Revista Escrita

Transcrição

Revista Escrita
REVISTA ESCRITA
Literatura e Cultura
revistaescrita.wordpress.com – Número 2 – Maio/Junho de 2015
EXPEDIENTE
Revista Escrita:
[email protected]
issuu.com/revistaescrita
revistaescrita.wordpress.com
Equipe editorial:
Daniel Costa
João Paulo Moreto
Daniela Vitor
Giovana Ciccolani
Flávia Mendes
Contribuições:
Cecília Infanti
Joseli Moreto
Daniela Vitor
Maria Gabriela Gianini
Giovana Ciccolani
Maria Gabriela Veridiano
Gustavo Machado
Marina Laurentiis
Jefferson Vasques
Paulo Costa
João Paulo Moreto
Syara de Noronha
Capa: Quadro do Louis Boilly. Natureza morta de flores num vaso de
vidro. 1790. Disponível na Web Gallery of Art: www.wga.hu.
2
EDITORIAL
Neste bimestre, a Revista Escrita fez uma proposta temática de ensaios
sobre a mudança.
A escolha de um tema vinha da preocupação em evitar que nos
tornássemos uma vitrine desorganizada de textos desconexos frente aos
quais os leitores poderiam adotar uma postura de pescador, pegando,
aqui e ali, mais ou menos ao acaso, algo pontualmente relevante para
seu gosto e sensibilidade.
Por outro lado, entendemos que a proposta temática impõe uma
dificuldade maior aos autores, principalmente frente à proposta de
publicarmos pequenos conjuntos de textos.
Não é fácil produzir uma coletânea temática e, nem sempre, trabalhos
já realizados podem ser aproveitados.
Para a próxima edição, nos propomos a alterar o pedido: apenas um
texto necessariamente dentro do tema e até outros quatro de livre
escolha.
Não obstante, os comentários sobre a mudança surpreenderam.
Por um lado, apareceu exclusivamente como uma experiência pessoal,
individualizada, apesar do momento político e das tensões sociais
atuais.
Por
outro,
em
diferentes
graus,
as
contribuições
apareceram
carregadas da tensão entre o controle e a alienação frene à mudança
que se sofre como um efeito tão autônomo quanto a passagem do
tempo.
Boa leitura a todXs. – Equipe Editorial.
3
ENVIE SEU TRABALHO
A REVISTA recebe trabalhos (em diferentes gêneros) de qualquer
interessadX em colaborar dentro da proposta temática.
Na seleção, serão priorizadas as contribuições de quem enviar
mais de um trabalho, até o limite de cinco, sendo pelo menos um no
tema da edição e os outros livres. Com isso, esperamos conseguir expor
consistentemente os estilos dXs autorXs.
Seu trabalho deverá ser enviado em um arquivo de Word (.docx)
para o e-mail: [email protected], descrevendo no assunto:
“Contribuição para Edição”.
A
formatação
do
arquivo
deve
seguir:
fonte
Arial
12,
espaçamento 1,5 linhas, padrão de margens Normal, papel A4. A
primeira página deve conter um parágrafo de apresentação do autor,
nome completo, pseudônimo a ser publicado (se desejado) e endereço
do site pessoal ou blog.
O TEMA DA PRÓXIMA EDIÇÃO SERÁ A BRASILIDADE: O CARÁTER, O
COMPORTAMENTO E OS TRAÇOS DAQUILO OU DE QUEM É BRASILEIRO. AS
CONTRIBUIÇÕES DEVEM SER ENTREGUES ATÉ O DIA 15/06 NO EMAIL DA
REVISTA.
O site da REVISTA está aberto para receber contribuições
continuamente para publicação imediata.
Essas contribuições devem ser enviadas através do formulário (ou
por e-mail, no caso de ilustrações, quadrinhos, músicas, vídeos,
animações ou fotografias), abrangendo crônicas, contos, poemas e
também resenhas de livros, bandas, séries, filmes, shows, etc.
4
SUMARIO
EXPEDIENTE
2
EDITORIAL
3
ENTREVISTA: JEFFERSON VASQUES
7
DANIELA VITOR
14
GIOVANA CICCOLANI
20
GUSTAVO MACHADO
25
JOÃO PAULO MORETO
29
MARIA GABRIELA GIANINI
37
MARIA GABRIELA VERIDIANO
44
MARINA LAURENTIIS
49
PAULO COSTA
54
SYARA DE NORONHA
62
CECÍLIA INFANTI
66
JOSELI MORETO
69
5
Artigo II:
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
(Thiago de Mello – Os Estatutos do Homem)
6
ENTREVISTA: JEFFERSON VASQUES
Poeta, palhaço e comunista, Jeff Vasques tem quatro livros publicados
de forma independente: "Subverso" (2009), "Nada comum dia após o
outro" (2011), "Te dou a minha palavra" (2013) e "Amor livre-se" (2014,
reeditado em 2015 e disponível junto ao autor: ). Já fui publicado em
Portugal,
numa
antologia
organizada
pela
Central
Geral
dos
Trabalhadores de Portugal. Traduziu o livro "Nascimento Volátil" da poeta
colombiana Angye Gaona, perseguida politicamente pelo governoditatorial colombiano.
Também contribui com a revista "Territórios Transversais" do MTST, falando
sobre poesia e luta, além de Traduzir e divulgar a poesia de luta de
Nuestra América através do blog www.eupassarin.wordpress.com (além
de: www.facebook.com/eupassarin).
Ele, generosamente, concedeu aos editores da Revista agradáveis duas
horas de conversa sobre a política e a poesia latinoamericana, das
quais segue uma síntese de seu percurso: partindo dos fundamentos do
pensamento comunista, por nossos versos revolucionários, até o
engajamento do presente.
Para xs leitorxs, fica o aviso de que foram sequestrados seus palpites
sobre a libertação do amor de sua posse romântica até que tomem o
necessário contato com seu trabalho (livre).
“Só te peço
isto:
coerente, coeso,
fictício)
não me
ames
ama
sempre
outrem
(a este „eu‟
tão íntegro,
me traia
comigo.”
7
REVISTA ESCRITA: Prezado Jeff Vasques, é algo presente em sua
apresentação a natureza de sua orientação política. Gostaríamos que
você nos explicasse seu comunismo.
JEFF VASQUES: De início, eu parto da ideia de que vivemos uma crise.
Não é uma crise do ser humano, uma crise genérica. É uma crise da
sociedade capitalista. E é muito fácil visualizar isso, basta uma
caminhada na rua e é possível ver a desigualdade se manifestando de
alguma forma, ou ainda mais perto, basta olharmos no espelho: a crise
do capitalismo se manifesta em nossas crises ditas “existenciais”
também, o capitalismo nos faz sem-sentidos.
Podemos ver essa crise se manifestando em diversas áreas: saúde,
educação,
transporte...
é
sistêmica.
A
crise
se
manifesta
na
desigualdade de uns poucos que têm acesso a quase todas as riquezas
e uma grande maioria que não tem acesso a quase nada.
Muitos filósofos tentaram entender essa desigualdade. Um deles ao qual
eu me filio é Marx, que procurou se perguntar se essa desigualdade é
natural, se sempre foi assim. Para responder a isso ele fez um “pequeno”
estudo sobre a história da humanidade e as formas de organização
para produzir sua própria vida.
Marx observou que a realidade de exploração que vivemos hoje é
resultado da propriedade privada dos meios de produção e da
exploração do trabalho (que separa os que pensam – organizadores do
trabalho – e os que fazem, trabalhadores). Essa forma de produzir a
vida, própria do sistema capitalista foi criado pelo ser humano, não é
natural, logo pode ser superada.
Por que a grande maioria dos explorados não se revolta? Graças ao
poder de convencimento da classe dominante, que os faz acreditar
que essa desigualdade sempre existiu, é assim mesmo, sempre será.
8
Contudo, nas palavras de Marx, a contradição está sempre viva. E a
contradição é o trabalhador imaginar que trabalhando pode crescer
na vida, mas depois de uma vida de trabalho ele nunca ter saído do
lugar. Pode ser que essa contradição, vivida como agonia individual
exploda nele mesmo como uma autocrítica pessoal, a sensação de
incapacidade, incompetência, a fuga para um vício, violência
explosiva contra si ou contra outro. Mas, pode ser que o trabalhador
perceba em outros ao seu redor a ocorrência das mesmas angústias,
das mesmas dificuldades, das mesmas provações, que começam a se
articular com revolta comum. Isso permite um salto de consciência
através da identificação grupal, esse trabalhador passa a perceber que
o problema não está em si, mas fora dele (já que outros também
sentem o mesmo problema) e que, logo, pode ser superado através da
luta coletiva: lutas em torno do trabalho, da terra, da moradia.
Mas conquistar melhores salários, terra ou casa não resolvem o
problema sistêmico, que está continuamente tirando terra, casa e
salários. Eu não quero mais só casa, porque não me basta resolver
particularmente minha posição na desigualdade se ela continua se
reproduzindo em toda a coletividade. Daí a necessidade da luta
revolucionária, buscando superar o modo capitalista de produção.
É essa superação que buscam os comunistas: socializar os meios de
produção e fazer de todos tudo que se produz.
REVISTA ESCRITA: O que faz dessa minoria dona da riqueza, dona de um
poder de convencimento?
JEFF VASQUES: O poder de financiar a cultura, a arte, a mídia, a
educação. A dominação econômica estabelece a dominação
cultural.
9
No pouco tempo “livre” que o trabalhador possui ele é bombardeado
pela cultura dominante, seja para anestesiá-lo e fazê-lo esquecer das
contradições e angústias, seja para (de)formar sua consciência,
fazendo entender suas dificuldades e aflições como um problema
individual, particular, de alguém que não se esforçou o bastante ou
qualquer outra responsabilidade, como um problema natural, que não
pode ser transformado.
REVISTA ESCRITA: Dentro da sua perspectiva e atuação, o que é a arte
engajada?
JEFF VASQUES: Num certo sentido, toda arte, toda literatura é engajada,
ela parte de um contexto específico e se propõe a algo. Eu não
acredito que exista arte ou literatura ou poesia que não queira nada,
mesmo que seja fruição: é então a fruição o objetivo dela. E ela tem
sempre um objetivo e uma finalidade que vai além daquilo que está
colocado explicitamente. Além da fruição, o conjunto dessa obra,
desse autor, aponta para onde?
Nesse sentido, toda arte, literatura, é engajada, porque tem propósito e
se coloca num sentido mais amplo diante das grandes questões da
sociedade. Se você está vendo as pessoas se matando na sua frente e
está só na fruição, isto é uma opção.
É sempre a vida antes da arte. O que é a pessoa no mundo? Como ela
olha o mundo? Como ela se relaciona com o mundo? A gente
hierarquiza o mundo de alguma forma. O que é importante para mim, o
que não é, a gente concretamente, na vida, vai estabelecendo isso. E
isso, vai se refletir na minha arte.
Nesse sentido, toda arte é engajada, mas é claro que eu entendo
quando vocês perguntaram a questão de saber de outra arte
10
específica que mais diretamente se dirige à questão social, à luta, e aí
eu vou me basear no Mario Benedetti, já ouviram falar? Ele é um poeta
uruguaio que eu amo, gosto muito, uma referência muito forte para
mim também, ele inclusive é um dos poucos que já fez o que eu quero
fazer, essa antologia de poesia de luta.
Benedetti tem uma boa classificação pra esse tipo de poesia de luta:
diz que existem os que são grandes lutadores e igualmente grandes
poetas, por exemplo, o José Martí, em Cuba, que foi o mártir da
independência cubana, e é um poeta fantástico; ou o Roque Dalton,
de El Salvador, a quem eu considero um dos maiores poetas da
América, do século, autor de “O livro vermelho para Lênin”. E era,
também, um puta militante, guerrilheiro. Além desses, há também os
lutadores-poetas, que são, acima de tudo, lutadores, e em segundo
plano, poetas, como o Marighella no Brasil. E, por fim, os poetaslutadores, como o (finado) Ferreira Gullar, que já era poeta e em certo
período da sua vida se engajou na luta. Falo “finado” Ferreira Gullar,
porque há muito ele abandonou a perspectiva de transformação e se
tornou um reacionário escroque.
REVISTA ESCRITA: Onde é que a sua perspectiva de mudança encontra
uma representação artística atualmente?
JEFF VASQUES: Apesar da arte produzida por comunistas estar em baixa,
dado o momento histórico difícil que vivemos, pode-se encontrar
ressurgindo e fervilhando uma poesia contestatória, nascendo das
periferias com uma vitalidade impressionante.
É a poesia daqueles que a sociedade não quer ver nem ouvir buscando
fazer sua voz vibrar, voz que nasce carregada de perspectiva de
transformação, e sem dúvida com grande influência do Rap...
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“Racionais”, “Facção Central”, são grandes nomes importantes dessa
poesia, pra mim, não só da música.
RE: O que você considera, poeticamente, como bom ou ruim? Existem
exigências técnicas para um poema?
JEFF VASQUES: A técnica é a forma, e uma forma sempre vai existir, mais
ou menos consciente. Um garoto da 5ª série que vai escrever seu
primeiro poema na vida, ele não está escrevendo do nada, ele leu em
algum lugar ou ele ouviu um Rap e está copiando a forma, aí tem
técnica, ele não inventou do nada aquilo.
Então quando eu vou produzir arte, aquilo que acredito que seja arte,
ela será tão mais rica, quanto mais eu bebi na história dessa ferramenta.
A poesia, ao longo de sua história, foi produzia com diferentes técnicas,
diferentes formas. Quanto mais é possível beber nessas diferentes
técnicas, mais se enriquece o leque de possibilidades para se construir
um poema.
Talvez conhecer a história seja menos necessário do que o motivo “para
quê estou querendo fazer a minha arte”. Por isso que é difícil falar do
bom ou ruim, depende do “para quê” e “para quem”.
Muitos falam que o Gullar, que na época em que ele se engajou, sua
poesia ficou menor, mas porque eles não têm essa visão para além da
palavra em si, de saber a finalidade, qual era a atitude que estava por
trás da produção. Se para aquilo que ele queria funcionou, então
cumpriu seu papel. Nesse caso é necessário entrar dentro do
paradigma que rege aquela poesia, o gênero da poesia de luta, para
que seja feita uma avaliação consistente.
12
Mas, para mim, é importante conhecer a história e as diferentes
técnicas. Quanto mais eu conheço, mais me enriqueço. Quando eu só
conhecia o Gullar, a minha poesia soava Gullar, depois que eu
comecei a ler outras pessoas, isso chacoalhou minha poesia. A
possibilidade de você construir uma dicção própria aumenta. Se se
conhecem, vários, pode-se ir misturando e achando sua voz própria.
Nesse sentido, alguém que escreve um poema pela primeira vez, talvez
nem tenha consciência daquela técnica que está usando, está só
reproduzindo algo mecanicamente. Claro que isso afeta a qualidade.
Se há consciência da técnica em uso, aumenta a chance de domínio
sobre aquilo e a qualidade é potencializada.
“ENQUANTO É TEMPO
Nesta vida
fadada
– que se arrasta –
se não fores
fardo
és
farda.
Decide
rápido.
Te
prepara.
O ontem,
o hoje,
o amanhã…
quase sono algum
os separa.”
(em memória de Cláudia Sílvia Ferreira, que teve sua vida arrastada e tirada covardemente por
PMs no Rio de Janeiro)
13
DANI VITOR
Daniela Vitor nasceu em São Paulo, em 1979, mas mora em
Campinas há muitos anos. É escritora desde sempre, mas
nunca achou que tivesse uma escrita realmente relevante.
Conforme foi se descobrindo, também descobriu que
bastava que sua escrita fosse relevante para si mesma. É
também esposa, educadora e vê no bailar do Flamenco sua
paz para a alma. Apaixonada por Literatura, sempre voltada
à busca interna e espiritualidade, viu em Clarice Lispector
uma unidade de pensamento sobre si mesma e sobre o
mundo. Hoje, mestranda, também é pesquisadora
apaixonada de Clarice. Percebe o dom da escrita como
uma missão e sonha em poder viver somente disso um dia.
[email protected]
14
FINALMENTE
Arrumou a flor vermelha sangue nos cabelos negros, ajeitou a saia
provocante, e entrou para a aula.
Bailou como quem consagra o fim de um tempo e o início de
uma nova era. Sentiu cada gota de suor, cada batida do sapato, de
forma intensamente deliciosa. Era sua cerimônia particular, e divina, de
um novo começo.
Cada passo marcante, significava cada pequena vitória em todo
esse tempo em que esteve adormecida. Cada nota cantada daquela
música exótica e quente, limpava e benzia todos os seus corpos.
A expressão corporal utilizada, naqueles passos benditos, nunca
foi tão digna de tanta profundidade. Era dela e somente para ela todo
aquele cenário de magia Flamenca.
As batidas certeiras e elegantes da castanhola, tão naturalmente
madura, anunciavam um poder pessoal que ninguém jamais ousou
sentir. Estava, finalmente, livre.
Tinha nos lábios o sorriso erótico dos vencedores da vida. Alguma
textura de simplicidade e comoção num olhar totalmente misterioso,
corajoso e original.
A música cessou. A respiração ofegante e triunfante tomou conta
do espaço e fez com que ela voltasse, cá para este lado.
Os pés doendo, que sentia ao tirar os sapatos, faziam rir um riso
desajeitado de euforia e vitória. Aos poucos voltava a si. Sentia o suor
gelado queimar seu rosto e molhar de vertigem eufórica seus cabelos
tão soltos.
15
Esse súbito desemprego, que hoje a acolheu, trazia um estranho
misto
de
esperança
e
paz.
Nenhum
dinheiro,
mas
todas
as
possibilidades do mundo esperando de braços abertos.
Vendeu o carro, o apartamento e, em menos de dois meses,
estava arrumando a flor vermelha sangue, nos cabelos negros, em
terras espanholas.
A
nova
vida,
a
nova
chance,
a
felicidade
intensa
e
continuamente por um triz. E era só disso que ela precisava. E foi,
finalmente, viver.
16
ELA
Abriu o livro capa cor verde limão e saboreou mais um gole de
café.
Sabia que ficar atordoada, nada resolveria e tudo complicaria.
Era uma tarde traiçoeira de domingo, daquelas onde a preguiça
chega, mas não avisa que a segunda logo vem junto. O céu limpo pela
última chuva, continha os traços secretos de fim do dia, belos, daqueles
que nem toda alma consegue captar com clareza.
Tinha os lábios vermelhos e o coração em prantos. Escapar para
um bonito e requintado café para ler, refletir, observar, fazia dela uma
fugitiva sagaz e sedutora. O sorriso lhe escapava toda vez que um
charmoso homem tentava alguma aproximação. Sim, uma bonita e
misteriosa mulher, sozinha num café, desperta todos os sentidos mais
estranhos dos homens à caça.
Achava graça, mas não queria nada daquilo.
Sua fuga tinha mesmo um único e real objetivo: não pensar. Era,
para ela, o mais rico desejo de saborear cada gole daquele livro
encantador e ler cada gota do sublime café, assim como o último
conforto existente e possível.
Não, nada demais, nenhum drama em especial. Era mesmo o
momento de aprender a não pensar. Sentir, fluir, seguir, nada mais.
Essa era a maior e mais revolucionária nova forma de viver que
ela estava aprendendo até então. Tudo isso era novo, assustador, mas
ao mesmo tempo incrível e libertador!
17
E como reagir ao medo que vem do que é novo? Como admitir
que do jeito antigo (aquele bem acomodado, feito roupa velha e
gostosa que a gente tem dó de dar) era mais fácil e acolhedor? O que
fazer com isso? Não, voltar atrás era a única opção que não mais
existia.
Melhor mesmo era o batom vermelho arranhando a alma, com
gosto de café amargo e graça doce dos olhares que se achavam
sedutores, mas que eram motivo de riso escancarado e desafiador.
Quando nada se pode fazer, melhor mesmo aceitar com estilo e
aprender com ousadia. É isso e é só.
18
QUANDO DÓI
A dor salta à boca, amarga, seca, triste.
Os olhos pesam uma desesperança de quem perde o sono quase
às três da madrugada.
As mãos, juntas e em silêncio, oram por uma resposta. Nada. E
mais nada.
A impressão de que tudo se esvai é tão grande que as lágrimas
tomam conta de cada despedaçar da alma. Inunda, embaça, mas
lava por desespero.
Enquanto escreve seu dom, em meio a tanto caos silencioso da
noite, brilha a insistente estrela no céu.
Não sabe mais o que faz. Tenta, muito, mas cai em meio a tantas
distorções, lamúrias, pressões. O tórax de sua alma é esmagado pelo
medo e sufocado pela falta de resposta. Ela já não sabe mais como
continuar respirando.
Precisa ainda realizar tantas coisas, mas foge de outras tantas.
Medo.
Nada é seguro, confiável, romântico. Nada, o nada em absoluto.
O que ser então? Como? E para que?
Respira, observa o bonito lustre da sala. Não se conforma com o
fato de ter se iludido tanto, achando que tudo ia bem, de novo. E de
novo. Até quando?
Os olhos pesam o sono dos justos. E ela tenta adormecer.
Talvez, a melhor saída para acordar seja mesmo dormir.
19
GIOVANA CICCOLANI
Giovana A. Ciccolani, 17 anos, natural de Campinas, faz
graduação em Administração. Detém amor pela escrita,
além de deslumbramento por paisagens, animais, pelo céu à
noite e o que é simples, porém possui uma essência profunda.
Escreve por prazer, desopressão de pensamentos e
sentimentos.
https://suspirosnaspalavras.wordpress.com
[email protected]
20
SAPATO DE SALTO
Casaco, manga curta ou regata.
Viela, rua ou estrada.
Descontrolada, sem rumo ou sensata.
Com conhecida, estranha ou namorada,
Ela sempre saia com seu sapato de salto.
Com ele, se mostrava equilibrada, amparada, sensualizada.
Furava, pisava, esbanjava.
Impunha, dispunha, para ela, nunca supunha.
Mudar, desbancar seu discurso, sua opinião,
Nem moleque, nem culto, nem doidão.
Mas quando chegava em casa e punha os pés no chão,
Parecia que perdia a convicção.
Não tinha mais certeza do que defendia.
Sem pedir ajuda, chorava com seu travesseiro,
Se sentindo brinquedo, do seu sapato de salto.
21
ESTAÇÕES
De mãos dadas foram andando,
E o plano de fundo era apenas o colorido do mundo.
Ela sentindo o prazer da descoberta...
De que a vida tinha primavera, verão e outono,
E a existência, azul, amarelo e rosa.
Trilhando em direção ao fim como boa recém-chegada,
Deslumbrada se esqueceu,
Que cinza ainda fazia parte das cores do universo,
Que inverno ainda era uma das estações,
Que a mão que se dá hoje, pode não ser dada amanhã.
Depois de muito tempo se deparou com um clima cinza e frio, sem mão
para segurar,
Com medo, refez desesperadamente os próprios passos
Em busca de sua bolha,
Da bolha cinza e frígida,
Do tempo em que desconhecia a cor e o calor, jamais podendo
perceber seu frio e falta de tom.
Ela procurou por todo o tempo que nada procurara,
Mas já era tarde,
Ainda bem,
Assim chegou até a entender que há beleza do inverno,
Que nada é perfeito,
Na primavera o aroma das flores pode dar alergia, no verão as massas
frias tende ir embora, no outono as folhas acabam caindo...
Até o fim.
22
CARA MUDANÇA,
Se clamasse que te amo, seria a mais desleal farsante, em
contrapartida se dissesse que te odeio seria a mais modesta de todas as
pessoas. Embora tenha caminhado cautelosamente por boa parte de
minha vida, e eu só te olhava de soslaio, agora posso encará-la frente a
frente no espelho de minha memória, sem medo, já que hoje vejo que
todos os tipos de reviravoltas ocasionadas, acabam sendo válidas a
qualquer indivíduo.
Sendo assim, você sem titubear na trilha de minha vida ou na de
qualquer ser humano, proporcionou reviravoltas inesperadas que
causaram danos irrefutáveis e incalculáveis, como um tsunami, que
chega não mais que de repente, porém que fez-nos reconstruir com as
fortificações necessárias, para que nossos lares interiores não mais se
desfizessem tão facilmente, afinal nossas almas não são blindadas.
Além disso, não deixou de trazer àquelas trocas sutis de estágio na
escola, nos gostos, nas ideologias, que foram se expandindo, se
corrigindo, conjuntamente com aquelas transmutações doloridas em
que forçaste que tomássemos uma decisão, que cortássemos laços,
escolhêssemos um caminho dentre cinco, porque era preciso. Que fez
chorar, já que deixou de gostar, amou, mas não recebeu, adiou e
perdeu, todavia que fez rir ao final, por sentir o vento bater no rosto
como se levasse todas as agonias embora, deixando apenas a face
nua da realidade de quem busca a felicidade.
Em suma, que me fez entre as passadas rápidas até o ponto de
ônibus, olhar para meus pés e avistar a sapatilha preta que comprara
ano passado. Piscar, e notar que já usava a amarela, que troquei pela
rasteirinha, todavia choveu, experimentei o coturno, porém fez sol,
passei para o tênis, tropecei e caí, levantando depressa, visto que “se
parasse pensava, se pensava eu chorava”, como diria Moacyr Franco,
entretanto por que motivo ter medo de chorar, visto que se não penso,
23
não reflito, não avalio, não questiono, não aprendo, não evoluo, não
mudo?
À velha e nova mudança, a melhor amiga e arque inimiga, que
dá e tira, a ti devo meu tudo.
Giovana.
24
GUSTAVO MACHADO
Gustavo Machado (Gustavo de Freitas Pereira
Machado; apelido Capira) é escritor, músico compositor e
arranjador. Iniciou seus trabalhos com a arte por volta de
2010, onde começou um blog em parceria com seus amigos,
chamado Polindo os Neurônios (tudo-flui.blogspot.com), onde
faz a divulgação de uma miscelânea de poemas, todos
autorais, feitos pelo grupo Os Madeixos. Na mesma época se
dedicou a música, onde criou o grupo Caipira Vellocet, que
reúne canções, também de autoria própria e com parcerias.
Em 2013, escreveu seu primeiro livro, intitulado 1. Artigo
Indefinido, que tem como inspiração a obra leminskiana, que
é caracterizada por poemas curtos, brincando com as
palavras. Assim como pequenos escritos, o livro também é
pocket (livro de bolso). Em 2015, fez seu segundo livro, Das
Coisas e Suas Verdades, o qual caminha pelo seu próprio
universo, revelando intimidades e pensamentos do autor.
Diferente do primeiro, esse já contém poesias mais extensas,
sem muita preocupação com forma.
Contato: facebook.com/caipichado
25
CRISE CONTEMPORÂNEA-ATEMPORAL
Que é
Que é
que não é repetido?
que poderia mudar
As mesmas falas,
Se tudo
os mesmos ouvidos,
aqui é 2 + 2 = 4
as mesmas bocas,
e não se fala mais nisso?
os mesmos cochichos.
São os mesmos interesses,
As mesmas roupas,
os mesmos risos frouxos,
os mesmos copos,
a mesma visão de sempre,
as mesmas visões,
os mesmos planos tolos.
o mesmo golo.
Que é
Que é
que não permuta
que aqui não se repete?
nessa alcateia
As mesmas pessoas,
de nós-lobos?
os mesmos delírios,
Novidade, entre nós, é utopia!
os mesmos papos,
Não existe mais o novo!
os mesmos fetiches.
26
FIM
da sociedade moderna
foi depositado na Terra
preceitos ancestrais.
Transpassado
da terra ao meio,
estamos todos sujeitos
à transformação
- Rumo ao desenvolvimento
são novos pensamentos
novos ideais.
E o que pregava mudanças
ruiu em modelo de usurpas
e tudo que era visado
sair do passado
e entrar no futuro
saiu de maciota
do destino
que cantem um hino
anti-corrupção.
Escravos somos de um mundo
que continua pretérito
mundano.
Os sonhos são desviados:
- Preste atenção, soldado! Sua vida é a guerra!
Queimados estamos
de um sistema
vivendo dilemas
de soluções despropositais.
Pós-contemporâneo
que se faz atual
é moldado em mercantilismo:
"Vendamos, pois assim ganhamos mais!"
Utópica liberdade de expressão:
- Preste atenção, garoto, essa é
a globalização!
27
O avesso se transforma
na universalidade do tempo.
O tempo se transforma
na universalidade da vida.
A vida se transforma
na universalidade de tudo.
Tudo se transforma
na universalidade de nada.
28
JOÃO PAULO MORETO
27 anos, natural de Campinas (SP), apaixonado por
música com essência (ou pela essência da música), pela
família, amigos e natureza. Não sou escritor, escrevo por
desafogo e pelo ímpeto de arriscar.
[email protected]
29
O ENCONTRO DO RIO COM O NADA
Numa dessas noites
que as coisas já não cabem em nós,
Nessa cama dura
do deitar e levantar
Onde o suor sufoca
Onde o cansaço de estar cansado
te toma pelas mãos
pelos pés
pela alma
E te convida a dançar
essa valsa esteticamente falha
Sem ritmo, sem melodia
sem saída
E sua vontade é abrir a janela
gritar o grito dos injustiçados
dos desesperados
Acordar os vizinhos
Desintegrar essa calmaria que se tornou o caos
O caos da indústria,
Do livre mercado
Da política internacional
Do comprar, do vender,
do vender-se
do ter, do ter. Do ter!!!
Essa grande riqueza
30
Ah! Essa grande miséria
O caos
da homofobia
do racismo
do consumo
Dos pobres que morrem nos guetos do meu país
Do negativo
para que se sinta,
entre pratos finos,
o fútil glamour do “positivo”
Esse caos, amigo aceito
Esse engano chamado: sociedade
E essa enxurrada vem
vem com força, vem avassaladora
Mas a janela está trancada
Há cadeados em todas as portas,
em todas as portas.
Há tantas paredes, tantas fotos de ídolos coladas
tantos heróis a maquiar nossa covardia
O grito entala na garganta
A última gota de suor
escorre pela minha testa,
engulo seco
A caneta cai da mão do escritor
Durmo aguardando o toque estridente do despertador
E é apenas segunda-feira.
31
DIVISOR DE ÁGUA PARA ÁGUA
Era a mácula de olhar-me no espelho,
e ver
nos olhos do reflexo
olhos que não eram meus
Então rasguei aquela camisa xadrez
troquei calçados e passos
Desfiz dos laços
Desfiz os laços
E me encarei
E vi
Erros que não eram meus
Então clamei a Deus
sacramento debaixo dos braços
De penitência a celibatos
Vestindo as vestes da culpa
Sempre um olhar baixo
E no espelho olhei e vi
Um silêncio que não era meu
Então abracei, por condescendência, o ódio
e gritei o mais alto que pude
Difamando tudo e todos
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Briguei nos bares da cidade
Embriaguei meu sangue com todas as cores
Bebi às sarjetas com as putas
Traí amigos e amores
Sangrei as mãos com dor e terra
e ao me encarar
Vi um vazio que não era meu
Então me vi cansado
Desse caminho, desses pés
Dessa dor de caminhar
E numa fuga, num atalho
Queria mão em minhas mãos
Para dizer “Garoto não tema”
E longe da dor me guiar
Mas eis que
De canto de olho me vi
E ao me ver eu vi
Um tombo que não era meu
Agora,
Defronte o privilégio ou fardo
do acordar
Após querer
quebrar todos os espelhos,
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(Mas como quebrar aquele da alma?)
Posso ver
Não eram os olhos que eu olhava
Eram os olhos com que olhava
Suspirei,
e finalmente
chorei minhas lágrimas infinitas
Para, liberto
Viver meus erros
Meu silêncio e o meu vazio.
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POMADA PARA QUEIMADURA
Despi minhas roupas, a vela recém acesa em mãos, parei frente à
janela. Dez andares eram a distância entre eu e o chão e um passo a
distância entre o desespero e a serenidade. Deixei a vela na moldura,
senti a velha vontade de voar.
Olhei para fora de mim, na cidade iluminada, vi as rodas de
garotos jovens enfeitados de testosterona e rebeldia, eu enxergava o
erro que eles não conseguiam ver, vi os comércios lotados e uma
infância perdida entre trabalho escravo e linhas de produção, vi
homens de quepe marchando em braile, brincando de senhor de
engenho, dançando um ritmo sem som, proliferando o silêncio por onde
pisavam, em favor do pão e do nada. Muito cedo, eu enxergava o que
ninguém mais via e esse passo à frente me tornou leve demais,
insustentável, e eu queria voar, voar para longe desse presente, dessas
garras e venenos, como numa sobra de um sonho louco desse salto que
nunca saltei.
Parei breve momento, pensei no voo calmo, as asas de um urubu
selvagem – liberdade e solidão são o seu destino, mas tinha um
fantasma em mim em forma de fome, fome de justiça, fome de um
feixe de luz, fome de liberdade, fome de encontrar sentido, e pés
cravados na terra. Dessas raízes, quis me doar, ensinar os meninos
rebeldes, como num círculo dentro de uma sala de aula, para furarmos
cada um de nós a bolha cinza que nos envolve, queria fazer cantar a
música em cordas de veludo ou num sopro de gaita, queria tirar a isca
da boca de um peixe que morde por ter fome sem o saber que, ele
mesmo, é o verdadeiro alimento dessa selva. Queria voar e rebentar
com escudos, mas fui rendido pelas armas, as armas da alienação, as
armas da mídia, as armas da religião, as armas da falta de amor, e leis,
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sozinho em minhas leis. Não se vence guerra sem soldados, então para
que lutar? Cedi a vertigem. Estava ainda na janela, braços abertos, dei
outro passo à frente, a brisa suave cortava meu rosto e a cidade era
fria, fui tomado pelo frio do homem, iria voar, meu quarto, agora, era
todo escuridão. Vi suor escorrer pelo vidro cristalino do relógio. Era
tempo, tinha decidido saltar.
Nem por fé ou vaidade, é por essa larga altura acima do mundo,
que não podemos tocar, mas arde no coração dos homens mais
sensíveis, é que o silêncio se calou e senti aqueles braços generosos
envolverem os meus, seu cheiro cítrico penetrar no íntimo, ela era toda
cítrica, geniosa, e seu calor me acalentava e tomava para si a fúria de
um incendiário, ela saberia o que fazer com isso, ela nunca um passo a
frente, mas sempre no passo certo, e se trazia consigo outra vela em sua
mão foi para me clarear sentido, eu me contive. Não se soma a
exposição dessa fratura, só acalenta e faz um coração pulsar. Se por
toda dor, toda busca, eu daria a vida pelo mundo, por ela dei o mundo
e aqui fiquei.
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MARIA GABRIELA VERIDIANO
Formada em Literatura, estudante de inglês, atualmente
trabalha com revisão de textos, escreve no blog da Obvious
e mantém seu blog pessoal. Libriana com ascendente em
sagitário, Maria tem a estranha mania de ter fé na vida,
Gabriela tem passos desengonçados e olhos atentos. As duas
escrevem em catarse.
http://lounge.obviousmag.org/descortinada/autor/
http://gabipardal.blogspot.com.br/
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HIPOTERMIA
Eis que depois de tanta serpentina, depois de tanto carnaval,
depois de tanta história para contar, me vejo enclausurada com você
numa eterna quarta-feira de cinzas. Nosso conto virou pó, meu bem. A
emoção acabou, o choro não veio, o riso também faltou. Eu que me
via inebriada, que dançava para você, ando ressabiada, com a cara
dormente e não sinto mais nada. É como se eu estivesse presa em um
estado de congelamento. Duas caras: uma que não ri e a outra que
não chora. É pior que AVC. Antes tivesse com os sentimentos todos
tortos dentro de mim. Mas não, eles estão lineares, íntegros e sóbrios
como nunca estiveram na vida. Você não me bagunça mais. Nem
você, nem mais ninguém.
Compreendi que essa gente toda que eu chamava de covarde,
já tinha tido na vida alguma coragem. Já tinha colocado a cara para
bater. Esse alguém covarde, a quem eu tanto julgava, já tinha
levantado a minha bandeira. ''Amar sem limites, ao infinito e além''.
Agora estou aqui, sem graça, pálida, congelada preferindo assistir série
de TV a me aventurar no bar da esquina. Acabou o confete. Acabou o
comercial de margarina. Seu marketing não me convence mais.
Quando o produto é ruim, não há propaganda que salva, amor.
Eu que também já não sei em qual porta entrei ou saí, estacionei
nessa zona de incerteza. Como duas gotas de adoçante, eu me tornei
a miss-artificial. O deus que não rejeita o frio nem o quente, mas vomita
os mornos, teve ânsia quando me viu. Eu estou debaixo da língua de
deus, pronta para ser cuspida. Quem sabe se a boca do deus me
projetar para fora, eu não viro uma espécie de milagre? Um prodígio.
Um arranha-céu. Mas eu já fui dessas quenturas de queimar a língua
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alheia. Já fui, sim, moço. Você lembra bem. E eu lembro do seu inverno.
Do seu grau abaixo de zero. Abaixo do mínimo de lealdade.
Eis que da tempestade, da noite regada de vodka e Paloma
Negra fez-se o silêncio. E o espírito do deus pairou sobre as águas...
Sobre meus poços... e ele disse: Haja luz. E houve.
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ADEUS A VOCÊ
Crise de mau humor. Crise de riso. Crise existencial. Crise literária. Crise
profissional. Crise pessoal. Crise financeira. Crise alcoólica. Crise de
abstinência. Eu dou 450 voltas, me seguro na corda bamba e você
espera eu cair pra me segurar. De quantos abismos eu preciso me
jogar? Em qual deles você encontrou meu corpo jogado no chão? Eu
me jogo só pra ter certeza se vai doer. Só para saber se vou me quebrar
inteira e me refazer. Pra re-existir. Sob-existir. Estou viciada na adrenalina
do abismo, do caos. Porque doer é poético, é bonito. Você fica só
assistindo a minha megalomania. Você sabe da minha loucura. Sabe
que é melhor eu xingar do que matar alguém. E, então, você perdoa
meus palavrões. Eu te mando para casa do caralho e você ri. Você fala
que caralho é uma coisa muito bonita, que na sua casa tem um só pra
mim. Eu fico com raiva, porque palavrão é pra gente extravasar, não é
pra fazer sacanagem. Eu tenho preguiça da minha gramática e deixo
sair tudo errado. Do jeito que as palavras voam, eu caço algumas e
coloco em qualquer lugar. Você acha graça. A sua paciência me irrita.
Eu tenho, pelo menos, cinco crises por dia, e você tolera. Você nem dá
bola. Eu surto, eu xingo, até ficar cansada e deixar pra lá também. Eu
sempre digo que o problema é todo meu, que eu não sou da sua
conta. Meu discurso é pronto, eu brigo e estufo o peito igual galo
garnisé. Você me quebra e diz que eu sou da sua conta, sim. Meu
feminismo volta para dentro da minha garganta. Você não está nem ai
para a minha ideologia de machi-e-fêmea. Você não está nem ai para
as minhas crises. Toda vez que eu vou embora, você me deixa fazer as
malas, comprar o bilhete e esperar na estação. Você me deixa ir, só
para ter o prazer de me ver voltar. Eu volto, faço café e ligo a TV como
se nada tivesse acontecido. E você, me beija como se eu nunca tivesse
ido. Eu tenho vontade de me dissolver. Você me bebe. Eu gosto de
morrer todo dia. Você me ressuscita, porque gosta do calor da minha
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vida. Eu me pergunto se viver de um jeito mais fácil significa viver de um
jeito mais feliz. Menos dramático. Mas eu nunca quis o fácil, o regular, o
óbvio. Eu penso em desistir todo dia, e te digo que não suportaria
conviver com outro igual a mim. Você é só calma. Só paciência. Eu
invejo e testo seus limites. Eu sou rainha em desistir e você rei em
permanecer. Eu faço de tudo pra cansar, pra acelerar o processo de
partidas e vindas. Eu sou urgente, não espero nada. Você já conhece
meu cronômetro. Eu quero descer pelo ralo e você fala que não. Que
não nasci que pra isso. Eu seguro a onda. Eu sou uma bomba relógio e
você sabe me desarmar. Naqueles dias que eu perco o ar, a paciência
e meu fio de bom humor, você é o único que conversa comigo em
silêncio. Mas a vida nos obriga a ver tanta gente partir, tanta gente ir,
sem despedidas, que eu ensaio também. Eu gosto de ir sem ter muito o
que dizer, e mesmo assim, ainda acho que falo demais. Você paga pra
ver o dia que eu não vou voltar. Aposta todas suas fichas no meu
sentimento de novela mexicana e na minha infantilidade. Acredita que
é só mais uma das minhas crises. Mas você não sabe quantas coisas já
deixei para trás. Não sabe quantas vezes já fui sem acreditar se teria
coragem de não voltar. Eu erro quando te superestimo e você quando
me subestima. Eu estou quase batendo palmas pra você. Vejo você
errar do mesmo jeito que os outros erraram. Excesso de autoconfiança.
Eu vejo você monocromático. Igual. E digo: ok, tudo bem. Quem sabe
numa próxima vida? Me jogo, mais uma vez, e flutuo numa bolsa de ar.
F-u-i.
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JÁ VOLTO
Hoje é seu aniversário, você me disse que estou fazendo falta. É que
ultimamente, tudo faz falta em mim. De novo, as coisas estão fora do
lugar. Acho que é por isso que tenho feito ausências em lugares que
sempre estive presente. Há um ano, eu estou vivendo de faltas. Estou
vivendo de arrumar espaço dentro de mim. Quando a gente está assim,
o melhor a se fazer é fechar as janelas, a porta e não atender a
campainha. Mas acontece que eu, curiosa que sou, abri a porta. Eu
precisava respirar, sabe? E ai, que entrou um moço. O moço me
abraçou tão bonito, tão amarelo, tão sábado, tão mar, tão vento. Eu
disse a ele que não, que ele não podia chegar abraçando tão assim.
Disse também, que ele tinha que ir embora. Que eu não podia recebêlo com uma casa tão desajustada como um quadro surrealista. O moço
dizia que queria me ajudar. E eu queria dizer não. Não consegui. Eu
disse: “Seu moço, esse trabalho é meu. Eu tenho que fazer sozinha. Não
está vendo a quantidade de cacos no chão? Não está vendo os
botões, as flores e as histórias flutuando aqui? Como você poderia me
ajudar com tudo isso? Como saberia a inutilidade de uma e a
importância de outra?”. O moço me abraçou tão paciência, tão afeto,
tão amor que eu fiquei ausente de mim. Agora, você está me dizendo
que sente minha falta, moça. Mais pessoas me disseram isso. Eu estou
ausente de mim. Estou vivendo de vãos. Vivendo entre os dentes, entre
as folhas, entre as estações, entre atrasos, entre cafés e entre letras.
Esses dias, no meu peito tocou um samba tão alto que o moço ouviu. Eu
o culpei de ter invadido meu silêncio tão tiranamente. Eu quis mandar
ele embora, de novo. Eu estou perdendo datas, perdendo dedos,
perdendo minha boca. Eu não quero dizer mais nada. Não consigo
mais justificar porque estou fora de órbita. Eu pareço uma canalha
egocêntrica. Aliás, eu sou. Eu sei que tenho feito ausências. Eu sei que
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só consigo pensar em ajustar a minha sintonia do que cantar outras
músicas. Eu-falta. Eu-ausente. Fui sem saber como voltar. No outono,
minhas folhas caíram, e eu pude ver mais claramente meus galhos,
meus braços e você. O inverno chegou aconchegante. Eu estou quase
me encontrando. Falta pouco, tenha paciência. Na primavera,
prometo, eu volto. Desculpa minha ausência, moça. Já volto.
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MARIA GABRIELA GIANINI
Oi, tudo bem? Com essas poucas palavras se começam as
amizades, os amores, as decepções e também as
apresentações, contudo a poesia fala, e melhor do que
conhecer o que se diz essa breve descrição, é descrever o
que se diz a poesia do coração, então me leiam, meus
futuros amigos, amores e decepções. Maria Gabriela Gianini
Duarte, 17, mineira e o prazer é todo meu.
[email protected]
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SOBRE A MUDANÇA
Minha bandeira nunca será vermelha!
E não, não é da bandeira dos revolucionários que falo.
Falo não a bandeira vermelha cor sangue
Sangue da mulata que tem os calcanhares em carne viva
De ir e vir com a bandeja de cerveja na mão
Que tem marca de mãos na bunda carnuda
Como recompensa pela cerveja gelada
Essa que mantém a bochecha paralisada num sorriso amarelo
Amarelo como o time que joga o marido, paralisada como o
patriarcado.
E se divirta mulata!
Porque precisamos nos orgulhar do futebol
Dessas peladas
Principalmente dessas que jogam
Com as bolas do trans
Que acabou de ser assassinado
Para manter o que chamam de família
Para regar o orgulho de sangue
Pelo motivo: Por que sim.
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E se divirta mulata!
Por que tapas são o que te resta
Já que nasceu na favela
E o ensino fundamental não foi suficiente
Para contar cotas!
Para ler os sonhos!
Por sua sorte mulata
Acreditar não precisa de diploma
Então reze mulata!
Para que se acredite
Nesse deus milagroso
Que dá mansões a pastores
Que vende chaves do céu aos fiéis
E fronhas de doação de fé e amor
E doe essa bandeira vermelha
Para que se possa ter fé
Para que possa dar de comer
Esse seu cérebro de frango com catupiry!
Amém.
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FAR AWAY
Essa falta que o álcool faz
Esse rodeio de desconforto
Que vem de baixo e sobe
E faz as borboletas gritarem
Faz o nó dar cambalhotas na garganta
Faz com que eu esteja sóbria
Jogada, sozinha, para esses macacos
Chamados de primeiro mundo
Esses, rodeados de hormônios
Que eu quero, mais do que tudo
Testar, provar, aproveitar o máximo possível!
Provar esses seus lábios vermelhos
E ouvir você cantar, dançar para mim
E dance princesa
Porque em minha mente já fomos ao céu!
E vem para mim
E testa, como posso ser esse pesadelo
Fantasiado de paraíso
Então nessa madrugada
Sonhe comigo.
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QUERIDO GABRIEL,
Me lembrei de você, não sei se pela naturalidade da perda, ou por
simplesmente não querer lidar com ela, e os dias são frios meu amigo e
os ventos fortes, se eu não me engano esses levaram os últimos restos do
calor que eu tinha de casa, me sinto completamente sem mãe, sem
colo. As pessoas daqui dificilmente sorriem, não se enxergam as almas,
são sim polidas, mas numa obrigatoriedade de educação que tira todo
o abraço que os sorrisos guardam, me sinto sem abraço, sem laços.
Eu sinto falta de vocês, da implicância para qualquer desimportante
que nos define, dessas divergências de ser, da variedade sabe? De ter
dias, pessoas, saudades que sejam frias, quentes ou mornas. Não
importa, sinto falta de vocês, do calor de casa, as risadas, das mágicas
fajutas que sou desastrada, desligada demais para achar o truque, mas
eu amo isso, por favor mantenha segredo, mas sim, eu amo a verdade
da mágica até mesmo dessas de contos de fadas, do desconhecido,
do tudo é possível, eu amo a magia dessas suas cartas bobas, desse
sorriso quente, daquela caipirinha, se lembra? Do empório que quase
viramos sócios... Quase, por que eu vim para cá sentir saudades de
vocês, mas ainda tenho o céu e tempo de ir vasculhar as constelações
como fazíamos e sentir por mais uma vez o gosto da magia de ver bolas
de fogos explodindo a milhões de anos luz se transformarem em história,
em arqueiros e escorpiões, em um modo de me lembrar do calor de
casa.
Me lembrei de você, não sei se é pela madrugada e eu estou
sozinha, ou se é pelo calor das lágrimas que escorrem rumo ao meu riso,
para poder me esquentar um pouco, é uma noite fria meu bem, e os
ventos me levaram para longe da magia de se ter você.
Maria.
Richland, Washington. 31 de março de 2015
Ps. Continuo me lembrando de você, não se preocupe, estou quente.
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MARINA LAURENTIIS
Marina Barzaghi De Laurentiis, 26 anos, lua ascendente em
touro, apaixonada por versos, economista de formação,
poeta de coração. Encara a escrita como um exercício de
conhecimento de si e da relação entre seu corpo e a
imensidão do mundo. Recém-ingressante no curso de Letras,
da Universidade Federal Fluminense, em que pretende
aprofundar seus conhecimentos em literatura e escrita, a fim
de externalizar com maior clareza e precisão o sentir que, de
tanto, faz doer a alma.
Os dois últimos poemas fazem parte de diálogos poéticos
realizados durante o ano de 2014 na companhia de Tomas
Fava (Tom Zim) e foram pensados, inicialmente, sob o nome
de Leonor B.: poeta de meia-idade e muitas identidades.
Morte de causa desconhecida, provável suicídio. Seu corpo
foi encontrado no mar perto de Ilha Grande, Rio de Janeiro.
[email protected]
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GUANABARA
Pés na água marrom e fria.
Admiro a vista.
Estrangeira
de qualquer lugar.
“Do alto do corcovado deve dar para ver o mundo!”
Talvez pareça uma boca banguela.
Mas é bela.
Como é bela.
Nas costas som de motor.
o mar de prédios da forma à cidade.
Na costa areia branca.
plástico e vidro compõe a paisagem
Urubus comem qualquer coisa morta
- ou tóxica.
A vida é como o mar na baía.
Movimento calmo e continuo
despeja, na praia, o lixo
a tempo jogado no mar
O letreiro acusa: não recomendado banhar.
Crianças se banham.
Homens recolhem a vara de pescar.
Mas é bela.
Como é bela
a Guanabara.
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DO AMOR
I.
Quem vive de amor
não vive
revira-se
II.
O amor é uma ferida
de tão profunda
cria vida
não cicatriza e
permanece
moribunda,
na pele,
a incomodar
III.
Amor é
Um instante
de falta de vaidade
Que entra e invade
Sem ser convidado
E deixa enlouquecer
O coração cansado
Até que já não possa
Nem mais respirar
E morre
De amor
Ou de saudade
IV.
Vê?
Eu te trouxe um bife suculento,
Mal passado e sanguinolento
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Eu mesma arranquei
das minhas entranhas
para te dar.
Ah! ao menos
não tomasses
Meus prantos
Por psicose...
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DA LOUCURA
I.
Abri a janela essa manhã
Vi o sol que entra
sem perguntar
Se quero amanhecer.
II.
Temo pela minha sanidade
Em tempo
Medico-me
Medito
e esqueço
A sanidade tem seu preço
III.
se essa teimosia
não for mais que azia
de quem engole o mundo
com a pança vazia?
IV.
Insônia
o grilo canta
lá fora, ouço
na orelha
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PAULO COSTA
Quem escreve é Paulo Costa, um jovem de vinte e um anos,
estudante de Jornalismo que recentemente tornou-se escritor.
Faz parte do Coletivo “Jornal P’atuá”, uma publicação
independente que debate sobre Arquitetura, Cidade e
Educação. Também escreve para o Blog “Alegorias da
Inércia” em conjunto com um par de amigos (a Rê e o Mat),
e pretende publicar neste ano seu primeiro livro de contos
sem intermédio de editoras.
Paulo Henrique da Costa Lopes escreve como Paulo Costa
para o Blog http://alegoriasdainercia.blogspot.com.br/ e
para o impresso Jornal P’atuá.
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FERRUGEM
José puxa mais um trago de seu cigarro Eight, toma mais um gole
de seu café misturado ao leite, ao lado do prato servido com algumas
migalhas do pão que já o alimentou.
São seis e cinquenta da manhã enquanto José, sentado na mesa
do boteco da esquina entre as ruas Coronel Xavier de Toledo e Sete de
Abril, se distrai com os sons do Vale do Anhangabaú. O jornal matinal
permanece debaixo do braço, e o bolso da camisa branca sobre o
peito, com o volume do maço de cigarros que acabara de comprar. O
filho único de Dona Aldelina - mulher rígida e carinhosa, de berço
nordestino - com Seu Ubaldo - criado na roça mineira, lidando com a
pobreza desde muito cedo - caminha pela Rua Sete de Abril em
direção de seu trabalho.
Chegado à Rua Barão de Itapetininga, ele sobe as escadas do
prédio comercial, para no segundo andar e mal entra no hall do
escritório de advocacia, onde foi empregado como escrevente, e já
recebe notificação pelo cheiro alcoólico, aroma de diversas manhãs no
trabalho, e pela calça jeans surrada, que, se dependesse, usaria todos
os dias.
José se senta e prepara-se para mais um dia cheio. Seu ofício é
redigir cartas, contratos, e quaisquer documentos que lhe apareçam
sobre a mesa. Essa mesma mesa que José agora encara com seus olhos
cinzentos e que abriga um grande computador antigo, um telefone fixo
e uma caderneta para anotações.
Por mais que o destino de José não tenha sido acadêmico, anos
de reclusão em seu quarto imerso na literatura e o ensino médio
completo capacitaram-no para o cargo, que exige de seu intelecto um
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conhecimento dos saberes gramaticais no setor jurídico, e que,
curiosamente, gerou comentários pelo escritório sobre suas ótimas
correções e alterações em documentos.
Deu a hora do almoço e um grupo de colegas convida José para
a refeição no boteco ao lado que faz um bife à cavala baratinho. Mas
antes de partirem, o escrevente avisa-lhes que os encontrará já já, pois
decidiu ir ao banheiro. Mija no mictório, lava as mãos na pia e joga
água sobre o rosto de pele morena com a barba feita. Ele olha o
próprio reflexo no espelho, seu cabelo crespo, curto e já com grisalhos,
as bochechas levemente caídas, olheiras sob os olhos e seu queixo
volumoso. Apesar de sua fisionomia animosa não agradar e lhe ser bem
desgostosa, foi o que mais conquistou Elena, sua amada esposa que o
aguarda todos os fins de tarde no portão de casa na Rua Porangaba,
servida de café e um cigarro já no fim por queimar seus dedos.
José dá por encerrado o dia de trabalho. São quatro da tarde, o
fim do expediente, bate o ponto e parte em destino de sua casa. Sobe
ao ônibus 4115-10 na Praça da República. Paga ao cobrador, roda a
catraca, senta-se no banco ao fundo com elevação sobre os demais.
O destino é um pouco distante, mas a viagem foi rápida e José logo
chega onde desejava, os braços de sua mulher, que, como sempre, o
aguardava no portão com um copo de café numa mão e o cigarro já
miúdo na outra. Um beijo quente os aproxima e o casal toma o rumo do
quintal até a cozinha.
A janta precisa ser requentada e papo vem. O bife acebolado é
servido junto ao feijão com arroz, e, do lado, um trago de cerveja os
aguarda.
Comidos, papo foi. José se retira para um banho enquanto Elena lava a
louça. "Toma seu banho quentinho, que logo faço sua massagem,
bem".
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José se vê agora nu. Pés sobre o chão gelado branco de lajotas,
cabeça sob a boca do chuveiro elétrico regulado em "verão" e seus
braços percorrem mecanicamente seu corpo, que, aos poucos, se
ensaboa. Nada chega na cabeça. Sua memória parece inválida e não
há quem possa dizer o contrário.
Enxuga-se na toalha branca pendurada numa haste instalada na
parede a um metro e oitenta do chão. O escrevente não percebe, mas
vestiu-se com as mesmas roupas que jogou ao chão agora a pouco.
Caminha até a saída de sua casa, segue pelo quintal, calçada e
cidade adentro. "Opa!" - Grita. "O que eu to fazendo aqui, caralho?"
Acende um cigarro e se senta no bar vermelho com toldo amarelo
mostarda, que fica de frente pra rotatória no fim de sua rua. Servido de
cachaça, limão e melancolia, as engrenagens de José vão se
enferrujando. Parando cada vez mais. Até que parou. Som agudo aflige
os tímpanos, suor toma conta de suas mãos e o regurgito é inevitável.
De sua boca, sai. Dói, mas ele não consegue impedir que saia. A ânsia
domina seu corpo e seu não corpo.
José encosta-se à mesa em sua frente. A cabeça pesa e não
recusa o aconchego da madeira. O sono bate...
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UMA ROSA A GULLAR
suas lágrimas e sorrisos
dentro de seus versos
e estrofes em delírios,
me acalantaram e
abrigaram minha dor
tomaram para si
minhas amarguras livrando-me do medo
vestindo-me em armaduras.
assim como
um escafandro de luz,
que ensinou-me
dois e dois são quatro;
que a natureza não depende de nós;
ensinou-me a aceitar
que o morto está morto,
mas que seu canto
pode nunca cessar.
58
Entorno
O sol insurge pela janela entreaberta da cozinha no sítio de João.
Entregue ao chão frio e cimentado, acorda atordoado depois de mais
uma noite de embriaguez. Seus olhos ainda estão marejados de uma
triste ideia repentina que lhe acometera após o entoar das estrelas.
Finalmente se levanta, caminha até o quintal de seu pequeno
sítio. "Preciso buscar mais sementes na cidade". Olha sua horta, humilde
e breve. Separa verduras para sua próxima refeição, recolhe ovos de
seu galinheiro. Cozinha, corta, tempera.
Alimentado, João dirige-se ao jardim. Aduba, poda, rega. A
dificuldade em apanhar um ramo de flores pouco mais distante de suas
mãos, força a realidade de seus sessenta e cinco anos a aparecer. Seu
corpo já não suporta maiores esforços, o que dificulta a vida isolada em
seu sítio no interior da cidade.
O telefone toca.
"Olá, papa. Feliz natal", é o que Carlos, seu primogênito, deseja.
João agradece. "Vamos nos falando. Não some, papa". Depois de sua
aposentadoria seguida da separação matrimonial, João partiu da
cidade em busca da paz e tranquilidade no campo. Sua família pouco
soube aceitar sua decisão; conviver, menos ainda. Com o tempo, as
visitas de seus filhos diminuíram, e seus irmãos mantiveram-se fiéis a vida
de libertinagem nas ruas e o dever de pai na casa.
A noite de natal passa. João reflete, bebe. O álcool nocauteia e,
novamente, ele acorda no amanhecer frio do chão de sua casa.
O telefone toca. É Pedro, seu irmão caçula. O contato de natal é
obrigatório, porém não impede João de se convidar para um almoço
com ele. Parte para a cidade, zona nobre, casa de seu irmão. "Venho
visitar Pedro. É meu irmão". "O nome do senhor, por gentileza".
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Desconfiado, o porteiro só abre a porta após confirmar com Carla,
esposa de Pedro, a existência do irmão do patrão.
Lá estão familiares e amigos. Rodas de conversa se formam pelo
extenso quintal com piscina e ao longo da sala de visitas. Seu irmão
estava dando uma festa. Se soubesse disso, não iria comparecer; muito
menos se convidar. João já não sabe se comportar diante de todas
essas regras de convívio na aristocracia paulista. Logo se acanha.
De frente pro bar, serve-se de um copo com vodka até a boca.
Bebe tudo em uma entornada. Serve-se de novo e caminha pela casa,
acompanhado de seu drink.
João sobe as escadas da casa de seu irmão. Vê cinco portas fechadas
ao longo do extenso corredor adornado com fotos da família e
pequenos quadros. Ele abre uma por uma. Sala com tevê, banheiro,
quarto de hóspede, quarto de seu sobrinho Rafael, e a grande suíte dos
patrões. Retira-se. Ao descer das escadas, logo avista uma mulher
entretida numa conversa com desconhecidos sobre as composições de
Chico Buarque e sua Literatura. É morena, mais madura do que João se
lembrava, de pele macia e belas coxas que ele tanto desejara,
chegando por fim a aproveitar-se. Rosa está novamente de frente com
João. Com os olhos, segue cada movimento dela.
Atreve-se a tocá-la, interrompendo, assim, a conversa. Seu ombro
esquerdo estava nu, devido ao decote do vestido. Os olhos de Rosa e a
surpresa no sorriso denunciavam a felicidade dela em rever João.
Trocaram beijos de cumprimento. Ela reclama do sumiço dele; ele, de
nunca receber sua visita. Despedem-se da roda com que Rosa debatia
e dividiram a taça de vinho abrigada em suas mãos finas e delicadas.
Já anoitecera desde que os antigos amantes se reencontravam.
O rumo que a festa tomava para os dois era nostálgico. A embriaguez
aproximava-os e a sensualidade tomava conta de seus corpos. Um
beijo foi suficiente para o casal despedir-se de todos e relembrar as
intimidades que já compartilharam.
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O carro de Rosa os levava ao sítio de João. A aliança no dedo da
parceira revelara o porquê da falta de visitas nos últimos anos, porém
tal fato não impediu ambos de manifestar mais uma vez o romance.
João acariciava os seios de Rosa, enquanto ela pilotava parte do
percurso. Já no fim do caminho, sua mão esquerda toma o destino das
virilhas quentes de sua cúmplice. O casal não suporta mais de tanta
excitação e trocam afetos em meio a orgasmos no chão gelado e
cimentado da sala. Os olhos de João se fecham após carícias de Rosa
no topo da cabeça.
Os sonhos tomam conta da realidade.
João acorda, mas se mantém de olhos fechados. Seu sorriso é
largo e suas mãos tateiam o chão a procura da amada. Nada
encontra. O amante volta a adormecer.
O sol insurge pleno, pela janela entreaberta da cozinha no sítio de
João. Entregue ao chão quente e acolhedor, acorda realizado depois
de uma noite de paixão. Rosa não está mais lá. João não lamenta sua
partida. Adormece mais uma vez.
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SYARA DE NORONHA
Syara de Noronha, 33 anos. Às vezes pareço trilhar
concomitantemente as dimensões do sonho e do mundo
material. Hoje formada em Gestão Ambiental, após
abandonar letras na USP, procuro ser pai e mãe dos três filhos
que me acompanham nesta jornada terrena. Entre chaves
de fenda, colheres de pau, pentes finos e giz, busco não
apenas entender o processo, como viver o Aqui e Agora
intensamente.
Amante das palavras, no meu texto cabem as reflexões de
todos os temas sobre os quais desabafo. Não há limites para
a inventividade humana, e seja em prosa, verso ou teorias
científicas, creio que o amor universal e a utopia visionária
podem estar sempre presentes. Admiro demais Einstein,
Chaplin, Leonardo da Vinci, Frida Kahlo, Gandhi, Mandela,
Joana D'arc, Zumbi e todos os anônimos que deram e dão
suas vidas por uma nova realidade. Considero-me feminista,
agnóstica e anarquista.
Meu sonho é viver em uma comunidade sustentável e
libertária, com agrofloresta, mina d'água e Wi-Fi.
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O DESPERTAR
Naquela noite de bruma caminhava a esmo, absorto no vazio de
seus dias. Repetidamente, acordava com sua programação artificial;
seu café alheio; seu trabalho insignificante. As noites, retornos
infindáveis. E o mesmo dia repetia-se, insistentemente.
Quisera mudar seu destino tantas vezes, mas parecia faltar-lhe
ânimo; sua coragem tão esquecida, na inércia de seu cotidiano. Que
propósito tinha sua vida, então? Ninguém o esperava, nem o amava.
Nem ele a si mesmo.
Resolveu virar naquela esquina, aquela tão desconhecida, apesar
de movimentada há anos. Observava então, transeuntes, grupos,
quanta luz e movimento havia lá fora. Era um frenesi de gargalhadas,
música, debates...
Sentiu vontade de entrar num desses lugares, beber algo de cujo
nome não se recordaria... Algumas doses... Surpreendentemente, havia
agora um bem estar em si, uma completude, certa alegria... Seu peito
parecia vibrar. Lembrou-se de quando era menino.
Quando criança, quanta novidade o mundo lhe trazia! Paisagens,
pessoas, lugares, descobertas! Sentiu sua coragem plena na meninice
distante, quando a curiosidade pelo novo permitia-lhe sentir prazer em
tudo.
Em que tempo e espaço teria ficado para trás seu íntimo
desperto? O barulho de tudo ali presente desaparecia então, no seu
passado interior. Nada fazia mais sentido do que a busca por si mesmo.
63
Partiu, errante pelas ruas, contudo firme em sua própria história.
Perscrutava-se, angustiadas lembranças de perda e temor. Quando a
sobrevivência lhe bateu à porta, acompanhada de solidão e fome.
Como um golpe lancinante, agachara-se em prantos, sentindo
extravasar aquela dor que sempre sufocara para se sentir forte, mas
não sabia que se sentiria morto. Por tanto tempo.
A morte de sua mãe representava a abrupta perda da infância.
Desde então, jamais pensara no seu prazer. O trabalho, as relações...
Comumente voltados à sobrevivência. E mesmo hoje, quando a miséria
já não lhe batia à porta.
Não. Para aquela vida não voltaria. Nem à sua casa, pois que
nada ali o representava verdadeiramente. Desejou partir para sempre,
talvez para um mundo de sonhos e ilusões. Queria subir naquela
mangueira outra vez, mesmo que lá desse seu derradeiro suspiro.
Momentos depois adentrava o trem que o levaria de volta para
casa. E a vida vazia tornou-se receptiva de novo; ainda que idoso, ao
reencontro consigo.
Apesar de intimista, observava todos ao seu redor. Aquela
criança que o olhava assaz profundamente tinha algo de tão puro que
o encantava. Era um estar presente só de alegria e descobertas. Com
seu pirulito, olhava confiante o mundo.
Havia também um casal, com segredos sussurrados, carinhos e
cuidados que jamais conhecera. Era bruto seu coração. Até uma velha
parecia contente ao tricotar, não apenas memórias, mas um futuro
ainda. Percebeu-se no aqui e agora também.
Além da mangueira de suas reminiscências, nenhum outro lugar
seria tão seu quanto aquele vagão.
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Na hora de descer, pôs-se distraído a caminhar, atônito de
ansiedade. Sentia seu passado fluir pelo seu corpo, em alegria e suor,
expectativa e coragem, rapidez e temeridade... Já não era velho, mas
atemporal no seu carpe diem.
Avistava, enfim, a árvore, intransponível!
Suas folhas maternais convidavam-no ao balanço de outrora; e
sem pensar, tirou seus sapatos, gastos de superficialidade e indiferença.
Coragem não lhe faltava... Sentia seu corpo leve.
Suas mãos enrugadas tocavam o tronco paternal, que o alçaria
ao infinito de si mesmo. Sentia a aspereza há tanto esquecida, mas hoje
venerada. Ia ganhando altura, sentindo a brisa, a liberdade... Até que,
ao
avistar
a
cidade
ao
longe,
percebeu
seu
corpo
tremer,
involuntariamente.
Não teve medo, porém.
Estava onde queria estar.
Sentou-se. O balanço dos galhos o fez simplesmente sentir que
finalmente vivia, pulsando.
Entendeu que algo mudara definitivamente. Tudo ganhava novo
sentido, mesmo que não tivesse ideia do que fazer no momento
seguinte.
Poderia morrer ali. Estava pleno, porque rompera com sua
identidade cristalizada, e ao desconstruir suas limitações, acessava o
autoconhecimento.
Adormecia.
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CECÍLIA INFANTI
Relações Públicas de formação, geminiana e com quase 23
anos de pura falação, irmã mais velha, geração da parceria
e conselheira de mesa de bar nas horas vagas. Muitas vezes
escrevo para dividir parte de mim e confabulo com meus
botões em segredo.
[email protected]
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MUDAR É COLORIR
Eu sempre fui oito ou oitenta, minha inspiração sempre foi colorida
e meu banho, café e amor sempre foram quentes. Normalmente prefiro
o sol, no entanto descobri certa paz na chuva, e passei a apreciá-la
ainda
mais
quando
sua
chegada
vem
em
dias
ensolarados
despertando encanto com seu presente em forma de arco-íris. Quando
nova, eu costumava acreditar que no fim do arco-íris havia um pote de
ouro, hoje eu já acredito que o tesouro é a junção das sete cores que
cruzam o céu sem começo ou fim.
Algumas coisas o tempo muda, outras não...
Quando eu era menina, gostava das cores de vestido das
princesas Disney, quando entrei na adolescência, preferia o preto que
me fazia “rockeira”, hoje eu leio algumas revistas de moda, sei o que é
tendência, mas ainda assim tenho o meu próprio estilo… E ele varia
sempre de acordo com o meu humor, há dias que eu acordo rock star,
outros princesa Disney, algumas vezes me faço de Pretty Woman e
quando é para variar, imagino que, se eu quiser, também posso brincar
de ser bonequinha de luxo.
Algumas coisas o tempo muda...
Das quatro estações eu sempre gostei de sentir a paz que a
primavera me trazia e de viver o amor que vinha com cara de verão,
essas são as estações que fogem do cinza da cidade, que intensificam
as cores evidentes e ressaltam o brilho não só das pessoas, mas também
da energia da cidade… E eu acreditava que só era possível ter cor em
duas estações do ano... Até que ele chegou.
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Ele chegou e nem sabe, coitada de mim, mas ele tem aquela
sobriedade
invernal
que
me
fez
repensar
meu
gosto
pelo
outono/inverno. Estamos em abril e a cidade já começou a ficar um
pouco mais cinza que antes, porém quando passeamos por ela,
esbanjando nossa alegria espontânea, é como se o monocromático da
cidade se tornasse colorível e ai eu percebi que não importa qual a cor
da estação, o que importa é como você a vê quando passa, e depois
dele eu passei a vê-la colorível.
Hoje eu levo minha caixa de lápis-de-cor dentro da minha alma e
a única coisa que ultimamente eu tenho pedido é que ele me deixe ser
a mudança intrínseca e subjetiva dele também e mostrar que ele
também pode colorir a vida, porque no final das coisas...
As coisas mudam...
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JOSELI MORETO
Possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica de Campinas (1991) e mestrado em Filosofia pela
Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1997), sendo a
Ética a área de concentração. Atualmente é Professora
Coordenadora Pedagógica na Escola Estadual Dr Telêmaco
Paioli Melges e fez escolha desta escola para assumir
segundo cargo na rede pública estadual de ensino como
Professora de Filosofia.
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