O “CASO ELUANA NA ITÁLIA”: QUEM DECIDE SE A MORTE PODE

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O “CASO ELUANA NA ITÁLIA”: QUEM DECIDE SE A MORTE PODE
O “CASO ELUANA NA ITÁLIA”: QUEM DECIDE
SE A MORTE PODE SER UM DIREITO HUMANO ?
A morte de Eluana Englaro, em coma permanente depois de 17 anos e de 11 anos de batalha
judicial de seu pai, na Itália, suscitou intensos debates nesse país e recebeu cobertura da imprensa
internacional. A interferência do clero católico e do Vaticano, em particular, nos conflitos políticos e
ideológicos que envolveram o caso pôs em evidência os limites da laicidade do Estado italiano.
Os fatos
Eluana Englaro tinha 19 anos quando, em janeiro de 1992, sofreu um acidente automobilístico, que
a deixou em coma, estado que durou até sua morte em fevereiro de 2009. Um ano depois do
acidente, o diagnóstico foi de estado vegetativo permanente. Desde então, ela foi mantida por
alimentação artificial. A família de Eluana pediu autorização judicial para suspender a alimentação
artificial da moça, com base em declaração que ela própria havia feito previamente, conhecida dos
seus amigos, de que não suportaria uma vida vegetativa. Depois de algumas sentenças negativas e
de recursos, um minucioso processo constatou a autenticidade da vontade de Eluana, assim como a
conformidade da petição à legislação italiana. Em julho de 2008 a Corte de Apelação de Milão deu
sentença favorável ao pedido do pai de Eluana para suspender a alimentação. Nos quatro meses que
se seguiram, os poderes legislativo e judiciário entraram em conflito de atribuições: a maioria
parlamentar, situada à direita do espectro político, apoiada ostensivamente pelo clero católico e pelo
Vaticano, defendia a manutenção da alimentação artificial de Eluana, vale dizer de sua vida
vegetativa, enquanto que o Supremo Tribunal defendia a legislação existente, que permitia a
suspensão da alimentação artificial em casos como aquele. A Corte Européia foi acionada, em
recurso contra a decisão judicial italiana, por um grupo de associações católicas, mas ela se
manifestou a favor do direito constitucional do pai de Eluana. Em 06 de fevereiro de 2009, o
Primeiro Ministro Ítalo Berlusconi firmou um “decreto de urgência” para impedir a desconexão da
sonda de Eluana. Mas, o Presidente da República Giorgio Napolitano recusou-se a homologar o
decreto, porque ele mudava a legislação, portanto era inconstitucional. Enquanto o Senado
examinava projeto de mudança da legislação italiana a respeito dessa questão, a alimentação
artificial de Eluana foi suspensa e ela faleceu em 09/02/2009, depois de 17 anos em coma e 11 anos
de batalha judicial de seu pai para que tivesse uma morte digna.
As posições
São conhecidas as posições do Primeiro Ministro da Itália, Silvio Berlusconi, dirigente político de
direita e proprietário de grande rede de rádio-televisão naquele país. Suas manobras para a
instalação de um regime político populista de direita passa pela hostilidade aos imigrantes e pelo
cortejo ao clero católico, no contexto do retrocesso doutrinário dos papas João Paulo II e Bento
XVI. Como resultado, as alegações vaticanas em “defesa da vida” resultaram em um “pietismo
televisivo”, que suscitou o apoio do que havia de culturalmente mais atrasado na sociedade italiana.
Os grupos políticos e ideológicos da direita italiana não respeitaram a decisão judicial nem a
intimidade da família de Eluana e manipularam a situação, procurando tirar proveito em benefício
próprio. O Ministério da Saúde chegou a proibir as atuações similares já autorizadas pelo Poder
Judiciário nas clínicas públicas e a ameaçar com sanções policiais médicos e enfermeiros.
Depois da morte de Eluana, Cardeais com cargos no Vaticano levantaram suspeitas sobre a causa
real de sua morte, se a mera suspensão da alimentação artificial ou a aplicação de alguma droga. O
Prefeito da Sagrada Congregação da Causa dos Santos, Cardeal Saraiva Martins, foi mais enfático e
declarou que se tratava de um homicídio.
O respeito à lei foi o que menos contou para as posições do Vaticano, que não teve pudor de se
intrometer na vida política italiana. A legitimidade da manifestação política dos católicos não foi
posta em questão, mas, sim, o emprego da máquina política do Estado do Vaticano, que saiu do
âmbito propriamente religioso, dirigido aos seus fiéis, para entabular aliança com a rede de rádiotelevisão de propriedade do Primeiro Ministro, para minar o Estado de Direito, já frágil na Itália,
corroído de dentro do próprio Estado pela ação do bloco político que ocupa o poder. Na realidade,
não houve debate, houve abuso de poder por parte do bloco político dominante e do Vaticano.
Ficou patente, no Caso Eluana, o conflito entre uma ética laica, expressa na legislação, na atuação
do Supremo Tribunal e na Presidência da República, de um lado; de outro lado uma ética religiosa
tutelada pelo Vaticano. Além desse, foi patente o conflito entre a ética laica e o procedimento antiético do bloco político dominante naquele país, procedimento esse que se aliou com a ética
religiosa tutelada pelo Vaticano. O Presidente da República Giorgio Napolitano emergiu como a
principal liderança do Estado de Direito na Itália, onde a laicidade parece se reduzir a cada dia.
Contra a tentativa vaticana de tutela, ele declarou: “O monopólio da solidariedade e da autoridade
moral não é patrimônio de ninguém. No mesmo sentido, manifestou-se Margarita Boladeras,
professora catedrática de Filosofia Moral e Política da Universidade de Barcelona, em artigo
publicado em El País, em 11/02/2009. Para ela, a aliança da alta hierarquia da Igreja Católica na
Itália, com o demagógico governo de Berlusconi “pretende manter a vida vegetativa irreversível,
mas não respeita a integridade da vida psíquica e moral, nem a dignidade de cada pessoa, de acordo
com suas convicções.”
Há países europeus que têm legislação ainda menos restritiva do que a italiana nessa matéria, como
a Holanda, onde a Igreja Católica não tem poder para interferir nas decisões políticas. Foi a
intromissão vaticana na Itália que suscitou a declaração pouco diplomática de Carla Bruni, esposa
do Presidente da República da França, mas italiana de nascimento, a respeito de seu país natal: ele
não é laico e não é coincidência que o Vaticano esteja lá situado. VEJA O FLASH SOBRE CARLA
BRUNI
Até então diplomático, o pai de Eluana foi incisivo depois do desfecho: “Espero que história de
minha filha sirva para que as pessoas entendam que a medicina deve pensar mil vezes antes de criar
situações que não existem na natureza. Isso é uma loucura. A vida é vida, a morte é morte. Branco
ou negro. As pessoas vivas são capazes de entender e decidir por si mesmas. Eu pedi por caridade
que deixassem minha filha Eluana morrer. A condenação a viver sem limites é pior do que a
condenação à morte. Na família, os três havíamos deixado clara nossa posição. Falamos disso
muitas vezes. Vida, morte, liberdade, dignidade. Somos três campeões da liberdade. Não
necessitamos ouvir ladainhas. Nem culturais, nem religiosas, nem políticas.” [El País, 11/02/2009]
Um articulista italiano, Roberto Saviano, chegou a escrever que “na Itália não existe hoje nada mais
revolucionário do que o direito”, e defendeu que seu país peça perdão a Beppino Englaro, pai de
Eluana, transformado em símbolo do Estado laico.

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