serão obrigadas a cumprir funções socioculturais
impostas como femininas.
O próprio entendimento do que é “ser menino” e do que é “ser menina” remeterá
ao discurso médico biodeterminista onde:
No final do século XVIII havia psicólogos, médicos e filósofos que
defendiam que as diferenças físicas de pele ou de órgãos corporais
qualificavam alguns indivíduos e outros não. O anatomista Jacques-Louis
Moreau ofereceu como seu o comentário de Rousseau de que a localização
dos órgãos genitais, para dentro nas mulheres e para fora nos homens,
determinava o alcance de sua influência. (SCOTT, 2005, p. 16)
Por mais que esse pensamento remeta ao final do século XVIII, ainda nos dias de
hoje, a escola baseia o desenvolvimento da criança e do adolescente nessa compreensão
dos papéis de gêneros distintos e específicos impostos antes do nascimento, através do
discurso médico de “menina” e/ou “menino” para aquele feto ainda em desenvolvimento
durante a gravidez.
Os papéis de gênero heteronormativos foram empecilhos para o cotidiano escolar
de muitas travestis onde, ainda na infância, eram sistematicamente chamadas de
“viadinhos”, “bichas” e expostas a comparações jocosas, como o apelido “Roberta
Close”.
Esse entendimento da subjetivação contínua dos sujeitos por meio
da performatividade discursiva nos permite ver como as escolas vieram a ser
inundadas com exclusões, com o que o estudante-sujeito não pode ser – os
'alunos impossíveis' e os 'aprendizes impossíveis' (YOUDELL, 2010: 160)
Seu processo de formação identitária não-heteronormativa, desde muito cedo, foi
marcado por sofrimento e dificuldades de aceitação perante todas as outras pessoas da
escola. Aos seis anos de idade ela viu a irmã depilar a perna e resolveu fazer o mesmo.
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Quando chegou à escola, foi recebida por todos, em coro, sendo chamada de “bichinha”
e outros apelidos negativos.
Tanto o corpo docente quanto o corpo gestor escolar legitimam a violência contra
pessoas não-heteronormativas. Seja através se omitindo de agir contra tais práticas
violentas, seja através de discursos que reafirmam e incentivam a atitude dos opressores.
Práticas essas, como a violência verbal, moral e física – e que acarretam a possibilidade
de violência sexual, eram compreendidas pela escola como provocações realizadas pela
própria Travesti, onde a oprimida torna-se a responsável pela opressão recebida.
A Educação Física é uma disciplina da vivência escolar de grande desinteresse
para as Travestis, onde muitas professoras buscam o enquadramento das normatizações
de gênero através das práticas esportivas divididas entre futebol para meninos e vôlei para
as meninas. Tais normatizações são excludentes e opressoras contra pessoas que não têm
interesse na participação. Por fim, outro fator de grande recordação negativa para as
pessoas transexuais [e travestis] eram as aulas de educação física, normalmente prédefinidas e divididas de forma heterosexista. (RODRIGUES, 2013: 06)
[...] as diferenças de habilidade entre meninos e meninas como causa de
conflitos e dificuldades pedagógicas nas aulas de Educação Física têm sido
analisadas em outros estudos. Se durante algum tempo tais diferenças foram
consideradas inatas e decorrentes de razões biológicas, as pesquisas de gênero
contribuíram para compreender que elas são histórica e socialmente
construídas. (ALTMANN, AYOUB, AMARAL, 2011: 493)
A diferenciação realizada nas práticas esportivas, de acordo com o gênero das
pessoas participantes, contribui para que haja uma restrição das vivências escolares – e
até mesmo sociais –, onde acaba sendo limitada a possibilidade de uma reorganização e
novos entendimentos de seus papéis perante a sociedade, que até então, são marcados por
pensamentos discriminatórios e segregacionistas.
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A disciplina que poderia criar uma empatia entre os alunos e incentivar a
cooperação entre eles, ainda que no âmbito competitivo, acaba por não criar a cooperação
nem a competição, mas a exclusão, a humilhação e a apatia perante a disciplina, a própria
instituição escolar e uma real vivência à qual todos os outros alunos têm direito, exceto
ela.
[...] na época tinha uma professora que era muito focada no futebol para os
meninos e vôlei para as meninas, e era uma briga na aula de educação física,
pra mim já era tenso, duas vezes por semana e já era tenso. (anotação de
campo)
Antes mesmo das aulas de Educação Física começarem, o desinteresse já estava
presente, pois ela sabia que as atividades físicas abrangeriam a participação de todas as
pessoas que estavam enquadradas na heteronormatividade – o que não era o seu caso,
considerando que naquele cotidiano escolar ela era vista como um “gay afeminado” e por
isso, no entendimento dos outros alunos, não deveria participar das práticas esportivas
consideradas “masculinas” e exclusivas para os homens conforme distribuição e distinção
da própria professora.
A partir do momento em que o desinteresse existe antes mesmo do início das aulas,
as possibilidades de exclusão e da não-participação tornam-se reais, cabendo à professora
ser a responsável por perceber essa situação e criar novas possibilidades de
democratização do acesso às práticas esportivas.
[...] ela separava entre meninos e meninas, nesse momento eu me sentia super
mal, porque ai me mandava pro futebol, eu era a ultima pessoas a ser escolhida
na formação do time, e os meninos me mandavam pro gol. Eu chegava no gol
e eu nao prestava atenção naquilo, porque aquilo nao me interessava. [...] ai os
meninos ficavam bravos, revoltados, paravam o jogo, ela tinha que vir, ate que
ela se convencer de que tinha que me tirar do jogo, mas a professora era
persistente, ela passou um bom tempo insistindo para que eu jogasse futebol.
(anotação de campo)
A formação dos times se dava a partir de duas pessoas (os “capitães”), que
escolhiam os integrantes de seus respectivos times. A ordem de escolha sempre era dos
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melhores alunos/jogadores aos que não tinham muitas habilidades e/ou interesse na
prática. A última pessoa era sempre a que mais sofria discriminações, principalmente por
ser aquela que não tinha habilidade e/ou interesse. Muito provavelmente ela seria posta
no gol, local aonde a bola de futebol chegaria poucas vezes até ela.
Em vez de ser feito um sorteio entre todos os participantes para a formação dos
respectivos times, assim como outro sorteio para determinar as funções de cada um
durante a prática da atividade esportiva, com o objetivo de que todos interessados em
jogar pudessem atuar nas mais variadas posições no decorrer do ano, aquelas pessoas que
não gostavam do futebol, mas ainda assim eram obrigadas pela professora a jogar, eram
discriminadas.
Compreende-se a constituição dos gêneros a partir do conceito de
performatividade proposto por Judith Butler (2003, p. 19), onde é afirmado que a
performatividade do gênero se dá através da estilização repetida do corpo, assim como
por seus agentes reguladores, com o objetivo de criar um padrão a ser seguido. Mais
adiante, é dito ainda que “não há identidade de gênero por trás das expressões do gênero;
essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias ‘expressões’ tidas como
seus resultados” (idem, ibdem, p. 48).
O sistema sexo-gênero, enfim, é tanto uma construção sociocultural
quanto um aparato semiótico, um sistema de representação que atribui
significado (identidade, valor, prestígio, posição de parentesco, status dentro
da hierarquia social, etc) a indivíduos dentro da sociedade. (DE LAURETIS,
1994: 212)
Essa persistência relatada se dá pelo entendimento da professora de que, se o aluno
tem pênis, nome masculino e foi imposto ao gênero masculino antes mesmo do
nascimento, ele deve ser disciplinado a desempenhar funções masculinas, sejam elas
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sociais ou esportivas, cabendo à professora esse processo de condicionamento dos corpos
para a formação de uma identidade masculina heterosexista.
Quando ela realmente via que eu nao tinha jeito, ela me mandava para o vôlei
ou dizer que ia me dar nota, ou me mandava para a biblioteca, que ai eu adorava
ficar lá lendo e estudando. (anotação de campo)
Percebe-se, com isso, que em vez de criar formas distintas de integração entre
todas as pessoas durante a prática da atividade esportiva, buscava-se o enquadramento
normativo através da imposição de acordo com o gênero da pessoa, partindo do
entendimento de que o gênero é delimitador das funções e interesses esportivos. Uma
sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida.
(FOUCAULT, 2012: 157)
A segregação e a imposição do esporte de acordo com os gêneros contribuíram
para que a prática esportiva se transformasse em sinônimo de aflição para a aluna e de
imposição pela professora. Quando a professora não tinha seus objetivos alcançados, em
vez de reformular sua prática docente, preferiu excluir a aluna, enviando-a para a
biblioteca e censurando qualquer possibilidade de relacionamento interpessoal em suas
aulas.
Não apenas a educação física era um momento de exclusão, mas também a
necessidade do uso do banheiro, tanto após a prática esportiva quanto no cotidiano
escolar. O uso do banheiro público, para a população travesti (e transexual), é sinônimo
de sofrimento e riscos contra a sua integridade, visto que a sua identidade de gênero
feminina não está de acordo com a obrigatoriedade do uso do banheiro masculino,
havendo o risco não apenas de situações vexatórias, como também risco de atentados
contra a dignidade humana, com reais possibilidades de violência moral, verbal, física e
até mesmo sexual. A violação do direito ao acesso ao banheiro é um exemplo que mostra
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que os processos de espacialização são acompanhados de naturalizações extremamente
sutis que se desdobram em interdições e segregações. (JUNQUEIRA, 2012: 18)
eu ia escondido no banheiro feminino porque nao podia ir de jeito nenhum ir,
[...] tinha as meninas mais religiosas que nao aceitavam, ai elas chamavam o
inspetor quando me pegavam no banheiro e sempre vinha algo para falar para
mim sair. (anotação de campo)
A falta do respeito à sua identidade de gênero não ocorria apenas na chamada de
presença, onde a chamavam pelo nome masculino; permeava também o uso do banheiro
público, onde era proibida de utilizar o banheiro feminino, sendo obrigada a utilizar
apenas o banheiro masculino.
A escola, ao proibi-la de utilizar o banheiro feminino, fez com que ela
desenvolvesse doenças urinárias presentes até os dias de hoje, consequentes da prática de
evitar usar o banheiro, contraindo o esfíncter uretral para que não permitisse urinar.
Relatou também que um dos motivos de preocupação no uso do banheiro masculino se
dava por conta da crença das outras pessoas que a presença de Travestis nos banheiros
masculinos seria uma “desculpa” para insinuações e/ou práticas sexuais, havendo risco
contra a sua segurança.
Sua resistência ao uso do banheiro masculino se deu juntamente com outras
alunas, que não a discriminavam e concordavam que o correto era que ela usasse o
banheiro feminino. Essa prática começou a ocorrer da seguinte forma: uma amiga ia ao
banheiro e, verificando que o lugar estava vazio, a chamavam para entrar e fazer uso
daquele espaço em segurança. Quando alguém a flagrava e chamava algum funcionário
da escola, ela era expulsa e repreendida,
[...] até que se cansaram e disseram que eu tinha que usar o banheiro dos
professores, depois teve um reunião da escola e me falaram que era para eu
usar dez minutos ou dez minutos depois, o masculino. Mas mesmo assim eu ia
no feminino, porque ai nao tinha ninguém olhando nesses dez minutos antes e
dez minutos depois, mas eu ia no feminino. Eles nao aceitavam que eu fosse
no feminino (anotação de campo)
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Segregar a Travesti ao banheiro dos professores, ou proibi-la de utilizar o
feminino, impondo a utilização do masculino dez minutos antes ou dez minutos depois
do início das aulas para que nenhum outro aluno a encontrasse, fez com que a escola se
tornasse um ambiente demasiadamente excludente, onde não se produz estímulo nem
interesse para que Travestis continuem nele, visto que uma simples ida ao banheiro é
envolta em um processo extremamente discriminador e estigmatizante.
Na escola, negar o direito ao uso do banheiro conforme a identidade de gênero de
alguém (e não necessariamente segundo seu sexo biológico) corresponde a negar-lhe o
direito à educação. Quem não pode ir ao banheiro, não pode permanecer na escola.
(JUNQUEIRA, 2012: 18). A discussão a respeito da criação de um terceiro banheiro para
a população Travesti não condiz com os preceitos democráticos, nem com o objetivo
escolar de inserção das mais variadas pessoas em seu meio educacional; ao contrário,
promove uma separação e um não pertencimento igualitário perante as pessoas
heteronormativas. No cotidiano da escola, nós tematizamos os seus banheiros, mas naõ a
sua expulsaõ velada, nem os resultados desse processo em sua vida, seja em termos de
analfabetismo, ou ainda em relaçaõ ao que poderaõ dizer de si mesmas (CRUZ, 2008:
07).
Embora exista, desde 2001, a Lei 10948 no Estado de São Paulo, que assegure o
direito das pessoas Travestis e Transexuais a utilizarem o banheiro de acordo com a sua
identidade de gênero, sabe-se que muitas delas ainda são proibidas de usar o banheiro
feminino e/ou orientadas a utilizarem o banheiro dos professores. Recentemente, em nível
nacional, foi publicado no DOU a autorização para essa parcela populacional ter o direito
de usar o banheiro pertencente ao gênero com o qual se identificam, assim como escolher
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o uniforme que mais lhe apraz e fazer uso do nome social, não sendo mais obrigatório
usar aquele imposto ainda no nascimento.
A necessidade de criar formas legais que assegurem direitos à população Travesti
e Transexual se dá pela crença de que a melhor forma de abordar a inclusão ocorre através
do respeito aos direitos humanos (independente de quem seja) onde, a partir do momento
em que passa a existir o respeito às suas identidades de gênero, ocorre também a
colaboração para a manutenção no ambiente escolar, diminuindo a possibilidade de
evasão e aumentando a possibilidade de conclusão escolar dentro do período considerado
como o mais correto para todos os alunos.
Entretanto, vale ressaltar que desde o
[...] século XVII ao início do século XX, acreditou-se que o investimento do
corpo pelo poder devia ser denso, rígido, constante, meticuloso. Daí esses
terríveis regimes disciplinares que se encontram nas escolas, nos hospitais, nas
casernas, nas oficinas, nas cidades, nos edifícios, nas famílias. (FOUCAULT,
2014: 237)
Por conta disso, a luta pelo direito ao nome social é extremamente importante,
pois aquela pessoa específica passa a ser compreendida como pertencente ao gênero
feminino (no caso das Travestis e Transmulheres) desde o momento inicial, fazendo com
que haja um debate na escola a respeito da inserção social e do direito fundamental a
todas.
O corpo docente tem um papel fundamental no acolhimento, visto que a partir do
momento em que o direito ao nome social é assegurado ainda na chamada, o ambiente
torna-se mais humano e com mais possibilidades de democratização de seu acesso. Devese compreender que a formação docente é determinante na ampliação de seus próprios
conhecimentos, onde um docente com baixa atualização profissional em cursos de
capacitação terá menor possibilidade de compreensão das novas práticas pedagógicas,
incorrendo em discriminações tidas antes como “corretas”.
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Conforme relatado em entrevista de campo, era rotineiro escutar piadas advindas
dos próprios professores a respeito das suas condições não-heteronormativas, onde toda
classe ria legitimando, assim, outras discriminações feitas pelos alunos. As
discriminações se davam através de piadas, desde a chamada até as atividades em sala de
aula. Ela sabia que as piadas eram direcionadas e remetidas diretamente a ela, embora
nunca nominalmente.
Quando um professor legitima a violência moral e verbal através do seu próprio
discurso em sala de aula, toda a violência escolar passa a estar respaldada por suas
próprias ações, pois o professor, enquanto hierarquicamente responsável pelo dispositivo
disciplinar, torna-se exemplo comportamental para muitos alunos, por mais que esse
exemplo seja negativo e pautado em discriminações.
Duas possibilidades ocorrem quando a vivência da discriminação ocorre em seus
cotidianos escolares: i) indisciplina, desinteresse educacional e evasão escolar; ii)
compensação quanto à possibilidade de aceitação.
No primeiro caso, a indisciplina passa a ser um fenômeno como forma de
expressar descontentamento perante todo o processo estigmatizante que sofre durante em
aulas e momentos específicos. O desinteresse educacional passa a ser sintomático, pois,
como não há respeito e há discriminação, aquele ambiente torna-se um “ambiente
inóspito” para ela, contribuindo para a compreensão de que as vivências são negativas e,
por conseguinte, desumanas. A evasão passa a ser o resultado final das duas vivências
negativas anteriores visto que, se o ambiente é negativo para o seu cotidiano e as
dificuldades são grandes perante a sua especificidade, as possibilidades de interrupção
educacional tornam-se mais latentes.
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Já no segundo caso, a compensação escolar torna-se uma forma de resistência
perante as dificuldades cotidianas. Essa forma se dá através de uma dedicação maior que
a dos outros alunos para que sejam percebidas, para que “até certo ponto, porque eu era
boa aluna, eu sempre fui a melhor aluna da sala, eu não aceitava não ser a melhor aluna
da sala exatamente por ser diferente, então eu tinha que ser a melhor aluna” (anotação de
campo).
A violência verbal, legitimada pelos professores através de piadas, torna-se
hegemônica em todo o ambiente escolar e por aquelas pessoas que o frequentavam, à
exceção de uma minoria de alunos que aceitavam a diversidade. Espaços de vivências
coletivas tornavam-se espaços individuais excludentes para as Travestis na escola, onde
a atividade física, o banheiro público, os jogos e as brincadeiras eram constantemente
divididos binariamente fazendo com que pessoas não-heteronormativas não estivessem
inseridas no processo educacional.
As travestis são relegadas ao campo desvalorizado do feminino e,
por se tratarem de homens que abdicaram do privilegio da masculinidade,
têm sua identidade associada a um desvio de caráter que excede o
vergonhoso e se aproxima do estigmatizável, motivo de escárnio e objeto de
reações violentas. (DUQUE, 2011: 141)
Práticas discursivas vexatórias, através de xingamentos e humilhações verbais, se
potencializam à medida em que não são tomadas medidas coercitivas perante tais ações
com o intuito de coibi-las. Antes mesmo da violência verbal explícita, a população
Travesti sofre a violência psicológica através da proibição de suas adequações de gênero
com o objetivo de darem significado à sua própria existência. O ambiente escolar das
travestis pode ser definido como segregador (GARCIA, 2007, p.161) e heteroterrorista
(BENTO, 2011, p.551).
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A feminização do uniforme é uma forma que muitas Travestis encontram para
criar uma identidade mais apropriada para as suas vivências e experiências de trânsito de
gênero, e se dá, por exemplo, através da escolha de blusas mais justas e calças mais
estilizadas. Isso ocorre porque usar os uniformes masculinos, geralmente mais largos,
destoa da ideia que elas têm de si mesmas.
A obrigatoriedade do uniforme, enquanto dispositivo disciplinar, tem como
objetivo fazer com que todos os alunos estejam enquadrados em normas sexuais e de
gênero, dificultando a possibilidade de trânsito entre os gêneros e impossibilitando as
mais diversas experiências possíveis para as pessoas não-heteronormativas.
A montagem e a desmontagem do femininos destes sujeitos nos dizem muito
sobre o que rege a nossa sociabilidade, mas podem não ser originárias da
mesmas regras e valores sociais. A estratégia de saber, ou procurar saber, onde
se pode ir montada ou desmontada, sem ‘perder a identidade travesti’, mas
ganhando outras, como a de gay e de drag, mostra o potencial de resistência
(assim como, as vezes, de controle) que o desejo aciona nestes sujeitos,
transformando-os de acordo com as circunstâncias. (DUQUE, 2011: 160)
Embora Duque (2011) tenha conceituado a montagem e desmontagem estratégica
a partir da ótica enquanto “uma manipulação da vergonha e do estigma para se conquistar,
entre outras coisas, parceiros sexuais” (idem, ibdem, 90), na escola, as possibilidades das
montagens estratégicas são mais limitadas e também mais censuradas. No entanto, seus
maiores interesses por essas montagens e desmontagens estratégicas estiveram além da
especificidade sexual, na possibilidade de autoidentificação perante as suas vivências de
feminização identitária. O “eu” não está mais solidamente fixado em uma identificação
estável: joga, oscila e se multiplica. (MELUCCI, 2004: 15)
Essa oscilação e multiplicação fazem com que elas tenham maior consciência de
si mesmas, principalmente quando se trata de vivenciar as discriminações e os estigmas,
se disciplinando para que não haja maiores sofrimentos. Logo, existe a possibilidade de
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que o processo de feminização da vestimenta ainda esteja enquadrado em uma
heteronormatividade masculinista com o objetivo de que criar microrresistências para
evitar a experiência de sofrimentos psicológicos, morais, físicos e/ou também
possibilidades reais de violência sexual.
Nos casos de violências verbal e física, a vítima era sistematicamente
responsabilizada pelos atos sofridos, pois
A culpa era toda sua, você estava procurando, [...] a diretora aconselhou que
eu tinha que brigar, que eu tinha que ser homem quando me zoassem, algumas
vezes eu ate briguei, eu acho difícil quando você é sozinha numa escola toda.
(anotação de campo)
Não apenas a omissão do corpo docente e gestor da escola diante das práticas de
violência, como também o próprio “endosso” de certos professores a essas práticas de
humilhação pública, tornavam (e ainda tornam) o desenvolvimento acadêmico no
ambiente escolar um assunto de grande complexidade para as Travestis, exercendo uma
forte influência sobre o aumento da possibilidade da evasão escolar e dificuldade de
inserção no mercado de trabalho formal.
Conclusão
O Brasil sem Homofobia (BRASIL, 2004) tem como princípios: 1) a inclusão da
perspectiva
de não-discriminação por orientação sexual e promoção dos direitos
humanos LGBT nas políticas públicas do Governo Federal; 2) a produção de
conhecimento para avaliar a implementação das políticas públicas inclusivas de combate
à discriminação; 3) a reafirmação de que a defesa dos direitos humanos inclui o combate
à homofobia, sendo esse um compromisso do Estado e de toda a sociedade brasileira. Em
seu programa de ações que fala sobre o Direito à Educação, item 5, estipula a elaboração
de diretrizes que orientem o Sistema Educacional, a implementação de ações que
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promovam o respeito ao cidadão e a não-discriminação por orientação sexual visando,
dentre outros:
1) fomentar a criação de cursos sobre sexualidade destinados aos
professores; 2) criar equipes multidisciplinares para a avaliação dos livros didáticos; 3)
estimular a produção de material educativo; 4) apoiar e divulgar a criação de material
específico para professores; 5) divulgar informações científicas sobre as sexualidades
humanas.
A 2ª Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos de LGBT
(BRASIL, 2011) estipulou cinco diretrizes principais para a Educação: 1) criação de
diretrizes nacionais que orientem a formulação de ações e políticas que promovam o
respeito e reconhecimento da diversidade de orientação sexual e identidade de gênero; 2)
fomento de grupos de estudos, em todos os níveis educacionais, para a) mapear as ações
inovadoras em defesa da promoção dos direitos LGBT; b) criação de indicadores e
monitoramento de políticas públicas; c) análise de currículo e práticas educacionais; d)
identificar a situação da comunidade LGBT; 3) criação de cursos presenciais, em todo o
âmbito federal e em curso interdisciplinar para capacitar a discussão da orientação sexual
e da identidade de gênero entre os alunos; 4) criar mecanismos que permitam o acesso e
a permanência dos alunos LGBT em suas unidades de ensino; 5) criar eventos de debate
das questões LGBT com participação dos alunos.
O Programa Nacional de Direitos Humanos (BRASIL, 2010) assegura, no
objetivo estratégico V, que tange à garantia do respeito à livre orientação sexual e
identidade de gênero, nos seus itens D e E: “Reconhecer e incluir nos sistemas de
informação do serviço público todas as configurações familiares constituídas por lésbicas,
gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), com base na desconstrução da
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heteronormatividade.” e “Desenvolver meios para garantir o uso do nome social de
travestis e transexuais.”3
Em que pese o avanço significativo nos textos orientadores das políticas públicas
citados, é importante ressaltar que travestis não são tratadas em sua especificidade no
campo da educação, aparecendo, na maioria das vezes, apenas dentro do guarda-chuva da
terminologia LGBT, carecendo de políticas públicas específicas para as suas necessidades
e subjetividades. Essa “invisibilidade” das travestis pode ser observada no Programa
Brasil Sem Homofobia, no qual “as pessoas “trans” têm pouca visibilidade […] se
comparadas com os outros blocos 'identitários' do movimento LGBT.” (MELLO,
COSTA, SAMPAIO, 2013: 174). Somam-se a essa pouca visibilidade as dificuldades
inerentes à própria lógica identitária que embasam esses programas, que os levam a
considerar as travestilidades e transexualidades a partir de perspectivas unificadoras,
tomando-as implicitamente como identidades unitárias, relativamente constantes.
Embora essas políticas públicas sejam recentes e este artigo esteja focado em uma
pessoa de aproximadamente 30 anos, há uma vasta produção acadêmica centrada em
meninas Travestis adolescentes que (ainda) relatam as mesmas problemáticas e
dificuldades vivenciadas pelas Travestis mais velhas.
A escola precisa não apenas se adaptar às diversidades identitárias, mas também
deixar de criar dispositivos disciplinares com o objetivo de normatizar e criar fixidez
comportamental para as pessoas, permitindo-as fluírem em suas subjetividades e
explorarem as mais diversas vivências identitárias com o objetivo de serem quem, de fato,
3
A importância do reconhecimento do nome social faz com que haja sentimento de inclusão e
pertencimento, criando posteriormente maiores possibilidades de democratização do espaço escolar e
minimizando a hostilidade (RODRIGUES, 2013)
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sentem que devem ser naquele momento específico, independentemente de seguirem ou
não a norma heterosexista. O processo pedagógico deverá começar pela denúncia do
conjunto de códigos culturais e de estruturas sociais que, ao transmitirem seus valores,
fortalecem os preconceitos e a discriminação contra gays e lésbicas (BORRILLO, 2010:
109), assim como contra a população Travesti e Transexual.
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NÃO DISCRIMINAÇÃO POR ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO: OBJETIVO
CONSTITUCIONAL NÃO MATERIALIZADO ANTE A VIOLAÇÃO DA LAICIDADE DO ESTADO
Júlio César Valcanaia Ferreira
Presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB/MS. Pós-Graduando em
Educação em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da UFMS. Advogado em
Campo Grande. (E-mail: [email protected])
Resumo: Objetiva-se desenvolver, neste trabalho, um levantamento documental acerca da legislação
construída a partir da Constituição Federal de 1988 pertinente às temáticas de orientação sexual e identidade
de gênero no âmbito federal (Congresso Nacional), estadual de Mato Grosso do Sul (Assembleia
Legislativa) e sua capital, Campo Grande (Câmara dos Vereadores), com vistas à promoção da cidadania
para a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT), demonstrando
o quanto os espaços legislativos, influenciados pelo conservadorismo cultural, têm se desviado da função
programática do Texto Supremo consagrada nos objetivos fundamentais estatuídos no art. 3º, ao atuarem
em flagrante violação ao princípio da laicidade do estado, funcionam como produtores e reprodutores das
assimetrias identitárias, refletindo prejudicialmente no progresso pedagógico da sociedade para o
pluralismo e também nos processos educativos-formais da escola, que deveria ser justamente o espaço
inaugural na superação das desigualdades. Para tanto, foram reunidas e analisadas leis aprovadas (vigentes)
que tratam dos temas alhures nos últimos 26 (vinte e seis) anos, sendo identificadas duas leis federais nas
quais a expressão “orientação sexual” foi mencionada: Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e a Lei nº
12.852/2013 (Estatuto da Juventude), nesta última, havendo menção à inclusão de temáticas de gênero nos
projetos pedagógicos dos diversos níveis de ensino. No âmbito estadual, foram seis leis tratando de:
disciplinas curriculares de orientação sexual e relações de gênero; combate à discriminação por orientação
sexual (homofobia); discriminação LGBT em elevadores; e direito previdenciário isoafetivo. Já no
Município de Campo Grande apenas duas leis: uma estabelecendo o dia municipal de combate à homofobia
(2014), e outra sobre uso do nome social das pessoas travestis e transexuais (2015). E o resultado aponta
para preocupante escassez de normas de promoção da cidadania da população LGBT no domínio dos
direitos fundamentais, civis e políticos, especialmente de natureza penal capaz de satisfatoriamente punir
autores de violências decorrentes de motivação homofóbica, lesbofóbica e transfóbica. Constatou-se, ainda,
que além de poucas normas, há significativas evidências de desconhecimento, impopularidade e até desuso
das leis sul-mato-grossenses. Este levantamento sugere, enquanto uma ferramenta de diagnóstico, que em
decorrência de posicionamento reacionário nas casas legislativas, em seus três níveis parlamentares
(federal, estadual e municipal) — em muitas oportunidades se valendo de argumentos mitológicos e
dogmáticos, sob pretextos de consolidar o posicionamento dos grupos sociais hegemônicos que
representam, em dissonância ao princípio laico — que há importante insuficiência de leis aptas a minimizar
as violências por que passam pessoas LGBT no Brasil, em Mato Grosso do Sul e em sua respectiva Capital.
Ademais, verificou-se demonstração de certo desinteresse estatal em propagar, através de amplas e
permanentes campanhas, as poucas garantias legais que, de forma ainda diminuta, cumprem timidamente
os compromissos assumidos pelo Brasil na Constituição Federal em favor das minorias sexuais na
superação das assimetrias identitárias.
Palavras-chave: Conservadorismo cultural. Assimetrias identitárias. Laicidade do Estado.
Homofobia.
Introdução
Desenvolver um levantamento documental acerca da legislação construída a partir
da Constituição Federal de 1988 pertinente às temáticas de orientação sexual e identidade
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de gênero no âmbito federal (Congresso Nacional), estadual de Mato Grosso do Sul
(Assembleia Legislativa) e sua capital, Campo Grande (Câmara dos Vereadores), com
vistas à promoção da cidadania para a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis,
transexuais e transgêneros (LGBT), demonstrando o quanto os espaços legislativos,
influenciados pelo conservadorismo cultural, têm se desviado da função programática do
Texto Supremo consagrada nos objetivos fundamentais estatuídos no art. 3º, ao atuarem
em flagrante violação ao princípio da laicidade do estado, funcionam como produtores e
reprodutores das assimetrias identitárias, refletindo prejudicialmente no progresso
pedagógico da sociedade para o pluralismo e também nos processos educativos-formais
da escola, que deveria ser justamente o espaço inaugural na superação das desigualdades.
A partir do elenco dos referidos documentos e a constatação de escassez de
normas vinculadas aos fundamentos constitucionais do pluralismo, da dignidade humana
e da cidadania capazes de fazer cumprir os objetivos republicanos estatuídos no art. 3º da
vigente Carta Magna para com a população LGBT, entendeu-se oportuno reflexionar
sobre assimetrias identitárias, o conservadorismo cultural, a laicidade do Estado, e as
discriminações relacionadas à orientação sexual e/ou identidade de gênero,
compreendidas a partir do fenômeno da homofobia progredindo para práticas correlatas
como a lesbofobia e a transfobia.
Inaugura-se o presente trabalho com algumas breves considerações acerca da
metodologia eleita que é denominada “levantamento documental” e as possibilidades que
ela admite, especialmente no tocante à subjetividade analítica de conteúdo e de
contextualização, sem desprezar algumas limitações do ponto de vista do rigor enquanto
desafio da pesquisa acadêmica.
1 Aspectos conceituais, possibilidades e limites do levantamento documental
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Antes de adentrar especificamente no tema proposto, torna-se imperativo
apresentar preliminarmente algumas considerações acerca do método ora eleito que é o
levantamento documental, o qual, sem a concomitância da análise de conteúdo e
contextualização, seria insuficiente a culminar na conclusão que nomina o presente artigo,
considerações estas ancoradas no trabalho de Beltrão & Nogueira, intitulado A Pesquisa
Documental nos Estudos Recentes em Administração Pública e Gestão Social no Brasil
de 2011.1
De uma forma geral, um dos principais desafios da pesquisa acadêmica é a
permanente busca de maior rigor e consistência na escolha e na adequada aplicação dos
procedimentos metodológicos. Para Beltrão & Nogueira, a pesquisa documental, ora
adotada no presente trabalho – com frequência também denominada “método
documental” ou “técnica documental” (SÁ-SILVA, ALMEIDA & GUINDANI, 2009, p.
3), ou mesmo “investigação” ou “levantamento” documental – para alguns, é vista como
um “procedimento” (RAUPP & BEUREN, 2003); “estratégia” (HOCAYEN-DA-SILVA,
ROSSONI & FERREIRA JÚNIOR, 2008); ou “técnica” para coleta de dados (CUNHA,
YOKOMIZO & BONACIM, 2010); e para outros, adquire status mais amplo de
“delineamento” (GIL, LICHT & OLIVA, 2005) ou de “metodologia” (MAY, 2004; SÁSILVA, ALMEIDA & GUINDANI, 2009) de pesquisa.2
1
BELTRÃO, Ricardo Ernesto Vasquez; NOGUEIRA, Fernando do Amaral. A Pesquisa Documental nos
Estudos Recentes em Administração Pública e Gestão Social no Brasil. Disponível em
http://www.anpad.org.br/admin/pdf/EPQ2700.pdf.
2
Os autores e respectivos textos referidos são os seguintes: GIL, A. C. (Métodos e técnicas de pesquisa
social. São Paulo: Atlas, 1999), que classifica a pesquisa documental como um entre sete possibilidades de
delineamento de pesquisa; SANTOS, A. R. (Metodologia Científica: a construção do conhecimento. Rio
de Janeiro: DP & A, 1999), cuja tipologia propõe a classificação das pesquisas “quanto aos objetivos”, “aos
procedimentos de coleta”, na qual elenca a pesquisa a documental e outros nove procedimentos, e quanto
às “fontes de informação”; e VERGARA, S. C. (Projetos e Relatórios de Pesquisa em Administração. São
Paulo: Atlas, 1997), que classifica as pesquisas “quanto aos fins” (são seis tipos) e “quanto aos meios” (com
dez tipos, entre os quais a documental).
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Na análise dos 10 (dez) documentos legais selecionados pelo critério de
contemplarem as temáticas “orientação sexual” e “identidade de gênero” as tipologias
propostas de delineamento objetivam indiretamente demonstrar a resistência, nos espaços
legislativos, em tratar e aprovar normas de promoção da cidadania para pessoas lésbicas,
gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT), decorrente amiúde de
argumentações vinculadas a valores e princípios de natureza religiosa, em flagrante
violação à laicidade estabelecida em nosso sistema constitucional que, é marca da
República Federativa do Brasil, mantendo-se o Estado brasileiro em posição de
neutralidade axiológica e independência, em relação a todas as concepções religiosas, em
respeito ao pluralismo existente em sua sociedade (SARMENTO apud LENZA, 2014,
191).3
Inevitavelmente, há que se considerar a associação de pesquisa documental com
análise de conteúdo, já que muitas vezes o que se pretende de um documento específico
é extrair dele um sentido, uma representação de um pensamento ou ideologia subjacentes,
bem como, no caso em tela, apontar o quanto a escassez de documentos/leis que tratem
dessas temáticas sinaliza a subsistência de pensamento e ideologia pautados numa cultura
essencialmente conservadora e desinteressada em promover a superação das assimetrias
identitárias concernentes à orientação sexual e à identidade de gênero dos sujeitos, em
franca contraposição aos objetivos constitucionais do Estado Democrático de Direito
eleitos para o Brasil dentre os quais se situa o combate às desigualdades sociais e às
práticas discriminatórias de qualquer natureza (incisos III e IV, art. 3º, CF/88)4.
É necessário evidenciar, discutir e justificar não apenas o objeto, as questões, e as
3
4
SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional, p. 308.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
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hipóteses de pesquisa, mas também vantagens e limites do método adotado em cada caso.
Ainda segundo Beltrão & Nogueira, essa preocupação com o desenho metodológico
parece ainda mais importante quando a abordagem é de cunho qualitativo,
necessariamente vinculada ao conteúdo dos documentos, perpassando, inevitavelmente,
pelo viés da análise subjetiva, ao contrário do que ocorreria caso o levantamento estivesse
unicamente comprometido quantitativamente com normas produzidas sobre as temáticas
alhures, que poderiam até ser volumosas em relação às normas produzidas no âmbito do
Poder Executivo, sinalizando que algumas correntes ideológico-políticas têm inserido no
âmbito normativo governamental, ou seja, políticas de governo, decretos, regulamentos,
portarias, programas e recomendações que tocam na promoção da cidadania pró-LGBT,
cujas normas não têm o caráter permanente e rígido daquelas definidas no âmbito do
Poder Legislativo quando cumpre sua finalidade típica, ao passo daquelas produzidas na
atipicidade funcional do Executivo e do Judiciário (LENZA, 2013, p. 547).
As pesquisas que adotam exclusiva ou predominantemente métodos qualitativos
estão sujeitas a maior grau de subjetividade tanto em seus procedimentos quanto nas
formas de seleção e organização dos dados, aumentando os riscos de interpretações
enviesadas, muito provavelmente pela inexistência de padrões mais amplamente aceitos
de mensuração (BELTRÃO & NOGUEIRA, 2011).
Assim sendo, de forma coerente com as diversas formas de luta pela
democratização do Estado e pela garantia de direitos ─ pela inarredável vinculação dos
princípios constitucionais ─ torna-se imperativo avançar na promoção da cidadania
daqueles e daquelas cujas condições visíveis e/ou invisíveis da sexualidade lhes situa em
posição de desigualdade de oportunidades e precarizações, de cuja análise documental
existente, reflete um método qualitativo e, conseguintemente, norteado por subjetividades
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de análises, sendo este aspecto, certa limitação.
Todavia, por uma perspectiva histórica, os documentos em análise se prestam
como matéria-prima útil à reconstrução do conhecimento e reinterpretação o mundo em
vista do advento de novos saberes, conforme sustenta Michel Foucault em determinada
passagem d’A Arquelogia do Saber sobre a possibilidade de mudança de percepção que
permite ao uso do documento a transposição dos limites impostos pelo seu uso, in verbis:
(…) por uma mutação que não data de hoje, mas que, sem dúvida, ainda não
se concluiu, a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera
como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não interpretar se diz a verdade
nem qual é o seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborálo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece
séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define
unidades, descreve relações. O documento, pois, não é mais, para a história,
essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens
fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas rastros: ela procura
definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações. É
preciso desligar a história da imagem com que ela se deleitou durante muito
tempo e pela qual encontrava sua justificativa antropológica: a de uma
memória milenar e coletiva que se servia de documentos materiais para
reencontrar o frescor de suas lembranças; ela é o trabalho e a utilização de uma
materialidade documental (livros, textos, narrações, registros, atas, edifícios,
instituições, regulamentos, técnicas, objetos, costumes etc.) que apresenta
sempre e em toda a parte, formas de permanência, quer espontâneas, quer
organizadas. O documento não é o feliz instrumento de uma história que seria
em si mesma, e de pleno direito, memória; a história é, para uma sociedade,
uma certa maneira de dar status e elaboração à massa documental de que ela
não se separa (FOUCAULT, 2008, pp. 7-8, grifos no original). (FOUCAULT
apud BELTRÃO & NOGUEIRA).
Em face dessas considerações, reside o desafio de se estabelecer necessário
diálogo entre sujeito e objeto a fim de potencializar novos conhecimentos e mudanças de
perspectivas, dado que uma coisa é o documento (lei) enquanto fonte, outra é a pesquisa
documental e a forma em que eles estão agrupados.
2 Não discriminação em relação à sexualidade
O Estado Brasileiro, em sua recente fase democrática, apesar de firmemente
inaugurado sob os fundamentos da cidadania, da dignidade da pessoa humana e do
pluralismo — conforme se extrai do artigo 1º da Carta Constitucional de 05 de outubro
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de 1988 — e programaticamente comprometido com os objetivos de redução das
desigualdades sociais e de promoção do bem de todos sem preconceitos e discriminações
— consoante os incisos III e IV do artigo 3º da CF/88 — ainda é devedor no cumprimento
de tais fundamentos e objetivos em relação à população de pessoas que se reconhecem e
se apresentam como lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros
(LGBT 5 ) e, em certos casos também o é em relação às pessoas que assim não se
reconhecem, mas que por se apresentarem socialmente como dissidentes dos padrões
normativos de sexualidade e de gênero, também são fatalmente atingidas pelos rigores do
preconceito e das discriminações, de modo que é flagrante em nosso panorama cultural a
evidência de assimetrias identitárias relacionadas à orientação sexual e à identidade de
gênero.
A sexualidade, enquanto elemento indissociável da identidade dos indivíduos,
conforme leciona Guacira Lopes Louro 6 (1999), está marcada pela fluidez ─ o que
encontra firme ressonância no princípio do pluralismo (diversidade) anunciado já no
Preâmbulo da Constituição Federal ─, e intrinsecamente relacionada a condições
biopsicossociais e culturais que a sujeitam a contrapor-se às normas sociais hegemônicas
da heteronormatividade e da cisgeneridade, de modo tal que os sujeitos que apresentemse socialmente como transgressores de tais normas sociais assim impostas são, amiúde,
vítimas de violações de direitos em aspectos diversos, que podem partir de violências de
5
Sigla de natureza política padronizada na 1ª Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais,
Travestis e Transexuais realizada entre 5 e 8 de junho de 2008 em Brasília (DF), em lugar de GLBT, que
já fora GLS, de modo que tal mudança representou maior visibilidade para as reivindicações das mulheres
lésbicas. Anais da Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais – GLBT,
Brasília
(DF),
2008.
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em
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6
LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado – pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte:
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ordem psicológica e moral, até às raias das violências físicas e mesmo a morte.
Compreender e identificar essa modalidade de discriminação é tarefa singela,
dado que, analogicamente, enquanto o racismo se dá por condições essencialmente
biológicas e culturais (v.g. negros, indígenas e judeus), e a misoginia se dá pelo desprezo,
intolerância, medo e ódio à mulher e ao feminino (questão de gênero), condições
semelhantes quando direcionadas à população LGBT ou mesmo àqueles/as que fujam do
“regramento” sociocomportamental configura a homofobia (discriminação ou
preconceito de orientação sexual) ou a transfobia (discriminação ou preconceito de
identidade de gênero).
Segundo Daniel Borrillo, a homofobia é a hostilidade geral, psicológica e social
àqueles ou àquelas que supostamente sentem desejo ou têm relações sexuais com
indivíduos do seu próprio sexo, ou ainda, de forma mais sintética, o termo pode ser usado
para designar “atitude de hostilidade contra os/as homossexuais” (BORRILLO, 2010, p.
13).
A literatura registra a utilização do termo “homofobia” no final da década de 60
do século passado, entretanto, somente com a pesquisa do psicólogo estadunidense
George Weinberg que o termo ganhou notoriedade acadêmica, correspondendo a uma
condensação da expressão “homosexualphobia” (YOUNG-BRUEHL, 1996, p. 140).
Relevante anotar que a proposição do termo a partir da experiência da
homossexualidade masculina fez, segundo Junqueira (2009), proliferar a cunhagem de
outros termos a designar formas correlatas e específicas de discriminação, tais como
putafobia (prostitutas), transfobia (travestis e transexuais), lesbofobia (lésbicas) e bifobia
(bissexuais), sendo a transfobia o medo, o nojo e a vergonha de se relacionar com
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travestis, transexuais e transgêneros (JUNQUEIRA, 2009, p. 58; 235).7
O remédio a ser administrado pelo Estado, a fim de que essas discriminações
sejam minoradas, oxalá abolidas, está impreterivelmente vinculado a mecanismos legais
de equidade a fim de que esta população receba adequado tratamento que a coloque em
patamar de igualdade com os e as demais sujeitos de direito. Daí a evidência da igualdade
substancial, princípio de ordem essencial que, para Luiz Guilherme Marinoni (2011) é o
elemento indissociável do Estado Democrático de Direito e, bem por isso, está fortemente
grifado na Constituição Federal, iluminando a compreensão, a aplicação e a construção
do ordenamento jurídico.8
Marinoni assevera que apenas será permitido o tratamento desigual quando
necessário à materialização da própria igualdade, isto é, quando existem fatores que
justificam e impõem o tratamento desigual. Porém, são rechaçadas possíveis
discriminações gratuitas, não fundadas em elementos ou critérios capazes de, lógica e
substancialmente, imporem um tratamento desigual, o que, no Brasil, é recorrente quanto
se trata das questões afetas à sexualidade e ao gênero. (MARINONI, 2011, p. 1).
A
sexualidade
humana,
historicamente,
teve
como
parâmetro
a
heterossexualidade como norma. E mais recentemente, decorrente do empoderamento das
pessoas trans, e da amplitude da dialética formulada em torno da transexualidade e da
travestilidade, tem-se compreendido que a cisgeneridade
9
também é um padrão
firmemente consolidado, inclusive internamente no movimento social organizado LGBT,
7
JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Organizador). Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre
a homofobia nas escolas. Brasília: Edições MEC/Unesco, 2009, p. 58; 235.
8
MARINONI, Luiz Guilherme. O Precedente na Dimensão da Igualdade, 2011.
9
CRETHAR, H. C. & VARGAS, L. A. Multicultural intricacies in professional counseling. In J. Gregoire
& C. Jungers (Eds.), The counselor’s companion: What every beginning counselor needs to know. Mahwah,
NJ: Lawrence Erlbaum. ISBN 0805856846. 2007, p.61.
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no qual a transgeneridade é secundarizada e até mesmo por vezes invisibilizada por outros
sujeitos marcados socialmente como dissidentes ou transgressores. Em estudos
específicos de gênero, cisgênero, segundo Crethar, refere-se às pessoas cujo gênero está
em conformidade com o designado quando do seu nascimento (CRETHAR & VARGAS,
2007, p. 61).
A materialização de diferentes modalidades de preconceito (percepção mental
negativa e as representações sociais a ela relacionadas - Rios 2009, p. 54); a imposição e
naturalização da invisibilidade das práticas afetivo-sexuais entre pessoas do mesmo
gênero; bem como das dissidências de gênero, faz com que lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais e transgêneros sejam frequentes alvos de discriminação que se
expressa na posição de rejeição assumida, na maioria das vezes, pela família; nos
ambientes de trabalho e de participação política; nos ambientes escolares e universitários;
nos espaços de lazer; de amizade e em praticamente todas as dimensões da existência
humana. (MESQUITA, 2001, p. 67 apud REIS, 2013, p. 2).10
Há, portanto, um preocupante contexto social homofóbico marcado por um
cenário de violência a que estão submetidos milhões de crianças, adolescentes, jovens,
adultos(as) e idosos LGBTs, muitos(as) destes(as) já vivendo, de diferentes maneiras,
situações delicadas e vulneradoras de internalização da homofobia, negação,
autoculpabilização e auto-aversão. Isso acontece com a participação ou omissão da
família, da comunidade escolar, da sociedade e do Estado (SANTOS, 2014) que,
conforme já assinalado, é devedor no que toca à edição de legislação infraconstitucional
apta a promover e assegurar a cidadania das minorias sexuais dado que essa condicionante
10
REIS, Aparecido Francisco dos. Violência e Homofobia: Um estudo sobre preconceito e agressão contra
a população LGBT em Mato Grosso do Sul. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2013.
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impõe uma série de violações e violências.11
3 Orientação sexual e identidade de gênero na legislação vigente analisada
3.1 Lei Ordinária na Constituição Federal
A seleção dos textos legais do presente trabalho levou em consideração sua origem
no processo legislativo, interessando-nos as leis elaboradas no âmbito do Poder
Legislativo classificadas no inciso III do art. 59 da Constituição Federal — as leis
ordinárias que, por seu turno, são normas jurídicas primárias que contém normas gerais
abstratas que regram nossa vida em coletividade; sendo classificadas como
infraconstitucionais, que têm competência material residual, ou seja, aquelas cujas
temáticas a Constituição Federal não determinou que sejam tratadas por norma jurídica
específica.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) estabeleceu
as diretrizes para o novo Estado Democrático de Direito que surgia. Para Menezes (2012),
dentre as várias inovações jurídicas que procuravam atender aos legítimos anseios da
sociedade, estava o novo processo legislativo e as respectivas normas jurídicas possíveis,
com a finalidade de evitar governantes com excesso de poder e fazer valer os princípios
da segurança jurídica e da legalidade.12
Desse modo, os tipos de normas jurídicas foram pormenorizados na Carta
Constitucional, na Seção VIII do Capítulo I do Título IV, da seguinte forma:
Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:
I - emendas à Constituição;
II - leis complementares;
11
SANTOS, Cristiano Figueiredo dos. Intersecções entre Homofobia, Educação e Direitos Humanos, XI
Congresso Internacional de Direitos Humanos. Migração e Tráfico de Pessoas na Fronteira, 5 a 8 de
novembro de 2014, UFMS, Campo Grande (MS).
12
MENEZES, Rodolfo Rosa Telles. Hierarquia entre lei complementar e lei ordinária. In Âmbito Jurídico,
Rio
Grande,
XV,
n.
96,
2012.
Disponível
em:
http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11002. Acessado em maio 2015.
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268
III - leis ordinárias;
IV - leis delegadas;
V - medidas provisórias;
VI - decretos legislativos;
VII - resoluções.
Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação,
alteração e consolidação das leis.
Esse dispositivo trouxe os tipos de normas jurídicas que podem ingressar no nosso
ordenamento a partir da entrada em vigência da Carta Magna. Essa sistematização,
prevista pelos artigos 59 e seguintes, regulados pela Lei Complementar nº 95 de 199813,
trouxe o procedimento pelo qual deveriam ser editadas tais normas jurídicas, das quais
nos importam aquelas definidas no inciso III, as leis ordinárias.14
3.2 Leis Ordinárias pertinentes ao tema identificadas a partir de 1988
Assim delineado, os textos legais pertinentes na presente proposição (leis
ordinárias), que abordam/tratam de orientação sexual e de identidade de gênero, foram
assim identificados:
a) de âmbito Federal:
1. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha).15
2. Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013 (Estatuto da Juventude).16
b) de âmbito Estadual:
1. Lei nº 1592, de 20 de julho de 1995.17
2. Lei nº 3.157, de 27 de dezembro de 2005.18
13
Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o
parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos
normativos
que
menciona,
Brasília,
26
de fevereiro
de
1998.
Disponível
em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp95.htm. Consultado em maio de 2015.
14
MENEZES, Rodolfo Rosa Telles. Op cit.
15
Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8 o do art.
226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o
Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.
16
Institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das
políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude - SINAJUVE.
17
Dispõe sobre a obrigatoriedade de incluir a matéria Orientação Sexual nos currículos de 5ª a 6ª Séries de
ensino fundamental das Escolas Estaduais. (Publicada no Diário Oficial nº 4.082, de 21 de julho de 1995).
18
Dispõe sobre as medidas de combate à discriminação devido a orientação sexual no âmbito do Estado de
Mato Grosso do Sul. (Publicada no Diário Oficial nº 6.636, de 28 de dezembro de 2005, Republicada no
Diário Oficial nº 6.679, de 2 de março de 2006).
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269
3.
4.
5.
6.
c)
1.
2.
Lei nº 3.416, de 4 de setembro de 2007.19
Lei nº 3.591, de 9 de dezembro de 2008.20
Lei nº 4.031, de 26 de maio de 2011.21
Lei nº 4.271, de 26 de novembro de 2012.22
de âmbito Municipal:
Lei nº 5.330, de 06 de junho de 2014.23
Lei nº 5.527, de 10 de março de 2015.24
Referidas normas dos âmbitos estadual e municipal foram especificamente
elaboradas para tratar objetivamente de orientação sexual e identidade de gênero,
consoante os assuntos indicados em suas respectivas ementas.
Diferentemente, os dois documentos de âmbito federal trataram das referidas
temáticas em sua compleição, porém, de forma acessória aos temas centrais, inseridas,
portanto, pela perspectiva da transversalidade da temática diversidade sexual em outras
abordagens, outros grupos e segmentos de populações vulneráveis, que no caso específico
são as mulheres vítimas de violência doméstica e a juventude.
O documento de 2006 (1), popularmente conhecido como Lei Maria da Penha,
nos interessa no recorte do artigo 2º e do parágrafo único do artigo 5º, in verbis:
Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação
sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as
19
Altera dispositivos da Lei nº 3.287, de 10 de novembro de 2006, que dispõe sobre a obrigatoriedade da
disciplina de Relações de Gênero no conteúdo curricular dos cursos de formação de Policiais Civis e
Militares e Bombeiros Militares, acrescentando a disciplina de combate à homofobia. (Publicada no Diário
Oficial nº 7.046, de 5 de setembro de 2007. Obs.: Lei promulgada pela Assembleia Legislativa).
20
Altera dispositivo da Lei nº 3.150, de 22 de dezembro de 2005, que dispõe sobre o Regime de Previdência
Social do Estado de Mato Grosso do Sul. (Publicada no Diário Oficial nº 7.358, de 10 de dezembro de
2008. Promulgada pela Assembleia Legislativa).
21
Institui o Dia Estadual de Combate à Homofobia em Mato Grosso do Sul. (Publicada no Diário Oficial
nº 7.958, de 27 de maio de 2011).
22
Veda qualquer forma de discriminação no acesso aos elevadores de todos os edifícios públicos ou
particulares, comerciais, industriais e residenciais multifamiliares existentes no Estado de Mato Grosso do
Sul. (Publicada no Diário Oficial nº 8.321, de 27 de novembro de 2012, página 1).
23
Assegura às pessoas travestis e transexuais o direito à identificação pelo nome social em documentos de
prestações de serviços quando atendidas nos órgãos da administração pública direta e indireta e dá outras
providências. (Publicada no Diário Oficial de Campo Grande nº 4.229, de 13 de março de 2015, página 18).
24
Institui o Dia Municipal de Combate à Homofobia em Campo Grande. (Publicada no Diário Oficial de
Campo Grande nº 4.038, de 10 de junho de 2014, página 15).
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oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física
e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar
contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial:
(omissis)
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de
orientação sexual. (Grifos nossos).
Já o documento de 2013 (2), popularizado como Estatuto da Juventude, nos
importa no recorte do inciso II do art. 17 e no inciso III do art. 18, in verbis:
Art. 17. O jovem tem direito à diversidade e à igualdade de direitos e de
oportunidades e não será discriminado por motivo de:
(omissis)
II - orientação sexual, idioma ou religião;
Art. 18. A ação do poder público na efetivação do direito do jovem à
diversidade e à igualdade contempla a adoção das seguintes medidas:
(omissis)
III - inclusão de temas sobre questões étnicas, raciais, de deficiência, de
orientação sexual, de gênero e de violência doméstica e sexual praticada contra
a mulher na formação dos profissionais de educação, de saúde e de segurança
pública e dos operadores do direito. (Grifos nossos).
Assim visto, considerando o lapso temporal que parte da promulgação da
Constituição Federal de 1988, tem-se evidente que nesses últimos 26 (vinte e seis) anos
de democracia, embora extremamente relevantes tais documentos normativos, esses
parcos textos denotam desprezo e secundarização dos direitos da população LGBT que
tem, por isso, importantes precarizações em sua vivência cidadã, como a discriminação
já iniciada no ambiente familiar e nas comunidades, no acesso e permanência à/na escola,
no acesso à saúde, na igualdade de oportunidades no mercado de trabalho, no acesso aos
programas sociais de moradia e de combate à pobreza e à marginalização etc.
Noutra análise, de não menor importância, constatou-se que, muito embora o
Legislativo Estadual de Mato Grosso do Sul tenha já produzido certo número de leis
nessas temáticas, somente em março de 2014 foi elaborada e lançada uma campanha
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publicitária governamental com vistas em repercutir referidas leis e canais disponíveis
para formalização de denúncias relacionadas à discriminação da população LGBT.
Conforme se pode acessar o sítio da Secretaria de Estado de Direitos Humanos,
Assistência Social e Trabalho (SEDHAST), verifica-se que o link25 de acesso ao material
produzido está unicamente associado a uma notícia datada de 31 de março de 201426 e,
portanto, de difícil localização no portal a não ser para pessoas que já saibam da existência
do material, de modo a não inovar, nem ampliar o alcance a ponto de popularizar tais
documentos e seus relevantes conteúdos legais até mesmo para aqueles e aquelas objetos
de proteção pelas mesmas.
4 Conservadorismo cultural e estado laico
A livre expressão do desejo sexual é um direito humano (RIOS, 2007 apud
JUNQUEIRA, 2012, p. 72). A Constituição Federal de 1988 reconhece a diversidade
como valor social e explicita a universalidade dos direitos sociais sem discriminação de
qualquer espécie. Considerando a intimidade inviolável da própria Carta Magna, a
sexualidade não pode restringir-se a padrões unívocos já que denota a própria pluralidade
entre cidadã(o)s e grupos sociais e suas formas de laço afetivo (LIONÇO & DINIZ,
2009).27
Entretanto, problematizar as correlações entre cultura, gênero e sexualidade é uma
tarefa indispensável para que se compreenda como a legislação que aborde tais temas é
construída, isso porque, assim como a educação se trata de um processo intimamente
relacionado a fenômenos históricos, o direito também é palmilhado consoante a história
25
http://www.unisite.ms.gov.br/unisite/controle/ShowFile.php?id=156751. Acessado em maio de 2015.
26
http://www.unisite.ms.gov.br/unisite/sites/setass/index.php?templat=vis&site=99&id_comp=373&id_reg
=228509&voltar=lista&site_reg=99&id_comp_orig=373. Acessado em maio de 2015.
27
SANTOS, Cristiano Figueiredo dos. Op. Cit.
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272
que é inevitavelmente marcada pela cultura de um povo, de uma nação. Para Miguel
Reale, o Direito é um fenômeno cultural atrelado a fatos históricos, e as normas
(positivadas ou não) devem ser interpretadas/aplicadas conforme significado dos
acontecimentos (REALE, 1968).
É imperioso, diante dessa percepção, pensar sobre o significado de cultura a fim
de compreender quando sua manifestação conservadora impõe ao Estado Brasileiro o
descumprimento dos objetivos republicanos em prol da cidadania e da dignidade humana
das minorias sexuais politicamente abordadas na população LGBT.
Ao defender que o universo apresenta duas ordens de realidade: uma chamada
realidade natural ou físico-natural, e outra denominada realidade cultural, Reale afirma
que “cultura é o conjunto de tudo aquilo que, nos planos material e espiritual, o homem
constrói sobre a base da natureza, quer para modificá-la, quer para modificar-se a si
mesmo” (REALE, 2004).28
Conseguintemente, é pela análise da cultura que se busca refletir sobre os
processos e mecanismos de produção das diferenças e desigualdades de gênero; de como
as vivências de sexualidades dissidentes têm se constituído no domínio das leis que
podem (ou poderiam) funcionar como mecanismos de superação da produção e
reprodução das assimetrias identitárias nos diferentes espaços formativos, o que só é/será
possível se materializar com a devida observância do princípio da laicidade do Estado.
A vida contemporânea, longe de ser um tempo da homogeneidade cultural — mais
do qualquer outro momento histórico — está marcada pelo encontro (e pelo conflito) de
diferentes grupos. As diferenças são fruto não apenas das desigualdades sociais, já que
28
Reale, Miguel. Lições Preliminares de Direito, 27 ed., ajustada ao novo Código Civil, 4ª tiragem, São
Paulo: Saraiva, 2004.
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encontramos mais diferenças do que as divisões entre classes sociais, dado que em GDE
(2009, p. 21), a religião é apresentada como um bom exemplo sobre diferença ao
hipotetitzar o convívio entre crianças católicas, umbandistas e neopentecostais, devendo
estas a conviver ainda com aquelas educadas em meios em que a religião não é relevante,
ou mesmo em meios explicitamente ateus.29
O estranhamento diante de costumes de outros povos e a avaliação de formas de
vida distintas a partir dos elementos da sua própria cultura é fenômeno recorrente entre
as várias culturas. Este estranhamento é consensualmente denominado de etnocentrismo,
de cujas ideias criam-se os estereótipos, que consistem na generalização e atribuição de
valor (frequentemente negativo) a algumas características de um grupo, reduzindo-o a
essas características e definindo os lugares de poder a serem ocupados. É uma
generalização de julgamentos subjetivos feitos em relação a um determinado grupo,
impondo-lhes o lugar de inferior. (GDE, 2009, p. 24).30
É curial distinguir que, enquanto o estereótipo e o preconceito estão no domínio
das ideias, a discriminação está no campo da ação, da atitude, que pode ser negar
oportunidades, negar acesso, negar humanidade. Sem olvidar de que a omissão e a
invisibilidade também são consideradas atitudes, se constituindo em discriminação
(GDE, 2009, p. 27).31
Enfrentar legalmente as práticas de discriminação numa saudável democracia
deve se dar com a devida separação entre Estado e religião, muito ao contrário da relidade
de um Estado Teocrático, a exemplo da República Islâmica do Irã, onde a cultura e o
29
Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es em Gênero, Orientação Sexual e Relações
Étnico-Raciais. Livro de conteúdo. Versão 2009. – Rio de Janeiro : CEPESC; Brasília : SPM, 2009.
30
Gênero e diversidade na escola. Op. Cit.
31
Gênero e diversidade na escola. Op. Cit.
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direito são decisivamente marcados pelo dogmatismo religioso, de modo que suas leis e
as normas sociais estão estabelecidas a partir das concepções dadas pelo Corão32 no qual,
inevitavelmente, as questões vinculadas à sexualidade como um todo assim são/serão
pautadas.
Evidentemente, num Estado Democrático de Direito — onde as liberdades são
substratos que os caracterizam — o princípio da laicidade estatal vem justamente para
que o Estado, do ponto de vista das políticas públicas (plurais), não seja direcionado pela
vontade de uma determinada cultura de grupos religiosos, majoritários em algum
momento histórico, imponham aos demais seus dogmatismos, pelo fato destes,
posicionados no domínio das subjetividades, serem ilegítimos para vigência, validade e
eficácia sobre toda a coletividade, sob pena de violação da liberdade de crença
estabelecida no inciso VI do art. 5º da CF/88, segundo o qual “é inviolável a liberdade
de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e
garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” donde
emerge, em idêntico patamar de liberdade, o direito de não-crença.
Esta valorosa conquista nas democracias assegura que as minorias historicamente
marginalizadas tenham suas liberdades de crenças, de descrença, de ser ou não ser,
preservadas da dominação das maiorias embaladas por estas ou aquelas ideias
conservadoras e reacionárias fincadas no campo das subjetividades que são constructos
inarredáveis das religiões, sejam elas monoteístas ou politeístas.
O princípio laico, assim preservado, foi primordial v.g. na aprovação da Lei do
32
Livro sagrado do Islã, ou do Islamismo.
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Divórcio33 (anterior à CF/88) e também na revogação do art. 240 do Código Penal, do
adultério (abolitio criminis) dada pela Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, em seu art.
5º, deixando de ser crime, ficando apenas adstrito ao campo da reparação de natureza
civil.
Estes dois institutos de direito, um civil e outro penal, eram e são tratados no
âmbito das religiões decorrentes da cultura religiosa abraâmica (Judaísmo, Cristianismo
e Islamismo), de modo que a preservação da laicidade do Estado lhes permite ainda impor
aos seus adeptos as sanções que o dogma adota, e que é livremente legitimado por seus
respectivos adeptos, ao mesmo tempo que impede que tais sanções sejam adotadas contra
aqueles/as para os quais esses valores religiosos não lhes norteiam a vivência.
Curial, portanto, destacar como o processo cultural em progressão determinou a
legislação, como defende Reale (1973) para o qual “o progresso da cultura humana, que
anda paripassu com o da vida jurídica”, com o exemplo do divórcio, pelo fato de ter se
tornado necessário a possibilitar a cidadãos e cidadãs o direito/liberdade de reconstrução
das vidas afetivo-familiares, cujo concubinato alcançava a realidade de muitos e muitas,
especialmente a de mulheres que viviam sob fortíssimos estigmas depreciativos de “má
fama”, “pistoleiras”, “sirigaitas”, “quengas”, “rameiras” etc. Já a abolição do adultério
em 2005, pelo fato de que praticamente já não se via condenação penal por esse
dispositivo. Foi esta uma hipótese de revogação da lei imposta pelo desuso, pelos
costumes, dado que a sociedade brasileira já não acreditava na eficácia do Direito Penal
para evitar o adultério.
Estado Laico é, conseguintemente, o único que garante o pluralismo religioso e
33
Lei
nº
6.515,
de
26
de
dezembro
de
1977.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6515.htm. Acessado em maio de 2015.
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276
também o direito de crença e não crença. E que, sintonizado com os fundamentos e
objetivos republicanos dados nos artigos 1º e 3º da Carta Magna, estimula a convivência
harmônica entre todos e todas rumo à edificação de uma sociedade fraterna, pluralista e
sem preconceitos, consoante textual anúncio do Preâmbulo constitucional.
5 Considerações finais
É fato que no Brasil há diversas tradições culturais, algumas mais popularizadas
e outras pouco conhecidas; algumas valorizadas, outras pouco respeitadas. Portanto, há
um necessário desafio de como compreender os elementos comuns e as singularidades
entre as culturas; de como lidar com a diversidade cultural em sociedade, desde as
comunidades, da sala de aula, passando pelas universidades e mercado de trabalho, até
chegar às instâncias legislativas, onde as normas são construídas como marcos
regulatórios da vida civilizada.
Lamentavelmente, este é um grandioso desafio que vem derrotando o Brasil no
tocante produção de normas, a exemplo dos parcos 10 (dez) textos legislativos
identificados como promotores de inclusão social e de combate às discriminações
marcadas pela orientação sexual e pela identidade de gênero.
Numerosos projetos tramitam nas casas legislativas e outros tantos foram
radicalmente sepultados no Congresso Nacional, como o PL 122/2006, que pretendia
criminalizar a homofobia e a transfobia; e como as duas tentativas de lei municipal que
conferisse o título de utilidade pública à Associação das Travestis e Transexuais de Mato
Grosso do Sul (ATMS) na Câmara Municipal de Campo Grande (MS); como outros
tantos relacionados ao casamento igualitário para casais isoafetivos; como para adoção
de filhos/as por casais formados por pessoas do mesmo gênero; como a inclusão das
mulheres trans e das travestis na Lei do Feminícidio (Lei nº 13.104/2015); como a
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retificação extrajudicial do nome civil para as pessoas trans e o reconhecimento do nome
social independente da retificação judicial.
E, conforme as majoritárias justificativas apresentadas pelos antagonistas de
referidos projetos, resta evidente o recalcitrante desrespeito ao princípio da laicidade do
Estado, porquanto tais fundamentações passaram inequivocadamente pelas ideias de
contraposição aos valores morais dados pelas crenças hegemônicas decorrentes do
Cristianismo em suas facetas mais conservadoras (mosaicas) e mesmo fundamentalistas.
A construção da identidade LGBT, a exemplo do que houve com a identidade
negra no Brasil, deve passar a ser não apenas um mecanismo de reivindicação de direitos
e de justiça, mas também uma forma de afirmação de um patrimônio cultural específico,
que vem sendo sistematicamente negado nas instâncias do Poder Legislativo a ponto de
impedir a vivência de plena cidadania deste segmento ainda marginalizado.
É a partir da perspectiva que considera a cultura como um processo dinâmico de
reinvenção contínua de tradições e significados que deve ser observado o fenômeno
cultural, o qual deve e merece ser estimulado para a cultura do encontro — inevitável
numa realidade de incontáveis diversidades, a fim de se cultivar, segundo lição de Glória
Moura, uma cultura de abertura ao novo, para “ser capaz de absorver e reconhecer a
importância da afirmação da identidade, levando em conta os valores culturais”34 de todos
e de todas.
As ações humanas são reguladas por motivos e normas. Os motivos que nos levam
a agir de uma ou outra maneira podem estar relacionados a interesses pessoais ou
coletivos, a razões, a justificativas e a emoções. As normas, por sua vez, são impostas
34
MOURA, Glória. O Direito à Defesa. In: MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola.
SECAD / MEC, Brasília, 2005, p. 69-82. In GDE, p. 33.
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ISSN: 1983 - 3784
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pela cultura, pelas instituições formais que repassam valores morais e implementam leis.
Então, concordando com a máxima do filósofo e jurista brasileiro Miguel Reale, que toda
“toda norma enuncia algo que deve ser, em virtude de ter sido reconhecido um valor
como razão determinante de um comportamento declarado obrigatório”, é de se esperar
que normas de promoção e proteção das peculiaridades das minorias sexuais sejam
produzidas e postas em vigência a fim de provocar importantes mudanças atitudinais
coletivas capazes de minimamente fazer cumprir os objetivos entabulados no art. 3º da
Constituição Federal do combate aos preconceitos e discriminações e redução da
marginalização em nome do fortalecimento e legitimação dos fundamentos do
pluralismo, da cidadania e da dignidade humana no Estado Brasileiro, definitivamente,
para todos e todas.
Constatou-se, a partir do levantamento documental das leis ordinárias produzidas
no âmbito do Legislativo Federal, Estadual de Mato Grosso do Sul, e Municipal da capital
Campo Grande, um limitado número de leis que tratam da promoção e proteção da
cidadania das minorias sexuais, mostrando-se insuficientes a cumprir com os objetivos
republicanos em prol de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros
(LGBT), além do que em apenas duas leis vigentes, desde a promulgação da Constituição
Federal de 1988 (26 anos), de âmbito federal, contemplaram quase que casualmente as
nuances da orientação sexual e de possibilidades alternativas de gênero, muito embora
diversos projetos de lei ousaram em tentar proporcionar mecanismos legais de equidade
e, conseguintemente, de justiça para com este segmento compreendido como mais
execrável no âmbito das minorias sociais.
Os antagonistas dos inúmeros projetos legislativos pró-cidadania LGBT não se
intimidaram nem economizaram argumentos de ordem moral religiosa, em flagrante
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violação à laicidade do Estado, princípio este único capaz de preservar que diretamente o
Estado e indiretamente seus cidadãos e cidadãs estejam blindados contra a imposição de
qualquer doutrina, fé ou crença religiosa (majoritária ou não) que pretenda ser pluralizada
de forma cogente a ponto de desumanizar qualquer indivíduo, grupo ou segmento
populacional deste País. Portanto, é por este princípio que o fundamento do pluralismo é
e será resguardado.
Aliada à escassez de normas de promoção da cidadania pró-LGBT, verificou-se
que há fortes evidências de desconhecimento, impopularidade e até desuso das normas
sul-mato-grossenses, consequência do desinteresse estatal em propagar tais leis, dado que
apenas uma única campanha publicitária ocorreu num curto período de 2014 mediante
material divulgado praticamente no âmbito interno do Governo Estadual, não alcançando
o conhecimento amplo e popular.
Este trabalho sugere, enquanto uma ferramenta de diagnóstico, que em
decorrência de posicionamento conservador e reacionário nas casas legislativas, em seus
três níveis parlamentares (federal, estadual e municipal), em muitas oportunidades se
valendo de argumentos mitológicos e dogmáticos, sob pretextos de consolidar o
posicionamento dos grupos sociais hegemônicos que representam, em dissonância ao
princípio laico, sem perspectivas de alteração positiva desse quadro, que há insuficiência
de leis aptas a minimizar as violências por que passam as pessoas LGBTs no Brasil, em
Mato Grosso do Sul e sua respectiva Capital; além de não haver demonstração do
interesse estatal em propagar, através de amplas e permanentes campanhas, as poucas
garantias legais que, de forma ainda diminuta, cumprem timidamente compromissos
assumidos pelo Brasil na Constituição Federal em favor das minorias sexuais na
superação das assimetrias identitárias.
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O CANTO DE AQUILES E O AMOR: A QUEM PERTENCE O SEU CORAÇÃO?
The Song of Aquiles and love: who belongs to your heart?
Demóstenes Dantas Vieira1
Francisco de Assis da Costa Filho2
RESUMO: Este trabalho escreve sobre as especificidades da narrativa homérica em torno da relação Pátroclo/Aquiles.
O problema que perpassa esse trabalho é um questionamento sobre amor e desejo, afinal, a quem pertencia o coração
de Aquiles, ao seu primo Pátroclo ou a Briseis, sua escrava e amada? É interessante pensar nessa trama, as formas
através da qual se configuravam as práticas homoafetivas na antiguidade clássica, suscitando formas de compreensão
que contribuam para o entendimento da construção da homoafetividade na sociedade ocidental, que perpassa habitus
sociais e práticas homoafetivas distintas, levando em consideração as estruturas estruturadas e historicizadas pela
ação. Nesse sentido, propomos como objetivo refletir sobre possibilidades interpretativas em torno das práticas
homoafetivas, amizade e amor entre Pátroclo e Aquiles. Utilizamos como aporte teórico, principalmente, as
considerações sobre literatura clássica de Viegas (2009, 2012) Aubreton (1988) e Carlier (2008), assim como as
reflexões de Dover (1994), Corino (2006) e Ullmann (2005). Os resultados apontam para uma relação de amizade,
amor e sexualidade quase que indistintas, em que as práticas sexuais entre dois homens eram concebidas como prova
de intimidade, companheirismo e afeto.
Palavras-chave: Homossexualidade. Antiguidade Clássica. Amor. Amizade.
ABSTRACT: This paper writes about the specifics of the Homeric narrative around the relationship
Patroclus / Achilles. The problem that permeates this work is a question of love and desire, after all, who
owned the heart of Achilles, his cousin Patroclus or Briseis, priestess of Apollo? It is interesting to think of
this plot, the ways through which they configured the homoafetivas practices in classical antiquity, raising
ways of understanding that contribute to the understanding of the construction of homoafetividade in
Western society that permeates social habitus and distinct homoafetivas practices, taking into account the
structured structures and historicized by the action. In this sense, we propose reflects on interpretative
possibilities around the homoafetivas practices, friendship and love between Achilles and Patroclus. We
used as theoretical support mainly considerations of classical literature Viegas (2009, 2012) Aubreton
(1988) and Carlier (2008) and the reflections of Dover (1994), Corino (2006) and Ullmann (2005). The
results point to a relationship of friendship, love and sexuality almost indistinct, where the sexual practices
between two men were conceived as evidence of intimacy, companionship and affection.
Keywords: Homosexuality. Classical Antiquity. Love. Friendship.
Introdução
Este trabalho adota com objetivo refletir sobre possibilidades interpretativas em
torno das práticas homoafetivas, amizade e amor entre Pátroclo e Aquiles, personagens
Graduado em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, Especialista em Educação pelas
Faculdades Integradas de Patos – FIP e Mestre em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado
do Rio Grande do Norte – UERN. E-mail: [email protected]
2
Graduado em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, mestrando em
Ciências Sociais e Humanas pela mesma instituição. E-mail: [email protected]
1
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da narrativa homérica da Ilíada. Ele traz à tona reflexões sobre práticas homossexuais e
relações afetivas entre iguais na antiguidade clássica, de modo que possamos entender
como tais práticas se configuravam como habitus social, estruturados de forma distinta
em Esparta e em Atenas, mas com características muito semelhantes.
Nossa pesquisa justifica-se no meio científico no tocante que visa promover a
reflexão sobre o processo de construção da homoafetividade na sociedade ocidental, que,
por sua vez, perpassa o entendimento de práticas homossexuais na Antiguidade Clássica.
Para tanto, adotamos como método procedimental a pesquisa bibliográfica e a análise
documental da Ilíada, como manuscrito histórico e social.
Práticas homossexuais na Grécia Antiga: entre Esparta e Atenas
Segundo escreve Dover (1994), de forma geral, o homoerotismo na sociedade
grega antiga supria a necessidade de relações interpessoais mais íntimas não encontradas
no casamento. Isso se deve, talvez, pela forma como a figura da mulher foi desenhada
ainda no berço da democracia, física, intelectual e emocionalmente inferior, o que não
lhes inferia nenhum tipo de segurança nas relações afetivas. Por esse motivo os homens
se agrupavam em duplas de amigos, através das quais podiam saciar a necessidade de
satisfação não só da libido, mas das emoções.
Sobre essa questão, Plutarco (2009, 49-50) escreve que
Mas o amor verdadeiro não tem qualquer espécie de relação com o gineceu, e
nem considero que seja amor o sentimento que vocês nutrem por mulheres e
raparigas, da mesma maneira que as moscas não amam o leite ou as abelhas o
mel, nem tampouco os criadores de gado ou os cozinheiros experimentam
sentimentos de amor pelos cordeiros ou por aves que se alimentam às escuras.
Com efeito, escreve Plutarco, “o Amor é o que vos liga a almas jovens e bemnascidas que através da amizade vos conduz a virtude”, o relacionamento sexual entre
dois homens.
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Conforme escreve Corino (2006, p. 20), em Esparta, sociedade guerreira,
os casais de amantes homens eram incentivados como parte do treinamento e
da disciplina militar. Essas práticas dariam coesão às tropas. Em Tebas, colônia
espartana, existia o Pelotão Sagrado de Tebas, tropa de elite composta
unicamente de casais homossexuais. Eram extremamente ferozes, pois lutavam
com muita bravura para que nada acontecesse a seus parceiros. Em campo de
batalha eram quase imbatíveis.
Como é possível perceber tais práticas, em Esparta, se davam no âmbito de um
habitus3 social bastante ligado ao treinamento e ao campo de batalha, a libido, as práticas
homossexuais entre os guerreiros não eram percebidas como forma de interiorização da
masculinidade, pelo contrário, estavam ligadas à sua força e ferocidade em batalha.
Entretanto, vale ressaltar que tal habitus não se reproduzia em todas as polis
gregas. Em Atenas, por exemplo, ele se configurava de forma distinta. Para entendermos
essa questão, citamos três exemplos:
Um jovem ateniense chamado Timarco, de grande beleza e de boa família, que
começou a se prostituir nas ruas de Cerâmico e Pireu. Ele buscava o prazer
puro e simples. Era um “devasso”, chegando a ter dois amantes ao mesmo
tempo. Ao chegar à idade adulta entrou na política, no entanto foi atacado por
Ésquines em um discurso que se tornou célebre. Ésquines expôs a público seu
passado e por causa disso Timarco veio a suicidar-se.
Em outra situação, o escritor Sófocles caminhava por Cerâmico e agradou-se
de um jovem que vendia seu corpo no local. Foram os dois para um canto
sombrio das muralhas. Depois desse breve encontro, o jovem apossou-se do
manto de Sófocles e deixou em seu lugar seu pequeno manto de criança.
Sófocles teve que usar essa roupa curtíssima para ir para casa. Ao atravessar
Atenas nesses trajes, foi motivo de riso e o caso causou grande rumor na
cidade.
O filósofo cínico Diógenes também foi testemunha de outro caso: viu certo dia
Demóstenes num prostíbulo e, apesar do esforço deste para se esconder,
tomou-o pelo braço, levou-o até a rua e o mostrou-o aos transeuntes: “Vejam
aqui o chefe do povo ateniense!”. Para evitar ser reconhecido, Demóstenes, o
maior representante da eloqüência ática costumava freqüentar esse lugar
vestido de mulher. (CORINO, 2006, P. 21)
3
O habitus representa um engendramento que proporciona a compreensão da interiorização das estruturas
sociais nas quais o indivíduo está inserido. Assim como em Elias (1993), em Bourdieu, o habitus pode ser
compreendido como disposições duráveis e inconscientes, tendo em vista a sua relação com estruturas
historicizadas. Nesse sentido, o habitus produz práticas, individuais e coletivas, produz história, portanto,
em conformidade com os esquemas engendrados pela história” (BOURDIEU, 1994, p. 76).
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De certa forma, a sociedade ateniense vivia um paradoxo com relação às práticas
homossexuais. Era aceitável e até aconselhável a relação afetiva e sexual entre dois
homens, desde que um deles tivesse entre 12 e 18 anos, e o outro fosse um homem mais
velho, maduro, de modo que este último possa “transmitir” conhecimentos ao mais
jovem. Vale, entretanto ressaltar, que os papeis homoeróticos estabeleciam-se como
habitus social, em que não era concebível que o garoto fosse o ativo dessa relação, pois
ele não tinha nada a ensinar. Era vergonhoso para o erastes (amante), termo usado para
designar o homem mais velho da relação, ser penetrado pelo seu pupilo chamado de
eromenos (amado). Era repugnável diante da sociedade ateniense (ULLMANN, 2005).
Tal forma de práticas homossexuais consolidadas em Atenas eram denominadas de
paiderastia (amor a meninos). Tais práticas perpassavam o modelo de educação masculina
atenisense, a paidéia (educação) era realizada somente através da paiderastia
(ULLMANN, 2005). Vale entretanto ressaltar que enquanto a pederastia constituía um
habitus social, os homens políticos eram coibidos a não frequentarem prostíbulos, nem
tampouco era aceito que os mesmo se expusessem com relação a práticas homossexuais
(ULLMANN, 2005; CORINO, 2006).
Diante das considerações realizadas, propomos no tópico a seguir entender como
se configurava a relação entre Aquiles/Briseis e Aquiles e Pátroclo na Ilíada, tendo como
escopo os processos de configurações4 em que se postulava a Grécia Antiga. Para tanto
faremos breve análise da narrativa, levando em consideração as reflexões de Viegas
(2013) e Dover (1994), Aubreton (1968) e Carlier (2008).
4
Termo usado por Elias (1994) para designar as redes de interdependência entre os indivíduos, que
constituem a sociedade. Essa “rede de interdependências entre os seres humanos é o que os liga. Elas
formam o nexo do que é aqui chamado configuração, ou seja, uma estrutura de pessoas mutuamente
orientadas e dependentes” (ELIAS, 1994, p. 249).
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A narrativa homérica e a ira de Aquiles
A Ilíada tem assumido o lugar de um dos maiores clássicos da literatura
ocidental/universal. No original grego, a Ilíada é composta de 15.693 versos. Divididos
em 24 cantos de extensão variável. O título deriva de Ílion, nome grego de Tróia. Apesar
de sua autoria ser atribuída a Homero, existem inúmeras especulações sobre a sua autoria,
sobre a data de sua criação ou mesmo sobre a existência do poeta.
Especula-se que, provavelmente, a obra tenha sido escrita no século VIII a.C,
cerca de três séculos depois dos fatos narrados. A versão que conhecemos hoje foi escrita
provavelmente em Atenas no século VI. A divisão do poema em 24 cantos corresponde
à tradução dos eruditos alexandrinos do Período Helenístico.
É notório que a Ilíada influenciou os maiores poetas e escritores da latinidade,
como a Eneida de Virgílio, a obra de Horácio, Ovídio etc. Tal influencia também pode
ser observada na Literatura de Língua Portuguesa, principalmente em Os Lusíadas, de
Camões, I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias, e obras diversas. De grande relevância,
durante muitos séculos, a Ilíada fez parte do currículo da educação básica, primeiramente
na Grécia e depois também em Roma.
A narrativa da Ilíada se passa durante o décimo e último ano da Guerra de Tróia
(provavelmente no século V a.C). Apesar de ser uma obra repleta de temas como a
condição humana, destino, paixão, guerra, traição etc., o que está em foco é a trajetória
mítica de um semideus (Aquiles), filho do rei Peleu e da Deusa do Mar (Tétis). Leiam-se
nos versos abaixo:
Canta-se, ó deusa, do Peleio Aquiles
A ira tenaz que, lutuosa aos gregos
Verdes no Orco lançou mil fortes almas
Corpos de heróis a cães e abutres:
Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem
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O de homens chefe e o Mirmidom divino
Nume há que os malquistasse?
(ILIADA, 2005, P. 26)
Como e possível perceber a temática central da Ilíada é a ira de Aquiles. A obra
traz os cantos de sua ira, contra o próprio destino, contra Agamenon e contra a morte, dor
e luto que se materializam com a perda daqueles a quem seu coração declinava, Briseis e
Pátroclo, seu amigo e companheiro de batalhas.
Segundo Viegas (2013, p. 28), “em Homero, philía (amor, amizade) entre
homens e mulheres é extremamente ligada ao pathos em sua carga semântica mais
primitiva – um sentimento que estrangula e domina o homem de modo fortíssimo.” Ao
se referir aos sentimentos de Aquiles, Homero usa o mesmo vocábulo para se referir tanto
a Briseis como para Pátroclo (VIEGAS, 2013).
A ira de Aquiles acontece em primeiro momento contra a prepotência de
Agamênon, que ao afrontá-lo reivindica a posse de Briseis, escrava que Aquiles tomara a
guerra, a quem ele passara a amar. Esse impasse se dá pelo fato de que Aquiles havia
contestado o que Agamenon havia feito com a sacerdotisa de Apolo (Criseis), tê-la feito
escrava. A pedido do oráculo, Aquiles questionou a Agamênon para que a sacerdotisa
fosse liberta, assim a ira de Apolo não cairia sobre eles. Agamenon libertou a sacerdotisa,
mas afrontou Aquiles tomando a sua escrava. Sendo ele, o maior guerreiro já nascido,
retirou-se da guerra pela primeira vez (até que sua escrava fosse lhe devolvida).
A relação amorosa entre Aquiles e Briseis é descrita já nos primeiros versos da
narrativa, onde Homero solicita à deusa, ou à musa para cantar a ira de Aquiles, pois era
difícil para Homero narrar tamanha ira. Após a discussão com Agamenon, Aquiles pede
a seu companheiro Pátroclo que busque Briseis em sua tenda, segundo Homero (2005),
calada e constrangida.
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Falou. Presta obediência ao caro companheiro, Pátroclo.
Para fora da tenda, Briseida, belo rosto, é levada.
E os dois, de volta, junto,
às naves — e a mulher a contragosto — vão”
(HOMERO, 2005, P. 345-348)
É interessante lembrar como se davam as relações afetivas entre homens e
mulheres na Grécia, o amor era concebido como produto de um habitus ligado a posse da
mulher que era compreendida como sua propriedade, visto a sua inferioridade intelectual,
emocional e física, conforme escreve Dover (1994).
É de suma importância entender a hermenêutica dessa relação. A personagem
Helena, em determinado momento da narrativa, ao ver tanto sangue e tanta violência
derramada a seu favor, se questiona sobre o sentimento do amor, “não seria eu apenas um
troféu” que prova aquele que tem mais força nesta Guerra? (HOMERO, 2006, P. 98).
Isso não significar dizer que as práticas afetivas entre homem e mulher não se efetivavam,
nem tampouco dizer que as relações afetivas homoeróticas eram superiores. O que
precisamos entender é que em ambos os casos as práticas de amor e afeto se configuravam
de formas distintas, assim como também se diferem das formas de amor na
contemporaneidade. Aquiles amava a Briseis e ao vê-la ser retirada, é humilhado e
entristecido. Segundo escreve o narrador, “Aquiles põe-se à parte, afasta-se, chorando,
/Sentado junto ao mar salino-cinza, e olhava, /Ao longe, as águas cor de vinho.”
(HOMERO, 349-351).
O canto I dá prosseguimento com diálogo de Aquiles com a Deusa Tetis (sua
mãe), com quem ele busca colo e explicações sobre o que aconteceu, visto que ele não
entendia o porquê de sua dor. Conforme escreve Homero (2005, p. 490) “nem a glória da
ágora o atraía mais.”.
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É interessante lembrar que Aquiles só retorna a Guerra quando Agamenon, por
intermédio de Odisseu, lhe promete ao fim da batalha muitas mulheres e riquezas, assim
como a certeza de que Briseis não foi tocada por Agamenon e que ela lhe será devolvida
(HOMERO, 2005, p. 416-420). Ao contrário, do afirmam muitos sobre os sentimentos do
herói, com base em interpretações inequívocas sobre as prática homossexuais na Grécia
Antiga, Aquiles amava a Briseis, conforme sua própria declaração “Todo homem reto,
merecedor de nome, ama sua esposa e a ampara, como eu de coração, amo a minha”
(HOMERO, 2005, p. 341-343). Isso reforça também o quanto a relação matrimonial
estava ligada a um sentimento de posse, embora Aquiles não fosse casado com Briseis,
ele a concebia como tal, talvez devido ao sentimento de pertença que também lhe
conduzia ao afeto, à honradez e à força inerente ao habitus do herói épico e mesmo do
dito “homem reto”, conforme os costumes gregos antigos.
A segunda ira de Aquiles, repleta de amor.
O philía mais digno de imitação, conforme escreve Plutarco (1999), Dover
(1994) e Ullmann (2005), entre dois iguais – homens – está presente na produção artística
grega nas suas mais diversas manifestações. A literatura clássica, por exemplo, nos dá
exemplos de que tais relações não se restringiam somente a satisfação da libido, mas
compunham momentos de amor e afeto. A literatura clássica está recheada de exemplos:
Aquiles e Pátroclo, em Homero (2005); Satíricon, em Petrônio (1981); o mito de Apolo
e Hyacinthus, em Bulfinch (2002); na Odisseia, também de Homero (2005b), em Plutarco
(1999), etc. O que não se pode negar, entretanto, é que as relações de afeto que
perpassavam tais práticas homossexuais não se davam nos moldes contemporâneos,
muito menos de forma homogênia.
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Em diversas adaptações da Ilíada para o cinema, ou mesmo para jovens leitores
- como a versão de Manoel Odorico Mendes, Homero (2006) – a relação entre Aquiles e
Pátroclo restringe-se a um sentimento de amizade aos moldes contemporâneos ocidentais.
Entretanto, a amizade destes dois personagens ultrapassa as relações de parceria em
batalha. Na Ilíada (2005), as personagens dividem a mesma tenda, trocam carinhos e
afetos, uma amizade aos moldes espartanos. Na Atenas do século V a.C, por exemplo, a
relação entre eles era comumente interpretada como pederástica. Apesar de que alguns
autores defendem que Aquiles e Pátroclo eram apenas companheiros de armas, como
afirma Sócrates no Diálogo Fedro, citando passagens da Ilíada que dizem que Aquiles e
Pátroclo dormiam em leitos separados, cada um com suas respectivas concubinas.
Ao se dirigir ao seu amigo, diante de seu corpo, Aquiles se utiliza de vocábulos
gregos com uma carga semântica que indica uma relação intima, como parceiro,
companheiro ou ainda companheiro querido/amado, o meu cabeça igual, aquele que me
completa. Vejamos a narrativa de Homero: “se perdi o meu companheiro querido,/
Pátroclo, o melhor de todos os meus parceiros, / o meu cabeça igual” (HOMERO, 2005,
p. 80-82).
A relação de Aquiles e Pátroclo divide muita opinião. Entretanto, os estudos da
literatura clássica têm-se aproximado de uma interpretação amorosa. É fato que após a
morte de Pátroclo, Aquiles chora longa e demoradamente sobre o corpo de Pátroclo, e
implora ao destino pedindo-lhe que una os dois novamente (HOMERO, 2005, p. 94-99).
É importante lembrar também, que na Odisseia (2005), Ulisses vai até o mundo inferior
e encontra-se com Aquiles ao lado de Pátroclo, demonstrando a intensidade dessa relação
que perdurou mesmo depois da morte, cumprindo-se o pedido feito ao destino.
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A narrativa de Homero nos conta que Pátroclo toma as armaduras de Aquiles,
passando-se por ele, e segue ao campo de batalha, de modo que pudesse incentivar os
guerreiros de Aquiles a voltar a batalha, nesse percurso, Pátroclo é morto por Heitor,
maior guerreiro de Tróia, que acredita estar matando Aquiles.
Conforme escreve Carlier (2008, p. 86), a ira desencadeada pela morte de
Pátroclo deve ser considerada a “verdadeira ira” de Aquiles, pois é partir deste
acontecimento que o desenvolvimento da narrativa se efetiva.
Após a morte de Pátroclo, desencadeiam-se uma série de acontecimentos em que
se materializam a ira e os indícios de fortes laços afetivos com Aquiles. Aubreton (1968,
p. 163) escreve que Pátroclo acrescenta ao enredo do poema épico-narrativo uma “dupla
perfeição”, pois sua morte possibilita o desenrolar da trama, além de possibilitar a
compreensão de mais uma parte da alma de Aquiles, personagem principal da narrativa
homérica.
Conforme escreve Viegas (2013, p. 35) o termo mais adequado para definir a
relação Pátroclo/Aquiles é “amizade”, entretanto não nos moldes como nós a entendemos.
Tal sentimento, tão presente na cultura grega, “vai desde uma amizade entre iguais,
mormente homens, que os une em um ideal comum do bem, pela pólis, até a tênue linha
entre essa amizade tão profunda e o amor propriamente dito entre iguais na sociedade
em tela” (VIEGAS, 2013, P. 35).
É interessante lembrar que nas diversas adaptações da Ilíada para o cinema, o
personagem Pátroclo é representado como um jovem, como um garoto subserviente a
Aquiles, induzindo os leitores a entender a relação entre os mesmos como forma de
Pederastia, modelo de educação bastante comum na Grécia Antiga. Entretanto, a
mitologia grega nos escreve sobre o contrário. Segundo escreve Viegas (2013, p. 40 e
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41), “em Troia (2004), é necessário trocar os papéis identitários e configurantes de
Aquiles e Pátroclo – a idade dos dois é inversa e o segundo ganha um rosto andrógino, a
fim de se supor a relação homem-homem, na qual um dos dois não se parece somente
homem. Puro preconceito ou jogada de marketing.”
A interpretação pederástica da relação Pátroclo/Aquiles assumida por muitos,
não encontra respaldo na narrativa e tampouco na mitologia grega, tendo em vista que o
instrutor de ambos foi Quiron, o rei dos centauros, o que inviabilizaria a “paiderastia”
(BULFINCH, 2002).
Vale ressaltar que as relações de amizade e amor de Pátroclo e Aquiles não
suplantam a relação homem/mulher, Aquiles/Briseis, conforme escreve Viegas (2013, p.
36), na Grécia, “homens amam mulheres e amam homens em um mesmo espaço com
intensidades e atitudes peculiares a cada amor.” Nesse sentido, em Homero, é interessante
ressaltar as práticas homossexuais na Grécia Antiga se configura de forma distinta, apesar
da homoafetividade ser um vocábulo contemporâneo pós-estudos psicanalistas e
efetivação das pesquisas sobre gênero, é notório que tais relações perpassavam práticas
de amor e afeto que, por sua vez, são bem evidentes na Ilíada.
Considerações finais
A pesquisa realizada nos proporcionou o entendimento sobre a dimensão
paradoxal e, por que não dizer ambígua, do habitus em torno de práticas homossexuais,
amor e afeto na Antiguidade Clássica tendo como corpus analítico a Ilíada. A nossa
pergunta inicial, sobre o “verdadeiro” amor de Aquiles, como questionam-se aqueles
leitores mais solícitos de romantismo, nos remete a uma resposta também ambígua. Como
afirma Viegas (2013), na Grécia coabitavam duas formas de satisfação da libido e das
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emoções, homens amavam mulheres e amavam homens no mesmo espaço com formas
peculiares de satisfação afetiva e sexual.
A forma como a Ilíada é construída demonstra essa ambiguidade, a princípio,
pelo próprio vocábulo usado por Homero (philía) usado tanto para se referir as relações
afetivas Aquiles/Briseis como Aquiles/Pátroclo. Em seguida, vemos que a chamada Ira
de Aquiles manifesta-se tanto em defesa de sua amada (Briseis) como em forma de
vingança pela perda de seu amado e companheiro Pátroclo, seu “cabeça igual” que
designa a intimidade fora e dentro do campo de batalha.
Diante das considerações realizadas nessa pesquisa, não queremos ser
generalizantes na resolução da nossa problemática: “a quem pertencia o coração de
Aquiles?”. Entendemos que as práticas homossexuais e formas afetivas entre dois homens
na Grécia, não se coaduna como as configurações atuais, pois tais práticas se davam no
âmbito de uma amizade “profunda”, em um companheirismo e trocas afetivas em que
coabitam a libido e o afeto. Por corolário, o mesmo homem que amava “iguais”, também
amava as mulheres, de forma distinta, como posse, arcano do lar, a quem este também
lhe oferecia carinho, caricias e amor, afinal, não seria ingenuidade pensar que na Grécia
os homens amavam somente homens e que as mulheres eram somente reprodutoras?
(ULLMANN, 2005).
Referências:
AUBRETON, Robert. Introdução a Homero. São Paulo: DIFEL, USP, 1968.
BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma Teoria da Prática. In: ORTIZ, Renato (Org.). A
sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Editora Ática, 1994.
BULFINCH, Thomas, O Livro de Ouro da Mitologia: Histórias de Deuses e Heróis, 26.
Ed., Rio de Janeiro, 2002, Ediouro.
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CARLIER, Pierre. Homero. Tradução de Fernanda Oliveira. Lisboa: Europa-América,
2008.
CORINO, LUIZ CARLOS PINTO. Homoerotismo na Grécia Antiga –
Homossexualidade e Bisexualidade, Mitos E Verdades. Revista Biblos. Disponível em:
< www.brapci.inf.br/_repositorio/2010/06/pdf_7b61bc03a1_0010976.pdf>. Acesso em
10 de Fevereiro de 2015.
DOVER, Kenneth James. A Homossexualidade na Grécia Antiga. São Paulo: Nova
Alexandria, 1994.
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: Formação do estado e Civilização. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
______. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.
Homero. Ilíada. Tradução de Paulo Matos Peixoto. São Paulo: Editora Germape, 2006.
______. Ilíada. Tradução de Manoel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2005.
______. Odisseia. Tradução de Manoel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret,
2005b.
PETRÔNIO. Satiricon. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Abril Cultural, 1981.
TRÓIA. Direção de Wolfgang Petersen. Warner Bros Pictures. Drama. Estados Unidos,
2004, 163 min.
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Amor e sexo na Grécia Antiga. Porto Alegre:
Edipucrs, 2005.
VIEGAS, Alessandra Serra. O amor de Aquiles: de quem é o coração do herói mais belo
da ilíada de Homero? Pátroclo ou Briseis? Revista Eletrônica de Antiguidade. Rio de
Janeiro.
Jul.
n.
02,
2013.
Disponível
em:
<http://www.nea.uerj.br/nearco/arquivos/numero12/27-43.pdf>. Acesso em 01 de
outubro de 2013.
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O CUIDADO DE SI: PRÁTICAS NOS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÕES
Care of the self: Pratices of liberties in the subjectivation processes
Miguel Gomes Filho1
Resumo: O presente trabalho constitui uma síntese da tese de doutoramento em Educação cujo objeto foi
a investigação sobre os discursos científicos a respeito da (homo)sexualidade e suas relações com aqueles
proferidos por homossexuais professores da cidade de Campo Grande/MS, com o objetivo de verificar os
modos pelos quais estes se constituem sujeitos de desejo, explicitando as íntimas relações entre os discursos
produzidos sobre a (homo)sexualidade e os modos de subjetivação. Com destaque para as complexas
relações entre os saberes e poderes constitutivos da tradição ocidental, realizamos uma reflexão crítica na
tentativa de compreender como o “preconceito naturalista” invadiu o campo das ciências culturais, impondo
determinados juízos de valor, fundamentando a noção de direitos do homem e a configuração dos Estados
modernos. O estudo levou-nos à confirmação da tese de que, nas práticas de si, existem espaços de
liberdade, de escolhas de um tempo irredutível do sujeito nas suas relações consigo mesmo, em que residem
as condições de possibilidades para (re)criações de si, sob o imperativo do cuidado de si, como forma de
resistência aos poderes normalizadores.
Palavras-chave: Cuidado de si. Dispositivo de sexualidade. Educação. Homossexualidade.
Subjetividade.
Abstract: This paper constitutes a summary of my doctoral thesis in education whose object was the
investigation into scientific speeches about the (homo) sexuality, which had as its object the investigation
of the scientific discourses on (homo)sexuality and their relations with those discourses that are uttered by
homosexual teachers at Campo Grande/MS in order to verify the ways by which they are constituted as
subject of desire, explaining the close relations between discourses produced about (homo)sexuality and
modes of subjectivity. With emphasis on the complex relations between constituting knowledge and power
of Western tradition, we made a critical reflection trying to understand how the “naturalistic prejudice”
invaded the field of cultural sciences, by imposing certain value judgments and founding the notion of
human rights and therefore the configuration of Modern States. This study led us to confirm the thesis that,
on the practices of the self, there are spaces of freedom, choices of an irreducible time that underlies the
subject in its relations with himself, in which rest the condition of possibility to re(creation) of the self,
under the imperative of the care of the self, as a form of resistance to normalizing powers.
Keywords: Care of the self. Dispositif of sexuality. Education. Homosexuality. Subjectivity.
Introdução
A tese que deu origem a este artigo teve como objeto a investigação dos discursos
de verdade a respeito da (homo)sexualidade e sua relação com aqueles produzidos pelos
homossexuais professores do município de Campo Grande, Estado de Mato Grosso do
Sul, sujeitos da pesquisa. Tinha-se por objetivo verificar os modos pelos quais estes se
1
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professor da Faculdade
de Educação da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). E-mail: [email protected].
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constituem sujeitos de desejo, explicitando as relações entre os discursos sobre a
(homo)sexualidade e os modos de subjetivação, isto é, da relação entre verdade e
subjetividade, à luz da perspectiva foucaultiana.
A analítica do poder tem a pretensão de mostrar os efeitos de saber produzidos em
nossa sociedade pelas lutas, pelos choques e pelos combates que nela se desenrolam, e
também as táticas de poder como elementos dessa luta. Como prática social, as relações
de poder são móveis, reversíveis, heterogêneas, constituídas historicamente e, portanto,
em constante transformação.
Esse espaço de liberdade, existente nas tecnologias de si, remete às escolhas de
um tempo irredutível do sujeito nas suas relações consigo mesmo, na qual residem as
condições de possibilidades para (re)criações de si a partir da resistência às práticas
normalizadoras – disciplinar e biopolítica – vigentes nas diversas instituições modernas.
Educação e sexualidade: processos de normalização?
Os diálogos em torno das convenções de gênero e sexualidade na educação
evidenciaram como o sistema de dominação masculina e a homofobia se entrecruzam,
produzindo as relações de poder e as desigualdades de tipo binário, entre homens e
mulheres, heterossexuais e homossexuais etc. Essas questões permeiam o espaço escolar
cotidianamente, locus onde convergem os legados dos discursos e práticas sexistas
enraizadas na história, cultura e vida social. Não se limitando apenas a transmitir uma
experiência prática e “objetiva” do universo externo, a educação também forma a
percepção de si, dos outros, sedimenta a moral e a cultura de uma sociedade, fazendo dela
um dispositivo pedagógico de suma importância em nossas sociedades. (ALTMANN,
2001).
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Com base na analítica foucaultiana, Altmann (2001) considera que em qualquer
espaço no qual seja possível aprender ou transformar as relações estabelecidas pelo
sujeito em seu íntimo, aí se opera um dispositivo pedagógico. Este constitui artefato capaz
de atuar na construção das subjetividades, inclusive as de gênero e sexualidade. O
conceito de gênero foi introduzido na ciência pelas teóricas feministas dos anos de 1970,
insatisfeitas com as molduras teóricas existentes na época para explicar a condição das
mulheres no mundo. Apesar das diferenças de recortes e interpretações, grosso modo,
para elas o gênero era um elemento instituído na cultura, ao contrário do sexo, um dado
próprio da natureza do organismo humano (ALVES; CORRÊA, 2009).
Nessa perspectiva, a diferença sexual é entendida como fruto do biológico,
fornecendo o suporte essencial para a construção das identidades de gênero, ou seja, é
com base nas diferenças entre os corpos que os códigos, representações e artefatos de
gênero atuariam modelando homens e mulheres - as distinções anatômicas dos corpos de
machos e fêmeas estabeleceriam, assim, as fronteiras que separam o masculino do
feminino.
O processo de construção do gênero acontece desde o início da vida da criança,
contudo, sofre variações de acordo a cultura e com as normas que pautam o
comportamento de homens e mulheres, como, por exemplo, os atributos e expectativas
que são designados a meninos e meninas: “[...] impondo cores, como rosa para o
feminino, azul para o masculino, estabelecendo brinquedos e brincadeiras, exigindo-se
seus devidos rituais.” (OSÓRIO, 2013, p. 83).
Ao observar o caráter relacional do conceito de gênero, Louro (1997) chama a
atenção para a necessidade de se compreenderem os mecanismos de socialização e das
diversas formas de relações estabelecidas entre homens e mulheres, em temporalidades e
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espacialidades específicas, não como um dado, uma essência, constituída a priori pela
natureza. O entendimento do gênero como artefato da cultura e do sexo vinculado à
biologia ficou conhecido por sistema sexo/gênero. No entanto, essa maneira de pensar
tem sido criticamente revista e questionada, sobretudo pelas pensadoras feministas pósestruturalistas como Butler (2003):
[...] o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também
é o meio discursivo/cultural pelo que ‘a natureza sexuada’ ou ainda ‘um sexo
natural’ é produzido e estabelecido como ‘pré-discursivo’, anterior à cultura,
uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura [...] colocar a
dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais
a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são eficazmente asseguradas
(p. 25).
Afastando-se das crenças binárias de masculino e feminino, Butler interroga as
formas pelas quais os sujeitos são constituídos, destacando as falhas dessa produção e as
linhas de fuga possíveis, sobretudo ao enfatizar, como fez Foucault, o caráter discursivo
de uma ciência que atribui uma natureza como efeito de uma prática discursiva. A
liberdade é a condição de possibilidade do exercício do governo das condutas, que traz,
em si, um campo aberto de possibilidades. Foucault, ao recusar a tese repressiva do poder,
afirma que relações de poder constituem
[...] um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de
possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita,
induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou
menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre
uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos (FOUCAULT, 1995,
p. 243).
Ciência e verdade: a genealogia da norma
Partindo da divisão binária razão-desrazão, explorada por Foucault em “História
da loucura na Idade Clássica” (1972), como o a priori histórico vigente no sistema de
poder-saber da época, a partir do final do século XVIII, uma grande reforma institucional
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possibilitou a emergência de um saber positivo sobre o homem, a partir do que foi
possível conferir-lhe uma natureza. Nesse novo espaço institucional, o homem se oferece
à observação, “se torna coisa olhada, coisa investida pela linguagem, realidade que se
conhece; torna-se objeto” (FOUCAULT, 2007a, p. 439). A um só tempo, espaço de
verdade e de coação, e enfim, o corpo se torna “refém das instituições” (OSÓRIO, 2013,
p. 93). Da emergência desses novos saberes decorreram transformações nas formas de
intervenção política sobre os corpos individuais e populacionais, no âmbito da medicina
social, das práticas punitivas2, médicas3 e psiquiátricas4, e a constituição do dispositivo
de sexualidade. Por dispositivo, esclarece Foucault (2004a, p. 244):
[...] tento demarcar [...] um conjunto [...] heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito […]. O dispositivo é a rede
que se pode estabelecer entre esses elementos.
É nesse contexto que emerge a homossexualidade como categoria médicopsiquiátrica, designando uma sexualidade desviante, uma anormalidade ou mesmo uma
doença, bem como as técnicas de normalização possível, materializadas nas diversas
instituições modernas.
No interior dessa reorganização dos saberes e dos poderes, a psiquiatria se tornou
uma tecnologia da anomalia que, desde bem cedo, viu-se atravessada pelo problema da
Em “Vigiar e Punir” (1975), Foucault analisa a complexa rede de saberes e poderes na constituição da
delinquência como categoria autônoma na transição para a economia moderna do poder de punir,
instaurando a penalidade da privação de liberdade pelo aprisionamento dos corpos.
3
Em “O Nascimento da clínica” (1963), Foucault se ocupa da virada para o século XIX, período posterior
à eclosão da Revolução Francesa, para avaliar em que medida as modificações estruturais no plano do saber
acerca da doença e da morte correlacionaram-se com a transformação do espaço em que os corpos doentes
e os cadáveres se dispunham ao olhar médico.
4
Em “Os anormais” (2001), Foucault analisa a transição do “monstro” da Idade Clássica – figura do
domínio “jurídico-biológico” no saber da história natural – como protótipo do anormal que emergirá no
século XIX, após a transição para uma nova economia de poder de punir.
2
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sexualidade, em razão dos fenômenos da herança e da degeneração, ou seja, das funções
de reprodução da espécie humana. Assim, do saber da medicina moderna, a descoberta
da doença no corpo individual, a masturbação aparecia como conduta e como etiologia
de uma série de perturbações somáticas. Tal conduta incorreta por parte do sujeito
implicava uma série de consequências somáticas ligando-o ao mecanismo religioso da
culpa pelo pecado:
A sexualidade vai permitir explicar tudo o que, de outro modo, não é
explicável. É também uma causalidade adicional, já que superpõe às
causas visíveis, identificáveis no corpo, uma espécie de etiologia
histórica, com responsabilidade do próprio doente por sua doença [...]
(FOUCAULT, 2002c, p. 306).
Diante da centralidade do corpo e das condutas anormais em torno da sexualidade,
desenvolveu-se todo um controle disciplinar sobre o corpo. Em 1844, com a publicação
de Psychopatia sexuallis, de Heinrich Kaan, assinala-se a data de nascimento da
sexualidade e das aberrações sexuais no campo da psiquiatria com a noção do instinto
sexual. Essa obra é extremamente importante porque marca, ao mesmo tempo, a
naturalização e a generalização da sexualidade humana. Assim como o instinto sexual
corresponde à dinâmica do funcionamento dos órgãos sexuais, em sua função reprodutiva
da espécie humana, ele se acha ligado, por natureza, à cópula, ou seja, a penetração é a
finalidade última do funcionamento normal do instinto sexual. Portanto, daí se deduz uma
normatividade heterossexual e adulta, na medida em que é somente nessa fase da vida
que a reprodução, como finalidade última do instinto sexual, ao mesmo tempo natural e
normal, se torna possível.
Até a fase adulta o indivíduo estaria, portanto, exposto a toda uma série de
anomalias; essas aberrações – a onania, a pederastia, o amor pelo mesmo sexo etc. –
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constituiriam o domínio de saber e de intervenção psiquiátricas. Diante desses fatos, é
possível compreender, então, toda a problemática em torno da sexualidade da criança e o
desenvolvimento de todo um sistema de vigilância e controle exaustivo que se instalou
para vigiá-la, para puni-la e para corrigi-la: “[...] é o momento em que as fases infantis da
história dos instintos e da imaginação adquirem um valor determinante na etiologia das
doenças, especificamente das doenças mentais.” (FOUCAULT, 2002c, p. 358).
O que passou a haver, portanto, a partir da segunda metade do século XIX, foi
todo um “apelo em profundidade” e o recurso a instâncias superiores de controle técnico,
médico, judiciário, de ramificações múltiplas: solicitações exercidas pela família, pelo
médico, pelo prefeito, enfim, pela localidade. Toda essa mutação só se tornou possível
em razão da reorganização formal do saber e do discurso psiquiátrico com a medicina.
Dessa reorganização, obras como a de Morel, Traité des dégénérescenses physiques,
intelletuelles et morales de l’espèce humaine eTraité des maladies mentales, editadas em
Paris na segunda metade do século XIX, puderam fundamentar a teoria da
degenerescência, baseada no princípio da “hereditariedade”, logo adotadas pela medicina
legal:
A partir daí [...] pode-se compreender primeiro o vínculo que rapidamente se
estabeleceu entre a teoria biológica do século XIX e o discurso do poder. No
fundo, o evolucionismo, entendido num sentido lato – ou seja, não tanto a
própria teoria de Darwin quanto o conjunto, o pacote de suas noções (como:
hierarquia das espécies sobre a árvore comum da evolução, luta pela vida entre
as espécies, seleção que elimina os menos adaptados) –, tornou-se, com toda a
naturalidade, em alguns anos do século XIX [...] uma maneira de pensar as
relações da colonização, a necessidade das guerras, a criminalidade, os
fenômenos da loucura e da doença mental, a história das sociedades com suas
diferentes classes, etc. (FOUCAULT, 2002c, p. 306-307).
Depois da nova disposição dos poderes, com os novos atributos do Estado
moderno na defesa e na gestão da vida (biopolítica), as intervenções se deram, sobretudo,
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nesse ponto de encontro entre indivíduo e população que é a sexualidade. Logo apareceria
toda uma série de novas intervenções possíveis:
Por um lado, há uma infância que está em perigo e que se deve proteger [...].
E depois, à frente, haverá indivíduos perigosos [...] que, no novo dispositivo,
que se está começando a estabelecer, a sexualidade vai assumir outro
comportamento diferente do que existia antes. [...] Condenavam-se formas de
conduta. Agora, não só da lei, mas também do juiz e do médico, são indivíduos
perigosos. [...]. A sexualidade vai se tornar essa ameaça em todas as relações
sociais, em todas as relações de idades, em todas as relações de indivíduos. [...]
das instituições judiciárias apoiadas nas instituições médicas [...] se terá um
regime completamente novo de controle da sexualidade (FOUCAULT, 2014b,
p. 98-99).
Assim, o discurso científico do século XIX acabou por corroborar uma percepção
social e moral sobre a sexualidade, conferindo-lhe uma natureza e um valor de verdade.
Nesse sentido, uma scientia sexuallis foi constituída como discurso científico sobre o que
se deveria fazer para não ter uma sexualidade patológica, e, tal como qualquer objeto, o
sexo poderia, no interior dela, ser mensurado, calculado, quantificado, classificado,
policiado e analisado:
Inicialmente, uma grande quantidade de estudos médicos naquele período
buscava elucidar a natureza da homossexualidade. [...] O Tratado de KrafftEbing constitui, nesse momento histórico, um texto unificador dos
conhecimentos até então elaborados de maneira esparsa e assistemática no
campo médico-psiquiátrico. Para definir a normalidade em relação à qual
determinados comportamentos sexuais serão considerados desviantes, KrafftEbing buscará recurso à noção biológica, portanto natural, de ‘preservação da
espécie’. O prazer obtido da relação sexual será natural na medida em que
contribua para a reprodução. Todo erotismo praticado fora desse contexto
deverá ser considerado como desviante (PEREIRA, 2009, p. 382).
Mas o que interessa aqui é a construção da homossexualidade como identidade,
essa invenção do século XIX, uma construção produzida por um discurso pretensamente
científico (seja ele médico, psiquiátrico ou psicológico) em sua dimensão ética, isto é, a
[...] internalização das categorias do discurso de uma ciência [...] que não
apenas descreve, mas que também, e principalmente, produz. [...] modos de
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produção de corpos, histórias e identidades a partir das categorias de um
discurso social fortemente normativo como a ciência (SAFATLE, 2014, p. 23).
A esse respeito, nos relatos de alguns dos sujeitos participantes deste estudo,
percebeu-se a força dos discursos científicos, fortemente normativos, que se impõem
como regra de conduta:
[...] percebia desde criança que era diferente, passei por todas as fases: achei
que não era normal, que passaria, que era bi sexual, até que me aceitei como
sou [...] (S1).
Desde muito novo já percebia que algo não estava direito (S2).
Apreender a lhe dar com uma orientação sexual diferente da grande maioria
dos que dizem ser ‘normais’, não é uma tarefa nada fácil [...] (S4).
Longe de ser repressivo, o poder é um “[...] modo de produzir formas de vida, de
dar forma a nossos desejos [...]. Falar é também internalizar uma gramática do desejo”
(SAFATLE, 2014, p. 5), como atestam os relatos abaixo:
Para mim a aceitação da minha família foi algo crucial, no início foi difícil,
mas hoje em dia me respeitam como sou. Hoje em dia minha família me aceita
como sou, percebo às vezes que não conseguem entender o porquê disso, mas
me respeitam (S1).
Acredito que em nenhum momento minha verdadeira sexualidade foi notada.
(S4) (grifo nosso).
Um dia me peguei sentido atração sexual por um homem (vizinho). Até então
não havia sentido nada, nem pelo sexo feminino e nem pelo masculino. A partir
deste dia tudo mudou em minha cabeça. Foi muito confuso para eu administrar
sentimentos tão novos dos quais eu queria me livrar, e que eram mais fortes
que eu. Eu não tinha domínio sobre estes desejos. (S5).
Aos 30 anos assumi para mim mesmo minha orientação, mas ao refletir acerca,
descobri que desde há muito tempo já me sentia diferente dos outros meninos
que me rodeavam; era extremamente angustiante na época ter que mentir para
mim mesmo, inventar desculpas para escamotear sentimentos, desejos, etc.
(S7).
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Sobre sua sexualidade, o sujeito S9 relata o seguinte: “[...] só vim aceitar minha
condição homossexual já quando adulto e independente”.
Assim, a sexualidade, ao lado do trabalho – fazendo referência aqui a Max Weber
sobre a ética protestante –, é, na sociedade moderna, um dos eixos fundamentais da
constituição da identidade e do reconhecimento de si como sujeito racional. Os saberes
que os sujeitos acessam traduzem-se em modos de vida, guiando seu comportamento e
moldando sua forma de ser.
Governo da verdade e condução da vida
A reflexão foucaultiana sobre a noção de governo parte da relação entre verdade
e subjetividade, estabelecida no Ocidente desde a antiguidade clássica, um poderoso
dispositivo produtor dos distintos modos de subjetivação que se estabeleceram na história
em seus inúmeros deslocamentos. Os discursos verdadeiros, em suas diversas formas e
contextos, constituem técnicas segundo as quais os indivíduos conduzem a si mesmos.
Na antiguidade clássica, o cuidado de si consubstancia o ideal grego de liberdade e beleza,
o espaço ético na forma de “uma escolha pessoal de existência”, e não uma sujeição a um
código legal ou prescrição religiosa.
Do século XVI até o final do século XVIII assistiu-se ao desenvolvimento de
inúmeros tratados sobre a arte de governar. A intensidade dessa problematização está no
ponto de cruzamento de dois movimentos. De um lado, o esfacelamento das estruturas
feudais e um movimento de concentração estatal; de outro, o movimento de dispersão e
dissidência religiosa com a Reforma e a Contra-Reforma: o governo de si, reatualizado
pelo neoestoicismo; o governo das almas, pela pastoral cristã; o governo das crianças,
pela pedagogia; o governo do Estado, pelo príncipe. Entre os níveis micro e macro
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Foucault (2004a) destaca haver uma continuidade – ascendente e descendente – essencial,
que ele designa pelo neologismo governamentalidade, que constitui,
[...] o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e
reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem
específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a
população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento
técnico essencial os dispositivos de segurança; a tendência [...] que em todo o
Ocidente não parou de conduzir [...] para a preeminência desse tipo de poder
que podemos chamar de ‘governo’ sobre todos os outros [...] e que trouxe, por
um lado, o desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de
governo [e, por outro lado] o desenvolvimento de toda uma série de saberes
(FOUCAULT, 2008c, p. 143-144).
A noção de governamentalidade permitiu a Foucault perceber o encadeamento
entre as técnicas de governo dos homens (política) e as técnicas de si (ética), ressaltando
que “[...] a reflexão sobre a noção de governamentalidade não pode deixar de passar,
teórica e praticamente, pelo elemento de um sujeito que se definiria pela relação de si
consigo” (FOUCAULT, 2006, p. 306).
Deslocando o locus privilegiado das instituições5 no que diz respeito ao exercício
do poder, Foucault afirma que o decisivo na crítica da atualidade não é o que se entende
por
uma
“estatização
da
sociedade”,
porém,
o
que
ele
denomina
de
‘governamentalização’ do Estado 6 . Dando continuidade ao projeto da genealogia do
sujeito moderno apresentado em “A Verdade e as Formas Jurídicas” (1973), sua trajetória
lhe permitiu perceber o cruzamento entre verdade e subjetividade, característica da nossa
cultura:
“Não se trata de negar a importância das instituições na organização das relações de poder. Mas de sugerir
que é necessário, antes, analisar as instituições a partir das relações de poder, e não o inverso; e que o ponto
de apoio fundamental destas, mesmo que elas se incorporem e se cristalizem numa instituição, deve ser
buscado aquém” (RABINOW; DREYFUS, 1995, p. 245).
6
“O que se pretendia era se insurgir contra a ideia de que o Estado seria o órgão central e único de poder,
ou de que a inegável rede de poderes das sociedades modernas seria uma extensão dos efeitos do Estado,
um simples prolongamento ou uma simples difusão de seu modo de ação, o que seria destruir a
especificidade dos poderes que a análise pretendia focalizar” (MACHADO, 2004a, p. XIII).
5
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Todas as práticas pelas quais o sujeito é definido e transformado são
acompanhadas pela formação de certos tipos de conhecimento e, no Ocidente,
por uma variedade de razões, o conhecimento tende a ser organizado em torno
de formas e de normas mais ou menos científicas. [...] A obrigação dos
indivíduos à verdade e uma organização científica do conhecimento são as
duas razões pelas quais a história do conhecimento constitui um ponto de vista
privilegiado para a genealogia do sujeito (FOUCAULT, 1993, p. 205).
Trata-se da indexação dos dispositivos de poder e da prática do governo a regimes
de verdade. A partir de meados do século XVII estabeleceu-se uma coerência
racionalizada das diferentes práticas de governo a permitir julgá-las “[...] em função de
proposições que serão, elas próprias, submetidas à demarcação do verdadeiro e do falso
[...] um novo regime de verdade [...]” (FOUCAULT, 2008b, p. 25-26), cujo critério de
julgamento seriam os efeitos sobre a população.
No entanto, nas sociedades modernas, a verdade está centrada na forma da ciência
e nas instituições que a produzem, que circulam nos aparelhos de educação e de
informação – daí a centralidade da educação em nossas sociedades – bem como o intenso
debate travado em torno da “verdade”. Por “verdade”, entenda-se o conjunto de
procedimentos regulados para sua produção, repartição, circulação e funcionamento de
enunciados.
De uma concepção de poder enquanto sujeição, a noção de governamentalidade
investiga relações de poder em que a liberdade é sua condição de possibilidade, liberdade
sem a qual o poder não se exerce; um tipo de poder, portanto, em que os sujeitos são
fabricados pelos saberes, mas não numa relação de repressão ou sujeição, mas numa
relação oblativa e ética.
Ao considerar o saber em sua materialidade, como prática e como acontecimento,
a analítica de Foucault desloca a centralidade do sujeito de conhecimento de sua posição
privilegiada (desde Descartes), para as condições objetivas – sociais, políticas, culturas,
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econômicas etc. – de possibilidade para que se formem tanto o sujeito quanto o saber,
para fazer aparecer o duplo modo de ser do homem na modernidade, como efeito do poder
e como objeto de saber: “A investigação do saber não deve remeter a um sujeito de
conhecimento que seria sua origem, mas as relações de poder que lhe constituem. Não há
saber neutro. Todo saber é político” (MACHADO, 2004a, p. 21).
Na modernidade, o consentimento dos governados é a única fonte originária e
legítima do poder político (AVELINO, 2010); logo, em nosso regime de verdade, há um
tipo de relação que liga a manifestação da verdade com seus procedimentos e os sujeitos
que são seus operadores, testemunhas e, eventualmente, objetos.
A história arqueológica que Foucault propõe opera um deslocamento do que “é
verdadeiro” para os efeitos de poder, já que a verdade é norma de si própria: “[...] se é
verdade, eu me inclino!” (FOUCAULT, 2010, p. 70). E é aqui que o dispositivo de
sexualidade encontra seu ponto de aplicação de maneira mais efetiva.
Na cultura ocidental cristã, o governo dos homens exige, da parte dos que são
governados, obediência, submissão, que o sujeito diga a verdade a respeito de si mesmo,
de seus erros, de seus desejos, e do estado mais secreto de sua alma. A confissão dos
pecados como “atos de verdade”, por meio da qual o sujeito expressa a verdade sobre si
próprio, é, no cristianismo, uma condição sine qua non de redenção dos pecados, sendo
o sujeito ator da manifestação da verdade, sua testemunha e seu objeto. O deslocamento
da confissão e de todos os mecanismos de extração da verdade sobre o sexo induziu a
uma série de efeitos teóricos e práticos que, nos séculos posteriores, foi laicizada e
medicalizada:
Temos, diante da anatomia política do corpo, uma fisiologia moral da carne.
[...] essa fisiologia moral da carne, ou do corpo encarnado, ou da carne
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incorporada, veio se somar aos problemas da disciplina do corpo útil no fim do
século XVIII; [...] se constituiu o que poderíamos chamar de uma medicina
pedagógica da masturbação e como essa medicina pedagógica da masturbação
levou esse problema do desejo de volta ao problema do instinto, esse problema
do instinto que é precisamente a peça central da organização da anomalia.
Portanto é essa masturbação; assim recortada na revelação penitencial no
século XVII, essa masturbação que se torna problema pedagógico e médico,
que vai trazer a sexualidade para o campo da anomalia. (FOUCAULT, 2002c,
p. 245).
A experiência cristã da carne, com suas incitações, técnicas e procedimentos,
e todos esses mecanismos que induziram um discurso de verdade sobre o sexo, é, pois, a
condição de possibilidade da formação desse saber, “[...] que o Ocidente não deixou de
organizar em torno do sexo por meio de técnicas religiosas, médicas ou sociais”
(FOUCAULT, 2014a, p. 5). Nesse sentido, a imagem do direito aparece ainda conectada
a uma cosmovisão religiosa, isto é, em uma relação isonômica entre pecado e lei.
A subjetividade greco-romana e o cuidado de si
Foucault havia localizado o gérmen do sujeito moderno no cristianismo, mas
seus estudos o levaram a recuar para ainda mais longe: “[...] era realmente no regime dos
aphrodísia e de modo algum na moral chamada cristã ou, pior ainda, judaico-cristã, que
se encontrava o arcabouço fundamental da moral sexual europeia moderna.”
(FOUCAULT, 2006, p. 4). A ascese cristã constitui uma das possibilidades das
tecnologias de si que encontramos nos modos de subjetivação na cultura ocidental.
Tecnologias que, ao contrário do que poderia supor a análise da sujeição disciplinar,
definem-se a partir de uma relação do sujeito sobre si, uma técnica de constituição de si,
e, portanto, positiva. E positivas porque constituem um êthos, uma maneira de ser e um
modo de vida: “[...] estas regras austeras foram por nós retomadas e efetivamente
aparecerão, ou reaparecerão, quer na moral cristã, quer na moral moderna não-cristã.
Porém, em um clima inteiramente diferente.” (FOUCAULT, 2006, p. 17). Se hoje, aos
nosso olhos, o cuidado de si é obscurecido pelo ‘conhece-te a ti mesmo’, na antiguidade
clássica grega até a cultura helenista-romana dos dois primeiros séculos da nossa era,
eram, ao contrário, conectados: “[...] este princípio de precisar ocupar-se consigo mesmo
tornou-se de modo geral, o princípio de toda conduta racional [...]” (FOUCAULT, 2006,
p. 12). No entanto, enquanto na antiguidade clássica o cuidado de si objetivava uma
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relação de domínio de si mesmo, ser senhor de si, no cristianismo acabou tomando a
forma de renúncia de si.
Foucault (2007b, p. 14) afirma que “[...] a interdição é uma coisa, a
problematização moral é outra [...]”; nesse sentido, todo o conjunto do regime dos
aphrodísia, com suas regras morais, com suas estratégias, seus exercícios, e todo o
exercício em pensamento que efetuam fazem parte do grande tema do cuidado de si, cuja
finalidade é a constituição do governo de si. Daí a unidade entre o conhecimento de si e
o cuidado de si, ou entre conhecimento da verdade e prática da verdade, tomando a forma
de uma estética da existência.
Quanto a uma suposta “homossexualidade” entre os gregos, Foucault ressalta
que eles não opunham o amor ao sexo posto e o amor ao mesmo sexo. Da mesma forma,
distintamente do que se pensa hoje, “[...] ter costumes frouxos consistia em não saber
resistir nem às mulheres nem aos rapazes, sem que este último caso fosse mais grave do
que o outro [...]” (FOUCAULT, 2007b, p. 167), antes, mostra como havia uma
diversidade de escolha e como estas representavam maneiras diferentes de obter prazer.
Mas apesar de o amor entre os rapazes ser uma prática perfeitamente admitida, ela não
era “indiferente”, ressalta Foucault, sobretudo porque, distintamente da relação com as
mulheres, o amor entre os rapazes se desenvolve em um espaço comum e entre homens
livres. No século XVII, o momento cartesiano atuou sobre a unidade ontológica
característica da tecnologia grega clássica, desfazendo-a, e dando primazia ao
conhecimento de si. E, como afirma Foucault (2006, p. 23-24), adentramos em uma nova
era das relações entre o sujeito e com a verdade, “[...] a idade moderna das relações entre
sujeito e verdade começa no dia em que postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz
de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o sujeito.”
Da disjunção da unidade harmoniosa da antiguidade clássica grega, a
modernidade constituiu um “saber de conhecimento”, em detrimento do “saber de
espiritualidade” antigo. Era nessas análises das filosofias antigas que o sujeito, para ter
acesso à verdade, precisava operar uma série de transformações em seu próprio ser, o que
muda radicalmente com Descartes, quando, enfim, pela primeira vez, o sujeito, tal como
é, é capaz de verdade: “Portanto, não é o sujeito que deve transformar-se. Basta que o
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sujeito seja o que ele é para ter, pelo conhecimento, um acesso à verdade [...]”
(FOUCAULT, 2006, p. 234). O conhecimento cartesiano é um conhecimento de objetos.
Das práticas do cuidado de si que, como vimos, objetivava a constituição de
si, temos como que uma inversão que se opera, depois de diversos deslocamentos no
interior das práticas cristãs (monasticismo), para uma tecnologia que se encaminha para
a renúncia de si e que vai marcar profundamente a cultura Ocidental: para os antigos, a
constituição do sujeito como objetivo último, por meio e pelo exercício da verdade; para
nós, modernos, um duplo assujeitamento: sujeição política na forma da lei, e sujeição
subjetiva aos discursos verdadeiros na forma da ciência.
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Composição: Revista de Ciências Sociais da UFMS
ISSN: 1983 - 3784
Edição Especial: II SiGeSex – Corpos vigiados e Laicidade do estado
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ISSN: 1983 - 3784
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O DISCURSO RELIGIOSO EM CONTRAPOSIÇÃO AOS DIREITOS HOMOAFETIVOS:
ALGUMAS REFLEXÕES A PARTIR DE UM ESTUDO FEITO COM ALUNOS DO ENSINO MÉDIO
DA CIDADE DE DOURADOS/MS
Luan Fernando Schwinn Santos¹, Mariana Martines Tozzi Moreira¹ e
Cristiano da Silveira Longo²
¹ Bolsistas Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência. Discentes do curso de Psicologia.
Faculdade de Ciências Humanas. Universidade Federal da Grande Dourados.
² Orientador do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência. Docente no curso de
Psicologia. Faculdade de Ciências Humanas. Universidade Federal da Grande Dourados.
Resumo: Pensou-se por muito tempo que a sexualidade estaria relacionada com a “natureza” humana, algo
natural e inquestionável. A contribuição aqui é resultado de experiências obtidas na docência de Educação
Sexual, pelo programa do PIBID - Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, junto ao curso
de Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados, um projeto que tem a proposta de, na
Psicologia, discutir os temas transversais. A condução deste programa se deu por encontros em duas salas
de 1º ano, mostrando a importância deste tema no ensino básico e como ele ainda é considerado um tabu.
O objetivo do trabalho é de buscarmos debater o poder do discurso religioso no processo de conquistas dos
direitos homoafetivos no cotidiano escolar, ou seja, entender como a religião e seu discurso se faz de
“empecilho” na garantia desses direitos. Utilizamos para a produção deste trabalho pesquisa em temas
relacionados a área de sexualidades e das religiosidades, como também experiências e dados obtidos em
sala de aula, o que nos possibilitou uma visão do tema e nos levou a posicionar criticamente sobre tais
dados. Inferimos que o trabalho tem importância para a discussão de direitos relativos à população LGBT
e também para os conteúdos que estão sendo ministrados em sala de aula. Faz parte da atuação docente,
partindo de nossas experiências, explicitar temas considerados tabus para que a discussão e conscientização
em torno do mesmo ocorram e, quem sabe, tenhamos um avanço no imaginário das pessoas acerca do tema
e de tantos outros.
Palavras-Chave: PIBID-Psicologia, Educação Sexual e Religiosidade.
Introdução
Pensou-se por muito tempo que a sexualidade estaria relacionada com a
“natureza” humana, algo natural e inquestionável. Foucault, em Historia da Sexualidade
(1988, 2007a, 2007b) nos apresenta à discussão, colocando esse envolvimento em
cheque. A sexualidade, aquela pensada como natural, pré-determinada pelos corpos onde
estaria aprisionada, em Foucault se vê como dispositivo, e numa rede entrelaçada por
vários outros dispositivos e discursos que se enrolam e se aprisionam, onde a
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“estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a
formação do conhecimento, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns
aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder” (FOUCAULT,
1999, p. 100.). Entendendo que a sexualidade é um assunto de extrema importância e que
pode ser usada de diversas formas e pensando que sua discussão ainda seja um tabu nos
dias atuais, nos aventuramos pelo – conservador - espaço escolar.
Portanto, a contribuição aqui é resultado de experiências obtidas na docência de
“Educação Sexual” 1 , pelo programa do PIBID - Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação à Docência, junto ao curso de Psicologia da Universidade Federal da Grande
Dourados, um projeto que tem a proposta de, na Psicologia, discutir os temas transversais.
Dentre os temas estão o de “meio ambiente, ética, trabalho e consumo, saúde, pluralidade
cultural e orientação sexual” (BRASIL, 1998). O projeto se dá com encontros semanais
os quais variam de 01 a 10 encontros, dependendo do tema e da demanda dos(as)
discentes, dividido em módulos com algum dos temas expostos anteriormente.
Como base metodológica desses encontros utilizou-se dos “grupos operativos”
propostos por Pichon-Rivière e Bleger, que funcionam para chegarmos a “tarefa”, que se
constituía basicamente no debate em sala de aula. Esses grupos facilitam a inserção nas
salas de aula e analisando três anos de inserção no projeto podemos afirmar que eles
ajudam o processo de “ensinagem” dos bolsistas e dos estudantes.
A discussão apresentada neste capitulo ira girar no torno de dois encontros feitos
no módulo de “educação sexual” em duas salas do 2º ano de uma escola estadual em
Atribuímos o nome Educação Sexual para que não houvesse certa confusão ao falarmos de “Orientação
Sexual”, mas nossa base em aula foi o PCN transversal de Orientação Sexual, proposto para o ensino de
temas ligados a sexualidade no ensino básico.
1
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Dourados – MS, contando com a presença de trinta e seis estudantes que tinham diversas
visões e preceitos éticos e morais. Nesses dois encontros estava previsto a discussão de
temas “espinhosos” como adoção e casamento homoafetivo. Apresentaremos como foram
conduzidas tais discussões.
1. Uma aula sobre direitos, a manutenção religiosa questionada.
1.1. Iniciando a temática
Como dito anteriormente, nosso relato parte de um módulo de “educação sexual”.
Os encontros aqui descritos fizeram parte deste módulo, que para entendê-lo melhor
descreveremos brevemente os assuntos tratados por todo o módulo.
Iniciamos os encontros discutindo o corpo e como ele é afetado por esses diversos
estímulos que temos no cotidiano, principalmente a imagem de mulheres magras e
homens “bombados”. No segundo encontro, discutimos as questões de gênero2, propondo
a estes(as) estudantes uma nova forma de olhar as relações entre homens e mulheres, de
pensarmos não mais em sexo como sinônimo de gênero e refletirmos este por um âmbito
mais sócio-histórico-cultural do que biológico; seguimos com a discussão de gênero por
mais dois encontros, devido à demanda da sala.
Após esses encontros resolvemos, amparados nos Parâmetros Curriculares
Nacionais (BRASIL, 1998), trazer assuntos que envolviam as Orientações Sexuais, e para
tal utilizamos de 2 encontros devido ao grande debate da sala em torno dos temas, fizemos
5 perguntas para propiciar o debate:
1. O que é Orientação Sexual?
2
Para nosso entendimento, gênero é como uma explicação histórica, social e cultural para o modo em que
os indivíduos sentem e se identificam com sua sexualidade (RAGO, 1988), portanto, como diz Beauvoir
(1967) “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, onde fazemos uma leitura de que as características
femininas são construídas socialmente e culturamente através da história.
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2. Você é a favor do casamento de pessoas do mesmo sexo? Porquê?
3. Você é a favor da adoção de crianças por casais do mesmo sexo?
4. Orientação sexual é adquirida ou é genética? Explique.
5. Você saberia diferenciar Identidade de Gênero e Orientação Sexual?
Distribuímos papéis sulfite aos(as) estudantes e pedimos para que eles dessem
suas respostas de forma escrita. Sugerimos para se identificarem como sendo do gênero
masculino ou feminino. Feito isso, colocamos em aberto que quem se sentisse a vontade
respondesse a primeira questão, fazendo isso sequencialmente com as outras questões.
A primeira questão sobre orientação sexual teve como respostas, dentre as verbais
e escritas, algo em torno de “pegar pessoas do mesmo sexo” ou sendo uma “escolha” que
fazemos ao longo da vida.
Sobre as perguntas 4 e 5, muitos ficaram em dúvida. No que diz respeito à
orientação sexual ser adquirida ou genética, as duas salas ficaram divididas na resposta
escrita com opiniões como: “ninguém nasce sabendo de nada”, “é uma escolha da
pessoa”, “é adquirida de acordo com a educação”, “acontece no decorrer do
desenvolvimento humano”. Na verbalização em sala, também foi dividido, os(as)
estudantes a favor da explicação genética a defendiam por acreditarem que ninguém
escolhe ser homossexual, heterossexual ou bissexual; os(as) que defendiam que é
“adquirida” argumentavam que é aprendido pela convivência e pela educação. A quinta
questão foi a que mais houve dúvidas: a maioria dos(as) estudantes na resposta escrita
colocou a identidade de gênero como “algo que você é” e orientação sexual “o que você
gosta”; na verbalização poucas pessoas falaram, colocando aí uma afirmativa de que
muito pouco se sabe sobre identidades de gênero e que eles não discutem essas
identidades na escola ou no ambiente em que vivem.
1.2. O casamento e a adoção homoafetiva
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Deixamos o relato um pouco atemporal, pois queríamos destacar as questões 2 e
3, uma vez que foram estas perguntas as que mais geraram discussão em torno da
religiosidade dos(as) estudantes; foram essas questões que, evidentemente, atacaram a
“moral” e os preceitos religiosos dos(as) alunos(as). Portanto, dividimos a apresentação
das impressões verbais (ouvidas e discutidas em sala) e as escritas (na qual lemos,
posteriormente).
Ficou bem claro no debate em sala que os contrários ao casamento homoafetivo
tinham esse posicionamento, pois, para eles(as) isso era “contra a bíblia”, “um pecado”,
“quem está de acordo com isso também está pecando”; no debate alguns(as) alunos(as)
se colocaram favoráveis, porém aqueles(as) que defendiam a não união homoafetiva
prevaleceram, eles(as) detinham argumentos comumente usados por pastores e padres, o
que levava a crer que a religiosidade se apresentava como inteiramente ligada a
manutenção desses pensamentos. Como bem lembra Santos e Couto (2008) as instituições
religiosas são reguladoras de sexualidades que são, de certa forma, alternativas à
heterossexualidade.
Para acrescentar no debate desses (as) estudantes, trouxemos um outro ponto de
vista: explicamos a eles(as) que todos(as) pagamos impostos e temos certos deveres e
direitos que devem ser garantidos pelo Estado, os homossexuais também contribuem para
isso, então por que o Estado, sendo laico, não aprovaria o casamento entre pessoas do
mesmo sexo? A resposta foi quase imediata: “Porque Deus não aprova” ou “é a minha
opinião”, outros(as) concordaram com a premissa apresentada de que direitos não devam
ser negados; todos(as) concordaram que a questão do casamento homoafetivo dentro de
igrejas não deva ser questionada, podendo a igreja ter a escolha de querer ou não realizar
a cerimonia religiosa.
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Diferentemente, na pergunta sobre adoção entre pessoas do mesmo sexo, o
argumento mais enunciado foi “isso vai influenciar as crianças”. Esses(as) jovens
acreditam, em suma, que as orientações sexuais dos pais e mães são influenciáveis para
os(as) filhos(as) e que a homossexualidade pode ser algo socialmente construído
dependendo da educação e influência do ambiente; aqueles(as) que se colocaram a favor,
argumentaram que “todos devem ter direito à família”, “há muitas crianças que estão
esperando para serem adotadas”.
Em relação às respostas escritas, pouco mudou da verbalização ocorrida em sala.
Dos(as) 36 estudantes, 13 utilizaram de argumentos religiosos, “porque Deus fez o
homem e a mulher” ou “aos olhos de Deus, isto é pecado”. Desses 36, havia 16 meninas
e 20 meninos, no entanto, mesmo com menos meninas, elas no geral se mostraram mais
receptivas e favoráveis aos direitos homossexuais.
Para quantificarmos essas questões, separamos os discursos favoráveis e
desfavoráveis, entre os meninos e meninas. Em relação às diferenças entre os sexos, no
geral, houve pequenas diferenças: nas duas questões os(as) estudantes foram contra o
casamento ou adoção entre pessoas do mesmo sexo, o que (re)afirma as opiniões tidas
pela maioria na sala no dia do encontro. Entre as meninas, 56,7% se mostraram a favor
do casamento homoafetivo e entre os meninos, apenas 25% argumentou favoravelmente;
para esta questão, em um quadro geral, os nãos favoráveis acabaram sendo 61,2%.
Observamos que quando se coloca a questão da adoção os números em favor dos direitos
homoafetivos caem: no caso das meninas, drasticamente, foi pra 37,5% o número de
favoráveis, enquanto nos meninos 20% eram a favor; no geral os nãos favoráveis (a
maioria) tornaram-se 72,2%. A Tabela a seguir sintetiza esses dados:
Tabela 1. Estudantes favoráveis e contrários ao casamento e adoção homoafetivos
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Favoráveis
Contrários
Favoráveis
Contrários
a pergunta 2 a pergunta 2 a pergunta 3 a pergunta 3 (%)
(%)
(%)
(%)
Masculino 05 (25%)
15 (75%)
04 (20%)
16 (80%)
Feminino
09 (56,7%)
07 (43,8%)
06 (37,5%)
10 (62,5%)
TOTAL
14 (38,8%)
22 (61,2%)
10 (27,8%)
26 (72,2%)
Um dado bastante interessante foi que dos (as) 13 estudantes que argumentaram
com explicações religiosas, 2 se mostram a favor da adoção, com o argumento de que
“qualquer criança deve ter uma família”. Mas desses 13, nenhum (a) é a favor do
casamento entre pessoas do mesmo sexo: dentre esses 05 são meninas e 08 são meninos.
2. Além de uma opinião
O que vimos em sala e também registramos por meio das perguntas vai além de
“opiniões”, argumento muito utilizado na defesa das opiniões com cunho religioso. Todos
os posicionamentos colocados pelos(as) estudantes estão, necessariamente, imbricados
em normas que regem nossas relações sociais e comportamentos, normas ditas por uma
maioria3 e reproduzidas a todo instante pelas minorias.
Como proposta, há a necessidade de nos questionarmos sobre as instituições que
produzem as normas reguladores dos corpos, da normatização das identidades de gênero
e principalmente em torno da orientação de nossos desejos. Santos e Couto (2008) nos
dizem que a religião tem um papel regulador para as “sexualidades alternativas” e que
grande parte do discurso repressor da sexualidade que circula em nossa sociedade se dá
3
Lewin (1998) coloca em questão o conceito de Maioria Psicológica, seria um grupo que dispõe das
estruturas e o poder que lhe permitam “auto-determinar-se” em relação ao destino coletivo, isso é
independente do quantitativo de pessoas em relação a outro grupo. As Minorias Psicológicas são aqueles
grupos que dependem da “boa vontade” da maioria, se submetendo, em nosso caso, a uma “inferioridade”
em relação a seus direitos.
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através desta instituição. Ainda seguindo tal raciocínio, inferimos que uma das
instituições que produzem discursos acerca da sexualidade é a Igreja e que algumas outras
instituições como família e escola apenas reproduzem tais discursos (Ver: LACERDA, et
al, 2002; JURKEWICZ, 2005; NATIVIDADE & OLIVEIRA 2009; SIMÕES NETO et
al, 2009).
O discurso religioso esta sendo colocado enquanto produtor de discursos e é um
dos “reguladores” da sexualidade, pois, segundo observação em sala, pudemos visualizar
que este discurso constrói argumentos que geram preconceitos, e fez com que muitos(as)
estudantes não quisessem discutir direitos civis, inerentes a todo cidadão, para defender
preceitos morais e éticos de sua religião.
Em nossos encontros, em suma, pudemos perceber três reações: 1) aquela em que
se coloca a homossexualidade como pecaminosa (o que pode ser verificado claramente
quando um aluno argumenta “está escrito na bíblia que é pecado”); 2) daqueles que
acreditam que a homossexualidade é aceitável mas inferior à heterossexualidade; 3)
daqueles que acreditam que a homossexualidade é tão digna de honra quanto a
heterossexualidade (JURKEWICZ, 2005).
Natividade e Oliveira (2009) contribuem com o debate sobre homofobia
religiosa4, para quem esta não se constrói sozinha, “mas envolve formas de atuação em
rede em oposição à visibilidade e ao reconhecimento das minorias sexuais” (p. 132),
tornando assim, em nosso ponto de vista os(as) estudantes sujeitos desta pesquisa como
4
Homofobia religiosa é um conjunto de práticas e discursos baseados em valores religiosos, onde se operam
táticas para desqualificar e controlar a diversidade sexual, ela atua como uma rede heterogênea, pois
extraem sua autoridade de princípios cosmológicos, argumentos teológicos e interpretações conservadoras
da bíblia. (NATIVIDADE e OLIVEIRA, p. 131 – 133, 2009)
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extensão dessas instituições religiosas, servindo o discurso das lideranças “como ‘guias’
ou exemplos normativos para a conduta do fiel” (p. 133).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste estudo procuramos discutir alguns pontos que permeiam a
interface entre religiosidade e sexualidade, tentando explicitar o quanto a primeira tem
repercussão direta ou indireta no discurso da segunda, assim como de outros discursos.
Entendemos que, nossa experiência não pode ser generalista, porém, visto a discussão
nos meios midiáticos acerca do tema, podemos inferir que o discurso religioso não se faz
presente somente nas salas em que estávamos inseridos.
Entendemos que por se tratar de uma investigação feita com apenas duas salas e
um número pequeno de estudantes nosso estudo fica um pouco mais delimitado, porém
com nossa experiência em sala e pelo cotidiano vivenciado na escola, percebe-se que
estes assuntos em torno da sexualidade humana ainda são tabu, bem como vários outros
temas, como por exemplo, as “drogas”.
Conforme podemos perceber, os(as) estudantes aprendem temas referentes à
sexualidade por um viés totalmente biológico, o que restringe, de certa forma, suas
compreensões de mundo e de corpo. Entendemos que o fator social é de grande relevância
na formação de conhecimentos sobre gênero e sexualidade, por isso defendemos o ensino
também da educação sexual em uma perspectiva mais crítica e menos hegemônica.
Dito isto, defendemos a crença desses estudantes, porém, devemos pontuar que
os argumentos usados em sala, não devem ser fundamentados exclusivamente e/ou
prioritariamente nas religiões, buscamos ao máximo manter o debate em torno do direito
às minorias e não adentrar ao debate a nível pessoal. E esperamos que em um futuro,
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possamos entrar em sala de aula e não discutir aspectos morais de uma determinada
religião, mas sim de direitos, para que assim a educação seja inclusiva, emancipatória e
crítica.
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326
O ESPAÇO ESCOLAR, UM ESPAÇO DE IDENTIDADES MARCADAS, IDENTIDADES
DEFORMADAS
Me. Carlos Igor de O.Jitsumori1
Ma. Márcia Maria de Azeredo Coutinho
Este artigo teve por objetivo observar como os alunos da rede estadual de Ensino
Médio, de uma escola do período noturno, lidam com a diversidade cultural que se
apresenta neste espaço conflitante de interesses relacionados à afirmação ou negação de
identidades homossexuais. A pesquisa teve cunho etnográfico. Compreendemos as
identidades – na perspectiva dos Estudos Culturais - que são “negociadas”, móveis,
porosas, não fixa, nem puras. A escola, não mais importante que outros espaços, tornouse, ou sempre foi, um espaço de encontros e des-encontros destas identidades deformadas.
Encontros, porque é frequentada por sujeitos que se avaliam a partir da igualdade, pois
são e foram produzidos para que se vejam iguais em tudo e assim, percebendo-se como
diferentes, enxergam e julgam o outro como um sujeito em déficit ou com falha na sua
identidade distorcida. A identidade é um “sendo” constantemente na fronteira. Esta
fronteira é o local escorregadio, de constante mobilidade, de re-transformações, é o não
local. A fronteira é permanente no ser que se encontra constantemente com o outro, pois
o “eu” não é somente “só” ele é “sendo” com o “outro” com quem se defronta a todo o
momento. O sujeito homossexual, o aluno homossexual é o ser da fronteira. Sua
identidade não é sólida e deformada por si só. Todas as identidades são deformadas. E
estas decorrem das circunstâncias que produzem e reproduzem significados múltiplos.
Não há uma única identidade gay, mas inúmeras em um só sujeito homossexual. A
1
Me. Carlos Igor de O.Jitsumori. Mestre pela Universidade Católica Dom Bosco UCDB (2011). Ma.
Márcia Maria de Azeredo Coutinho Mestre pela Universidade Católica Dom Bosco UCDB (2011).
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identidade é uma variável no campo da fronteira regida pelo não-tempo que caracteriza o
ser que “é”e o “sendo” que revoga e exige novos significados. Não se enquadra, porque
já não há como enquadrar o que possivelmente não enquadrava por falta de moldura para
tal. A identidade homossexual é na escola e em qualquer outro espaço marcada,
estigmatizada ou ainda deformada. Ainda persiste uma busca, culturalmente produzida,
de que o sujeito homossexual para ter um aceite social deve obedecer a certas cartilhas.
Não seria disfuncional se esta cartilha não fosse um significado produzido pela lógica
machista. Mas como a própria relação é disfuncional em si, e os discursos são
significados, re-significados não somente por uma identidade, até porque esta não existe
no seu ímpeto de pureza, mas é produzida por inúmeras identidades. E estas são
identidades tanto homossexuais, quanto heteronormativas. Por fim, concluímos que o
espaço escolar é móvel e poroso. As identidades homossexuais entram em agonia quando
percebem que não há um encaixe de ser e do ser gay, do mesmo modo o heterossexual
também não consegue mais manter-se estável em seus discursos. Os mesmos são líquidos
e desinformes. O desinforme é a linguagem do contexto, que fora deturpada pela lógica
heteronormativa como deformada, inferior, subalterna.
A Escola atualmente tornou-se um local privilegiado do estranhamento, isso se dá
porque os sujeitos estão se permitindo sair das clausuras que eles mesmos fizeram para si
ou que de certa forma sobre eles foram impostas como pertencentes a eles por “direito”
adquirido de todo um processo histórico de submissão e colonização do sujeito que tem o
“dever” de ser sempre o que o outro quer que ele seja.
O espaço da escola não está desvinculado dos espaços públicos que este
aluno/cidadão é cerceado e participante. Sendo que estes são espaços ocupados, apenas
em alguns momentos. (BAUMAN, 2001). Não são fixos e nem permanentes. Os espaços
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no contexto atual são fluidos, assim também são as identidades dos sujeitos,
diferentemente do tempo moderno, no qual o tempo era “[...] antes e acima de tudo, a
arma na conquista do espaço,” (BAUMAN, 2001, p. 16), visto como sólido, isto é fixo.
Na modernidade líquida o tempo é que se sobrepõe ao espaço, pois este não fixa nada e
se coloca como convém ao tempo que não mais prestigia a durabilidade e as formas,
formatadas das coisas. O espaço se tornou irrelevante e com isso, as identidades afirmamse sempre provisoriamente ao moverem-se sem o obstáculo do tempo. Não existe barreira,
pois o espaço/tempo/sujeito e identidades não são mais sólidos e sim fluidos.
Estes sólidos são todas as formas de ver o mundo sobre a ótica do previsível, do
que não pode mudar das construções discursivas da sociedade, toda forma convencional
de costumes, tradições etc. O sólido é o oposto da proposta de trocas entre os sujeitos
sociais. Por isso, atualmente presenciamos “o derretimento dos sólidos [que] levou à
progressiva libertação da economia de seus tradicionais embaraços políticos, éticos e
culturais.” (BAUMAN, 2001, p. 10) [inclusão nossa].
O sujeito sente-se, muitas vezes, impossibilitado e deslocado de suas identidades
tendo que atender, supostamente, ao que os outros querem que ele seja. No entanto, o ser é
o não-ser permanente a partir de suas inúmeras identidades por ele mesmo sugerido não
mais por outros atribuídas como sinal de vínculo “afetivo” de um estimado e eterno “eucoisa”e “outro-coisa”. Esta idéia é fruto de uma “ficção” que regulamenta o sujeito a pensar
que não tem a honra e a liberdade de ser/escolher o que presume ser o seu próprio “ser-eu”.
Ao permitirem-se desdobrarem, muitos confrontos/conflitos emergiram entre as
pessoas. Este efeito está sendo sentido de forma incontestável, gritante e até preocupante
pelas Escolas. Ela não consegue mais, ou ao menos não está conseguindo, prever aonde irá
parar, ou se de fato vai parar em algum lugar essas labaredas que queimam sem cessar. Não
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é possível cessarem de queimar, pois as labaredas são as relações constantes do humano e
o queimar é a intensa troca identitária que só ocorrem, porque existem diferenças e
queimam porque existe diferença/oxigênio (contextos plurais) para isso. Os Estudos
Culturais almejam o inesperado, o não previsível. (NELSON; TREICHLER;
GROSSBERG, 2003).
Para tentar compreender como ocorreram esses conflitos entre os sujeitos é que se
faz primordial situarmos nossos óculos nos Estudos Culturais. Estes estranhamentos são
oriundos dos encontros culturais que se intensificaram atualmente. As identidades são
“negociadas”, móveis, porosas, não fixa, nem puras.
A escola, não mais importante que outros espaços, tornou-se, ou sempre foi, um
espaço de encontros e des-encontros destas identidades deformadas. Encontros, porque é
frequentada por sujeitos que se avaliam a partir da igualdade, pois são e foram produzidos
para que se vejam iguais em tudo e assim, percebendo-se como diferentes, enxergam e
julgam o outro como um sujeito em déficit ou com falha na sua identidade supostamente
distorcida.
A identidade homossexual é um “sendo” constantemente na fronteira. Esta fronteira
é o local escorregadio, de constante mobilidade, de re-transformações, é o não local. A
fronteira é permanente no ser que se encontra constantemente com o outro, pois o “eu” não
é somente “só” ele é “sendo” com o “outro” com quem se defronta a todo o momento.
Um estar sendo como processo e não como um estado identitário
essencializado significa que as identidades não podem ser temporalmente
alcançadas, capturadas e domesticadas, enquanto produzem um
movimento de perturbação em cada unidade, em cada momento, em cada
fragmento do presente. (SKLIAR, 2003, p. 47).
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O sujeito homossexual, o aluno homossexual é o ser da fronteira. Sua identidade
não é sólida e deformada por si só. Todas as identidades são deformadas. E estas decorrem
das circunstâncias que produzem e reproduzem significados múltiplos. Não há uma única
identidade gay, mas inúmeras em um só sujeito homossexual.
A identidade é uma variável no campo da fronteira regida pelo não-tempo que
caracteriza o ser que “é”e o “sendo” que revoga e exige novos significados. Não se
enquadra, porque já não há como enquadrar o que possivelmente não enquadrava por falta
de moldura para tal. Até porque a moldura fora sempre rachada e desinforme. Mas tentouse dar formar ao que possivelmente não tem forma, ou se a tem, é uma forma que nos foge
ao olhar escriturado de um discurso pré-estabelecido.
Além disso, a identidade é o protótipo não daquilo que nós somos, mas daquilo
no qual nós nos tornamos, na pretensão de sempre buscar a imagem da totalidade: “[...] a
identidade nunca é um a priori, nem um produto acabado; ela é apenas e sempre o
processo problemático de acesso a uma imagem da totalidade.” (BHABHA, 1998, p. 85).
Estes alunos provavelmente serão os futuros estranhos, “sujos”, viscosos
componentes da grande máquina de consumo. Futuros estranhos necessários como mãode-obra e fantoches dos prazeres alheios. “Os estranhos são pessoas que você paga pelos
serviços que elas prestam e pelo direito de determinar com os serviços delas logo que já
não tragam prazer. [...] Inequivocamente, os estranhos são fornecedores de prezares.”
(BAUMAN, 1998 b, p. 41).
A identidade homossexual é na escola e em qualquer outro espaço marcada,
estigmatizada ou ainda deformada. Ainda persiste uma busca, culturalmente produzida, de
que o sujeito homossexual para ter um aceite social deve obedecer a certas cartilhas. Não
seria disfuncional se esta cartilha não fosse um significado produzido pela lógica machista.
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Lógica esta que também não se solidifica como universal. Esta é uma ideia caótica. Não se
universaliza uma identidade. O que se tenta é uma valorização de certos conceitos criados
para serem aceitos por alguns.
Mas como a própria relação é disfuncional em si, e os discursos são significados,
re-significados não somente por uma identidade, até porque esta não existe no seu ímpeto
de pureza, mas é produzida por inúmeras identidades. O que significa que identidades
gays podem e são transversalizadas por identidades machistas, e gays outras. E estas são
identidades tanto homossexuais, quanto heteronormativas são “desconfiguradas”. O que
não significa que tal situação inferiorize ou desmereça os supostos humanos.
Estas identidades são produzidas em territórios/espaços em que os sujeitos
facilmente “‘fluem’, [escorregam], ‘borrifam’, ‘pingam’; são ‘filtrados’, ‘destilados’;”
(BAUMAN, 2001, p. 8). [inclusão nossa] As identidades, devido a essas sujeições são
posições construídas em meio a relações de poder, em que a manifestação de uma
identidade em detrimento de outra se aflora em decorrência do contexto, por isso, elas
não têm uma essência, ou substância, (HALL, 2003), que a determina como isto ou aquilo.
Ela escorrega e assume posições em decorrência do discurso.
Talvez esta vertente nos remete ao pensamento de que a incessante busca de pureza
cultural não é válida e nem mesmo cabível. É frustrante pensar heteronormatividade
enquanto identidade sólida e pura. Não há identidade pura. Há identidades borradas, sujas,
deformadas. Por isso, não é o aluno gay puramente gay. E sim um aluno gay que partilha
de outras identidades não gays. o mesmo tem identidade gay com rasuras machistas. O que
não é de surpreender em determinadas circunstâncias, um aluno denominado gay ter
posturas consideradas das identidades não gays. do mesmo modo um aluno heterossexual
ter posturas consideradas gays.
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Não é de se estranhar, que um aluno recebe vais dos seus outros colegas por
simplesmente comentar: “cara eu acho muito bonito meninas de sai curta. Deixa as pernas
delas mais femininas.”De tantas outras interpretações que esta fala pode suscitar o que
mais nos chama a atenção é que parece ser um absurdo para a sociedade um indivíduo de
identidade gay dizer que acha meninas bonitas e são bonitas por usarem saias curtas. O que
afirma a ideia de que as identidades devem seguir uma bula comportamental.
Isto só caracteriza que não há um ser homossexual permanente e sólido. Mas
também não significa que ele não seja homossexual por achar mulheres bonitas, no caso
uma outra colega de escola bonita. Só demonstra que há um aluno gay sendo na fronteira
um participante de múltiplas identidades. A própria identidade gay foi produzida por
discursos machista e heteronormativa. O que representam nele a fronteira.
Para afirmar este conceito trazemos a fala de Dayrell (1996) quando argumenta
que os jovens trazem ao espaço escolar “um conjunto de experiências sociais vivenciadas
nos mais diferentes espaços sociais.” (p. 140). Assim são também os docentes banhados
e confrontados constantemente com a pluralidade discursiva.
Do corredor ecoa uma voz estridente e “efeminada” de um aluno, que se faz ouvir
dentro da sala de aula, “professora, eu trouxe o material que a senhora me pediu aquele
dia!” No decorrer de sua prosa com a professora, Sônia (nome fictício), que dentro da
sala estava passando um conteúdo na lousa e que parou para escutá-lo não se ouviu nem
um murmúrio por parte dos alunos, a não ser as interrompidas risadas e gestualidades
efeminadas (ou ditas pertencentes ao feminino) expressadas pelos alunos.
Assim que o mesmo aluno terminou e se retirou, todos na sala se manifestaram,
até mesmo a professora comentou “isso é falta de amadurecimento, é preconceito”. Em
seguida um aluno, “deixa a diferença (diferente) de lado cara” [Grifo nosso] e bateu no
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ombro do colega. E assim a professora continuou sua função mecanizada e mimética de
afirmar seu território como transmissor de um conteúdo indispensável para o crescimento
e “desenvolvimento intelectual” do aluno, o ENEM. Os professores estavam incubidos
de revisarem a prova do ENEM que havia sido anulada, no ano de 2009, afinal,
vivenciamos a cultura do ENEM.
Cabe destacar que a cultura é uma costura, também não permanente, mas relativa
e móvel. Ela é preenchida e sentida no calor humano pelas inúmeras diferenças. De certa
forma a diferença dá vida a toda discussão que se queira alvoroçar ou fazer ser pueril. Em
qualquer território em que estejam os sólidos estes não podem e não conseguem mais se
manterem intactos e afastados do alvoroço dos significados que surgem com o farelar de
“si” no vendaval de significados, ou derreterem-se no líquido de representações. “A
diferença, sabemos, é essencial ao significado, e o significado é crucial à cultura.”
(HALL, 2003, p.33).
Se a cultura é toda a extensão e vastidão de diferenças, cabe então discutirmos que
essas diferenças produzem representações. É neste intervalo tão breve e sutil de onde
decorrem todas as alteridades equivocadas, desumanas, taxativas, punitivas,
preconceituosas, dentre outras definições. Toda a representação que um sujeito ecoa e
confere sobre o outro é produzida e articulada por diferentes discursos. “A representação
é, pois, um processo de produção de significados sociais através dos diferentes discursos.”
(SILVA, 1995, p. 199).
Por isso que uma identidade gay não pode se esgotar por uma mera representação
culturalmente produzida. Porque mesmo a representação é frágil e solúvel. Não
representa o que de fato visa representar. Pois a mesma é recheada por significados que
nos escapam a análise cognoscível em muitos casos. E mesmo as representações são
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diversas em suas interpretações devido ao vasto território de culturas inúmeras. Não se
esgota a representação gay e, por isso, não há uma representação do ser gay.
Tanto a escola e professores, quanto os alunos, são todos sujeitos culturais, neles
de forma inerente estão os significados, portanto, para entendermos as posturas de
professor/aluno, adotadas e das identidades afirmadas naquele momento, temos que
“compreender esses jovens [ e professores] que chegam à escola [...] como sujeitos sócioculturais.”(DAYRELL, 1996, p. 140) [inclusão nossa] Chegam, portanto, todos
permeados por significados diversos, com representações e padrões diversos. E o conflito
ocorre quando o outro não se enquadra dentro do “meu” suposto padrão representativo.
Logo, o professor como também produz e reproduz significados, neste processo
de sujeito social/cultural e fruto do mesmo, também afirma representações pautadas por
uma construção coercitiva de sexualidades contestadas e discriminadas socialmente, pelo
viés da estereotipação. Ou seja, não foi abordado primeiramente se aquele aluno (de voz
efeminada) de fato é homossexual. A professora fechou a possibilidade de uma discussão
sobre o preconceito que assola o público homossexual, dentre outras possibilidades, e
cingiu o diálogo com a turma na mera expressão de que eles são imaturos e que estão
sendo preconceituosos. E o problema do estereótipo é quando este se torna uma verdade
social e cultural.
Quando nos referimos às representações estamos firmando a posição que a
identidade assumida por este professor em sala de aula, em nada alterou a visão
estereotipada do senso comum sobre a homossexualidade. Na fala do aluno que expõe
que se deve deixar de lado a diferença e não ter, portanto, preconceito faz da identidade
do docente em reciprocidade com a sua, ver o diferente (sujeito) como o estranho que está
aí e deve ser respeitado, meramente.
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O que faz certas pessoas estranhas e, por isso, irritantes, inervantes,
desconcertantes e, sob outros aspectos, ‘um problema’, [ou os alvos de
ironias e sarcasmos] é – vamos repetir – sua tendência a obscurecer e
eclipsar as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas.”
(BAUMAN, 1998 b, p. 37). [inclusão nossa].
Isso faz ressaltar a importância de valorizar e estimar a diferença pois na relação
entre diferentes, a identidade de um aluno pode ser consolidada, como também
inferiorizada e re-significada por um educador que não percebeu ainda o valor de
reconhecer o diferente no processo de aprendizagem. Como discorre Bauman (2001) “As
diferenças podem ser expelidas, engolidas, mantidas à parte, e há lugares que se
especializam em cada caso. Mas as diferenças também podem ser tornadas invisíveis, ou
melhor, impedidas de serem percebidas.” (p. 120).
Para afirmar a diferença é necessário que o presente não seja temporalidade para
este existir. Se a diferença existir unicamente como temporalidade, afirmamos a diferença
como aquela que não é possível ser valorizada no presente, sendo o presente o local mesmo
da fronteira e do além (BHABHA, 1998).
O passado é tabernáculo do outro subjugado ao mesmo. No “aqui” e no “agora” o
passado repousa sobre o presente que gravitaciona sobre o tempo. “Proibir a diferença
supõe unicamente afirmar a mesmidade. Instalar-se em um tempo em que só acontece o
mesmo.” (SKLIAR, 2003, p. 43).
Estas práticas discursivas que envolvem professores e alunos estão impregnadas
pelas representações construídas por uma sociedade que fortemente policia a sexualidade
e quando um sujeito homossexual assume esta identidade ele é o estranho que pareceu, e
ainda “pior” que isto, ele resolveu assumir sua identidade na escola.
Aqui, o que cabe deixar em relevo e destaque, é que esta identidade/professor não
abordou e nem introduziu uma discussão, ou fala pertinente sobre o que esta manifestação
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discriminadora representa. E primordialmente, sobre o distanciamento humano e de
alteridade que o preconceito irriga entre os indivíduos. O que queremos argumentar e
defender é que “o que deve ser questionado aqui não é a maior ou menor correspondência
com o ‘real’, mas as relações de poder que as instituem como ‘realidade’.” (SILVA, 2003,
p. 199).
No discurso dominante sobre a sexualidade, o que impera é a visão e postura
“tradicionalizada”. A sociedade educa os indivíduos para serem homens e para serem
mulheres. A sociedade, embora viva em constantes fronteiras, não consegue legitimar as
diferenças. A escola é uma das inúmeras instituições e setores da sociedade, que não dá
conta, assim como os professores, de dialogar com estes outros que chegam à escola e,
por conseguinte acabam ou negando seus discursos e significados. “As mulheres, as
minorias étnicas, os grupos de lésbicas e gays, a juventude denunciam constantemente
como sua realidade continua sendo negada e/ou desvirtuada.” (SANTOMÉ, 1995, p. 175).
O fato ocorrido na escola é uma situação fecunda para explicitar como o “outro”,
o diferente é sempre abordado como o errado, o anormal e que de certa forma deve ser
“incluído” pelos normais. Pelo fato da “diferença, [ser] um processo e um produto de
conflitos e movimentos sociais, de resistências às assimetrias de poder e de saber, de uma
outra interpretação sobre a alteridade e sobre o significado dos outros no discurso
dominante.” (SKLIAR, 1998, p. 6). [inclusão nossa]
O outro é o percussor indispensável na afirmação do “eu”. O outro é o corrompido
na visão da sociedade, o “depositário de todos os males, como o portador das falhas
sociais.” (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2001, p. 124). O outro não consegue encontrar
graça aos olhos do “eu”. O outro é até um risco, um mal que deve ser banido antes mesmo
de ser conhecida sua face.
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O outro é rejeitado pelo fato que sobre ele é jogado uma roupagem, máscara do
mal e caminha pelo mundo carregando o fardo do pseudo-discurso, que sobre e nele foi
colocado pelo olhar do colonizador. Mas sofre e grita, pois sua diferença (a
homossexualidade neste caso) é desconhecida e rejeitada. Sua face é rejeitada, sua
existência é repelida e com ela também desprezada sua diferença não “percebida”, não
experienciada pelo “eu”. É como se destruísse um casulo sem ao menos saber que
coloração teria aquela criatura. “Não há relação com o outro se seu rosto é ignorado. [...]
Já não há somente uma violência de onde o outro deve, por força, reduzir-se ao mesmo,
ser o mesmo.” (SKLIAR, 2002, p. 208).
O que precisa ser inflamado é que o outro é quem viabiliza a alteridade, a vivência
das múltiplas facetas identitárias. É o outro que “nos” “desconstrói”, desmascara em meio
a sua irradiante irrupção e faz o “eu” se ver despido das suas máscaras. É o outro que
concede o re-encontro e a re-construção da alteridade do “eu”. “O outro volta e nos
devolve nossa alteridade, nosso próprio ser outro;” (SKLIAR, 2002. p. 207).
E isso se dá porque o rosto deste outro não permite ser delimitado, mas assombra
permanentemente o sujeito iluminado, que vê sua face modificada em meio aos infalíveis
discursos nefastos e rotuladores reproduzidos pelo “eu”. Portanto, o rosto deve nos
colocar em constante policiamento. “A expressão que o rosto introduz no mundo não
desafia a fraqueza dos meus poderes, mas o meu poder de poder. O rosto, ainda coisa
entre as coisas, atravessa a forma que entretanto o delimita.”(LÉVINAS, 1980, p. 176).
O professor não deve continuar com um discurso sem uma posição crítica neste
bojo de interpretações equivocadas sobre as diferenças sexuais, por exemplo, mas tem
que se ater ao fato “que todo e qualquer fenômeno social está sempre conectado pelo
poder.” (VEIGA-NETO, 2001, p. 230). E, por este motivo, compreender que a ausência
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de um discurso e de um diálogo com os alunos sobre uma alteridade “inadequada” e
“impertinente” faz prevalecer o discurso dominante, heterossexual, assim como fazendo
prevalecer a negação do rosto deste sujeito. Assim como também proporciona o
emudecimento do discurso que a face pode proporcionar para o “eu” sair do cárcere do
discurso taxativo e dominante.
Para o professor adotar esta postura e de certa forma alterar as relações de poder,
que seja, instigar a reflexão dos seus alunos, ele tem que encarar a “alteridade, para poder
fazer parte da diversidade cultural bem entendida e aceitável, deve despir-se, dêsracializar-se,
dês-sexualizar-se,
despedir-se
de
suas
marcas
de
identidade;”
(DUSCHATZKY; SKLIAR; 2001 p. 124), oriundas de discursos hegemônicos sobre
sexualidade, construídas em meio há uma cultura machista.
Pensar a cultura no contexto atual é muito inovador e desafiador. A escola como
reprodutora do discurso social tem a postura linearizada de que seu papel, como não
obstante sua função social, é de meramente transmitir um arcabouço teórico acumulado
socialmente. “A escola é vista como uma instituição única, com os mesmos sentidos e
objetivos, tendo como função garantir a todos o acesso ao conjunto de conhecimentos
socialmente acumulados pela sociedade.”(DAYRELL, 1996, p. 139). Isso explica que em
reunião na sala dos professores, circule um discurso pejorativo sobre o conceito de
cultura.
O professor tem frente à sociedade uma função de extrema importância. Ele deve
motivar sua turma a enxergar a diferença em que está inserido e o espaço que lhe foi
negado e/ou retirado. O docente tem que estar aberto às críticas, descer, do seu pedestal
patrístico e fender com o lecionar hermético que o segrega e o distancia dos seus alunos.
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[...] colocar em ação projetos curriculares nos quais o alunado se veja
obrigado, entre outras coisas, a tomar decisões, solicitar a colaboração
de seus companheiros/as, a debater e criticar sem medo de ser
sancionado negativamente por opinar e defender posturas contrárias às
do/a docente de plantão. (SANTOMÉ, 1995, p. 159).
Quer dizer, ser um estudioso sequioso por conhecer outras culturas, sem
desvincular-se de sua construção identitária étnica e garantir a proteção e conservação da
identidade étnica dos seus alunos. Visto que, na visão de Silva, “A própria autoidentificação do professor enquanto pertencente a uma cultura distinta é importante para,
a partir daí, poder estabelecer os vínculos com o aluno;” (SILVA, 2003, p. 30).
E nesta relação entre professor e aluno, a representação é o ponto chave, porque é
um conjunto de fatores lingüísticos e culturais, que consequentemente descortina a ação
e relação de poder. “Como tal, a representação é um sistema lingüístico e cultural:
arbitrário, indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder.” (COSTA, 2000, p.
91).
Esta relação de poder é expressiva em sala de aula, com o papel e função a qual
desempenha o professor, sendo este neste processo de educador um “objeto” de
importante representação. A “representação se liga à identidade e a diferença.” (COSTA,
2000, p. 91).
Neste contexto, a representação é um meio propício e ideal nas relações de poder.
Porque pode um educador com facilidade desconsiderar, mesmo que imperceptivelmente
a identidade e recriminar a diferença por meio de uma representação imposta por parte de
um sistema constituído por relações de poder. “Quem tem o poder de representar tem o
poder de definir e determinar a identidade.” (COSTA, 2000, p. 90).
O educador ao invés de legitimar a cultura dominante, deve se opor a ela, pois esta
só tem por objetivo enquadrar a sociedade em uma só cultura e se possível univocizar a
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identidade nos moldes de uma elite. Portanto, os professores são “capazes de oferecer
oportunidades para que as crianças e os/as jovens desenvolvessem capacidades de crítica
e questionamento dos sistemas e das formas dominantes de representação da identidade
e da diferença.” (COSTA, 2000, p. 92)
O processo de relação entre professor e aluno é carregado pelo discurso,
“Professores e professoras estão bastante implicados/as na produção e reprodução dos
discursos e práticas que configurem as fronteiras e os sujeitos e que constituem suas
múltiplas identidades culturais.” (COSTA, 2000, p. 81). A identidade é produzida neste
processo de forma imprescindível.
Por esta razão, as salas de aula são “locais históricos e institucionais específicos,
no interior de formações e práticas discursivas específicas, [...]” (COSTA, 2000, p. 109).
Acostumada, ou acomodada ao seu enrijecimento em não comungar com outros
saberes e que “existe” meramente um único saber ideal, ou melhor, idealizado pela elite,
[...] pode-se dizer que a escola tende espontaneamente ao
monoculturalismo. Por meio da transmissão, que continua sendo
socialmente muito desigual, dos saberes de alcance ou pretensão
universal, reduz a autonomia das culturas populares e converte a cultura
dominante em cultura de referência, em cultura padrão. (GRIGNON,
1995, p. 182).
Na compreensão de que a sala de aula é um espaço em que a vasta gama de
culturas é abundante e expressiva em suas particularidades é que surge a importância de
afirmar a identidade, pois o educador deve “educar para uma cidadania plural, pensar a
educação levando em conta a pluralidade de culturas de nossas sociedades complexas,”
(FLEURI, 2003, p. 12).
Este se torna o ponto crucial e essencial que assume o professor em articular e
assegurar em meio à multiculturalidade, não a soberania da identidade do “eu” sobre o
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outro, mas de que a identidade do “eu” pode e deve subsistir e ser afirmada diante das
diferenças dos outros que partilha um momento comum e “público” dentro de sala de
aula.
A sala de aula é um território vivo, em que os vários “eus” podem ser valorizados
e estimados no processo de reafirmar a identidade étnica dos alunos. Reconhecer que em
meio à diversidade, a diferença se aproxima da multiculturalidade como processo de que
o distinto não é oposição ou intriga, mas complemento do processo concebe o ensino
como ponto convergente de crescimento e confirmação da identidade do aluno. Logo, o
aluno que tem sua identidade reconhecida como um marco importante consegue
vislumbrar perspectivas na sociedade que pertence.
Por fim, concluímos que o espaço escolar é móvel e poroso. As identidades
homossexuais entram em agonia quando percebem que não há um encaixe de ser e do ser
gay, do mesmo modo o heterossexual também não consegue mais manter-se estável em
seus discursos. Os mesmos são líquidos e desinformes. O desinforme é a linguagem do
contexto, que fora deturpada pela lógica heteronormativa como deformada, inferior,
subalterna no sentido de caótica, perversa, indesejável e fétida.
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ISSN: 1983 - 3784
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O GÊNERO EM SALA: ANÁLISE DE ATIVIDADES FEITAS NAS AULAS DE SOCIOLOGIA EM
GUARAPUAVA-PR E AS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO.
Elenice de Paula1
Jorge Luiz Zaluski2
Resumo: Falar sobre ensino e práticas educativas torna necessário trocar experiências para socializar
discussões e aprimorar estas atividades com novas perspectivas e abordagens. Diante disso, este texto busca
apresentar práticas educativas realizadas nas aulas de sociologia no ano letivo de 2014 nos Colégio Estadual
do Campo Dom Pedro I, e, Colégio Estadual do Campo de Palmeirinha, ambos localizados em distritos da
cidade de Guarapuava-PR. Atividades estas que foram problematizadas e desenvolvidos questionamentos
sobre o gênero, este não apenas em meio aos conteúdos, mas para que pudesse ser desenvolvido a
compreensão de que o gênero permite perceber e compreender as relações sociais. Busca-se ainda
apresentar a oficina “Caminhos da violência: Acabe com ele”, desenvolvida em colaboração dos alunos dos
respectivos colégios, e que tinha o objetivo em proporcionar o debate para a comunidade sobre a violência
de gênero, buscando proporcionar debates para diminuir ou acabar com a violência contra as mulheres.
Palavras chave: ensino, gênero, sociologia, gênero
Após muitos anos de debates em relação ao currículo escolar, a disciplina de
sociologia conseguiu consolidar-se enquanto ciência vista como necessária para estudos
em toda a formação escolar. Ainda existem muitos problemas a serem sanados, como
também debates que procuram diminuir a carga horária em vigor. Enquanto
professor(a/e)s, pesquisador(a/e)s da disciplina, percebemos o quanto ela é fundamental
não apenas para a compreensão e entendimento da sociedade, mas de que por meio do
ensino escolar, a sociologia contribui significativamente para a formação do aluno/a,
desenvolvimento crítico, imaginação sociológica, dentre outras capacidades importantes
para compreender os fenômenos sociais e a relação com o meio em que vive.
1
Professora da Secretaria e Estado da Educação SEED/PR, especialista e graduada em História pela
Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), graduanda do 3º período de Sociologia
Universidade Paulista (UNIP). E-mail: [email protected]
2
Mestrando do Programa de Mestrado em História e Regiões – Universidade Estadual do Centro-Oeste
(UNICENTRO) e bolsista CAPES. Graduado em História – UNICENTRO – 2008, Ciências Sociais –
Faculdades Guarapuava – 2015. E-mail: [email protected]
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Tendo uma variedade de assuntos pertinentes para a docencia, sendo um deles, a
troca de experiências educacionais, compreendemos que estas são fundamentas, pois,
além de proporcionar a socialização de atividades significativas ao ensino, permite que
com o diálogo e debate sobre o tema possamos melhorar a prática docente, e, através de
novos olhares, adequar novos temas, leituras e sugestões condizentes com as propostas.
Diante disso, este texto visa apresentar algumas experiências e resultados obtidos nas
aulas de sociologia no ano letivo de 2014 em Guarapuava-PR.
Ao leitor pode causar estranheza ao perceber que possui dois autores e se trata de
atividades na docência realizadas por apenas uma professora. Primeiramente acredito ser
necessário demostrar que as atividades a serem mencionadas foram realizadas pela
professora Elenice de Paula, e contou com o apoio do professor Jorge Luiz Zaluski, ao
debaterem, trocarem experiências, leituras, sugestões de atividades, filmes, músicas e a
oficina. Pontos estes que serão abordados na medida em que será desenvolvida a reflexão
sobre o tema.
Guarapuava fica localizada no Estado do Paraná a 257km da capital Curitiba,
possui os distritos de Entre Rios, Guairacá e Palmeirinha, com uma soma aproximada de
172 mil habitantes. (IBGE, 2010) Em relação ao ensino estadual, a cidade possui 31
instituições escolares gerenciadas pelo governo do Paraná, sendo 18 colégios com ensino
fundamental e médio, 04 colégios com ensino fundamental e médio para o campo, 03
colégios com ensino médio e profissional, 02 na modalidade educação especial, 02 para
jovens e adultos fundamental e médio, 02 escolas com o ensino fundamental. (SEED,
2015)
As atividades e práticas docente apresentadas nesta discussão, foram ministradas
nas aulas de sociologia durante o período noturno no ano letivo de 2014 em dois colégios
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situados no campo. Colégio Estadual do Campo Dom Pedro I, localizado no distrito de
Entre Rios a 18km de Guarapuava, que no ano letivo de 2014 contava aproximadamente
com 360 alunos/as matriculados/as no ensino médio, com 06 no turno da manhã e 06 a
noite. E, Colégio Estadual do Campo de Palmeirinha, localizado no distrito de
Palmeirinha, a 15km da cidade, possuía no ano de 2014 aproximadamente 260
matriculados/as no ensino médio, 03 turmas no período da manhã, 02 turma no período
da tarde e 03 a noite.
Ambas as escolas apresentam condições de precariedade na estrutura física,
materiais didáticos dentre outros. No entanto a maior das precariedades está na condição
econômica e social dos alunos/as, em que nos colégios mencionados são apresentados
problemas de desigualdades sociais como condições sanitárias e de saúde, étnicas,
violência, alcoolismo, drogas, desemprego, gravidez na adolescência, evasão escolar,
dentre outros que merecem uma atenção maior seja para a equipe pedagógica ou à
docência em sala.
Ao comparar os distritos destacados, Entre Rios se diferencia por ser uma colônia
de imigrantes alemães. Na década de 1950 alemães e descendentes vieram para
Guarapuava, e com o apoio do governo federal e estadual conseguiram desenvolver-se
economicamente, o que possibilitou o enriquecimento da grande maioria, assim como o
desenvolvimento de grandes empresas, características estas que contribuíram para a
desigualdade e outros problemas gerados nas relações “alemães” e “brasileiros”, dos
quais correspondiam descendentes de escravos e demais pessoas das proximidades não
pertencentes aos descendentes alemães. (SILVA, 2007) Além disso, no próprio cotidiano
escolar é possível perceber estas relações desiguais, como a exemplo uma expressão
utilizada por aluno em um dia que faltou energia elétrica na escola: “Lá na Disney tem
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luz!”, ou então ao referir o distrito como em duas partes, Alemanha e Brasil, ou então a
Europa e o Brasil, a primeira por seu desenvolvimento, luxo e riqueza, o segundo, pela
precariedade, pobreza, desemprego e ausência de assistência social. Questões estas que
também foram problematizadas em sala e debatidas junto a análises sociológicas.
Em meio a tantos problemas foi possível utilizar da realidade do aluno para a
investigação e imaginação sociológica, mas isso não significou que em uma primeira
discussão foram capazes de fazer uma análise ou observação crítica, pois estavam imersos
naquela realidade de maneira tão forte ou então presos ao senso comum, que foram
precisas várias discussões para despertar a capacidade reflexiva.
Entre tantos temas necessários para a imaginação sociológica, assim como um dos
problemas apresentados em ambas as escolas, tendo como objetivo buscar a diminuição
e/ou acabar principalmente com a discriminação e violência contra a mulher, foram
desenvolvidas nas aulas de sociologia de todo o ensino médio do período noturno e as
duas turmas do período da tarde no Colégio Estadual do Campo da Palmeirinha,
discussões e análises sobre o gênero, da qual foram na medida do possível abordados
junto aos temas estudados, procurando desta maneira não utilizar apenas uma ou mais
aulas sobre o tema, mas sim, utilizar do gênero para refletir junto aos assuntos, temas,
atividades das quais também fazem parte de relações de gênero.
Gênero com/e Sociologia: abordagens promovidas no ensino médio
As observações realizadas sobre o gênero foram pautadas na concepções de Joan
Scott, segundo a autora: “O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções
sociais” – a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e
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as mulheres.” (SCOTT, 1995, p. 75) Assim, compreendido de que o gênero é uma
construção resultante das relações sociais, buscou-se nas aulas de sociologia
desnaturalizar opiniões, normas, leis, relações, desigualdades, dentre tantas outras
práticas cotidianas que estão pautadas, pensadas ou construídas através do gênero.
Com o intuito de não limitar apenas conteúdos específicos sobre gênero, ao
decorrer do ano foram utilizadas diferentes abordagens junto ao gênero, destas foram
selecionadas algumas para promover o entendimento da temática da oficina realizada nos
colégios.
1º/s anos:
Geralmente com a turma de primeiro ano do ensino médio, principalmente por a
grande maioria não conhecer a sociologia, um dos primeiros assuntos a serem tratados na
disciplina além da formação, origem e objetivos, é a socialização. Na maioria das vezes
este tema é abordado na perspectiva de Émile Durkheim, e os fatos sociais, de que aos
poucos o indivíduo vai internalizando leis, normas, gestos, dentre outras características
da sociedade em que vive. (DURKHEIM, 2012)
Tal observação não foi excluída, pois fazem parte da reflexões e conceitos
necessários para o desenvolver da imaginação sociológica. No entanto, entre estas
análises foram debatidos também através do gênero como categoria de análise, buscando
compreender de como determinadas características pautadas em valores, normas, leis,
dentre tantas outras, fazem parte de construções generificadas, ou seja, são pensadas
através de gênero, como antes do nascimento nos nomes das meninas e meninos, cores
para quarto e roupa, utensílios como banheira, mamadeira fazem parte de uma construção
pautada no gênero. Ainda conforme Scott, 1995, p. 75, “É uma maneira de se referir as
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origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O
gênero é segundo, essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado”.
Ou seja, não é o sexo que define gênero, mas as diferenças de gênero foram construídas
socialmente tendo como base um corpo sexuado.
Diante desta observação e as relações sobre a construção social da mulher
enquanto mãe e responsável pela criança, também foram feitas algumas considerações
sobre a relação filhos/as e o amor materno, estes que também fazem parte de relações
sociais pautadas no gênero. (BATINTER, 1985)
Sobre a relação com os/as filhos/as, ao tratar sobre a constituição de famílias em
diferentes sociedades, buscou-se principalmente apresentar as mudanças ocorridas nos
arranjos familiares ao longo do tempo, assim como diferentes culturas e momentos
históricos definiram e/ou constituíram seus grupos familiares. Em relação ao gênero,
entre as discussões foram também problematizadas questões sobre o patriarcalismo e as
diferentes concepções do que era visto como necessário para os integrantes da sociedade,
ou seja, o que homens e mulheres deveriam cumprir socialmente, e como as relações
estavam pautadas no gênero e principalmente nas características de uma sociedade
patriarcal, que limitava a mulher em vários espaços sociais. Tal observação apresentou
também relações a organização de famílias homoafetivas, combate ao preconceito,
legislação e debate sobre os temas. (ANDRADE, 2005)
2º/s anos:
Tendo entre os temas de estudo para o segundo ano do ensino médio política,
movimentos sociais, direitos, cidadania, dentre outros. Buscou-se nas aulas ao
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desenvolver os debates sobre gênero, apresentar o movimento das mulheres ao longo do
tempo, assim como algumas conquistas adquiridas principalmente por conta do
movimento feminista.
Entre as atividades feitas em sala, junto a análises de alguns documentários,
buscou-se também refletir sobre desigualdades sociais e étnicas, pois ao tratar de
mulheres não devemos universalizar, mas sim compreender que existem particularidades,
tanto no movimento como também nas relações sociais. Para isso, foram feitas pesquisas
e levantamento de dados da cidade e região, em sua maioria disponíveis no site do IBGE,
próprio para levantamento de informações sobre este tema, do qual possui o tópico
Estatísticas de Gênero, do qual o acesso as informações puderam ser confrontadas com
leituras e observações da sociologia.
Em relação ao movimento feminista, buscou-se ainda informações sobre o
“Movimento de mulheres da Primavera”, organizado por moradoras do bairro da
Primavera na cidade de Guarapuava, assim como outras organizações que buscam por
melhorias nas relações entre os gêneros e principalmente acabar com a violência e
discriminação contra a mulher.
Sociologicamente, conforme aponta Maria Ligia de Oliveira Barbosa, et al, 2012,
p. 149, “os fenômenos criminais, como a violência que produz morte, estão relacionados
com danos causados ao tecido social, por isso a reação da sociedade é forte, respondendo
as normas punitivas.” No entanto, tais características no que se refere a violência contra
a mulher ainda necessita de maior debate e atendimento, como exemplo apenas neste ano
no código penal brasileiro foi incluso o feminicídio como circunstancia de crime. Em
Guarapuava por exemplo, algumas decisões já vinham sendo tomadas, como a criação da
Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, da qual buscam promover uma série de
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medidas para o empoderamento das mulheres, assim como acabar com a violência. Pontos
estes que em parceria com a secretaria da mulher, pudemos recolher alguns índices e
dados de violência contra a mulher em Guarapuava durante os anos de 2013 e 2014, e
trabalhadas em sala junto a encartes distribuídos sobre os direitos da mulher, Lei Maria
da Penha e Disque denúncia, dos quais apresentam e debatem sobre os tipos de violência
contra a mulher, as discussões dos crimes cometidos em Guarapuava contra a mulher
foram observados também junto aos materiais produzidos pelo governo federal e
disponibilizados no site Mapas da Violência.
3º/s anos:
Entre várias atividades realizadas em todas as turmas, destaco aqui que foi com as
turmas de terceiro ano que despertou o interesse em algo mais prático, algo que
envolvesse toda a turma e pudesse trazer contribuições para a sociedade. Em discussões
culturais sobre o corpo por exemplo, as turmas apresentaram maior interesse, dos quais
ao realizarem trabalhos ou demais atividades, sempre buscavam ir além do que havia sido
atribuído a eles/as. Diante disso, pensando em atender as propostas do Núcleo De
Educação da cidade, que lançou a proposta de cada professor elaborar uma exposição
correspondente a sua disciplina, para apresentar na Semana da Feira de Ciências de cada
colégio a ser realizada em novembro de 2014, procuramos desenvolver atividades em sala
com os terceiros anos para despertar o interesse em participar da feira.
Após uma série de atividades voltadas ao gênero junto aos conteúdos, foram
desenvolvidas atividades para refletir especificamente sobre o corpo da mulher. Ao
receberem a imagem de uma mulher que em senso comum parecia ser uma prostituta, foi
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pedido para que colassem em seu caderno o que aquela imagem representava, quem
poderia ser aquela mulher e o que ela poderia estar fazendo. Após realizarem o texto no
caderno foram realizados debates e ao poucos trabalhados em sala relacionando-os a
gênero, cultura, identidade, identificação, preconceito, violência contra a mulher, dentre
outros. Estes interessantes para trabalhar com o tema: “Meu corpo me pertence”, do qual
buscou-se analisar também questões sobre o aborto, e o movimento “Marcha das Vadias”,
com análises de documentários, leituras e debates. Segundo Guacira Lopes Louro,
"nossos corpos constituem-se na referência que ancora, por fim a identidade. E,
aparentemente, o corpo é inequívoco, evidente por si, em consequência, esperamos que o
corpo dite a identidade, sem ambiguidades nem inconstância." (LOURO, 2013, p. 14)
Devido ao espaço destinado para este texto é impossível apontar todas as
atividades, mas foi em meio a estas discussões que os alunos/as buscavam participar cada
vez mais das aulas, e quando tratados temas voltados a indústria cultural foram percebidas
algumas possibilidades de relacionar consumo, propaganda e mercadoria e gênero.
Em leitura de um texto de Lola Aronovich chamado “Cultura do estupro? Não
Imagine!” (2012). Do qual trata de como comerciais vem promovendo uma cultura do
estupro. Junto a esta leitura pudemos fazer algumas atividades práticas, como análise de
comerciais de cerveja, preservativo, dentre outros como produtos de limpeza, roupas,
carros, que buscam por uma mulher universal, na sua maioria branca e que atenda aos
quesitos de beleza impostos pela mídia.
Entre as várias mídias utilizadas para atividades, está o documentário Mujeres
Brasileñas: Del icono mediático a la realidade, (2014) dirigido por Alba Onrubia García,
Andrea Gago Menor e Laura Toledo Daudén, que tratam de discussões sobre as mulheres
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e o corpo, discriminação, direitos, consumo, padrões sociais, mídia, dentre outras
observações pertinentes às discussões interessadas ao tema.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MyDfr4N7dWk Acesso em 15 de maio de 2015.
Em meio aos debates acalorados e com retornos significativos em atividades e
atitudes em sala, procuramos elaborar uma oficina com a finalidade de aproximar escola
e comunidade com o objetivo de diminuir ou acabar com a violência contra a mulher.
“Caminhos da violência: acabe com ele!”
Pensando em dar retorno a sociedade, seja em apresentar e debater sobre o direito
das mulheres, diminuir a violência e despertar a análise crítica de determinadas situações
do cotidiano, até mesmo pelos altos índices de violência e feminicídio na cidade, é que
foram pensadas as medidas tomadas na oficina. Ao ter algumas ideias, foram apresentadas
para as turmas que retribuíram com outras ideias, assim a atividade teve maior
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repercussão e contou com a colaboração dos alunos de ambos os colégios trocando
informações, cartazes e atividades a serem praticadas.
Tanto o nome quanto a forma que foi organizada a exposição das atividades foram
para despertar um impacto nas pessoas, seja pela brutalidade dos casos cometidos, como
também tentar fazer com que percebam que supostamente pequenos gestos contribuem
para a violência e levam ao feminicídio.
Nos dois colégios foram utilizados uma sala de aula e feitas algumas repartições
para montar como se as pessoas passassem por um corredor. Na entrada da sala, cada
visitante era convidado a responder três questões, sendo elas: Já vivenciou alguma
situação de violência contra a mulher? Conhece a Lei Maria da Penha? Conhece o
conteúdo da Lei Maria da Penha? Com respostas apenas sim ou não, 215 pessoas das
cerca de 600 pessoas que viram a exposição se disponibilizaram a responder, da qual das
respostas mais de 50% vivenciaram casos de violência contra a mulher, número este que
teve índices mais altos no distrito de Palmeirinha, seja pela violência ou por a grande
maioria dos visitantes ser da localidade.
Após estas perguntas os visitantes passavam por cartazes que tratavam sobre a Lei
Maria da Penha, neles alguns alunos falavam sobre a importância da lei e como recorrer
a atendimento caso preciso. Os visitantes receberam também panfletos cedidos pela
secretaria da mulher, do qual poderiam também contar com outras informações.
Após passar pelas informações da Lei Maria da Penha os visitantes entravam em
um corredor do qual tinha o nome colado no chão: “Caminhos da violência”, do qual
deveriam passar por ali e seguir as pegadas que marcavam o trajeto da exposição e de que
forma as atitudes cotidianas se direcionam para a violência e feminicídio, assim, as
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primeiras pegadas eram neutras, e na medida que direcionavam ao crime ganhavam a
tonalidade vermelha.
Uma das primeiras imagens encontradas na exposição, era a da mesma boneca
questionada em sala. “Quem é essa mulher?” Os próprios alunos decidiram mostrar a
comunidade quem era ela, escrevendo ao redor da imagem palavras que expressam a
autonomia com o corpo e a busca para acabar com o preconceito. Mulher, guerreira, dona
de casa, advogada, trabalhadora, foram algumas das denominações recebidas na boneca.
Após os alunos comentarem sobre os motivos daquela boneca representar autonomia, os
visitantes eram convidados a seguirem a trajetória. Assim, em seguida conheciam casos
de violência contra a mulher, em sua grande maioria provocados em casa, do qual
puderam ficar sabendo sobre índices distribuídos por bairros, meses, dentre outras
informações.
Arquivo pessoal Elenice de Paula (2014)
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Após o conhecimento dos casos de violência e seus discursos banais de aceitação
ou legitimação da violência como “Ele me bate porque bebe!” Ele me bateu porque não
cheguei na hora combinada!” Como identificados em noticiários de jornais locais, os
próprios alunos problematizaram estas questões e pediram para os visitantes seguirem
caminho. Os próximos cartazes e apresentações tratavam de casos de feminicídio
ocorridos em Guarapuava nos anos de 2013 e 2014, dos quais os alunos falavam do tema
e procuravam explicar para a sociedade o quanto é necessário debater sobre o assunto,
para que não seja feito ou desenvolvido tal ato. Interessante destacar que na mesma
semana que a atividade foi desenvolvida, Guarapuava teve três casos de feminicídio, nos
índices e mapa da violência a cidade estava no ranking 91º nacional e 3º do Estado.
Com o objetivo de criar impacto sobre os altos índices de violência, foram
desenvolvidos alguns cenários de crime, nestes ao tentar montar como as mulheres foram
mortas, algumas alunas apresentavam-se como uma espécie de jogral dizendo ser a vítima
e de como e porque seu companheiro a matou, como exemplo: Eu, Ana, morta em
janeiro... ! Além disso um telão montado logo atrás exibia cenas de documentários sobre
assedio, violência e crime contra a mulher, e ao aproximarem-se de cartazes que
mostravam os casos de feminicídio de Guarapuava ouviam como música de fundo:
“Rosas”, composta e cantada pelo grupo de rip hop Atitude Feminina. Música essa
também trabalhada e problematizada em sala por tratar especificamente sobre a violência
contra a mulher e suas relações sociais, sejam étnicas, pobreza, machismo, dentre outros.
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Arquivo pessoal: Elenice de Paula (2014)
Os visitantes puderam ainda compreender um pouco sobre o que é assédio sexual,
contando com informações importantes sobre procedimentos a serem tomados caso
sofram ou presenciem de tal ato, assim como a legislação que determina e diferencia sobre
assédio sexual e pedofilia.
Além destas informações, os visitantes puderam conhecer um pouco das
atividades feitas em sala, visualizando cartazes que tratavam sobre o tema, como
violência, assedio, discriminação, dentre outras discussões. Entre tantos debates
realizados, os visitantes contaram também com uma espécie de lembrança da exposição,
um imã de geladeira confeccionado em E.V.A pelos próprios alunos com o formato de
sutiã por ser um símbolo do movimento feminista, e junto a ele colado o símbolo de
gênero correspondente a mulher e o fone disque denúncia de casos de violência contra a
mulher.
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Arquivo pessoal. Elenice de Paula (2015)
Pudemos perceber que o objetivo maior em desenvolver a capacidade crítica e
investigativa dos alunos foram alcançadas. Pontos estes que foram possíveis de
observação tanto em sala como na atividade realizada. Sobre a oficina, além da
participação significativa dos alunos/as acreditamos que a oficina tenha aproximado a
comunidade de algumas discussões provocadas em sala das quais são fundamentais para
diminuir ou acabar com a violência. Como primeira experiência em atividades como esta,
acreditamos que ela ainda tem alguns pontos a serem melhorados, mas de qualquer forma
como toda atividade docente, ela deve ser socializada, para que aqueles que buscam por
práticas educativas possam aprimorar na realidade em que vivem, tornando a troca destas
experiências como significativa para o ensino e formação pessoal.
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homicida no Brasil. São Paulo, Instituto Sangari, 2011.
Composição: Revista de Ciências Sociais da UFMS
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OS CAMINHOS DA EXPERTISE EM GÊNERO: REFLEXÕES SOBRE O ENFRENTAMENTO ÀS
VIOLÊNCIAS CONTRA AS MULHERES NO MS E O PAPEL DO ESTADO.
Greciane Martins de Oliveira1
Simone Becker2
Resumo: Em meio a este ensaio busca-se a partir de projetos de pesquisa e/ou de extensão, analisar as
ações particulares no estado de MS quanto às políticas públicas ligadas às violências contra as mulheres,
bem como, localizá-las no cenário nacional frente à emergência e a efetividade da Secretaria de Políticas
para as Mulheres (SPM). Como p(l)ano de fundo, compartilhamos algumas de nossas discussões voltadas
à categoria das inumanidades como associada à abjeção e/ou à despersonalização. Isto porque, se ao
falarmos em violências de gênero nos deparamos com as propaladas efetivações ou não dos direitos
humanos, antes, nos parece que devamos compreender que na relação com o Estado os acessos a políticas
públicas e direitos somente são efetivados por quem é humano.
Palavras-chaves: violência; gênero; políticas públicas; inumanidade.
O presente trabalho é fruto de projetos de pesquisa e de extensão, cujos objetivos
se volta(ra)m (in)diretamente à compreensão de violências de gênero e/ou contra as
mulheres, bem como, as implicações (relacionais3) com o “Estado”. Cabe, então, a feitura
retrospectiva de nossos compartilhares ao longo do trilhar por entre os (des)caminhos das
referidas ações de pesquisa e/ou extensão.
Um dos pontos de toque entre todas estas ações foi o aspecto metodológico, haja
vista que utilizamos a produção de etnografias em “aldeias arquivos” (CARRARA, 1998;
BECKER, 2008; BECKER et al, 2013). Nesse sentido, a coleta de documentos e a
produção desta observação participante em sítios da web (tanto da Secretaria de Políticas
para as Mulheres quanto dos Tribunais de Justiça de diferentes estados), passam a ser
bons para se pensar a produção antropológica com sua metodologia que a particulariza.
1
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e mestra em
Antropologia pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
2
Docente adjunto IV da UFGD/FADIR/PPGAnt/PPGS, com bolsa de produtividade (nível 2) do CNPq,
bem como doutora em Antropologia Social pela UFSC.
3
Redundâncias a parte.
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Tessituras metodológicas (...)
No tocante à etnografia consubstanciada no texto ficcional – como todos
científicos – que envolvem as aldeias arquivos, nos remetemos aos esclarecimentos feitos
em um dos artigos recentes de uma das autoras do presente. Se não, vejamos:
Por fim, esclarecemos que em nossa análise, como diante de “aldeias arquivos”
(Carrara, 1998; Becker, 2008), aproximamos o método do etnógrafo do métier
do historiador. Se classicamente a etnografia é entendida como a metodologia
adotada pelo antropólogo que “esteve lá”, na convivência com seus
“informantes/nativos”, após décadas do legado de Bronislaw Malinowski
(1978) tal perspectiva sofreu significativas modificações. Seu acento maior
reside na produção da escritura que advém das observações do etnógrado,
esteja ele debruçado sobre fontes documentais ou não. Afinal, ou no final das
contas, o que é o diário de campo, se não um espécime documental particular?
“De mais a mais, os discursos dos quais emanam emoções, feitos, ditos,
estejam eles nos arquivos ou in loco, refletem ‘representações de
representações de representações’” (LEITE apud BECKER, 2008, p. 20).
Duas outras considerações são essenciais: àquela posta no anonimato e a destinada
a reflexionar sobre a imersão em websites.
Quando falamos de aldeias arquivos, não nos debruçamos apenas e tão somente
em documentos sobre os quais repousou o anonimato, mas sobre os que são públicos e
em relação a eles não repousaram “segredo de justiça”. Por sua vez, essa categoria êmica
do discurso jurídico quando analisada por Simone Becker (2008), em sua tese traz consigo
o resguardo compulsório que o Judiciário impõe à exposição dos nomes dos sujeitos
envolvidos em dados conflitos. Um resguardo que pode ser analisado à luz da noção de
dispositivo foucaultiano, a fim de entendermos melhor os controles na própria atividade
de pesquisa de antropólogos e demais cientistas sociais. Mas mais do que isto, nos faz
entender também porque determinados conflitos são expostos sem restrições e outros não,
na própria produção das moralidades. Assim, se se trata de “estupros contra vulneráveis”
o segredo de justiça não é (necessariamente) previsto em lei, como o é para casos
envolvendo disputa de guarda de crianças, dentre outros conflitos envolvendo o “direito
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de família”. Passemos a uma extensa, mas imprescindível citação face aos seus
esclarecimentos:
Dentre as categorias discursivas, destaco a do “segredo de justiça”, cujo efeito
tanto se constitui como um empecilho para os pesquisadores/antropólogos que
pretendem analisar os processos a ele submetidos, quanto se perfaz como um
artifício útil para se pensar nos motivos que levam determinadas temáticas (e
casos concretos) a serem resguardadas sob sigilo quando estão sob julgamento
da área cível, e esses mesmos casos concretos, ao se transformarem em matéria
de interesse criminal, deixa(re)m de ser sigilosos. Sob esta perspectiva, a
categoria nativa do segredo de justiça poderia ser pensada como um dos
elementos constitutivos das relações e dos jogos de forças que sustentam o
poder-saber inerente ao Judiciário – aqui entendido no sentido de práticas,
instituições, enunciados, etc. E mais: talvez os processos que tramitam em
segredo de justiça venham a apresentar mecanismos que não os verificados nos
rituais processuais abertos ao público. (...) Os julgamentos que são decididos
em “grau recursal”, isto é, pelos Tribunais de Justiça (TJ’s) dos diferentes
estados brasileiros, podem ser acessados, em sua maioria, por quaisquer
pessoas junto às páginas eletrônicas (sites) dos mencionados órgãos (em meu
caso, o www.tj.sc.gov.br), sem que os pesquisadores precisem ter detalhes a
respeito dos processos consultados (nome das partes, dos advogados, número
dos processos, dentre outros). Para isso, basta ao interessado digitar certas
palavras
de
interesse
na
pesquisa,
por
exemplo,
“guarda
compartilhada/alternada” e “disputas pela guarda de filhos” e “estupros
incestuosos”, etc. Porém, os (possíveis) obstáculos para aqueles que desejam
investigar os processos (em sua íntegra ou quase íntegra) e/ou apenas os
acórdãos, em temáticas voltadas à filiação, casamento, divórcio e em que “o
interesse público exigir”, reside no fato dos litígios acerca desses assuntos
serem controlados pelo Judiciário. E mais: os controles são exercidos em
especial na justiça cível (leia-se também “justiça de família”), e eles são
denominados no universo jurídico/legal como “segredo de justiça”.
Conseqüentemente, duas implicações metodológicas podem surgir para todos
aqueles que pretendem analisar ou analisam os discursos constantes nos
processos ou em uma de suas partes, como os acórdãos ou sentenças proferidas
pelos TJ’s. Na hipótese da pesquisa se restringir aos discursos constantes nos
acórdãos, nenhum problema o segredo de justiça acarretará ao pesquisador,
pois ele funciona através da substituição dos nomes completos (“prenome” e
“patronímico” ou sobrenome) das “partes litigantes” ou protagonistas do
conflito (e de suas “testemunhas”), pelas suas respectivas iniciais. Nas capas
dos “autos do processo” ou ao longo dos acórdãos aparecerão, então, as iniciais
de seus prenomes e de seus sobrenomes, ao invés, de seus nomes completos.
Ou seja, se eu sou parte litigante em um processo sigiloso, meu nome aparecerá
como “S.B”, e não “Simone Becker”. Ao contrário, os nomes completos dos
operadores e “auxiliares” (assistentes sociais, psicólogos e outros peritos) do
direito não são suprimidos, nem das capas dos processos, nem do corpo dos
acórdãos. Entretanto, se a pesquisa previr o acesso ao processo e a partir desse
o acesso aos personagens litigantes, os obstáculos advirão. Ora porque não há
como reconhecer os citados sujeitos reduzidos às iniciais de seus nomes e
sobrenomes, ora porque nos cartórios (civis) – responsáveis pela administração
destes processos, não há permissão legal para que seus funcionários concedam
acesso aos autos àqueles que não estão envolvidos no conflito, salvo mediante
“autorização judicial”. Parece-me óbvio que se o pesquisador conhece um dos
personagens do conflito o acesso ao mesmo pode ser facilitado, na hipótese
desse ser advogado ou ser parte litigante que detenham cópias dos processos.
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Mas, se a via adotada pelo antropólogo for pelo balcão do cartório, o acesso ao
mesmo encontrar-se-á adstrito geralmente à autorização judicial (do
magistrado) (BECKER, 2008, p. 29-31).
Eis que se o pesquisador tiver familiaridade com os personagens do Judiciário ou
mesmo tiver a habilitação própria dos advogados, maiores problemas o mesmo
(possivelmente) não enfrentará, tal como exposto, a nosso ver, em Rosângela Digiovanni
(2003).
Finalmente, destacamos esclarecimentos quanto ao anverso do anonimato, isto é,
a regra da publicidade dos nomes vigentes no universo jurídico. Algumas pontuações
éticas cabem ser realizadas quanto ao não anonimato envolvendo, discussões de direitos
humanos como o racismo. Passamos a elas, já exploradas em projetos de iniciação
científica sob a orientação de Simone Becker:
1. Trata-se de um documento público (acórdão judicial), cujo propósito fora o de
desenvolver pesquisa relevante atinente às discussões de direitos humanos, tal
como excepciona a lei de acesso às informações.
2. A regra junto às discussões jurídicas é a da publicidade sendo a exceção o
“segredo de justiça”. Porém, quando se fala em publicidade se entende o uso das
informações contidas nos documentos de maneira responsável, segundo critérios
da área científica.
3. Como se tratam de julgamentos judiciais sem segredo de justiça, não há empecilho
para o uso do conteúdo e dos nomes.
4. A lei de acesso a informações ressalta o uso dos nomes sem autorização por parte
da pessoa mencionada, quando envolve questões relativas a direitos humanos,
algo intrinsecamente ligado àquelas históricas discussões atinentes ao racismo e
seus desdobramentos em solos brasileiros.
5. A não produção de nomeação é a não produção de memória e, então de registro
histórico (BENJAMIN, 1987). A nomeação é, por sua vez, produção de memória
e de registro histórico, tão importante nos contextos nefastos das práticas racistas.
6. A nomeação é muito mais do que o nome, é o entendimento do lugar de quem fala
e do coletivo pelo qual fala, à medida que nunca falamos sozinhos. Neste sentido,
cabem as ressalvas produzidas por Rosa Maria Bueno Fischer (2001), se não,
vejamos, para que finalizemos estas costuras teóricas alguns dos excertos da
pesquisadora.
Ao analisar um discurso mesmo que o documento considerado seja a
reprodução de um simples ato de fala individual, não estamos diante da
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manifestação de um sujeito, mas sim nos defrontamos com um lugar de sua
dispersão e de sua descontinuidade, já que o sujeito da linguagem não é um
sujeito em si, idealizado, essencial, origem inarredável do sentido: ele é ao
mesmo tempo falante e falado, porque através dele outros ditos se dizem. (...).
Foucault multiplica o sujeito. A pergunta quem fala? desdobra-se em muitas
outras: qual o status do enunciador? Qual a sua competência? Em que campo
de saber se insere? Qual seu lugar institucional? Como seu papel se constitui
juridicamente? Como se relaciona hierarquicamente com outros poderes além
do seu? Como é realizada sua relação com outros indivíduos no espaço
ocupado por ele. Também cabe indagar sobre o lugar de onde fala, o lugar
específico no interior de uma dada instituição, a fonte do discurso daquele
falante, e sobre a sua efetiva posição de sujeito suas ações concretas,
basicamente como sujeito incitador e produtor de saberes. É assim que se
destrói a idéia de discurso como expressão de algo, tradução de alguma coisa
que estaria em outro lugar, talvez em um sujeito, algo que preexiste à própria
palavra. (FISCHER, p.207-208).
Desembocamos, então, nos websites e nos desafios que revestem a produção
etnográfica sob esta interação, pois quando uma das autoras se debruçou sobre o sítio da
SPM, observou que esse abrange elementos de uma etnografia off-line de leituras,
interpretações e escrita, tal como Carolina Parreiras explora no artigo de “Não leve o
virtual tão a sério”. Para ela, a realização de uma etnografia do mundo virtual abrange:
“observação, participação, textos e um relacionamento entre o pesquisador e os
pesquisados. Desta maneira, o face a face não é mais uma condição fundamental para a
efetiva realização da pesquisa de campo” (PARREIRAS, 2011, p.44). Para tanto, e
fechando as considerações metodológicas, as perguntas de pesquisa foram os guias ou os
nortes de nossas leituras das fontes documentais.
A SPM e a expertise de gênero
Em sua pesquisa de mestrado, Greciane Martins de Oliveira (2015) estabelece por
meio da análise de discurso (foucaultiana) uma genealogia da criação da SPM, cujos
programas e ações institucionalizaram as demandas dos movimentos de mulheres e
feministas. Esta institucionalização, como destaca se solidificou com a existência de uma
Secretaria ligada diretamente à Presidência da República, com status de Ministério.
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Logo, inicia a análise acerca da exigência da expertise em gênero para as políticas
públicas voltadas às mulheres tomando como ponto de partida o processo de criação da
citada secretaria. Para essas reflexões traça um breve retrospecto da categoria gênero e
seus usos nos “documentos-diretrizes”, termo que cria os discursos constitutivos de tais
políticas públicas.
Toma como ilustração os conceitos complementares de duas das mais citadas
teóricas do ou sobre o gênero, Joan Scott e Judith Butler, a fim de analisar as articulações
dos movimentos de mulheres e feministas junto ao Estado para a criação de uma secretaria
de Estado para as mulheres, ou seja, uma resistência nessa teia de exercícios de poderes
que se torna o estabelecimento da condição de poder dada às discussões de gênero. Aliás,
como destaca o documento organizado em novembro de 2002 por Gilda Cabral –
assessora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, o CFEMEA, uma das demandas
dos movimentos de mulheres e feministas era a criação de espaços de poder para e com
as mulheres. Assim, as relações de poder entre os movimentos de mulheres e feministas
com a esfera estatal contribuíram para a criação de um “novo” espaço de poder,
responsável também pela reprodução de saberes.
Dessa forma, essa demanda contribuiu para que se realizasse o trânsito de
mulheres dentro desta instituição e nas demais ligadas à SPM entre a academia, a
militância e o governo, como bem destaca em sua tese Karla Adrião (2008). A expertise
em gênero exigida pelos documentos-diretrizes da SPM, mais especificamente no Termo
de Referência, produz uma capilaridade sobre o modo de reprodução dos
projetos/capacitações relacionados ao combate e à prevenção das violências contra as
mulheres pelas instituições estatais de políticas para as mulheres nos estados e municípios
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brasileiros. Essa capilaridade produz saber e coloca em circulação o poder, em especial o
poder de fala sobre essa temática, como uma das autoras do presente trabalho reflexionou
ao tratar da palavra “capacitação” na citada dissertação.
Essas análises sobre o poder/saber sob a perspectiva de Michel Foucault
são desenvolvidas a partir dos breves históricos que Oliveira traça tanto das quatro
ministras da SPM, quanto da circulação de quatro feministas/acadêmicas que
participaram da produção de alguns dos documentos-diretrizes que integram as suas
aldeias arquivos.
Ao mesmo tempo, traz a descrição das políticas e programas estatais nos quais os
documentos-diretrizes são embasados e dessa vinculação e continuidade entre os
discursos presentes nesses documentos é que chega então ao projeto “Implementação” de
MS realizado em 2013. Nele a expertise em gênero também foi exigida. Isso porque o
contexto acadêmico do estado também colabora para que se tenham pessoas que
correspondam a essa exigência: um curso de Ciências Sociais no qual uma das professoras
era também coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero, além de ser militante
feminista. Dessa maneira, contribuindo para a formação de acadêmicas/feministas que
pudessem circular entre as três esferas como consultoras, capacitadoras e técnicas.
Participaram da citada capacitação de MS 185 (cento e oitenta e cinco)
mulheres, 2 (dois) homens e mais 10 (dez) mulheres da equipe técnica da Subsecretaria e
da equipe contratada. As 185 mulheres eram residentes de 24 (vinte e quatro) municípios
do estado de MS que possuem organismos municipais de políticas para as mulheres, como
delegacias especiais de atendimento à mulher, centros de referências, e etc. Essas
mulheres foram divididas em 3 (três) grupos: gestoras/coordenadoras; assentadas/rurais
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e indígenas. Sobre esse aspecto reflexiona a respeito da categoria identidade a partir de
contribuições de Stuart Hall e Judith Butler, considerando que essas pré-definições de
mulheres, com a categoria “mulheres” no plural não abarca toda a diversidade existente
entre as mesmas.
São categorias representacionais – gestoras/coordenadoras; assentadas/rurais e
indígenas – que foram produzidas pela equipe da Subsecretaria, assim como a categoria
“mulheres do campo e da floresta” criada pela SPM que em seu “guarda-chuva” abrange
desde quebradoras de coco, ribeirinhas, pescadoras, indígenas, quilombolas e etc. Tratase de uma pluralidade de mulheres e de identidades que de certa maneira acaba sendo
reduzida em um “guarda-chuva” que torna homogêneo algo diverso. Mas, por outro lado,
pode perceber que a maioria das mulheres que compôs o grupo das indígenas foi de
lideranças femininas. Este destaque reforça a importância de um cuidado com a
metodologia e conteúdos repassados para essas mulheres, uma vez que o acesso aos
serviços estatais dessas mulheres apresentam muitos obstáculos, como por exemplo,
tradutores da língua indígena e as dificuldades de acesso às instituições de políticas
públicas. Contudo, não deixa de ser um avanço tais mulheres estarem representadas
nessas categorias políticas e das capacitações atuarem como espaços de replicações no
sentido explorado por Aline Bonneti (2000) em relação às PLP´s em Porto Alegre –
Promotoras Populares Legais.
Finalmente, discorre-se como adiantado acima sobre a palavra
“capacitação”, ou seja, quem é capaz ou incapaz de falar sobre as violências contra as
mulheres; quem tem e exerce o poder da fala nesses espaços traçando um comparativo
entre as “capacitadoras” e as “capacitandas”. Além disso, compara também o projeto
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“Implementação” com o das Promotoras Legais Populares (PLP´s), principalmente por
conta da semelhança entre os objetivos de ambos: tornar aquelas mulheres participantes
do curso/projeto futuras multiplicadoras em suas comunidades. Outro aspecto que analisa
refere-se à estruturação dos dois: o curso de PLP’s é de 60 (sessenta) horas divididas em
quatro meses com aulas de aproximadamente três horas uma vez por semana. Já a
capacitação “Implementação” também foi de 60 horas, porém, foram seis dias com cada
um dos três grupos, nos três períodos do dia (manhã, tarde e noite). Isso porque, o
“conteúdo mínimo” da capacitação de 60 horas é extenso, sendo abordados oito tópicos.
Como afinar e compatibilizar tais formas de instrumentalizar as mulheres de “carne e
osso” que vivenciam as violências de gênero é e foi o desafio a ser enfrentado por esta
entidade essencial para a prevenção e combate da violência contra as mulheres.
Do racismo à inumanidade – costuras essenciais entre gênero e raça
Desde 2008, Simone Becker desenvolve discussões envolvendo os
processos de exclusões envolvendo “minorias de acessos a direitos”, como as travestis e
mais recentemente as mulheres indígenas. Atualmente, coordena o projeto de pesquisa
com fomento do CNPq (bolsa Pq) intitulado “““Negr@, suj@, vagabund@, macac@”,
“índi@ malandr@ e vadi@”: análises das di(a)ssociações na Antropologia Brasileira
entre “raça” e/ou “etnia”, e de crimes de racismo contra indígenas e negr@s no Judiciário
brasileiro”.
O ponto de toque entre estas ações que se dão desde 2008 reside na discussão da
categoria da inumanidade, cujos pressupostos cabem ser entendidos quando em cena
estão sujeitos (assujeitados) que não desfrutam do acesso aos propalados direitos
humanos. Afinal ou no final das contas, para termos acesso aos direitos humanos há que
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sermos HUMANO. E, então, responder à questão de quem são os humanos torna-se tão
laborioso quanto responder àquela destinada ao entendimento de quais são os direitos
humanos4.
Feitas estas considerações, mesclando dados etnográficos das pesquisas
realizadas, seja junto ao Judiciário sobre o entendimento das lógicas que cercam as
condenações e as absolvições envolvendo práticas racistas desferidas (ou não) contra
negros e indígenas, seja junto à convivência documental (ou não) com as travestis sul
mato-grossenses e as constantes violências que as (per)seguem, Becker expõe as
tessituras dos e nos diálogos entre teóricos que nos fazem apreender um pouco mais sobre
a inumanidade enquanto sinônimo de abjeção, de despersonalização e quiçá, resultante
dos processos de racismo de Estado. Para tanto, traz ao palco de suas costuras, Walter
Benjamin, Judith Butler, Michel Foucault, Paul Ricoeur e Tzvetan Todorov, em uma
espécie de miscelânea.
Em um dos dossiês da revista Cult, Antonio Teixeira (2015) a partir de uma das
experiências de Primo Levi nos campos de concentração de Auschwitz, sinaliza em
analogia ao “a recordação da casa dos mortos” de Dostoievski, que mais degradante que
sofrer as torturas corporais era tanto ser alvo das restrições de movimentos quanto (e,
sobretudo) se sujeitar ao “se extenuar num trabalho sem porquê” (2015, 32). Em síntese,
a ausência dos porquês, o ato de alguém nos calar, retira-nos daquele lócus capaz de nos
humanizar, qual seja o da simbolização. O fato de não termos como transmitir, por
exemplo, o que se torna da ordem do inenarrável, nos retira a capacidade desta
humanização presente no resgate das nossas memórias imersas no que nos capacita
4
Em documentário elaborado pela instituição Human Right (www.humanright.com) isto se faz evidente.
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enquanto humanos: a ordem do simbólico. Eis o que Walter Benjamin (1987) em
“experiência e pobreza” e a pobreza da experiência nos faz pensar não apenas tomando
como ilustração o próprio desencadear da primeira grande guerra, mas os resultados do
exitoso projeto da revolução industrial que se fizeram presentes no holocausto e em
fenômenos sociais atuais.
(...) está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração
que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história.
Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que
os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres
em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que
inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham
experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho.
Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a
experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica
pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos
governantes. (...). Podemos agora tomar distância para avaliar o conjunto.
Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do
patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo
do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do “atual”. A crise
econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima guerra
(BENJAMIN, 1987, p.114-15; 119).
Uma das interlocutoras em meio ao documentário etnográfico “A Joaquim”5,
ligado aos projetos “fins de tarde em meio à diversidade: na sala com as travestis”; “as
travestis e seus cotidianos em foco: dos vídeos etnográficos às cartilhas” e “maiorias que
são minorias, invisíveis que (não) são dizíveis (...)”, ao descrever as violências sofridas
em seu cotidiano, compartilhou com as pesquisadoras que:
muitas das vezes, eu penso assim: nossa, será que eu sou uma coisa de outro
mundo, né? Que o pessoal tá enxergando outra coisa? Mas aí eu mesmo me
respondo: não, eu não sou, porque não é só eu que sou assim (DIÁRIO DE
CAMPO, 2011, s/p).
O se sentir como uma “outra coisa”, por vezes, foi aproximado à ordem da
monstruosidade na fala da interlocutora, colocando-a fora do esquadro dos pressupostos
5
Por questões de ordem ética não disponibilizamos para além das interlocutoras o vídeo. Isto porque,
facilmente o mesmo poderia ser decupado e deturpado por usuários da internet ao ser postado neste
contexto.
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do que compõe a normalidade, tal como expõe Judith Butler (2002; 2003). Assim, estar
nesse lócus é desfrutar de uma abjeção que vez ou outra (cada vez mais com constância)
beira ao extermínio, ou ainda, ao genocídio 6 . Dois são os exemplos que reiteram o
denominado por Michel Foucault (2010) de “racismo de Estado”, igualável à vivência da
maioria das travestis. Nos projetos antes citados, ora com crimes de racismo no TJSP
(BECKER e OLIVEIRA, 2013), ora com homicídios de travestis no TJMS (BECKER e
LEMES, 2014), um ponto de convergência se faz perceptível. E então, capaz de ilustrar
o vigente e cada vez mais acentuado racismo de Estado: o ódio em relação à existência
(diversa) do outro na e da ordem fenotípica (mas não apenas) que legitima o seu
assassinato.
No tocante às travestis e suas existências vivas, mas na maioria das vezes não
viáveis ou não vivíveis, pois precárias (BUTLER, 2010), uma importante ressalva quanto
a outro recheio da categoria da inumanidade se faz indispensável. Trata-se do que Judith
Butler em “problemas de gênero” aproximará das categorias da desumanização e da
abjeção. Vamos por partes. Tomando a abjeção como o que não importa para o Estado,
e, quiçá ao próprio processo de estigmatização (PERES, 2009) como pressuposto da
produção do patológico e do desvio (BECKER, 2008), Butler articula os “corpos
humanos” como (possivelmente) dotados de gênero. Ou ainda, para que sejamos humanos
temos que portar corpos que importem ao Estado e, por conseguinte, correspondam às
normalizações normatizadas 7. Neste sentido, o que importa a este Estado que(m) nos
6
Neste momento não fazemos distinções entre as categorias do etnocídio e do genocídio.
Por mais que seja óbvio, cabe trazer à tona a obviedade de que o normal produz norma, motivo pelo qual
se qualifica como normal e não como patológico.
7
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gesta e que(m) nos pare, é que sejamos mulheres ou homens, não havendo lugar para o
entremeio8.
Haverá humanos que não tenham um gênero desde sempre? A marca do gênero
parece “qualificar” os corpos como corpos humanos; o bebê se humaniza no
momento em que a pergunta “menino ou menina”? é respondida. As imagens
corporais que não se encaixam em nenhum desses gêneros ficam fora do
humano, constituem a rigor o domínio do desumanizado e do abjeto, em
contraposição ao qual o próprio humano se estabelece. (BUTLER, 2003,
p.162).
Não por mera coincidência, em recente pesquisa ao se debruçar juntamente com
outra pesquisadora sobre os acórdãos envolvendo travestis em demandas junto ao
Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) - (BECKER e LEMES, 2014), Becker
deparou-se com suas aparecências apenas em conflitos classificados pelo Direito como
sendo/estando na ordem dos contextos “criminais”. Tal fato para Paul Ricoeur (2008),
sob a nossa interpretação, aponta para a não caracterização destes sujeitos como sendo
capazes de acessar direitos, pois a não aparição das travestis em demandas da área civil
mostra como elas (provavelmente) estão longe dos contextos mais cotidianos das relações
sociais, sobretudo, àqueles que divergem dos crimes.
A observação se estende ao fato destes sujeitos não serem nomeados em
conflitos da denominada ‘área civil’, isto é, aquela destinada à resolução de
demandas que marcam nossa cidadania, como reclamações enquanto
consumidores, locatários, dentre outras. Em outras palavras, e não menos
curiosas, as travestis são referenciadas apenas nas intersecções da
criminalidade/marginalidade (BECKER e LEMES, 2014, p. 188).
Rumando para as reticências, ao invés dos pontos finais deste ensaio, destacamos
que as produções de Judith Butler, focos dos feixes de diálogos com outros teóricos, são
aquelas que implicam a (des)construção da categoria gênero somada àquelas como classe
social, raça e etnia. As aproximações realizadas com Foucault aqui se fazem/fizeram a
partir das noções de racismo de Estado (Foucault, 2010), cujos reflexos se intensificaram
8
Ou a concomitância do portar o masculino e o feminino como as travestis.
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no e com o holocausto, fenômeno social que importou e implicou, p.ex., Benjamin e
demais aproximados. Aliás, sobretudo em marcas de guerra (las vidas lloradas), as ideias
de Butler (2010) dialogam com aquelas de Todorov. Nessa obra ela se debruçará
(também) sobre as análises que os discursos norte-americanos estatais (re)produzem a
partir dos eventos de guerra por eles desencadeados. Dentre eles estão aqueles (corpos)
de sujeitos abjetos e inumanos de Guantánamo. Algo por ela explorado na conferência
publicada sob o título de “violencia de Estado, guerra, resistência. Por una nueva política
de la izquierda”. Nesse sentido, em artigo sobre o “Limbo de Guantánamo” a mesma
afirma que:
A questão de saber quem merece ser tratado humanamente pressupõe que
tenhamos primeiro estabelecido quem pode e quem não pode ser considerado
humano. E é aqui que o debate sobre a civilização ocidental e o Islã não é
apenas um debate acadêmico, uma espúria persistência no orientalismo por
parte de teóricos como Bernard Lewis e Samuel Huntington, muito embora
eles efetivamente ilustrem como noções de civilização produzem a
diferencialidade
humana. Até que ponto o Estado-nação pode fundamentar nossas noções sobre
o que é “humano”? E a Convenção de Genebra não
codificaria essa perspectiva de que os humanos, tais como os reconhecemos e
respeitamos nos termos da lei, pertencem primordialmente a Estados-nação?
A questão não é apenas que alguns humanos sejam tratados como humanos e
outros sejam desumanizados; antes, é que essa desumanização – tratar alguns
humanos como seres à margem do escopo da lei – se torna uma das táticas
pelas quais uma civilização “ocidental” supostamente distinta busca se definir
em relação e por oposição a uma população compreendida, por definição,
como ilegítima (BUTLER, 2007, p. 230-231).
A desumanização rima, portanto com a despersonalização, aquela preconizada
por Todorov, em a face do extremo. Se não, vejamos, tentando correlacionar os campos
de concentrações que caracterizaram o holocausto, com aqueles tantos mundo afora que
replicam o que Foucault chama(ria) – também - de racismos de Estado. Para Todorov, ao
analisar os processos de despersonalização das vítimas do holocausto, algumas são as
estratégias empreendidas pelo sistema, a saber: ser privado do direito à articulação
exteriorizada das palavras e, antes da morte física há o processo de morte social
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atravessado tanto pelos corpos despidos quanto pela privação da alimentação. “(...) as
vestes são uma marca de humanidade. Ocorre o mesmo com a obrigação de viver em
meio a seus excrementos; ou com o regime de subnutrição vigente nos campos, que obriga
os detentos a estar constantemente à procura de alimento e prontos a devorar qualquer
coisa que seja” (TODOROV, 1995, p.199).
Enfim, (...) em tempos de mobilizações em solo brasileiros, cujas faixas
evocam o retorno à ditadura militar, crescem, a meu ver, as odes diretas ao extermínio da
alteridade que alça ou não à condição de humanidade.
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OS HOMENS NA VIOLÊNCIA DE GÊNERO: AUTORES OU VÍTIMAS?
Men in gender violence: authors or victims?
Márcio Batista de Oliveira1
Juliana Batista de Oliveira2
Resumo: A discussão da violência de gênero deveria fazer-se desnecessária pelas novas posturas, respeito
às diversidades, enfim, em um período de constantes e pontuais transformações sociais, porém ainda se
depara com um problema secular, a diferenciação pelo gênero. A violência doméstica e familiar contra a
mulher é uma infração aos direitos humanos caracterizada pela hierarquização do gênero. O trabalho
buscará delimitar a relação dos homens na violência de gênero, se autores ou vítimas, a relação da violência
com a teoria da normalidade, a crise das masculinidades e, os homens como autores involuntários em razão
de sua formação cultural. Já que esse homem em crise, não interage com o resto do mundo e não consegue
ver as mulheres evoluírem sem a sua dependência.
Palavras-chave: Gênero; Homens; Masculinidades.
Abstract: The discussion of gender violence should be made unnecessary by the new attitudes, respect for
diversity, in short, in a period of constant and specific social, but still faces a secular problem, differentiation
by gender. Domestic and family violence against women is a violation of human rights characterized by
the gender hierarchy. The study will define the relation of men in gender violence, whether perpetrators or
victims, the relationship of violence to the theory of normality, the crisis of masculinity and men as
involuntary authors because of their cultural background. Since this man in crisis, does not interact with
the rest of the world and can’t see women evolve without your addiction.
Keywords: Gender; men; Masculinities.
Introdução
A discussão sobre gênero na atualidade deveria fazer-se desnecessária, uma vez
que vivenciamos o reconhecimento de novas posturas, a quebra de tabus, o respeito às
diversidades, sem mensurar o desenvolvimento industrial e tecnológico, enfim, em um
período de constantes e pontuais transformações sociais, ainda se depara com um
problema secular, a diferenciação pelo gênero.
1
Pós-graduado no curso de Especialização em Direitos Humanos pela Universidade Estadual de Mato
Grosso do Sul (UEMS). Pós-graduado no curso de Especialização em Direito e Processo do Trabalho pela
Universidade Anhanguera-Uniderp. Graduado no curso de Direito pela Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS) - e-mail: [email protected]
2
Pós-graduanda no curso de Especialização Educação em Direitos Humanos pela Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul (UFMS/UAB). Graduado no curso de Direito pela Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS) – e-mail: [email protected]
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Trata-se, pois, de um problema no sentido de diferença, não uma simples
diferença, mas uma diferença pejorativa, que desqualifica, que submete, diminui.
A violência doméstica e familiar contra a mulher é uma infração aos direitos
humanos caracterizada pela hierarquização do gênero. Mesmo com a tutela do Estado o
comportamento da sociedade ainda desencadeia um crescente número de mulheres em
situação de violência, reduzidas a objetos e vítimas da prepotência dos homens ao se
julgarem superiores.
Para analisar essa relação da violência sofrida pelas mulheres é necessário
observar os papéis de gênero e como influencia nessa violência, já que a mulher sempre
esteve em posição de inferioridade e de submissão ao homem, o que a tornou vulnerável
diante do sexo masculino nas relações sociais e familiares. Pois ainda a ideologia
patriarcal permanece na sociedade, com a desigualdade social, cultural e econômica
sendo uma dos motivadores da discriminação de gênero.
A construção do conceito de gênero compreende o estabelecimento de uma
postura hierarquizada dos sexos, advinda de questões ideológicas, sociais, culturais e
religiosas com a mulher subjulgada ao homem, inserida como ser inferior, de segundo
plano. Lugar que lhe é imposto desde sua infância até a tenra idade, interferindo nas
relações de trabalho, interpessoais, intelectuais, sexuais e afetivas.
Os homens, quase sempre no polo ativo dessa violência, poderiam ser tidos como
autores ou vítimas? Existe uma relação desse comportamento de violência com a teoria
da normalidade? A interferência da crise das masculinidades e os homens como autores
involuntários em razão de sua formação cultural.
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A violência de gênero se estabelece na sociedade pela ocorrência de um
comportamento em que um gênero acredita ter domínio sobre o outro, tendo o masculino
como superior ao feminino, como se o segundo não pudesse alcançar o mesmo patamar
de igualdade e direitos que o primeiro, lhe ficando reservado a servidão ao outro.
A subordinação das mulheres ao sexo masculino se deu ao longo do tempo
derivado de um comportamento cultural que foi incutido na sociedade como natural, cheio
de preconceito e discriminação, o que incentiva a violência contra as mulheres. Qual seria
a razão dessa violência dos homens contra as mulheres?
1 A violência de gênero e os homens
Nos crescentes casos de violência de gênero, questiona-se a possibilidade do “ser
homem” não figurar apenas no polo ativo da violência e também estar prejudicado pelas
questões existentes de um modo geral, como se existisse uma crise da masculinidade.
As conquistas femininas nos campos jurídicos, sociais e econômicos
transformaram a vida do homem que ao perder o espaço de provedor, se viu em uma
situação de desconforto e uma perda da identidade patriarcal que carregou durante
séculos.
As várias transformações ocorridas, principalmente nas últimas décadas, no
modelo de produção societária, provocam mudanças no mundo do trabalho,
desencadeando um processo acelerado de precarização do trabalho. Esse
processo desencadeou mudanças no âmbito empresarial, na organização
coletiva dos trabalhadores, no núcleo familiar e também pessoal (CARMO,
s/d, s/p).
Nesse momento o homem começa a sentir-se deslocado, uma vez que era por meio
do trabalho que afirmava sua masculinidade, seja pela divisão das atribuições de trabalho
para homem, trabalho para mulher, ou lugar onde seus ganhos superavam de suas
companheiras.
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O mercado de trabalho tornou-se mais competitivo. Essas transformações
preocupam a todos envolvidos no processo de trabalho, no entanto o homem trabalhador
não questiona apenas seu ambiente, mas coloca em questão a sua identidade de homem,
já que um dos eixos de sua identidade masculina é o trabalho. Instaura-se uma crise da
masculinidade decorrente dessas transformações, paralelo as conquistas das mulheres nos
diversos campos da vida social, quando na liberação sexual e da luta pela divisão sexual
do trabalho doméstico (CARMO, s/d, s/p).
O gênero é uma importante questão ao se estabelecer as identidades, pois dele
decorre o contato de homens e mulheres no cotidiano, sobretudo o familiar, local onde se
formam e transformam as identidades.
O trabalho para o homem é que
define a linha divisória entre as vida pública e privada e, ao mesmo tempo tem
a dupla função para a sua vida. A primeira é ser o eixo por meio de que se
estruturará seu modo de agir e pensar. A segunda função é inscrever sua
subjetividade no campo da disciplina, do método e da violência, remetendo-os
a um cotidiano repetitivo (NOLASCO, 1995:50).
È o ambiente público que caracteriza o homem, com sua postura forte, macho,
destemido, responsável, para tanto, essencial o trabalho na construção de sua identidade.
Assim, a conquista das mulheres no espaço reservado aos homens contribuiu para o
processo da desconstrução de suas identidades. Antes a elas era apenas reservado o espaço
doméstico, agora suas conquistas vão além da divisão das atribuições do lar, começam a
ganhar o espaço público.
O homem foi educado para ser macho, chefe de família. Esse controle familiar
não representa apenas uma administração das ações que ali se desenvolvam, mas também
uma dominação de comportamentos, um poder sobre o outro que alcança as relações
familiar, social, no ambiente de trabalho e no cotidiano de modo geral.
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Para FOUCAULT (1979) apud CARMO (s/d, s/p), o poder se distribui em
constelações dispersas de relações desiguais, discursivamente constituídas em campos
sociais de força. Entendendo o poder em nível macro, destinado ao homem e no nível
micro, historicamente destinado às mulheres.
A masculinidade como expressão de controlador das relações é uma postura
advinda do patriarcado. Nesse período que o sexo masculino se definiu como superior em
relação ao feminino, decorrente das heranças deixadas dos pais aos filhos, além de
adquirirem suas esposas como de sua propriedade o que lhes dava a ideia de hierarquia
de superioridade sobre as mulheres.
Essa formação cultural orienta que “a masculinidade e a virilidade devem ser
reafirmadas sempre, e, embora a violência de gênero afete muito mais a mulher e elas são
as maiores vítimas, os homens também estão expostos à violência” (CARMO, s/d, s/p).
No mesmo sentido, BOURDIEU (2007:64) afirma que “a virilidade, entendida como
capacidade produtiva no mesmo sentido, mas também como aptidão ao combate e ao
exercício da violência (sobretudo em casos de vingança) é, acima de tudo, uma carga”.
A responsabilidade atribuída aos homens de que ele precisa ser viril, prover os
meios da família, exercer seu papel de domínio junto à esposa e filhos e mostrar para
sociedade que consegue cumprir com suas obrigações pode desencadear ao homem
doenças físicas e psíquicas e até a depressão.
Masculinidade e feminilidade são construções sociais que além de carregarem
características culturais, trazem processos psicológicos. Esses conceitos não podem ser
tidos como características permanentes, mas que se conquistam ao longo do tempo. A
exemplo a virilidade necessita ser provada a todo momento ante uma nova situação. Para
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o homem ser comparado a “mulherzinha” conota uma ofensa de gerações, devendo ele
fazer-se “homem” sob qualquer situação, por vezes, tendo até mesmo que renunciar a
casos de alegria e satisfação para ser considerado como macho.
Nesta direção pode-se aferir que:
o homem será considerado macho na medida em que for capaz de disfarçar,
inibir, sufocar seus sentimentos. A educação de um verdadeiro macho inclui
necessariamente a famosa ordem: “Homem (com H maiúsculo) não chora”.
Quantos homens não tiveram que engolir as lágrimas diante da tristeza, da
angústia, do luto, em nome dessa norma de conduta (SAFFIOTI, 1987:26 apud
CARMO, s/d,s/p).
A formação do homem não se apregoa somente as suas características fisiológicas,
como ser possuidor, mas conceitos como compromisso, trabalho, provedor da família e
virilidade constituem a masculinidade. Além da experiência sexual, é por meio do
trabalho que o homem concretiza sua masculinidade. O trabalho está para o homem assim
como a maternidade para a mulher. “É por meio do trabalho que o rapaz passa a ser
considerado homem” (NOLASCO, 1995:51).
Na questão sexual, o homem desde cedo é convidado a descobrir sua sexualidade,
associada à masculinidade, com a descoberta do seu órgão sexual, da possibilidade (para
as culturas ocidentais) de urinar em pé, sendo imposto às mulheres o ato de sentar como
uma humilhação. O incentivo para o início das práticas sexuais deve desenvolver o
macho, enquanto que a mulher é censurada do seu sexo, a começar no ambiente familiar,
criada para reservar-se ao futuro marido.
Outro componente importante na construção da identidade de gênero é a
sexualidade. A sexualidade compõe nossa personalidade, e não se restringe ao
sexo. Ela é um conjunto de múltiplas experiências que nos coloca na plenitude
do SER HUMANO. Sexo refere-se aos aspectos físicos e biológicos, mas hoje
podem ser modificados. Por outro lado, a sexualidade não é somente um
conjunto de estímulos biológicos; ela compõe-se de comportamentos, desejos
e sentimentos construídos nas nossas reações de gênero (CARMO, s/d,s/p).
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A sexualidade colabora na construção social do feminino e do masculino. A
posição de cada um na sociedade vai determinar o modo como viver a sexualidade.
2 A violência de gênero e a teoria da normalidade
Hanna Arendt (1999) ao analisar o julgamento de Eichmann3 em Jerusalém obteve
conclusões que podem homens bons ter posturas que não compactuam com seus preceitos
e que a característica de mau não é absoluta.
Na análise do julgamento, Arendt observou que Eichmann “não era a encarnação
do mal, nem o monstro que todos esperavam encontrar, - inclusive ela-, e sim um homem
normal, ou seja, comum, que executa seu ofício obedecendo as regras estabelecidas,
próprias do seu tempo e do seu contexto político” (GOMES ETAYO, 2011:15).
Nesse raciocínio, os homens agressores também podem ser homens normais
mesmo tendo praticado violência de gênero, cabe-nos identificar quais os motivos que os
levaram a tal prática, dentro de uma “normalidade” apresentada por Arendt e estudada no
trabalho de Gomes Etayo.
Urge a necessidade de identificar esse comportamento já que a normalidade ora
expressada pode desencadear um descontrole de situações pelo engano dos agressores
estarem praticando violências como se fossem naturais. ARENDT (1999:299) apud
GOMES ETAYO (2011:16) afirma que:
3
Eichmann foi tenente-coronel da SS durante Alemanha Nazista. Ele foi o grande responsável pela logística
de extermínio de milhões de judeus durante o Holocausto, que foi chamada de “solução final”, organizando
a identificação e o transporte de pessoas para os diferentes campos de concentração, sendo por isso
conhecido como o executor chefe de Terceiro Reich. Ele foi preso no fim de 1960 em um subúrbio de
Buenos Aires por uma equipe de agentes secretos israelitas e foi julgado em 1961 por um tribunal
especializado em Israel. Hannah Arendt fez a cobertura da notícia do julgamento de Eichmann, como
repórter enviada pela revista “The New Yorker”, que esperava que ela
fizesse uma ampla descrição desse maligno ser, porém, o que ela nos ofereceu, a partir dessa experiência,
foi sua tese sobre a banalidade do mal, baseada na caracterização do que ela chamou de normalidade,
conceito que estou usando neste trabalho (GOMES ETAYO, 2011:15-16).
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O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e
muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível
e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições e nossos
padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante de
que todas as atrocidades juntas, pois implicava que [...] esse era um tipo de
novo criminoso, efetivamente hostil generis humani, que comete seus crimes
em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir
que está agindo de modo errado.
A normalidade está presente em todas as pessoas, com comportamentos e atitudes
que são inseridos no dia a dia sem se questionar quanto seu modo, posicionamento, sem
resignificar, apenas absorver.
Numa análise do homem agressor, observa-se que o mesmo ostenta uma imagem
oriunda dos padrões patriarcais e “não há por detrás dessa máscara o ‘monstro’ que todos
esperamos encontrar – parodiando Hannah Arendt ao encontrar Eichmann – e sim um
homem comum, um homem normal” (GOMES ETAYO, 2011:21).
Esse homem cultivado, não deixa florescer sentimentos, torna-se um ser sem
emoções, evitam chorar, demonstrar afeto e ao assumirem o cargo de provedor qualquer
comportamento será para a manutenção dessa imagem, mesmo que lhes custe a vida.
Exemplificando tal colocação:
São múltiplos os relatos de meninos que não choraram diante de um soco –
ainda que morrendo de dor -, de homens que brigam entre si para ‘obter
respeito’, de idosos morrendo de câncer de próstata para proteger a honra que
um exame de toque questionaria [...] São múltiplos os relatos de homens que
conheceram meretrizes em sua tenra idade pela incapacidade de vivenciar a
sexualidade com uma namorada e pela exigência de ter que demonstrar essa
experiência; homens que aceitaram provas de masculinidade à custa da saúde;
enfim, homens que ficam sozinhos, doentes e que até mesmo morrem por
serem homens! (Nolasco, 2001, Figueroa, 1997 apud GOMES ETAYO,
2011:22).
De modo que observar-se-á os “homens autores de violência de gênero – não são
simplesmente homens violentos ou agressores, nem muito menos monstros, são homens
normais, homens em crise, homens comuns, homens assustadoramente normais”
(GOMES ETAYO, 2011:212). Essa normalidade aceita por homens e mulheres é que
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torna a violência cada vez mais presente na vida cotidiana que muitas vezes nem é
percebida pelos seus personagens.
3 A Crise das masculinidades
Para analisar o homem autor da violência é preciso definir sua identidade e, “mais
do que isso como ele a constrói e reconstrói, deve-se tomar em conta tanto a dimensão
das relações de gênero construídas a partir dos papéis sociais” (CARMO, s/d, s/p). De
maneira que os papéis que são definidos para eles, em regra são de grandes
responsabilidades e não lhes permite falhas. “Esse papel de ‘macho viril’ que a sociedade
sexista constrói para os homens é tão nocivo e mutilador para eles quanto o é a imagem
de feminilidade construída para as mulheres” (SAFFIOTI, 1987 apud CARMO).
Nos estudos da crise das masculinidades, em um primeiro raciocínio de
CONNELL (1995) apud GOMES ETAYO (2011:15) como sendo crise a ruptura de um
tipo próprio estabelecido numa ordem social; masculinidades como as marcas e
peculiaridades tipicamente dos homens e crise das masculinidades, a transformação de
um modelo de homem.
O homem “machão”, violento, patriarcal parece estar desaparecendo, no estágio
atual, “os homens heterossexuais na contemporaneidade estariam em uma fase de
transição entre um velho padrão para uma nova configuração da masculinidade”(GOMES
ETAYO, 2011:17). Normalmente na faixa dos 30 aos 45 anos de idade, esses homens
começam a questionar-se sobre as formas de manifestação da virilidade. Os processos
socioculturais têm moldados os novos homens, seja pela inserção da mulher nas relações
sociais, seja pela instrução recebida pelas novas mulheres, essa postura do homem “das
cavernas” começa a ser questionada e transformada.
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As mudanças culturais possibilitaram que as minorias antes postas às margens
conquistassem seus lugares e se restabelecessem, porém o homem heterossexual cultuado
pela cultura androcêntrica não se localizou nessa nova organização, ainda se considera
“um sujeito histórico universal e, enquanto os demais vão se organizando, eles vão
ficando sozinhos. Nessa solidão, ou melhor, nesse isolamento, seu velho modelo entra,
via de regra, em crise, e então, potencialmente em transformação” (GOMES ETAYO,
2011:18-19). As masculinidades do sujeito que agride tende a desconstruir-se, e os exagressores precisarão de novos elementos identitários.
A crise das masculinidades iniciou nos séculos XVII e XVIII, na Inglaterra e
França, nesses países porque a educação feminina era mais refinada e as mulheres
desfrutavam de mais liberdades que em outros lugares outras não detinham.
Consideradas as primeiras feministas, as “preciosas” (francesas) – mulheres da
aristocracia e alta burguesia, solteiras, independentes economicamente -,
defendiam a igualdade entre os sexos, o direito ao amor e ao prazer sexual, o
acesso à mesma educação intelectual dada aos homens. Questionado a
instituição do casamento e os papéis de esposa e mãe como destino da mulher,
elas inverteram os valores sociais da época. Apesar de seus opositores, elas
conseguiram algumas mudanças (BADINTER, 1993:12 apud ARAÚJO,
2005:49).
Na Inglaterra, no século XVII houve muitas negociações quanto aos papéis dos
homens e mulheres no casamento, quanto a sexualidade, motivados pela ideia de amor
romântico e a preocupação com a felicidade. Já na França, após ganhar força o movimento
feminista perdeu seu espaço com a Revolução Francesa que:
Negou às mulheres o direito de cidadãs e retomou a tradicional separação entre
os sexos, que durou por mais de 100 anos. Só no século XX o movimento de
mulheres voltou a ganhar força na luta pelo direito ao voto, à cultura e à
educação, à igualdade nas condições de trabalho, enfim, lutando pela igualdade
em todas as instâncias antes dominadas pelos homens (ARAÚJO, 2005:49).
Os movimentos característicos dos gêneros, masculino ou feminino, são
resultados do contexto históricos que desencadearam mudanças sociais, econômicas e
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culturais no século XVII. Tendo o capitalismo enfraquecido o patriarcado e as mulheres
foram conquistando seu espaço público, para atender as necessidades do mercado e da
família já que o homem não satisfazia o seu papel de provedor. A mudança das mulheres
e a mudança dos homens expressam a crise do individualismo vivenciada como crise do
sentimento de identidade.
Nesse período, os homens estão se conscientizando das tensões e conflitos
impostos pelo machismo. E começam a observar que podem reconhecer as suas reais
necessidades afetivas e buscar meios de satisfazê-las sem se sentirem menos “machos”
(Nolasco (1993) apud ARAÚJO, 2005:50).
O homem tradicional já não pode mais ser o homem dos três “P”: Provedor,
Protetor, Penetrador. O homem que grita, ofende, bate. Ele está em crise e os
sobreviventes estão se tornando algo diferente. Muitos bateram e continuam batendo;
outros agrediram, pararam e pensaram; outros ainda estão se mobilizando para sair do
grupo dos três “P” (GOMES ETAYO, 2011:28).
As mudanças das quais os homens se submeteram no decorrer dos anos que
desencadearam essa crise das masculinidades, como transformações, novidades e até
espanto nesse novo homem que surge nas situações afetivas e conflitantes que lhes
surgiram, para fazer-homens capazes de lidar com essas situações e ainda assim sentiremse como sujeitos sociais.
Os meninos em algumas tradições para se tornarem “homens” eram submetidos a
rituais, a um processo de formação com a incorporação de regras, ritos de passagens,
questões de sexualidades para satisfazer suas identidades.
O processo de constituição da identidade masculina é mais difícil para os
homens, comparativamente às mulheres e seu processo de constituição de
identidade feminina, precisamente pelas exigências sociais que são impostas a
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eles desde a infância. Os meninos têm de demonstrar desde muito cedo que
não são meninas, que não têm comportamentos de meninas. Os meninos têm
que conquistar a masculinidade, entendida só como virilidade em primeira
instância. Isso é uma exigência feita através de jogos e brincadeiras na infância,
mas depois é reforçado na adolescência, na juventude e na vida adulta através
dos distintos espaços de interação que eles têm (GOMES ETAYO, 2011:79).
Um dos principais motivos da crise das masculinidades é decorrente da falta de
um grupo que reconheça o papel de poder dos homens, pois não há um poder real se não
houver uma coletividade que o valorize como tal. Ao masculino reside a necessidade de
reafirmar-se a todo o momento, desde criança, passando pela adolescência até na fase
adulta para que não se confunda como “mulherzinha” e seja destituído do grupo. Para
isso, deve ser um homem violento, machista e patriarcal.
4 Os homens como autores involuntários pela sua formação cultural
A construção social do masculino e do feminino traz consequências aos indivíduos
homens e mulheres que saem da esfera dos seus arbítrios. Por vezes os homens que são
autores de violência de gênero não trazem a maldade consigo, são homens comuns,
moldados pela sua formação cultural que encaram como normal seu comportamento.
Nessa análise, acompanho o pensamento de GOMES ETAYO (2010:181), são
homens assustadoramente normais, homens comuns, homens, que na psicanálise são
entendidos como narcisistas. E a mesma traz a definição de narcisismo de Prado (1988),
como um estado em que “a pessoa se vivencia como o centro de tudo e qualquer interesse
no mundo”, incapaz de reconhecer a alteridade, as peculiaridades dos outros. Nesse estado
narcísico, o homem e a mulher acreditam ser objeto, confunde-se nele, de forma que nada
mais exista no mundo. Estado nomeado por Prado de “estranhamento do self com objeto”
e quando relacionado à violência de “fúria narcísica”.
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Surge da exposição acima o entendimento de que o homem autor de violência
agride sua companheira quando sente que perdeu o seu lugar, em especial em razão do
gênero, além de compreender ser um ataque não à mulher, mas a si próprio. Eis a
definição de pessoa narcísica:
[...] para se defender do mau objeto interno que carrega e que resulta da
confusão do Self mau (impulsos destrutivos, fanáticos) com o objeto externo,
que se torna, por isso, um objeto mau, torna-se necessário idealizar o objeto
interno, e isto é feito à custa de investi-lo de impulsos libidinosos narcísicos,
engrandecendo-o onipotentemente (PRADO,1988:45 apud GOMES ETAYO,
2010:181).
Ao homem diante desse contexto de violência de gênero, crise das
masculinidades, se depara com situações de silêncio e solidão. Pois estes homens não
estão em silêncio por não ter o que falar, mas por se sentirem presos, sem identidade, um
silêncio que urge no meio de agressões, por meio de uma fala barulhenta para esconder a
vergonha de não se ver nesse mundo, por ter seus conceitos culturais fadados ao
esquecimento e não ser mais o centro das questões.
A solidão enfrentada por estes homens, normalmente heterossexuais e da década
de 1960 à 1980. Que mesmo na presença de amigos, estão sozinhos, são apenas
companheiros de atividades, mas não confidentes ou amigos sólidos, pois diante do
ambiente público esse homem, vai ter que se mostrar o provedor da família, além de ser
o macho dominante, mas um homem viril que não pode expor a agressão que realiza no
ambiente privado pois certamente será censurado pela nova visão da sociedade que não
aceita mais essa demonstração de dominação, eis que surge a crise.
A solidão é isolamento, marginalidade, distanciamento, abandono; ou seja, os
homens, e não só os violentos, não optam por ficar a sós, mas estão ficando
sós – como diria o psicólogo Sérgio Sinay -. Eles ficam sós aos poucos, porque
não compreendem seus pares ou porque realmente não tem pares e porque as
parceiras sentimentais já não tem mais recursos subjetivos para acompanhar
um homem que ignora as transformações do mundo que o rodeia e que ainda
considera-se o centro desse mundo! (GOMES ETAYO, 2010:185).
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É esse homem que não se transforma, não se identifica, não interage com o resto
do mundo. A estes fica fadado à solidão de amizades que terminam após dizer boa noite
ou até a próxima, pois não se criam laços de intimidade, cada qual na sua esfera de atuação
de modo que o amigo do futebol se trata de futebol, não existem questionamentos,
repreensões ou advertências ou até mesmo elogios. A amizade não interfere na vida do
outro, mesmo que a conduta seja considerada inadequada para aquele amigo.
Assim, NOLASCO (2001:14) apresenta que os homens cometem tais agressões
em razão de três possibilidades, sejam elas: (1) a mudança de eixo da hierarquia para o
individuo; (2) a diminuição dos níveis de responsabilidade das sociedades modernas e
individuais de reconhecimento e inserção social do sujeito; e (3) o impacto gerado por
estas no processo de subjetivação.
Nesse sentido, pode-se concluir que os homens autores de violência enfrentam
dificuldades para manter-se com o poder e adequar-se a nova cultura, como se dentro de
seus lares, ainda existisse os dogmas dele ser o provedor, que precisam mostrar às esposas
e aos filhos o seu poder. Que esse comportamento tenha por fim a manutenção do poder
simbólico, sinônimo de sua virilidade, como o disciplinador das situações que fugiram
das regras e que seu comportamento fosse orientado em uma normalidade.
Compreende-se, também, que aos homens não podem ser eximidos da culpa pela
violência de gênero e atribuir o seu comportamento à justificativa de que agem dessa
forma conforme um modelo de masculinidade imposto e assim apenas correspondem a
tal modelo. Mas é preciso firmar o entendimento de que
tal perspectiva não pretende atribuir exclusivamente aos homens, como
sujeitos individuais, a culpa da violência masculina, mas adverte para não fazer
aquilo que tem sido feito, querendo ou não, com as mulheres em estudos sobre
violência conjugal ou violência doméstica, ou seja, vitimizá-las. Nem vítimas,
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nem algozes, os homens agressores demandam perguntas e interpretação.
Exigem o exercício do pensamento (GOMES ETAYO, 2010:25).
É essencial mudar as posturas, estabelecer uma política que oriente a educação de
mulheres e homens para que não continuem perpetuando essa cultura de dominação
masculina, uma vez que não basta punir aos agressores e separar as vítimas
enclausurando-as em locais afastados, precisa inserir essa nova cultura do que é ser
homem e do que é ser mulher na atualidade. Assim, as “novas gerações, tanto de meninos
quanto de meninas, devem ser educadas em uma nova ordem social de gênero, mais
libertária, mais igualitária, que reconheça as diferenças” (GOMES ETAYO, 2010:208).
Então poderia dizer que os homens são vítimas porque não se encontram no
mundo e tentam arrancar esse lugar das mulheres, consideradas por eles como inferiores,
por meio da violência? Assim, eles não teriam que ser julgados sob a égide de uma pesada
cobrança, já que não respondem por àquilo que foge de suas vontades? Não. A crise
enfrentada pelos homens, essa crise das masculinidades por se perderem no mundo atual,
precisam se encontrar e não ceder às incertezas, quando se sentirem ameaçados, é
necessário repensar e vencer o velho padrão de homem.
As mulheres notadamente já conquistaram o seu lugar no mundo, essa nova
posição ocupada por elas não retira do homem suas certezas, mas gera-lhe dúvidas se
conseguirão conviver enquanto deixaram de ser o centro das atenções. As mulheres já se
viram sozinhas, conseguiram se ver no espelho e gostaram da imagem sem o homem ao
seu lado como seu protetor.
Encontramos homens autores de violência de gênero, como concluiu GOMES
ETAYO (2010:212): “não são simplesmente homens violentos ou agressores, nem muitos
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menos monstros; são homens normais, homens em crise, homens comuns”, sendo “o pior
da violência de gênero, que de tão normal se torna aceita e invisível socialmente”.
A violência apesar de ser a ferramenta utilizada por esses agressores, mesmo que
expressão da crise vivida pelo masculino, precisa ser solucionada e o melhor modo é a
transformação, a mudança e não apenas a punição que é incapaz de forma isolada reinserir
diante das novas mudanças culturais.
Conclusão
A dominação masculina sobre o feminino ocorria nas famílias, sendo o homem o
provedor, o viril e a mulher a submissa, mãe e dona de casa, sem vontades, desejos.
Subjulgada aos homens, a mulher recebe a violência no momento em que aceita essa
condição de inferioridade.
Os homens também são vítimas dessa violência de gênero, pois precisam se
manter na postura de macho dominador, provedor, protetor, penetrador. Incapaz de sentir,
devendo ser sempre viril, prover os meios, para que a sociedade demonstrar sua
capacidade de cuidar da sua família. Ele precisa fazer-se homem diante de quaisquer
situações.
E esse homem que violenta, não traz a maldade em si, é o mesmo homem, que
oferece carinho, atenção, é um homem normal (não devemos esquecer, das exceções) que
está em crise, a crise das masculinidades.
A crise das masculinidades é uma expressão da violência doméstica contra a
mulher. O homem ao perder seu lugar no mundo social fica sem certezas, sem padrão
para seguir e sem a “roupagem” utilizada numa sociedade patriarcal em quem o homem,
produto de uma cultura androcêntrica é tido como o ponto de centro das relações sociais
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e agora com a nova postura se tornou mais um coadjuvante pelas transformações
socioculturais.
O homem, autor de violência, agride ao perder o seu lugar, principalmente em
razão do gênero, como se o masculino agora estivesse subjulgado ao feminino, além de
acreditar ser um ataque não à mulher, mas a si próprio. Esse homem em crise encontrase solitário, pela sua formação patriarcal, não se interage com o resto do mundo e não
consegue ver as mulheres crescerem, se desenvolverem sem a participação ou
dependência dele.
Esses homens não são violentos ou agressivos, são homens normais, em crise,
homens comuns. Porém, essa violência doméstica e familiar contra a mulher não pode ser
vista como normal ou um problema familiar, mas sim uma forma cruel de violação dos
direitos humanos e um problema que o Estado deve lidar com seriedade e compromisso
para sua erradicação.
A Lei 11.340/2006, que tem por objetivo combater e prevenir a violência de
gênero, possibilita também um amparo ao homem, pelo caráter pedagógico, em especial
pela mudança de posturas, a fim de deixar essa cultura patriarcal que vige há anos, de
modo que as meninas cresçam em igualdade de direitos e os meninos aprendendo a
respeitar o sexo oposto.
Referências
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o debate. Revista Psicologia Clínica, ISSN 0103-5665, vol. 17, n.2, p. 41-52. Rio de
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POSSIBILIDADES SEXUAIS E DE GÊNERO NO COTIDIANO ESCOLAR: VIVÊNCIAS
EXPERIMENTADAS NO ENFRENTAMENTO DAS NORMAS.
Luan Fernando Schwinn Santos1
Cristiano Figueiredo dos Santos2
Resumo: As questões das sexualidades e gêneros tem conquistado um espaço bastante significativo
no âmbito escolar. A pluralidade de vivências nesses espectros tem gerado diversos debates e ações na
estrutura educacional de nosso país. Exemplos desta situação foram as discussões recentes em torno
da equidade de gênero dentro do Plano Nacional de Educação no Congresso Nacional e, no âmbito
governamental, o veto da presidência da República ao kit anti-homofobia do Ministério da
Educação, menos recentemente mas nem por isso menos emblemático. O cotidiano escolar nos dá a
dimensão da pluralidade sexual e de gênero que presenciamos em nossas relações, mostrando-se
completamente rico para a discussão proposta, não pretendemos aqui gerar “receitas prontas”, porém
mostrar o quanto as normatividades neste ambiente tem criado angústias e desesperos nas identidades, ditas,
desviantes. Enfrentamos, além de um espaço coercitivo no trabalhar sexualidades e gêneros, um discurso
religioso que se mostra evidente na sala de aula por meio das falas de estudantes e que funciona como uma
rede nas relações sociais. Este trabalho é uma convergência de vivências acadêmicas, políticas e pessoais
de duas pessoas que, mesmo de áreas academicamente diferentes, se encontram na educação para
discussão das possibilidades, ou não, de uma sociedade liberta das amarras do patriarcado, da
heteronormatividade e das diversas normatizações de nossos corpos. Para tal, utilizamos de uma pesquisa
bibliográfica sobre os temas centrais: Sexualidade, Gênero e Educação e também de experiências obtidas
meio do PIBID - Psicologia (UFGD) e da prática docente na rede pública municipal de educação, em
Campo Grande – MS, além de outras vivências pessoais e políticas. Objetivamos com este texto mostrar
essas experiências vividas por dois sujeitos que trabalham em função da desconstrução dessas normas.
Partindo dessas experiências gostaríamos de abrir para reflexão questões referentes à educação sexual, que
é um tema fugaz nos currículos escolares e acadêmicos, mostrando alguma(s) possibilidade(s) para essa
educação que abarque a sexualidade e o gênero sem oprimir os diversos nuances dessas identidades.
Palavras chave: Sexualidades, Gêneros e Escola.
Introdução
As questões das sexualidades e gêneros tem conquistado um espaço bastante
significativo no âmbito escolar. A pluralidade de vivências nesses espectros tem gerado
diversos debates e ações na estrutura educacional de nosso país. Exemplos desta situação
foram as discussões recentes em torno da equidade de gênero dentro do Plano Nacional
1
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD); Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à
Docência (PIBID)
2 Universidade Católica Dom Bosco (UCDB)
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de Educação no Congresso Nacional e, no âmbito governamental, o veto da presidência
da República ao kit anti-homofobia do Ministério da Educação, menos recentemente, mas
nem por isso menos emblemático.
A sexualidade humana tem sido no último século alvo de grandes estudos, podemos aqui
colocar que Freud teve grande interesse neste tema e desenvolveu sua teoria em torno
desse eixo, tendo como marco os três ensaios da teoria sexual em 1905, causando um
grande impacto de revoltas às admirações. O assunto sexualidade não foi introduzido por
Freud, mas foi neste autor que a sexualidade passou a ser vista como algo principal e não
secundário, trazendo a tona que a sexualidade está no sujeito desde muito antes da
puberdade, opostamente ao que era colocado (SILVA, 1994). Esta sexualidade é de difícil
conceituação e por ainda ser considerada um tabu é complicada de ser discutida nas
escolas. Partimos aqui de uma educação sexual crítica, ou seja, de uma educação que vá
além do biológico, que ultrapasse uma sexualidade pensada como natural e prédeterminada pelos corpos. Devemos aqui pensar na sexualidade como um dispositivo de
poder, que se entrelaçará com outros dispositivos que farão com que a sexualidade ainda
seja um tabu e que será aprisionada em um corpo junto com dispositivos como: “a
estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação
do conhecimento, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros,
segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder” (FOUCAULT, 1999, p. 100).
Como bem coloca Hall (2006), as identidades se desfragmentaram na pósmodernidade, o que antes tínhamos como sólido e unificado agora temos em uma espécie
de liquidez, de fluidos. Com a identidade afetivo-sexual isso também aconteceu, com os
avanços vindos com o tempo e de novas formas de ser, ocasionada pela globalização e do
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multiculturalismo, essa desfragmentação. Hoje consideramos que não somos um
dualismo homem x mulher, esse processo foi uma conquista política. Porém, como mostra
uma pesquisa realizada em Dourados – MS, por exemplo, vemos que a população LGBT
ainda questiona o quanto esse espaço escolar acompanhou essas mudanças, a pesquisa
aponta que as vivências e sentidos atribuídos negativamente por essa população
encontram lugares, sendo eles a escola, a religião e a família (SANTOS & CURADO,
2014). Esse trabalho acaba reforçando nossas angústias em torno do ambiente escolar e
nos fala que ainda não superamos questões básicas nesse espaço.
Pensando nessa sexualidade Britzman (2010) vai fazer três observações iniciais,
i) Pensar a sexualidade como algo dinâmico e integral à forma que cada um existe e
também como vemos os outros e como eles nos veem. ii) A sexualidade como algo em
movimento, que não segue por completo as regras impostas pela cultura. iii) A
sexualidade em um campo imaginário, permitindo que possamos ser curiosos a ponto de
experimentar de novas vivências e sentidos.
1. Sexualidades, gêneros e a escola
As identidades sexuais e de gênero que são contestadas socialmente são também,
por vezes, apontadas no contexto escolar, como uma forma de reprodução das
discriminações que dissidentes sofrem. Como bem aponta Junqueira (2009b), a escola
está configurada como local de opressão, discriminação e preconceitos, onde existe um
preocupante quadro de violência a que estão submetidos milhões de jovens e adultos
LGBT’s, muitos destes já vivendo, de diferentes maneiras, situações delicadas de
internalização da homofobia, negação, autoculpabilização e auto-aversão. Isso acontece
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com a participação ou omissão da família, da comunidade escolar, da sociedade e do
Estado.
Entre outros prejuízos, podemos apontar que as discriminações por orientação e
identidades de gênero e sexual resultam em privação de direitos de LGBTs. Essa
discriminação afeta-lhes o bem estar subjetivo, incidindo no padrão das relações sociais
entre estudantes e destes com profissionais da educação, interfere nas expectativas quanto
ao sucesso e o rendimento escolar, produzindo intimidação, insegurança, estigmatização,
segregação
e isolamento, estimula a simulação para ocultar a diferença, gerando
desinteresse pela escola, produzindo distorção idade-série, levando ao abandono e evasão
escolar, prejudicando a inserção no mercado de trabalho, ensejando uma visibilidade
distorcida, vulnerabilizando física e psicologicamente, tulmutuando o processo de
configuração e expressão identitária, afetando a construção da autoestima, influenciando
a vida socioafetiva e dificultando a integração das famílias homoparentais e de pais e
mães transgêneros na comunidade escolar, estigmatizando seus/suas filhos(as)
(JUNQUEIRA, 2009b).
Reconhecer o caráter homofóbico (classicista, elitista, racista, sexista etc) do
contexto escolar-educacional “não significa que [esse caráter] deva ser acolhido como
parte banal, natural e aceitável de nossa experiência” (JUNQUEIRA, 2012, p. 60). Vale
ressaltar e que “a mesma escola que cotidianamente ensina sexismo, homofobia,
racismo... também se revela um espaço privilegiado para criticar, problematizar,
desestabilizar seus mecanismos” (JUNQUEIRA, 2012, p 63).
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Se a escola é “um espaço obstinado na produção, reprodução e atualização dos
parâmetros da heteronormatividade3“ (JUNQUEIRA, 2012, p. 61), não são poucos os que,
dentro e fora dela sentem-se confortavelmente legitimados a adotar, de maneira ostensiva,
posições preconceituosas e discriminatórias heterossexistas e homo(lesbotrans)fóbicas,
amparados em uma maior aceitação da expressão de preconceito, discriminação e
violência contra LGBTs (Junqueira, 2009a).
A homofobia é uma consequência de nossa sociedade, como nos coloca Lionço e
Diniz ( 2008, p. 310)
A homofobia é conseqüência da heternormatividade, sendo uma prática de
discriminação baseada na suposição da normalidade da heterossexualidade e
dos estereótipos de gênero. Homofobia é um conceito recente que permite
apreender a permanência da defesa ferrenha ao patriarcado, o que permite
reconhecer a estreita associação da homofobia ao sexismo. O sexismo e a
homofobia emergem como consequência do regime binário da sexualidade
(Borrillo, 2000), essencializando a feminilidade e a masculinidade em
identidades mutuamente excludentes e cerceadoras das possibilidades de
derivação passível de apropriação pessoal, social, cultural e histórica do
feminino e do masculino, por pessoas de ambos os sexos.
Entendemos que as diversas outras formas de preconceito e discriminação
(lesbofobia, bifobia e transfobia) também são causadas por esse regime binário de
sexualidade e gênero. E assim “somos moldados a todo instante pelo modelo nomeado de
hétero-cis-normativo, que é a noção de que há uma normalidade em nossa sociedade, que
dita que sejamos héteros e que também sejamos cisgênero” (SANTOS & CURADO,
2014). Assim, sob normatizações que se fizeram ao longo de nossa história a nível
ontogenético e também filogenético, logo, essas outras formas de ser são significadas a
partir da norma.
3
Compactuamos aqui com o conceito de heteronormatividade adotado por Junqueira (2009b), segundo o
qual por meio da heteronormatividade a heterossexualidade é instituída como única possibilidade legítima
de expressão identitária e sexual.
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Diante desse cenário, não é difícil imaginar porque questionar e enfrentar as
normas, especialmente no que é concernente às possibilidades sexuais e de gênero, no
cotidiano escolar é necessário.
O objetivo principal deste trabalho é discutir, mais do que apontar, possibilidades
de enfrentamento e questionamento das normas de gênero e sexualidades presentes no
cotidiano escolar, através de experiências e relatos dos autores, envolvidos, de alguma
forma, com o contexto escolar.
O cotidiano escolar nos dá a dimensão da pluralidade sexual e de gênero que
presenciamos em nossas relações, mostrando-se completamente rico para a discussão
proposta, não pretendemos aqui gerar “receitas prontas”. Em um cenário que,
majoritariamente, é marcado e permeado por um discurso religioso e por outras formas
de opressões das sexualidades ditas desviantes, procuramos refletir possibilidades de
tornar a educação em sexualidades, envolvendo questões de identidades sexuais e de
gêneros, mais inclusiva e que, da melhor maneira possível, possa abarcar e abraçar os
diversos nuances dessas identidades.
2. Metodologia
Para a constituição deste artigo, buscamos enfatizar nossas experiências e
memórias, de forma à utilizar o subjetivo e interno como componentes principais do texto.
Entretanto, como não poderíamos deixar de observar, buscamos refletir nossas análises e
considerações perpassando ancoramento teórico e bibliográfico em autores a autoras que,
sob nossos olhares, tratam da questão das diversidades sexuais e de gênero no campo
educacional de forma que nos permitam a concordância.
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Evidentemente, quando nos propomos a ponderar sobre opressões, angústias e
desesperos que as normas causam, partimos de nossos próprios olhares e nossas próprias
interpretações sobre as circunstâncias de que falamos. Explicitar experiências vividas é,
antes de tudo, falar de si mesmo.
Entretanto, para tentar apontar algumas possibilidades de vivências, retornamos à
ancoragem teórica de autores e autoras que já tiveram um trato sobre a questão. Desta
forma, buscamos reforçar o caráter pessoal do ponto de vista dos relatos em consonância
com o entrelaçamento de destacados nomes do cenário acadêmico.
Por não pretender gerar “receitas prontas”, deixamos claro que nosso intento é
mostrar o quanto as normatividades neste ambiente tem criado angústias e desesperos nas
identidades, ditas, desviantes. Enfrentamos, além de um espaço coercitivo no trabalhar
sexualidades e gêneros, um discurso religioso que se mostra evidente na sala de aula por
meio das falas de estudantes e que funcionam como uma rede nas relações sociais.
Os relatos partem de experiências vivenciadas a partir do PIBID Psicologia
(UFGD) e da prática docente na rede pública municipal de educação, em Campo Grande,
MS. Por uma questão de preservação dos(as) profissionais e instituições envolvidas(os)
nos relatos, não citaremos nomes de pessoas e lugares.
3. Vivências marcantes de sujeitos desviantes
3.1 rede municipal de ensino de campo grande, ms.
O sujeito “a” é professor da rede municipal de ensino de Campo Grande, MS, e
atua como professor de ciências lotado no laboratório de ensino de ciências e, por esta
razão, atendendo estudantes da pré-escola ao nono ano do ensino fundamental.
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No agir pedagógico, por atuar como um professor que não rege as turmas e sim
algumas aulas para as turmas, tem possibilidade de contato com diversos(as)
professores(as) que lecionam ciências ou não, lidando, portanto, com profissionais das
mais variadas formações.
Parto da própria diversidade de formação de profissionais para chegar na
diversidade de abordagens, por estes profissionais, que o tema “sexualidade” tem me
permitido observar e isso inclui desde professores(as) que tratam da questão com muita
franqueza e abertura até àqueles(as) que, em uma aula de cuidados com o corpo para
crianças da pré-escola, se impressionam com o fato de que algumas bonecas,
diferentemente da maioria de antigamente, incorporam uma genitália à representação do
corpo. Pretendo aqui, com este exemplo, ilustrar a variedade de profissionais que
podemos encontrar em um mesmo contexto escolar.
Feito este primeiro apontamento, apresento X situações que considerei ilustrativas
para um quadro que, em se tratando de sexualidade no contexto escolar, não se esgotaria
em um único artigo.
É fácil notar como a homofobia é presente no cotidiano escolar. Trato
especificamente da homofobia porque, me parece, que diferentemente da lesbofobia e da
transfobia, esta é a forma de fobia mais presente no ensino fundamental, recaindo
especialmente sobre meninos que fogem aos padrões normativos. Viado e viadinho são,
à minha percepção, vocábulos muito mais comuns do que sapatão ou macho-fêmea, por
exemplo.
Entretanto, e apesar disto, a homofobia não está presente cotidianamente na escola
somente entre o alunado. Se entre estes é desejável que seja suprimida, é angustiante notar
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que ela também está presente, entre outros, no corpo docente. Elenco uma situação
presenciada que ilustra como a homofobia está atrelada à expressões e normas de gênero.
Ao saírem do laboratório, geralmente, as crianças fazem fila, especialmente as da préescola e anos iniciais do ensino fundamental. Em uma dessas situações, um aluno da préescola, já estando enfileirado, começou a dançar. A professora, ao perceber o menino
“rebolando”, reprimiu-o veementemente, apelando à uma norma de gênero: “Fulano, para
de dançar na fila. Para de ficar rebolando. Tá parecendo uma mulherzinha. Você quer
ficar parecendo mulherzinha? Parece que sim...”. Ora, existem muitas implicações nessa
situação. O fato de que a dança não é exclusiva à nenhum gênero. O fato de que rebolar
faz mesmo parte de muitas danças. O fato de que, nessa lógica, parecer uma mulher é
algo ruim.
Como bem aponta Junqueira (2009a), é uma caso clássico da relação entre
homofobia e normas de gênero, segundo a qual a homofobia “pode comportar
consequências drásticas a qualquer pessoa que ouse descumprir preceitos socialmente
impostos sobre o que significa ser homem e ser mulher”.
A partir deste entendimento, é importante observar que a matriz a partir da qual
se constroem preconceitos e se desencadeiam discriminações homofóbicas é a
mesma em que se estrutura o campo de disputas em que se definem
socialmente o masculino (e as masculinidades), o feminino (e as
feminilidades), como também o neutro, o ambíguo ou o fronteiriço. A íntima
relação entre homofobia e normas de gênero tanto se traduz em noções,
crenças, valores, expectativas, quanto em atitudes, edificação de hierarquias
opressivas e mecanismos reguladores discriminatórios bastante amplos
(Junqueira, 2009a).
Interessante notar que, como anteriormente exposto, me parece que essa pressão
normativa é impressionantemente maior para meninos, no que sou amparado pelas
reflexões de Junqueira (2009c)
Os processos de constituição de sujeitos e de produção de identidades
heterossexuais resultam e alimentam a homofobia e a misoginia. Para que
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garotos mereçam suas identidades masculinas e heterossexuais, precisam
mostrar continuamente que não possuem características relacionadas à
feminilidade e a homossexualidade. Para eles, o “outro” passa a ser
principalmente as mulheres e os gays. A construção da masculinidade para
meninos e homens, na escola ou fora dela, envolve ser cauteloso na expressão
de intimidade com outros homens, a contenção da camaradagem e das
manifestações de apreço ou afeto, e somente se valer de gestos,
comportamentos e ideias autorizados para o “macho”. O silêncio masculino
acerca dos afetos e das emoções, como um território não explorado é, muitas
vezes, causador de atitudes e de comportamentos ligados à violência, à cultura
do risco e da coerção. Qualquer enternecimento ou preocupação com a
segurança podem ser vistos como atributos desvirilizantes (JUNQUEIRA,
2009c).
Nesse sentido proponho que combater o machismo no ambiente escolar pode ser
uma via interessante no fortalecimento das resistências às opressões de gênero e
identidades sexuais.
Outra proposta que, sabendo não ser possível para todos(as), ainda me atrevo à
apontar é tratar abertamente da orientação sexual, no caso de docentes LGBTs. Assim
que cheguei na escola tive a oportunidade de poder conversar com os coordenadores do
ensino fundamental e, num clima ainda de recepção, me indagaram, descontraidamente,
se eu tinha namorada. “Não, tenho namorado”, foi minha resposta. Risos nervosos
seguiram-se na sala e, após isto, um “ah, tudo bem professor. nós já tivemos casos de
professores que trouxeram seus parceiros em nossas festas de professores aqui na escola”.
Conclui com “Tudo bem mesmo. Eu não tenho problemas com isso. Quem tem são os
outros”.
Acredito que a situação colocou claramente meu posicionamento sobre o “orgulho
gay” e evitou problemas futuros de ter que ouvir ou presenciar piadas e situações
homofóbicas. Pelo menos quando estou perto. Com o passar do tempo, a situação de ser
declaradamente gay estendeu-se também às (aos) estudantes, que tiveram reações
diversas, entretanto nunca negativas.
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Sugiro esta franqueza para tratar das identidades que fogem à norma porque
acredito que esta visibilidade seja positiva do ponto de vista das diversidades sexuais
ensejadas no imaginário estudantil dos(as) profissionais da educação.
Dessa forma, vislumbro a possibilidade de transgredir a busca da sociedade por
fixar uma identidade masculina ou feminina “normal e duradoura”. Quebramos, de uma
vez só a “importante e difícil tarefa” que a escola tem para tratar a sexualidade, como
uma das instituições de investimento na fixação das sexualidades: “de um lado, incentivar
a sexualidade ‘normal’ e, de outro, simultaneamente, contê-la” (LOURO, 2000).
3.2 PIBID-psicologia de dourados, ms.
As experiências do sujeito “b” no ambiente escolar se deram através do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, esse programa é um incentivo e uma
possibilidade de inserção na escola antes do ser professor, fazendo com que acadêmicos
experienciem esse fazer-se ainda em formação da licenciatura. Esse trabalho se
desenvolve com encontros sobre os “temas transversais” apontados nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998). Como técnica utilizamos dos grupos operativos
proposto por Pichon-Rivière (2006) e discutido também em Bleger (2007) com o objetivo
de levar temas do cotidiano para esses estudantes debaterem e pensarem sobre assuntos
presentes em suas vidas mas pouco discutidos no espaço escolar, como ética, sexualidade,
gênero, escolhas profissionais, consumismo e diversos outros temas ligados a esses
parâmetros.
Como vivência desse sujeito b, citamos aqui dois módulos de “Orientação Sexual”
que aqui coloco com o nome de “Educação Sexual” desenvolvidos em duas escolas de
Dourados-MS, sendo uma estadual e outra municipal. Estes módulos tiveram como
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agentes conservadores os/as próprios/as estudantes (2º ano do Ensino Médio do Ensino
Regular e 3ª fase do Ensino de Jovens e Adultos), ao levar discussões em torno do
casamento e adoção homoafetiva a resistência se deu por um discurso fortemente
construído em torno da religiosidade desses acadêmicos, fortalecendo a ideia de
Natividade e Oliveira (2009, p. 132) da “homofobia religiosa”, que “envolve formas de
atuação em rede em oposição à visibilidade e ao reconhecimento das minorias sexuais”.
Essa resistência se manteve durante todo o debate e uma das possibilidades encontrada
em sala de aula foi de direcionar o debate para um aspecto legal e não moral, construído
em torno dos direitos dessa população e não de crenças e “opiniões” (sic).
Outro ponto interessante deste tempo em meio ao ambiente escolar é a insistência
de trabalhar com a educação sexual crítica, o que faz com que comumente nos perguntem
por que tamanha persistência em levar esse módulo as/os estudantes. Como forma de
responder aos questionamentos da gestão destas escolas nos ancoramos na própria
vontade das/os estudantes, pois, para nos protegermos do conservadorismo possível
questionávamos esses/as estudantes sobre quais temas queriam conhecer e sempre
apontavam a orientação sexual como principal tema, o que nos reforça a importância da
educação sexual na construção desses sujeitos sociais. Sayão (1997) irá nos apontar uma
possível causa dessas indagações, ela vai nos dizer que os/as professores/as sentem-se
incomodados/as em discutir esta temática, e isso vai imbricar de vários motivos subjetivos
a esses sujeitos, e quando trabalhada em sala é colocada sem diálogo, não estabelecendo
confiança e com aspectos morais ou religiosos. Louro (2007) destaca que esses/as
docentes encaram o debate sobre sexualidade de forma nula, ou seja, não o trabalham,
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pois acreditam que se deixar fora das discussões em sala, a sexualidade ficará fora do
ambiente escolar.
Considerações finais
Partindo dessas experiências apresentadas gostaríamos de abrir para reflexão
questões referentes à educação sexual, que é um tema fugaz nos currículos escolares e
acadêmicos, mostrando alguma(s) possibilidade(s) para essa educação que abarque a
sexualidade e o gênero sem oprimir os diversos nuances dessas identidades.
Devemos construir, e essa é uma reflexão feita a partir de todas as vivências aqui
expostas, um espaço escolar que abarque todos os sujeitos sociais, que não vangloriemos
um modelo hétero e cisgênero, pois esse mesmo modelo tem agredido de diversas formas
crianças e adolescentes no ambiente escolar. Sabemos que essa tarefa não é fácil, que não
mudaremos essa colocação de poderes de uma hora pra outra e muito menos
conseguiremos sozinhos. Mas é por vivências contra-hegemônicas e que fogem às regras
que poderemos construir possibilidades de ser e estar no mundo, melhores que as nos são
impostas.
Entretanto, essa construção deve partir de preceitos técnicos e científicos, o que
não tem acontecido. Percebemos em nossa experiência escolar que diversas vezes o
espaço construído na escola para as questões de gêneros e das sexualidades tem sido
idealizado em bases morais e religiosas dos agentes institucionais desses espaços. A
escola não deve ter o papel de adestrar (FOUCAULT, 2003), mas de contemplar a
diversidade que há ali presente possibilitando um crescimento pessoal para desses sujeitos
que circulam nela.
Referências
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“QUEM TEM MEDO DAS MINORIAS?” A IMPRENSA GAY E O MOVIMENTO DE
AFIRMAÇÃO HOMOSSEXUAL NO BRASIL (1978-1981)
Victor Hugo da Silva Gomes Mariusso1
Resumo: O nosso objetivo por meio deste trabalho é analisar como se deu a formação do movimento de
afirmação homossexual no Brasil por meio da imprensa gay, representada aqui pele periódico Lampião da
Esquina. Não obstante, é possível observar no jornal outras vozes que ecoavam no período de sua circulação
(1978-1981). Desta forma, conseguimos perceber além desse surgimento, as nuances que cercavam as
discussões em torno das sexualidades fora da norma, o que contribui para analisarmos a história do
movimento e da imprensa gay no Brasil e seu papel social.
Palavras-Chave: Representações. Sexualidades. Mídia Impressa.
Um breve contexto
Antes da constituição da imprensa gay e do movimento de afirmação homossexual
no Brasil é preciso destacar de forma breve alguns contextos históricos que contribuíram
para isso. Se pensarmos a partir do terceiro quarto do século XIX na Europa, em que se
havia ali uma tentativa de se confundir a compreensão da homossexualidade,
direcionando-a fatores genéticos, e assim buscando-se curas. Porém, um médico alemão
– de pseudônimo K.M – fazia estudos na tentativa de mostrar que não se tratava de algo
biológico, e muito menos patológico. Essa foi uma das primeiras manifestações que
dariam início ao movimento de gays e lésbicas pelo mundo.
Podemos destacar também as chamadas organizações homófilas do início do
século XX nos Estados Unidos. Organizados contra uma rede de opressão médica legal a
partir de 1924, grupos de homossexuais nos Estados Unidos fundaram essa organizações.
Foram as primeiras voltadas política e socialmente para a melhoria das condições de vida
de gays e lésbicas, perdurando até as décadas de 1950 e 1960. Tais organizações também
foram fundadas na Europa, notadamente na França. Em seguida, um dos casos mais
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conhecidos e apresentados em relação ao que viria ser um marco na história do
movimento gay no mundo, a Batalha de Stonewall Inn2.
A imprensa gay apareceria entre essas “ondas”, não como uma ferramenta de
apoio direto ao movimento, mas que se constituíam juntos. A revista One, por exemplo,
foi lançada em 1953 nos Estados Unidos, sendo referência para um estudo sobre a
imprensa no Ocidente. Outro exemplo, o primeiro jornal gay dos Estados Unidos e a
publicação de vida mais longa da imprensa gay americana, o Advocate foi lançado em
1967 em Los Angeles, tornando-se em 1974, revista quinzenal. Ambas assumiam uma
postura com gráficos coloridos, muita imagem, textos voltados à cultura e ao lazer, bem
como fotos de nudez frontal. Comportavam-se em busca de uma visibilidade positiva aos
homossexuais, bem como direito ao consumo e ao prazer.
Da imprensa gay ao movimento.
Já no Brasil, o movimento homossexual se oficializaria quase dez anos depois do
ataque ao bar Stonewall Inn, com a criação do primeiro grupo de afirmação homossexual,
o grupo Somos de São Paulo. A imprensa gay a circular por todo o país se constituiria
alguns meses antes do grupo, com o jornal Lampião da Esquina (1978-1981). Antes disso
de 1963 até 1969, circulou no Rio de Janeiro o jornal Snob de Agildo Guimarães e Anuar
Farah, mimeografado e para um pequeno grupo de pessoas. Entre as décadas de 1960 e
1970 vários pequenos periódicos circularam no Brasil, alguns feitos a mão e outros
fotocopiados, alguns com apenas um número publicado, outros perdurando por mais um
tempo, como o caso do Snob. Agildo Guimarães e Anuar Farah foram responsáveis
também pela criação da Associação Brasileira de Imprensa Gay, que existiu entre 1962 e
1964.
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Lampião da Esquina teve seu primeiro número publicado em abril de 1978,
(edição experimental), saindo nessa oportunidade com o nome Lampião. Fruto da ideia
de alguns intelectuais brasileiros que na tentativa fracassada de uma antologia de
literatura homossexual Latino Americana, criaram em fins de 1977 o projeto de um jornal
feito por e para homossexuais, e que iria não só tratar das questões ligadas às
sexualidades, mas também a todas as “minorias”3 que sofriam com a repressão da
sociedade da época. Preencheriam os cargos de editores do jornal em sua primeira edição:
Aguinaldo Silva (diretor de coordenação), João Silvério Trevisan, Adão Acosta, João
Antônio Mascarenhas, Darcy Penteado, Antônio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Peter
Fry, Gasparino Damata, Jean-Claude Bernadet e Francisco Bittencourt.
Os editores do jornal trabalharam e destacaram na medida do possível a violência
sofrida por aqueles que denominavam “minorias”, e aqui, no sentido de visibilidade social
no que diz respeito aos direitos negados e os tratamentos diferenciados por não adequarem
a norma heterossexual vigente.
O discurso médico e religioso, apoiado também no Estado em suas ações policiais
e que servem como justificativa histórica para as formas de repressão e exclusão dos
homossexuais, por exemplo, não deixou de ser apontado e criticado pelos editores.
Sociedade, Estado e imprensa estiveram presentes e constituíram as representações do
periódico sobre a época, o que possibilita percebermos a forma que se deu não só a
constituição de uma imprensa gay no país, bem como o surgimento de “movimentos
minoritários”, e aqui no caso o movimento homossexual. Lampião veio significar uma
ruptura segundo um de seus editores e futuro fundador do primeiro grupo de afirmação
homossexual no Brasil. 4
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O período de surgimento e fim do Lampião da Esquina é marcado pelo declínio
da ditadura militar para uma possível abertura política. Em 1974 ao assumir o posto de
presidente do Brasil, Ernesto Geisel prometeu esse caminho de forma lenta e gradual,
discurso que o seu sucessor João Baptista Figueiredo iria manter. A anistia instaurada em
1979, o “fim” da censura, e a revogação do AI-5, contribuíram para o surgimento e a volta
de alguns personagens, que traziam com eles vivências que haviam absorvido em sua
temporada longe do país. Segundo João Silvério Trevisan:
Em 1978, grupos e mulheres, ainda muito sufocadas pelo alinhamento
partidário de esquerda, começavam timidamente a incursionar por temas
sacrílegos como sexualidade e aborto, já dentro de uma orientação
crescentemente feminista. [...] Também os negros iniciavam as primeiras
investidas para discutir o racismo, cultura e organização da população negra,
fora do círculo de ferro dos partidos e centralismo da velha esquerda. Ao
mesmo tempo, alguns sérios desastres ecológicos [...] começaram a
impulsionar diversos núcleos de ativismo ecológico. Um pouco ás tontas, a
esquerda ortodoxa enfiava tudo isso dentro do rótulo vago e finalmente
depreciativo de “lutas das minorias”. 5
O surgimento dessas vozes e suas reivindicações expostas em um jornal naquele
período possibilita percebermos como a luta pelo direito ao prazer, ao desejo, ao seu
próprio corpo, não tinha significância para alguns outros grupos políticos presentes ali.
De um lado, para a direita, essas questões ameaçavam e ao mesmo tempo “desrespeitavam
a sagrada família”, já para esquerda não passavam de resquícios burgueses. A luta pelo
direito a vida, ao desejo e ao prazer eram vistas como questões secundárias (bem como
nos dias de hoje), pois não ameaçavam os interesses econômicos e políticos do Estado.
Porém percebe-se que mesmo parecendo não perturbar, o Estado tomava atitudes que
visavam respaldar a sociedade preconceituosa que o constituía. Analisaremos algumas
matérias que tratavam desse movimento por meio das páginas do Lampião, ao mesmo
tempo em que perceberemos o surgimento do grupo Somos-SP, e de outros que ali se
destacariam.
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Em sua primeira edição a maneira irônica e sarcástica do jornal começava a ser
desenhada e foi aqui que apresentavam a noção dos seus editores sobre “minorias”. Em
crítica a decisão da Unesco ao proclamar a Declaração Universal dos Direitos do Animal,
durante uma reunião em Bruxelas (1978), o periódico ironizava a preocupação e o
direcionamento de direitos voltados aos animais, enquanto em várias partes do mundo, os
homens não conseguiam respeitar a Declaração Universal dos seus próprios direitos.
Segundo o impresso, já era um ponto de partida para os animais se tornarem a mais
exótica de todas as “minorias”, ou seja, “um grupo sobre o qual a sociedade repressiva
mantém seus tacões, mesmo que ele não seja minoritário, como as mulheres, por exemplo,
a ver levantada a bandeira da luta par seus direitos”. 6
Sentindo-se participantes dessas lutas e da busca para que as diferenças não se
tornassem motivos de desigualdade, Lampião da Esquina direcionava-se as suas críticas
as esferas mais conservadoras da sociedade, indagando suas formas de fazer política e de
tratamento com o sujeito. Afinal, parecia que além de insignificante para alguns, as
homossexualidades para outros traziam medo. Perguntava-se João Silvério sobre a
semana de Convergência Socialista em São Paulo: Estão querendo convergir. Para onde? 7
A palavra homossexual foi pronunciada uma única vez, segundo Trevisan.
Enquanto no Brasil o movimento homossexual desenhava-se e algumas questões
eram cobradas no que tange o seu reconhecimento8, na América do Norte as ruas eram
tomadas. Em junho de 1978 houve a maior concentração homossexual de toda a história
americana. A Semana do Orgulho Gay de São Francisco, realizada de 14 a 25 de junho
reuniu cerca de 240 mil pessoas, numa manifestação que, de acordo com o programa
oficial da Semana, serviu para marcar o Dia da Liberdade Gay americana. 9
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Ao mesmo tempo, assistia-se no Brasil “os negros caminhando ás ruas”,
congregando talvez um ato inédito em São Paulo naquela época, um protesto público
contra a discriminação racial. A reclamação partia após a morte de um rapaz negro
torturado numa dependência policial e a discriminação contra quatro atletas negros no
tradicional Clube Tietê da cidade. Isso foi possível segundo Lampião da Esquina, porque
aquelas entidades finalmente se uniram, “criando o Movimento Negro Unificado contra
a Discriminação Racial, que agora orientará a luta daquela comunidade contra a
discriminação. Cerca de três mil pessoas participaram do ato público nas escadarias do
Teatro Municipal, em São Paulo”. 10
O jornal começaria a expor os movimentos que ali estavam presentes no Brasil,
porém sem deixar de expor algum comentário ou crítica a eles. A construção do
movimento de afirmação homossexual que se daria com a fundação do Grupo Somos de
São Paulo em outubro de 1978
11
foi propulsionada por essa conjuntura e indiretamente
ou não pelo Lampião da Esquina, ao servir de “inspiração” para a visibilidade sobre as
questões das homossexualidades e de outros sujeitos. A ideia do Grupo Somos segundo
um dos seus principais idealizadores e editor do Lampião da Esquina, João Silvério
Trevisan, era:
Queríamos propositalmente deixar de lado as histéricas e estéreis discussões
políticas onde se programava a revolução do outro, o que significava que,
desde o início, estávamos preocupados em não mais separar as esferas públicas
e privada, o crescimento da consciência individual e a transformação social.
[...] Começamos a pensar, de início timidamente, no prazer como um direito
legítimo de qualquer cidadão; especialmente em se tratando de um país de
grande pobreza como o Brasil, queríamos crer que a miséria não neutralizava
a alegria. [...] Mesmo às tontas, o então incipiente grupo buscava contestar a
própria questão do poder, ciente e que nossa sexualidade (nossa terra de
ninguém) estava sofrendo um controle social inerente a qualquer forma de
poder disputado e conquistado. Para um período que ainda obedecia aos ecos
da revolução de estilo comunista, tal proposta soava muito atrevida, quando
vinda de companheiros esquerdistas, pois contestava a legitimidade das
autodenominadas vanguardas de esquerda tomarem o poder “em nome do
povo”. 12
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O Somos futuramente iria existir também no Rio de Janeiro, perdurando por quase
três anos e meio. No início chamou-se Núcleo de Ação pelos Direitos dos Homossexuais.
Associado a uma “proposta política” o nome foi mudado para Somos, em homenagem a
uma publicação do movimento homossexual argentino (1971 e 1976). Somos: Grupo de
Afirmação Homossexual passou a ser o nome oficial.
Percebemos como os movimentos foram se dando. O Lampião não era só uma
ferramenta da mídia, era também, acima de tudo, um grupo de pessoas preocupadas com
tais questões. Há o pensamento de que talvez por serem intelectuais burgueses “sentados
em suas poltronas” não sofressem da repressão daquele período, e isso pode ser visto na
carta de alguns leitores. Porém, a questão não é essa. E sim pensar que um periódico
assumiu a postura de além de informar, se colocar como pertencente ao que se passava
naquele contexto histórico.
Iniciava-se uma relação de “minorias e política”. As mulheres também se
posicionaram. Em São Paulo, por exemplo, foi lançada a Carta dos Direitos da Mulher,
elaborada em conjunto por alguns grupos feministas organizados (jornais Nós Mulheres
e Brasil Mulher, Centro de Desenvolvimento Mulher Brasileira, Grupo de Mulheres da
Zona Norte) e mais de uma dezena de feministas independentes. Pretendeu-se segundo
Trevisan, discutir a carta com outros grupos, a fim de buscar um programa comum, quase
uma frente ampla entre as e (os) feministas brasileiras (os).13
Essa busca de direitos voltados não só para as questões trabalhistas, mas
direcionadas ao corpo, foi posta pelo jornal Lampião da Esquina, e dividida de forma
irônica e crítica. Segundo eles, havia uma chamada luta maior e uma luta menor.
Frisavam que essa separação partia das questões ligadas aos movimentos que se
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direcionava para as lutas políticas ou econômicas, no qual tratariam suas questões como
algo mais importante, perante as outras causas no que tange ao desejo, por exemplo.
Porém, não havia uma causa menor ou maior que a outra, e sim uma “hierarquização de
anseios” que tentavam legitimar vontades e excluir outras.
Quem é esse povo que está nas ruas?14, perguntava-se Francisco Bittencourt na
edição de Março de 1979. Esse número iria se destacar pela fala de alguns editores do
jornal sobre o aqui acontecia no Brasil no que diz respeito aos sujeitos que buscavam um
tratamento de igualdade no que tange os seus direitos. Em fevereiro daquele ano algo
inédito acontecia no país. Um congresso que iria debater as questões sobre as minorias,
marcando os movimentos que ali se iniciavam.
A Universidade de São Paulo, organizadora do congresso, recebeu em seu
auditório, negros, mulheres e homossexuais a “apregoar que a felicidade também deve
ser ampla e irrestrita (os índios, infelizmente ausentes, foram representados pelos seus
procuradores habituais - os antropólogos da boa escola)”
15
. Dois editores do Lampião
estiveram presentes, e segundo eles, as “minorias” não estavam mais a fim de continuar
sendo o último vagão do enorme comboio denominado luta maior. A mesa era composta
por seis componentes: João Silvério Trevisan e Darcy Penteado, representando Lampião
da Esquina; três integrantes do grupo Somos e ainda o poeta homossexual Roberto Piva.
Durante três horas, cerca de 300 pessoas debateram vários assuntos.
Esta reunião foi uma série de surpresas para todo mundo: para os
homossexuais, houve a novidade do convite á participação na discussão, o que
talvez torne essa data de 8 de fevereiro histórica. Afinal, não se tem lembrança
de um debate tão livre e polémico sobre um assunto que as autoridades
policiais e grande parte da sociedade brasileira ainda consideram tabu. Depois,
teve o choque do plenário e até de integrantes dos outros grupos minoritários
convidados (negros, mulheres e índios) que nunca tinham ouvido falar dessa
nova militância guei e perguntavam- se perplexos como podiam estar
desinformados a respeito e os objetivos de tudo isso. 16
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Havia a tentativa de enquadrar o movimento gay na ótica da esquerda: “Eu vou
dizer agora o que metade desse auditório esta sequiosa para ouvir. Vocês querem saber
se o movimento guei é de esquerda, de direita ou de centro não é?”
17
alguém disse no
plenário. “Pois fiquem sabendo que os homossexuais estão conscientes de que para a
direita constituem um atentado à moral e à estabilidade da família, base da sociedade.
Para os esquerdistas, somos um resultado da decadência burguesa” 18. E concluía sobre o
objetivo do movimento era a busca da felicidade: “é claro que nós vamos lutar pelas
liberdades democráticas. Mas isso sem um engajamento específico, um alinhamento
automático com grupos da chamada vanguarda” 19.
As discussões esquentaram e as acusações e os preconceitos começavam a
aparecer. Uma aluna da USP, por exemplo, informava ao plenário sobre a existência de
um trabalho preparado pela Escola de Comunicação e Artes da USP, intitulado “A
ausência do homossexualismo na classe operária”. A fala foi recebida como piada
segundo o jornal.
Não adianta querer envolver a nossa problemática em termos de politica. Tratase de um problema específico, que atinge a um determinado número de pessoas
de características diferenciadas. Eu, particularmente, acho que é muito mais
válido mostrar para aquele pessoal pintosos, as bonecas da zona boêmia, a sua
condição de homossexual, a opressão que os atinge diretamente, do que chegar
até eles com papos culturais e politizados sobre os movimentos de
emancipação do proletariado. Ê lógico que muitos homossexuais já têm uma
posição política definida, e já devem estar engajados nessa luta mais ampla.
Mas acredito que, nesse momento, a ação política mais consequente é mostrar
à imensa maioria dos homossexuais o estado de alienação em que eles estão, e
mostrar isso como um igual, nunca como um intelectualzinho com o rabo cheio
de cultura, mas como um ser com o mesmo tipo de problema e necessidade de
libertação. [...] O problema de qualquer revolução é saber quem vai lavar a
louça depois [...] A Igreja também precisa acabar com esse negócio de ficar
jogando água benta no.. *.. dos homossexuais. 20
O trecho é do mesmo rapaz da plateia, indignado com essa necessidade de
encaixar e classificar os sujeitos e seus lugares de fala. Para ele era tão simples as vontades
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ali expressas que a necessidade de enquadrar suava um tanto quanto irônica perto de
tamanha vontade do direito pleno ao desejo, ao prazer e ao corpo. Ali também o Grupo
Somos, “saiu praticamente da casca com essa primeira oportunidade de vir à luz.” 21
A conclusão geral foi de que a marcha pela liberdade - social, racial, sexual – era uma só.
Os primeiros passos....
João Silvério Trevisan comentaria o evento, e faria a pergunta que contorna este trabalho,
afinal, Quem tem medo das “minorias”. Partiremos de sua fala para analisarmos o
surgimento desse movimento para que percebamos o seu desenrolar e sua extinção
naquela conjuntura. Segundo Trevisan, naquela noite no auditório da USP, sem dúvida, a
afirmação dos discriminados atingiu seu ápice, quando os homossexuais manifestaram
publicamente sua identidade de grupo social, rompendo a barreira da invisibilidade a que
são obrigados. Na verdade, pela primeira vez no Brasil “as lésbicas e as bichas tomaram
seu espaço e vomitaram coisas há muito engasgadas; o prazer, por exemplo, foi
reivindicado entre os direitos da pessoa humana, com alusões concretas inclusive ao
prazer anal corno direito de cada um sobre o próprio corpo”
22
. A divisão luta maior x
luta menor era posta mais uma vez aqui.
Ficou evidente já desde o primeiro dia a polarização política dos debates: de
um lado, grupos de estudantes e profissionais brancos professando sua
fidelidade à luta de classes, na linha tradicional da esquerda ortodoxa, que dá
prioridade ao fenômeno econômico. E de outro lado, os representantes de
grupos discriminados afirmando a originalidade de sua problemática, de suas
criticas e suas análises, absolutamente não abrangidas na luta de classes mas
nem por isso menos transformadoras da sociedade. Dois métodos de análise se
chocaram, com certeza. 23
Apresentaram seus pontos de vista os grupos discriminados, recusando-se a
aceitarem suas lutas como “secundária”. Os negros, por exemplo, (reunidos no
Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial) exigiram um espaço a si
próprio e “às análises específicas de sua problemática, na medida em que sua
autodeterminação ideológica e sua identificação racial/cultural significam elementos
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primordiais no enfrentamento ao racismo”
24
. Os mesmos receberam insistentes
acusações de divisionismos. Mas nem por isso deixaram de falar.
Os representantes da esquerda, segundo Trevisan, foram abandonando o saguão à
medida que sentiam a determinação dos negros em não se enquadrar nas análises prontas
que pretendiam diluir sua luta. “Não duvido que a recusa em dialogar com os negros
enquanto negros já implicava, ali, numa atitude discriminatória básica; pode-se dizer que
houve, ao vivo, testemunhos eloquentes (e inadvertidos) de racismo por parte de setores
brancos esquerdistas”. 25
Acreditava-se que os setores da esquerda tradicional sofreram um avanço
considerável na compreensão da realidade brasileira da época. Os grupos discriminados,
ao mesmo tempo, avançavam politicamente. Ficou claro, parafraseando João Silvério
Trevisan, que as maiorias não existem senão enquanto abstrações manipuladas pelos
detentores do poder. “A ‘maioria’ está sempre composta de inumeráveis e contraditórias
minorias cujos problemas reportam-se ás individualidades que são sempre - e felizmente
- particulares e irrepetíveis”26.
Assim sendo, “a contribuição mais original que os grupos discriminados podem
trazer para uma transformação social é exatamente essa afirmação das especificidades
individuais e grupais, contra todas as tentativas de mascarar e negar as diferenças”27.
Propõem assim também uma crítica inclusive aos setores denominados progressistas, bem
como ao autoritarismo desses setores. “Ou se aceita o potencial contestador dos grupos
discriminados ou historicamente este país estará vivendo mais um equívoco. Não convém a gente
esperar a revolução para começar a lavar os pratos. Isso em si já significa uma aceleração do
processo transformador”. 28
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Por fim, devido ao espaço destino para essa discussão, apresentaremos de forma
breve algumas reportagens que contribuem para analisarmos as práticas daquele período
no que tange ao movimento de afirmação homossexual, não obstante, as ações dos outros
movimentos “minoritários” também serão discutidas e apresentadas. No que diz respeito
ás mulheres podemos destacar: O Encontro Nacional de Mulheres no Rio de Janeiro,
realizado pelo Centro da Mulher Brasileira do Rio, que aconteceu no dia 8 de março de
1979. 29
No mesmo mês em São Paulo, era realizado o lº Congresso da Mulher Paulista,
no Teatro Ruth Escobar nos dias 3, 4 e 8 de março, comemorando o Dia Internacional da
Mulher, tornando-se um marco na organização de mulheres pertencentes a diversas faixas
sociais. “Participaram por volta de 600 mulheres - donas-de-casa da periferia,
metalúrgicas, bancárias, técnicas, profissionais - todas juntas, debatendo em grupo
elegeram os objetivos de luta”30. Esta edição do jornal Lampião foi escrita por mulheres,
mostrando a liberdade que havia caso elas quisessem escrever também em um jornal
homossexual 31. Pela primeira vez na história do país um grupo de mulheres se reunia para
falar e escrever acerca de sua homossexualidade. 32
Sobre o movimento dos negros no Brasil presente nas páginas do jornal podemos
destacar a entrevista de Abdias Nascimento falando da situação daquele movimento no
país na época e suas perspectivas para o futuro, no qual situava com destaque o
movimento quilombista que pretendia lançar
33
. Para além das páginas do jornal, os
negros iam também as ruas. Em outubro de 1979 cerca de 500 homens e mulheres do
Movimento Negro Unificado saíram da Praça Ramos Azevedo em São Paulo com faixas
como, “o negro unido jamais será vencido”, era a visibilidade da luta contra a
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discriminação racial no país. Era a terceira vez em pouco mais de um ano que os negros
saiam ás ruas em São Paulo, pois entendiam que não viviam exatamente no decanto do
paraíso racial. O protesto estava dirigido contra a Instituição Judicial que tinha se
recusado a encaminhar um processo por discriminação racial, movido pela advogada
negra Nair Silveira, em base na Lei Afonso Arinos. 34
Para finalizarmos a análise sobre as maneiras com a qual eram representados os
movimentos das “minorias” no Brasil, trataremos do que diz respeito aos grupos que
voltaram suas discussões para homossexualidade. Comecemos com o primeiro, o Grupo
Somos-SP. João Silvério Trevisan abandonaria o grupo após alguns meses de sua
fundação, por não concordar de alguns pensamentos e posturas. Lampião da Esquina
publicaria uma entrevista com alguns membros do grupo, o que contribui para
percebermos a maneira como ele se constituía.
Hamilton - A única posição política definida no grupo é que nós
realmente propomos uma sociedade onde as pessoas sejam igualitárias,
principalmente quanto à sua sexualidade, isto é, onde todas as pessoas
tenham o direito ao prazer. Lógico que por uma temática e uma questão
de lógica o socialismo sena, assim, o futuro da humanidade. Mas não
esse socialismo que está aí, agora... [...] Daniel - Além disso, lutar pela
liberdade de ser como somos já é uma subversão, simplesmente porque
isso é lutar pela liberdade, é uma puta posição política. Paulo [...] - O
Somos é como Lampião. Não tem uma posição política definida. Antes
de esquerda, direita, para cima ou para baixo, somos homossexuais. Só
que a discussão não se esgota ai; teria um segundo passo. Mas não sei
se já existe uma articulação que possa levar a isso.35
Outros grupos surgiriam no Brasil após o Somos, um exemplo, é o Libertos. A sua
colaboração na luta por uma sociedade mais justa, lembrava aqueles supostos
progressistas – que em relação aos homossexuais usavam o chavão do “fruto da
burguesia-ociosa” – que com isso eles contribuíam para manutenção da repressão sexual,
que atingia principalmente o operariado e outras classes menos favorecidas. 36
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Sobre os encontros dos grupos, destacaremos o I e II Congresso Brasileiro de
Homossexuais. Aconteceu no dia 16 de dezembro de 1979 no Rio de Janeiro um fato
inédito e certamente de fundamental importância para os homossexuais de todo o País.
Realizou-se na sede da Associação Brasileira de Imprensa o primeiro encontro de
homossexuais militantes, com a presença de 60 pessoas procedentes de São Paulo,
Guarulhos, Sorocaba, Brasília, Belo Horizonte, Caxias e Rio. 37 Todos os grupos tinham
propostas a fazer. Mas só o Libertos/Guarulhos as apresentou por escrito, eram elas: um
Congresso Estadual em julho de 1980 em São Paulo; “Criação de um grupo de
mobilização” e “Trabalhos práticos Imediatos”. 38
O II Encontro Brasileiro de Homossexuais que se deu no ano seguinte, teve um
caráter de crise já na sua reunião prévia, que acabou por distanciar os grupos, bem como
criar e direcionar algumas críticas ao Lampião da Esquina sobre sua relação com o
Movimento Homossexual 39. Ficaram deliberados por votação alguns pontos como, que
o II EGHO não seria deliberativo e não teria o tema “Coordenação Nacional” em suas
discussões.
Por fim...
Assim meio as avessas e as novidades, esses movimentos e aqui especificamente
o de afirmação homossexual, se constituiu no Brasil nos fins de 1978 propulsionado pela
imprensa gay ali instaurada, atuando diretamente nas discussões levantadas na época.
Percebe-se também que a grande imprensa, a sociedade e o Estado permanecem
reiterando suas representações – se não pejorativas – “cegas” sobre a questão. Ao mesmo
tempo em que “dão a mão” em prol de um falso progresso no que tange a diversidade
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sexual e sua visibilidade, continuam a controlar, classificar, (re)construir representações
sobre as sexualidades fora da norma baseadas em discursos excludentes.
Notas
1 - Mestre em História pela Universidade Federal de Uberlândia, graduado em Turismo pela Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/CPAQ), mesma universidade em que é Graduando em História.
Membro dos grupos de pesquisa: Universo Dialógico - Grupo de Pesquisa em Cultura, Política &
Diversidade, da UFMS/CPAQ; e Grupo de Pesquisa Gênero e Cultura: Descortinando Sujeitos e Violências
(INHIS – UFU). E-mail: [email protected]
2 - Bar frequentado por homossexuais no bairro Greenwich Village, em Nova York. Na noite de 28 de
junho de 1969, policiais tentaram como ocorria intermitentemente, fechar o bar alegando o descumprimento
das leis sobre a venda de bebidas alcoólicas. Com a desculpa de que o local era propriedade da máfia italiana
instalada na cidade, o bar vinha sofrendo várias invasões da policia que, aleatoriamente, prendia e agredia
seus frequentadores. Desta vez os homossexuais que ali estavam que não se intimidaram, e atacaram os
policiais com garrafas e pedras, forçando-os a chamar reforços. Prolongando-se por cinco dias, sendo
resolvida apenas com a intervenção do prefeito John V. Lindsay (Republicano), que ordenou o fim da
violência policial. A partir de então, o dia 28 de junho é comemorado por mais de 140 países como “Dia
(Internacional) do Orgulho Gay. Cf: TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade
no Brasil, da colônia à atualidade – Rio de Janeiro: Record, 2000; MARIUSSO, Victor Hugo da Silva
Gomes. Da invisibilidade ao Mercado: movimento LGBTTT e consumo no Brasil Contemporâneo. 2013.
60 f. Monografia (Curso de Turismo). Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Aquidauna, 2013.;
SOUSA NETO, Miguel Rodrigues de. Homoerotismo no Brasil contemporâneo: representações,
ambigüidades e paradoxos. 2011. 187f. Tese (Doutorado em História Social), Programa de Pós-Graduação
em História-Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2011. Entre outros.
3 - O conceito não trata de um grupo inferior numericamente, mas do sentido de desvantagens sociais se
comparados com a grande parte da população majoritária, sendo objeto de preconceito e desigualdade de
tal grupo dominante. Ou seja, não é em caráter numérico e sim a posição subordinada do grupo dentro da
sociedade. Ou como destaca Edward MacRae: O termo “minoria” é adotado por ser essa a prática
costumeira no Brasil e por apontar para o fato de que suas lutas se voltam preferencialmente para a melhoria
das condições de existência de segmentos específicos da sociedade, mais do que às da população como um
todo. Além disso, a “minoridade” desses grupos seria um reflexo da discriminação sistemática que sofrem,
o que lhes veda o acesso a um poder político-econômico mais compatível com seus números. MACRAE,
Edward. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da abertura. Campinas: Editora
da UNICAMP, 1990, p. 25
4 - TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade.
Ed. Revisada e ampliada. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 339.
5 – Idem, ibidem, p. 336.
6 - LONTRAS, piranhas, ratos, veados e gorilas, atenção: vocês também têm direitos (A ONU decidiu).
Lampião da Esquina, n. 0, , abril de 1978, p. 11.
7 - TREVISAN, João Silvério. Estão querendo convergir. Para onde? Lampião da Esquina, n. 2, junho de
1978, p. 9.
8 - “É preciso uma conscientização política que enquadre as reivindicações dos homossexuais como sendo
algo necessário e prioritário no conjunto de medidas que visam a libertação de grupos oprimidos. A
alienação dos homossexuais dos seus problemas é um ponto que deve ser atacado com todas as forças. A
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faceirice dos que afirmam não possuir nenhum problema de discriminação social me irrita. É alienação
pura, não tem outra palavra. Não basta ser bem recebido nos salões de beleza, no teatro, para se considerar
como homossexual aceito. Há uma relutância em todos os setores, inclusive por parte dos progressistas
desse pais, em colocar o homossexual como indivíduo normal que paga impostos e interage no processo
social e político do Brasil. Sem a desmistificação da bicha artista não se pode deter a degradação do
homossexual, que o torna mais um objeto de consumo, como a mulher, o índio eu negro folclóricos”. Cf.
RIBONDI, Alexandre. Novas Histórias de Amor. Lampião da Esquina, n. 3, julho de 1978, p. 4.
9 - Cf. ACOSTA, Adão. Passeata guei reúne 240 mil. Lampião da Esquina, n. 4, p. 3, agosto de 1978.
10 - A Praça é dos negros. Lampião da Esquina, n. 4, p. 6, agosto de 1978.
11 - O Somos segundo entrevista de dois membros ao jornal Lampião surgiu em São Paulo em maio de
1978, a partir de uma ideia comum a várias pessoas, para possibilitar o encontro de homossexuais, fora dos
costumeiros ambientes de badalação (boates, bares. saunas, cinema e calçadas). Procurava-se com isso um
conhecimento mútuo que fosse menos aleatório e a discussão de nossa sexualidade, de maneira franca e
digna. Entretanto alguns bibliografias trazem que, mesmo ele sendo pensado nesse período, surgiria e se
consolidaria em outubro de 1978 com sua presença no debate da USP (discutido logo à frente no texto).
“Houve uma tentativa de organização em 1976, quando um grupo de entendidos começou a se reunir para
discutir seus problemas, em São Paulo. Entretanto, 70% do grupo se julgava anormal, em função de sua
homossexualidade. Como dizia um deles: "Eu daria tudo para ser um senhor casado e com filhos”.
Evidentemente, o resultado foi desastroso, com tanta culpa, auto. desprezo e ausência de auto-imagem. Não
deu em nada, depois de poucos meses.” Cf. GRUPO Somos: uma experiência. Lampião da Esquina, n. 12,
maio de 1979, p. 2.
12 - TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: Op. cit., p.340-341. O movimento homossexual
latino americano foi exposto também nas páginas do Lampião. Cf. LOUCA e muito da baratinada. Lampião
da Esquina, n. 8, janeiro de 1979, p. 4.
13 – TREVISAN, João Silvério. Minorias e política. Lampião da Esquina, n. 5, outubro de 1978, p. 6.
14 – BITTENCOURT, Francisco. Quem é esse povo que está nas ruas? Lampião da Esquina, n. 10, março
de 1979, p. 7.
15 – DANTAS, Eduardo. Negros, mulheres, homossexuais e índios nos debates da USP: felicidade também
deve ser ampla e irrestrita. Lampião da Esquina, n. 10, março de 1979, p. 9.
16 – Idem, ibidem.
17 – Idem, ibidem.
18 – Idem, ibidem.
19 – Idem, ibidem.
20 – Idem, ibidem.
21 – Idem, ibidem.
22 – TREVISAN, João Silvério. Quem tem medo das “minorias”. Lampião da Esquina, n. 10, p.10, março
de 1979.
23 – Idem, ibidem.
24 – Idem, ibidem.
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25 – Idem, ibidem.
26 – Idem, ibidem.
27 – Idem, ibidem.
28 – Idem, ibidem.
29 – No qual mulheres se reuniram no Centro Cultural Cândido Mendes, em Ipanema, o que imediatamente
valeu de uma mensagem de censura da Associação de Moradoras da Vila Kenned (ex-faveladas) que
perguntava por que o CMB fazia seu encontro em lugar Tão distante da Zona Norte e das populações mais
pobres da cidade Cf. BITTENCOURT, Francisco. No Rio e São Paulo, mulheres em assembleia. Contra o
mito do sexo frágil, em busca do próprio caminho. Lampião da Esquina, n. 11, abril de 1979, p. 9.
30 – CASTILHO, Inês. Paulistas elegem os objetivos da luta. Lampião da Esquina, n. 11, abril de 1979, p.
13.
31 – Cf. NÓS também estamos ai. Lampião da Esquina, n. 11, abril de 1979, p. 7.
32 – Ver também: ANISTIA para as mulheres. Lampião da Esquina, n. 17, outubro de 1979, p. 2.
TREVISAN, João Silvério. Congresso das Genis: esquerda joga bosta nas feministas. Lampião da Esquina,
n. 23, abril de 1980, p. 6-7.
33 – Cf. QUAL o lugar dos negros no Brasil? Abdias Nascimento responde. Lampião da Esquina, n. 15,
agosto de 1979, p. 10-12.
34 – A Lei Afonso Arinos (lei 1390/51 de 3 de julho de 1951) é uma lei proposta por Afonso Arinos de
Melo Franco (1905-1990) e promulgada por Getúlio Vargas em 3 de julho de 1951 que proíbe
a discriminação racial no Brasil. É o primeiro código brasileiro a incluir entre as contravenções penais a
prática de atos resultantes de preconceito de raça e cor da pele. Cf. TREVISAN, João Silvério. Os negros
vão ao paraíso? Lampião da Esquina, n. 18, p.2, novembro de 1979. No Brasil tudo aparecia sinais da
presença do Movimento Negro Unificado nas ruas. Às 18 horas do dia 20 de novembro, em cidades de
quase todo o Brasil, Zumbi, o líder do Quilombo do Palmares foi homenageado com atos públicos e
passeatas que marcaram o Dia Nacional da Consciência Negra. O ato nacional convocado em todas as
capitais do país – foi coordenado pelo Movimento Negro Unificado. Cf. BARRINHOS, Baba. Consciência
negra sai às ruas, em todo o Brasil. Lampião da Esquina, n. 19, dezembro de 1979, p. 9.
35 – O PESSOAL do Somos (um debate). Lampião da Esquina, n. 16, setembro de 1979, p. 9.
36 – Cf. O pessoal do Libertos (um balanço). Lampião da Esquina, n. 16, setembro de 1979, p. 7-9.
37 – Cf. BITTENCOURT, Francisco. No Rio, o encontro nacional do povo guei. Lampião da Esquina, n.
20, janeiro de 1980, p. 7.
38 – Idem, ibidem.
39 – No dia 6 de dezembro dezessete grupos organizados, entre eles o Lampião, realizaram no Teatro da
Casa do Estudante Universitário, no Rio, a reunião prévia para o IIº Encontro de Grupos Homossexuais
Organizados. Cf. NUNES, Arístides. Na reunião dos grupos, os reflexos da crise. Lampião da Esquina, n.
32, janeiro de 1981, p.15; TREVISAN, João Silvério. Por uma política menor: bichas e lésbicas inauguram
a utopia. Lampião da Esquina, n. 25, junho de 1980, p.9-10; NUNES, Aristides. Jogaram bosta no II EGHO.
Lampião da Esquina, n. 33, fevereiro de 1981, p.18; MATTOSO, Glauco. Acuda, Janete. Lampião da
Esquina, n. 34, março de 1981, p.4.
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Referências
MACRAE, Edward. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da
abertura. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
MARIUSSO, Victor Hugo da Silva Gomes. Movimento LGBT e Mídia no Brasil
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REPRESENTAÇÕES DO FEMININO NA OBRA DE ALMODÓVAR
Vivian da Veiga Silva1
Resumo: A obra do cineasta espanhol Pedro Almodóvar é marcada desde o início pelo caráter realista e
por elementos da contracultura espanhola, transitando entre os estilos melodramáticos e cômicos. As
personagens construídas por ele fogem do habitual moralismo maniqueísta hollywoodiano, encarnando a
complexidade humana. Questões sobre gênero e sexualidade também são constantes na obra do cineasta,
que retrata constantemente aqueles que, de alguma forma, são excluídos socialmente, sempre buscando
“humanizá-los”, em resposta à sociedade que persiste em “desumanizá-los”. Ligados a essas questões, os
filmes de Almodóvar têm como traço característico protagonistas que apresentam diversas facetas do
universo feminino, sobretudo um feminino divergente, que foge aos estereótipos cinematográficos. Nesse
sentido, o presente trabalho tem como objetivos discutir as representações do feminino na obra do cineasta
Pedro Almodóvar, bem como discutir as narrativas da obra do cineasta como uma forma de contestação
dos padrões de representação do feminino. A metodologia utilizada é a análise de elementos da filmografia
do cineasta utilizando teorias e conceitos relacionados às discussões sobre gênero. Como resultado, podese verificar que as personagens femininas do universo retratado por Almodóvar apresentam caráter
contestatório das representações femininas comumente retratadas nas produções cinematográficas da
grande indústria.
Palavras-chave: Almodóvar; gênero e sexualidade; representações femininas
Pedro Almodóvar: Um cineasta de mulheres
Pedro Almodóvar Caballero (1949) nasceu em uma pequena cidade do centro da
região de La Mancha, uma das mais pobres da Espanha. Da infância nessa localidade já
nota-se um elemento que será marcante em suas obras: a forte presença feminina, tanto
em sua família (mãe, tias, irmãs) quanto fora dela, visto que a região é marcada por uma
forte emigração masculina causada pelo atraso social e a falta de oportunidades de
emprego.
No final da década de 1960, Almodóvar muda-se para Madri e entra em contato
com o mundo underground madrilenho, que se contrapõe ao período autoritário que a
1
Graduação em Ciências Sociais e mestrado em Educação. Atualmente é professora assistente da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Campus do Pantanal.
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Espanha atravessa. Vindo de uma família modesta, Almodóvar não teve recursos para
financiar seus estudos na área de cinema, realizando suas primeiras produções de maneira
autodidata e desenvolvendo temas que serão consagrados em seu universo
cinematográfico: gênero e sexualidade, paixão e desejo.
O cineasta será um dos expoentes da chamada Movida Madrileña, movimento
de contracultura inspirado na estética pop e punk norte-americana e européia, que teve
seu auge entre o final da década de 1970 e início da década de 1980, marcando a transição
democrática na Espanha. Esse novo contexto histórico influenciará diretamente a obra de
Almodóvar, que busca através de seus filmes desvelar valores libertários que permitam
romper as amarras de anos de autoritarismo e conservadorismo. É justamente nesse clima
que o cineasta filma seu primeiro longa-metragem, “Pepi, Luci e Bom” (1980), de
maneira precária e contando com a ajuda de amigos, inclusive da atriz Carmem Maura,
que se tornará um ícone de seus filmes.
Após algumas produções, ganhará visibilidade junto ao público e à crítica com
“Mulheres à beira de um ataque de nervos” (1988). Segue-se uma carreira de
reconhecimento e sucesso mundial, no qual o diretor oscilará entre dramas melancólicos
e comédias rasgadas, criando um universo próprio e distinto, com elementos recorrentes
e distintivos, dentro os quais, dois merecem destaque.
1) A naturalidade com a qual o cineasta aborda temas, comportamentos e
personagens
apontados
pela
sociedade
como
marginais.
Almodóvar
retrata
constantemente aqueles que, de alguma forma, são excluídos socialmente, sempre
buscando “humanizá-los”, em resposta à sociedade que persiste em “desumanizá-los”. De
acordo com Melo (1996, págs. 251 e 252),
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[...] Almodóvar trata homens e mulheres, heterossexuais, travestis, transexuais
e homossexuais com a mesma naturalidade, de modo que, dificilmente, a
platéia se dá conta que está “participando” de um jogo pelos labirintos do
proibido. É nas mãos dos seus personagens marginalizados que o diretor põe
toda a possibilidade de mudança e luta contra a opressão e inércia
sociocultural.
Prostitutas, homossexuais, travestis, transexuais e mulheres histéricas povoam
sua produção cinematográfica, convidando o espectador a conhecer esses personagens
enquanto seres humanos e se despojar dos preconceitos e da intolerância. Ainda de acordo
com Melo (1996, pág. 258),
Almodóvar, por seu turno, patrocina a aliança entre hetero e homossexuais,
travestis, transexuais e outras formas andróginas não-convencionais; enfim,
todos aqueles que estão à margem da sociedade. Considero que o seu objetivo
é “normalizar” o que é considerado aberrante e “naturalizar” a realidade [...]
Temas polêmicos também são tratados com naturalidade por Almodóvar, como
assassinato, incesto, estupro e consumo de drogas. Quando propõe-se a “naturalizar” a
realidade, o cineasta propõe-se a discutir a complexidade humana, todas suas facetas, o
melhor e o pior que constitui o ser humano.
2) Por fim, aquele que será o elemento central de suas obras: o universo
feminino. Conhecido como cineasta das mulheres, Almodóvar criou personagens
femininas marcantes, que ocupam papel central na maioria de seus filmes. Suas
protagonistas apresentam diversas facetas do universo feminino, sobretudo um feminino
divergente, que foge aos estereótipos cinematográficos.
Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivos discutir as representações
do feminino na obra do cineasta Pedro Almodóvar, bem como discutir as narrativas da
obra do cineasta como uma forma de contestação dos padrões de representação do
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feminino. Pela extensão de sua filmografia e pela recorrência de elementos, foram
selecionados 03 filmes para nortear a discussão:
- Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988): A personagem central é Pepa,
que é abandonada pelo amante, Iván, que por sua vez foi casado com Lúcia, que acaba de
sair de uma instituição psiquiátrica. Entre encontros e desencontros, as duas lidam com o
abandono do homem que amam.
- Tudo sobre minha mãe (1999): Manuela perde de maneira trágica seu filho
Esteban e decide partir em busca do pai de seu filho, antes também chamado Esteban e
que agora vive como a travesti Lola. No caminho dessa busca, Manuela encontra
personagens que irão marcar sua vida: Agrado, uma antiga amiga; Rosa, uma freira que
conhece Agrado e relaciona-se com Lola; Huma, uma atriz de teatro do qual seu filho era
admirador e que se encontra em uma conturbada relação com a também atriz Nina.
- Volver (2006): Raimunda precisa lidar com o fato de que seu marido Paco
tentou estuprar sua filha Paula e que ela, para defender-se, acaba o matando. Em meio a
esses acontecimentos, Raimunda e sua irmã Sole precisam lidar com o retorno de Irene,
a mãe que acreditavam estar morta.
“Estou cansada de ser boa” –
descontrução/reconstrução do feminino
As
mulheres
almodovarianas
e
a
A obra cinematográfica de Pedro Almodóvar é repleta de conteúdos riquíssimos
para análises e discussões sobre o universo feminino. No entanto, irei me deter em alguns
elementos comuns aos três filmes discutidos: relações de gênero e construção de um
feminino dissidente, epifania e mudança de comportamento, cumplicidade feminina,
recusa ao padrão estético hollywoodiano.
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Ao tratar e discutir a representação do feminino é fundamental inseri-la na
perspectiva das relações de gênero. De acordo com Scott (1995, pág.86), gênero é uma
categoria útil de análise para compreender diversas esferas de nossa sociedade, sendo um
aspecto relacional e que não deve ser utilizado como sinônimo de mulher, sendo
compreendido como “[...] um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas
diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as
relações de poder. [...]”.
Nesse sentido, a representação e os valores referentes ao feminino são
construídos em uma relação diametralmente oposta à representação e aos valores
referentes ao masculino, de maneira a expressar relações desiguais de poder, no qual o
feminino surge como elemento submisso e dominado pelo masculino. Almodóvar, em
suas obras cinematográficas, sempre questiona os valores patriarcais e o lugar que a
mulher (e o feminino) ocupam nessa sociedade, criando, de certa forma, um feminino
dissidente, com representações do feminino que fogem do que é socialmente difundido e
aceito; condutas, comportamentos e expressões do feminino que são socialmente
reprovados.
As mulheres almodovarianas não têm medo de serem rotuladas como loucas e
histéricas (conduta socialmente reprovada), sempre se encontram em situações limites,
geralmente causada por homens, e decidem romper com esse cenário e construírem uma
nova trajetória.
Essa atitude pode ser expressa pela frase de Pepa, que marca sua mudança de
comportamento com relação a seu amante Iván: “Estou cansada de ser boa!”. Essa
epifania é comum às mulheres almodovarianas, que se cansam das situações em que se
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encontram e se rebelam contra aquilo que as oprimem ou afetam seu equilíbrio mental
(em geral, a figura masculina): Pepa percebe o quão prejudicial pode ser a obsessão por
Iván, que levou Lúcia à loucura, e decide deixá-lo ir, aceitando a gravidez e a necessidade
de construir uma nova vida para si, sem Iván; Manuela decide fugir do marido, que
controla sua vida rigidamente e comporta-se de maneira promíscua, para construir uma
nova vida com o filho que irá nascer; Raimunda, após a morte do marido, assume o
restaurante de um vizinho, como forma de reconstruir a vida.
Em Volver, outra cena expressa essa questão. Em uma festa no restaurante,
Raimunda decide cantar para seus clientes. Paula, sua filha, ao ouvir a mãe cantar,
menciona para sua tia Sole que nunca havia ouvido a mãe cantar. A personagem de
Raimunda somente volta a cantar após o assassinato do marido que tentou estuprar sua
filha, o que faz com que, simbolicamente, supere o estupro que sofreu do próprio pai.
Somente após superar as representações masculinas que a oprimiam, é que Raimunda
consegue se reconstruir, reencontrar sua voz e voltar a cantar.
Na construção do feminino, comumente atribui-se docibilidade e amabilidade às
mulheres, que essas não devem sucumbir ao desejo, sob a pena de perder sua
respeitabilidade. Almodóvar coloca suas personagens em termos de desejo e paixão, não
necessariamente amor, que é uma conduta socialmente reprovada para mulheres (essas
são naturalmente dóceis, nasceram para amar incondicionalmente, no recato do
casamento). De acordo com Melo (1996, pág. 235),
[...] ele atesta que a autonomia dos seus personagens resulta da obediência cega
aos desejos mais recônditos. No discurso do diretor, o desejo atravessa o frágil
véu que separa o masculino do feminino e atenta contra todo tipo de ordem
sexual estabelecida a partir dessa divisão. Para ele, “o difícil é encontrar
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paixão. O que incita a paixão é irrelevante [...] Seus personagens amam
indistintamente homossexuais e heterossexuais, transexuais e travestis.”
Tudo isso se expressa na relação entre Lola, uma travesti, e Rosa, uma freira,
que acaba por engravidar de Lola. As interdições religiosas e sexuais não impediram a
atração e o desejo entre Lola e Rosa.
Dentro dessa perspectiva, outra questão abordada por Almodóvar é o fato de que
mulheres são socializadas para pensarem que somente serão completas e realizadas com
o matrimônio. Em Tudo sobre minha mãe, durante uma conversa com Rosa, Manuel
revela, nas entrelinhas, que foi casada com Esteban e que esse acaba passando por
transformações corporais (ele passa a viver como a travesti Lola) e que mesmo após essa
mudança, ela aceita continuar o casamento. Segundo Manuela, “nós mulheres fazemos
de tudo para não ficarmos sozinhas”, inclusive aceitar uma transformação tão radical do
companheiro. E não somente isso: Manuela ainda relata que, apesar “do par de tetas”,
Lola era machista, a proibia de usar determinadas roupas e mantinha inúmeros casos
extraconjugais. Afinal, apesar de transformar seu corpo e adotar uma identidade social
feminina, Lola foi socializada como homem, aquele que deve impor sua autoridade e
vontade sobre a mulher, de quem é aceito e incentivado que não restrinja suas atividades
sexuais ao matrimônio.
Essa pressão sobre a mulher com relação ao caráter sagrado do casamento
também, de certa forma, faz com que Irene não perceba (ou não queira ver) que o marido
abusava sexualmente da filha Raimunda e que a engravidou. Somente quando sua irmã
Paula conta sobre o ocorrido é que Irene entende várias mudanças da sua dinâmica
familiar (marido aceita proposta para trabalhar no exterior e a filha casa-se rapidamente
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e muda-se de cidade). Raimunda, no reencontro com a mãe, revela que a odiou muito por
ela nunca ter percebido o que acontecia.
No filme Tudo sobre minha mãe, Almodóvar propõe não somente a discussão
sobre relações de gênero, mas também sobre sexo e gênero, sobre como não
necessariamente temos uma identidade de gênero adequada ao nosso gênero biológico.
As personagens Agrado e Lola são emblemáticas para essa discussão. Lola era Esteban,
casado com Manuela, passando por uma transformação corporal, adotando identidade
social feminina e relacionando-se com homens e mulheres. Agrado, amiga de Manuela e
de Lola, é uma travesti que, à princípio, vive da prostituição e depois passa a trabalhar
como ajudante pessoal de Huma.
De maneira cômica ela explica por que se autodenomina Agrado, dizendo que
“por toda a vida não fiz nada além de buscar tornar a vida dos outros agradável”. Essa
frase pode ser interpretada de duas maneiras: enquanto travesti, alguém que transita entre
o masculino e o feminino, Agrado sempre buscou estratégias de aceitação social; mas
também, como alguém com identidade social feminina, acaba por reproduzir esse valor
de subserviência.
Essa mesma personagem nos brinda com um belíssimo discurso que nos convoca
a fugir dos padrões e buscar a autenticidade: “Nos custa muito ser autênticas. E, nestas
coisas, não se deve ser avarenta. Porque nós ficamos mais autênticas quanto mais nós nos
parecemos com o que sonhamos que somos”.
No pré-crédito do filme, Almodóvar nos leva a refletir sobre as nossas
representações sociais de gênero: “À Bette Davis, Gena Rowlands, Romy Schneider... À
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todas as atrizes que interpretaram atrizes, à todas as mulheres que atuam, aos homens que
atuam e se tornam mulheres, à todas as pessoas que querem ser mães. À minha mãe”.
Agimos de acordo com o que a nossa sociedade nos pede e não necessariamente como
queremos de fato agir. Em muitas situações, as mulheres agem contra seus desejos e
aspirações, mas de acordo com o que é cobrado socialmente, o que não passa de uma
encenação. O cineasta também remete ao desejo de todas as pessoas que querem ser mães
e que essas não são necessariamente aquelas que nasceram mulheres. O entendimento que
ele tem do feminino é muito mais amplo do que meramente o sexo biológico; é o
sentimento, a maneira como o indivíduo se sente e se identifica.
Mudando o foco da discussão, outro elemento presente nos três filmes
discutidos, a amizade e a cumplicidade entre as mulheres, permeia a ação e o
desenvolvimento das tramas, sendo tratada por Almodóvar não como algo naturalmente
existente entre as mulheres, mas algo que é construído através da trajetória de vida de
cada uma delas, que as aproxima e faz com que compartilhem tragédias, dramas e
superação.
Em Mulheres à beira de um ataque de nervos, Pepa se sensibiliza e busca uma
advogada para a amiga Candela, que ao envolver-se com um homem desconhecido, acaba
se envolvendo com um grupo terrorista e está sob ameaça de prisão. Em Tudo sobre
minha mãe, temos a cumplicidade entre Manuela e Rosa (as duas relacionaram-se com
Lola e tiveram filhos dela, inclusive batizados com o mesmo nome), Manuela e Agrado
(amigas de longa data), Manuela e Huma (se conhecem e estreitam os laços de amizade
por conta da morte do filho de Manuela e dos problemas com drogas da companheira de
Huma, Nina). Por fim, em Volver temos a cumplicidade entre mães e filhas: Raimunda e
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Paula (Raimunda esconde o corpo do marido para livrar a filha Paula de ser acusada de
assassinato), Irene e Raimunda (embora tardiamente descubra que a filha Raimunda foi
estuprada pelo pai, Irene “volta dos mortos” e se reconecta com a filha).
Também expressão dessa cumplicidade feminina é a emblemática cena inicial
de Volver, no qual várias mulheres viúvas cuidam e limpam sepulturas em um cemitério
e as personagens Pepa e Sole discutem que naquela região (La Mancha) as mulheres
vivem mais do que os homens, o que acaba criando uma predominância da população
feminina e uma conseqüente solidariedade entre elas.
Por fim, não podemos deixar de observar a recusa de Almodóvar em adotar a
estética hollywoodiana, seja na estética e no figurino de seus filmes ou na escolha de seu
elenco. Suas personagens não possuem um padrão de beleza inalcançável e sim rostos e
corpos comuns, que encontramos cotidianamente. Mais do que o cotidiano, Almodóvar
nos mostra que não existe a pretensa homogeneidade estética que a indústria do
entretenimento nos leva a aceitar; ele nos lembra que temos rostos e corpos singulares,
nos apresentando atrizes como Rossy de Palma, que foge totalmente dos traços delicados
e harmoniosos que reina nas representações contemporâneas de beleza.
Considerações finais
Diante do que foi apresentado e discutido, é possível perceber que as
personagens femininas do universo almodovariano apresentam um caráter contestatório
das representações femininas comumente retratadas nas produções cinematográficas da
grande indústria. Porém, Almodóvar não se restringe à área cinematográfica e ele se
propõe a contestar os valores e as representações sociais que subordinam o feminino ao
masculino e que excluem e “desnaturalizam” aqueles que não se adequam as normas e
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aos padrões sociais. Ele desconstrói a representação do feminino, reconstruindo como
uma possibilidade de enfrentamento e contestação à submissão e à exclusão.
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Almodóvar.
- Tudo sobre minha mãe (1999) – Roteiro e direção: Pedro Almodóvar.
- Volver (2006) – Roteiro e direção: Pedro Almodóvar.
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REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA ATUAÇÃO DO PROFISSIONAL DOCENTE NA EDUCAÇÃO
INFANTIL E NO ENSINO FUNDAMENTAL
Social representations about teaching profession in childhood education and elementary
school
Leonardo Alves de Oliveira1
Adriana Horta de Faria2
Josiane Peres Gonçalves3
Resumo: Ainda que a população brasileira seja majoritariamente formada por mulheres, é muito expressiva
a parcela que estas constituem na composição do corpo docente da educação básica, especialmente na
educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental. Entre os fatores de ordem cultural, social,
política e econômica que provocaram o processo de feminização do magistério, é importante destacar as
representações, imagens e símbolos atribuídos aos profissionais docentes devido às possibilidades de serem
ativados(as) pela atuação desses profissionais. Nesse sentido, considerando a pequena parcela de
professores homens, a pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Estudos e Pesquisa em Gênero,
Desenvolvimento e Educação da UFMS, buscou identificar as representações sociais relacionadas à atuação
profissional de professores homens de educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental por meio de
entrevistas semiestruturadas gravadas, transcritas e analisadas. A utilização de grupos taxionômicos no
estudo em representações sociais justificou-se pelo fato de os entrevistados (familiares, professores e
gestores) comporem subgrupos que eventualmente possam se encontrar e pelos seus supostos interesses
comuns no que diz respeito à educação de crianças. Os resultados revelam representações de gênero que
transpõem-se a homens e mulheres como professores em relações de contradição.
Palavras-chave: formação docente; homens professores; representações sociais.
Abstract: Although the brazilian population is formed mostly by women, it is very expressive the portion
that female teachers constitute in the school composition, specially in childhood education and early years
of elementary school. Among cultural, social, political, and economic factors that caused the feminization
of teaching, it is important to detach representations, images and symbols assigned to the teaching
professionals due to the possibilities of being activated by the performance os these professionals. In this
sense, considering the small portion of male teachers, this reasearch developed by the UFMS Gender,
Development, and Education Studies and Reasearch Group, sought to indentify social representations
related to male professional performance in childhood education and early years of elementary school by
recorded, transcribed and analyzed semiestructured interviews. The using of taxonomic groups on this study
in social representations is justifieble beacause the people interviwed (family, teachers and school
managers) constitute subgroups that eventually they can meet each other or beacause of their supposed
1
Graduando em Pedagogia pela UFMS. Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq. Integrante
do Grupo de Estudos e Pesquisa em Desenvolvimento, Gênero e Educação da UFMS/CPNV. E-mail:
[email protected].
2
Graduanda em Pedagogia pela UFMS. Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq. Integrante
do Grupo de Estudos e Pesquisa em Desenvolvimento, Gênero e Educação da UFMS/CPNV. E-mail:
[email protected].
3
Doutora pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora
Adjunta da UFMS/CPNV. Líder do GEPDGE. E-mail: [email protected]. Apoio financeiro:
UFMS e CNPq.
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common interests about children education. The results indicate gender representations that are transposed
to men and women as teachers in contradiction relations.
Keywords: teacher training; male teachers; social representations.
Introdução
O conceito - ainda em expansão, como diria Denise Jodelet - de representações
sociais foi introduzido pelo psicólogo social romeno Serge Moscovici quando este
publicou em 1961 a versão em língua estrangeira de “A psicanálise, sua imagem e seu
público”. De acordo com o autor, a representação social é:
[...] uma modalidade particular de conhecimento, cuja função é a elaboração
de comportamentos e a comunicação entre os indivíduos. É um corpo
organizado de conhecimentos e uma das atividades psíquicas graças às quais
os homens fazem inteligíveis a realidade física e social, integram-se em um
grupo ou em uma relação cotidiana de trocas, liberam os poderes de sua
imaginação. […] são sistemas de valores, noções e práticas que proporcionam
aos indivíduos os meios para orientar-se no contexto social e material para
dominá-lo. É uma organização de imagens e da linguagem. Toda representação
social é composta de figuras e expressões socializadas. É uma organização de
imagens e da linguagem porque recorta e simboliza atos e situações que são ou
se transformam em comuns. Implica num enquadramento das estruturas, uma
remodelagem dos elementos, uma verdadeira reconstrução do dado nos
contextos de valores, noções e regras que logo depois, solidarizam-se. Uma
representação social, fala, mostra, comunica, produz determinados
comportamentos. (MOSCOVICI, 2012, p. 43)
Dados do Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE, 2010) constataram que no ano de 2010, as mulheres compunham 51%
da população brasileira. Ainda que a população brasileira seja majoritariamente formada
por mulheres, é muito expressiva a parcela que estas constituem na composição do corpo
docente da educação básica nacional, especialmente na educação infantil e nos anos
iniciais do ensino fundamental. De acordo com Gatti e Barreto (2009), baseados na
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad 2006), este levantamento demonstra
que as professoras mulheres representam 67% dos profissionais docentes no ensino
médio; 88,3% no ensino fundamental; e surpreendentes 98% na educação infantil. Por
que os homens não atuam como professores nas mesmas proporções que as professoras
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mulheres ou por que existe essa diferença tão gritante entre a composição sexual dos
docentes na educação básica nacional são certamente perguntas muito importantes,
porém, nosso propósito com esse trabalho não é responder a essas questões, mas sim
identificar as representações sociais associadas à atuação de professores homens de
educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, aproveitando o cenário e os
atores que compõem esses níveis de ensino.
Sendo as representações sociais, formas de conhecimento que servem como
instrumentos para responder aos problemas do cotidiano (MOSCOVICI, 2012)
socialmente elaboradas e compartilhadas, constituídas a partir das nossas experiências e
das informações e modelos de pensamento que recebemos e transmitimos através da
tradição, educação e comunicação (JODELET, 2001), concluímos que há utilidade em
investigar suas associações à atuação do professor homem na educação infantil e nos anos
iniciais do ensino fundamental para compreender o que se pensa sobre esses profissionais,
pois se essas representações possuem caráter prático e interferem na atitude das pessoas,
nada impede que constituam, por exemplo, um dos fatores pelos quais há poucos homens
atuando como professores nessas etapas de ensino.
METODOLOGIA
O objetivo de investigar as representações sociais referentes à atuação de
professores homens na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental
originou-se no Grupo de Estudos e Pesquisa em Desenvolvimento, Gênero e Educação
baseado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/CPNV). Para alcançar
tal objetivo criamos três roteiros para a realização de entrevistas semiestruturadas. O
conteúdo das questões foram bastante semelhantes, as poucas adaptações ocorreram
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devido ao fato de entrevistarmos três grupos taxionômicos diferentes, compostos por:
familiares (entende-se pais e/ou responsáveis) de crianças matriculadas na educação
infantil e no ensino fundamental; gestores de escolas ou instituições de educação infantil
em que havia professores homens; e professores homens de educação infantil e ensino
fundamental.
De acordo com Jodelet (2001), a representação de algo pressupõe a relação do
sujeito que representa, com o objeto, que por sua vez é representado, e essa “máxima”,
apesar de ter gerado uma série de interpretações que poderiam tornar as representações
sociais aplicáveis a qualquer objeto, em nosso estudo facilita a compreensão do processo
em que se deu a pesquisa. O objeto de representação inicialmente considerado foi a
atuação de professores homens na educação infantil e nos anos iniciais do ensino
fundamental e os sujeitos “habilitados” para expressá-las foram, em nosso estudo, os
grupos taxionômicos já citados, compostos por homens e mulheres de diferentes graus de
formação num mesmo grupo. Ao todo, vinte e nove entrevistas foram gravadas,
transcritas e analisadas numa cidade do interior do Mato Grosso do Sul, com população
de aproximadamente cinquenta mil habitantes.
A utilização de grupos taxionômicos (reunião de sujeitos individuais sob uma
mesma classificação), justifica-se nesse caso pelo fato de que vários atores do contexto
escolar local foram entrevistados e dessa forma, não analisamos ou consideramos como
representativo apenas uma parcela da população educacional local. Na verdade, o que
este trabalho propõe é exatamente o oposto, ou seja, destacar representações presentes em
todos os grupos taxionômicos estudados. Além disso, pelo fato de ser uma cidade
relativamente pequena, a possibilidade de intereção entre os sujeitos da pesquisa é muito
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mais provável. Um critério utilizado na seleção de familiares para as entrevistas, por
exemplo, foi a assiduidade em reuniões escolares ou no contexto escolar como um todo,
o que aumentava a possibilidade de contato com outros pais bem como outros atores da
comunidade escolar e de os interesses com relação à educação de crianças serem
compartilhados.
Detalhadamente, foram entrevistados: oito familiares de crianças matriculadas na
educação infantil (FEI), com idades entre 35 e 73 anos; sete familiares de crianças
matriculadas no ensino fundamental (FEF) e alunos/as de professores homens, com
idades entre 30 e 50 anos; quatro gestores de instituições de educação infantil (GEI), com
tempo de trabalho em educação entre 10 e 15 anos; quatro gestores de escolas em que há
homens professores no ensino fundamental (GEF) com tempo de trabalho em educação
de 12 a 29 anos; dois professores de educação infantil (PEI), ambos com mais de três anos
de trabalho em educação; quatro professores de ensino fundamental (PEF) com tempo de
trabalho em educação entre 3 e 23 anos. Todos os sujeitos envolvidos na pesquisa são
atores da rede de educação pública de naviraí.
Há uma ressalva: houve dificuldade em encontrar homens professores na
educação infantil, na verdade, esses sujeitos não foram encontrados - o que torna os dados
do Pnad 2006 compreensíveis. Consequentemente, não foi possível entrevistar gestores
de instituições de educação infantil em que havia professores homens, mesmo que estas
recebam estagiários homens com relativa frequência. Entretanto, entrevistamos um
professor que passou por essa etapa de ensino mas que atualmente é professor no ensino
fundamental e outro professor que igualmente passou pela mesma etapa de ensino mas
que atualmente leciona no ensino superior. Inclusive, é professor supervisor de estágio
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em educação infantil. Vale ressaltar que o nível de formação dos sujeitos de pesquisa, em
nenhum momento, impediu a expressão das representações.
Como as representações sociais circulam nos discursos, são carregadas pelas
palavras, mensagens, condutas (JODELET, 2001), nos pareceu coerente utilizar
entrevistas como instrumentos de nossa pesquisa qualitativa. De acordo com Jodelet,
essas características facilitam a observação das representações sociais, entretanto, por
estarem “espalhadas por aí”, na cultura, instituições, práticas sociais, comunicações
interpessoais e de massa e nos pensamentos individuais, por serem difusas, fugidias,
multifacetadas, há diversos impedimentos para que elas sejam captadas pela pesquisa
científica de um modo direto e completo (SÁ, 1998). Nesse sentido, apresentamos aqui,
as representações sociais que atravessaram todos os grupos taxionômicos entre os
adotados, evidenciando a sua circulação além de validade e relevância atribuída pela
comunidade escolar local.
Representações sociais transversais
Primeiro há o estranhamento. Especialmente com relação à educação infantil dentre outros fatores, pelo fato de raramente haver homens professores nessa etapa da
educação - há um estranhamento em relação à atuação desses profissionais.
“É uma coisa assim meio estranha, porque eu nunca vi, acho meio estranho.
Desde que eu me entendo, que a gente 'tá' acostumado assim, eu penso que
seria melhor continuar do jeito que 'tá'.” (FEI 3)
“Eu não sei, nunca vi um homem se adaptar a cuidar de criança pequena, então
é uma coisa assim, que não dá para 'dá' a opinião, se a gente, eu nunca viu,
'né'?” (FEI 4)
“A princípio a gente viu assim, 'né'?, que as expressões dos pais [...] achei que
foi de bastante curiosidade e, assim, espanto... mas percebi, não houve nenhum
comentário, 'né'?, assim, negativo a respeito da presença deles, não.” (GEI 1)
“Só que assim, só que muitas pessoas acham muito estranho, muitas das vezes,
um homem lá na educação infantil.” (PEI 1)
“Porque é de tradição. A mulher é quem dá aula, 'né'?. […] E se todas
profissões que não é da mulher existe preconceito quando a mulher está
exercendo, que não é o do homem também existe preconceito, 'né'? Então a
família rejeita muito o homem dentro da sala de aula.” (PEF 1)
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A necessidade de compreender algo que é incomum e transformá-lo em algo familiar
favorece a elaboração das teorias do senso comum. De acordo com Sá (1995), o estranho atrai,
intriga e perturba as pessoas e comunidades e consequentemente provoca nelas o medo de perder
as referências atuais, o senso da comunidade e a compreensão mútua. Dessa forma, é
compreensível porque FEI 3 prefere que as coisas continuem tal como estão.
Um dos processos geradores das representações sociais descritos por Moscovici é a
ancoragem. Segundo Moscovici (2011), a ancoragem é “quase como ancorar um bote perdido em
um dos boxes de nosso espaço social” (p. 61). Esse processo é capaz de transformar algo estranho
no sistema particular de categorias do sujeito que representa e compará-lo com um paradigma de
uma categoria que o mesmo considera adequada. O que observamos a partir dos resultados de
nosso estudo, é que nesse processo de tornar o não-familiar em familiar, os sujeitos da pesquisa
basearam-se na referência de atuação profissional que lhes era habitual, ou seja, a atuação
profissional de professoras. As representações identificadas foram, antes de tudo, representações
de gênero, de características de homens e mulheres. Essas representações transferiram-se na fala
dos entrevistados à atuação profissional de professores e professoras. No processo de comparação
e qualificação, apresentaram-se as contradições entre professores e professoras.
Quatro representações sociais atravessaram os três grupos taxionômicos: o (professor)
homem é descuidado, inapto e/ou inadequado na atuação docente com crianças, ao contrário
das mulheres; o (professor) homem é respeitável ou mais respeitável; o (professor) homem é a
figura paternal na escola; e o (professor) homem é um pedófilo em potencial e sua relação com
os alunos é erotizada.
“Acho que homem não leva jeito. (Risos). Ah, para adaptar com a criança, acho
ele meio assim... Na minha opinião, ‘né’?, porque eu vejo, assim, o (marido da
entrevistada) se embaraça todo 'pra' cuidar das crianças, então eu acho que
mulher tem mais jeito, ele dá banho e tudo, mas eu já tenho de casa isso, 'né'?,
então por isso, 'né'?” (FEI 2)
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“Eu vejo que tem muita aquela coisa maternal mesmo, de mãe. Você 'tá' ali
cuidando, 'tá'... Talvez é uma coisa que (...) o homem não tenha 'né'?, porque o
pai é diferente da mãe, 'né'? (GEI 2)
“[...] minha preocupação era a família, mas para minha surpresa, a relação com
a família foi muito melhor do que eu imaginava 'né'?, principalmente com as
mães 'né'? Acho que no caso dos pais, que eram dois que eu tinha... Era meio
complicado. Teve momentos até de a diretora apresentar a atendente como
professora.” (PEI 2)
Os excertos de entrevistas acima demonstram uma representação recorrente entre
os sujeitos de pesquisa relacionados à educação infantil local. O mesmo não ocorre no
ensino fundamental, na verdade ocorre o contrário como veremos mais adiante. Talvez,
a representação do professor homem como descuidado ou inadequado seja o cúmulo da
desvalorização profissional. É a completa desconsideração de toda a trajetória de
formação docente pela qual homens e mulheres passam ao optarem por um curso de
Magistério e/ou Pedagogia.
Enquanto os homens são representandos como descuidados na lida com crianças
e essa representação é transferida aos professores homens, o inverso ocorre com as
mulheres. Na verdade, essa representação apoia-se numa qualificação e comparação da
atuação profissional de professores homens e mulheres.
“Então eu acho que a mulher tem mais jeito, para dar banho e tudo.” (FEI 2)
“As mulheres estão de parabéns, elas cuidam muito bem mesmo!” (FEI 4)
“Acho que a mulher leva mais jeito, na... 'Tipo assim', por ser mãe ou algo do
tipo.” (FEI 5)
“A mulher tem um pouco mais assim, digamos, de paciência, de como eu posso
dizer assim... Porque a criança assim nesta idade, 'né'? tem que ter muita
paciência para lidar, então eu acho que a mulher por ser um ser mais, digamos
assim, a mulher é mais meiga, 'né'?, tem mais paciência. Então eu acho que a
mulher, no meu modo de pensar, eu acho que a mulher dá mais certo 'pra' este
tipo de trabalho.” (FEI 6)
“Eles (os homens estagiários em educação infantil que passaram por aquela
instituição) fizeram (observação) de 0 a 3 (anos) sim, mas, assim, no maternal
não envolvia troca, não envolvia assim, 'né'? Mesmo que tivessem é claro que
eles iam deixar para a professora ou outra acadêmica que fosse mulher.” (GEI
4)
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“[...] Aí tinha atividades, a gente fazia... aí eu levava os bebês 'pra' fora, porque
eu sempre pensei assim que berço é lugar de dormir 'né'?, e em muitas
instituições infelizmente as crianças ficam muito no berço, e pouco no chão.
Aí eu levava os colchões para fora, a gente tinha o momento de tomar sol e eu
levava os bebês e tal. E aí ela (cozinheira da instituição de educação infantil)
ficava muito curiosa - o que eu ia fazer com aquelas crianças? -, porque o sol
batia atrás, 'né'?, da sala, então tinha que levar os bebês 'pra' trás da sala (risos).
Então ficava meio estranho isso, mas a atendente (profissional que auxilia
professores e professoras de educação infantil) estava comigo e tal. E quando
ela faltava era bem preocupante porque todo mundo se mobiliza, às vezes uma
sala ficava sem professor, ou ficava com dois 'pra' ter alguém comigo, sempre
com a presença de uma mulher, o que era muito interessante.” (PEI 2)
Além dos familiares explicitamente demonstrarem que as mulheres são mais adequadas
ao trabalho com crianças na educação infantil, a fala de GEI 4 também naturaliza o trabalho de
mulheres nessa etapa de ensino. Especialmente nas atividades em que exigem um contato fisico
maior com as crianças como nas falas destacadas (dentre outras analisadas no decorrer da
pesquisa) há uma atribuição de funções às mulheres, o que muitaz vezes é associado à
maternidade ou “instinto maternal”.
Aragão e Kreutz (2012) sinalizaram por meio de pesquisa com seis professoras de
educação infantil a coexistência de duas representações sobre a docência, uma pautada em
conhecimento teórico e outra entendida como dom ou vocacional. Com relação aos nossos dados,
o que percebemos por meio das representações sociais que atravessaram os discursos dos três
grupos de sujeitos entrevistados, é que há uma desvalorização do conhecimento teórico ou da
formação docente. Mesmo que os entrevistados, especialmente os gestores, em diversos
momentos demonstrem certa aprovação ou receptividade pelo trabalho de professores homens,
isso não os impediram de expressar as suas representações sociais ou aquelas das quais estão
conscientes no cenário educativo em que atuam. Os gestores, por meio do discurso, demonstraram
que os homens poderiam e seriam capazes de atuar profissionalmente na educação infantil, mas
com relação às mulheres, essa capacidade parecia natural. Os professores homens, embora
valorizando a formação docente, relataram várias representações sociais que qualificavam a
atuação profissional de mulheres como superior devido ao fato de estas “terem mais jeito”. É o
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caso por exemplo do professor que viu a gestora da instituição em que trabalhava apresentar sua
ajudante como a professora de sua turma devido às representações dos familiares.
Nas comparações utilizadas para qualificar a atuação docente, a maioria dos sujeitos levou
em consideração apenas uma parcela da educação que para eles parece satisfatória: o cuidado.
Não há parcelamentos na educação infantil, pois como sabemos, essa etapa de ensino caracterizase justamente pela inseparabilidade entre cuidar e educar (BRASIL, 1996; CERISARA, 1999;
KRAMER, 2007). Somente por um susposto “instinto maternal” as mulheres são mais
adequadas à educação infantil? Se assim fosse, os estudos, a graduação necessária, enfim,
toda a formação docente seriam desnecessárias, perda de tempo, pois mulheres poderiam
apenas executar suas “habilidades naturais” a serviço das crianças.
No ensino fundamental, observamos um cenário diferente. Houve quem deu
preferência aos homens devido a uma outra representação social que consequentemente
foi atribuída aos professores homens: a representação de que os (professores) homens são
(mais) respeitáveis e têm mais autoridade. Ao expressarem essa representação, muitas
vezes os sujeitos da pesquisa, implícita ou explicitamente comparam a postura de homens
e mulheres e consequentemente a atuação profissional de professores e professoras.
“Eu acho assim, que 'daí' o professor homem, acho que ele (aluno) ia ficar
mais, ia aprender mais, não ia ficar mais bagunçando, 'né'? Agora, com mulher,
sempre eles começam... O homem, eles já começam a obedecer mais o homem.
[…] Porque mulher assim, eles falam: “É mulher”. Ainda mais os meninos, os
moleques, os rapazes, 'né'? Eu acho que eles respeitam mais homem. 'Né'?
Porque 'daí' eles têm um medo.” (FEF 4)
“Eu acho que eles respeitam mais. […] Tem mais assim, aquela cisma, 'né'?,
por ser homem, 'né'? Porque a mulher, sei lá, eles... A mulher é mais doce,
assim, e 'as criança', acho que, não têm muito aquele respeito, 'né'? (FEF 7)
“[...] Eles são muito próximos das crianças, porque o professor ele impõe uma
postura forte, quando o homem fala, os alunos têm medo. É, talvez não seria
só pela questão de ter medo, mas a questão do respeito. […] a figura de um
homem também ajuda muito.” (GEF 1)
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“O professor, por ser do sexo masculino 'né'?, ele tem uma tendência assim de
ser mais rígido, ser mais objetivo nas coisas, [...] ele é mais claro, é isso pronto
e acabou! […] A mulher, ela é mais 'mãezona', assim, vamos dizer 'pra' clarear,
então ela é uma mulher que é uma pedagoga, uma profissional, mas ela tem
mais esse lado afetivo.” (GEF 4)
“[...] Até porque em qualquer ambiente que você, independente... que você vê
que tem a figura masculina, a questão do respeito, até 'pra' quem vai visitar a
escola, pais e tal... é outra.” (PEI 1)
“[...] Ela (gestora da instituição em que o entrevistado trabalhava como
professor de educação infantil) falava 'O que você faz com eles?' e aí uma vez
ela até perguntou “Você briga, você ameaça?”. Eu falei “Não, não faço nada
disso!”. Ela falava “Então eu acho que, então é porque você é homem. Você é
homem, então eu acho que eles te respeitam!” (PEI 2)
“[...] Olha, eu, na minha opinião, assim, a presença do homem na escola, o
aluno tem mais respeito pelo professor do que pela professora. […] a imagem
de homem na sala, as crianças têm mais um pouco, não é as crianças, os alunos
têm mais respeito.” (PEF 4)
Por uma questão cultural e até mesmo por estarmos imersos em representações de
gênero, não é impossível que os professores realmente deixem as crianças com mais
receio o que provocaria comportamentos mais satisfatórios para os adultos na escola. Isso
não significa, entretanto, que os homens sejam mais dignos de respeito ou que as
professoras não tenham tanta autoridade quanto os professores. De qualquer forma, o que
importa aqui, é mais uma vez a contradição e a utilização da atuação profissional mais
familiar para teorizar ou falar sobre a atuação profissional menos familiar, pois isso
fortalece e distancia as representações.
É importante destacar como todos os sujeitos envolvidos na pesquisa aprovaram
os professores homens por essa suposta característica autoritária ou respeitável. Rabelo
(2013), em pesquisa realizada no Brasil e em Portugal, categoriza a concepção de que o
homem é incapaz de lidar com crianças como uma das discriminações que homens
professores sofrem em sua trajetória profissional no ensino fundamental, e dentro dessa
concepção ela enquadra a representação de que o professor homem é autoritário. Em
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nossa realidade local, essa característica está bem distante de tornar-se razão para
discriminação, pelo contrário. Se na educação infantil os professores parecem
inadequados, no ensino fundamental parecem necessários devido à indisciplina que
caracteriza não só a comunidade escolar pesquisada, mas um desafio da educação
brasileira atual. Por vezes, a representação do professor homem como autoridade apoiouse na representação do professor homem como figura paternal na escola.
“Eu acredito... por ser raro a presença (de professores homens na educação
infantil), eles gostam demais, eles queriam ficar perto, eles queriam abraçar,
tendo em vista também que parte das nossas famílias não têm esta
representatividade paterna dentro de casa. Penso eu então, eles associam
também, que eles têm esta carência.” (GEI 4)
“É fundamental (a presença de professores homens) dentro de uma escola, [...]
tão importante quanto a das mulheres, e não só pelo nível de conhecimento,
mas a figura masculina na escola”. […] Grande parte dos alunos vê o professor
homem também como pai”. (GEF 1)
“[...] O homem tem que participar também 'né'? […] Da educação, 'né'?, do
aluno. Também porque, em casa é a gente 'né'?, na escola o professor 'tá' como
pai do aluno, 'né'? Então eu acho importante. (FEF 7)
“[...] Muitas crianças não têm a figura masculina em casa, 'daí' o professor
passa a ser essa figura masculina que eles buscam”. (GEF 3)
“[...] Tanto lá na educação infantil quanto no primeiro, segundo, terceiro,
quarto ano, a gente sendo homem, você vê que tem coisas que a maioria das
crianças falta em casa é o carinho do pai. E quando eles têm um professor
homem, até assim em questão de disciplina, você controla com mais facilidade
[...] talvez por falta dessa afetividade, você ganha campo, você sendo homem
você ganha campo. (PEI 1)
“[...] Ela (criança)... busca um pai em você, que talvez ela não tem um pai.
Aquele carinho que ela não tem em casa do pai, você tem que 'tá' atendendo
essa criança, procurando esse carinho 'pra' ela.” (PEF 3)
Alguns autores apontam aspectos positivos no trabalho de homens como
professores de crianças (ERDEN et. al, 2011; RAMOS, 2011, MOSSBURG, 2004). Um
desses aspectos é suprir a ausência do pai quando as crianças são criadas apenas pela mãe,
porém não há comprovação empírica para tal afirmação (MONTEIRO; ALTMANN,
2013). Interpretamos que assim como a professora é representada como “mãezona”, o
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professor é representado como pai. E nessa altura das discussões, suspeitamos que isso se
deva a representações do que seja a função das escolas, das instituições de educação
infantil e dos próprios educadores.
Com as mudanças resultantes do trabalho, na atualidade pais e mães passam
menos tempo com seus filhos e dessa forma adultos e crianças têm obrigações e
ocupações durante o dia. Nesse sentido, ocorre uma atribuição de obrigações à escola e
consequentemente aos seus profissionais, obrigações com as quais, muitas vezes, nem os
pais podem lidar. Santos (2007) em pesquisa que aborda relações entre família e escola
no processo de socialização primária, entrevistou pais que reconheciam ser impossível ou
muito difícil se responsabilizar pelo desenvolvimento de normas e padrões de etiqueta,
conduta, comportamento e interação social e que atribuem à escola a maior
responsabilidade pela inserção no universo de normas de civilidade.
O que constatamos é que na educação infantil ou no ensino fundamental, as
atribuições e representações associadas aos professores e professoras está ligada à
delegação de tarefas aos profissionais da educação e às instituições de educação, de forma
a compensar a impossibilidade ou dificuldade de os próprios familiares executá-las: a
“mãezona” “tem jeito” para cuidar de criança, logo, é adequada para ser professora na
educação infantil, já o homem é “descuidado” o que o torna inadequado, portanto a função
da educação infantil é cuidar de crianças; o homem é (mais) respeitável, tem mais
autoridade, portanto disciplinará as crianças enquanto os pais trabalham; os professores
homens são a figura paternal na escola, além de suas tarefas como professores eles
desempenharão papéis de pais? E, finalmente, a mais séria, velada e presente
representação social: a representação de que o professor é um pedófilo em potencial e/ou
tem uma erotizada relação com seus alunos, especialmente alunas.
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"[…] em certas situações, não sei, como trocar, ‘né’? Sei lá... Tipo assim...
Uma troca de fralda, de repente uma situação mais íntima, principalmente da
menina, eu acho que seria um pouco constrangedor para ele, não sei se eu ‘tô’
certa." (FEI 1)
“Eu acho que o mais certo é você acompanhar o seu filho e sempre conversar
muito, porque tem aquele perigo: é uma menina, é uma moça. (…) Entendeu?
(…) Mas eu acho que, assim, que se a gente conversar, se a gente participar
'né'?, sempre que possível, que às vezes tem mãe que trabalha e não tem
condições de ir (observar os filhos no ambiente escolar), 'né?” (FEF 6)
“[...] Eles (os homens estagiários em educação infantil que passaram por
aquela instituição) fizeram (observação) de 0 a 3 (anos) sim, mas, assim, no
maternal não envolvia troca, não envolvia assim, 'né'? Mesmo que tivessem é
claro que eles iam deixar para a professora ou outra acadêmica que fosse
mulher. Acho assim que é um receio da pessoa, porque a gente vive em um
mundo tão turbulento, é claro que isto não cabe a nenhum que passou por aqui,
mas a própria sociedade já olha com um olhar diferente.” (GEI 4)
“[...] Até trabalhei com uma menina cadeirante, que quando ela fazia suas
necessidades, num determinado tempo, quem me auxiliava... Eu tinha amizade
com a pessoa que trabalhava nos serviços gerais e falei 'Ó, você vai ter que me
ajudar, porque não tem como ir ao banheiro lá e trocar a menina!' Sou homem
'daí' é difícil 'né'?. Como que um pai vai e pegar e o.... Aí não tem jeito 'né'?.
(PEI 1)
“[...] Na hora do banho eu preferia, 'pra' não ter comentários, trocar... Então a
professora da outra sala deixava os meninos dela comigo e eu ficava com os
meus e eu passava as minhas meninas 'pra' ela. Então ela dava banho em todas
as meninas e eu em todos os meninos. Eu acho importante também a gente
participar dessas atividades, embora tinha a recreadora 'pra' ajudar, mas é
importante não dividir as crianças.” (PEI 2)
De acordo com Ramos (2011) o cuidado físico, quando executado por
educadores/cuidadores homens representa, para pais, uma ameaça à integridade física da
criança, o que pode limitar as atividades por eles realizadas. Essa ameaça, no entanto, não
é sentida quando as mesmas atividades são realizadas por professoras mulheres, pois elas
“trazem consigo a vocação para a maternidade e elas são, por natureza, quem protege e
cuida dos filhos com desvelo e são incapazes de cometer maldade contra as crianças (p.
107)”. Dessa forma, temendo a sexualidade masculina, é como se faltasse sexualidade à
mulher, como se ela não possuísse impulsos sexuais causadores de corrupção (RABELO,
2013).
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O medo da pedofilia torna a educação infantil um espaço não tão receptivo ao
professor homem, pois é a etapa da educação em que há o maior contato físico entre
professor e aluno/criança. Considerando que essa é a representação social de maior
expressão, mesmo implicitamente, com certeza se configuraria como mais um fator que
tornaria o professor homem inadequado para a educação infantil.
A educação infantil sempre foi composta majoritariamente por professoras
mulheres, mas isso não ocorreu com o ensino fundamental, por exemplo, que já foi
composto majoritariamente por homens. Consideramos os fatores de ordem econômica e
política, e social, as transformações no trabalho como causadores de uma
(des)masculinização do magistério, processo este permeado no âmbito dos fatores sociais
por imagens, significações e representações atribuídos a professores e professoras, algo
sustentado por diversos estudos (LOURO, 1997; CARVALHO, 1998; GONÇALVES,
2009, MATTOS, 2011; MONTEIRO, ALTMANN, 2013; RABELO, 2013). Como as
representações podem contribuir para essa organização, acreditamos que a reprodução de
que o homem professor é um pedófilo em potencial contribui para afastar homens da
profissão docente nesse etapa da educação, assim como torná-los indesejáveis.
Generalizar atitudes de professores e professoras é imprudente, especialmente no
que diz respeito à pedofilia, pois concordando com Moreira e Santos (2002), há diferentes
perfis de feminilidade e masculinidade compondo o cenário da docência escolar, portanto
os homens não se comportam sempre da mesma forma, o mesmo ocorre com as mulheres,
e isso considerando-se apenas a complexidade dos gêneros, ou seja, sem considerar as
diversas formações pelas quais cada professor passa e consequentemente pelas
competências e habilidades desenvolvidas em formação e no exercício da profissão.
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Representações sociais do (professor) homem
FEI
FEF GEI GEF PEI PEF
Descuidado, inapto e/ou inadequado
(Mais) Respeitável
Figura paternal
Pedófilo em potencial
Tabela de abrangência de representações sociais por grupo taxionômico.
Considerações finais
No que diz respeito à atuação de professores e professoras com crianças, o gênero
mostra-se como uma categoria de análise essencial, tendo em vista que a profissão
docente é representada de acordo com o gênero antes da própria formação profissional.
Utilizando a atuação profissional de professoras como ponto de partida, foram
estabelecidas comparações que em relações de contradição caracterizaram homens e
mulheres e consequentemente suas próprias atuações profissionais, num processo
propenso a fortalecer e distanciar representações sociais.
A maioria das representações identificadas evidenciam que as funções dos
familiares de crianças são confundidas com as funções de professores e professoras, e a
partir da ideia de qual profissional pode cumprir melhor tais funções é que são definidas
as preferências e as concepções de profissional (mais) adequado para cada etapa de
ensino.
Alguns sujeitos da pesquisa possuiam um discurso favorável à presença de
homens em cada etapa de ensino, mas isso não os livrava da convivência em um cenário
educativo em que há representações que nem sempre tornam essa presença tão favorável.
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Nesse sentido, mesmo não concordando com determinadas representações sociais, isso
não os impediu de expressá-las.
Considerando que as representações sociais interferem na atitude de pessoas e
grupos, estimulamos estudos que busquem compreender e divulgar representações sociais
da profissão docente, mas especialmente das funções da escola, da família e dos
professores, como forma de contribuir para a desconstrução de preconceitos, mesmo que
o alcance seja inicialmente no meio acadêmico.
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SEXO X GÊNERO: O QUE PESSOAS ADULTAS PENSAM SOBRE ESSES CONCEITOS?
Sex x Gender: What Adults Think About These Concepts?
Adriana Horta de Faria1
Leonardo Alves de Oliveira 2
Josiane Peres Gonçalves 3
Resumo: O objetivo desse estudo é investigar se pessoas adultas conhecem os conceitos de sexo e gênero
e se conseguem identificar quais são os papéis de gênero na sociedade atual. A pesquisa de campo foi
realizada com 26 participantes, com idade entre 24 e 53 anos, por meio de questionário. Os resultados
indicaram que as pessoas não conhecem os conceitos de sexo e gênero, mas relacionam orientação sexual,
relações de poder, identidade sexual e papéis de gênero aos conceitos.
Palavras-chaves: Sexo; Gênero; Papéis de Gênero.
Abstract: The aim of this study is to investigate whether adults know the concepts of sex and gender and
can identify what are the gender roles in society today. The field research was conducted with 26
participants, aged 24 to 53 years, using a questionnaire. The results indicated that people do not know the
concept of sex and gender, but relates sexual orientation, power relations, sexual identity and gender roles
to the concepts.
Keywords: Sex; gender; Gender roles.
Introdução
Enquanto a futura mamãe aguarda a chegada de um novo bebê, durante o período
de gestação, a pergunta que geralmente lhe é direcionada diz respeito ao sexo da criança.
As pessoas têm curiosidade de saber se o bebê é menino ou menina e, dependendo da
1
2
3
Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Naviraí
(UFMS/CPNV). Integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa em Desenvolvimento, Gênero e Educação
(GEPDGE).
Bolsista
de
Iniciação
Científica
PIBIC
CNPq.
E-mail:
[email protected]
Graduando em Pedagogia pela UFMS/CPNV. Integrante do GEPDGE. Bolsista de Iniciação Científica
PIBIC CNPq. E-mail: [email protected]
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora
Adjunta da UFMS/CPNV. Líder do GEPDGE. E-mail: [email protected]
Endereço UFMS/CPNV: Rodovia MS 141, Km 04, Saída para Ivinhema, CEP 7995-000, Naviraí – MS.
Telefone: (67) 3409-3401. Site do campus: http://cpnv.sites.ufms.br
Agência de Fomento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq.
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resposta, já passam a ter alguma expectativa em relação ao que se espera da criança após
o nascimento.
Diante desse contexto, podemos afirmar que o sexo é a primeira referência para
categorizar as pessoas ao longo da vida e é comum haver a preocupação em saber qual é
o sexo do bebê, porque temos concepções muito diferentes sobre como devem ser as
pessoas de cada sexo, do que são capazes, de como devem ser tratadas, do que é melhor
para elas e até do seu valor para a sociedade.
Assim, dependendo do sexo da criança, os pais ou responsáveis mudam a forma
de tratar o bebê, agindo de acordo com os padrões estabelecidos na cultura em que estão
inseridos. Nesse caso, surgem algumas indagações: Quando se trata de comportamentos
diferenciados em relação à menina e ao menino, por exemplo, estamos nos referindo ao
sexo ou ao gênero? Será que existem diferenças entre ambos os conceitos ou podem ser
considerados como sinônimos?
Para melhor compreender essa problemática é que foi desenvolvido o presente
estudo que tem por finalidade refletir sobre as diferenças entre os conceitos de sexo e
gênero, bem como investigar se pessoas adultas conhecem os conceitos de sexo e gênero
e se conseguem identificar quais são os papéis de gênero na sociedade atual.
Esperamos que as reflexões apresentadas nesta pesquisa contribuam para que haja
uma maior compreensão sobre o significado de gênero, de acordo com pesquisadores que
desenvolvem estudos nessa área.
Sexo e Gênero: algumas reflexões
Sabemos que algumas diferenças que existem entre mulheres e homens são
biologicamente inatas e essenciais à reprodução, há diferenças nos órgão sexuais, nos
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genes e nos hormônios. A categorização por sexo ultrapassa as características biológicas,
o ser homem ou mulher, nos direciona a ambientes sociais diferentes.
As definições culturais de masculinidades e feminilidades, as expectativas e
experiências diferenciadas, todos os significados sociais e psicológicos ligados ao que é
ser homem ou mulher são relacionados a gênero, embora o sexo seja o que define a
categorização inicial, o gênero é mais aprendido do que inato.
O conceito de gênero surgiu entre as estudiosas feministas para contrapor à ideia
da essência, recusando qualquer explicação pautada no determinismo biológico, que
pudesse explicitar comportamento de homens e mulheres, empreendendo, dessa forma,
uma visão naturalista, universal e imutável do comportamento. Tal determinismo serviu
para justificar as desigualdades entre ambos, a partir de suas diferenças físicas
(NOGUEIRA; FELIPE; TERUYA, 2008).
De acordo com Alves e Corrêa (2009), o conceito de gênero, que já era conhecido
em textos das Nações Unidas, somente foi legitimado na Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento (CIPD), realizada na cidade do Cairo em 1994. Os autores
afirmam:
[...] o conceito já era então conhecido e circulava em textos do sistema das
Nações Unidas, especialmente documentos de pesquisa. Contudo, no processo
preparatório da CIPD (1993-1994), ele seria definitivamente legitimado
enquanto linguagem de política pública global, a ser negociada pelos Estados
membros das Nações Unidas (ALVES e CORRÊA, 2009, p.127).
Muito antes da legitimação do conceito de gênero, Scott já utilizava o recurso da
categoria gramatical “gênero” como ferramenta conceitual para examinar as
desigualdades entre homens e mulheres. Atualmente quando se fala em gênero é
fundamental analisar o conceito considerado por Scott (1998, p. 15):
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Gênero é a organização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade
biológica primeira, mas ele constrói o sentido desta realidade. A diferença
sexual não é a causa originária da qual a organização social poderia derivar;
ela é, antes, uma estrutura social móvel que deve ser analisada nos seus
diferentes contextos históricos.
Diante desta perspectiva, o conceito de gênero pode ser utilizado para estabelecer
o que é social, cultural e historicamente determinado, isto porque nenhum indivíduo
existe sem relações sociais, desde que nasce.
Na mesma vertente, Grossi (2015, p. 5) destaca que:
Gênero serve, portanto, para determinar tudo que é social, cultural e
historicamente determinado. No entanto, [...] nenhum indivíduo existe sem
relações sociais, isto desde que se nasce. Portanto, sempre que estamos
referindo-nos ao sexo, já estamos agindo de acordo com o gênero associado ao
sexo daquele indivíduo com o qual estamos interagindo.
Desta forma, mulheres e homens devem ser definidos não pelos órgãos sexuais,
mas pela sua identidade de gênero, levando principalmente em consideração que papeis
desempenham na sociedade.
Por este prisma, Jesus (2012, p. 8) observa:
Sexo é biológico, gênero é social, construído pelas diferentes culturas. E o
gênero vai além do sexo: O que importa, na definição do que é ser homem ou
mulher, não são os cromossomos ou a conformação genital, mas a autopercepção e a forma como a pessoa se expressa socialmente.
A diferença biológica é apenas o ponto de partida para a construção social do que
é ser homem ou ser mulher. Em outras palavras, o sexo é atribuído ao biológico, enquanto
gênero é uma construção social e histórica. Saffioti (1998) afirma que prefere trabalhar
com o conceito de relações de gênero, ao invés de relações sociais de sexo por entender
que:
O termo gênero está linguisticamente impregnado do social, enquanto é
necessário explicitar a natureza social da elaboração do sexo. O conceito de
relações de gênero deve ser capaz de captar a trama de relações sociais, bem
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como as transformações historicamente por ela sofridas através dos mais
distintos processos sociais, trama esta na qual as relações de gênero têm lugar
(SAFFIOTI, 1998, p.6).
De forma similar, Gonçalves (2009, p. 26) afirma que “[...] o sexo se refere às
diferenças biológicas de homens e mulheres, enquanto que gênero é um construto social
relacionado à forma como historicamente os grupos sociais foram criando e efetivando
os padrões de comportamentos para ambos os sexos”.
Os atributos e papéis relacionados ao gênero não são determinados pelo sexo
biológico. Estes papéis estão baseados em relações socialmente prescritas. O papel
feminino é visto como gentil, emocional e dependente, o masculino agressivo,
independente e dominante. (GROSSI, 2015).
Desta forma, o fato é que a grande diferença que percebemos entre homens e
mulheres é construída socialmente, desde o nascimento, quando meninos e meninas são
ensinados a agir de acordo como são identificadas, a ter um “papel de gênero adequado”.
Assim, os papéis femininos e masculinos são considerados opostos, contudo é possível e
compreensível que mulheres sejam masculinas como os homens podem ser femininos.
Para Grossi (2015), papel de gênero pode ser entendido como “[...] tudo aquilo
que é associado ao sexo biológico fêmea ou macho em determinada cultura é considerado
papel de gênero. Estes papéis mudam de uma cultura para outra.” Na nossa sociedade os
papéis de gênero são divididos em masculinidades e feminilidades, são traços de
comportamento que identificam e distinguem homens e mulheres.
Vale ressaltar ainda o que afirma Grossi:
A ênfase colocada na ‘origem social das identidades subjetivas’ não é gratuita.
De fato, não existe uma determinação natural dos comportamentos de homens
e de mulheres, apesar das inúmeras regras sociais calcadas numa suposta
determinação biológica diferencial dos sexos usadas nos exemplos mais
corriqueiros, como ‘mulher não pode levantar peso’ ou ‘homem não tem jeito
para cuidar de criança’ (GROSSI, 2015, p. 4).
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Contudo, a autora deixa claro que essa doutrina da ordem natural não passa de
uma formulação ideológica que é utilizada para justificar os comportamentos sociais de
homens e mulheres em determinada sociedade. Especialmente nas sociedades ocidentais,
a biologia é uma explicação de grande peso ideológico, pois aprendemos que ela é uma
ciência e que, portanto, tem valor de verdade.
Entretanto a biologia física não define o comportamento masculino ou feminino
das pessoas: o que faz isso é a cultura, a qual define alguém como masculino ou feminino,
e isso muda de acordo com a cultura da qual falamos. Sob esta ótica, Maria Luiza Heilborn
(2013) destaca que as atitudes e ações das pessoas que se diferenciam através do sexo
variam de sociedade para sociedade, de tempos em tempos:
O comportamento esperado de uma pessoa de um determinado sexo é produto
das convenções sociais acerca do gênero em um contexto social específico. E
mais, essas ideias acerca do que se espera de homens e mulheres são
produzidas relacionalmente; isto é: quando se fala em identidades socialmente
construídas, o discurso sociológico/ antropológico está enfatizando que a
atribuição de papéis e identidades para ambos os sexos forma um sistema
simbolicamente concatenado (HEILBORN, 2013, p. 12).
Mulheres de países nórdicos têm características que, para nossa cultura, são tidas
como masculinas. Ser masculino no Brasil é diferente do que é ser masculino no Japão
ou mesmo na Argentina. Há culturas para as quais não é o órgão genital que define o sexo.
Ser masculino ou feminino, homem ou mulher é uma questão de gênero. Logo, o conceito
básico para entendermos homens e mulheres é o de gênero (JESUS, 2012).
Identidade de gênero
A construção da identidade depende das relações que estabelecemos com os
outros, do meio sócio-cultural, das leis e normas sociais e da forma de vida dos diversos
grupos aos quais pertencemos, contudo a identidade de gênero se refere à constituição do
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sentimento individual de identidade. Desta forma a identidade de gênero faz referência a
como nos reconhecemos dentro dos padrões de gênero estabelecidos socialmente.
Existem dois sexos, mulher e homem, e consequentemente os gêneros feminino e
masculino. Embora a maioria das mulheres se reconheça no gênero feminino e a maioria
dos homens no masculino, isto nem sempre acontece. Falamos, então, de pessoas cujo
sexo biológico concorda ou discorda do gênero psíquico: são os cisgêneros e os
transgêneros.
São chamadas de cisgênero as pessoas que se identificam com o gênero que lhes
foi atribuído quando ao nascimento, ou seja, pessoas que têm o gênero em acordo com o
sexo. As pessoas não-cisgênero, que não se identificam o sexo biológico com o gênero,
são denominadas como transgêneros. (JESUS, 2012).
Ainda segundo a autora, é valido ressaltar que no Brasil, ainda não há consenso
sobre o termo. Há quem considere transgênero como uma categoria à parte das pessoas
travestis e transexuais. Existem ainda as pessoas que não se identificam com qualquer
gênero, não há consenso quanto a como denominá-las.
Metodologia
Neste trabalho procuramos empreender uma pesquisa de natureza qualitativa. De
acordo com Ludke e André (1986) o ‘significado’ que as pessoas dão às coisas e à vida
são focos de atenção especial pelo pesquisador. Nesses estudos há sempre uma tentativa
de capturar a perspectiva dos participantes, isto é, a maneira como os informantes
encaram as questões que estão sendo focalizadas. Buscamos investigar se as pessoas
conhecem o conceito de sexo e de gênero e se conseguem identificar quais são os papéis
de gênero na sociedade atual.
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O que nos motivou a pesquisar o tema foi a participação nas reuniões do Grupo
de Estudos e Pesquisas em Desenvolvimento, Gênero e Educação (GEPDGE), vinculado
ao curso de Pedagogia e Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul - Campus de Naviraí (UFMS/CPNV). Sempre na primeira reunião com novos
membros era perguntado o “que é gênero?” e grande parte dos participantes confundia o
conceito com sexo. Assim, surgiu a dúvida: as pessoas sabem o que é gênero e o que é
sexo? Reconhecem os papéis de gênero na sociedade?
Escolhemos para coleta de dados a utilização de questionários, que segundo
Marchesan e Ramos (2012, p. 03) “são instrumentos desenvolvidos para medir
características importantes de indivíduos e para coletar dados que não estão prontamente
disponíveis ou que não podem ser obtidos pela observação”.
O instrumento foi composto por questões de identificação e duas questões abertas.
Na identificação os participantes tinham que escrever sobre sua idade, escolaridade,
profissão e sexo. Por meio das respostas sobre o “sexo”, é possível perceber como cada
sujeito se identifica e esse item ainda fundamenta a primeira pergunta aberta, que é
complementada pelo segundo questionamento: 1) Ao se identificar você explicou sobre o
seu sexo, o que você entende por sexo? 2) E o que é gênero feminino e masculino?
Estes questionários foram distribuídos em empresas, na universidade e no
comércio em geral. Por se tratar de um formulário com questões curtas, ao entregá-lo o
pesquisador se afastava e aguardava a devolução. No total, 26 sujeitos colaboraram com
a pesquisa.
As idades dos participantes variaram de 24 a 53 anos, sendo que 5 declararam ter
o ensino médio completo, 12 cursando o ensino superior, 3 com ensino superior completo,
1 com mestrado e 5 não expuseram a escolaridade. Entre as profissões encontram-se:
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donas de casa, funcionários públicos, agente de saúde, professores da educação infantil,
professora do ensino superior, técnicos em eletrônica, administrador, supervisor, técnico
em enfermagem e cozinheira. Todas as pessoas que fizeram parte da pesquisa residiam
em um município, de aproximadamente 50.000 habitantes, localizado no interior do
estado de Mato Grosso do Sul.
Resultados e discussão
Entre o total de pesquisados, 15 são mulheres, 9 são homens e 2 não declararam o
sexo. Ao preencher no questionário os itens de identificação, todas as mulheres se
autodeclararam como feminino e os todos os homens como masculino. É interessante
notar que no questionário havia a palavra “sexo”, seguido de um espaço em branco para
que o participante pudesse preencher livremente, sem interferências. E mesmo
respondendo individualmente, a maioria preencheu como é solicitado em outros
formulários: masculino ou feminino, ou ainda M ou F.
Grossi (2015, p. 6) afirma claramente sobre a definição de sexo: “Quando falamos
de sexo, referimo-nos apenas a dois sexos: homem e mulher (ou macho e fêmea, para
sermos mais biológicos), dois sexos morfológicos sobre os quais ‘apoiamos’ nossos
significados do que é ser homem ou ser mulher.”
Considerando que sexo é uma categoria que delimita os campos do que é ser fêmea
e do que é ser macho, gênero, por sua vez, é um conceito mais relacionado ao que é
feminino, masculino ou a relação entre os dois. Constatamos, portanto, que os
participantes confundiram sexo com gênero. Diante da indagação “Ao se identificar você
explicou sobre o seu sexo, o que você entende por sexo?” alguns explanaram de forma
adequada o conceito de sexo:
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Homem, ensino médio, técnico telecomunicações: “Mulheres e homens.”
Homem, ensino médio, eletricista: “Mulher e homem.”
Homem, ensino médio, técnico em infraestrutura: “Diferença maior entre os seres da
mesma espécie, é o que nos permite a reprodução é a definição maior que nos separa ao mesmo
tempo que nos une, para que possamos continuar a nossa existência”.
Mulher, cursando curso superior, professora da educação infantil: “O básico se é
homem ou mulher, ou seja, não define outras opções”.
Mulher, ensino médio, funcionaria pública: “Definição de homem e mulher”.
Mulher, não declarou a formação e nem a profissão: “São os órgãos genitais, que é
o pênis e vagina”.
Mulher, cursando ensino superior, funcionária pública: “Sexo é o que diferencia
homem e mulher, seria por um órgão do corpo”.
Mulher, cursando curso superior, dona de casa: “Entendo por homem e mulher”.
Homem, superior completo, técnico em telecomunicação: “Acredito ser a diferença
que Deus criou em nós, para assim haver reprodução”.
Sem identificação: “A definição de homem e mulher suas características físicas”.
Mulher, cursando curso superior, funcionária pública: “O sexo feminino é
diferenciado pelo órgão sexual, ao contemplar um corpo de um homem e uma mulher os traços
físicos falam por si”.
Mulher, cursando curso superior, dona de casa: “Feminino significa que tem órgãos
de mulher e masculino, órgãos de homem”.
O sexo é uma característica imposta pela natureza e definida pela ciência, é uma
particularidade física com o qual nascemos, o que acontece a partir daí se constitui em
gênero, ou seja, são definições sociais de comportamento. Nas palavras de Jesus (2012,
p. 8):
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Para a ciência biológica, o que determina o sexo de uma pessoa é o tamanho
das suas células reprodutivas (pequenas: espermatozóides, logo, macho;
grandes: óvulos, logo, fêmea), e só. Biologicamente, isso não define o
comportamento masculino ou feminino das pessoas: o que faz isso é a cultura,
a qual define alguém como masculino ou feminino, e isso muda de acordo com
a cultura de que falamos. Sexo é biológico, gênero é social, construído pelas
diferentes culturas.
O gênero de um sujeito é determinado social, cultural e historicamente, não é
sinônimo de sexo. É mutável, pois está em constante processo de ressignificação devido
às interações concretas entre indivíduos dos dois sexos. Scott (1998, p. 15) sublinha que:
Por ‘gênero’, eu me refiro ao discurso sobre a diferença dos sexos. Ele não
remete apenas a idéias, mas também a instituições, a estruturas, a práticas
cotidianas e a rituais, ou seja, a tudo aquilo que constitui as relações sociais. O
discurso é um instrumento de organização do mundo, mesmo se ele não é
anterior à organização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade
biológica primária, mas ele constrói o sentido desta realidade. A diferença
sexual não é a causa originária a partir da qual a organização social poderia ter
derivado; ela é mais uma estrutura social movediça que deve ser ela mesma
analisada em seus diferentes contextos históricos.
A ideia acima é a de que gênero serve para salientar o cunho social das diferenças
entre os sexos. Ainda sobre o que os sujeitos entendiam sobre o que é sexo, vários
respostas relacionaram sexo com gênero:
Mulher, cursando ensino superior, cozinheira: “Sexo feminino, chamado de sexo
frágil, quando na verdade é o contrário, pois somos determinadas e confiantes. Sexo masculino,
infelizmente ainda é o sexo machista e preconceituoso que não aceita a compatibilidade”.
De maneira bem semelhante, mulher, cursando superior, técnica de enfermagem,
responde: “Sexo feminino é o tal sexo frágil, onde a mulher é taxada como a mulher fragilizada,
e o sexo masculino é o homem machista, onde ele é o que se destaca o cotidiano familiar”.
Na definição de Scott (1998, p. 14), “[...] gênero é um elemento constitutivo das
relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e também um
modo primordial de dar significado às relações de poder”. Com base no conceito da
autora, entendemos que estas relações de poder acontecem devido à percepção ou juízo
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de valor que os indivíduos têm sobre as outras pessoas a partir da anatomia sexual. Isto
institui estereótipos a respeito de sujeitos, grupos ou objetos, determinando um padrão
fixo, invariável e que nega diferenças individuais e culturais; manifesta-se através de
julgamentos, sentimentos ou imagens preconceituosas. Por exemplo: homem forte,
mulher frágil.
A definição gênero também é utilizada para analisar a questão da igualdade e da
diferença, movendo para uma nova direção de interpretação e transformação da realidade
social. Araujo (2005, p.46) esclarece o que Scott declara sobre a igualdade de gênero.
Segundo ela, a própria antítese igualdade-versus-diferença oculta a
interdependência dos dois termos, uma vez que a igualdade não é a eliminação
da diferença e a diferença não impede a igualdade. Desconstruída essa antítese,
diz Scott, será possível não só dizer que os seres humanos nascem iguais, mas
diferentes, como também sustentar que a igualdade reside na diferença. Para
a autora, o uso do discurso da diferença macho-fêmea envolve uma outra
cilada: oculta as diferenças entre as mulheres (e entre homens), no
comportamento, no caráter, no desejo, na subjetividade, na sexualidade, na
identificação de gênero e na experiência histórica. Há uma enorme diversidade
de identidades de mulheres e homens, que supera essa classificação
masculino/feminino; a categoria macho/fêmea suprime as diferenças dentro de
cada categoria. A única alternativa é, pois, recusar a oposição
igualdade/diferença e insistir continuamente nas diferenças como a condição
das identidades individuais e coletivas, como o verdadeiro sentido da própria
identidade. Na proposta desconstrucionista de Scott, a diferença binária daria
lugar à diferença múltipla, única forma de fugir das armadilhas da disjunção
igualdade ou diferença.
Scott demonstra, em seus ensaios, preocupação em tratar as relações entre
mulheres e homens a partir de uma ótica que faça com que estes sujeitos não sejam vistos
como separados, a igualdade de gênero busca: igualdade de direitos e liberdades para a
igualdade de oportunidades de participação, reconhecimento e valorização de mulheres e
de homens, em todos os domínios da sociedade, político, econômico, laboral, pessoal e
familiar (BRASIL, 2014).
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Continuando com as definições em que os participantes relacionaram sexo com
gênero, temos mulher, cursando curso superior, professora: “Feminino no sentido mulher,
mãe e esposa”.
Homem, superior completo, comerciante: “Sexo é diferenciado por órgãos genitais
do homem e da mulher e pelos hábitos de vida. Existem muitas culturas com relação à vida
social”.
Mulher, com mestrado, professora: “Características que determina a presença do órgão
feminino ou masculino. Conjunto de fatores sociais, culturais e históricos dos sujeitos”.
Homem, superior completo, funcionário público: “Sexo feminino ou masculino é o
gênero de cada pessoa o que ela representa diante seus documentos pessoais como RG, registro
de nascimento”. E complementa “É o perfil do cidadão traçado para o mundo. Isto é vai levar
para toda sua vida, podendo ter comportamentos diferentes do que é registrado em si próprio”.
Mulher, cursando curso superior, professora auxiliar: “Nome que se dá ao homem e
mulher, questão cultural”.
Os participantes da pesquisa fazem uma confusão conceitual sobre sexo e gênero.
Alguns citaram que sexo é uma determinação biológica, mas também relacionaram com
aspectos sociais, comportamentais, culturais e históricos. Embora um indivíduo tenha
nascido com determinado órgão genital, não incorre que ele, necessariamente, tenha
atitudes que se espera de uma suposta correspondência homem/masculino ou
mulher/feminina.
Na segunda questão buscamos verificar se os sujeitos pesquisados sabem o que é
gênero de acordo com as concepções da Psicologia e das Ciências Sociais, para tanto
indagamos: E o que é gênero feminino e masculino? Alguns participantes demonstraram
ter conhecimento apropriado do conceito.
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Mulher, não declarou a formação e nem a profissão: “É a maneira de se portar, ex:
nem todo homem tem o jeito mais masculino, ou seja, mais bruto..., às vezes é mais delicado e
vice-versa”.
Homem, ensino médio completo, técnico em infraestrutura: “Gênero estabelece as
relações entre homens e mulheres, os papéis de cada um junto à sociedade, as relações de poder
estabelecidas entre eles”.
Homem, superior completo, funcionário público:
Gênero feminino é o comportamento em que a pessoa é inserida em sua própria vida, identidade
pessoal. Gênero masculino é basicamente o mesmo conceito, ou seja, é o seu perfil próprio que
cada um busca para viver, podendo ter características diferentes em algumas situações. Mas da
mesma forma é a sua identidade de convivência no mundo.
Os participantes expressaram o que Grossi (2015, p.5) utiliza para categorizar
gênero de forma simplificada “[...] penso que, em linhas gerais, gênero é uma categoria
usada para pensar as relações sociais que envolvem homens e mulheres, relações
historicamente determinadas e expressas pelos diferentes discursos sociais sobre a
diferença sexual.” Outro grupo proferiu o que compreendeu por gênero relacionando com
os papéis de gênero.
Mulher, cursando curso superior, professora auxiliar: “É o que a sociedade impõe,
por exemplo, existem coisas de homem e coisas de mulher”.
Mulher, cursando curso superior, dona de casa: “A sociedade impõe que a mulher
cuida da casa e dos filhos. Homem tem que trabalhar e ser o sustento da casa”.
Mulher, ensino médio, assistente técnica: “O gênero da mulher é mais frágil e
delicado comparado ao do homem”.
Mulher, cursando curso superior, professora auxiliar: “Feminino, comportamento,
ações mais afetivas. Masculino comportamento rudimentar, autoritário”.
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Os participantes da pesquisa declararam atitudes que nossa cultura atribui a cada
gênero, ou seja, os papéis de gênero. Para Grossi (2015, p.4), “Tudo aquilo que é
associado ao sexo biológico fêmea ou macho em determinada cultura é considerado papel
de gênero. Estes papéis mudam de uma cultura para outra”. Em nossa cultura comumente
o papel de gênero é determinado pelo sexo do indivíduo, e isto acontece ao se descobrir
o sexo do bebê. A mesma autora continua: “[...] essa explicação da ordem natural não
passa de uma formulação ideológica que serve para justificar os comportamentos sociais
de homens e mulheres em determinada sociedade” (GROSSI, 2015, p.5).
Porém, os papéis de gênero são mutáveis e vem ocorrendo transformações em
nossa sociedade, as mulheres atuam em papéis antes atribuídos aos homens, exercendo
os mais diversos tipos de trabalho, e por outro lado homens atualmente fazem tarefas
consideradas femininas, como as tarefas domésticas. Vale ressaltar que as conquistas
feministas sucedem de muitas lutas e para alcançar a igualdade ainda há muito a ser feito.
Alguns pesquisados relacionaram gênero feminino e masculino com identidade de
gênero, conforme mencionado pelos seguintes participantes da pesquisa:
Homem, superior completo, técnico em eletrônica: “O gênero nada mais é aquilo que
se identifique”.
Não declarou gênero, formação e profissão: “A diferença, identificação que se dá para
um determinado grupo”.
A identidade de gênero refere a como nos reconhecemos dentro dos padrões de
gênero estabelecidos socialmente, “[...] remete à constituição do sentimento individual de
identidade”, ou seja, é como o indivíduo se sente internamente, homem, mulher ou
nenhum dos dois (GROSSI, 2015, p. 09).
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A identidade de gênero pode se referir também à forma com que as pessoas
reconhecem os indivíduos com base em suas indicações do papel social de gênero, como
as roupas, corte de cabelo, etc. Assim, a sociedade, direta ou indiretamente, busca um
consoante entre o papel de gênero e a identidade de gênero e por muitas vezes
relacionadas com a orientação sexual do indivíduo.
Ainda respondendo sobre o que é gênero feminino e masculino, em algumas
situações as pessoas pesquisadas inverteram gênero com sexo:
Mulher, não declarou a formação e nem a profissão: “Homem, mulher”.
Mulher, cursando curso superior, funcionária pública: “Gênero é o nome que se dá
para diferenciar a espécie humana”.
Mulher, cursando curso superior, professora auxiliar: “Nome que se dá por conta da
diferença física entre ambos da espécie humana”.
Mulher, cursando curso superior, funcionária pública: “Mulher e homem”.
Mulher, com mestrado, professora: “Definição genética para classificar diferenças do
aparelho reprodutor humano”.
Os participantes da pesquisa trocaram o conceito de sexo com o de gênero, com
uma abordagem estritamente biológica, ignorando assim os aspectos históricos, sociais e
culturais envolvidos nesse processo em torno da construção de significados. Em sua
definição, Jesus (2012, p. 9) enfatiza que gênero é culturalmente construído, diferente do
sexo que é biologicamente nato, esta compreensão leva à consideração da superação dos
preconceitos de gênero.
Alguns participantes, ao manifestar seu conceito de gênero, associaram com
orientação sexual, conforme mencionado pelos seguintes sujeitos:
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Mulher, cursando curso superior, professora: “Se é homem ou mulher ou se a pessoa
é homossexual”.
Homem, superior completo, professor: “Diferenciação do homem e mulher o qual
foram criados um para o outro como se diz a bíblia, existe respeito sobre suas atitudes e existe o
correto que ciência nenhuma responde”.
Os participantes relacionaram gênero à sexualidade, mais especificamente com a
homossexualidade. Sexualidade tem a ver com as formas pelas quais os diferentes
sujeitos, homens e mulheres, vivem seus desejos e prazeres corporais, em sentido amplo.
Jaqueline Jesus em seu texto “Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e
termos”, assegura que:
Orientação sexual se refere à atração afetivossexual por alguém de algum/ns
gênero/s. Uma dimensão não depende da outra, não há uma norma de
orientação sexual em função do gênero das pessoas, assim, nem todo homem
e mulher é “naturalmente” heterossexual. O mesmo se pode dizer da identidade
de gênero: não corresponde à realidade pensar que toda pessoa é naturalmente
cisgênero (JESUS, 2012, p. 12).
Existe uma confusão entre papel de gênero e orientação sexual, estereótipos
mostram os homossexuais como sujeitos desconfortáveis com suas identidades de gênero,
querendo modificar seu sexo biológico. Para a sociedade patriarcal a única orientação
sexual saudável é a heterossexualidade, este comportamento está baseado geralmente em
crenças, tradições e proibições de origem religiosa e não possui base científica.
Considerações finais
Por meio do presente estudo foi possível perceber que somente alguns dos
participantes da pesquisa sabem o que é gênero e o que é sexo, a grande maioria não
define os conceitos. Em vários momentos foram invertidos os conceitos demonstrando
confusão. Alguns falaram sobre as atitudes esperada de cada sexo, mas não compreendem
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que se trata de papéis de gênero. Somente mulheres, mesmo sem compreender o que é
gênero, falaram sobre as relações de poder, mas, ninguém falou em igualdade. Poucos
associaram gênero com a orientação sexual. Os participantes conhecem os papéis de
gênero, contudo relacionam com o sexo.
Tais dados nos conduzem à ideia de que as pessoas não conhecem o conceito e a
diferença entre sexo e gênero, ocorre um desconhecimento do que se tratam os termos e
as pessoas têm somente informação do senso comum, o que é preocupante, pois a grande
maioria dos sujeitos pesquisados possui curso superior ou estão cursando o ensino
superior.
Entendemos que é importante compreender sobre o conceito de gênero para que
os comportamentos que são culturais não sejam vistos como naturais ou inatos. É
importante que as pessoas tenham a clareza de que agem de determinada forma porque
culturalmente convencionou-se a aceitar que esse modelo é o melhor, o que não significa
que é natural e que todos tenham que seguir exatamente o mesmo padrão.
Dada a relevância e complexidade da temática, sugerimos que novas pesquisas
sejam realizadas para melhor entender o que as pessoas pensam em relação a sexo e
gênero, para então verificar se em outros contextos sociais existem opiniões diferentes
sobre ambos os conceitos que fazem parte da vida de todos os seres humanos.
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SEXUALIDADE NO CONTEXTO DO ENSINO DE CIÊNCIAS E BIOLOGIA: CONCEPÇÕES E
ABORDAGENS – REFLEXÕES DE UM TCC.
Sexuality in the context of sciences and biology education: concepts and approaches reflections of a tcc.
Bruno Barbosa de Souza1
Resumo: O respectivo trabalho é resultado das reflexões geradas do meu TCC no curso de Ciências
Biológicas (bacharelado). Em que um dos objetivos do mesmo foi investigar quais eram as concepções que
professores/as de ciências e biologia tinham/têm sobre sexualidade. Com base nele, trago algumas reflexões
e discussões que foram abordadas e recortadas para o presente trabalho, de maneira que possamos discutir
e aprofundar mais esse debate em torno da temática da sexualidade dentro dos ambientes escolares.
Palavras-chave: Ciências Biológicas; Sexualidade; ambiente escolar.
Abstract: The respective work is the result of reflections generated from my TCC in the course of
Biological Sciences (BA). Where one of the goals of the same was to investigate what were the concepts
that teachers science and biology had/have about sexuality. Based on it, I bring some reflections and
discussions that were addressed and cut for this work, so that we can discuss and deeper this debate on the
theme of sexuality within the school environment.
Words key: Biological Sciences; Sexuality; School Environment.
Introdução
Atualmente, o tema de sexualidade está se tornando o foco de grandes discussões
e debates, e cada vez mais, refletindo na comunidade escolar. Nesse contexto, a temática
da sexualidade foi inserida no Brasil, mais precisamente, no currículo escolar no ensino
fundamental e médio na década
_______________________________
1
Graduado em Ciências Biológicas (licenciatura e bacharelado) pela Universidade Federal da Grande
Dourados – UFGD. E-mail: [email protected]. Endereço institucional: Rua João Rosa Góes, 1761
– Vila Progresso – Dourados – MS - Brasil. Caixa Postal 322 – CEP: 79.825-070 Telefone (67) 3410-2002.
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de 1970, se intensificando em meados da década de 1980, a partir dos Movimentos
Feministas que ocorreram nesse período. No que argumenta Cézar (2009), foi durante o
período da ditadura no Brasil, que os temas como sexualidade e as discussões de gênero
surgiram enquanto parte de um projeto de escola e educação, que se instaurou nas bases
das lutas pela redemocratização do país. Foi nesse período que o tema sexualidade
apareceu como uma reivindicação importante dentro das pautas do movimento feminista
brasileiro. Nesse momento, a escola acabou sendo assumida como um lugar privilegiado
dos métodos de redemocratização, e a sexualidade como uma proposta que visava à
liberdade dos corpos das mulheres e dos sujeitos.
A autora destaca ainda, que toda essa ligação entre o tema de sexualidade e o
movimento feminista, causou apenas marcas leves nas práticas pedagógicas de
sexualidade no Brasil, marcas que logo foram desaparecendo. Entretanto, tal fato fez com
que se reforçassem as discussões sobre corpo, gênero e sexualidade na educação, que, por
muitas vezes, foram inibidas por fatores de ordem política e religiosa, que proibiam o
tema ser trabalhado no ambiente escolar. Com isso, Cézar (2009), reitera que é crucial o
reencontro entre o tema da sexualidade e as novas perspectivas dos estudos de gênero,
lembrando que os projetos sobre educação sexual dos anos 1970 partiram de um aspecto
libertário, representado principalmente pelas abordagens feministas.
Com a elaboração e implantação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s)
em 1996, com destaque ao volume 10, reservado à Orientação Sexual contida nos Temas
Transversais, a discussão sobre a sexualidade no ambiente escolar ganha certo destaque,
especialmente pela elevação da quantidade de gravidez entre as adolescentes, bem como
o risco de infecção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e, ainda, pelo aumento
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de trabalhos nessa área (BRASIL, 1997). Nessa perspectiva, Felipe (2009) expõe que,
conforme diz os PCNs quanto à transversalidade do tema sexualidade, todas as disciplinas
ou todos/as os/as professores/as deveriam estar preparados/as para poder desenvolver esse
tema em suas respectivas áreas, nos mais diferentes níveis de atuação.
Nessa perspectiva, os PCNs vêm com uma proposta de estimular as escolas para
uma reflexão sobre o seu currículo e sua prática, considerando que o contexto escolar tem
um papel fundamental na educação para uma sexualidade ligada a vida, englobando
questões do desenvolvimento humano. Já o papel do/a professor/a nesse contexto é o de
assumir a educação sexual como uma prática social “dotada da intencionalidade de
democratizar a sala de aula, respeitando os múltiplos aspectos da cultura nela presentes”
(LORENCINI JUNIOR, 1997, p. 94).
Visto isso, a escola como também educadora social, possui o papel de intervir,
seja no cotidiano de sala de aula, quando proíbe ou permite certas manifestações, ou
quando prefere informar a família sobre as manifestações de seus/suas filhos/as. A escola
como qualquer outra instituição, está a todo o momento transmitindo valores, sendo estes
rígidos ou não, dependendo dos/as profissionais que estão envolvidos/as no momento.
(BRASIL, 1997). Portanto, a abordagem de temas como sexualidade, gravidez precoce,
bullying, drogas, entre outros, nesse ambiente, é um grande exemplo dessas
manifestações que a escola acaba intervindo, ocorrendo muitas das vezes através de
palestras, conversas, debates, para que de alguma forma possa conscientizar os/as
alunos/as.
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É interessante lembrar também, que a sexualidade é tratada como algo que não
nos diz respeito, devido a um desinteresse sobre a sua significação, composição e
importância. Muitas pessoas desconhecem o real significado da sexualidade, tendo para
si uma percepção muito simplista do senso comum, não a reconhecendo como uma
invenção social, normatizada por saberes construídos historicamente (PEREIRA, 2006).
Deste modo, esse desconhecimento nos faz entender a sexualidade como uma questão
apenas biológica do ser humano, não deixando de reconhecer também outros aspectos
que definem e influenciam a nossa identidade social enquanto seres sexualizados.
Nessa perspectiva, autores/as trabalham a temática de sexualidade com diferentes
olhares e abordagens, cada um/a possui maneiras distintas de pautar tal fenômeno. Isso
implica em diferentes posicionamentos a respeito das sexualidades, entendendo que este
é um tema complexo e que envolve diversas concepções, assim como aspectos culturais,
sociais, históricos, psicológicos, entre outros. Portanto, definir especificamente o conceito
de sexualidade acaba sendo uma tarefa árdua, principalmente pela amplitude e
instabilidade de questões/discussões que esse conceito envolve. Mas, para uma melhor
compreensão, será apresentado a seguir diferentes abordagens e perspectivas sobre
sexualidade e como esse conceito é abordado por alguns/mas autores/as.
A sexualidade como identidade pessoal
Essa abordagem compreende a sexualidade como os processos pelos quais uma
pessoa adquire a sua maturidade, sua personalidade e a inter-relação com o meio. Nesse
sentido, Sennett apoiado em Foucault (2014, p. 4-7), pontua que a sexualidade é o meio
pelo qual as pessoas buscam ser conscientes de si próprias. Uma relação entre a
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subjetividade e a sexualidade que nós queremos e desejamos explorar. Porém, um dos
grandes problemas quando se fala em sexualidade é que ela está se tornando cada vez
mais tão importante para as pessoas, que acaba fazendo com que essa seja a única
definição de si, sua única identidade social.
No que se refere a essa concepção Pereira (2006), argumenta que a sexualidade é
como um elemento pertencente à identidade humana, em que o mesmo representa uma
forma de satisfazer as exigências psicológicas de cada pessoa a partir de suas vivências,
tendo a ver com o desejo e a busca do prazer inerente a todo ser humano. Desta forma,
quando discutimos sobre sexualidade, tratamos de sentimentos, emoções e afetos, que são
fundamentais para o desenvolvimento da vida psíquica do ser humano. Revestindo-se
assim de uma alta subjetividade que se constitui como possibilidade e caminho para a
construção de nossa identidade.
Nessa perspectiva Britzman (2010), acrescenta que podemos fazer pelo menos três
observações iniciais sobre a sexualidade, sendo que a primeira pode ser pensada como
algo que está em movimento, de uma maneira dinâmica, como algo integral à forma como
cada uma de nós perambula pelo mundo, à forma como vemos os outros e como os outros
nos veem. Na segunda observação, como a sexualidade é algo que está sempre em
movimento, então a mesma não segue as regras impostas pela cultura e pela sociedade,
ainda quando a cultura tenta controlar a sexualidade. A terceira e ultima observação, diz
respeito à sexualidade no campo do imaginário, do desejo inconsciente pelo corpo de
outra pessoa, permitindo com que ocorra um desenvolvimento da nossa curiosidade
afetivo-sexual e para quem a mesma se remete.
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A sexualidade como uma constituição sociocultural
É muito interessante nos atentar e visualizar a sexualidade dentro dos diversos
contextos históricos perpassados pela sociedade, pois assim podemos compreender que
as relações sociais influenciam direta e indiretamente nas ações constituídas pelos
sujeitos, compreendendo por fim, as influências deixadas para a sua constituição atual.
Por isso, Figueiró (2006) argumenta que a sexualidade humana é algo amplo, que envolve
diferentes fatores, dentre estes, sociais e emocionais, estabelecendo-se por meio das
relações com o ambiente e com o outro, transformando-se em algo particular e único em
cada indivíduo.
De outro modo, Nunes (2005) diz que, a sexualidade humana não está restrita ao
mundo natural (de um determinismo biologicamente animal), pois vai para além de uma
sexualidade reprodutiva, voltada principalmente para a continuação da espécie humana.
Nesses termos, a sexualidade vai para uma dimensão existencial e dinâmica, de modo
processual e mutável, estando sempre aberta para outras e novas significações, novas
experiências de sentir-se humano. Reforçando esse pensamento Pereira (2006),
argumenta que tais fatores implicam que a sexualidade transcenda o conceito meramente
biológico instintivo. Portanto, a mesma é carregada de intencionalidade e escolha,
tornando-a uma dimensão humana, dialógica, cultural e está presente desde o
aparecimento ou arranjo da cultura humana. Essa condição é própria da sexualidade, que
será entendida como uma das dimensões do ser humano, sendo considerados diversos
níveis e aspectos.
A sexualidade como função biológica
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ISSN: 1983 - 3784
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A sexualidade está presente em todos os momentos da vida do ser humano, isto é,
desde o nascimento até a velhice, como um fator marcante, sendo presente muitas das
vezes como a expressão do desejo, da escolha e do amor. Conforme complementa Ribeiro
(2006), a sexualidade é a forma de comunicação entre as pessoas, não se limitando apenas
à possibilidade de obter o prazer genital, mas tudo o que diz respeito ao corpo, seus
prazeres e suas dores. Portanto, ela precisa ser compreendida como uma expressão
afetivo-sexual que influencia o pensar, o sentir, o agir e o interagir de cada um/a, estando
diretamente ligada à preservação da saúde física e mental de cada ser humano.
Tendo uma visão que se aproxima da citada anteriormente, Pereira (2008),
argumenta que nessa concepção a sexualidade faz parte do funcionamento natural do ser
humano, controlando o nosso desenvolvimento sexual e a nossa capacidade para nos
reproduzirmos depois da puberdade. Afetando também o nosso desejo, a resposta sexual
e indiretamente a nossa satisfação sexual.
Nesse sentido, tal concepção pode se tornar uma tarefa emocionalmente
trabalhosa para os/as professores/as, porquanto estão inseridos/as em uma cultura
impregnada de ambiguidade e tabus. Reiterando essas ideias, Felipe (2009) argumenta
que muitas vezes os/as docentes não se sentem preparados/as, tranquilos/as e maduros/as
para discutir sexualidade em sala de aula. Contudo, a Escola é um espaço no qual crianças
e adolescentes podem fazer seus questionamentos, com uma maior participação em
debates sobre sexualidade.
A sexualidade segundo os PCNs
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A sexualidade segundo os PCNs é abordada de maneira que possui grande
importância no desenvolvimento e na vida psíquica das pessoas, pois ela independe de
um potencial estritamente reprodutivo, sendo relacionado com a busca do prazer,
constituindo essa uma das necessidades fundamentais aos seres humanos. Nessa
perspectiva, a sexualidade pode ser entendida como algo próprio, estando presente em
todas as etapas (com diferentes formas) do desenvolvimento humano. Portanto, uma vez
que a sexualidade é construída ao longo da vida, encontra-se essencialmente marcada pela
história, cultura, ciência, como também pelos afetos e sentimentos, sendo expresso com
singularidade em cada pessoa (BRASIL, 1997).
Nesse mesmo viés Lorencini Jr (1997), destaca que o tema sexualidade no
ambiente escolar participa ativamente de um processo social, utilizando de métodos que
possibilitam a transformação e a mudança, partindo principalmente de uma construção
coletiva para que assim possa atingir as particularidades de cada pessoa, possibilitando
que os/as mesmos/as saiam em busca do(s) sentido(s) da sexualidade.
Com essas abordagens citadas logo acima, pode-se perceber que quando falamos
em sexualidade(s), estamos falando em um leque de manifestações da identidade
afetiva/social humana, de aspectos distintos que podem nos definir enquanto seres
sexualizados (ou não sexualizados). Por isso, é de grande importância a discussão e a
abertura ao diálogo, sobre esse assunto, principalmente dentro dos ambientes escolares,
pois como já dito anteriormente, são nesses ambientes que formamos pessoas
críticas/reflexivas sobre assuntos de nossa sociedade, ensinando a esses/as formadores/as
de opinião que nossa sociedade é heterogênea e que essa mesma característica tem e deve
ser respeitada em seu todo.
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Conclusão
Com base no que foi apresentado anteriormente, podemos verificar que as
sexualidades estão intrinsecamente presentes no ambiente escolar. Portanto, é de
fundamental importância que o/a educador/a esteja sempre atento/a e também preparado/a
para saber lidar com essas questões, evitando que suas opiniões pessoais influenciem sua
prática didática sobre a respectiva temática, para que se possa reconhecer a real
importância de abordar esse assunto dentro das instituições educacionais.
Em decorrência disso, os/as profissionais da educação precisam ter um maior
acesso a programas de formação continuada para os temas transversais, especialmente,
no que se refere ao de sexualidade, para que assim possam abordar esse tema de uma
forma adequada, no intuito de promover o desenvolvimento integral de seus /suas
alunos/alunos, como pessoas e cidadãos/cidadãs pensantes/reflexivos/as. Não devemos
esquecer também da formação inicial desses/as professores/as, pois, essa formação que
irá fundamentar suas práticas didáticas em sala de aula. Portanto, vale destacar a
importância de uma formação inicial que discuta a inclusão de todos os grupos sociais,
para que possamos garantir às nossas crianças, uma educação que ensine a respeitar as
diversas pessoas que existem em nossa sociedade.
Entretanto, há certa dificuldade de alguns/mas profissionais em trabalhar tal
temática, uma vez que os/as mesmos/as são rodeadas de tabus, pré-conceitos, julgamentos
morais e éticos numa ótica científica. Além disso, a temática sexualidade quando é
retratada em sala de aula, ocorre por um viés apenas biológico, que por isso, geralmente,
causa certos constrangimentos por parte dos/as professores/as em responder algumas
perguntas, sendo que essas precisam ser esclarecidas, pois também irão contribuir para a
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construção de uma sexualidade saudável e responsável, tendo um olhar crítico e reflexivo
sobre algumas situações vivenciadas pelos/as estudantes.
Não podemos nos esquecer também, dos ambientes escolares nos quais os/as
professores/as estão inseridos/as, pois muitos ainda são conservadores e de base religiosa,
que por muitas das vezes intervém nas práticas didáticas dos/as professores/as, dizendo o
que eles/as podem ou não aplicar e até mesmo falar em sala de aula para seus/suas
alunos/as.
Em face do exposto, atentamo-nos a refletir sobre as condições de reflexão que
são propiciadas aos/as futuros professores, acadêmicos de cursos de licenciatura, pois
serão essas oportunidades de discussão e reflexão durante sua formação acadêmica, que
irá subsidiar e colaborar para a construção de uma prática pedagógica voltada para uma
formação mais reflexiva dos/as alunos/as nas escolas, sabendo lidar e/ou entender os mais
diversos temas que os/as cercam nesse ambiente (escola), e fora dele também, de uma
maneira mais crítica e reflexiva, contribuindo assim, não somente para o seu crescimento
enquanto aluno/a, mas também para um crescimento enquanto ser humano.
Referências
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Curriculares Nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual. Brasília, DF, 1997.
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EROTISMO MONOCROMÁTICO: A INFLUÊNCIA DE “50 TONS DE CINZA” NA EROTIKA
FAIR
Raquel Basilone Ribeiro de Ávila1
Gabriel Zamian de Carvalho2
Resumo: As pesquisas sobre mercado erótico e sexualidade no Brasil no âmbito das Ciências Sociais datam
do início dos anos 2000. Essas pesquisas trazem como contribuição reflexões que remetem a um campo
muito mais abrangente, envolvendo estruturas de poder que afetam e são afetadas pelas práticas nesse
âmbito. Tendo o filme “50 Tons de Cinza” como um sucesso de bilheterias no início de 2015 e também
considerando ser baseado em uma trilogia best seller que conta um romance sadomasoquista, o presente
trabalho investiga a influência deste enquanto tema da Erotika Fair. Conhecida como a maior Feira Erótica
da América Latina, é um evento que reúne atividades comerciais do mercado erótico, refletindo as
principais tendências da atualidade neste ramo consistindo, por isso, um espaço importante para o estudo
aqui proposto. Desta maneira, o objetivo do presente trabalho é verificar de que modo o filme e seu universo
literário impactam as relações afetivas e sexuais relatadas por interlocutores. Como metodologia, foram
utilizadas entrevistas qualitativas, pesquisa empírica e análise documental, nas quais se destacam para
estudo: os discursos, materiais produzidos pelos lojistas e fotografias feitas durante a feira. Assim, a
constatação de que o público feminino é o mais atento e interessado no tema, sabendo-se que estudos
anteriores apontam as mulheres como grandes consumidoras de produtos eróticos no Brasil, torna-se
necessária a problematização da categoria gênero. Para isso, são utilizados referenciais teóricos propostos
pela Teoria Queer, através de reflexões relevantes para pensar o que se tem por relação erótica, mediante
noções heteronormativas. Dos questionamentos propostos, também se pode destacar que, além de provocar
o aumento das vendas de produtos relacionados ao filme – ainda que muitos trazendo apenas uma nova
roupagem para conteúdos já conhecidos – ampliaram-se as possibilidades para as pessoas explorarem suas
sexualidades.
Palavras-chave: Sadomasoquismo; Erotika Fair; 50 Tons de Cinza.
Introdução
As pesquisas sobre o mercado erótico no Brasil no âmbito das Ciências Sociais
datam inicio dos anos 2000, em pesquisas de autoras e autores como Regina Facchini e
Sarah Machado (2013), Jorge Leite Júnior (2006), Maria Elvira Diaz-Benitez (2010) e
Maria Filomena Gregori (2011), que, apesar de recentes, começam a florescer
1
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina.
2
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.
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principalmente a partir dos anos 1970, com a chamada “Revolução Sexual” (LEITE JR,
2006).
O termo “erotismo” advém da literatura libertina do Marquês de Sade, envolta por
uma filosofia contestadora. Junto a esse contexto, no final do século XVIII, eclode o lado
vulgar do erotismo, a pornografia, apresentando-se como uma ameaça à decência. Dentro
dessa lógica vai sendo construído um binarismo entre os dois termos: “A pornografia é o
erotismo dos outros” (ABREU, p. 16, 1996), assim, enquanto o erotismo é considerado
arte, a pornografia é o comercio.
Nesse assunto, merece atenção que a expressão “mercado erótico” seja utilizada
para atividades comerciais que envolvem produtos voltados ao sexo, como filmes,
fotografias, cosméticos, brinquedos, acessórios, entre outros. Afinal, lê-se nas palavras
de Bourdieu:
Como toda a espécie de gosto, ela une e separa: sendo o produto dos
condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência,
ela une todos aqueles que são o produto de condições semelhantes, mas
distinguindo-os de todos os outros e a partir daquilo que tem de mais essencial, já
que o gosto e o principio de tudo o que se tem, pessoas e coisas, e de tudo o que
se e para os outros, daquilo que serve de base para se classificar a si mesmo e pelo
qual se e classificado (BOURDIEU, p. 56, 2007).
Por isso, o estudo do mercado erótico foge da visão marxista que reduz as relações
a uma abordagem economicista. Do mesmo modo, não cabe aqui retomar os estudos de
erotismo associado apenas a instituições médicas e jurídicas, e sim trabalhar com as
contribuições analíticas de Foucault, mas buscando uma abordagem mais contemporânea:
Torna-se estratégico investigar as práticas que envolvem os erotismos, em meio a
um universo que parece absolutamente central no mundo contemporâneo: o
mercado. Além da constatação empírica de que esse universo é significativo para
as novas alternativas eróticas, parto do pressuposto de que ele constitui atualmente
uma figura das mais paradoxais. Nesse cenário, reúnem-se experiências que
alternam, de modo intrincado, esforços de normatização e também de mudança de
convenções sobre sexualidade e gênero. (GREGORI, p. 59, 2011)
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Nosso foco neste texto, no âmbito do mercado erótico, é o estudo da influência de
“50 Tons de Cinza” nas relações eróticas dos interlocutores desta pesquisa. É importante
ressaltar que não se tem como objetivo abordar a dicotomia “mercado x consumidor”,
pois entendemos que “na direção inversa das visões que tendem a tomar o mercado ora
como mero reflexo de demandas sociais ora como força manipuladora diante da qual o
consumidor é passivo.” (GREGORI, p. 61, 2011).
O local ideal que encontramos para esta pesquisa foi a Erotika Fair3. . Considerada
a maior feira de produtos eróticos da América Latina. Torna-se interessante para verificar
sua influência na sexualidade dos entrevistados porque agrega as tendências do mercado
erótico, reunindo marcas famosas de produtos eróticos (do Brasil e do mundo), shows de
dança e strip tease, sex shops e palestras (GREGORI, 2011).
A feira estava aberta ao público por dois três e funcionava das 14 horas às 22 horas
para o público em geral e das 10 às 14 horas para imprensa e profissionais do setor.
Importante ressaltar a questão da acessibilidade na feira, em que portadores de deficiência
e maiores de 65 anos não pagam a entrada. Esta é considerada a maior feira erótica da
América Latina,
O filme “50 Tons de Cinza” se torna importante para a discussão devido ao grande
sucesso que obteve: a trilogia de livros tornou-se um best seller e seu filme homônimo é
campeão de bilheteria no Brasil. Seu conteúdo erótico, que remete ao sadomasoquismo,
possibilitou cogitar a presença desta temática na feira.
3
O evento possui um site: www.erotikafair.com.br
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Para dar continuidade, é necessário conceituar o que é sadomasoquismo.
Conhecido também por BDSM, tem sua sigla dividida em B/d (B – bondage, d –
disciplina), D/s (D – dominação, s – submissão), S/m (S – sadismo, m – masoquismo)4.
Esses conjuntos de práticas podem, e geralmente estão conjugados de diferentes maneiras
conforme diversos arranjos de relações se compõem. Dentro deste escopo, a sexualidade
dos adeptos é tida como transgressora, operacionalizando prazer e dor de maneira
conjunta, colocando em questão o risco, a consensualidade e o poder.
Também é essencial para o desenvolvimento das ideias aqui propostas elaborar a
diferença entre erotismo e pornografia, pontos que dão os tons desta história e que serão
desenvolvidos ao longo do artigo. A categoria gênero aparece como importante também,
não só pela questão de Dominação/submissão e das relações de poderes discutidas e
rediscutidas que envolvem o sadomasoquismo, mas pelo próprio perfil da maioria de
consumidores do filme: as mulheres. Segundo Joan Scott (1991), “o gênero é, portanto,
um meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre diversas
formas de interação humana”, tornando-se então, uma categoria útil para análise.
Metodologia
Esta pesquisa foi realizada através de métodos qualitativos de pesquisa. Foi
utilizada análise documental, em que estudamos dados fornecidos pela Associação
Brasileira das Empresas do Mercado Erótico e Sensual, a ABEME, sendo esta um
importante fornecedor de dados por ser a única associação a defender os interesses deste
4
Os caracteres maiúsculo e minúsculos utilizados simbolizam as hierarquias internas da comunidade
BDSM.
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setor no Brasil. Além disso, o estudo do filme “50 Tons de Cinza” foi necessário por este
ser um dos focos da pesquisa.
“50 Tons de Cinza” foi escolhido por ser o campeão de bilheterias nos cinemas
brasileiros no primeiro semestre de 2015. Seu conteúdo erótico evidente possibilitou
cogitá-lo como principal foco da Erotika Fair de 2015.
A importância da Erotika Fair neste estudo está na sua proporção. Sendo a maior
feira erótica da América Latina, move investidores do Brasil e do mundo, além de marcas
famosas de sex shops e produtos eróticos, contando com shows e palestras e atraindo um
grande público.
O contato com grande parte dos materiais foi possível devido à entrada da autora
Raquel Basilone Ribeiro de Ávila no primeiro dia da feira, tendo acesso como imprensa,
mediante um trabalho de fotografia para um site, em que tomou contato com os materiais
e fotografou os stands.
Para verificar de maneira mais específica o contato com a influência do filme nas
experiências eróticas do público, foram feitas entrevistas na feira por ambos os autores,
utilizando de um roteiro para guiar a conversa. Isso possibilitou ter contato com o discurso
dos interlocutores a respeito do impacto do filme “50 Tons de Cinza” na feira erótica e as
impressões geradas por ele.
Durante a feira, a observação dos stands com produtos e as fotografias feitas
auxiliaram para se constatar o peso do filme na tematização visual e da programação da
feira. O efeito decorrente desta estética traz cores pretas e escuras, pela associação que
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mobiliza com o universo fetichista, além de imagens de acessórios como algemas,
chicotes e máscaras.
As entrevistas foram realizadas com 11 pessoas, estando todas na feira,
procurando abarcar diferenças. Foram entrevistadas sete mulheres, três homens e uma
drag queen; quatro homossexuais, seis heterossexuais e uma heteroflexível; quatro
brancos, quatro negros, dois pardos e uma japonesa; nove de classe média, um de classe
alta e um de classe baixa; sendo uma das mulheres cadeirante e uma praticante de BDSM5.
Nela, conscientemente buscamos abarcar diferentes identidades, sendo que os
números de entrevistados refletem os perfis predominantes dos frequentadores da Erotika
Fair. Esta observação infelizmente não pode ser feita de forma mais abrangente através
de métodos quantitativos principalmente pelo pouco tempo que tivemos disponível.
Dificultou também a constatação de que o público dificilmente ficava muito tempo em
um local só, havendo maior concentração apenas nos locais dos shows, dificultando a
aplicação de um questionário junto ao roteiro. As entrevistas duraram de três a cinco
minutos.
Uma questão curiosa é que, apesar de todos estarem numa feira erótica, a maioria
dos interlocutores apresentou timidez e nervosismo ao realizar entrevista, principalmente
na pergunta sobre a compra de algum produto na feira.
5
Importante ressaltar que todas as categorias utilizadas, como mulher, homem, branco, negro, etc, foram
utilizadas pelos interlocutores para responder as perguntas sobre seus respectivos gêneros, sexualidades,
raça/cor/etnia e classe social.
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A discussão entre erotismo e pornografia também se faz necessária no texto. O
sadomasoquismo, por ser considerado uma sexualidade transgressiva (FOUCAULT,
1984; RUBIN, 1984; LEITE JR, 2006; GREGORI, 2014; PRECIADO, 2014),
constantemente aparece como tema de filmes pornográficos hardcore bizarros ou
extremos (LEITE JR, 2006), mas no caso do filme “50 Tons de Cinza”, o
sadomasoquismo é o eixo, embora reinterpretado.
Para os estudos sobre mercado erótico e sadomasoquismo, utilizaremos autores e
autoras brasileiros de estudos de gênero e sexualidade, teóricos Queer, tanto brasileiros
quanto estrangeiros, e autores clássicos da teoria social contemporânea, como Foucault e
Bourdieu.
Revisão bibliográfica e discussão
Para se discutir sobre mercado erótico no Brasil, é necessário falar sobre a
Associação Brasileira das Empresas do Mercado Erótico e Sensual, a ABEME, fundada
em 2002 e sendo a única entidade neste setor econômico do país. Ela representa a força
produtiva de 11