Paulo Freire e a Reinvenção do Brasil Frei Betto Neste maio, faz

Transcrição

Paulo Freire e a Reinvenção do Brasil Frei Betto Neste maio, faz
Paulo Freire e a Reinvenção do Brasil
Frei Betto
Neste maio, faz quatro anos que o educador
Paulo Freire transvivenciou. Em terra de
desmemorização programada, os mortos
precisam arrancar a cegueira dos olhos dos que
se negam a um pingo de auto-estima
tupiniquim. É dado aos jovens o inelutável
direito de virar este país de cabeça pra baixo e
desvendar seus intestinos.
"O Brasil não conhece o Brasil", cantava Elis
Regina. Mimético, talvez o brasileiro tenha
vergonha do que é, a julgar pelo modo como
trata o que tem. Tem, por exemplo, um poder
popular. Com exceção de Cuba, que vive em
outro sistema, nenhum país da América Latina
alcançou o nível de organização popular que
existe hoje no Brasil. Uma imensa malha de
movimentos sociais espalha-se pelo território
nacional. A CMP (Central de Movimentos
Populares) articula centenas deles. A CUT
representa 18 milhões de trabalhadores. O MST
gira a roda da vida em 1.500 assentamentos.
(...) Quem gerou esse poder popular? Se me
fosse pedido um nome, uma pessoa capaz de
resumir tantas conquistas, eu não relutaria:
Paulo Freire. Claro, a história não depende de
um homem. Óbvio, sem homens e mulheres
não há história.
Sem Paulo Freire não haveria esses
movimentos que tiram o sono da elite
brasileira. Porque ele nos ensinou algo de
muito importante: encarar a história pela ótica
dos oprimidos.
Os excluídos como sujeitos políticos
Ao deixar a prisão, em fins de 1973, achei que
toda luta aqui fora tinha acabado. Todos os
grupos armados tinham sido desarticulados
pela repressão, e os que não empunharam
armas, como o PCB, estavam sendo recolhidos
às cadeias. E agora, José? Até porque todos
nós, que tínhamos a pretensão de ser os únicos
entendidos em luta social, estávamos na
cadeia, mortos ou no exílio. Qual não foi a
minha surpresa ao encontrar uma imensa rede
de movimento populares pelo Brasil afora.
O método Paulo Freire
Conheci o método Paulo Freire em 1963. Eu
morava no Rio de Janeiro, integrava a direção
nacional da Ação Católica. Ao surgirem os
primeiros grupos de trabalho do método,
engajei-me numa equipe que, aos sábados,
subia para Petrópolis, para alfabetizar operários
da Fábrica Nacional de Motores. Ali descobri
que ninguém ensina nada a ninguém, a gente
ajuda as pessoas a aprenderem.
É o seu relato como criador do método e educador, e
da minha experiência como educador de base.
Neste livro conto que, na favela em que eu morava,
havia um grupo de mulheres grávidas do primeiro
filho, assessoradas por médicos do Ministério da
Saúde. Perguntei aos médicos por que mulheres do
primeiro filho.
‹Não queremos mulheres que já tenham vícios
maternais - disseram -, queremos ensinar tudo.
Pois bem, passado uns meses, bateram na porta do
O que fazíamos naquela fábrica? Fotografamos meu barraco.
as instalações, reunimos os operários no salão
‹Olha, Betto, estamos querendo uma ajuda sua. ‹Mas
de uma igreja, projetamos diapositivos e
por que ajuda minha? ‹Há um curto-circuito entre nós
fizemos perguntas absolutamente simples:
e as mulheres Elas não entendem o que falamos.
Você, que tem experiência com esse povo, podia vir
‹Nesta foto, o que vocês não fizeram? ‹Bem,
dar uma ajuda.
não fizemos a árvore, a mata, a estrada, a
água. ‹Isso que vocês não fizeram é natureza - Fui assistir ao trabalho deles. Ao entrar no Centro de
dissemos. ‹E o que o trabalho humano fez? Saúde do morro, fiquei assustado, porque eram
indagamos. ‹O trabalho humano fez o tijolo, a mulheres muito pobres e o Centro estava todo
enfeitado com cartazes de bebês Johnson, loirinhos,
fábrica, a ponte, a cerca ‹Isso é cultura de olhos azuis, propaganda de Nestlé e outras coisas.
dissemos. ‹E como é que essas coisas foram
Diante do visual do Centro, falei:
feitas? Eles debatiam e respondiam: ‹Foram
feitas na medida que os seres humanos
‹Está tudo errado. Quando as mulheres entram aqui e
transformaram a natureza em cultura.
olham para esses bebês, percebem que isso é outro
De repente, aparecia uma foto com o pátio da Fábrica mundo, não tem nada a ver com os bebês do morro.
Nacional de Motores, com muitos caminhões e
bicicletas dos trabalhadores. Perguntavámos:
Assisti ao trabalho deles e percebi logo que eles
falavam em FM e as mulheres estavam sintonizadas
em AM. A comunicação realmente não funcionava.
Numa sessão o doutor Raul explicou a importância do
aleitamento materno para formação do cérebro,
porque o ser humano é um dos raros animais, talvez
o único, cujo cérebro nasce incompleto. Ele só se
completa três meses depois do nascimento, graças às
proteínas do aleitamento materno.
‹Nesta foto, o que vocês fizeram? ‹Os caminhões. ‹E
o que possuem? ‹As bicicletas. ‹Como, vocês não
estariam equivocados? ‹Não, nós fabricamos os
caminhões... ‹E por que não vão para casa de
caminhão? Por que vão de bicicleta? ‹Porque o
caminhão custa caro, e não pertence a nós. ‹Quanto
custa um caminhão? ‹Cerca de 40 mil dólares.
‹Quanto você ganha por mês? ‹Bem, eu ganho 60
Doutor Raul explicou tudo isso cientificamente. As
dólares. ‹Quanto tempo você precisa trabalhar, sem
comer nem beber, economizando todo o salário, para mulheres o fitavam como eu olho quando abro um
texto de chinês ou árabe: não entendo nada.
um dia ser dono do caminhão que faz?
‹Dona Maria, a senhora entendeu o que o doutor Raul
falou? - perguntei. ‹Não, eu não entendi, só entendi
que ele falou que o leite da gente é bom para cabeça
As noções mais elementares do marxismo vulgar
vinham pelo método Paulo Freire. Com a diferença de das crianças. ‹E por que a senhora não entendeu?
que não estávamos dando aula, não fazíamos o que ‹Porque não tenho estudo. Fui muito pouco na escola,
nasci pobre na roça. Então eu tinha que trabalhar e
Paulo Freire chama de Œeducação bancária¹, que
ajudar no sustento da família. ‹Dona Maria, por que o
visa enfiar noções de política na cabeça do
doutor Raul soube explicar tudo isso? ‹Porque ele é
trabalhador. O método era indutivo.
doutor, é estudado. Ele sabe e eu não sei. ‹Doutor
Raul, o senhor sabe cozinhar? - indaguei. ‹Não, nem
Mais tarde, vi por aí muitas pessoas escolarizadas,
café sei fazer. ‹Dona Maria, a senhora sabe cozinhar?
Quando o PT foi fundado, em 1980, vi gente da como eu, dando aulinhas para operários, achando
‹Sei. ‹Sabe fazer frango ao molho pardo (que no
que
faziam
a
cabeça
da
massa.
esquerda comentar: "Operários? Não. É muita
Espirito Santo, e também em algumas áreas do
pretensão operários quererem ser a vanguarda
Nordeste é chamada de galinha de cabidela)? ‹Sei.
Linguagem popular
do proletariado. Somos nós, intelectuais
‹Levanta aí - pedi - e conta pra gente como se faz um
frango ao molho pardo. Dona Maria deu uma aula de
teóricos, que conhecemos o marxismo, a
Quando cheguei a São Bernardo do Campo, em
culinária: como se mata o frango, de que lado se tiram
ciência da história, que temos capacidade para 1980, havia uns grupinhos de esquerda que
as penas, como preparar a carne e fazer o molho etc.
dirigir a classe trabalhadora". No entanto,
distribuíam jornal no meio das famílias dos
neste país os oprimidos se tornaram, não só
trabalhadores. Dona Marta chegava pra mim e
Ela sentou e eu falei: ‹Doutor Raul, o senhor sabe
sujeitos históricos, mas também lideranças
indagava:
fazer um prato desse? ‹De jeito nenhum, até gosto,
políticas, graças ao método Paulo Freire.
mas não sei. ‹Dona Maria - conclui - a senhora e o
‹O que é "contradição de crasse"? ‹Dona Marta,
doutor Raul perdidos numa mata fechada, e um
esqueça
isso.
‹Não
sou
de
muita
leitura
justificavaCerta vez, num país da América Latina, cujo
frango, ele, com toda cultura dele, morreria de fome e
se ela - porque a minha vista é ruim e a letra
nome prefiro omitir, o pessoal de esquerda
a senhora não.
pequena.
‹Esqueça
isso
eu
dizia.
‹Isso
a
esquerda
perguntou-me:
escreve para ela mesma ler e ficar feliz, achando que
A mulher abriu um sorriso de orelha a orelha, porque
está fazendo revolução.
‹Como fazer aqui algo parecido ao processo de
descobriu, naquele momento, um princípio
fundamental de Paulo Freire: não existe ninguém
vocês lá no Brasil? Porque vocês têm um setor Paulo Freire ensinou-nos, não só a falar em
mais culto do que o outro, existem culturas distintas,
de esquerda na Igreja, um sindicalismo
linguagem popular, mas também a aprender com o
socialmente complementares. Se pusermos na
combativo (...). Como se faz isso? ‹Comecem
povo. Ensinou o povo a resgatar sua auto-estima.
balança toda minha filosofia e teologia, e a culinária
fazendo educação popular - respondi -, e daqui
da cozinheira do convento em que vivo, ela pode
Culturas distintas e complementares
a trinta anos... Aí azedou a conversa. ‹Trinta
passar sem minha filosofia e teologia, mas eu não
anos é muito! Queremos para três meses.
posso passar sem a cultura dela. Essa é a diferença.
Ao
sair
da
prisão,
fui
viver
cinco
anos
numa
favela
no
‹Para três meses eu não sei - observei - mas
Espírito Santo. Lá trabalhei com educação popular no
para trinta anos sei a receita.
método Paulo Freire. Ao retornar a São Paulo, no fim Resgatar a teoria e a prática de Paulo Freire é
dos anos 70, Paulo Freire propôs darmos um balanço arrancar o povo brasileiro da ilusão das elites, do
Ou seja, embora haja muitos cristãos nesse
medo do poder, da indolência frente a um futuro que
da nossa experiência em educação e, graças à
processo, nada caiu do céu. Tudo foi construído mediação do jornalista Ricardo Kotscho, produzimos pode e deve ser transformado, já que o presente só é
com muita tenacidade.
o livro intitulado "Essa escola chamada vida" (Ática). muito bom para aqueles que têm pavor de Paulo
Freire.
E aí eles começavam a calcular.
Frei Betto é escritor, autor do romance Hotel Brasil
(Ática), entre outros livros.
Fonte: Caros Amigos, maio de 2001