introdução - Alfabetização Visual

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introdução - Alfabetização Visual
INTRODUÇÃO
A origem desta exposição pode ser rastreada até 1996, quando o professor
brasileiro João Kulcsár, com bolsa de estudos concedida pelo British Council, fez
seu mestrado em Alfabetização Visual na University of Kent. Kulcsár impressionouse com a diversidade social e a cena fotográfica no Reino Unido, e nutriu o desejo
de compartilhar essa experiência com o público brasileiro por meio de uma
exposição. Em 2009, contatou o SESI-SP e o British Council no Brasil, que
rapidamente abraçaram o projeto. Após 2 anos de pesquisa, conversas e novas
visitas ao Reino Unido, Kulcsár somou esforços com o curador inglês Martin CaigerSmith, em novembro de 2011, e juntos deram continuidade ao desenvolvimento do
projeto. A exposição resultante, Observadores, é a mais extensa mostra de
fotografia britânica já realizada no Brasil.
Observadores relembra mais de 80 anos de fotografia britânica. A exposição reúne
fotos feitas em nossa era digital, na qual a imagem é onipresente, e outras de uma
era que viu o nascimento da televisão e do cinema falado, da circulação em massa
de jornais e revistas, a chegada das pequenas câmeras portáteis e a introdução da
chamada fotografia ‘moderna’. As primeiras obras datam dos anos 1930 – o período
‘entre guerras’, os anos da Grande Depressão subsequente ao crash da Bolsa de
Nova York –, uma década de extremo conflito ideológico, que caminhou mais uma
vez em direção ao conflito global. Esses eventos encenados no palco mundial foram
sentidos de forma particular na Grã-Bretanha – uma ilha presa entre os polos da
modernidade e da tradição, entre o internacionalismo e a insularidade.
O foco da exposição não está em grandes eventos da história, embora, é claro, eles
deixem sua marca. Ele está, em linhas gerais, no que foi definido – talvez de forma
problemática – como fotografia sociodocumental: na fotografia de pessoas, de
pessoas em lugares, do efeito das pessoas nos lugares e das particularidades das
pessoas em um lugar específico. O lugar em foco é a Grã-Bretanha, e os fotógrafos,
aqueles que voltaram suas lentes para dentro da cena britânica. Eles o fizeram
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algumas vezes com uma pesquisa programática em mente, por vezes com foco em
pequena escala e, em outras, na busca consciente de outros alvos. Os fotógrafos
são essencialmente britânicos – por nascimento, adoção ou longa permanência –, e
não aqueles de outras nacionalidades (e houve muitos de enorme importância), que
realizaram suas obras quando ali estavam ‘de passagem’.
A investigação de seu próprio país e povo pode, claro, assumir muitas formas. A
observação do estado da nação e do caráter nacional – a ‘viagem ao interior’ – é
fundamental para as artes, a literatura e a reportagem social. O jornalista, fazendeiro
e reformista social William Cobbett viajou por toda a Inglaterra a cavalo nos anos
1820, registrando em seu livro Rural Rides as condições do povo e os efeitos das
novas políticas governamentais. Mais de um século depois, o grande escritor
George Orwell passou meses viajando pelo norte da Inglaterra, observando o drama
dos trabalhadores das cidades para seu famoso romance O Caminho para Wigan
Pier (1937). Essa espécie de ‘odisseia inglesa’ raras vezes era realizada apenas por
prazer, frequentemente era motivada por desejos moralizantes ou reformistas. Era
comum a crença de que as realidades da vida do outro lado do muro ou logo ali
adiante poderiam ser tão estranhas e intrigantes – ou alarmantes – quanto aquelas
muito além da nossa costa. “Assim como há uma África envolta nas trevas, também
não haveria uma Inglaterra envolta nas trevas?”, perguntou Charles Booth, o analista
social e reformista vitoriano, mapeador das classes sociais – ricas e pobres – de
cada rua de Londres. Também os fotógrafos das primeiras décadas dessa mídia
eram velozes no uso da câmera para reunir autoconhecimento – fosse sobre as
novas condições de vida ou sobre as tradições em processo de desaparecimento –
em uma espécie de documentário antropológico que se estendeu ao longo do século
19, desde os retratos escoceses de Hill & Adamson até as fotografias da vida e das
paisagens do leste da Inglaterra de Peter Henry Emerson e os abrangentes registros
dos costumes folclóricos de Benjamin Stone.
Mas o que, afora as informações visuais, podemos aprender com esses empenhos
fotográficos sobre nós mesmos ou sobre a fotografia? E por que isso deveria
interessar aos outros? A história da pintura e da escultura foi convencionalmente
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escrita em termos das escolas nacionais – a italiana, a alemã, a flamenga –, mas a
fotografia, de modo geral, é uma mídia menos fácil de analisar em termos de estilo,
e o mundo, desde o advento da fotografia, vem se tornando cada vez menos preso a
nacionalidades. O que significa falar de um contexto nacional para a fotografia? De
modo geral, tais enquadramentos são vistos hoje em dia com suspeita. “Em quais
circunstâncias o contexto nacional ou cultural é importante para se compreender
uma fotografia?”, pergunta o escritor indiano Aveek Sen, e ele mesmo responde:
“Depende de quem está buscando a compreensão, por que e para quem”. Isso pode
ser útil para a pesquisa histórica ou antropológica, ele argumenta, mas, quando
aplicado à fotografia contemporânea e artística, percebe-se uma força geopolítica
(ocidentalista) excessivas vezes em jogo. Por que, pergunta ele, em relação a Henri
Cartier-Bresson ou Jeff Wall, fala-se simplesmente em ‘fotografia’, ao passo que
Graciela Iturbide faz ‘fotografia mexicana’ e Dayanita Singh, ‘fotografia indiana’?1
Em última instância, o que podemos esperar que a fotografia e os fotógrafos
retratem das especificidades de uma cultura e um caráter nacionais? Podemos
mesmo criar uma imagem convincente da Grã-Bretanha, ou falar com autoridade
sobre uma noção de ‘britanismo’ com base em uma coleção de imagens
fotográficas? Essa própria noção não é, afinal, retrógrada e fadada ao fracasso
também? Que invocações poderiam ser feitas sobre abrangência e objetividade? O
que se pode dizer sem o apoio das palavras? Qualquer que seja a resposta, essas
perguntas nunca impediram que nós e os fotógrafos tentássemos avaliar o sucesso
dessas obras. E talvez, ao longo do caminho, entre esforços e percepções
individuais, na multiplicidade de conexões visuais, diálogos e conflitos, se possa
reunir, aprender e explorar as coisas...
São tantos os pontos de vista nesta exposição quanto os fotógrafos, e não fazemos
nenhuma tentativa aqui de rotular, classificar ou afirmar que todos eles se inscrevem
na mesma tradição. (A história da fotografia está repleta de disputas sobre
definições e rótulos, alguns instrutivos, outros simplesmente enfadonhos.)
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Aveek Sen. Dayanita Singh: House of Love, 2010. Delet
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3 Introdução Catálogo.docx Observadores não é um quadro abrangente. Não oferece conclusões claras. As
obras aqui apresentadas têm os mais variados propósitos. Algumas parecem ter a
intenção de fazer uma afirmação ampla, enquanto outras se restringem a um olhar
mais restrito. Algumas têm intenções abertamente políticas e outras mantêm um
afastamento estudado, uma relação poética ou elíptica com seu tema. Outras ainda
adotam
um
posicionamento
irônico.
Juntas,
elas
devem
permanecer,
necessariamente, como uma visão fragmentada, representativa apenas até certo
ponto, contraditória e com ocasionais suspeitas mútuas – mas será que todas as
tentativas de conclusão não acabam assim mesmo? Talvez esta exposição, por si
só, carregue algum tipo de verdade, afinal.
Observadores segue uma linha sinuosa em território vasto e rico. A exposição
baseia-se em duas extensas e tradicionais coleções públicas. É organizada sob a
tutela do British Council e se apoia fortemente na coleção dessa instituição,
significativamente ampliada pelas obras da coleção do Arts Council britânico. Esse
fato definiu em grande parte o curso da exposição: por sua natureza e importância
nacional, as duas coleções ao mesmo tempo refletem e influenciam as noções
predominantes ao longo do tempo (mantidas por aqueles que as desenvolveram) do
que constitui a ‘importância’ em relação à história fotográfica britânica. A coleção do
British Council, de forma notável e talvez não surpreendente, é forte em cronistas da
cena britânica, alguns nostálgicos e outros de tom crítico. As obras foram
selecionadas, essencialmente, de conjuntos mais extensos de trabalho e por isso
são necessariamente incompletas, mas a intenção foi sinalizar, em cada caso, uma
sensação de investigação fotográfica concentrada e reconhecer os projetos e formas
de maior dimensão dos quais cada série foi retirada – sejam eles um ensaio
fotográfico, um livro, uma exposição ou um arquivo.
Os incluídos aqui podem se autodenominar (ou já o fizeram no passado) artistas,
fotógrafos independentes, fotógrafos profissionais ou fotojornalistas. Podem ter
trabalhado a pedido de clientes ou seguindo seus próprios projetos pessoais. Podem
ter produzido trabalhos para exposições, livros ou revistas. Alguns aceitam, outros
rejeitam veementemente a associação à categoria sociodocumental. De todo modo,
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a exposição passeia por outros campos – paisagem, retrato e moda –, áreas que
podem traçar comentários sobre a cena social. A história fotográfica britânica ainda
está sendo escrita, e esta exposição reconhece que depende significativamente da
extensa pesquisa realizada nas últimas décadas – dentro e para além dessas duas
importantes coleções –, em particular por David A. Mellor, Valerie Williams, Ian
Jeffrey, Susan Bright, David Campany e David Chandler.
Observadores abrange obras com imagens fortes em si mesmas, mas que também
dizem alguma coisa – mesmo que de forma geral, tênue ou indireta, e por diversos
motivos, pessoais, profissionais ou políticos – sobre a condição da Grã-Bretanha e
do britanismo de alguns de seus participantes. O ponto de vista tende mais à crítica
do que à celebração, mais aos desfavorecidos e miseráveis do que ao confortável e
belo. E, embora grande parte do trabalho possa, em termos políticos, ser
considerada de intenção reformista, a mudança é muitas vezes vista com
desconfiança:
os
antigos
costumes
e
os
rituais
tradicionais
se
revelam
particularmente fotogênicos.
No século 21, nenhum outro gênero ou mídia mantém-se completamente autônomo,
e a fotografia enfrenta não apenas a perspectiva de sua própria proliferação infinita,
mas também uma hibridação com outras formas artísticas, tanto na prática como no
discurso. Se algum vínculo com o ‘real’ e sua observação unem o trabalho de todos
os fotógrafos incluídos aqui, esse vínculo é cada vez mais negociado, e a obra mais
recente presente na exposição fica às margens de outros territórios. Não há
‘tradição’ nestas fotografias, mas é possível traçar linhas comuns de investigação,
ecos e associações tanto em trabalhos individuais quanto em conjuntos de obras.
Algumas dessas conexões são reconhecidas, outras podem ser implícitas ou apenas
uma coincidência. Isto, certamente, é o que acontece quando se reúnem numerosas
obras.
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