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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
VIII Encontro da ANDHEP
“Políticas Públicas para a Segurança
Pública e Direitos Humanos”
GT07
Justiça Criminal, Segurança
Pública e Direitos Humanos
28 a 30 de abril de 2014
São Paulo – SP
Faculdade de Direito da USP
ISSN: 2317-0255
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Garantismo, direitos humanos e outras questões penais: como
pensam os atores do sistema de justiça
Ana Carolina de Morais Colombaroli
Carolina Sabbag Salotti
Guilherme Dias Angelicio
Pedro Henrique Valdevite Agostinho
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP
PALAVRAS-CHAVE: garantismo. atores do sistema de justiça criminal. magistrados.
promotores. defensores. questões penais.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Atividade institucionalizada do Sistema de Justiça
Criminal e Dimensão Ideológica. 3. Os Magistrados. 3.1. O ato de julgar e as
subjetividades na interpretação. 3.2. O punitivismo e o magistrado. 4. O Ministério
Público. 4.1. Ministério Público e Punitivismo. 5. Defensoria Pública. 5.1. Histórico da
Defensoria Pública. 5.2. Defensoria Pública: contraponto garantista? 6. Considerações
Finais.
1. Introdução
O presente trabalho apresenta os resultados parciais alcançados através da
pesquisa intitulada “Atores do sistema penal: o que pensam os juízes, promotores e
defensores públicos do Estado de São Paulo acerca das questões penais”,
desenvolvida pelos autores, junto ao Núcleo de Estudo e Pesquisa em Aprisionamento
e Liberdades (NEPAL), sob a orientação da professora Ana Gabriela Mendes Braga.
O NEPAL tem por objetivo fomentar um espaço de discussão e de pesquisa
acerca de práticas e discursos acerca de formas de aprisionamentos e liberdades. A
partir da reunião de saberes teóricos, mas principalmente empíricos, e de uma
abordagem interdisciplinar, pretende-se refletir acerca do sistema de justiça criminal,
suas instituições e seus atores. Atualmente, desenvolve mais duas pesquisas além da
supramencionada: uma acerca das percepções dos Agentes Penitenciários sobre seu
lugar na sociedade, e outra acerca da Etnografia no Tribunal do Júri na cidade de
Franca-SP.
A pesquisa acerca dos atores do sistema penal objetiva compreender o
posicionamento dos magistrados, promotores e defensores públicos do estado de São
Paulo perante questões fundamentais e paradigmáticas de direito penal e criminologia,
além de analisar a permeabilidade dessas instituições à realização de pesquisas. A
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compreensão do posicionamento dos magistrados, promotores e defensores públicos,
resulta na capacidade de visualizar se, enquanto instituição, eles apresentam visões
mais progressistas (minimalistas) ou conservadoras (punitivistas) diante da questão
penal.
O presente artigo apresenta a primeira parte da pesquisa, compreendida,
essencialmente, pela revisão bibliográfica, a fim de abordar os posicionamentos
adotados pela Magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública diante das
questões penais. São apontados como referenciais teóricos as obras de Vera Regina
Pereira de Andrade, Eugênio Raúl Zaffaroni e Alessando Baratta, acerca do sistema
de justiça criminal e do punitivismo. Sobre os da atuação específica das referidas
instituições, utiliza-se como marco teórico as obras de
François Rigaux, Salo de
Carvalho, Pierre Burdieu, Geraldo Prado, Antônio Alberto Machado, entre outros.
2. Atividade institucionalizada do sistema de justiça criminal e dimensão
ideológica
Quando se fala de sistema de justiça criminal, a primeira dimensão que se
apresenta é, por certo, a lei e as instituições formais de controle, representadas pela
Polícia, pelo Ministério Público, pelo Judiciário, bem como pelo sistema penitenciário.
Dá-se o nome de sistema penal ao controle social punitivo institucionalizado, que,
segundo Zaffaroni e Pierangelli (2011, p. 69)
na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se
uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena,
pressupondo uma atividade normativa que cria a lei e institucionaliza
o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e
condições para essa atuação.
No entanto, o sistema penal encontra-se inserido numa mecânica de controle
social muito mais ampla, compreendendo ações controladoras e repressoras que,
aparentemente, nada têm a ver com a criminalização.
Nas palavras de Vera Regina Pereira de Andrade (2012, p. 133), o sistema
penal
não se reduz ao complexo estático da normatividade nem da
institucionalidade, sendo concebido como um processo articulado e
dinâmico para o qual concorrem não apenas as instituições do
controle formal, mas também o conjunto dos mecanismos do controle
social informal, a saber: família, escola (da pré-escola à pósgraduação, especialmente as escolas formadoras dos operadores do
sistema penal), mídia falada (TV), escrita (jornais, literatura,
romances, histórias em quadrinhos), internet, moral, religião,
medicina, mercado de trabalho.
Dentro desse entendimento abrangente do sistema penal, pode-se distinguir
diversos segmentos. Aqueles básicos (que também podem ser denominados estáveis)
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são o policial, o judicial e o executivo: três grupos humanos que convergem na
atividade institucionalizada do sistema, que não atuam estritamente por etapas, mas
sim, acabam por interferir nas demais (ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2011, p. 70). Não
se pode olvidar, todavia, o legislador, que dá o padrão de configuração do sistema, e o
público, que exerce um poder seletivo importantíssimo a partir da delação.
Para compreender o funcionamento do sistema penal, é necessário ter em
mente que os atores que compõem os segmentos estáveis do sistema penal – policial,
judicial e executivo – não estão imunes à dimensão ideológica do sistema penal,
estruturada a partir das instituições informais de controle, bem como pelo senso
comum e a opinião pública.
Desta feita, a configuração da política criminal nacional não se restringe à
atuação das agências legislativas, mas depende principalmente da atuação nos
segmentos estáveis do sistema penal para sua plena efetivação. É necessário que os
atores com poder de decisão entendam as diretrizes legislativas como legítimas,
concretizando-as através da racionalidade jurídico instrumental.
As agências do Poder Judiciário, assim como as do Executivo têm o poder de
criminalização secundária, ou de estabelecer os critérios de interpretação que
definirão as formas de incidência do controle penal na sociedade civil, efetivando ou
obstaculizando a política legislativa (CARVALHO, 2010, p. 59).
A presente pesquisa não se volta apenas para os Magistrados, pois embora
eles apresentem evidente protagonismo no poder decisório. Existem, na abstração
denominada poder punitivo, uma série de personagens que atuam como filtros ou
impulsionadores do puninitivismo, capazes de condicionar a própria decisão judicial.
“O ato judicial, mormente a sentença penal, apenas consolida a série de inúmeras
decisões político-criminais que são tomadas pelos operadores jurídicos ao longo da
persecução penal” (CARVALHO, 2010, p. 60).
Diante disso, optamos por analisar o posicionamento dos magistrados,
promotores de justiça e defensores públicos diante de questões essenciais sobre
ciências criminais, uma vez que, no âmbito do judiciário, são eles os motores do
sistema
de
justiça
criminal,
ocupando
um
papel
chave
no
fenômeno
do
encarceramento.
Partimos do pressuposto de que a ideologia penal perfilhada por esses atores é
determinante na forma de atuação do Sistema de Justiça Criminal. O Magistrado, ao
julgar ou absolver; o Ministério Público, ao oferecer a denúncia – estabelecendo uma
espécie de filtro ao processo de criminalização – e acusar; e a Defensoria Pública, ao
defender o acusado, determinam-se a atuar em prol da liberdade ou do
aprisionamento.
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Embora esses atores componham a mesma rede, as instâncias são autônomas
e independentes na tomada de decisão. É nosso intuito compreender se existe um
direcionamento harmônico no que tange às opções político-criminais, o que culminaria
numa elevada efetividade da política criminal punitivista estabelecida, ou se existem
discordâncias e resistências entre as distintas instâncias, levando a uma diminuição
dessa efetividade.
3. Os Magistrados
Quando propõe-se a realizar uma análise conjuntural dos atores de maior
destaque no sistema de justiça, seja ele criminal ou não, faz-se necessário passar por
uma análise atenta da figura do juiz, alocado como elemento chave na concretização
material dos mandamentos legislativos e do ato dialógico de dizer o direito1.
Ao tratarmos do juiz enquanto ator do sistema de justiça criminal, torna-nos
claro que
as implicações desse no resultado final do desencadeamento punitivo
estatal existem e aparecem de formas variadas, seja no papel que o magistrado
exerce enquanto aquele que conduz o processo penal (valorando provas, exercendo
atribuições inquisitivas na fase instrutória e priorizando a busca utópica pela verdade
real), seja no papel de interprete das normas penais como aquele que exerce a
subsunção ao fato e, por vezes recorrentes, ao perfil socioeconômico do agente2 que
cometeu o fato.
3.1.
O ato de julgar e as subjetividades na interpretação
De modo geral, quando exercem a manifestação de seu poder de dizer o
direito, interpretando normas e materializando as imposições do sistema penal, os
magistrados são submetidos aos constrangimentos institucionais-legais do judiciário,
mas não só. Segundo François Rigaux (1997, p. 274):
1
Entende-se, nesse caso, “dizer o direito” como a possibilidade de emissão de imperativos por
núcleos de poder que detém, de forma quase monopolística, o saber jurídico.
2
A influência que o perfil socioeconômico do acusado trás para a subsunção do julgador torna-
se mais evidente nos crimes tipificados pela Lei de Drogas 11.343/2006, uma vez que esse
dispositivo, ao não determinar quantidade de droga, propicia discricionariedade ao juiz
enquadrar
o réu como usuário ou traficante, levando-se em conta variáveis sociais e
2
A influência que o perfil socioeconômico do acusado trás para a subsunção do julgador tornase mais evidente nos crimes tipificados pela Lei de Drogas 11.343/2006, uma vez que esse
dispositivo, ao não determinar quantidade de droga, propicia discricionariedade ao juiz
enquadrar o réu como usuário ou traficante, levando-se em conta variáveis sociais e
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O problema da interpretação, que está no centro do raciocínio
judiciário, não tem como único objectivo a compreensão dos textos
normativos que emanam de uma autoridade pública (lei, regulamento,
acto administrativo, decisão judicial, etc). Os usos e costumes, os actos
jurídicos privados, os comportamentos individuais, incluindo aqueles
que não se revestem de uma forma oral (gestos, silêncios, acções e
inacções, omissões) estão abertos à interpretação judiciária.
Ou seja, o procedimento de interpretação, apreciação e decisão do magistrado
não é um mecanismo apático de subsunção silogística, mas reveste-se de elementos
subjetivos caros às próprias concepções de mundo do magistrado.
As representações do mundo social feitas pelos seus agentes e a disputa
cotidiana de percepções e verdades acerca daquele espaço são também criadoras e
recriadoras do campo. Conforme a concepção do sociólogo francês Pierre Bourdieu, o
campo jurídico é composto por articulações de instituições e práticas através das quais
se produz o direito. A constituição de um campo não é determinada por uma estrutura
rígida de posições, mas é produto de uma luta: o “campo é um jogo no qual as
próprias regras estão em jogo” (Bourdieu, 2000,p.29). Logo, está em disputa no campo
jurídico o capital simbólico que permite interpretar o direito, lutas simbólicas de dizer o
direito e se impor pelo direito.
Nesse sentido, o juiz não se insere como mero aplicador da lei, mas como ente
que produz subjetividade a partir de um dispositivo de poder. Quando valora provas ou
interpreta normas de sentido amplo, atua em um fenômeno dialógico pelo qual faz-se
permeável por valores, não estando imune às dimensões ideológicas que permeiam,
no caso em específico, o sistema de justiça criminal, tais quais as instituições
informais de controle, o senso comum e a opinião pública.
3.2.
O punitivismo e o magistrado
Nota-se, com maior evidência nas últimas décadas, um endurecimento das
políticas públicas de combate à criminalidade, que passam a ter como cerne o
aumento da repressão à figura do desviante ou potencial criminoso apoiados em um
sistema legal (sem deixar de considerar a incidência de diversas ações à margem da
legalidade) de combate ao estereótipo do transgressor.
Essa ampliação do punitivismo não ocorre somente por medidas emanadas do
monopólio de violência do Estado, mas insere-se na sociabilidade contemporânea
lançando raízes nos mais variados aspectos das relações humanas. A sensação de
insegurança e o desconforto com o outro diverso, tornam-se cada vez mais comuns
nos mais variados estratos da sociedade, forjando no senso comum dos cidadãos a
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noção quase unívoca de que o desviante-inimigo deve ser eliminado, seja por vias
legais, enclausurado em uma unidade prisional superlotada, seja por vias ilegais tais
quais as execuções sumárias tão comumente cometidas pelo aparato policial e as
mais recentes reações populares de linchamento em espaços públicos.
Ao se admitir a influência de aspectos ideológicos nas manifestações do
magistrado, pode-se considerar que além de uma inserção na dinâmica punitivista
pelas vias intrajurídicas (através da submissão às produções normativas repressoras,
por exemplo) pode ocorrer uma inserção nessa dinâmica de forma extrajurídica (com a
incorporações de valores punitivistas nas margens subjetivas da interpretação
normativa), colaborando para a elevação do processo de criminalização secundária,
que segundo Baratta (1997, p.176):
[...] acentuam o caráter seletivo do sistema penal abstrato. Tendo
sido estudados os preconceitos e os estereótipos que guiam a ação
tanto dos órgãos investigadores como dos órgão judicantes, e que os
levam, portanto, assim como ocorre no caso do professor e dos erros
nas tarefas escolares, a procurar a verdadeira criminalidade
principalmente naqueles estratos sociais dos quais é normal esperála.
O magistrado, como ente que se insere na sociabilidade contemporânea e é
por ela influenciado, pode carregar consigo uma mentalidade punitivista, na qual
entende-se e entende seu papel como peça chave ao combate à criminalidade e
impõe-se, nessa luta de dizer o direito, como uma espécie de agente de segurança
(PRADO, 2005, p. 105), que vê na pena privativa de liberdade, sobretudo quando em
regime fechado, uma solução paliativa, mas por vias acreditada eficaz, de anulação do
transgressor. Essa centralidade de aplicação das penas privativas de liberdade em
regime fechado, contrapostas por um uso tímido e pouco significativo de penas
alternativas3 podem ser citados como exemplos claros da tendência punitiva que
acomete parte significativa dos julgadores.
A possível tendência punitiva também pode ser inferida de uma ampla pesquisa
realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), sob a coordenação da
cientista política da Universidade de São Paulo Maria Tereza Sadek, que, por meio de
questionários, indagou diversos magistrados do território nacional acerca das mais
variadas questões. No tendente as questões penais, os juízes demonstraram-se
menos favoráveis às correntes minimalistas e mais afetos às punitivistas, acreditando
no encarceramento como uma forma eficiente de “recuperação-reeducação” do
desviante. Como elucida a própria pesquisa (2006, p.6):
A pesquisa revela que o ambiente extremo de violência que atinge as
3
A exemplo das penas alternativas pode-se elencar as restritivas de direito previstas pelo artigo
43 do Código Penal em vigor.
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grandes cidades brasileiras influencia o comportamento da
magistratura. A categoria coloca-se como protagonista importante do
combate à criminalidade e anseia pela instrução de formas mais
poderosas de combatê-la, seja por meio de alterações legislativas ou
da instrumentalização de procedimentos que possam ser aplicados
no combate ao crime. Os magistrados querem o endurecimento da lei
penal.
Embora o direito penal tenha por função declarada a garantia dos direitos
individuais, legitimando a punição por parte do Estado, parte dos magistrados se
considera responsável pela manutenção da segurança pública e pela contenção da
violência, o que seria, em verdade, prerrogativa do Poder Executivo.
Diante do que fora apontado, podemos sintetizar que o juiz pode ser
compreendido sob outra perspectiva que não a do senso comum de mero aplicador da
lei penal. Ele se insere como um membro do corpo social influenciado e constituído
pelas circunstancias ideológicas que o rodeiam e pelo processo de formação ao qual
foi submetido, desde o primeiro contato com as matérias jurídicas nos bancos do curso
de graduação até os programas de formação continuada ofertados compulsoriamente
pelas Escolas Superiores de Magistratura como requisito para promoção na carreira.
4.
O Ministério Público
A história dessa instituição pode ser dividida em dois períodos: um anterior à
Constituição de 1988, e outro, após a promulgação desta. A Carta Magna definiu o
Ministério Público enquanto instituição permanente, com o papel de defesa do regime
democrático, da ordem jurídica, dos interesses individuais e sociais indisponíveis.
É possível dizer, sem medo de errar, que o MP foi a instituição que mais
conheceu progressos com a nova ordem constitucional do país. É papel do Ministério
Público representar a sociedade dentro do judiciário, bem como fora dele,
instrumentalizado no art. 127 da Constituição Federal.
Segundo o Promotor de Justiça e professor Antônio Alberto Machado (1999, p.
144)
Com efeito, o atual desenho constitucional da instituição, encarregada
pelo legislador constituinte de 1988 de defender a ordem jurídica, o
regime democrático e os interesses sociais e individuais disponíveis
(art. 127 da CF de 1988), não deixa nenhuma margem à dúvida
quanto ao deslocamento operado pelo Ministério Público, dentro da
organização política do Estado brasileiro, no sentido de desvincularse do aparato repressivo oficial para caminhar na direção da
sociedade civil, colocando-se no seio desta última como seu defensor
e representante.
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No entanto, pode-se afirmar que o Ministério Público ainda se encontra muito
ligado à sua marca de origem, ou seja, sua atuação de caráter penal na repressão do
crime, de modo que suas novas atribuições ainda não foram totalmente assimiladas.
Segundo Luiz Antônio Marrey, então procurador do Estado de São Paulo, na mesa
redonda de título O papel do Ministério Público entre as instituições que compõem o sistema
brasileiro de justiça (SADEK, 2010, p. 2-3)
O Ministério Público tem hoje uma ampla gama de atribuições, que
começa com a atribuição tradicional do Ministério Público como órgão
de persecução penal – que já existia e era realizada muito antes dos
recentes avanços constitucionais. Sempre houve promotores de
justiça que, mesmo sem as garantias constitucionais, se destacaram
pela sua coragem e pela sua independência em episódios marcantes
da vida brasileira; é fácil lembrar os episódios do esquadrão da morte
aqui em São Paulo, em pleno regime ditatorial. Nesse caso, o
Ministério Público paulista atuou com energia, repondo a legalidade e
punindo os criminosos que praticavam homicídios em nome de uma
pretensa segurança. Naquele momento o Ministério Público não tinha
a configuração constitucional e, portanto as condições de
independência que hoje se acham inscritas na Constituição. Essa
atividade tradicional continua sendo exercida, é claro.
O Ministério Público é um órgão de persecução penal, e o faz
representando o interesse social na paz social, na não violação das
normas penais, na proteção dos valores de dignidade de uma
sociedade que quer ser democrática. Mas esse papel tradicional
acabou se caracterizando pela produção de acusações,
sobretudo contra a parcela mais desfavorecida da população,
que é a clientela habitual do nosso sistema de justiça criminal. É
notória a dificuldade, que vem de longe, de se levar ao Judiciário,
acusações contra pessoas situadas em escalões superiores da
estrutura social (grifo nosso).
Diante de tal declaração, pode-se inferir que a atuação do MP enquanto órgão
de persecução penal não está livre da ideologia que permeia as demais instituições do
sistema de justiça criminal.
4.1.
Ministério Público e Punitivismo
A Constituição da República de 1988 traz, para além da institucionalização
permanente do Ministério Público, uma reforma e democratização do sistema punitivo
nacional. No entanto, entende-se que um dos obstáculos centrais à essa reforma é a
formação inquisitória dos atores da persecução criminal.
Segundo Salo de Carvalho (2010, p. 98)
O cenário de permanência da mentalidade inquisitória e de
resistência das agências de repressão penal ao processo de
democratização apresenta-se como terreno fértil para incorporação
do punitivismo, nas políticas institucionais e no agir dos atores que as
instrumentalizam. Assim, são estabelecidas condições ótimas de
incorporação da ideia de serem legítimas as demandas populistas de
necessidade de encarceramento em grande escala.
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Uma postura conservadora dos atores jurídicos é capaz de operar como canal
de expansão da criminalização, o que reflete no encarceramento, quando o seu papel
deveria ser o de criar, incentivar ou potencializar filtros processuais de resistência à
demanda punitiva.
Percebe-se a incorporação da mentalidade inquisitória quando as instituições
jurídico-criminais percebem como legítima a demanda punitiva e criam importantes
espaços de vazão ao punitivismo nos principais momentos processuais. Quando dos
pedidos de prisão cautelar, indiciamento do investigado, oferecimento de denúncia, o
representante do Ministério Público tem, explicitamente, a opção de ampliar ou
minimizar o poder punitivo.
A política conservadora, por parte do Ministério Público, no campo políticocriminal, se reflete na substancialização da demanda punitiva, através de inúmeras
ações pontuais no processo persecutório. Ao aumentar as prisões cautelares, propor
indiscriminadamente ações penais independentemente da intensidade da lesa ou da
qualidade do bem jurídico tutelado, ou adotar uma política de recursos automáticos em
casos de decisões absolutórias, entre outras (CARVALHO, 2010, p. 101).
Uma pesquisa realizada pela Procuradoria Geral de Justiça, em conjunto com a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, acerca do perfil político-criminal dos
membros do Ministério Público gaúcho (AZEVEDO; WEINGARTNER NETO, 2004)
demonstra que 30,8% dos entrevistados afirmou ter escolhido a carreira do Ministério
Público por sua atuação no combate à criminalidade. Quando confrontados
diretamente sobre as opções político-criminais, 54,4% dos entrevistados identificaramse com as políticas de tolerância zero, e 26,9% aderiram ao funcionalismo penal.
Apenas 8,2% demonstrara-se influenciados pelo garantismo penal.
A instituição apresenta um viés punitivista quando 83,8% dos entrevistados
aderem à afirmação de que a legislação brasileira é excessivamente branda, com
demasiados benefícios aos réus e penas muito curtas, o que dificultaria a contenção
da criminalidade. Ademais, 82% se manifestaram favoráveis à expansão do direito
penal para tutelar bens jurídicos ameaçados pelos novos riscos sociais.
Sobre a execução penal, os membros do Ministério Público gaúcho
entrevistados mostraram resistência às penas restritivas de direito (34,4% em
desacordo com a eficácia das medidas alternativas à prisão, mesmo se ampliadas as
formas de fiscalização), e divide-se em relação ao uso exclusivo da prisão em casos
de prática de crimes graves (53,5% mostraram-se favoráveis ao uso subsidiário do
cárcere) e à relevância da progressão do regime (64,5% entendem ser importante o
sistema progressivo). “Contrariamente, sobre a necessidade dos laudos criminológicos
como requisito para progressão de regime, praticamente foi unânime a posição
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contrária à alteração legislativa de substituição da perícia técnica por atestado de boa
conduta carcerária (97,6%) (CARVALHO, 2010, p. 101).
Cumpre ressaltar que a pesquisa quantitativa acima relatava está restrita ao
Estado do Rio Grande Sul, e ainda estamos em fase de realização da pesquisa de
campo no Estado de São Paulo. Entretanto, é provável que essa situação se
apresente em sintonia com o cenário nacional, apontando para a valorização das
práticas retributivas na área penal.
5.
Defensoria Pública
Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1988,
definia a nova carta magna brasileira como a Constituição Cidadã, uma vez que esta
fora fruto de intenso clamor popular e inegável construção coletiva. Entretanto, tal
característica é destacada, principalmente, pela busca de uma cidadania efetiva dentro
do novo texto constitucional
Após mais de duas décadas na ausência de garantias políticas e sociais, os
mais diversos setores de nossa sociedade clamavam por garantias efetivas, no plano
individual e coletivo, as quais representassem a efetivação do chamado Estado
Democrático de Direito, conceito que une princípios e conceitos do Estado
Democrático e do Estado de Direito e, segundo José Afonso da Silva (2008, p. 112),
não como simples reunião formal dos respectivos elementos, porque, em verdade,
revela um conceito novo que os supera, na medida em que incorpora um componente
revolucionário de transformação do status quo.
É neste contexto que surge a Instituição Defensoria Pública. O art. 134 da
Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, dispõe que a
Defensoria Pública é o órgão do Estado (União e Territórios, Distrito Federal e Estados
Membros) destinado à prestação de assistência jurídica integral e gratuita à população
desprovida de recursos para pagar honorários de advogado e os custos de uma
postulação ou defesa em processo judicial, ou extrajudicial, ou, ainda, de um
aconselhamento jurídico, sendo a Defensoria Pública uma instituição essencial à
função jurisdicional do Estado, vale dizer, essencial à própria Justiça, do mesmo modo
que o Ministério Público.
5.1.
Histórico da Defensoria Pública
Historicamente a Defensoria Pública tem suas raízes nas Ordenações Filipinas,
que vigoram, no Brasil, até finais de 1916, por força da Lei de 2º de outubro de 1823.
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Com o passar do tempo, várias foram as iniciativas legais que tinham por objetivo
garantir aos pobres o acesso à Justiça, como, por exemplo, o Instituto da Ordem dos
Advogados Brasileiros, no ano de 1870, ocasião em que Nabuco de Araújo, então
Presidente do Instituto, criou a praxe de alguns membros do Instituto dar consultas
jurídicas às pessoas pobres e defendê-las em Juízo.
Já com a Constituição Federal, de 16 de julho de 1934, trouxe acerca da
assistência judiciária, que “A União e os Estados concederão aos necessitados
assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais e assegurando a
isenção de emolumentos, custas, taxas e selos”. Apenas com a Constituição da
República de 1988, é que surge a Defensoria Pública na figura de Instituição
Constitucional.
Acerca da realidade paulista, o Estado de São Paulo criou, em 1935, o primeiro
serviço governamental de Assistência Judiciária do Brasil, seguido pelo Rio Grande do
Sul e Minas Gerais. Paradoxalmente, aquele acabou demonstrando grande atraso na
prestação da assistência judiciária, valendo-se, até 2006, apenas de advogados
públicos designados para atuarem na prestação do referido serviço e de advogados
privados, os quais prestavam serviços judiciários através de oneroso convênio com a
OAB-SP.
Hoje, oito anos após a promulgação da Lei Complemetar 988/06, a qual
instituiu a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, nos deparamos com uma
instituição que apresenta grande crescimentos físico e humano, mas que, ao mesmo
tempo, encontra-se despreparada para certos desafios que lhe são colocados. Hoje,
na ausência de quadro suficiente de defensores, impera a política institucional de
direcionar a instalação primordial de atendimento na área cível e da infância e
juventude, em detrimento dos casos criminais, os quais passam a ser atendidos por
advogados dativos inscritos no já citado convênio com a OAB-SP, os quais
apresentam, na maioria das vezes, mero interesse pecuniário, ausentando-se das
responsabilidades que possuem frente ao indivíduo por quem atuam, sem
conhecimento do caso concreto tratado no processo, de seu desenvolvimento, sem
interesse real na demanda.
A insuficiência do quadro de defensores para uma ampla atuação penal implica
diretamente na qualidade da defesa do acusado, de modo que
(...) sem a defesa técnica bem aparelhada, o acusado se torna
objeto de Direito, ao invés de ser um sujeito de direitos. O juiz,
por fim, se torna um agente político parcial, pois enxerga
apenas o ângulo explanado pela acusação. Este panorama
influencia no décimo axioma Garantista: Nulla probatio sine
defensione, pois a prova fica inexoravelmente maculada sem a
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verdadeira e real auto-defesa exercida pelo acusado no
interrogatório (OLIVEIRA, 2008, p. 26).
Ademais, a instituição, com destaque para a figura do Defensor Público, sofre
com represálias da própria população, vez que estes acreditam que o acusado
hipossuficiente – público, alvo do sistema penal seletivo4 (DIAS e ANDRADE, 1997)
deve, não ser totalmente afastado da sociedade através das penas, como não
constituir, no que for possível, parte do sistema judiciário e suas instituições.
5.2.
Defensoria Pública: contraponto garantista?
A pesquisa em execução junto ao NEPAL visa, no que tange à Defensoria
Pública, avaliar as práticas e ações institucionais na garantia do efetivo exercício dos
direitos fundamentais e daqueles diretamente relacionados à defesa da liberdade, que
se consubstanciam ou se restringem nos limites do processo penal, ou seja, avaliar
como a instituição se coloca na efetivação, na seara penal, de um estado- defesa
forte, frente aos já existentes e consolidados Estado-Juiz, través da Magistratura e do
Estado-acusação, através do Ministério Público.
É inegável que a instituição da Defensoria Pública pela Constituição Federal de
1988 se dá com o intuito de garantir paridade de armas à defesa daqueles em
condição de hipossuficiência, tendo em vista a concretização das garantias
constitucionais do contraditório e da ampla defesa. O fortalecimento da instituição
responsável pela representação penal dos mais carentes seria capaz de transformar a
justiça criminal em instrumento menos repressor e mais garantidor.
Entretanto, mesmo após mais de um quarto de século da nova ordem
constitucional, o que se vê na prática é uma supervalorização dos órgãos de
execução, acusatórios e julgadores, sem garantir a devida valorização do axioma
garantista “nulla probatio sine defensione”.
Em que pese a relevância da Defensoria Pública enquanto instituição, e da sua
inegável posição enquanto contraponto à tendência punitivista apresentada pelo
Sistema de Justiça Criminal, o que se observa ainda é uma instituição carente de
recursos humanos, físicos e financeiros. Na grande maioria dos estados, o número de
defensores é insuficiente para o atendimento em todas as localidades e, quando se faz
presente, o funcionamento não é integral.
4
Mecanismos de seleção – Com este conceito designam-se os operadores genéricos que
imprimem sentido ao exercício da discricionariedade real das instâncias formais de controlo e
permitem explicar as regularidades da presença desproporcionada de membros dos estratos
mais desfavorecidos nas estatísticas oficiais da delinquência (...).” DIAS, Jorge de Figueiredo e
ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: O homem delinquente e a sociedade criminógena.
Coimbra: Editora Coimbra, 1997. p. 386
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
É necessário indagar, ainda, acerca da formação dos Defensores Públicos, e
das práticas e valores utilizados em suas atividades, sejam eles construídos dentro ou
fora da instituição. Diferente do Ministério Público e da Magistratura, a Defensoria
Pública no Estado de São Paulo apresenta recente criação, o que permite inferir que a
mesma ainda esteja passando por processo de formação de sua identidade, mas, ao
mesmo tempo, necessita de direcionamentos claros de seus membros.
6.
Considerações Finais
É necessário considerar que o presente artigo representa um resultado parcial
acerca de uma pesquisa, ainda em desenvolvimento. Para além da pesquisa
bibliográfica, está em curso a realização de uma pesquisa quantitativa, envolvendo
questionários acerca de questões pessoais, como gênero, idade, tempo na carreira,
bem como questões específicas sobre direito penal e política criminal, aplicados aos
membros da Magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública, todos do estado de
São Paulo.
Ademais, vem sendo realizada uma análise dos currículos e programas de
disciplinas das Escolas Superiores das referidas instituições, no que tange às ciências
criminais, a fim de identificar se as matérias ministradas nesses cursos apresentam
um viés garantista/minimalista ou punitivista.
No entanto, a partir da análise bibliográfica apresentada, é possível inferir que
o grau de eficiência do punitivismo vigente no Sistema de Justiça Criminal paulista é
proveniente dos consensos político-criminais das distintas instituições que o
compõem.
O fenômeno do encarceramento massivo da população paulista não é apenas
reflexo da política legislativa de incorporação do populismo punitivo, mas depende,
para que seja efetivado, que os atores do sistema penal institucionalizado, com poder
de decisão na esfera processual penal, vejam como legítima a diretriz punitiva – ou
não tenham força suficiente para contrapô-la.
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ISSN: 2317-0255
O Campo do Controle do Crime no Brasil nos Governos Lula e Dilma
(2003-2013) – Mudanças e Continuidades
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
1. A resposta ao delito no contexto pós-neoliberal
Desde o início da década de 1990, os problemas da insegurança e da
criminalidade constituem-se como alguns dos principais problemas dos grandes e
médios centros urbanos na América do Sul. Sob o signo da ideia de "crise", uma
mutação repentina e radical que ameaça um estado de coisas, que ameaça subverter
completamente a ordem existente. Esta "crise" foi vista desde o início como integrada
por um componente "objetivo", com um número crescente de variáveis relacionadas
com as infrações penais que compõem o que é comumente definido como o
"criminalidade de rua" ou "pequeno crime" , crimes contra a propriedade e contra as
pessoas que se desenvolvem especialmente em público, ou no ambiente doméstico, e
muitas vezes incluem o contato direto entre ofensor e ofendido. Para além dos muitos
problemas graves na produção de informações estatísticas sobre o delito na região,
observa-se uma tendência crescente tanto nas estatísticas oficiais como nas estatísticas
de vitimização, com variações no ritmo e grau em cada país. Este crescimento é um
elemento fundamental no processo de construção social e política do problema.
Este componente objetivo tem sido acompanhado também de um componente
"subjetivo", o "sentimento de insegurança", que traduz uma virada nas expectativas e
sentimentos dos moradores das grandes e médias cidades no que diz respeito à
possibilidade de ser vítima de um crime. Este desconforto, por sua vez, se comunica
com a realização de inúmeros comportamentos de autoproteção e evitamento, que têm
um forte impacto sobre o desenvolvimento da vida quotidiana e constituem um novo
componente objetivo da crise de insegurança.
Esses componentes objetivo e subjetivo da crise de insegurança tem sido
recorrentemente matéria para informação e discussão nos meios de comunicação,
tornando-se uma das questões fundamentais de produção de sentido pela mídia. Esta
crise de insegurança contra o crime na América do Sul se situa no contexto de profundas
mudanças sociais, culturais econômicas ocorridas nas últimas três décadas (Pegoraro,
1997, 1999; Sozzo, 2005b).
Esta crise de insegurança na América do Sul, resultou, como em outros
contextos, em um sentido generalizado de crise dos atores estatais que têm sido
tradicionalmente responsáveis pelas políticas públicas de segurança e justiça criminal,
normalmente localizados nos níveis nacional / federal ou estadual / provincial de
governo, com vários tipos de articulações em diferentes contextos: polícia, justiça
criminal, prisão. Este sentimento de crise aparece dentro e fora destes aparatos estatais.
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Em relação ao mesmo, para além do crescimento da insegurança, tem havido uma
crescente "politização" da questão, o que significa que mais e mais, o braço “político”
das estruturas de estado se encontra vinculado ao problema, como aquele que deve
tomar decisões que são considerados chave, e deslocando para uma posição
secundária o braço "administrativo" (Garland, 2005, 190-194), e, com ele, aqueles que
até então atuavam como "especialistas" nesta matéria (penalistas, criminólogos)
(Garland, 2005, 251-254).
Esta "politização" quebrou, em muitos casos, certo consenso nas agendas dos
partidos políticos concorrentes nas democracias emergentes da América Latina,
transformando a questão da segurança em tema do debate eleitoral, onde as decisões
e ações de políticas públicas procuram alcançar legitimidade "de baixo", "popular", o
que na maioria dos casos foi secundarizado na lógica política das décadas anteriores.
Isso se deveu, em grande parte, em nosso passado recente, a persistência de regimes
ditatoriais ou a subsistência de regimes políticos democráticos sempre frágeis, em que
as agendas eleitorais foram marcadas por questões macroscópicos sobre a vida social
e política. É sugestivo a este respeito a leitura de Pavarini, que vincula a "politização"
ou "eleitoralização" da questão da segurança contra o crime, o que parece ser uma
característica distintiva das sociedades contemporâneas, à decadência dos tópicos de
transformação política e social como eixos de mobilização política (Pavarini, 2006, 122125).
Como bem assinalou David Garland (1996, 2005), pensando nos contextos
anglo-saxônicos, mas algo que em certo sentido pode ser também verificado no cenário
latino-americano, frente a esta difícil situação que implicou em uma crise da segurança
pública e a correlacionada crise dos atores estatais tradicionalmente competentes na
matéria, se delinearam duas respostas estatais típicas.
Por um lado, uma “resposta de negação” (Garland, 2005, 222-231). Frente ao
que aparece de forma bastante evidente como um certo esgotamento de seus modos
de pensar e atuar, os atores estatais envolvidos parecem negar rotundamente esta
realidade, e nostalgicamente reafirmam, tratando de incrementar ou enfatizar a
utilização de certas velhas técnicas de intervenção, vinculadas ao incremento da
“punitividade”, enviando a mensagem ao público de que a difícil situação não é mais do
que o produto de não se ter avançado o suficiente no caminho sinalizado desde o
passado, ou de se haver produzido um certo “amaciamento” exagerado das estratégias
de controle do delito.
Este tipo de reação de negação foi fortemente impulsionado pelo “braço
político” das estruturas estatais, em torno ao processo de “politização” ou
“eleitoralização” antes assinalado, e se apoiou fortemente na penetração do
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neoconservadorismo – com diversos tipos de hibridizações locais – como racionalidade
governamental, especialmente desde a década de 90 em diante, gerando uma espécie
de “populismo punitivo”, assentado na consideração do delinquente como um “outro”
inassimilável à sociedade, uma verdadeira “criminologia do outro”. Esta transformação
das estratégias de controle do delito na América do Sul constitui, sem dúvida, a
tendência predominante. Se incluem nela decisões e ações que nos resultam
extraordinariamente familiares: incremento do uso da força por parte das polícias,
expansão das prerrogativas policiais de detenção e registro de cidadãos, aumento legal
das penas para certos tipos de delito, instalação legal de penas fixas sem possibilidade
de flexibilização na fase de execução ou de penas perpétuas de cumprimento efetivo,
incremento da severidade das condenações penais, redução legal e prática das
possibilidades de liberdade condicional de imputados durante o processo penal,
multiplicação da população carcerária, com as consequentes situações de superlotação
e eliminação das iniciativas correcionais em favor de uma mera “prisão-depósito com
finalidade de contenção, etc.
Mas de outro lado também se produziu uma “resposta adaptativa” (Garland,
2005, 194-222). Se trata de um tipo de resposta estatal – mas que também envolve
atores não-estatais – que frente à situação difícil que gera a crise da segurança frente
ao delito, reconhece os limites das maneiras de pensar e atuar que tradicionalmente
tem sido sustentadas pelos atores estatais competentes no terreno do controle do delito,
e busca gerar inovações. Mais do que uma única forma de resposta – diferentemente
da “resposta de negação” antes referida – inclui um conjunto que não possui uma efetiva
coerência ou unidade, dando origem a ações e decisões que possuem um alto nível de
heterogeneidade, desde a “racionalização” e “comercialização” da administração da
justiça penal até as iniciativas de instalação legal de alternativas à pena privativa de
liberdade, desde a difusão de experiências de polícia comunitária ou de polícia de
proximidade até a adoção de formas de vigilância comunitária (“neighbourhoodwatch””),
desde iniciativas que buscam reconstruir a “prevenção social do delito” até mecanismos
de mediação ou resolução alternativa de conflitos sociais. Muitas destas decisões e
ações foram construídas nos marcos de ascenso do neoliberalismo como racionalidade
governamental
–
com
suas
especificidades
e
hibridismos
tanto
com
o
neoconservadorismo como com o neowelfarismo – especialmente desde a década de
90 em diante no cenário sul-americano. Certamente se trata de uma tendência de
transformação das estratégias de controle do delito que possui uma força menor do que
a anteriormente mencionada, mas que se encontra também presente no contexto da
América do Sul.
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Por outro lado, nos últimos anos na América do Sul se desenvolveram
processos de mudança política extraordinariamente significativos, ligados ao ascenso
de alianças e programas políticos com caráter “pós-neoliberal” e “pós-conservador”, que
ganharam eleições gerais e construíram governos nacionais que buscam colocar em
marcha estratégias e iniciativas governamentais que recorrem, para sua formulação e
legitimação, a vocabulários provenientes de uma rica e complexa tradição política de
esquerda, com importantes variações entre si vinculadas aos contextos nacionais. Em
todo caso, estas experiências de mutação política buscam superar os efeitos
econômicos, sociais e culturais de difusão do neoliberalismo e do neoconservadorismo,
que atravessou a América do Sul, com diversos níveis de intensidade, desde a década
de 70, mobilizados nos marcos de regimes políticos autoritários e por parte de certas
alianças políticas nos marcos de regimes políticos democráticos combinados com uma
cidadania de “baixa intensidade”.
Na Venezuela essa mudança começou a construir-se a partir da eleição para
Presidente da República de Hugo Chávez, pelo Movimiento Quinta República, que
iniciou sua gestão em fevereiro de 1998, experiência política que se estende até a
atualidade, a partir das reeleições de Chavez e de Maduro.
No Brasil começou a gestar-se com o triunfo nas eleições presidenciais do
Partido dos Trabalhadores, com o início da gestão do Presidente Lula da silva em janeiro
de 2003, experiência política que se estende até a atualidade, a partir da reeleição de
Lula em 2006 e da eleição de Dilma Roussef em 2010.
Na Argentina esta mudança começa a acontecer com a eleição da Frente para
la Victoria do Presidente Nestor Kirchner, cuja gestão se iniciou em maio de 2003,
experiência política que se estende até a atualidade através da eleição em 2007 e da
reeleição em 2011 da Presidenta Cristina Fernández de Kirchner.
No Uruguai esta mudança começou a ser construída a partir do triunfo eleitoral
da Frente Amplio e da posse do Presidente Tabaré Vázquez em março de 2005,
experiência política que se prolonga até a atualidade através da eleição em 2009 do
Presidente José Mugica.
Na Bolívia, a mudança começou a partir do triunfo eleitoral do Movimiento al
Socialismo e da posso do Presidente Evo Morales em janeiro de 2006, experiência
política que se prolonga até agora com a reeleição em dezembro de 2009.
No Equador, a mudança se inicia com o triunfo eleitoral da Alianza PAIS e a
posse como Presidente de Rafael Correa em março de 2007, experiência política que
continua até hoje com a reeleição em abril de 2009, em função de uma mudança
constitucional.
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Com diferenças, em alguns casos bem marcadas, nos vocabulários e
programas governamentais, todos estes governos nacionais geraram estratégias e
iniciativas que buscam diferenciar-se – com diversos graus, por certo – do passado
neoliberal e neoconservador que se produziu em seus próprios contextos nos anos
precedentes – especialmente na década de 90.
Da união destas duas séries de fenômenos que atravessam a América do Sul
na atualidade, surge o presente projeto de investigação, que busca conectar a questão
das transformações atuais das políticas criminais e de segurança frente ao delito e o
tema do surgimento de governos nacionais que se constroem desde alianças e
programas políticos que configuram e legitimam recorrento a elementos da complexa
tradição política da esquerda latino-americana, apresentando-se como uma via para a
superação
do
passado
recente
colonizado
pelo
neoliberalismo
e
pelo
neoconservadorismo. Como as experiências dos governos nacionais, alimentados pela
tradição da esquerda na América do Sul, reagiram no terreno das políticas de segurança
frente ao delito? Que mudanças e que continuidades tem ocorrido frente ao período
anterior? Que mudanças e continuidades se observam no plano da retórica políticoadministrativa? Que mudanças e continuidades se observam no plano da legislação
penal, policial, processual penal e de execução penal? Que mudanças e continuidades
se observam nas estratégias e práticas policiais, de prevenção ao delito e penais?
2. Uma política-criminal ambivalente
Garland afirma que a maior parte das medidas penais recentemente adotadas
pelos governos ocidentais atestam uma lógica instrumental e um modo de ação
significativo, que buscam traduzir o sentimento público, punir para o próprio bem do
apenado, insistir nos objetivos punitivos, de modo que “cada medida opera em dois
registros diferentes, um registro punitivo que segrega os símbolos de condenação e de
sofrimento para entregar sua mensagem, e um registro instrumental mais adequado aos
objetivos de proteção do público e gestão do risco”. (GARLAND, 1999, p. 60)
Em matéria de reformas legais no âmbito da justiça criminal brasileira, estes dois
modelos encontram-se presentes e abrigam duas lógicas distintas: igualdade e
hierarquia. Tal dualidade aponta para as contradições existentes na própria sociedade,
refletindo a seletividade e a discricionariedade na elaboração e na aplicação da justiça
penal, o que, à sua vez, impede a demanda de universalização de uma cidadania
igualitária. (CAMPOS, 2010, p 105)
De qualquer modo, o Direito Penal torna-se o meio preferencial de resolução
dos conflitos sociais e de gerenciamento de condutas no espaço público. Segundo
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Campos, “a política repressiva e a resposta penal são vistas como modo de resolução
de conflitos em uma sociedade altamente hierarquizada e profundamente desigual
como a brasileira.” (CAMPOS, 2010, p. 175)
Em sua pesquisa sobre a elaboração da política criminal brasileira pós-88,
Campos classificou a legislação penal, basicamente, em três direções: do
recrudescimento dos tipos penais existentes em relação à legislação anterior; leis que
visaram novos tipos penais e a criminalização de condutas não tipificadas
anteriormente; e leis que visaram medidas alternativas ou a ampliação de direitos dos
acusados. Ainda, em menor número, identificou o que denominou de leis “mistas”, que
ampliaram direitos ao passo que criminalizaram determinadas condutas; assim como
leis que estabeleceram privilégios para determinado grupo da população, como, por
exemplo, o foro privilegiado e a prisão especial (representando a institucionalização da
hierarquia). Sua pesquisa aponta que ainda que se busque efetivar direitos e garantias
fundamentais, prioritariamente são apresentadas normas que visam a criminalização ou
o agravamento de penas.
Verifica-se a coexistência entre princípios diferentes de justiça na política
criminal brasileira, com iniciativas legais reativas e repressivas, e iniciativas garantistas
e (ou) preventivas. Assim, combinam-se normas produzidas sob um viés mais igualitário
e garantidor de direitos a todos os cidadãos, e a produção de normas de caráter punitivo
e hierarquizante, nas quais a criminalização leva em consideração o status do criminoso,
influenciada por estereótipos sociais. Ademais, a dinâmica da política criminal brasileira
pós-88 exibe um processo de criminalização que resulta de múltiplas iniciativas, tanto
de reações da opinião pública, do aparato de segurança pública e de políticos, como da
reivindicação de movimentos sociais e pela garantia de direitos de alguns grupos da
população. Portanto, lógicas distintas entrelaçam-se na configuração da política criminal
brasileira.
Ademais, o autor analisa as leis propostas de acordo com os partidos políticos e
aponta que não houve uma identidade que poderia ser pensada entre partidos de direita
e centro em propor leis mais severas; e partidos de esquerda apresentarem leis que
ampliam direitos. Os partidos identificados como de esquerda “propuseram leis que
privilegiam alguns segmentos específicos, leis que ampliam direitos, leis mais punitivas
e principalmente leis que criminalizam novas condutas” (CAMPOS, 2010, p. 124). Já os
partidos de direita tiveram proposições apresentadas em todos os grupos e tipos de
punição, mas apresentaram algumas leis mais punitivas em segurança pública e justiça
criminal, como a Lei de Crimes Hediondos. Logo, os parlamentares de distintas
ideologias políticas e partidárias propuseram tanto leis mais punitivas, quanto leis que
ampliam direitos e garantias. No entanto, o autor constatou uma tendência à
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criminalização dos conflitos e ao crescimento da judicialização em diferentes partidos,
o que demonstra que, sob a perspectiva do Estado, a resolução civil de conflitos e
problemas sociais ainda se ancora sob uma visão penalizadora.
O sistema de segurança pública brasileiro em vigor, desenvolvido a partir da
Constituição Federal de 1988, estabeleceu como compromisso legal a segurança
individual e coletiva. Sem embargo, as políticas de segurança pública têm sido utilizadas
como paliativo a situações de emergência, sendo desprovidas de perenidade e
consistência. Muitas leis de caráter mais punitivo são propostas e aprovadas
rapidamente em um contexto de forte demanda da opinião pública, como por exemplo,
no caso da equiparação da falsificação de remédios aos crimes hediondos, assim como
a aprovação do Regime Disciplinar Diferenciado1 e as rebeliões comandadas pelo PCC
em São Paulo.
A partir dessa percepção, verifica-se que o passado recente das políticas
públicas de segurança na sociedade brasileira restringe-se a uma “série de intervenções
espasmódicas, meramente reativas, voltadas para a solução imediata de crises que
assolam a ordem pública.” (CARVALHO e FÁTIMA e SILVA, 2011, p. 62). A falta de
articulação entre a elaboração de leis, decretos, portarias e as ações em segurança
pública no contexto social acaba por apresentar um quadro de resultados insatisfatórios
e inconsistentes. Orientando-se pela maior conveniência imediata, o governo ignora as
consequências a longo prazo. (ELBERT, 2009, 149)
O fenômeno criminal, e em particular o aumento da criminalidade violenta no
Brasil nas últimas décadas, têm sido pouco afetado pelas políticas de encarceramento
massivo implementadas a partir da edição da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos),
que impediu a progressão de regime e com isso ampliou sobremaneira a população
carcerária desde então2, sem que tenha ocorrido redução da tendência de crescimento
destes delitos.
Observando as taxas de encarceramento no Brasil, verificamos o enorme
crescimento ocorrido na última década, que faz com que tenhamos hoje nos cárceres
brasileiros mais de 500 mil presos3 (no final dos anos 90 a população carcerária no
1
Sobre o RDD, vide FREIRE, Christiane Russomano. A Violência do Sistema Penitenciário
Brasileiro Contemporâneo: o caso RDD. São Paulo: IBCCRIM, 2005.
2
Sobre o impacto da Lei dos Crimes Hediondos nas taxas de criminalidade e na administração
carcerária, vide o relatório de pesquisa do ILANUD, A Lei de Crimes Hediondos como
Instrumento de Política Criminal, São Paulo, julho de 2005.
3
Em dezembro de 2012 o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) já anunciava um
efetivo prisional da ordem de 548,003 presos no Brasil. Disponível em:
<http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B622166AD2E896%7D&Team=&params=itemID=%7BC37B2AE9-4C68-4006-8B1624D28407509C%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D>
Acesso em: 20 de jun. de 2013.
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Brasil estava em torno de 150 mil presos). Levando em conta os dados gerais do sistema
carcerário, o que mais cresce é a utilização da prisão preventiva, ou seja, pessoas que
estão presas sem uma condenação criminal, e que representam hoje cerca de 40% do
total de presos no país4. O aumento das taxas de encarceramento, derivado de uma
demanda punitiva que encontra respaldo no parlamento (criminalização primária), na
atuação dos órgãos de segurança pública e justiça criminal (criminalização secundária),
não surte o efeito esperado de queda da criminalidade, uma vez que a atuação do
sistema penal é seletiva, atingindo apenas a base da cadeia criminal, e reunindo nas
prisões indivíduos que, pela sua vulnerabilidade social, são presas fáceis das facções
criminais, que comandam o mercado das ilegalidades dentro e fora das prisões.
(AZEVEDO e OLIVEIRA, 2011, p. 4-11)
Embora tenha crescido nos últimos anos o número de processos contra
criminosos de colarinho branco, a expansão penal não produziu alterações significativas
no perfil da população carcerária, que segue sendo caracterizada por indivíduos com
baixo grau de instrução e renda, tendo sido encarcerados em sua grande maioria pela
prática de crimes contra o patrimônio (roubo) ou por tráfico de drogas, e que no interior
do sistema penitenciário vão ser integrados de forma permanente às redes de
gerenciamento das ilegalidades.
Em que pese o fato de que há um déficit de eficácia da legislação nas mais
diversas áreas, isso não impede que avance a hipertrofia ou inflação de normas penais,
que invadem campos da vida social anteriormente não regulados por sanções penais.
O remédio penal é utilizado pelas instâncias de poder político como resposta para quase
todos os tipos de conflitos e problemas sociais. A resposta penal se converte em
resposta simbólica oferecida pelo Estado frente às demandas de segurança e
penalização da sociedade, expressas pela mídia, sem relação direta com a verificação
de sua eficácia instrumental como meio de prevenção ao delito. (AZEVEDO E
VASCONCELLOS, 2012, p. 71)
Nesse quadro, a linguagem do Direito, dos direitos e da igualdade, tem pouco
alcance. Sob o pretexto de garantir a segurança e a ordem pública, além de alegar
impossibilidade econômica, o Estado atua com desdém em relação aos direitos
fundamentais, pilares essenciais de uma sociedade que se pretenda democrática. Os
direitos apresentam-se como uma garantia formal, mas que não se realiza no âmbito
material, e também não são levados em consideração no momento da elaboração
legislativa.
4
Segundo dados do INFOPEN - Relatórios Estatísticos Analíticos do Sistema Prisional.
Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN).
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Essa nova política punitiva foi interpretada, por um lado, como uma “nova política
da crueldade”, mas também como uma resposta à inevitável reação de sociedades que
apresentam altas taxas de criminalidade, insegurança pessoal e financeira crescentes,
desigualdade social e nas quais as soluções existentes caíram em descrédito. Com isso,
“políticos de todos os partidos veem-se encorajados a tomar medidas firmes, não
desprovidas de conotações populistas.”. Importante ressaltar que Garland refere-se ao
populismo como uma dimensão de um tipo de repressão criminal mais complexa e
contraditória, a nova penalogia atuarial, que acaba por direcionar políticas criminais e
de segurança pública tomando como base as estatísticas oficiais.
Assim, a posição punitiva adotada pelo governo é utilizada para reafirmar a
aptidão do Estado em governar e garantir a segurança de seus cidadãos. Intervir no
campo do controle dá a impressão de que o Estado está “fazendo algo”, aqui e agora,
de forma eficaz e eficiente. Com a intenção de amenizar as demandas públicas, a
angústia e ansiedade social, são implementadas medidas de caráter emergencial e
simbólico, legitimando a repressão por parte do Estado, que se aproveita da
necessidade urgente de segurança propagada pela mídia e pelos políticos em geral.
Segundo aponta Garland, a “criminologia do outro” que influencia algumas intervenções
nesse sentido: “é uma criminologia que se nutre das imagens, dos arquétipos, das
angústias e da sugestão, antes que das análises prudentes e dos resultados de
pesquisa, é um discurso politizado inconsciente antes que uma forma racional de saber
empírico.” (GARLAND, 2001, p. 74)
Diante do exposto, verifica-se que a crise de insegurança é um fenômeno de
construção social, política e cultural. Com isso, não se quer dizer que o aumento da
criminalidade não tenha dimensões objetivas, mas que a maneira pela qual tal fenômeno
manifestou-se foi, claramente, um produto das lutas políticas e culturais, cujos contextos
em que se desenvolveram foram marcados pela ascensão da “nova direita”, tanto no
âmbito dos meios de comunicação como no ambiente político. Em cada contexto
particular foi-se construindo a ideia de que existia uma demanda popular
extraordinariamente forte que clamava por mais severidade penal, mais punibilidade, e
que, para atender ao crescimento da insegurança popular, era preciso enrijecer as
políticas de segurança contra o crime.
Importante destacar que essas demandas populares são conhecidas e
discutidas no debate público e político através da voz de seus atores, os meios de
comunicação e os políticos. Matthews sustenta que “expressões de retribucionismo
coexistem junto com apoio para a reabilitação, assim como para outras opções de
sentenças. Os cidadãos defendem uma abordagem mais equilibrada para o crime, que
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envolveria uma mistura de punição, reabilitação e proteção pública.” (MATTHEWS,
2013)
Assim, o que a opinião pública parece querer, mais do que uma punição severa,
é um serviço eficiente, que aumente a segurança pessoal e reduza a probabilidade de
que os apenados venham a reincidir. Em geral, percebe-se o desejo de que objetivos
como a redução da criminalidade e a criação de uma comunidade mais segura sejam
atingidos. Todavia, o público não está vinculado a medidas ou estratégias como maior
punição para atingir tais objetivos. É dizer, as pessoas demonstram o desejo por fins,
mas não revelam qualquer articulação sobre quais meios deve-se utilizar para atingilos. Finalmente, esse é o papel da política criminal, pois o governo deve elaborar os
meios para alcançar os fins desejados pela população.
A homogeneização das demandas populares acaba por sedimentar a ideia de
que toda a opinião pública pensa de maneira uniforme em um único sentido: a
necessidade de maior repressão da criminalidade. Nesse sentido, Matthews argumenta
que:
Uma vez construída, realidades sociais são difíceis de desconstruir.
Nos Estados Unidos, a visão dominante de que o público é
exclusivamente punitivo tem o potencial de constranger a busca de
políticas progressistas alternativas em muitas jurisdições. Políticos e
demais elaboradores de políticas públicas interpretam mal, de maneira
desafortunada e persistente, as visões públicas sobre o controle do
crime. (MATTHEWS, 2013, p. 16)
Logo, os atores do debate público e político também colaboram pra construir e
direcionar a opinião popular. Muitos atores políticos, principalmente os da tradição
política de direita, do centro e de centro-esquerda e, inclusive, instâncias jurisdicionais,
colaboraram para que se investisse mais no recrudescimento penal, ou seja, na
produção de uma política de controle do crime que incrementou a utilização da pena de
prisão e de outras medidas que produzem danos similares, como a prisão preventiva.
Porém, outros fenômenos também fazem parte e ajudaram a alimentar a inflação
das pautas penais. Matthews ressalva que no período pós-guerra houve uma mudança
da percepção pública no que diz respeito à tolerância com as diversas formas de
violência interpessoal. Por isso, violências como a doméstica, o racismo, o assédio
sexual, a homofobia e o bullying, temas antes ignorados, tornam-se motivo de
indignação e, assim, foram paulatinamente tornando-se foco da intervenção estatal.
Da mesma forma, alerta que não podemos esquecer que os níveis de
aprisionamento podem ser influenciados por diversos fatores, como
“perfis
democráticos cambiantes, diferença na distribuição do crime e vitimização, taxas de
solução de casos, taxas de condenação, a disponibilidade e uso de sanções não
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custodiais,
assim
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como
antecipado.”(MATHEWS,
pelo
emprego
de
mecanismos
de
livramento
2013, p. 18). Ainda, as medidas alternativas, ainda que
incorporadas ao ordenamento jurídico, podem não surtir os efeitos práticos esperados,
pois muitas vezes não são utilizadas na aplicação judicial, seja por resistência dos juízes
às novas medidas ou por ausência de recursos materiais para tanto, veja-se, no caso
brasileiro, a aplicação de penas alternativas como a prisão domiciliar e o monitoramento
eletrônico.
Faz-se necessário analisar-se a diversidade e a ambiguidade da política
governamental atual. Segundo Matthews: “Há mensagens mistas e imperativos
concorrentes que emanam de fontes oficiais.” (MATHEWS, 2013, p. 14). Por isso, em
determinado momento, pode-se falar mais em medidas alternativas e descarcerização
e, em outro, de medidas mais severas para impedir a impunidade. A criminologia oficial
mostra-se, assim, cada vez mais dualista, polarizada e ambivalente, o que ajuda na
compreensão de alguns traços da situação atual, na qual acabam surgindo políticas
públicas muito distintas em suas diretrizes fundamentais. Portanto, “a característica
distintiva do período atual não é a punitividade exclusiva, mas a ambivalência.”
(GARLAND, 1999, p. 75)
De um lado, a “criminologia do eu” faz do criminoso um consumidor racional,
como qualquer cidadão, e de outro a “criminologia do outro” idealiza o criminoso como
um estrangeiro ameaçador, um excluído ou um rancoroso. A primeira é invocada para
banalizar o crime, torna-lo algo natural e inevitável, moderar os medos e promover a
ação preventiva, ao passo que a segunda tende a demonizar o criminoso e a provocar
preconceitos que acabam por incentivar as hostilidades populares e sustentar o dever
de punição do Estado. Desse modo, o Estado oscila entre respostas adaptativas e de
negação, entre tentativas de enfrentar a situação e expectativas de que o problema das
declarações legais e o plano da realidade social, uma vez que a positivação de direitos
e garantias não se demonstram suficientes para alterar e apagar preconceitos
impregnados nas estruturas mentais habilmente construídas durante anos.
3. Tendências e desafios para a democratização da Justiça Penal
Para além de questões relacionadas com a estrutura desigual da sociedade
brasileira, e o tratamento diferenciado que se constitui no padrão de atuação das
agências de controle punitivo, é preciso reconhecer que o aperfeiçoamento gerencial e
institucional, embora necessário, não é tão simples, porque há diferenças de concepção
que atravessam o campo do controle do crime no Brasil. De um lado está o discurso
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republicano da garantia dos direitos humanos com segurança pública, mas de outro há
uma concepção que se conecta com parcelas importantes da opinião pública no Brasil,
no sentido do endurecimento penal, de mais prisões, de presos em condições precárias,
sem garantias individuais básicas, como forma de dissuasão e contenção da
criminalidade. Discurso que se manifesta muitas vezes pela defesa da pena de morte,
da redução da idade penal, dos direitos humanos só para “humanos direitos”, do livre
acesso às armas para estes últimos, etc.
Para o criminólogo britânico Stanley Cohen, a história do controle social pode
ser contada de várias formas, e uma delas seria descrevê-la como uma escolha entre
exclusão e inclusão, ciclos, reações periódicas e contrarreações, mudanças de ênfase
e abandono de direções (CHOEN, 1985, p. 266). Para Cohen, as características
originais dos primeiros sistemas de controle do século XIX, centralização estatal,
classificação e segregação institucional, vinculavam-se a grandes projetos de exclusão.
De outro lado, o período do pós-guerra, e especialmente a década de 60 do século XX,
foi um momento em que o impulso inclusivo pareceu dominar, com políticas como o
movimento de integração na comunidade contra a segregação na instituição,
descentralização, enfraquecimento ou diversificação dos vários sistemas de exclusão,
classificação e controle. Segundo Cohen, excluir menos, incluir mais, poderia ter sido o
slogan desse movimento.
Para além do âmbito discursivo, objetivamente o período atual é caracterizado,
não apenas no Brasil, por uma expansão das penas de prisão e de serviços
comunitários para certas categorias de desviantes, paralelamente à implementação de
estratégias de controle social que não são genuinamente excludentes, pois não
envolvem segregação ou expulsão, o que leva Roger Matthews a afirmar que as formas
de intervenção tendem cada vez mais a focarem o controle severo da conduta ou a
envolverem, em contraste, um baixo nível de acompanhamento, objetivando dissuadir
os desviantes em potencial através do uso crescente da vigilância, da implantação da
segurança privada ou mesmo da prevenção do crime através do desenho ambiental.
(MATTHEWS, 2003, p. 326)
Trata-se de uma dupla via, de expansão da pena de prisão para os delitos
considerados mais graves e de penas não detentivas para os delitos tidos por leves,
caracterizando uma dinâmica de dispersão das formas de intervenção, gerando um
aumento
das
chamadas
sanções
intermediárias,
com
diversas
formas
de
acompanhamento e supervisão. Manuel Calvo Garcia vincula as tendências recentes
de controle punitivo à crise da racionalidade legal moderna e ao crescente
intervencionismo que caracteriza o chamado Estado Regulativo. Para Calvo Garcia,
1708
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O intervencionismo crescente dos poderes públicos na vida social
determinou que o Direito deixou de ter o ar clássico de um sistema
normativo formal composto por regras cujo objetivo é assegurar
negativamente a liberdade dos membros de uma comunidade e
proporcionar modelos de relação social. Diante dos postulados da
ideologia jurídica liberal, hoje assistimos a um crescente destaque do
que se denominaram funções promocionais do Direito (Bobbio : 1980,
367 ss.; Aubert 1986: 28ss.) Cada vez são mais os preceitos que não
apenas buscam proteger ou garantir mediante normas proibitivas as
regras “espontâneas” do jogo social e, desdobrando uma lógica
normativa nova, procuram fomentar, promover e assegurar certos
valores e interesses sociais mediante o estabelecimento de obrigações
para os poderes públicos e a legalização das relações sociais.(CALVO
GARCÍA, 2007, p. 8)
Citando Nonet e Selznick, Calvo Garcia vai afirmar que esse modelo
caracterizado pela orientação substantiva do Direito para fins regulativos e resultados
práticos – responsive Law – iria se diferenciar dos dois modelos anteriores – o Direito
“repressivo”, característico do início da modernidade, e o Direito “autônomo”, apoiado
no princípio da legalidade e no formalismo jurídico, configurando-se como um novo
paradigma evolutivo. Por outro lado, uma das consequências deste fenômeno é que, no
âmbito dos mecanismos institucionais de controle social de comportamentos (sistemas
jurídicos de controle), além da ampliação dos mecanismos penais ou sancionadores
tradicionais, são acrescidos de mecanismos de intervenção preventiva, buscando atuar
sobre as causas geradoras de riscos sociais. Nas palavras de Calvo Garcia,
As políticas de segurança atuais seguem conservando ou, dizendo de
outra forma, ampliando os pressupostos do sistema de controle
tradicional. Mas também avançam consideravelmente no
desdobramento de novos instrumentos regulativos de controle, positivo
e negativo, vinculados a uma lógica de intervenção preventiva que se
articula sobre definições difusas de situações de “risco” para a ordem
social e a segurança cidadã.
O endurecimento ou a ampliação dos espaços de controle tradicional
costuma apoiar-se em situações de alarme social – reais ou fictícios -,
nos quais obtém sua fonte de legitimação. No caso espanhol,
inicialmente, foi o terrorismo. Posteriormente, a droga e as políticas de
imigração jogaram um papel equivalente na construção de “riscos
sociais” orientados a legitimar o endurecimento das políticas de
segurança e controle social que, pouco a pouco, tendem a se
generalizar e a se separar das causas que justificaram seu excepcional
desdobramento.(CALVO GARCÍA, 2007, p. 11)
Essa nova forma de racionalidade jurídica substantiva implica em mudanças
importantes das dinâmicas jurídicas, com uma clara tendência de encaminhamento dos
conflitos judicializados para o âmbito de um Direito Administrativo, com o deslocamento
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da dinâmica jurídica adjudicatória para a realização de políticas regulativas, introduzindo
no sistema jurídico a flexibilidade característica das formas modernas de organização,
com o enfraquecimento da autoridade e da rigidez formal das normas em favor de um
incremento da discricionariedade e da abertura do Direito para todo tipo de pressões
sociais e políticas e a critérios de oportunidade. No âmbito penal, a dissolução da
autonomia do campo jurídico, a confusão dos âmbitos do Direito Privado e do Direito
Público ou a perda de generalidade das normas jurídicas vêm acompanhadas de
processos que preocupam, pois colocam sobre a mesa o enfraquecimento das garantias
individuais e coletivas, e acentuam as diferentes intensidades de aplicação do direito no
Brasil.
Fato é que todos estas tendências e desafios dizem respeito a necessidade de
uma revolução democrática da justiça no Brasil, que redirecione a estrutura e os
esforços de milhares de operadores do sistema de segurança pública e justiça criminal
para objetivos diversos do foco até agora direcionado para a “manutenção da ordem
pública”. Uma estrutura policial profissionalizada e capaz de estabelecer vínculos com
a comunidade e atuar na resolução de conflitos cotidianos, e de realizar a investigação
e a repressão qualificada da criminalidade violenta, e um sistema de justiça capaz de
colocar-se perante a sociedade enquanto um canal legítimo e adequado para a
mediação dos conflitos sociais, e de produzir decisões judiciais mais próximas de
critérios universais de justiça, incorporando a moderna doutrina penal constitucional ao
cotidiano das salas de audiência, são a exigência colocada para que possamos avançar
no sentido da redução da violência e da garantia da segurança pública no Brasil.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Contrapondo os discursos das câmaras cíveis e criminais
enquanto julgadoras de ato infracional: há diferença?
Betina Warmling Barros (UFRGS)
1. Sumário: 2. Introdução. 3. Metodologia. 4. O procedimento de interdição discursiva no
contexto em análise. 5. O significado dado à “grave ameaça ou violência a pessoa” (art. 122,
inciso I, ECA). 5.1 O discurso dos julgadores – termos recorrentes. 5.2 A gravidade por si só. 6. O
significado dado à “reiteração” (art. 122, inciso II, ECA). 6.1 O discurso dos julgadores – termos
recorrentes. 6.2 Os antecedentes em análise. 7. Conclusão. 8. Referências.
2. Introdução:
A ideia inicial do tema de pesquisa está amplamente vinculada com a prática jurídica
realizada durante os anos de 2012 e 2013 (período utilizado como parâmetro no recorte
jurisprudencial). A partir desta atuação, vislumbrou-se a necessidade de pensar os instrumentos
discursivos do julgador como possíveis causas para o aumento no número de adolescentes
submetidos à medida socioeducativa de internação. Ocorre que a taxa de adolescentes em
cumprimento de medida de internação, por 100 mil habitantes da população entre 12 e 17 anos,
no Brasil, passou de 58,3, no ano de 2010, para 64,1, em 2011 (Fórum Brasileiro de Segurança
Pública [FBSP], 2013). Embora o lastro temporal seja anterior àquele utilizado no presente
trabalho, acredita-se que os anos anteriores aos analisados podem servir de parâmetro para o
período subsequente.
O parâmetro utilizado na análise jurisprudencial totalmente relaciona-se com esta
“acentuada tendência de encarceramento” (Fórum Brasileiro de Segurança Pública [FBSP],
2013,p. 88) uma vez que é por meio da verificação do entendimento dos Tribunais em relação aos
critérios de aplicação de medida de internação que será possível pensar estratégias de combate a
este endurecimento penal. Salienta-se que este movimento é externo ao sistema infracional, pois
“perpassa todo o sistema de justiça e independe da idade dos infratores” (Fórum Brasileiro de
Segurança Pública [FBSP], 2013, p. 88).
A partir da análise de um recorte prévio de jurisprudências disponíveis, questionou-se a
existência ou não de diferença substancial no discurso presente nas câmeras cíveis e criminais no
que tange aos critérios legais de aplicação da Medida Socioeducativa de internação. Assim,
verificou-se se, no estado de Santa Catarina, onde o Tribunal de Justiça estabelece que câmeras
criminais sejam as responsáveis pelo julgamento dos recursos oriundos dos procedimentos de
apuração de ato infracional, são utilizadas estratégias para a restrição da atuação do sistema
punitivo, e, em caso positivo, como essas estratégias estão demonstradas no discurso do
julgador. A aplicação destas garantias será analisada em contrapartida àquelas utilizadas ou não
pelas câmaras cíveis do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Importante ainda que se retome o quanto a Lei 8.069/90 representa uma evolução em
direção a um sistema garantidor de direitos humanos aos adolescentes, conforme nos ensina
Mendez (1998). No contexto latino-americano, a tentativa de superação da doutrina da situação
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irregular, a qual tinha em seu centro de atuação a figura de um juiz de menores, “com
competência onímoda e discricional” (Mendez, 1998, p.26), para uma doutrina da proteção integral
– onde o juiz passa a ter “missão específica de dirimir conflitos de natureza jurídica” (Mendez,
1998, p.33), esteve melhor exemplificada na legislação brasileira:
Pela primeira vez, uma construção de direito positivo vinculada à infânciaadolescência rompe explicitamente com a chamada doutrina da situação irregular,
substituindo-a pela doutrina da proteção integral (...). (Mendez, 1998, p. 113).
No entanto, ainda que os avanços legislativos verificados sejam notáveis e merecedores
de valorização, há inúmeras questões que dizem respeito ao procedimento de apuração de
cometimento de ato infracional que não foram solucionadas pelo Estatuto e que, portanto,
restaram como lacunas a serem preenchidas pelo julgador.
Como exemplo dessa problemática, pode se utilizar o disposto no art. 122 da referida lei, o
qual prevê as hipóteses de aplicação de medida de internação. Segundo refere Costa (2005):
Cabe referir que talvez um dos problemas maiores do Estatuto esteja exatamente
na redação do art. 122. Quando trata dos requisitos para internação, já referidos,
permite, pelo seu caráter subjetivo, vasta interpretação. Assim, “grave ameaça à
pessoa” é uma expressão que não vincula, necessariamente, ao capítulo do
Código Penal de crimes contra a pessoa. Quanto ao outro requisito, “reiteração de
atos infracionais graves”, permite diversas leituras do que seja a gravidade dos
atos infracionais, desde crimes contra o patrimônio, como reiterados furtos, ou até
mesmo ameaça. Sendo assim, sua aplicação torna-se subjetiva.
Tratando-se de lei especialmente lacunosa, a responsabilidade do juiz ascende, uma vez
que a abrangência ou restrição do Estado de controle penal estará sujeita à escolha, pelo
magistrado, da utilização ou não de princípios que objetivem a efetivação das garantias do
adolescente.
Nesse sentido, importante que se utilize a Teoria do Garantismo Penal de Ferrajoli (2002),
a qual se caracteriza, sob o plano jurídico, “como um sistema de vínculos impostos à função
punitiva do Estado” (Ferrajoli, 2002, p. 684). O sistema garantista propõe-se a minimizar a
distância entre parâmetros normativos (de tendência garantista) e a incidência prática destes
parâmetros, a qual se sustenta em um anti-garantismo vigente. No que se refere ao sistema
jurídico juvenil, a teoria garantista embasa e possibilita a realização de questionamentos
direcionados aos aplicadores da lei: a aplicação da medida de internação é medida excepcional,
conforme prevê a legislação (art. 121 do ECA1)? As hipóteses de aplicação estão estritamente
incluídas naquilo previsto pelo Estatuto? Há situações em que a internação foge aos critérios
estabelecidos? Qual a fundamentação que sustenta a ilegalidade?
Por fim, importante ressaltar que as respostas a essas questões estão condicionadas à
comparação realizada entre as câmaras cíveis e criminais dos dois Tribunais em análise. Ou seja,
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Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento.
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como objetivo geral do trabalho, pretende-se saber: os indicativos de respostas aos
questionamentos variam de acordo com cada Tribunal a partir daquilo que se extrai dos discursos
destes julgadores?
3. Metodologia:
A pesquisa jurisprudencial foi o objeto da análise que buscou verificar a extensão ou não
das garantias individuais do cidadão aos adolescentes acusados de cometimento de ato
infracional. Para tanto, foi resgatado o que de sincrônico apareceu nos discursos presentes na
fundamentação judicial. O objeto desta análise de discurso são os julgados dos Tribunais do Rio
Grande do Sul e de Santa Catarina presentes nos sítios de cada tribunal (www.tjrs.jus.br e
www.tjsc.jus.br). O recorte destas jurisprudências foi realizado da seguinte maneira:
a) Para a verificação do entendimento dos Tribunais em relação ao termo “grave ameaça ou
violência à pessoa”: acórdão da classe “apelação”, que contenha cumulativamente os termos “ato
infracional”, “internação”, “grave ameaça ou violência à pessoa”, no período de 01/01/2012 a
31/12/2013. Destes, serão selecionados o primeiro acórdão de cada mês do período fixado, se
assim houver.
b) Para a verificação do entendimento dos Tribunais em relação ao termo “reiteração”:
acórdão da classe “apelação”, que contenha cumulativamente os termos “ato infracional”,
“internação”, “reiteração”, no período de 01/01/2012 a 31/12/2013. Destes, serão selecionados o
primeiro acórdão de cada mês do período fixado, se assim houver.
A escolha dos referidos termos justifica-se por estarem dispostos no artigo 1222 do
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.068/90). Tal dispositivo é responsável por determinar
as hipóteses de aplicação de Medida Socioeducativa de Internação, qual seja a medida mais
gravosa passível de aplicação. Importante salientar que a legislação prevê a aplicação de Medida
Socioeducativa de internação no juízo de mérito da ação socioeducativa apenas nas hipóteses
trabalhadas (ato infracional cometido mediante grave ameaça ou reiteração no cometimento de
infração grave). O art. 122, no entanto, prevê uma terceira possibilidade de internação, a qual se
refere ao descumprimento reiterado de medida anteriormente imposta. Esta hipótese é forma de
regressão, dirigida somente ao juízo de execução, e que, portanto, não será analisada no
presente trabalho, uma vez que o mesmo tem como objetivo analisar apenas os acórdãos
oriundos de recurso contra sentença de mérito no processo de conhecimento.
2 Art. 122. A medida de internação só poderá ser aplicada quando:
I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa;
II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves;
III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.
§ 1o O prazo de internação na hipótese do inciso III deste artigo não poderá ser superior a 3 (três) meses, devendo ser decretada
judicialmente após o devido processo legal.
(Redação dada pela Lei nº 12.594, de 2012)
(Vide)
§ 2º. Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada.
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Considera-se importante a análise do entendimento dos julgadores conferido ao referido
artigo, pois, assim, pretende-se vislumbrar o alcance das hipóteses fáticas (e não apenas legais)
de segregação de liberdade a adolescentes envolvidos em situação de violência. Desta forma, o
termo “grave ameaça ou violência pessoa” está no âmago do inciso I do referido dispositivo,
enquanto “reincidência” é responsável pela possibilidade de aplicação de MSE de internação de
acordo com o inciso II.
Salienta-se que, em alguns meses correspondentes ao período analisado, não foram
identificadas decisões com as expressões selecionadas para análise, o que não significa que a
temática dos critérios utilizados para a aplicação da medida socioeducativa de internação não
estivesse presente. De qualquer forma, houve variações no número de acórdãos de fato lidos e
analisados (ex. para o termo reiteração, no TJRS, não foram produzidos julgados nos meses de
Janeiro e Setembro de 2012, e Janeiro, Junho, Setembro, Outubro e Novembro de 2013).
Por ser este um trabalho que pretende a análise de discursos dos julgados, não tendo,
portanto, qualquer viés quantitativo, considerou-se que a diferença numérica entre os parâmetros
analisados em cada tribunal não foi significativa para os resultados da pesquisa. No que tange ao
conteúdo dos acórdãos analisados, cumpre salientar que os votos vencidos não foram levados em
conta, a fim de que apenas o entendimento da câmara, e não aquele do julgador discordante,
fosse explorado pela pesquisa. Dessa forma, ao término da pesquisa foram analisados 64
julgados no total, sendo 29 do TJRS e 35 do TJSC, conforme se depreende da tabela abaixo:
Tribunal/Termo
Grave ameaça ou violência à
Reiteração
pessoa
Tribunal de Justiça do Rio
12
17
16
19
28
36
Grande do Sul
Tribunal de Justiça de Santa
Catarina
Total
A metodologia escolhida a fim de alcançar os objetivos pretendidos justifica-se na medida
em que somente a partir da verificação empírica dos significados dados a estes termos é que se
poderá perceber se os julgadores pretendem restringir ou expandir o efeito da lei, estando mais
vinculados a uma racionalidade, respectivamente, mais garantista ou punitivista. Ainda, sabendo
que os desembargadores tendem a seguir uma orientação geral oriunda das decisões já
produzidas, a partir da diferença existente entre os entendimentos dos Tribunais analisados em
relação a estes termos ou a demais princípios poderá se chegar a um indício de resposta para a
questão basilar deste trabalho, a qual está presente no próprio título do mesmo: há diferença nos
discursos das câmeras cíveis e criminais enquanto julgadores de ato infracional?
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4. O procedimento de interdição discursiva no contexto em análise:
Antes que se parta para a análise do discurso jurisprudencial, cumpre que se faça breve
análise de algumas questões que permeiam a fala do julgador. Como referencial teórico, optou-se
por adotar aquilo que Michael Foucault nos proporciona em “A Ordem do Discurso” (Foucault,
1996). Para o autor, discurso não é elemento neutro ou transparente, pois traz em si o resultado
de três tipos de interdição (procedimento de controle interno do discurso): a) o tabu do objeto:
sobre o que se pode falar? b) o ritual da circunstância: em qual lugar e de que modo se pode
falar? c) o direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: quem está autorizado a falar?
(Foucault, 1996, p. 09). Assim, “inicialmente os procedimentos de interdição consistem no controle
do que pode ser dito, em que circunstância e a quem é permitido falar” (Ferreira; Traversini, 2013,
p. 212). A interdição relaciona-se com a ideia de que discurso é, acima de tudo, objeto de poder
(Ferreira; Traversini, 2013. p. 212). No contexto da presente pesquisa, surgem algumas
interpretações primeiras daquilo que pode representar, no plano jurídico juvenil, os três tipos de
interdições mencionadas.
O adolescente, ao ter seu direito de fala exercido, tem a oportunidade de expressar a sua
própria versão dos fatos que lhe estão sendo imputados (art. 111, inciso V, do ECA e art. 186,
caput, do ECA), sem que esta versão tenha qualquer obrigação legal de corresponder à verdade
real dos fatos. O adolescente também tem direito de se manter em silêncio: o seu discurso não é
obrigatório aos olhos da lei (em analogia ao previsto no art. 5º, inciso LXIII, da CFRB/88). No
entanto, quando se está diante da prática jurídica, percebe-se que o tabu do objeto Foucaultiano é
extremamente presente no que tange ao procedimento de apuração de ato infracional. Assim, a
fala do adolescente que se enquadre como legitimadora da decisão do magistrado será
cabalmente usada para este fim – e, portanto, o seu objeto não se constituirá como tabu. A partir
do momento que o julgador traz a fala do adolescente para seu voto decisório, está utilizando-a a
fim de fundamentar a sua decisão final.
Ao valorar em sua decisão a fala de adolescente que afirma que "já praticou roubo 3 (três)
vezes, mas sem arma; que não tem medo de matar alguém; que mataria, seria apenas mais uma
vida" (2012.9399-2/TJSC) o juiz está, entre linhas, afirmando que esta peculiaridade do discurso
em análise (fala do adolescente) não é tabu, que sobre esta questão em específico se pode
falar/julgar. Em contrapartida, quando questão que não serve para justificar a decisão do juiz é
exposta (pelo adolescente, por sua mãe ou pela defesa técnica – todos estes representam o
mesmo autor da fala), o objeto passa a ser tabu: “além disso, eventual frequência escolar do
menor não seria motivo suficiente para aplicar uma medida mais amena, bem como o vínculo
empregatício, o que aliás sequer foi comprovado nos autos.” (2012.022317-9/TJSC). A invocação
de uma suposta comprovação que não fora alegada no exemplo anterior (quando o adolescente
relata já ter praticado três roubos - 2012.9399-2/TJSC) é indício de que o objeto presente no
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discurso do adolescente poderá ou não ser tabu, dependendo do objeto presente no discurso do
julgador.
A análise do segundo tipo de interdição que trata do ritual da circunstância não foi possível
ser realizada. O recorte jurisprudencial escolhido não permitiu a exploração quanto ao local e o
modo de fala como procedimentos necessários para o discurso. Entende-se, no entanto, que este
âmbito da pesquisa é perfeitamente possível, uma vez que o próprio ritual processual previsto na
legislação (quando o adolescente será interrogado, por quem, quais questionamentos são
permitidos, etc), bem como o ambiente jurídico (onde acontece este interrogatório, qual a
influência deste ambiente na fala do adolescente, etc) dão indícios de que este segundo tipo de
interdição está absolutamente presente no procedimento jurídico em análise.
Finalmente, deve se observar as questões pertinentes quanto ao direito privilegiado ou
exclusivo do sujeito que fala. Ao perceber que nem todos os sujeitos têm a sua fala valorada na
mesma intensidade, passamos a distinguir os papéis que cada um representa neste mundo
jurídico, de acordo com os estigmas que lhe são impostos. Essa situação se justifica porque “com
o Iluminismo, ocorre um fator interessante de progressivo desaparecimento de estigmas da lei,
mas uma contínua presença nas relações sociais.” (Bacila, 2005, p.128)
Nesse sentido, observa-se que, no material jurisprudencial analisado, o adolescente,
enquanto parte acusada de cometimento de ato infracional “não apresenta versão convincente”
(70052920709/TJRS). Por outro lado, é recorrente a referência ao fato de que “a palavra dos
policiais merece crédito, constituindo-se em prova idônea, pois devidamente compromissados.”
(70052920709/TJRS). Conforme se percebe, em um mesmo acórdão, dois discursos distintos,
produzidos por sujeitos distintos, discursos da mesma forma carentes de comprovação através de
outros elementos, são valorados de maneira oposta. Em verdade, a palavra do policial é,
recorrentemente, valorada com o máximo grau de credibilidade, sendo inafastável a sua “eficácia
probatória” (2011.093492-5/TJSC).
“Com suas regras internas, os discursos organizam e ordenam os sentidos por onde
passam” (Ferreira; Traversini, 2013, p. 210). Dessa forma, será só a partir do exercício de pensar
o procedimento de controle interno do discurso que será possível vislumbrar mais claramente, não
só os sentidos destes discursos, como o alcance do poder que tais discursos são, para além de
apenas representar: “O discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo
que manifesta (ou oculta) o desejo; é também, aquilo que é o objeto do desejo”. (Foucault, 1996,
p. 10)
5. O significado dado à “grave ameaça ou violência à pessoa” (art.122, inciso I, ECA).
5.1 O discurso dos julgadores – termos recorrentes.
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O primeiro parâmetro de pesquisa de jurisprudência refere-se ao conteúdo do inciso I do
art. 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Esta primeira hipótese do dispositivo possibilita
a aplicação de Medida Socieducativa de internação em casos de ato infracional cometido
mediante grave ameaça ou violência à pessoa. Tal redação legislativa é pouco precisa, atribuindo
ao magistrado um maior grau de discricionariedade no momento da escolha da medida a ser
aplicada. De acordo com Saraiva, “do ponto de vista de um rigor garantista, o ideal seria a
determinação expressa dos tipos penais aptos a permitir esse sancionamento” (Saraiva, 2006,
p.174). Assim, um primeiro questionamento refere-se a que tipos penais são considerados na
prática jurídica, como ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa, bem
como qual a intensidade da ameaça para que esta seja considerada grave, conforme dispõe o
artigo. Com este objetivo, procedeu-se a análise de 12 (doze) acórdãos do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul e 16 (dezesseis) acórdãos do Tribunal de Justiça de Santa Catarina,
totalizando uma quantia de 28 decisiuns analisados.
Assim, inicialmente, foi possível verificar a congruência nas decisões dos dois tribunais no
que tange ao entendimento do ato infracional análogo ao crime de tráfico de drogas (art. 33 da Lei
11.343/2006). Para ambos os Tribunais, a prática do ato infracional não se configura como grave
ameaça ou violência à pessoa e, portanto, não enseja, por si só, a internação do adolescente.
Ocorre que tal entendimento está amparado (e em alguns casos, até justificado) pela existência
da Súmula 492 do STJ, a qual estabelece que “O ato infracional análogo ao tráfico de drogas, por
si só, não conduz obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa de internação do
adolescente”.
No TJRS foram identificadas 6 (seis) acórdãos contendo idêntica fundamentação a qual,
apesar de entender o ato infracional análogo ao crime de tráfico de drogas como conduta
“altamente reprovável”, compreende que o ato “não foi cometido com violência ou grave ameaça
contra a pessoa, o que seria de rigor para o acolhimento da segregação pelo art. 122, I, do ECA”.
Ainda, em todas estas decisões (70046889556/TJRS; 70047446307/TJRS; 70049055429/TJRS;
70049457575/TJRS; 70050655869/TJRS; 70051294098/TJRS), “em atenção ao posicionamento
do STF e do STJ”, conclui-se pela ausência dos requisitos do art. 122 do ECA, o que impossibilita
a aplicação de medida de internação. Determinou-se nestes julgados a ausência, não de
possibilidade legal, mas de “margem para aplicar a medida de internação”. A utilização da palavra
“margem” é indício de que os julgadores compreendem que o texto da lei não pode ser
interpretado de modo a considerar o ato de venda de substâncias entorpecentes como ação
violenta ou ensejadora de ameaça. No entanto, questiona-se se os julgadores não estão deixando
mensagem implícita, no sentido de dizer que o seu desejo subjetivo seria a decretação da
internação, mas que tal decisão não é aplicável uma vez que, nos casos em questão, não se
vislumbra margem ou mesmo brecha na lei para tal. Nesse sentido específico, o dispositivo legal
parece cumprir o seu papel de limitação do poder punitivo do Estado, uma vez que age no sentido
de barrar a nítida influência da “racionalidade punitivista” (Carvalho, 2010, p.36) no Judiciário.
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Em relação aos acórdãos do TJSC, em 3 (três) oportunidades discutiu-se a possibilidade
de aplicação de internação para casos de ato infracional análogo ao crime de tráfico de drogas.
Em dois julgados, a internação não foi considerada cabível, embora o caráter hediondo do crime
de tráfico de drogas tenha sido exaltado (2012.062619-3/TJSC; 2011.084312-9/TJSC). Mesmo
sendo considerados fatos graves, portanto, demonstrou-se a inaplicabilidade do art. 122 do ECA
em casos onde o adolescente condenado pela prática de ato infracional não possua antecedentes
infracionais. Em uma oportunidade, no entanto, a aplicação da internação ficou sujeita ao inciso
primeiro do art. 122, uma vez que o próprio julgador referiu que “para incidência deste inciso II, do
art. 122, da Lei 8.069/90, haveria a necessidade de, pelo menos, dois processos com sentença
condenatória transitada em julgado o que inexiste, como supra descrito”. Apesar disso, declarouse que “infelizmente, a medida mais gravosa faz-se necessária, pois ela se mostra a única
eficiente e suficiente para a ressocialização dos adolescentes infratores.” (2012.062619-3/TJSC).
Percebe-se que, havendo apenas duas hipóteses de aplicação de medida de internação em sede
de sentença condenatória, e deixando explícito na decisão que tal medida não fora aplicada em
razão da reiteração por ser esta inexistente, a única hipótese possível é a utilização do inciso I do
dispositivo, o qual refere a necessidade de violência ou grave ameaça a pessoa. Em suma,
portanto, mesmo que tenha trazido elementos como a “necessidade de media mais gravosa”
(baseado talvez naquilo disposto no §2º do artigo), o julgador considerou o tráfico de drogas,
nesta oportunidade, como crime decorrente de violência ou grave ameaça à vida humana. Esta
caracterização, conforme já explorado, é incompreensível quando está se falando em ato de
comercialização de substância. O que se procedeu no caso em concreto, portanto foi “admitir o
inadmissível”, tratando-se de “analogia em malam partem, insuportável em um Estado
Democrático de Direito” (Saraiva, 2006, p. 174).
Ainda em relação ao tráfico de drogas, interessante observar que em todos os acórdãos
analisados
em
que
(70046889556/TJRS;
a
internação
aplicada
70047446307/TJRS;
em
sentença
condenatória
70049055429/TJRS;
foi
revista
70049457575/TJRS;
70050655869/TJRS; 70051294098/TJRS; 2012.062619-3/TJSC; 2011.084312-9/TJSC) a medida
aplicada pelos juízes de 2º grau foi a medida de semiliberdade, prevista no art. 120 do Estatuto, a
qual se caracteriza como medida de transição ao meio-aberto, possibilitando, assim, a realização
de atividades externas independentemente de autorização judicial. Ocorre que a medida de
semiliberdade ainda ser configura como medida restritiva de liberdade, uma vez que o
adolescente passa a residir em instituição estatal, tem tolhida a sua liberdade de ir e vir, e está
sujeito às determinações da equipe socioeducativa responsável pela execução da medida. Assim,
para os doutrinadores desta área a medida de semiliberdade se configura como medida de
internação (Saraiva, 2006, p. 173) sendo a ela aplicados, “naquilo que seja cabível, os dispositivos
previstos para a medida de internação (art. 120 §2º, do ECA).” (Costa, 2005, p.87).
Nesse sentido, estando a medida de semiliberdade no rol das medidas de internação, a
aplicação desta em casos de cometimento de ato infracional análogo ao crime de tráfico de
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entorpecentes mostra-se entendimento jurisprudencial em desacordo com a previsão legislativa.
Em última análise, configura-se restrição de liberdade aos adolescentes aplicada de forma ilegal.
Apesar de estarem os julgadores “convencidos” da ausência de qualquer margem legal para a
aplicação de medida de internação nos casos de tráfico de drogas, o mesmo não acontece no
caso da medida de semiliberdade. A ausência de determinação legal expressa no sentido de
determinar as suas hipóteses de aplicação permite que, por meio de critérios subjetivos, o julgador
amplie o grau de possibilidades de restrição de liberdade do adolescente. Sem lei que o regule, as
decisões judiciárias estão sujeitas às meta-regras que incidem sobre o juiz (Bacila, 2005, p.113).
Assim, conforme traz Mendez, a partir da sua leitura de Ferrajoli, “a ausência de regras nunca é
tal; a ausência de regras é sempre a regra do mais forte” (Mendez, 2000, p.14 apud Costa, 2005,
p. 82).
Por fim, cabe referir que, no período selecionado, fora o tráfico de drogas, não houve
acórdãos com atos infracionais análogos a crimes em que se mostra ausente a grave ameaça ou
violência à pessoa, como o furto, por exemplo. Uma hipótese para a explicação deste fenômeno,
talvez seja a baixa incidência desses crimes no universo dos atos infracionais ensejadores de
medida de internação – a nível nacional, o furto enseja apenas 5,6% da totalidade de internações
(Fórum Brasileiro de Segurança Pública [FBSP], 2013).
5.2 A gravidade do ato por si só.
Questão reiterada no discurso dos julgadores foi a percepção da gravidade do ato como
fundamento para a aplicação de Medida Socioeducativa de internação. No recorte jurisprudencial
analisado de ambos os Tribunais, os casos discutidos, se não se tratavam de ato infracional
análogo ao crime de tráfico de drogas, eram referentes a atos infracionais análogos aos tipos
penais de roubo (art. 157 do Código Penal) (70052458130/TJRS; 70054501846/TJRS;
70054497870/TJRS;
2012.022317-9/TJSC;
70056368517/TJRS;
70056528441/TJRS;
2011.097545-7/TJSC;
2011.069530-8/TJSC;
2011.020188-8/TJSC;
2012.020376-8
/TJSC;
2012.077622-3/TJSC; 2012.091348-1/TJSC; 2013.032137-5/TJRS), homicídio (art. 121 do Código
Penal) (2012.060900-1/TJSC; 2013.004328-2/TJSC) e latrocínio (art. 157, §3º do Código Penal)
(2012.045665-1/TJSC). Em todos estes casos, independentemente de ser o recurso oriundo da
defesa ou do órgão acusatório, a medida aplicada ao término da jurisdição de 2º grau, foi a
medida de internação. Com isso, pode-se concluir por uma tendência bastante presente nos
julgadores de ato infracional (sendo de Câmara Cível ou Criminal) de vinculação da medida
aplicada à gravidade do ato infracional. É perceptível, portanto, que, havendo previsão legal para
tanto, a medida de internação é aplicada.
Ocorre que o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 121, estabelece que a
internação deverá seguir os princípios da brevidade e da excepcionalidade, respeitando-se assim
a peculiar condição de pessoa em desenvolvimento do adolescente. Por consequência deste
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princípio da excepcionalidade, afirma Saraiva (2006) que “o simples fato de haver se configurado
a hipótese objetiva (listada nos incisos do art. 122), não significa necessariamente a submissão do
adolescente à privação de liberdade” (Saraiva, 2006, p. 175).
A pesquisa realizada, no entanto, demonstra que a aplicação prática da legislação ocorre
de forma oposta ao entendimento do doutrinador. Assim, quando a lei possibilita a punição mais
severa do adolescente, esta é invocada sem qualquer questionamento ou interpretação diversa.
Conforme verificado, não se utiliza as características pessoais do adolescente em seu favor.
Percebe-se, por exemplo, que “eventual frequência escolar do menor não seria motivo suficiente
para aplicar uma medida mais amena” (2012.022317-9/TJSC), uma vez que o cometimento de ato
infracional grave por si só é suficiente para aplicação da Medida Socioeducativa mais grave
prevista. Nota-se que a aplicação de medida mais branda pelo juiz, mesmo em casos de ato
infracionais cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa seria perfeitamente possível
legalmente, uma vez que o princípio da excepcionalidade (art. 121, caput, do ECA) possibilita ao
juiz uma interpretação que restrinja a institucionalização do adolescente. Ainda, a própria doutrina
atuante dá amparo ao julgador que opte por medidas em meio aberto em casos que se
enquadrem no que dispõe o art. 122 do Estatuto. Nesta linha, Saraiva (2006) estabelece que “a
tão só gravidade da conduta não autoriza por si mesma a opção pelo sancionamento da
internação” (Saraiva, 2006, p. 175). Na prática, todavia, tanto julgadores com formação cível,
quanto com formação criminal, mesmo havendo a possibilidade legal de filtrar a punição, acabam
aderindo-a.
O corte jurisprudencial analisado é exemplo de um fenômeno que atinge não só os
adolescentes em conflito com a lei como também os adultos selecionados pelo sistema penal.
Conforme Carvalho (2010),
inúmeras hipóteses concretas de estabelecimento de filtro minimizadores da
prisionalização foram criadas pelo Poder Legislativo, sendo obstaculizadas na
esfera do Poder Judiciário, nitidamente influenciado pela racionalidade punitivista”
(Carvalho, 2010, p. 36).
Esta vontade de punir pode ser entendida a partir daquilo que traz Bacila (2005) quando
traduz os estigmas sociais em meta-regras aplicadas pelo juiz (Bacila, 2005, p. 113). O autor
utiliza Winfried Hassemer para fundamentar uma equiparação da “interpretação das leis a outras
formas de compreensão” estando esta interpretação “marcada por limitações, preconceitos,
subjetivismos e rotinas.” (Hassemer, 1998, p.40-41 apud Bacila, 2005, p.114). Acrescenta-se a
este rol de compreensão, a influência de uma sociedade punitivista carente de respostas judiciais,
a qual acaba conferindo ao juiz papel de agente de segurança pública (Prado, 2005, p.105 apud
Carvalho, 2010, p. 233). A partir daquilo que o parâmetro de pesquisa em análise trouxe, uma
primeira conclusão possível é que “uma sociedade estigmatizadora e um direito estigmatizador”
(Bacila, 2005, p. 175) em algumas situações são influências que se sobrepõem à própria
formação do juiz, independentemente se esta foi no âmbito do Direito Civil ou do Direito Penal.
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6. O significado dado à “reiteração” (art. 122, inciso II, ECA).
6.1 O discurso dos julgadores – termos recorrentes.
Conforme já explicitado, o corte empírico realizado gerou a análise de 36 acórdãos
oriundos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (17 documentos) e do Tribunal de Justiça
de Santa Catarina (19 documentos). Este objeto de pesquisa permitiu a verificação de alguns
pontos chaves no discurso dos julgadores, no sentido de verificar o nível de garantias aplicadas a
fim de comparar os tribunais no que tange à aplicação de garantias presentes na legislação
pertinente, qual seja a Constituição Federal, como Lei Maior do país, o Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei 8.069/90), lei específica que versa sobre o tema, e o Código Penal e o Código de
Processo Penal. A pertinência destas últimas justifica-se na natureza sancionatória da Medida
Socioeducativa, a qual, muitas vezes, resta escondida por trás daquilo que se considera “melhor
para o adolescente” (Costa, 2012, p. 198).
Iniciando pelas semelhanças encontradas nos discursos analisados pela pesquisa, podese dizer que o caráter “ressocializante” da medida foi invocado em acórdãos oriundos tanto de
câmara cível, como de câmara criminal. A necessidade de responsabilização do adolescente,
integração social do mesmo e desaprovação da conduta infracional são os objetivos primeiros que
guiam a imposição de Medida Socioeducativa, conforme preceitua o Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo (Lei 12.594/2012), em seu artigo 1º. O que se observou, portanto, é o
predomínio do entendimento de que “Medida socieducativa não deve ser confundida com pena,
com punição.” (70045513934/TJRS), uma vez que se configura como medida de reeducação do
adolescente infrator. Esse aspecto da medida, no entanto, é extremamente discutido pela doutrina
vigente, uma vez que o caráter punitivo da mesma não pode ser esquecido pelo aplicador da lei,
pois, ao fazê-lo desconsidera-se todo um sistema de garantias constitucionais e princípios
aplicáveis de Direito Penal, trazendo prejuízo e desvantagem dos adolescentes perante os adultos
(Costa, 2005).
Fora o exposto, alguns equívocos bastante significativos no entendimento da natureza da
medida foram observados, por exemplo, quando o julgador concedeu finalidade “curativa” à
medida aplicada (2012.028865-6/TJSC). Não há que se falar em cura do adolescente, uma vez
que o crime (ou ato infracional) visto como anomalia individual é característica do Positivismo
Criminológico do fim do século XIX e início do século XX, o qual já foi há muito superado no
âmbito da criminologia. Segundo Elbert (2003), entretanto, mesmo no século XXI, “ainda está
muito arraigado no saber cotidiano, a ideia de que o delinquente é um enfermo que deve ser
tratado, ou eliminado, segundo as circunstâncias” (Elbert, 2003, p. 57).
O “apaziguamento social e a manutenção da ordem pública” (2012.9399-2/TJSC) também
foram invocados como objetivos da medida. Ainda, a medida aplicada ao adolescente “para a sua
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própria proteção” (70049087083) foi referida em uma oportunidade. Percebe-se, assim, a
utilização da opressão institucional justificada pelo “enfadonho e cínico discurso de que a
intervenção é um ‘bem para o adolescente’” (Rosa, 2007, p. 201). De forma geral, no entanto, a
necessária responsabilização e ressocialização do adolescente foram amplamente invocadas
pelos magistrados de ambos os tribunais.
Outra questão observada na análise realizada foi a valorização das “características
pessoais do adolescente” no momento da escolha da medida socioeducativa a ser aplicada. Esse
termo de interpretação ampla e irrestrita, justifica-se pela primeira parte do disposto no §1º do art.
112 do ECA, o qual determina a consideração da capacidade do adolescente para o cumprimento
da medida no momento de sua aplicação. As características pessoais embasam, portanto, a sua
capacidade de cumprir a medida. No tocante aos acórdãos das Câmaras Criminais, essas
características foram majoritariamente referidas de forma genérica, sem que se explicitassem
aspectos subjetivos do indivíduo responsabilizado. Em verdade, os julgadores justificaram a
escolha da medida por critérios diversos, afirmando apenas que esta escolha estava de acordo
com as características pessoais do adolescente, sem, no entanto, demonstrá-las. Apenas em
duas oportunidades foram referidos estas qualidades subjetivas, ao afirmar-se que, em relação ao
jovem, o seu: a) “comportamento atual, é de desídia e desobediência, tanto com as ordens
advindas do Judiciário, quanto com as da própria família.” (2012.072587-9/TJSC); b) “completo
desdém com os meios repressivos até o momento adotados.” (2013.058066-3/TJSC).
Diversamente, no tocante aos acórdãos oriundos das Câmaras Cíveis, as condições
pessoais do adolescente foram amplamente valoradas, mesmo se tratando de características
referentes à pessoa autor do ato infracional. Assim, por exemplo, afirmou-se a necessidade de
imposição de medida socioeducativa de internação em razão de “comportamento amplamente
inclinado para a prática delitiva” (70045923141/TJRS), ou ainda por tratar-se de “jovem bastante
desajustado e que vem reiteradamente se envolvendo em atos infracionais” (70047314828/TJRS).
A ausência de “senso crítico” foi referida em três oportunidades (70046852323/TJRS,
70045513934/TJRS e 70051393148/TJRS), sendo que neste primeiro acórdão, além da ausência
de crítica, a presença de “extrema ousadia, agressividade e propensão para a violência”, bem
como ser o adolescente pessoa que se mostra “bastante desajustada” (70046852323), foram
dimensões personalíssimas utilizadas na fundamentação jurídica. Percebe-se, a partir do exposto,
uma maior propensão das câmaras cíveis em relação às câmaras criminais a referir critérios
subjetivos dos adolescentes no momento de fundamentar suas decisões.
Importante referir que a corrente garantista do direito penal estabelece que
(...)a interioridade de um homem – o seu caráter a sua moralidade, os seus
precedentes penais, as suas inclinações psico-físicas – não devem interessar ao
direito penal.” (Ferrajoli, 1995, p.77 apud Carvalho, 2003, p.139- 140).
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A crítica ao direcionamento da repressão a meros estados particulares foi essencial para a
superação de um Direito Penal do Autor para um Direito Penal do Fato, no que tange à doutrina
penal atual predominante. Nota-se, todavia, que a valoração de características pessoais dos
adolescentes nos acórdãos analisados demonstra que a subjetividade processual ainda é hoje
muito presente. Entende-se, assim, que “a valoração negativa da personalidade é inadmissível
em Sistema Infracional Democrático fundado no princípio da Secularização” (Rosa, 2007, p. 207).
Em verdade, a própria utilização da reiteração como critério para imposição da medida
mais gravosa demonstra que, não só o juiz, mas o próprio legislador é, ainda hoje, extremamente
influenciado por correntes anti-garantistas. Essa afirmação baseia-se na ideia de que os
precedentes infracionais do adolescente, em última análise, estão intimamente relacionados ao
que este adolescente é e não ao que ele fez. Não só no sistema infracional, como no campo penal
dos adultos, a história mostra a utilização da reincidência como meio de aferir sobre a
periculosidade do sujeito. De acordo com Tejadas (2005) “tal procedimento vem sendo
questionado por diferentes correntes, uma vez que estabelece uma carga estigmatizante
importante sobre o indivíduo” (Tejadas, 2005, p. 20). Ainda, segundo Carvalho (2001),
O rótulo da reincidência estabeleceria papéis e estigmas – perverso, inadaptado,
perigoso, hediondo -, gerando expectativas do público que consome o sistema
penal.Tal expectativa atua nitidamente como influência, potencializando o
comportamento futuro do ‘reincidente’. Criar-se-iam novos status nas relações em
sociedade, e o ‘crime’ é também um status (negativo), que tendem a negar a
finalidade oficial da pena – ressocialização (Carvalho, 2001, p. 110 apud Tejadas,
2005, p.20)
O efeito da medida socioeducativa na vida dos adolescentes foi aspecto recorrente nos
acórdãos analisados. Observou-se, no entanto, que, enquanto para as Câmaras Cíveis em 2
(duas) oportunidades, as medidas socioeducativas em meio aberto anteriormente impostas “não
surtiram efeito” (70045513934/TJRS e 70049087083/TJRS), ou ainda “qualquer efeito”
(70046499828/TJRS), para as Câmaras Criminais, as medidas anteriores mão surtiram “os efeitos
desejados” (2011.098199-3/TJSC), “não surtiram efeito na vida do reeducando” (2011.0683444/TJSC), ou ainda justificou-se que medida diversa da internação “não surtirá qualquer efeito
prático na ressocialização do infante” (2013.058066-3/TSC). Embora não seja diferença
substancial, ou mesmo representativa da decisão final do julgador, a desconsideração de qualquer
efeito que medida em meio aberto tenha incidido na vida do adolescente é preocupante, no
sentido de que se minimiza não só o trabalho realizado pelas unidades de cumprimento de
medida, quanto o próprio esforço pessoal do adolescente em cumprir tal medida.
Por outro lado, quando há manifestação de que as medidas anteriormente aplicadas não
surtiram os efeitos desejados, ou, que no caso em questão, uma futura aplicação de medida em
meio aberto, não surtirá efeitos práticos na ressocialização do adolescente, em alguma medida se
considera que, embora a ressocialização tenha se mostrado falha – uma vez que o adolescente
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supostamente voltou a delinquir – , não se nulifica a execução de medida diversa de internação já
aplicada no passado do jovem, ou como possibilidade de ser aplicada no caso em comento.
6.2 Os antecedentes em análise:
Ponto central de diferenciação entre os acórdãos analisados é o entendimento dos
julgadores em relação ao significado de “reiteração”. Conforme Saraiva (2006) “consolida-se o
entendimento que a configuração de uma ação reiterada supõe a prática de pelo menos três
condutas” (Saraiva, 2006, p.175). Foi observado, ao término da análise de discurso realizada, que
dois aspectos diferem sobremaneira nos decisiuns dos desembargadores cíveis e criminais,
sendo estes: a) a determinação de quantos antecedentes infracionais caracterizam a prática
reiterada; b) em relação a estes antecedentes, a explicitação no próprio acórdão de quais foram
os atos cometidos, qual medida foi aplicada e se há trânsito em julgado da sentença condenatória.
Assim, para as Câmaras Cíveis, na maioria absoluta dos acórdãos, os antecedentes foram
invocados de forma absolutamente genérica, sem que se determinassem quantos antecedentes
eram, qual medida foi aplicada, a que ato representavam3. “A sua vasta lista de antecedentes
infracionais” (70045923141/TJRS), uma suposta “extensa ficha infracional, com cometimento de
vários atos infracionais” (70046499828/TJRS), o cometimento de “outros atos infracionais”
(70045513934/TJRS), estar o adolescente “praticando reiteradamente atos infracionais”
(70049494107/TJRS), ou ser
o mesmo “reincidente em
práticas da igual natureza”
(70052875036/TJRS), são exemplos desta generalização adotada na fundamentação dos
acórdãos analisados. A necessidade de sentença condenatória transitada em julgado para que se
considere um processo anterior como antecedente foi referida em apenas uma oportunidade
(70050900059/TJRS). Ainda, a especificação da quantidade de antecedentes, juntamente com a
sua natureza e a medida anteriormente aplicada, só foi relatada em 2 (dois) acórdãos analisados
(70052920709/TJRS e 70052840196/TJRS). Por fim, em uma oportunidade, indicou-se a
existência de “dois registros” (70048508402/TJRS), sem que se saiba, entretanto, se registros são
sentenças condenatórias transitadas em julgado – o que valeria como antecedente – ou apenas
ações de apuração de ato infracional ainda em fase de instrução.
Ressalta-se que, em razão de não haver qualquer informação mais precisa no que tange
aos processos anteriores respondidos pelo adolescente, impossível que se verifique se os
julgadores consideraram a remissão suspensiva como sendo antecedente. Observe-se que,
segundo art. 127 do Estatuto da Criança e do Adolescente, “A remissão não implica
3
Os antecedentes, no caso do Direito Penal, são valorados na forma do art. 59 da legislação. De acordo
com a Súmula 444 do STJ, no entanto, não são considerados antecedentes inquéritos policiais e ações
penais em curso. A jurisprudência, assim, vincula a necessidade de trânsito em julgado de fatos passados
da conduta do cidadão para fins de cálculo de pena. Já a reincidência (art. 63 e art. 64 do CP), define-se
quando o agente cometer novo crime depois de se verificar o trânsito em julgado de condenação por crime
anterior cometido pelo autor. A lei também prevê que não será considerado a reincidência caso haja lapso
temporal de 5(cinco) anos entre a data do cumprimento ou extinção da pena anterior e a prática da infração
posterior.
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necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para
efeito de antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas
previstas em lei, exceto a colocação em regime de semi-liberdade e a internação.” (grifo nosso).
Desta forma, a utilização de processos suspensos em razão do oferecimento de remissão
suspensiva como sendo antecedente infracional é prática absolutamente ilegal, que afronta não só
a legislação especial, como a própria Constituição Federal, que estabelece em seu art. 5º, inciso
LVII o Princípio da Presunção da Inocência. A partir do momento em que a natureza dos
antecedentes não está devidamente esclarecida, o controle da legalidade das decisões fica
extremamente prejudicado.
Por fim, acrescenta-se que, conforme exposto, nos 2 (dois) acórdãos onde o número exato
de antecedentes constantes nos autos do processo foi exibido – embora não haja referência sobre
o trânsito em julgado destes processos -, a reiteração ficou caracterizada a partir do terceiro ato
praticado. Isso significa que, nos acórdãos analisados do TJRS, se o adolescente foi condenado
ao cumprimento de medida em meio aberto por duas vezes, o terceiro ato cometido pode ensejar
a aplicação de medida de internação.
De forma oposta, nas Câmaras Criminais do TJSC, constatou-se um maior cuidado com a
folha de antecedentes infracionais dos adolescentes, na medida em que os processos anteriores
foram melhores explicitados nos acórdãos, determinando-se o seu número de cadastro, o tipo
penal referente ao ato, a medida aplicada e, em 3(três) casos, também a necessidade de trânsito
em julgado da sentença (2011.098199-3/TJSC,2013.066132-7/TJSC e 2013.015909-7/TJSC).Em
algumas oportunidades, o magistrado, ao encontrar dificuldades na verificação do ato infracional
praticado anteriormente, bem como se a medida aplicada foi em sede de sentença ou de
remissão, não impôs a medida de internação, declarando que “não se pode dizer que houve
reiteração no cometimento de outras infrações graves” (2012.047495-8/TJSC), ou ainda que “as
certidões acostadas aos autos (fls. 23 e 50) não permitem concluir se as medidas impostas
anteriormente foram aplicadas a título de medida socioeducativa ou remissão. Também não é
possível aferir por meio daquelas quais os atos infracionais anteriormente praticados pelo
representado e o trânsito em julgado das decisões” (2013.015909-7/TJSC). Por fim, a ausência de
esclarecimento quanto às condutas elencadas no rol de antecedentes do adolescente foi
considerado pelo magistrado como “razão pela qual não se pode classificá-las como graves”.
(2012.086929-8/TJSC).
Salienta-se que em alguns acórdãos, nem todas as particularidades dos antecedentes
ficaram absolutamente claras, restando sem esclarecimento a quantidade de antecedentes
(2011.068344-4/TJSC, 2012.009399-2/TJSC), ou o fato de os processos estarem ainda em fase
instrutória (2012.072587-9/TJSC, 2013.066132-7/TJSC). A referência à existência de remissões
cumuladas com medidas socioeducativas na vida pregressa do adolescente foi observado em um
acórdão das Câmaras Criminais (2013.058066-3/TJSC), embora a imposição de medida de
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internação não tenha se dado em razão destas remissões, mas sim, por ter o adolescente sido
condenado pela prática de ato infracional em 4(quatro) processos anteriores.
Como exceção, pode-se observar a determinação de medida de internação justificada por
termos vagos ligados à reiteração da prática infracional como, por exemplo, quando se valorou um
genérico “envolvimento do recorrente em vários atos infracionais” (2011.024407-7/TJSC), o fato
de o adolescente já estar “ligado à vereda criminosa (fls. 100)” (2012.029760-0/TJSC), ou ter o
adolescente “construído um histórico de reiteração no tocante ao comércio de entorpecentes”
(2013.003337-7/TJSC). Fora isso, duas situações de flagrante ilegalidade foram observadas,
sendo que em uma delas relativizou-se o disposto no art. 127 do ECA, a partir do momento em
que o magistrado declarou que “apesar de existir entendimento que uma vez concedida a
remissão, o ato infracional anteriormente praticado não produz efeitos para caracterizar-se como
se antecedente o fosse (ECA, art. 127), verifica-se que o adolescente é infrator contumaz na
prática de atos infracionais, conforme bem mencionado anteriormente”.(2012.028865-6/TJSC).
Em outra situação, valorou-se como antecedentes ilícitos anteriormente praticados pelo
adolescente mesmo que estes não tenham sido “submetidos à apuração formal”, pois para o
julgador, a ausência de procedimento formal “não os faz desaparecer de sua vida pregressa,
podendo ser considerados na escolha da medida socioeducativa mais apropriada à hipótese.”
(2013.022360-8/TJSC). Nesta oportunidade, o que se procedeu foi a utilização do discurso do
adolescente em seu interrogatório como forma de justificar a sua internação, uma vez que o
mesmo admitiu a prática de demais atos infracionais.
É possível que se faça uma relação com aquilo que Foucault (1996) traz como “o perigo do
discurso”, quando questiona “o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de
seus discursos proliferarem indefinitivamente? Onde afinal está o perigo?” (Foucault, 1996, p.08).
Tendo em vista o contexto em análise, uma possível interpretação de explicar o porquê do medo
da fala, talvez esteja na frequente utilização daquilo que convém no discurso, o que
inevitavelmente leva a desconsideração daquilo que não encontra acolhimento no sistema
receptor.
Destarte, apesar de também as Câmaras Criminais serem responsáveis por julgados que
afrontam, em algum nível, a legalidade do sistema de aplicação de medida socioeducativa, notase que somente o fato de ser extremamente recorrente a evidenciação, pelos julgadores, do que é
tido como antecedente, bem como quais são os critérios para aplicação de “reiteração”, já é
indício de um maior respeito, por estes julgadores, àquilo que preceitua a Constituição Federal
quando estabelece a presunção da inocência a todos os cidadãos brasileiros (art. 5º, inciso LVII).
Por fim, enquanto as Câmaras Cíveis pouco se manifestam em relação ao que entendem
como sendo reiteração, os julgadores das Câmaras Criminais dividem-se entre aqueles que
consideram reiteração a existência de 3(três) sentenças condenatórias transitadas em julgado
(2011.098199-3/TJSC e 2013.015909-7/TJSC), e aquelas que vislumbram a necessidade de
apenas 2(duas) sentenças condenatórias com trânsito em julgado (2012.072587-9/TJSC,
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2013.066132-7/TJSC e 2013.058066-3/TJSC). Essa divergência, na realidade, reflete discussão
também existente no Superior Tribunal de Justiça (STJ), no qual predomina o entendimento de
que a reiteração será configurada a partir da terceira condenação4, sob aqueles que entendem
que a internação por reiteração somente estaria configurada a partir da quarta condenação5.
Somente em uma oportunidade, a adequação da conduta prevista no art. 122, II, do ECA,
foi determinada a partir da existência, ao menos, “de aplicação de outra medida socioeducativa
decorrente da prática de atos infracionais graves que demonstre a necessidade de aplicação de
medida mais severa ao menor infrator” (2013.034112-6/TJSC).
De acordo com o que se percebeu, portanto, a carência de uma definição legal para o
termo “reiteração” permite aos julgadores de ato infracional a aplicação de uma série de diferentes
interpretações quanto ao seu significado. Entende-se que seria extremamente necessário que, na
ausência de dispositivo legal com linguagem clara e objetiva, os tribunais superiores se
encarregassem de determinar qual o significado jurídico que o termo deve possuir, levando em
consideração aquilo que o Código Penal já estabelece quando determina o conceito de
reincidência (art. 63 e art. 64), bem como o entendimento já consolidado pelo Superior Tribunal de
Justiça (Súmula 444 do STJ).
7. Conclusão:
Dois parâmetros importantes emergem da análise de discurso realizada: um conjunto de
diferenças entre as câmaras, indicando entendimentos que divergem, e um conjunto de
semelhanças, indicando um possível fator comum problemático.
A questão principal que produz significativa diferenciação entre os julgamentos de ato
infracional entre as câmaras cíveis e criminais está relacionada com a análise do segundo
parâmetro da pesquisa jurisprudencial realizada: a reiteração. Conforme especificado no corpo do
trabalho, as câmaras criminais, ao analisarem a necessidade de aplicação de medida de
internação a partir da hipótese prevista no inciso II do art. 122, preocupam-se em especificar, em
seus julgados, na grande maioria das vezes, quais atos estão sendo considerados no
entendimento de “reiteração”, a que tipos penais referem-se estes atos anteriores, quais foram as
medidas socioeducativas aplicadas, e ainda, em algumas ocasiões, reafirmam a necessidade de
trânsito em julgado destes incidentes passados.
De certa forma, a exposição destas várias peculiaridades dos processos anteriores do
adolescente que novamente foi selecionado pelo sistema penal juvenil, bem como a observâncias
do princípio constitucional da presunção da inocência, tendem a restringir o arbítrio dos juízes na
aplicação de medida que impõe privação de liberdade ao adolescente. Dentre os discursos
contrapostos, o abrupto abismo entre os tribunais, no que se refere ao entendimento da
reiteração, se mostra como um indicativo inicial de que as câmaras criminais estão mais
4
5
HC 177.317/RS, Sexta Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. em 29.3.2012, v.u.
HC 103277,rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª Turma, j. 19/2/2009.
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inclinadas a um processo de averiguação de ato infracional embasado em preceitos, em algum
nível, mais garantistas.
Por outro lado, a grande questão que aflora dos discursos jurídicos é uma tendência
punitivista enraizada e pouco questionada. Mesmo nas câmaras criminais, havendo possibilidade
legal de aplicar medida de internação, esta foi aplicada. Os princípios norteadores da aplicação da
internação (excepcionalidade, brevidade e respeito à condição de peculiar pessoa em
desenvolvimento6), talvez até por uma ausência de determinismo prático da redação da lei,
embora pudessem, não foram invocados a fim de restringir o controle punitivo do Estado. Estas
semelhanças problemáticas sugerem um alerta a ser considerado, pois, conforme Carvalho
(2010):
(...)o debate político-criminal não pode ficar restrito à criminalização primária,
como se todos os problemas do punitivismo estivessem centralizados na figura do
Legislador. Inclusive porque é notório que são os atores do sistema penal que
possuem as ferramentas para resistir ou aderir às políticas criminais populistas.
(Carvalho, 2010, p. 232).
O punitivismo estatal, por outro lado, não pode ser visto como fenômeno oriundo
apenas das sessões de julgamento do judiciário, ou mesmo das salas de audiência dos Juizados
da Infância e da Juventude. O sistema produtor de adolescentes encarcerados tem início em uma
produção legislativa que desacorda daquilo que a Teoria do Garantismo Penal preceitua, ao
utilizar o princípio da “estrita legalidade” (Ferrajoli, 2002, p.31), segundo o qual:
“a lei não pode qualificar com penalmente relevante qualquer hipótese
indeterminada de desvio, mas somente comportamentos empíricos determinados,
identificados exatamente como tais e, por sua vez, aditados à culpabilidade de um
sujeito” (Ferrajoli, 2002, p. 32).
Normas em branco, tanto no que se refere à conceituação do ato, como na determinação
da medida, concedem ao juiz um maior terreno para o exercício da punitividade. Segundo Rosa
(2007), seriam estes, aqueles termos que ficam
“à deriva de capturas semânticas advindas da linguagem coloquial e deixam a
céu aberto – como no ‘esquizofrênico’ fica o inconsciente – as apreensões de
sentido, sujeitas mais ao Imaginário do que ao Simbólico” (Rosa, 2007, p. 175).
É essencial que se reitere, no entanto, que a legislação adequada – precisa e garantidora
efetiva dos direitos da pessoa em desenvolvimento – só será útil a uma sociedade que se
proponha a formar juízes dispostos a legitimar um novo rumo a esta política infracional. Assim,
será somente a partir do maior ou menor grau de identificação do julgador com a teoria invocada
pelo legislador que esta tenderá a ser aplicada na prática (Carvalho, 2010, p. 25).
6
Art. 121 da Lei 8.069/90 – ECA.
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Por fim, outra questão que se coloca é a supervalorização de certo tipo de discurso como
se “a única fala legítima no processo seja aquela emitida pela autoridade judicial, como se todo o
rito tivesse como único interessado o representante do Estado.” (Carvalho, 2010, p.251). Entendese que, de forma contrária, a medida socioeducativa só terá alguma produção positiva na vida do
adolescente quando este estiver, efetivamente, no centro do processo, como ator principal. Seu
discurso deve ser caráter fundamental para a medida sancionatória que venha a ser aplicada. A
fala do louco (Foucault,1996, p.10) ou, nesse contexto, a do adolescente, muitas vezes tem o
“poder de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber”
(Foucault, 1996, p. 11). Assim, em outro patamar menos voltado às peculiaridades do
procedimento:
“A abertura do procedimento com a ênfase em falas não-tecnocráticas pode
contribuir positivamente para a ruptura, a mudança e, quem sabe, a superação da
mentalidade inquisitória que configura a lógica do sistema penal”. (Carvalho, 2010,
p. 252).
8. Referências:
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Carvalho, S. (2003). Penas e garantias. 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
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privilegiado da aplicação da pena. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
Costa, A. P. M. (2005). As garantias processuais e o direito penal juvenil como limite na aplicação
de medida socioeducativa de internação. Porto Alegre: Livraria do advogado.
Costa, A. P. M (2012). Os Adolescentes e seus Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado.
Elbert, C.A. (2003). Manual básico de criminologia. Porto Alegre: Ricardo Lenz.
Ferreira, M. S; Traversini, C. S (2013). A Análise Foucaltiana de Discurso como Ferramenta
Metodológica de Pesquisa. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 38, n. 1, p. 207- 226.
Ferrajoli, L. (2002). Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais.
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (2013). Anuário Brasileiro de Segurança Pública (7ª ed.),
2013.
Foucault, M. (1996). A Ordem do Discurso. 6ª ed. São Paulo: Edições Loyola.
García Méndez, E. (1998). Infância e Cidadania na América Latina. São Paulo: Ed. HUCITEC.
Rosa, A. M. D. (2007). Introdução crítica ao ato infracional: Princípios e Garantias Constitucionais.
Rio de Janeiro: Lumen Juris.
Saraiva, J. B. C. (2006). Compêndio de Direito Penal Juvenil – adolescente e ato infracional. 3ª
ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado.
Tejadas, S. S. (2005). Juventude e ato infracional: as múltiplas determinações da reincidência. .
(Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2005).
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A PUNIÇÃO QUE NÃO ESTÁ PREVISTA EM LEI: TRATAMENTO DADO AOS USUÁRIOS
DE DROGAS PELA AÇÃO POLICIAL NO COMBATE AO CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO
DE DROGAS NO BRASIL.
Edinamar A.da Silva Costa1
Sumário: Introdução. 1. A punição ao dependente segundo a lei
11.343/200 3. Distinção entre as formas de polícias existentes no Brasil:
polícia militar, polícia civil e a polícia Federal. 3. O tráfico ilícito de
drogas. 4. Tratamento dado ao usuário de drogas. 5. A ação policial
brasileira. 6. Jurisprudência. 7. Conclusão.
INTRODUÇÃO
O estudo trata sobre o usuário de drogas dependente e a forma de tratamento
recebido pela força policial em suas abordagens quando cometem algum delito ou estão
apenas consumindo drogas em locais conhecidos como “boca de fumo”. A dependência
química causada pelo uso de drogas ilícitas, especialmente o crack, que por tratar-se de um
subproduto da pasta de cocaína, de baixo custo no mercado, é a droga mais utilizada,
principalmente por pessoas de classe social inferior, tem fomentado principalmente os
crimes de furto e roubo, com o propósito de manter o vício. O uso de drogas está regulado
pela lei 11.343 de 2006 que estabelece sanções diversas da prisão, culminam formas de
repressão sem, contudo levar o dependente ao cárcere, sendo considerado crime de menor
potencial ofensivo. Para isto no primeiro capítulo faremos uma distinção entre as formas de
polícias existentes no Brasil, explicando a função da polícia militar, polícia civil e a polícia
Federal e o âmbito de participação de cada uma no trabalho contra a repressão as drogas
ilícitas. O papel da polícia repressora no combate ao tráfico ilícito de drogas, em alguns
casos, envolve a necessária captura do usuário dependente para alcançar os traficantes,
que são os verdadeiros criminosos. Em muitos casos, o dependente poderá ser submetido
ao cárcere, pela atuação policial, diante da ausência dos verdadeiros criminosos. Em outras
1
Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Mestre em Criminologia e
Sociologia Jurídico-Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona, Mestre em
Educação pelo Centro Universitário do Triângulo.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
hipóteses a perseguição do dependente, que será a fonte de onde poderão ser encontrados
os traficantes, se faz de forma repressiva e frequentemente violenta, fato que ocorre em
países menos desenvolvidos e com grandes desigualdades sociais. Pode-se ainda
acrescentar o modus operandi constante das operações de combate ao narcotráfico, em
que são desencadeadas ações para flagrar o comércio ilícito de drogas nas chamadas
“bocas de fumo”, locais onde são vendidas e também utilizadas as drogas. No terceiro
capítulo serão abordadas as principais ações contra o tráfico ilícito de drogas e o que ocorre
no momento da atuação policial, em que os traficantes, por conhecimento prévio ou pela
agilidade, rapidamente empreendem fuga, e isso ocorre porque em geral estes locais são
estratégicos, restando apreendido muitas vezes os usuários de drogas, que posteriormente
são acusados e julgados pelo delito de tráfico de drogas. No capítulo quatro verificaremos o
tratamento dado ao usuário de drogas, principalmente aos que cometem pequenos delitos,
que se tornam reincidentes criminais e constantemente são conduzidos pela polícia ao
cárcere, como se fossem verdadeiros traficantes que não merecem ser cuidado e não
possuem condição de recuperar sua dignidade. No quinto capítulo será possível
acompanhar como se desenvolve a ação das diversas polícias existentes no Brasil que
possuem competências em relação ao tráfico de drogas, a federal para o internacional e
interestadual, a militar para prevenir a prática de futuras infrações penais, o que não a
impede de exercer também uma função investigativa, que caberia, inicialmente, a polícia
civil, e por sua vez, também não se descarta a possibilidade da polícia civil exercer atividade
investigativa inicialmente dissociada do Poder Judiciário e Ministério Público. Pelo sexto
capítulo confirma-se pela jurisprudência com o estudo apresentado que na prática diária
existe um descompasso entre a atuação policial e algumas decisões dos Tribunais, as quais
consideram essencial para caracterização do delito de tráfico de drogas a lesividade à
saúde pública, e muitas vezes a quantidade de drogas apreendidas não é suficiente a
caracterizar o tráfico, mas apenas o consumo, mas a final conclusão de que se trata de
usuários de drogas, principalmente os pequenos infratores, não impedem de até o momento
final de o julgamento receber por parte das polícias tratamento de verdadeiros criminosos.
1. A PUNIÇÃO AO DEPENDENTE SEGUNDO A LEI 11.343/2006
O uso sistemático de drogas ilícitas pode gerar a dependência química, fazendo
com que o usuário tenha uma necessidade constante de utilizar a droga, principalmente
quando se refere à substância ilícita vulgarmente conhecida como “crack”, droga resultante
da mistura de cocaína em forma de pasta não refinada com bicarbonato de sódio. O nome
"crack" vem do barulho que ele faz quando está sendo queimado para ser consumido. Esta
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droga se apresenta na forma de pequenas pedras e pode ser até cinco vezes mais potentes
do que a cocaína. Por tratar-se de um subproduto da pasta de cocaína, de baixo custo no
mercado, é a droga mais utilizada, principalmente por pessoas de classe social inferior, fato
esse que tem fomentado principalmente os crimes de furto e roubo, com o propósito de
manter o vício.
O Brasil tratou especificamente da matéria relativa ao uso de drogas na lei 6.368 de
1976 em seu artigo 16:
"Adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância
entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 20
(vinte) a 50 (cinquenta)dias-multa."
Posteriormente a referida lei foi revogada pela Lei 11.343 de 2006, que estabelece
em seu artigo 28:
“Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo,
para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
o
§ 1 Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal,
semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena
quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física
ou psíquica.
o
§ 2 Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz
atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às
condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e
pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
o
§ 3 As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão
aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
o
§ 4 Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do
caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
o
§ 5 A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas
comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais,
estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que
se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da
recuperação de usuários e dependentes de drogas.
o
§ 6 Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere
o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente,
poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I - admoestação verbal;
II - multa.
o
§ 7 O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do
infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente
ambulatorial, para tratamento especializado.
Percebe-se que a lei nova deixou de punir o usuário de drogas com pena privativa
de liberdade, passando a prever sanções de cunho alternativo, como advertência oral e
prestação de serviço à comunidade.
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ISSN: 2317-0255
O artigo 28 da lei 11.343 de 2006 estabelece sanções diversas da prisão, e ainda
prevê o procedimento de competência dos Juizados Especiais Criminais para os crimes
relativos ao uso de drogas. Tal procedimento, previsto na lei 9.099 de 1995, é assegurado
para os casos de crimes de menor potencial ofensivo, os quais podem dispensar a instrução
processual, por ser facultado ao réu de imediato a transação penal, hipótese em que o
próprio autor do fato, no caso o dependente químico, se compromete a cumprir as medidas
propostas pelo Ministério Público, sendo tal deliberação homologada pelo juízo, sem força
executiva.
Diante da polêmica criada pelos estudiosos jurídicos, de que a nova lei não impôs
pena de restrição de liberdade para o uso de drogas, manifestou-se o Supremo Tribunal
Federal, órgão máximo do Poder Judiciário Brasileiro, ao entendimento de que a conduta
não deixou de ser crime, não obstante o fato de não mais ser punido com pena restritiva de
liberdade, e que as sanções previstas deverão ser aplicadas pela Autoridade Judiciária, cuja
conduta enquadra-se na previsão legal do artigo 28 da nova lei de tóxicos.
Diante desta realidade o papel da polícia repressora adquire grande relevância, já
que para combater o tráfico ilícito de drogas, em alguns casos, se faz necessário capturar o
usuário dependente para alcançar os traficantes, que são os verdadeiros criminosos. Nesta
perspectiva, em muitos casos, o drogo dependente poderá ser submetido ao cárcere, pela
atuação policial, diante da ausência dos verdadeiros criminosos.
Sendo necessário em alguns casos perseguir o dependente que será a fonte de
onde poderão ser encontrados os verdadeiros traficantes. Nesta perspectiva, em muitos
casos, o dependente poderá ser submetido ao cárcere pela atuação policial diante da
ausência dos verdadeiros criminosos. Como demonstra a jurisprudência dos Tribunais
brasileiros:
"TRÁFICO- MATERIALIDADE - DÚVIDAS SOBRE O DESTINO
COMERCIAL DA DROGA APREENDIDA - DESCLASSIFICAÇÃO PARA
USO - RECURSO PROVIDO. - Se de um lado as circunstâncias apontam
indícios, mas não asseguram o destino comercial da droga apreendida, do
outro, a confissão do réu de ser um usuário da substância, corroborado
pelas condições em que a droga foi apreendida, torna plausível a versão de
que o destino da droga era para o uso próprio. Nesse caso, desclassifica-se
o delito de tráfico para o previsto no artigo 28, da Lei 11.343/06, diante da
certeza de que a dúvida sempre deve ser resolvida em favor do réu. Defere-se a isenção de custas nos termos do artigo 10, inciso II, da Lei
14.939/03." (TJMG - 4ª CACRI - Rel. Des. Herbert Carneiro Apelação Criminal nº 1.0481.09.093984-6/001 - Publicação 1.9.2010)
A decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Estado de Minas Gerais demonstra
que o dependente foi submetido a procedimento judicial como traficante de substâncias
ilícitas, inclusive condenado pelo juízo a quo, para restar absolvido em grau de recurso,
confirmando-se tratar de um drogadito. Afirma a sociologia Ana Lúcia Sabadell (2008.p.231-
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
238) que em países menos desenvolvidos e com grandes desigualdades sociais, o policial
atua de forma repressiva e frequentemente violenta, tendo como principais problemas:
a)
A violência letal, isto é, o elevado número de homicídios e de lesões corporais
em confrontos entre policiais e civis, sendo que muitas vezes os civis são executados com
tiros nas costas e fora de situações de confronto;
b)
Os métodos violentos empregados nos interrogatórios policiais (tortura, maus
c)
A corrupção de integrantes da polícia.
tratos);
Neste contexto, podemos acrescentar o modus operandi constante das operações
de combate ao narcotráfico, em que são desencadeadas ações para flagrar o comércio
ilícito de drogas nas chamadas “bocas de fumo”, locais onde são vendidas e também
utilizadas as drogas. No momento da atuação policial os traficantes, por conhecimento
prévio ou pela agilidade, rapidamente empreendem fuga, e isso ocorre porque em geral
estes locais são estratégicos, restando apreendido muitas vezes os usuários de drogas, que
posteriormente são acusados e julgados pelo delito de tráfico de drogas. Concluindo
Sabadell que torna-se claro que os problemas decorrentes da desigualdade social são
tratados de forma violenta e inadequada. Isto é indicado por pesquisas representativas e
participantes e também por depoimentos sobre a atuação das polícias brasileiras.
Afirma ainda a socióloga Sabadell que as pesquisas empíricas apontam que a
polícia possui, na prática, uma grande margem de discricionariedade na aplicação do direito,
fazendo com que possuam um poder particularmente grande. E que em algumas situações,
este poder pode ser exercido de forma discriminante e violenta ou, ao contrário, pode servir
para adaptar as previsões legais concretas (por exemplo, deixando de registrar uma queixa
e solucionando o conflito entre vizinhos de forma amigável), mesmo se isto implicar no
descumprimento de formalidades legalmente exigidas. Como confirma a jurisprudência:
TJRS - Apelação Crime ACR 70044851343 RS (TJRS) -Publicação:
16/03/2012 - Ementa: APELAÇÃO. ART. 33, CAPUT, DA LEI Nº. 11.343
/06. TRÁFICO DE DROGAS. APREENSÃO DE COCAÍNA E CRACK.
USUÁRIO. DESCLASSIFICAÇÃO DO FATO. ART. 28 DA LEI DE
ENTORPECENTES. REMESSA DOS AUTOS AO JUIZADO ESPECIAL
CRIMINAL COMPETENTE. Considerando a quantidade de droga
apreendida, o local, circunstâncias do flagrante realizado e as condições
pessoais do acusado, não sendo suficiente a prova da prática de tráfico de
entorpecentes, é autorizada a desclassificação do fato para o artigo 28 da
Lei 11.343/06.
Conforme o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul para
caracterizar o tráfico necessário se faz observar a quantidade de droga apreendida, o local,
as circunstâncias e as condições pessoais do acusado. Estas condições são facilmente
detectadas no momento da apreensão, entretanto a polícia não se preocupa com elas e
1735
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
normalmente conduz apreendido aqueles que estavam no local conhecido como “boca de
fumo”2.
2. DISTINÇÃO ENTRE AS FORMAS DE POLÍCIAS EXISTENTES NO BRASIL: POLÍCIA
MILITAR, POLÍCIA CIVIL E A POLÍCIA FEDERAL.
A Constituição Federal do Brasil em seu artigo 144 delimita as atribuições de cada uma
das polícias, estabelecendo que a segurança pública, que é um dever do Estado, direito e
responsabilidade de todos, será exercida para a preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio através dos órgãos: polícia federal, polícia rodoviária
federal, polícia ferroviária federal, policias civis e polícias militares e corpos de bombeiros, e a
seguir em seus parágrafos primeiro, quatro e quinto, especifica que a polícia federal, organizada
e mantida pela União, destina a apurar infrações penais contra ordem política e social ou em
detrimento de bens, serviços e interesses da União.
Tanto a polícia federal e a civil possuem também como função: prevenir e reprimir o
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas, sendo que a polícia federal atuará quando se tratar de
tráfico internacional e interestadual. No caso de tráfico estadual, à polícia civil, que será dirigida
por delegados de polícia de carreira, incumbe as funções de polícia judiciária e a apuração de
infrações penais, cabendo a polícia militar trabalhar ostensivamente na preservação da ordem
pública.
Percebe-se que o combate ao tráfico de drogas poderá ser competência da polícia
federal, da polícia civil ou da polícia militar. Entretanto, à polícia federal cabe a repressão ao
tráfico de drogas internacional e interestadual, pois esta atua quando há interesse da União,
restando às polícias civis e militares a atuação interna no combate ao narcotráfico. Em princípio
as ações mais ostensivas são da policia militar, pois esta exerce a função preventiva, ou seja,
normalmente é a que recebe a notícia do fato criminoso, em geral anônima, e também tem a
competência de fiscalizar e abordar as pessoas quando necessário.
Afirma Rogério Greco (2010 – p.5) que apesar de caber à polícia militar prevenir a
prática de futuras infrações penais, isto não a impede de exercer também uma função
investigativa, que caberia, inicialmente, a polícia civil, e por sua vez, também não se
descarta a possibilidade da polícia civil exercer atividade investigativa, atuando na
prevenção de delitos, o que já ocorre com frequência nas operações de interceptações de
veículos, as chamadas “blitzs”, com o fim de reprimir o porte ilegal de armas e drogas.
2
“boca de fumo” - refere-se ao local onde é feita a venda de substâncias ilícitas tais
como maconha, cocaína e crack. Os produtos são normalmente vendidos por menores que têm como
clientes usuários de drogas pertencentes a todas as classes sociais. Origem: Wikipédia, a
enciclopédia livre.
1736
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ISSN: 2317-0255
Restringindo o objeto deste à atuação das polícias civis e militares nas ações preventivas e
repressivas de combate ao tráfico de drogas.
A discussão envolvendo a segurança pública e a justiça criminal é vista como
predominantemente afeito ao universo jurídico e policial, cujas soluções devem ser
pensadas preferencialmente pelos operadores jurídicos, que teriam a experiência do
cotidiano para legitimar os seus atos. Retrata o Ministério da Justiça a distinção entre o
trabalho policial e judicial, que se encontra dissociado na sua prática, e normalmente o
poder judiciário somente tomará conhecimento das ações policiais após a realização da
apreensão e com dados e documentos insuficientes para comprovar abnitio trata-se de
traficante de drogas ou mero usuário, depende químico.
A construção pretoriana já assentou que não se pode considerar inválido o
testemunho da autoridade policial, mormente porque vige o sistema da livre apreciação das
provas, permitindo ao magistrado sopesar tal depoimento em cotejo com outras provas dos
autos. Os militares não devem ser considerados inidôneos ou suspeitos em virtude,
simplesmente, de sua condição funcional, uma vez que agem no cumprimento do dever,
dentro dos limites da legalidade, não sendo razoável suspeitar, previamente e sem motivo
relevante, da veracidade nos seus depoimentos, sobretudo quando condizentes com o
restante das provas coligidas nos autos.
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - TRÁFICO DE DROGAS - PRELIMINAR
REJEITADA - APLICAÇÃO DO ART. 400 CPP - INVERSÃO NO
INTERROGATÓRIO - CABIMENTO - MÉRITO - AUTORIA E
MATERIALIDADE COMPROVADAS - ABSOLVIÇÃO - IMPOSSIBILIDADE ROBUSTEZ DO CONJUNTO PROBATÓRIO - DEPOIMENTOS
DOS POLICIAIS - CREDIBILIDADE - DECOTE DA MAJORANTE DO ART.
40, VI, DA LEI 11.343/06 - IMPOSSIBILIDADE - REDUÇÃO DA PENA INVIABILIDADE
REINCIDÊNCIA
DELITIVA
COMPROVADA.
- Inexistindo qualquer prejuízo ao réu diante da inversão da ordem de
inquirição na Audiência de Instrução e Julgamento, até porque não foi
levantado qualquer fato novo pelas testemunhas, não há que se falar em
nulidade processual. - Estando o acervo probatório harmônico no sentido de
apontar o réu como autor do crime de tráfico de drogas, a condenação é
medida que deve ser mantida. - Para a caracterização do delito do art. 33
da Lei nº. 11.343/06, crime de ação múltipla, basta a simples constatação
de que a droga apreendida pertencia ao agente, não exigindo a respectiva
consumação de qualquer resultado, como a venda ou a efetiva entrega do
entorpecente. - A absolvição por insuficiência de provas é completamente
inviável, uma vez que a materialidade e a autoria do delito de tráfico
de drogas restaram devidamente comprovadas. - Os depoimentos
prestados pelos policias que participaram do flagrante merecem todo o
crédito, se são coerentes, firmes, seguros e se contra eles não há qualquer
indício de má-fé. - Restando evidenciada a participação de menor na prática
delituosa juntamente com agente maior de 18 anos, impossível se afastar a
majorante do art. 40, inciso VI, da Lei nº 11.343/06, eis que, por se tratar de
crime formal, dispensa prova efetiva da corrupção do menor para sua
aplicação. - Conforme entendimento já consolidado, o benefício do indulto
não impede o devido reconhecimento da reincidência delitiva e os maus
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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antecedentes do réu. (TJMG - Ap. Criminal 1.0024.12.2572902/001
2572902-28.2012.8.13.0024 (1) – pub. 25/03/2014)
Também o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina retrata os fatos que
ocorrem envolvendo os usuários de drogas que poderão ser mantidos em cárcere para que
possam ser processados e julgados pelo crime de tráfico de drogas, e somente após o
decurso do período estabelecido pela lei para a instrução criminal será comprovado ser
usuário dependente de drogas ilícitas.
TJSC - Apelação Criminal ACR 460712 SC 2011.046071-2 (TJSC) Data de
Publicação: 8 de Dezembro de 2011 - Ementa: APELAÇÃO CRIMINAL
TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES (LEI 11.343 /06, ART. 33 ,
CAPUT, § 4º, C/C ART. 40 , III ) AUTORIA NÃO COMPROVADA
AUSÊNCIA DE PROVA REFERENTE À TRAFICÂNCIA PRISÃO EM
FLAGRANTE CONFESSO USUÁRIO DE CRACK DESCLASSIFICAÇÃO
PARA PORTE DESTINADO A CONSUMO PRÓPRIO (LEI N. 11.343 /2006,
ART. 28 ) SENTENÇA REFORMADA RECURSO PROVIDO.
Por se tratar o crime de tráfico de drogas crime de ação múltipla que exige a
participação de diversas pessoas, e a dificuldade de flagrar o agente no ato de praticar, às
claras, a traficância, mesmo porque o delito, por sua própria natureza é cometido na
clandestinidade, e tendo em vista a ausência de vítimas diretas e o temor provocado pelos
traficantes em eventuais testemunhas, o depoimento de policiais se encontra pacificado
pelos tribunais, neste sentido, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:
"HABEAS
CORPUS.
TRÁFICO
DE
DROGAS.
ABSOLVIÇÃO.
FRAGILIDADE DO CONJUNTO PROBATÓRIO. TESTEMUNHO DE
POLICIAIS. VALIDADE DA PROVA, MORMENTE QUANDO CONFIRMADA
SOB O CRIVO DO CONTRADITÓRIO. (...) 2. De se ver, ainda, os
depoimentos dos policiais que efetuaram a prisão em flagrante constituem
prova idônea, como a de qualquer outra testemunha que não esteja
impedida ou suspeita, notadamente quando prestados em juízo sob o crivo
do contraditório, aliado ao fato de estarem em consonância com o conjunto
probatório dos autos. (...)" (HC 98.766/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES,
SEXTA TURMA, julgado em 05/11/2009, DJe 23/11/2009).
3. O TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS
O crime de tráfico de entorpecentes que à época da promulgação Constituição
Brasileira, em 05 de outubro de 1988, era legalmente definido nos artigos 12, 13 e 14 da Lei
n. 6.368, de 21 de outubro de 1976, e posteriormente foi revogada pela lei 11.343 de 23 de
agosto de 2006, que institui o Sistema de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad;
prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários
1738
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e
ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.
O tipo penal do art.33 da Lei 11.343/06, apresenta dezoito verbos: importar,
exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer,
fornecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar e
entregar, que são modalidades de tipo misto alternativo, e a prática de mais de uma
conduta, não implica concurso de crimes, mas um único delito, e ainda, os artigos 35 e 37,
também constituem formas de pratica do crime de tráfico, e muitas vezes se torna difícil
distinguir o usuário do traficante porque estes perpetram o ilícito mais gravoso com a
finalidade de sustentar o próprio vício, ou seja, resta confirmado se tratar de usuário de
drogas, que entretanto, na impossibilidade financeira de adquirir a substância, se utiliza da
intermediação entre o tráfico e os usuários para conseguir obter a sua substância.
A Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XLIII, equipara os crimes de tráfico
aos crimes hediondos, os quais recebem tratamento mais rigoroso da legislação brasileira
em razão do grande gravidade e reprovação social destes. A Lei n. 8.072 de 25 de julho de
1990, que trata dos crimes hediondos, considera inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou
anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os
definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os
que, podendo evitá-los, se omitirem.
A necessidade crescente de combate ao crime de tráfico ilícito de substâncias
entorpecentes impôs a polícia, em todos os seus âmbitos, qual seja Federal, Civil ou militar,
a organização, individual ou em conjunto, de operações intensivas e constantes para a
realização de investigações e posterior apreensão de drogas e de traficantes. Uma das
maiores dificuldades centra-se neste aspecto, pois na grande maioria das vezes as
apreensões são de pequena monta e os conduzidos são pessoas dependentes de
substâncias entorpecentes, principalmente “crack”.
Após a ocorrência dos fatos, ou seja, quando o usuário-dependente já se encontra
encarcerado, caberá ao Poder Judiciário verificar através da instrução criminal se houve a
lesividade necessária a caracterizar um dano à saúde pública, passível de punição ao seu
infrator. E neste ponto se torna essencial para proteger este bem jurídico, a saúde pública, a
intervenção do Direito Penal que deverá averiguar se há necessidade da tutela criminal, já
que este ramo do direito deve interferir na vida social apenas quando ocorrer efetiva lesão
ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido.
O princípio da lesividade ou ofensividade (nullum crimem sine iuria) encontra
respaldo constitucional no artigo 5º, inciso XXXIX, da Carta Magna, que explicita o princípio
da legalidade (não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação
1739
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
legal). Conforme leciona Luiz Flávio Gomes (Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 8,
RT, out-dez 1994, p. 78.):
"a definição de crime deve ser dada pela lei. E nossa lei (Código Penal, art.
13) estabeleceu que não há crime sem resultado, que é lesão ou perigo de
lesão ao bem jurídico. Entendido esse resultado em sentido material
(consoante doutrina do bem jurídico), é sempre necessária da injúria (da
lesão ou potencialidade lesiva). A presunção legal dessa lesão ou do perigo
de lesão, nesse diapasão, viola o princípio da legalidade, e, em
consequência, a Constituição, que elevou tal princípio à categoria de norma
constitucional. A injúria (lesão ou perigo de lesão), em síntese, sempre tem
que ser demonstrada, nunca pode ser presumida. Sem sua concreta e
efetiva demonstração não há crime ou contravenção, não há injusto penal.
Pode a conduta inócua (do ponto de vista do bem jurídico tutelado pela
norma penal) configurar infração administrativa, jamais o injusto penal. Pode
a direção sem a habilitação absolutamente normal, inócua (no sentido de
que não foi, de modo algum, capaz ou idônea para colocar em perigo
qualquer bem jurídico), configurar infração administrativa, jamais injusto
penal. No âmbito do Direito Administrativo (chamado pré-tutelar), concebese a tutela antecipada do bem jurídico, sem se questionar o nullum crimem
sine iuria (até porque as sanções previstas não chegam a atingir os
principais direitos fundamentais da pessoa). Já no âmbito penal é
absolutamente inconstitucional qualquer tentativa de aplicação de um direito
puramente preventivo (punição, pelo modo de vida, por razões moralistas
ou ideológicas, pelo modo de pensar etc.). Tudo isso provoca,
induvidosamente, um dilema (ao legislador principalmente), qual seja: se se
deseja um direito puramente preventivo, não serve o Direito Penal, que
funda suas raízes no neoliberalismo (político) de Beccaria e tantos outros;
se se opta pelo Direito Penal, não bastam normas meramente preventivas,
que prescindem da efetiva lesão a um bem jurídico. O Direito Administrativo
contenta-se com a possibilidade dessa lesão; já o Direito Penal só se
justifica com, ao menos, a probabilidade dessa mesma ofensa, a ser
demonstrada em cada caso concreto"
Neste aspecto denota-se que a exigência da lesividade ao bem jurídico penalmente
tutelado, consubstanciada na efetiva lesão ou no perigo concreto ou idôneo de dano ao
interesse jurídico, é própria de um Direito Penal decorrente do Estado Democrático de
Direito, visando restringir ao máximo o poder punitivo estatal, reconduzindo o Direito Penal à
sua verdadeira função, a de exclusiva proteção dos bens jurídicos mais importantes da vida
em coletividade. Conforme se expressa Luigi Ferrajoli, em sua obra: Derecho y Razón p-10:
"sólo um derecho penal reconducido únicamente a las funciones de tutela de bienes y
derechos fundamentales puede, en efecto, conjugar garantismo, eficiencia y certeza
jurídica". 3
Sendo fundamental interpretar o princípio da legalidade formalmente, além da
analise do aspecto material e substancial. Este princípio, que foi a conquista fundamental do
Direito Penal Liberal, não pode ser instrumento puramente formal para propiciar ao
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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legislador a punição desmesurada, desproporcional, contrária à própria função de proteção
de bens jurídicos reservada a este brutal, mas em certa medida necessário ramo do Direito.
Como afirma Norberto Bobbio, em prólogo a obra de Ferrajoli:
"a veces los extremos se tocan: la libertad debe oponerse tanto a la anti
libertad, es decir, a cualquier forma de abuso del derecho a castigar, como a
la carencia de reglas, o sea, a la libertad salvaje. El principio de legalidad es
contrario al arbitrio pero también al legalismo obtuso, mecánico, que no
reconoce la exigencia de la equidad, al que con expresión tomada de la
lógica de conceptos el autor llama poder de 'connotación', y la presencia de
espacios en los que habitualmente se ejerce el poder del juez. En el
positivismo jurídico el problema de la justicia está separado del de la
legitimación interna del ordenamiento o de la validez: una posición como
ésta se encuentra a caballo tanto de la reducción del segundo al primero, lo
que es proprio del iusnaturalismo clásico, como de la reducción del primero
al segundo, que caracteriza al legalismo ético".
A Constituição que proclama como fundamento básico a dignidade da pessoa
humana (art. 1º, inciso III), somente se admite a ofensa a mesma, ocorrente com a
condenação criminal, se houver necessidade para a tutela de outro interesse. Não havendo
a imperiosidade da proteção de bem jurídico, fato existente nos chamados crimes de perigo
abstrato meramente formais, é inaceitável a intervenção penal, porquanto inócua e
estigmatizante. conforme lição de Paz Mercedes de La Cuesta Aguado p. 96,
"los delitos de idoneidad peligrosa o de peligro hipotético son delitos en los
que no es preciso que se constate la producción de um resultado peligroso
para el objeto directamente protegido, sino que basta com que la acción
realizada 'sea idónea' com carácter general para lesionar" - "
Resta sabido que a lesividade não pode ser simplesmente rechaçada nos delitos de
perigo
presumido,
sob
pena de
procedermos
a
uma
intervenção
penal
inócua, desnecessária e antigarantista, claramente ofensiva à Constituição Federal do
Brasil. O Superior Tribunal de Justiça, órgão julgador de cúpula do sistema Brasileiro já
decidiu conforme a seguir transcrito:
PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. APREENSÃO DE 1,3 G DE
MACONHA. IRRELEVÂNCIA PENAL.- A apreensão de quantidade ínfima
de droga - 1,3 g -, sem qualquer prova de tráfico, não tem repercussão
penal, à mingua de lesão ao bem jurídico tutelado, enquadrando-se o tema
no campo da insignificância.- Habeas-corpus concedido. (HC 8707/RJ, Rel.
Ministro VICENTE LEAL, SEXTA TURMA, julgado em 21/09/1999, DJ
05/03/2001 p. 237).
O mestre Francisco de Assis Toledo, p-132, em sua conceituada obra "Princípios
Básicos de Direito Penal" assim resume:
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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"Welzel considera que o princípio da adequação social bastaria para excluir
certas lesões insignificantes. É discutível que assim seja. Por isso, Claus
Roxin propôs a introdução, no sistema penal, de outro princípio geral para a
determinação do injusto, o qual atuaria igualmente como regra auxiliar de
interpretação. Trata-se do denominado princípio da insignificância, que
permite, na maioria dos tipos, excluir os danos de pouca importância. Não
vemos incompatibilidade na aceitação de ambos os princípios que,
evidentemente, se completam e se ajustam à concepção material do tipo
que estamos defendendo. Segundo o princípio da insignificância, que se
revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua
natureza fragmentária só vai até onde seja necessário para a proteção do
bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas..."
Verifica-se na prática diária que existe um descompasso entre a atuação policial e
algumas decisões dos Tribunais, que considera essencial para caracterização do delito de
tráfico de drogas a lesividade à saúde pública, sendo necessária para caracterizar o delito
que a quantidade de drogas apreendidas, bem como a autuação do infrator, pelas
circunstâncias e diante das provas apresentadas seja apta a causar prejuízo a sociedade,
ainda que em potencial, quando esteja fazendo uso da mercancia como forma de fomentar a
dependência em drogas ilícitas.
4. TRATAMENTO DADO AO USUÁRIO DE DROGAS
Considerando o fato da grande maioria dos usuários estarem sob o efeito da
substância química, como o “crack”, ou em crise de abstinência, eles são facilmente detidos
pela polícia e levados a prisão, de uma forma constante, tornando-se conhecidos no meio
policial por envolvimento em diligências anteriores. Em razão dos diversos envolvimentos
passam a ser rotulados como traficantes pela própria polícia, muitas vezes de forma
proposital com o intuito de combaterem o uso e o tráfico de drogas. Essa prática policial é
pautada na visão de que o combate ao usuário indiretamente inibe os traficantes, pela
própria diminuição de consumidores, e ainda pelo raciocínio de que a prisão pode recuperar
o viciado. Como retrata os tribunais brasileiros:
"EMENTA: TRÁFICO - DÚVIDA QUANTO À DESTINAÇÃO MERCANTIL
DO ENTORPECENTE - DESCLASSIFICAÇÃO PARA USO PRÓPRIO ADMISSIBILIDADE. Se as investigações produzidas não sustentam um
grupo de indícios capazes de demonstrar a destinação mercantil da droga
apreendida que se mostra, em termos de quantidade, compatível com o
mero uso, não havendo outras investigações acerca da disseminação no
distrito da culpa, o contexto supõe dúvida razoável sobre a condição de
traficante, dúvida que só pode ser resolvida em favor do réu, impondo-se a
desclassificação do delito de tráfico para o de uso, na forma do art. 28 da
Lei Federal nº 11.343/06. RESTITUIÇÃO DA QUANTIA EM DINHEIRO
APREENDIDA - POSSIBILIDADE. Operada a desclassificação do delito de
tráfico para o de uso de substância entorpecente, e comprovando o réu a
origem lícita da quantia em dinheiro apreendida, sua restituição é medida
que se impõe. Recurso provido." (TJMG - 1ª CACRI - Rel. Des. Judimar
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Biber – Apelação Criminal nº 1.0390.08.021583-8/001 22.6.2011)
Publicação
Os tribunais brasileiros em reiteradas decisões afirmam pela necessidade de
verificação da tipicidade determinada pelo art.28 da lei 11.340/2006, uma vez que os
usuários, dependentes de drogas ilícitas, não podem ser mantidos em cárcere. De acordo
com Paulo Queiroz (2010 p.81) existe uma grande dificuldade na distinção dos crimes de uso
e tráfico de drogas diante da sua subjetividade, ou seja, no dolo do agente, se a substância
que traz consigo será destinada a seu uso ou para a mercancia. Afirma ainda que, na prática
ocorre um exagero dos órgãos policiais e judiciais na classificação dos fatos para tipificá-los
artificialmente como sendo afetos ao art. 33 e fugir da despenalização do artigo 28, citando
Mariana de Assis Brasil e Wigert (p.103):
“a nova Lei de Drogas, ao descarcerizar o delito de uso, potencializou a
discricionariedade dos agentes policiais. Atualmente, a diferença de punição
entre tráfico e consumo é ainda maior e a discricionariedade do policia
elevou-se ainda mais. Está em grande medida nas mãos dele a escolha entre
imputar alguém à pena mais gravosa, comparada a de um delito hediondo, ou
menos severa”
5. A AÇÃO POLICIAL BRASILEIRA
Em alguns casos podem ocorrer decisões condenatórias por tráfico de drogas
ilícitas com fundamentação baseada em provas sobre a autoria, produzidas na instrução
criminal com os testemunhos de policiais que atuaram na diligência da apreensão das
drogas e prisão do indiciado, aliada ao exame detido dos demais elementos colhidos, uma
vez que em regra não é necessária a realização da prova pericial para comprovação da
dependência química, sendo necessária somente para comprovar a autenticidade da droga
aprendida e neste caso, a sentença condenatória deverá estar em cotejo com os demais
elementos de prova para conduzir à certeza da mercancia de drogas. Conforme decisão
anterior do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais:
"EMENTA:
PENAL
- TRÁFICO DE
ENTORPECENTES
DESCLASSIFICAÇÃO PARA POSSE PARA USO - POSSIBILIDADE AUSÊNCIA DE PROVA DA FINALIDADE MERCANTIL DA DROGA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM - PROCEDIMENTO ESPECIAL
EXCETUADO PELO ART. 61, DA LEI 9.099/95 - RECURSO A QUE SE DÁ
PROVIMENTO. - Se, da análise do conjunto probatório, extrai-se a certeza
da propriedade da droga por parte do réu, mas não resta comprovada a
finalidade mercantil, há que se operar a desclassificação do fato para o
delito de posse para uso de substância entorpecente, previsto no art. 28, da
Lei nº 11.343/06. - Consoante o disposto no parágrafo único, do art. 2º, do
Código Penal, "A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente,
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aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença
condenatória transitada em julgado", o que obriga à aplicação da Lei nº
11.343/06 aos casos anteriores a ela, porque mais benéfica ao agente as
regras do seu art. 28. - Não há falar em remessa dos autos ao Juizado
Especial quando da desclassificação do fato do delito de tráfico para o de
posse para uso de substância entorpecente, operada em sede recursal,
uma vez que os benefícios aos quais o réu faria jus, considerando a Lei nº
9.099/95, não são cabíveis após a prolação da sentença. - Recurso
parcialmente provido" AP n° 1.0024.05.710020-8/001 - Comarca de Belo
Horizonte - Relator: Exmo. Sr. Des. Hélcio Valentim.
Verifica-se que, em alguns casos, o réu poderá ficar preso por mais de um ano, ou
seja, o tempo necessário a apreciação do recurso ao Tribunal de Justiça do Estado,
considerando a sua condenação pelo juízo a quo, e após a sua desclassificação para o
delito previsto no artigo 28 da lei 11.343/06 deve ocorrer a extinção da pena, uma vez que
houve o cumprimento desnecessário da forma mais rígida, qual seja, a pena privativa de
liberdade. Sobre o tema, confira-se os ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci:
"O art. 28, § 2º, da Lei 11.343/2006, fornece os elementos a considerar para
distinguir o tráfico ilícito de entorpecentes do mero uso: natureza e
quantidade da droga; local e condições onde se desenvolveu a ação;
circunstâncias sociais e pessoais; conduta e antecedentes do agente. O
quadro sugerido é abrangente, embora o principal elemento, conforme se
pode detectar pelo acórdão paradigma e seus convergentes, é a quantidade
de droga. Nada pode ser mais indicativo do que isso, pois usuários não
carregam, nem guardam, como regra, quantidades vultosas de substância
entorpecente. Pretendem, apenas, consumir, o que não demanda excesso."
(Tratado Jurisprudencial e Doutrinário - Direito Penal - Volume II - Parte
Especial e Legislação Penal Especial, editora Revista dos Tribunais, p.
1024)
Em regra os imputados pela polícia como traficantes de drogas sempre aduzem
que são apenas usuários, cabendo ao poder judiciário averiguar se crível a hipótese de
tratar-se de mero usuário de drogas, considerando a quantidade da apreensão da
substância e as demais circunstâncias, aplicando a lei penal brasileira que determina em
seu art. 155 do Código Processo Penal Brasileiro que: O juiz formará sua convicção pela
livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua
decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas
as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
A dificuldade em verificada na caracterização dos delitos, uso ou tráfico de drogas,
se torna ainda maior a se analisar a questão do ônus probatório, caberia ao Estado-Juiz ou
ao próprio agente. A doutrina aduz que atendendo ao princípio constitucional da presunção
de inocência, o ônus é do Estado, entretanto, a jurisprudência por sua vez afirma que cabe
ao que alega a prova do seu direito.
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EMENTA:
APELAÇÃO
CRIMINAL
TRÁFICO
ILÍCITO
DE
ENTORPECENTES - ABSOLVIÇÃO OU DESCLASSIFICAÇÃO PELA
INSUFICIÊNCIA DE PROVAS - IMPOSSIBILIDADE - DEPOIMENTO
DE POLICIAIS - DENÚNCIAS ANÔNIMAS - VALIDADE - NEGATIVA
ISOLADA - CONDENAÇÃO MANTIDA - ISENÇÃO DAS CUSTAS
PROCESSUAIS - MATÉRIA AFETA AO JUÍZO DA EXECUÇÃO RECURSO NÃO PROVIDO. (TJMG. Ap. 1.0701.13.011382-5/001 - pub.
28/03/2014)
Afirma o professor da Universidade de Barcelona Dr. Amadeu Recasens i Brunet:
Lo hasta aquí expuesto que, a fin de explicar plausiblemente el fenómeno
policial, tenemos que plantear la coexistencia de un aparato policial que
desarrolla una función visible (tanto simbólica como real) y de un sistema
policial dotado de una función oculta (no manifiesta). Además, no hay
porqué suponer que ambas facetas operen perfectamente sincronizadas.
Esa perspectiva permite comprender el porqué de muchos de los conflictos
policías, que puedan ser vistos, bajo este prisma, como el resultado de la
interacción compleja de colisiones entre estado-cuidados, policíaciudadanos, estado-policía o aparato policial-sistema policial, en los que la
naturaleza poliédrica de la policía le permite jugar desde diversos ángulos.
A atividade policial normalmente se dirige para quem a pessoa é do que para a sua
própria conduta, de tal forma que ocorrem arbitrariedade em alvos como os desprivilegiados
sociais, jovens e negros, teoricamente são tidos como mais inclinados a cometer infrações
ou como menos propensos a denunciar possíveis desvios que resultem em punição ao
policial infrator. A atividade policial possui um cunho discriminatório, cujo problema não está
na existência de conduta movida pela suspeição; mas, no conteúdo de tais percepções
preconceituosas, compartilhadas pela cultura policial e por vários setores da sociedade
(Reiner, 2004, p. 139-140; Bittner, 1990, p. 96-99, 129).
6. JURISPRUDÊNCIA
A seguir são apresentadas jurisprudências de alguns tribunais brasileiros que refletem
a atuação policial no combate ao tráfico de drogas ilícitas, e que nem sempre são
representativas da melhor técnica de repressão a este ilícito penal.
"Toda e qualquer condenação criminal há de fazer-se alicerçada em prova
robusta. Indícios e o fato de se ouvir dizer que o acusado seria um traficante
de drogas não respaldam pronunciamento judicial condenatório, o mesmo
devendo ser dito em relação a depoimentos colhidos na fase policial e não
confirmados em juízo. A posse de pequena quantidade de droga resolve-se
no sentido não do tráfico, mas do consumo de substância entorpecente pelo
agente." (STF - HC nº 77987-4/MG - 2ª Turma - Min. Marco Aurélio - DJU
10.9.1999 - RT 770/497)
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Esta decisão Supremo Tribunal Federal, o poder judiciário máximo do sistema
brasileiro, reflete a necessidade de apreciação de provas robustas para condenação, não
devendo ser utilizada meros indícios.
"Não pratica tráfico de entorpecente o acusado que, depois de se cotizar
com amigos, para aquisição da droga para uso próprio e partilha entre
todos, se incumbe de adquirir e receber o tóxico para posterior entrega e
partilha entre eles." (TJSP - RT 745/539)
O Tribunal de Justiça de São Paulo esclarece que a mera cotização com amigos
para adquirir drogas para consumo entre eles não poderá ser considerado como crime de
tráfico ilícito de drogas.
"O réu que adquire, em sociedade com mais dois amigos, uma cabeça de
pasta-base de cocaína para consumo do grupo, não incorre no delito
de tráfico, uma vez que não se configura a venda ou cessão a terceiro com
a finalidade de disseminação do vício ou obtenção de lucro." (TJAC - RT
762/657)
Da mesma forma conclui o Tribunal de Justiça do Acre ao estabelecer que a
sociedade entre duas pessoas para adquirir a droga ilícita para consumo não poderá
apenada como tráfico ilícito reprimido pela legislação brasileira.
TJRS - Apelação Crime ACR 70044851343 RS (TJRS) Data de Publicação:
16/03/2012 Ementa: APELAÇÃO. ART. 33 , CAPUT, DA LEI Nº. 11.343 /06.
TRÁFICO DE DROGAS. APREENSÃO DE COCAÍNA E CRACK.
USUÁRIO. DESCLASSIFICAÇÃO DO FATO. ART. 28 DA LEI DE
ENTORPECENTES. REMESSA DOS AUTOS AO JUIZADO ESPECIAL
CRIMINAL COMPETENTE. Considerando a quantidade de droga
apreendida, o local, circunstâncias do flagrante realizado e as condições
pessoais do acusado, não sendo suficiente a prova da prática de tráfico de
entorpecentes, é autorizada a desclassificação do fato para o artigo 28 da
Lei 11.343/2006.
Neste caso, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul reafirma a
necessidade de verificação das circunstâncias do flagrante delito lavrado pela polícia militar,
devendo ser analisado também as condições pessoais do acusado para infirmar uma
condenação por tráfico de drogas ilícitas.
TJSP - Apelação APL 126906420108260114 SP 0012690-64.2010.8.26.0...
Data de Publicação: 22/03/2011 - Ementa: Apelação Criminal. Tráfico de
drogas. Apreensão de porções de maconha, cocaína e 'crack'. Autoria do
tráfico duvidosa. Apenas pequena quantidade de entorpecente foi
encontrada com o acusado. Os relatos dos policiais militares corroboram a
versão de se tratar de mero usuário. De rigor a desclassificação. Parcial
provimento para desclassificar para o art. 28, da Lei 11.343 /06, com
expedição de alvará de soltura clausulado.
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Percebe-se nesta decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que o
acusado restou em cárcere até o julgamento pelo Tribunal quando foi constatado que se
tratava de usuário dependente de drogas ilícitas. Embora pela jurisprudência não se faz
possível constatar o tempo da prisão, em regra esta se perfaz por não menos que um ano,
prazo que poderá ser maior em se tratando do estado mais populoso do Brasil, restando
posteriormente desclassificado o delito e expedido o competente alvará de soltura,
demonstrando assim que neste caso a pena cumprida foi muito maior do que determina a
lei.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Verifica-se no presente trabalho que a lei Brasileira não prevê para o usuário de
drogas a pena de privação de liberdade, embora considere crime o ato de adquirir, guardar,
ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas,
demonstrando com isso a intenção de proporcionar ao dependente de drogas ilícitas a
oportunidade de recuperação, já que tais indivíduos que fazem uso da droga estão, na
maioria das vezes, causando um prejuízo muito maior a si mesmo do que à própria
sociedade, não oferecendo, a princípio, relevante lesividade direta a saúde pública, que é o
bem jurídico protegido.
Ocorre que o usuário de drogas que se torna um dependente químico,
principalmente do “crack”, acaba se vulnerando demasiadamente, passando a utilizar as
drogas em locais de frequente ocorrência policial (conhecidos popularmente como “boca de
fumo”), gerando muitas vezes a detenção e encarceramento, os quais posteriormente são
indicados como traficantes de drogas.
Geralmente estes usuários que são levados ao cárcere ficam à disposição do poder
judiciário, sendo encaminhada apenas uma comunicação de prisão pela polícia civil e o
boletim de ocorrência da polícia militar, e para melhor verificação do fato, que deverá ocorrer
em até 180 dias, para realização da instrução criminal, o acusado normalmente permanece
encarcerado.
Pode-se verificar pela jurisprudência de vários tribunais, como mencionado, que se
torna muito constante o indiciamento e até mesmo a condenação em primeiro grau de
jurisdição de usuários de drogas como traficantes, levando-os inclusive ao cárcere privado,
ocorrendo posteriormente a desclassificação do crime para o uso de drogas, que não tem
como sanção a privação da liberdade. Fato este que torna a situação dos dependentes
químicos ainda mais grave, pois além da estigmatização pelo vício ainda carregam a mácula
de ex-presidiários.
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RACISMO E SEGURANÇA PÚBLICA: PELO FIM DO PROJETO
GENOCIDA DO ESTADO BRASILEIRO
Haydée Paixão Fiorino Soula
1. INTRODUÇÃO
Antes de entendermos aspectos da política de Segurança Pública é
importante localizá-la dentro do conjunto de funcionamento e estruturação do
sistema penal, para assim verificar falhas, planejar melhorias e executar mudanças.
O contexto brasileiro impede uma abordagem fria e direta sobre o tema, na
medida em que possui especificidades de sua formação histórica cujos elementos
ainda estão muito presentes até os dias de hoje.
Assim traçaremos um breve histórico de formação do sistema penal
brasileiro, observando o contexto social, econômico, político e cultural de seu
desenvolvimento, para então apontarmos para as evidencias e desafios da
segurança pública no país.
Desta maneira trataremos neste artigo da divisão periódica sugerida por Nilo
Batista(ano) e por Ana Luiza Flauzina (2008), que dividem o sistema penal brasileiro
em quatro fases: i) sistema colonial-mercantilista, que vai desde o “descobrimento”1
até a Independência em 1822; ii) sistema imperial-escravista, até a Proclamação da
República em 1889; iii) sistema republicano-positivista até a década de 1990; iv)
sistema neoliberal, vigente até a atualidade.
Mais adiante penetraremos na área da criminologia, instrumento teórico que
possibilita a crítica ao modelo vigente do atual sistema penal cujo pilar é totalmente
estruturado na ideologia racista.
Desta feita, apontamos para um necessário olhar e compreensão sobre a
política criminal, que se refere às estruturas e ações das instituições judiciária e
penitenciária, e à política de segurança pública que nos traz a reflexão sobre a
estrutura policial.
Por fim, analisaremos as conseqüências negativas das práticas dessas
políticas que revela ser o racismo inscrito em diversos âmbitos e nas diversas
formas de violência, simbólicas e físicas, perpetradas pelo sistema penal. Os
números de homicídios de jovens negros demonstram a ação truculenta e assassina
da polícia que tem como projeto claramente delineado, a execução de determinado
grupo, classificado/estereotipado como marginal/delinquente.
1
Descobrimento aqui entre aspas, pois já existia no continente sul-americano comunidades e
populações com culturas e ideologias próprias e bem constituídas. O termo utilizado pelos portugueses
“descobrimento” para referir-se ao seu processo de chegada neste território, revela seu juízo de valor
sobre o continente e a imposição de sua versão da história como a única história ou história oficial.
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2. DE “BOM ESCRAVO” À “MAU CIDADÃO”2
2.1. Sistema colonial-mercantilista (1500 – 1822)
Essa primeira fase do sistema penal é marcada pela desumanização dos
povos tradicionais presentes no território com a presença da escravidão e da
exploração como base produtiva.
Esse período abarca o período de expansão mercantil da Europa ao redor do
mundo no qual legitimou-se com o tráfico transatlântico de africanos escravizados,
convertidos em grande objeto de comércio lucrativo, além da escravização e
aculturação de indígenas e comunidades aborígenas.
Assim, produziu-se um discurso que justificava a evangelização dos povos
indígenas, já que eram considerados “selvagens” ou infantilizados, devendo a
instituição
cristã
salvá-los
e
civilizá-los.
Já
para
os
africanos
trazidos
compulsoriamente ao continente, a sua recuperação espiritual era inatingível, devido
ao grau de sua suposta “inferioridade”, tais discursos estão aliados a teorias
positivistas vigentes na Europa para justificar e validar a exploração dos povos e
ainda, a superioridade dos povos europeus.
Sobre o papel da Igreja Católica na escravização de africanos e índios,
Abdias do Nascimento 3 (2002) ressalta a função justificadora do cristianismo
fornecendo apoio aos missionários na instituição da brutal colonização e
escravização. Sobre o genocídio indígena provocado pelo empreendimento colonial
em terras brasileiras Flauzina afirma que:
Apesar das controvérsias, estima-se que viviam em todo o atual território
brasileiro, em 1500, aproximadamente 2,4 milhões de índios. A partir do
contato com os colonizadores que, além da guerra e dos massacres,
trouxeram as epidemias, esse número, já em 1819, não passava de 800
mil. Contando com a colaboração dos jesuítas, que chegaram em 1550
para converter em homens aquelas criaturas infiéis, a empresa mercantil
expropriou material e simbolicamente o segmento indígena, “a terra não é
apenas um meio de subsistência (embora também o seja), mas todo um
suporte da vida social, pois se vincula intimamente aos sistemas de
crenças e ao conhecimento. Sem suas terras, os índios estão física e
culturalmente ameaçados. Num país cuja identidade, no âmbito das
relações agrárias, foi construída pelo latifúndio, essa era uma questão que
não poderia mesmo ser levada em conta. (FLAUZINA Ana Luiza Pinheiro.
Corpo Negro caído no chão. O sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto., 2008, p.54)
Assim, a colonização brasileira, se destaca pela violência real e simbólica
perpetrada pelo colonizador e pelas estruturas de poder contra a população da terra
e também contra os africanos escravizados de forma criminosa.
2
Título da primorosa obra de Clóvis Moura, O negro: De bom escravo à mau cidadão?. Ilustrações de
Israel Cysneiros e Célio Barroso. Rio de Janeiro, Conquista 1977.
3
Nascimento, 2002, p. 92-93
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A colonização, segundo Munanga (2009), realiza uma produção discursiva
da tríplice redução do negro: ontológica, epistemológica e teológica. Tal discurso
pseudocientífico teorizou a inferioridade racial, corroborando com o interesse de
mascarar os objetivos econômicos e imperialistas da empresa colonial.
Com base nessa imagem, tenta-se mostrar todos os males do negro por
um caminho: a Ciência. O fato de ser branco foi assumido como condição
humana normativa, e o de ser negro necessitava de uma explicação
científica. A primeira tentativa foi pensar o negro como um branco
degenerado, caso de doença ou de desvio da norma. A pigmentação
escura da sua pele só podia ser entendida por causa do clima tropical,
excessivamente quente. Logo isso foi considerado insuficiente, ao se
constatar que alguns povos que viviam no Equador, como os habitantes da
América do Sul, nunca se tornaram negros. Outra justificativa da cor do
negro foi buscada na natureza do solo e na alimentação, no ar e na água
africanos. Não satisfeitos com a teoria da degeneração fundamentada no
clima, outros aceitaram a explicação de ordem religiosa, nascida do mito
camítico entre hebraicos. Segundo ele, os negros são descendentes de
Cam, filho de Noé, amaldiçoado pelo pai por tê-lo desrespeitado quando
este o encontrou embriagado, numa postura indecente. Na simbologia de
cores da civilização européia, a cor preta representa uma mancha moral e
física, a morte e a corrupção, enquanto a branca remete à vida e à pureza.
Nessa ordem de ideias, a Igreja Católica fez do preto a representação do
pecado e da maldição divina. Por isso, nas colônias ocidentais da África,
mostrou-se sempre Deus como um branco velho de barba, e o Diabo um
moleque preto com chifrinhos e rabinho. (MUNANGA, Kabenquele.
Negritude: Usos e Sentidos. São Paulo: Autêntica. 2009, p.29.)
Para tanto, o sistema colonial, com a finalidade de justificar a sua empreitada
sobre o Novo Mundo e validar a sua violência sobre os colonizados, vão se valer dos
discursos da ciência, da religião e ainda da política.
No sistema colonial, a dominação social se dá pelo sequestro, por isso,
Foucault (2009), define a Colônia como instituição de seqüestro. Essa prática não se
reduz apenas a violência física e está expressa também com a captura e no controle
dos saberes, do tempo e dos corpos. Nessa perspectiva, o objetivo colonial é
desarticular os setores considerados inferiores por meio da violência real e
simbólica, com a finalidade de padronizar e moldar os comportamentos como
metodologia de dominação.
A esse respeito, Zaffaroni (2011):
Entre as “instituições de seqüestro” – designação das instituições totais por
Foucault – não se encontra presente a colônia, que, em nossa opinião,
deve ser repensada da perspectiva de uma gigantesca “instituição de
seqüestro” de características bastante particulares. Não é possível
considerar alheio a essa categoria foucaultiana, apesar de sua imensa
dimensão geográfica e humana, um exercício de poder que priva da
autodeterminação, que assume o governo político, que submete os
institucionalizados a um sistema produtivo em benefício do colonizador,
que lhe impõe seu idioma, sua religião e seus valores, que destrói todas as
relações comunitárias que lhe pareçam disfuncionais, que considera seus
habitantes como subumanos necessitados de tutela que justifica, como
empresa piedosa, qualquer violência genocida, com o argumento de que,
ao final, redundará em benefício das próprias vítimas, conduzidas à
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verdade (teocrática ou científica).(ZAFFARONI, Eugenio. Em busca das
perdas perdidas, 2001, p.74-75).
É com desumanidade que essa dominação de quase quatrocentos anos,
dentro da lógica de produção mercantilista, se sucedeu. Tal dominação e violência é
uma das bases para a análise de como se construiu um sistema penal interessado
em estigmatizar e criminalizar o que ele considera o “diferente”, o “outro”.
Tal período se caracteriza pela regulamentação das práticas punitivas no
âmbito privado, tendo o “senhor de escravos” discricionariedade sobre o uso do
corpo negro escravizado, constituindo-se como verdadeiros “órgãos da execução
penal”.Esse controle revela o uso do conceito de humanidade, em um sentido
relativizado. No âmbito do simbólico, pretendia justificar a inferioridade dos negros
escravizados.
O sistema mercantil, do ponto de vista legal, visava garantir a propriedade
privada dos senhores, a terra e os negros escravizados, e nesse sentido a violência
exercida sobre essa parcela da população se manifesta em dois níveis: no público
através de um discurso racista que relativiza as noções de humanidade e reserva
aos negros os piores lugares na hierarquia social; e no âmbito privado, pelo fato de
ser considerado propriedade privada e meio de produção, os negros escravizados
eram objetificados, podendo sua vida ser negociada, vendida, trocada, interrompida,
subjugada ou determinada por um outro: seu proprietário.
Partindo dessas premissas afirmamos que é a partir daí que se constroem as
bases que mantém, até os dias de hoje, as relações assimétricas e racistas que
estruturam nossa sociedade.
2.2. Sistema imperial-escravista (1822 – 1889)
O mito da democracia racial4 está impregnado na construção ideológica do
agir e pensar brasileiro e não poderia seu sistema penal estar apartado de tal
4
O “mito da democracia racial” crença articulada ao um projeto nacional do Estado Brasileiro para
dirimir os problemas raciais, afirmando haver “democracia” entre brancos e negros na concretização de
direitos no Brasil, sob a mentirosa evidencia empírica da grande maioria de negros e negras ocuparem
os trabalhos domésticos e trabalhos de riscos, nos quais os brancos possuem a opção de não se
sujeitar. Junto com a ideologia da miscigenação articulada com a política institucional de
embranquecimento da população, propagau-se o país como um centro onde todas as raças
conviveriam harmonicamente, falseando a realidade brasileira de discriminação contra homens,
mulheres e crianças negras. A recente Greve dos Garis no Rio de Janeiro, 2014, revela que a grande
maioria são negros. Mais do que enganosa, o mito da democracia racial, esperava que os negros
“embranquececem” incentivando a miscigenação como forma de “purificá-los”, pois ao misturar as
raças, o segmento negro desapareceria e os miscigenados “harmonicamente” seriam mais aceitos, é o
que depreende-se da obra de Darcy Ribeiro, O povo brasileiro (1995, p.236), considerada sustentáculo
ideológico de tal crença deturpada. Este mito também contribui para a dificuldade de identificação do
negro brasileiro. Dilui a negritude numa vasta escala de graduações, contribuindo para enfraquecer a
solidariedade entre indivíduos de mesma ascendência e descendência e para a redução na
combatividade da ordem social, que acaba sendo tida como natural e não como uma construção
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realidade. O sentido social do crime e da criminalidade possui, portanto, raízes
históricas no período da escravidão.
Antes da sua abolição, os diferentes níveis das tensões que marcaram a
vivência social dos escravos e ex-escravos, convergem com a prevalência
ideológica da produção intelectual das metrópoles colonizadoras européias. No
campo das ciências sociais, as teorias relativas à eugenia e ao darwinismo social
tentaram dar conta da realidade social. No campo penal, a criminologia positivista
exerceu forte influência, no campo filosófico e político, ideias burguesas do
Iluminismo indicavam o sol nascente do capitalismo.
Tais tensões eram resolvidas no âmbito do sistema penal imperial-escravista,
com estruturas lógicas de atuação muito bem delineadas - o controle fundado na
produção da morte em massa 5 -, pautadas na manutenção de um projeto de
segregação racial assentado na violência como forma de dominação, cujas penas
corporais,
como
os
açoites,
constituem
sua
expressão
punitiva
máxima,
evidenciando vestígios empíricos do genocídio dos africanos e descendentes de
africanos submetidos à produção escravista sem piedade.
A esse respeito ilustra
Flauzina (2008):
Nesse campo minado, formatado pela elite imperial, se pode perceber o
surgimento do projeto de controle, e, especialmente, extermínio da
população negra, nos açoites públicos ou nas prisões, na vigilância cerrada
à movimentação nas cidades, numa política de imigração que exclui os
trabalhadores das melhores oportunidades e visa a eliminá-los pela mistura
racial e na guerra, que esconde a morte sob promessa da libertação.
Nesse ambiente propício a tensões, agravadas sobremaneira pelas
rebeliões e fugas, presentes durante a vigência do regime escravista e
cada vez mais correntes no final do Império (há registros de muitos casos
de fugas em massa, além de homicídios e furtos de negros escravizados
contra os senhores), a Abolição não pode mais ser adiada. (Flauzina,
2008, pp.49)
Clóvis Moura em “Dicionário da escravidão negra no Brasil” 6 , ressalta o
caráter vilipendioso e aviltante das práticas punitivistas nesse período, próprias de
um projeto genocida, ao realizar, constantemente, mutilações, queimaduras, açoites
e até degolações além das próprias deformações das mãos, pés, cabeça e corpo
inteiro, advindas do próprio “exercício profissional”, ao definir as expressões castigo
e deformações no corpo.
socialmente direcionada por essa ideologia. Essa situação, entretanto, é peculiaridade do sistema
racista brasileiro, conforme explica Oracy Nogueira (2006), que cria dois conceitos importantes, o
“racismo de marca” e o “racismo de origem” ao explanar em seus estudos as diferenças da expressão
do racismo no Brasil e nos Estados Unidos. O primeiro é um fenômeno típico do caso brasileiro e o
segundo, do caso norte americano.
5
No sentido adotado por FLAUZINA (op cit. p.79).
6
MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. 1ª ed. - São Paulo: Editora da Universidade
de São Paul, 2013.
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Sob esse julgo, o sistema penal imperial escravista representa o primeiro
movimento de construção da agenda genocida do Estado brasileiro. Se de um lado a
abolição da escravidão criminosa pretendia resolver as tensões dos negros, de
outro, observa-se nas diversas políticas perpetradas pelo império, formas de
controle, exclusão, extermínio e inviabilização do social dessa população que, na
nova ordem econômica então vigente, deveria estar “controlada”. Assim, se antes o
controle sobre a população negra bem como a violência eram exercidas, na maioria
dos casos, por parte dos senhores de escravo, na nova ordem política, é o aparato
repressivo do Estado – então em estruturação - que será encarregado dessa função,
sedimentando o extermínio e a truculência de sua movimentação em torno da
liberdade da massa negra.
A reforma do Código de Processo Penal em 1841, com a transferência dos
poderes da Magistratura para as instituições policiais sinaliza para a instituição de
um sistema de vigilância, truculência, repressão e eliminação física do contingente
social negro.
O sistema penal ancorado no âmbito privado começa a se deslocar para o
público, criminalizando todas as movimentações dos corpos negros recém aureados
- das penas de açoites nas ruas aos porões das prisões - inviabilizando a
reprodução da vida do segmento negro. Se na nova ordem econômica que se
instaura, o trabalho livre é o que dignifica o homem, as populações recém libertas,
por não estarem incluídas nessa lógica, foram consideradas massa ociosa, recaindo
sobre elas a culpa pela sua condição social. Excluídas como força de trabalho por
conta do projeto oficial do Estado de instaurar a imigração européia, essa população
foi marginalizada e ainda sofre o peso da dupla discriminação: de classe e de raça.
Assim com a proclamada Abolição da escravidão em 13 de maio de 1888 e
com a posterior fundação da República aos 15 de novembro de 1889, materializouse no sistema penal republicano-positivista, a passagem do controle da população
negra dos grilhões à algema7 validados pela criminologia positivista assim como pela
ideologia da democracia racial. De escravo à mão cidadão na República.
2.3. Sistema republicano-positivista (1889 – 1980)
A legislação penalizante nesse período aponta para a criminalização de
todos os segmentos e setores em desafeto com o poder hegemônico, em um
momento em que não só o segmento negro era estigmatizado, mas todos aqueles
considerados como populações marginais, como os imigrantes - em evidente
7
FLAUZINA (op. cit. p.80)
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desintegração social -, inerentes ao processo de transição do Brasil da mão de obra
escrava à mão de obra livre.8
Assim, as condutas vinculadas às condições sociais em que a população
negra, recém libertada, porém, excluída econômica, política, cultural, social e
simbolicamente, eram as criminalizadas e passíveis de punições. Com a falta de
acesso ao trabalho, uma vez que a nova força produtiva era a do imigrante branco
europeu, eram proibidas condutas caracterizadas como capoeiragem, mendicância,
curandeirismo, charlatanismo e vadiagem.
Roger Bastide em seu estudo sobre a criminalidade em São Paulo9 utilizou
como fonte de análise os Arquivos da Polícia de São Paulo do período de 1870 a
1944, e revelou estatisticamente que, após a proclamação da República, houve um
aumento
da
criminalidade
imigrante
e
uma
mudança
nas
condições
de
criminalização dos negros e negras que antes era atrelada a uma reação direta
contra o sistema escravista. Vejamos:
Mas, se em vez de falar de um modo geral da criminalidade segundo a
cor, distinguirmos os diversos tipos de crimes, veremos que para os 49
homicídios da capital, em 1898, não houve senão quatro brasileiros de cor.
O que quer dizer que a criminalidade sangrenta do negro (...) era uma
reação contra a escravidão e não um traço racial. A nova criminalidade,
feita de furtos, de alcoolismo, de vagabundagem, etc., é uma reação contra
as novas condições sociais do negro abandonado na grande cidade, em
concorrência com o imigrante e quase sempre vencendo este. BASTIDE,
Roger. A criminalidade negra no Estado de São Paulo. In: NASCIMENTO,
Abdias. O negro revoltado. Rio da Janeiro: Nova Fronteira. 1982, p.)
Com o processo de industrialização no Brasil a partir da década de 1930 e o
incentivo à imigração européia, a criminalização do segmento branco proletário,
nessa fase industrial de desenvolvimento capitalista, seguia na direção enquadrada
nos crimes que proibiam greves, manifestações políticas, ideologias contra o
governo, até mesmo vadiagem, e, ainda, pelas posturas que questionavam a
estrutura social e o regime político vigente. Já para a população negra, as investidas
criminalizantes
e
estigmatizantes
do
aparato
punitivo
se
materializa
na
8
A esse respeito, esmiúça Flauzina: “Em 1893, o Decreto nº 145, de 11 de junho, determinava a prisão
“correcional” de “mendigos válidos, vagabundos ou vadios, capoeiras e desordeiros” em colônias
fundadas pela União ou pelos estados. Destinado aos mesmos setores, o Decreto nº 3475, de 4 de
novembro de 1899, negava o direito à fiança aos réus “vagabundos ou sem domicílio”. A Lei nº 4.242,
de 5 de janeiro de 1921, que fixou a inimputabilidade penal aos quatorze anos e autorizou a criação de
um serviço assistencial às crianças abandonadas e delinqüentes, abriu caminho para a promulgação do
Código de Menores em 1927. Na esfera da criminalização do anarquismo, destacamos o Decreto nº
4.269, de 17 de janeiro de 1921, que, entre outras coisas, criminalizava a apologia do anarquismo ou o
elogio aos anarquistas, e o Decreto nº 5.484, de 27 de junho de 1928, que aumentava a pena de
determinados delitos cometidos contra os índios, devendo ser consideradas condutas praticadas de um
superior contra um inferior.” (FLAUZINA Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro caído no chão. O sistema
penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p.54)
9
Apud, NASCIMENTO, 1982, p.243.
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desarticulação de toda a existência negra, seguindo a linha de atuação do sistema
imperial escravista.10
Insta considerar que mesmo havendo uma certa ampliação dos sujeitos
alvejados pelo sistema penal nessa fase, seu aparato de controle já apresentava
manifestas diferenças no trato da criminalidade entre brancos e negros. Para os
brancos o controle era dirigido nas matérias relacionadas à indisciplina no sistema
fabril em franco processo de desenvolvimento e a indisciplina política relacionadas a
propagação da ideologia anarquista trazida pelos imigrantes.
Deste modo, não houve a intenção do Estado Brasileiro e das elites em
reparar a situação de iniqüidade dos negros e negras recém aureados e, ao revés,
os deixando em uma situação de completo desamparo, criminaliza as condutas que
seriam uma nova reação social contra os interesses de concretização econômica e
ideológica das classes dominantes.
O Código Penal de 1940, vigente até a atualidade, recebe o racismo herdeiro
dos demais diplomas penais de nossa história, e, sob nova formatação, dada pelo
mito da democracia racial, ampara e dá prosseguimento a um sistema de justiça
criminal racista e excludente.
Avançando mais na história no sentido de evidenciar somente os marcos
mais importantes para a consolidação do sistema penal republicano-positivista,
segundo Guimarães11, nos anos de 1968 - 78, a democracia racial passou a ser um
dogma, uma espécie de ideologia do Estado Brasileiro e devido ao forte
questionamento e denúncia do racismo arraigado na sociedade, inúmeros negros e
negras eram discriminados, torturados e mortos pela Ditadura. Ainda hoje não
tivemos a oportunidade de conhecer nossa verdadeira história. Quantos negros e
negras foram mortos e torturados e ainda hoje não sabemos?
O movimento negro contra, exatamente, esse discurso falso e mentiroso da
democracia racial, denunciava o que acontecia na realidade: rejeições sistemáticas
aos negros no mercado de trabalho, em espaços públicos e em locais destinados ao
lazer e violência estatal/policial. Desde a abolição, e durante toda a República Velha
e Ditadura, não havia nenhuma lei que criminalizava o racismo ou a discriminação
racial, que aconteciam – e continuam acontecendo ainda hoje - de maneira cotidiana
e reiterada.
Florestan Fernandes, grande sociólogo da sociedade brasileira, questionava
o mito da democracia racial desde 1950, já que os negros eram (e ainda são)
10
FLAUZINA Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro caído no chão. O sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p.85 – 87.
11
2001, p. 62.
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privados de uma real integração com a vida moderna do país devido à persistência
do preconceito de cor na sociedade12.
Já Hasenbalg 13 , sociólogo de origem argentina, conviveu mais com os
ativistas e intelectuais negros cariocas e também fez relevantes contribuições para a
compreensão e análise da discriminação racial do Brasil em diversos estudos, sendo
um deles o livro “Lugar de Negro” de coautoria de Lélia Gonzalez.
A ditadura militar brasileira se utilizava da comparação entre os EUA e o
Brasil, argumentando que este último seria um “melhor país” para se viver em
termos de discriminação, pois diferentemente do primeiro, não adotou leis de
segregação racial, assim como a África do Sul e o Zimbábue. O interesse da
ditadura militar e das elites civis em eliminar qualquer mobilização em torno da
temática racial vinha do medo de que pudesse ruir o discurso oficial que pregava a
mistura das raças - política do branqueamento - como um grande valor democrático
brasileiro.
Essa é a razão pela qual os negros e negras, conscientizados da
persistência do preconceito racial, foram tão duramente perseguidos nesse período.
Seus questionamentos representavam grave afronta à ordem vigente e desmentiam
a versão oficial dos fatos. Ao realizarem atividades políticas e mobilizações sociais
contestatórias daquela ordem repressiva, eram considerados subversivos, conforme
a previsão da Lei de Segurança de 29 de setembro de 1969 do crime de “incitar à
subversão”.
Evidenciado um ciclo de repetição do extermínio da população negra e
aprimoramento de suas táticas de disfarce e negação, o sistema penal republicanopositivista, mais uma vez, se ancora na exploração e criminalização de classe e tem
no racismo sua melhor lógica de atuação.
2.4. Sistema neoliberal (meados de 1980 - ...)
A partir da hegemonia neoliberal que a nível mundial impõe uma sociedade
de consumo, no Brasil a partir dos anos 80, assistimos a intensa concentração de
renda, o aumento do desemprego e, ainda, o aumento da criminalidade e da
violência urbana.
A política neoliberal tende a negar a existência do racismo e da discussão
racial, sustentando a lógica do livre-mercado com a instituição de “novos mercados”
e a expansão dos novos setores de serviços, todos são, portanto, iguais sob o ponto
12
Para entender mais sobre o pensamento e análise de Florestan Fernandes, recomenda-se a leitura
de FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Dominus,
1965.
13
Carlos Hasenbalg, “Discriminação e desigualdades raciais no Brasil”, 1979.
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de vista do consumo, todos são sujeitos de direito aptos a consumir. Por outro lado,
Wacquant (1995) considera a expansão dos anos 90 desigual, trazendo à tona o
clima opressivo de insegurança e medo que invade a vida cotidiana tanto nos
guetos, quanto nas classes abastadas.
O aparato repressivo neoliberal conforme Flauzina(2008), calca-se pela
intervenção física para o controle material dos corpos. O período do neoliberalismo
coincide no Brasil com o aumento da violência policial, passando pela violência nas
Delegacias de Polícia, a eliminação dos camelos das ruas e as diversas chacinas
ocorridas com a participação policial, por exemplo: Vigário Geral, Carandiru,
Eldorado do Carajás, e o mais recente caso de Pedrinhas14 - caracterizando-se a
ação violenta de grupos de extermínio institucionalizados, cujas elites nacionais
ocultam e encobrem sem perder seu ar de benevolência em relação às classes
subalternas e com os grupos marginalizados.
É nesse contexto que o aparato do sistema penal edita leis mais rígidas
contra o crime e a criminalidade como a Lei dos Crimes Hediondos 8072/1999 e a
Lei 9034/1995 que impede a concessão de liberdade nos casos de crimes
organizados. Há também uma certa seletividade dos crimes com a criação dos
Juizado Especiais Criminais com a Lei 9099/95, permitindo a conversão das penas
até 04 anos em restritivas de direitos, criando com isso duas categorias os
criminosos do bem e os criminosos do mal.
Em relação à questão racial, como vimos, as heranças do racismo e do mito
da democracia racial se consolidam no projeto genocida - que esboçaremos nos
próximos tópicos - com o aumento da violência policial que terá como alvo a
população negra.
Apesar da sociedade dos dias atuais, negar a existência do racismo
enquanto estruturante da sociedade, a análise empírica nos mostra que, o aparato
repressivo do estado, bem como a política criminal e a política de segurança pública
do país foram construídos e estão consolidados em torno de um determinado
segmento da população brasileira: o negro.
3. PERFIL CRIMINOLÓGICO
3.1 Criminologia e racismo
Como sabemos, a criminologia historicamente é desenvolvida como uma
ciência ocidental, e tem como proposta analisar e tratar sobre o fenômeno do delito
e do crime nesse ambiente. Nem mesmo a proposta criminológica crítica –
14
ONGs denunciam na ONU mortes no Complexo de Pedrinhas no Maranhão.
http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=10&id_noticia=237414 Notícia de 10/03/2014.
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reconhecendo e utilizando-se de sua importantíssima contribuição - não abordou em
específico a questão racial, uma vez que, inserida dentro do contexto da sociedade
européia, não se interessou pelos esforços na compreensão estrutural do racismo
na formação dos sistemas penais latino-americanos.
A criminologia crítica adota a contribuição das escolas sociológicas para
analisar o delito, desta maneira, não trata ou compreende a criminologia como uma
ciência isolada, reconhecendo o aporte da macrossociologia para a compreensão do
processo de criminalização. Logo, deve a criminologia crítica fazer uma análise
sociológica do processo de criminalização que esteja articulado com o racismo,
desvendando as motivações mais escusas da violência pública perpetrada pelo
Estado que detém o monopólio de seu uso.
Desta maneira, inscreveremos o racismo como fonte de uma política de
Estado historicamente empreendida para o controle e extermínio das populações
negras e indígenas na América Latina. Os esforços para a construção de uma
criminologia crítica que tange o continente sul americano possui seu ápice na
produção teórica de autores como Zaffaroni, Nilo Batista, Malaguti, Lola de Castro,
Rosa del Olmo, dentre outros. Adotaremos a linha seguida por esses autores.
Na América Latina as penas são de uma crueldade exorbitante, sendo um
notável exemplo de violência. A criminalização é empírica, física e aberta, ferida cuja
mácula é não apagável e a responsabilidade por tal violência é de toda a sociedade,
cabendo, especialmente, aos juristas, criminólogos e operadores do sistema penal,
atuarem no sentido de sua superação.
A especificidade do objeto da criminologia no caso brasileiro deve ser
determinada de maneira conjunta com sua formação histórica, revelando o mito da
democracia racial prevalente e construtor da falsa imagem de um sistema penal livre
de racismo.
A seletividade como marca estrutural do sistema penal se manifesta na
punição dos mesmos, “sempre pelos mesmos motivos”15, sendo a estigmatização
dos indivíduos negros na figura de “ladrões”, “criminosos”, “vagabundos”, ou
naturalmente suspeitos ou “propensos ao crime”, sua principal diretriz de ação. É
como diz o sarcástico ditado popular “negro andando é ladrão, negro correndo é
fugitivo e negro parado é suspeito”. Tal enunciado revela a simbologia construída em
torno da associação da figura do criminoso e a cor de sua pele.
A inferiorização de certos grupos sociais para consolidar a exploração
capitalista através do racismo foi – e continua sendo – o grande aparato ideológico
15
(FLAUZINA, 2008, p.33)
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para que o Brasil se fizesse viável, sendo seu sistema penal fundado em
contradições e antagonismos racistas inconciliáveis.16
A história da fundação social do país é a história da exclusão e extermínio
das minorias sociais, sendo o aparato punitivo o grande gestor da repressão,
produtor das desigualdades e manutenção do status quo. O Mito da democracia
racial construído na década de 1920-1930 no Brasil a partir das ideias eugenistas
advindas de Arthur de Gobineau na França e dos darwinistas sociais na Europa,
foram as grandes referências de diversos autores brasileiros que desenvolveram
obras racistas transmitidas até os dias de hoje pela elite e pela história oficial como
conhecimento científico. São eles: Nina Rodrigues, Silva Romero, Monteiro Lobato,
Oliveira Viana, Gilberto Freyre e até Euclides da Cunha17.
Tais autores corroboram para a propagação da ilusão de que no Brasil não
há racismo, não há conflitos entre as raças, ao contrário, todos convivem juntos de
forma harmônica tendo as mesmas oportunidades. Arquitetam um mito até hoje
vivo18 e que a despeito de sua falsa declaração de harmonia e igualdade, atribuiu à
população negra tudo de mais aviltante que há no ser humano, reforçando
estereótipos e a marginalização desse segmento.
Maria Rita Kehl cita como episódios que deixaram profundas marcas na
sociedade brasileira e na subjetividade dos descendentes, o regime militar e a
escravidão, ambas, memórias mal resolvidas e silenciadas.
Assim, estando a política criminal e a política de segurança pública atreladas
à criminologia, e crendo que a produção criminológica é guiada, indissociavelmente,
por uma intenção política, demonstra-se como a variável raça é utilizada para a
prestação de serviços do sistema penal no controle – e produção - da criminalidade,
criando um discurso racista criminológico que consolida o genocídio dos corpos
negros no país.
16
O racismo brasileiro supõe uma exploração econômica, sustentada por uma dominação política, e
essa dominação política constrói uma ideologia reprodutora dessa situação de exploração, criando uma
lógica circular. Segundo Munanga, “A ideologia racista é um sistema perceptivo essencialista,
fundamentado no sincretismo do fato sociológico com o fato biológico” e “O racismo seria
essencialmente a articulação de uma exploração econômica, implicando uma dominação política e uma
legitimação ideológica criando condições de aceitabilidade da exploração e da dominação” (Munanga,
1998).
17
Para compreender mais sobre o assunto da eugenia, recomenda-se a leitura da tese: GOES. Weber
Lopes. O pensamento de Arthur de Gobineau no seio do caleidoscópio da ideologia do racismo. Santo
André, 2011. Monografia – Cento Universitário Fundação Santo André. Para uma crítica mais
aprofundada a obra de Euclides da Cunha, indicamos: MOURA, CLÓVIS. Introdução ao pensamento
de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.
18
Marilena Chauí em seu texto “Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária” descreve a importância
da compreensão dos efeitos simbólicos dos mitos na perpetuação daqueles que detém o poder para
conservar um sistema de crenças, conservando o vínculo com o passado – escravocrata – na formação
do presente, não cessando em encontrar novos meios para exprimir-se. (Chauí, 2011, p.30).
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Utilizamos a criminologia, portanto, para comprovar teoricamente a agenda
genocida estatal brasileira expressa em políticas e ações do estado que visam
determinado
segmento,
e,
mais
especificamente,
formar
a
denúncia
das
movimentações racistas do sistema penal.
4. RACISMO E SEGURANÇA PÚBLICA: PELO FIM DO PROJETO GENOCIDA
DO ESTADO BRASILEIRO
4.1 Sistema penal, política criminal e segurança pública
A ideologia racista19 aplicada à sociabilidade capitalista explica a lógica de
atuação desigual do sistema penal. A seletividade como marca estrutural do
empreendimento penal não o impede de funcionar contrariando a alardeada
“falência do sistema penal”, pois atrás da carapuça da impunidade, funciona muito
bem selecionando estereótipos com o fim para o qual é gerido: manutenção do
status quo. Realiza assim, uma “trajetória de eficácia invertida, na qual se inscreve
não apenas o fracasso do projeto penal declarado, mas por dentro dele, o êxito do
não-projetado: do projeto penal latente da modernidade.” (ANDRADE, 2011, p.293)
O sistema penal abarca três aspectos, a instituição policial, a instituição
judiciária e a instituição penitenciária. São os aspectos do sistema penal regidos por
uma política de segurança e uma política criminal correspondentes, validadas e
expressadas pelo planejamento essencial atinente à investigação, criminalização e
segurança da sociedade perante o comportamento desviante e delinquente. Desta
maneira, a política de segurança pública é a manifestação direta da política criminal
brasileira e vice-e-versa.
Assim, o aporte teórico que nos possibilita realizar uma análise mais apurada
da política de segurança pública em nosso país é a vertente da criminologia crítica,
uma vez que se propõe a ir além no desvendar das ações práticas do sistema penal
em vez de limitar-se no seu discurso previsto de ação. O direito penal é somente a
base normativa do sistema, compreendendo o conjunto de normas jurídicas que
prevêem crimes e lhes cominam sanções, bem como disciplinam a incidência e
validade de suas normas e a aplicação e execução das sanções cominadas. 20
(BATISTA, 2013, pp. 24 a 32).
Podemos considerar o sistema penal brasileiro como um dos maiores e mais
desmascarados e convenientes genocídios históricos da população negra, com sua
19
O racismo brasileiro supõe uma exploração econômica, sustentada por uma dominação política, e
essa dominação política constrói uma ideologia reprodutora dessa situação de exploração, criando uma
lógica circular. (Munanga, 1988).
20
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2011, 12ª edição,
2013, pp. 24 a 32.
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política criminal e sua política de segurança pública – pilares ideológicos do sistema
- com bases de planejamento e ação ancoradas no racismo enquanto elemento
fundamental.
Assim, pretos, pobres e periféricos são a clientela preferencial do aparato
punitivo brasileiro, sofrendo com a criminalização da pobreza, pela limpeza étnicoracial configurada nos números de homicídios e na contenção social que dificulta
sua ascensão social.
O Estado penal brasileiro possui em sua política de encarceramento em
massa a maior expressão de sua vocação antidemocrática, repressora e violadora
de direitos, representando a tônica do atual estágio de reprodução capitalista. Seu
sistema de justiça criminal só legitima tal política. Igualmente, a política de
segurança pública, com um perfil de atuação policial autoritário e repressivo, voltado
à contenção do estereótipo racista de criminoso, revela a verdadeira articulação do
sistema penal.
4.2 Repressão policial, cidadania e direitos humanos
A Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMSP) possui cerca de 186 anos e
nasceu como Corpo de Guardas Municipais Voluntários no ano de 1831, mudandose posteriormente para Corpo de Municipais Permanentes, Guarda de Polícia, Força
Policial em 1896, Força Pública em 1930 e, finalmente Polícia Militar em 1970.
Atualmente possui cerca de mil integrantes, trinta aeronaves, um presídio e uma
Justiça Militar própria, bem como um Centro de Altos Estudos de Segurança (CAES)
que titula mestres e doutores em “ciências policiais”.
Possui como simbologia dezoito estrelas em seu brasão de armas, na qual
se orgulha em ostentar, que na verdade, representam combates e repressões contra
movimentos sociais reivindicativos ou revolucionários.21
Verificamos, por conseguinte, que a grande honraria para essa instituição é a
participação na repressão, criminalização e extermínio de movimentações populares
21
As estrelas celebram a criação da instituição e a participação na repressão às movimentos
considerados subversivos à ordem vigente no período citado a seguir: primeira estrela, período de
1831, Corpo de Guardas Municipais, também chamada de Milícia Bandeirante; a segunda, 1838, pela
repressão à revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul; a terceira, 1839, os Campos dos Palmas; a
quarta, em 1842, a Revolução Liberal de Sorocaba; a quinta, 1865-1870, Guerra do Paraguai; a sexta,
1893, Revolução Federalista e Revolta da Armada; a sétima, 1896, Questão dos Protocolos – conflito
com imigrantes italianos -; a oitava, 1897, repressão a Canudos; a nona, 1910, Revolta da Chibata –
liderada pelo marinheiro João Cândido; a décima, 1917, Guerra Operária; a décima-primeira, 1922,
Forte de Copacabana; a décima-segunda, 1924, Revolução de São Paulo; a décima-terceira, 1926,
Campanhas do Nordeste e Goiás; décima-quarta, 1930, Revolução Outubrista - de Getúlio Vargas; a
décima-quinta, 1932, Revolução Constitucionalista; a décima-sexta, 1935-1937, combate a
“Movimentos extremistas”; a décima-sétima, 1942-1945, Segunda Guerra Mundial e, por fim, a décimaoitava, 1964, o apoio à “Revolução de Março” – Ditadura Civil-Militar brasileira. (CARNEIRO, Henrique.
Corporação de SP vê “glória” na repressão de rebeliões populares. São Paulo: Revista Adusp, Outubro
– 2012, p.82).
1763
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
atinentes ao período do sistema imperial-escravista e ao sistema republicanopositivista, justamente as duas fases mais sangrentas do empreendimento de
controle e repressão no Brasil, é o que se repete com as demais instituições policiais
estaduais.
Não por acaso, homicídios e execuções sumárias cometidas pelas polícias
brasileiras no período imperial na perseguição de escravos fugidos, e no combate a
rebeliões e quilombos, hoje se expressam nas abordagens truculentas e investidas
contra a população pobre e negra, vítimas permanentes do aparato policialesco.
Atuam assim como se tivessem um “cheque em branco” nas mãos, fazendo
uso da violência de forma discricionária e autoritária sem qualquer investigação nos
casos de produção de mortes. Ainda mais com o enquadramento jurídico-penal
desses casos na lavratura de boletins de ocorrência em “auto de resistência” e
“resistência seguido de morte” cuja eliminação já foi recomendada em resolução da
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República22. Configura-se como
uma aberração jurídica, uma vez que antecipa a legitima defesa do policial antes
mesmo da apuração do caso, e uma aberração institucional, uma vez que concede
verdadeira licença para matar ao mascarar casos de execução sumária, abuso
policial, abordagem humilhantes, vexatórias etc. E mais, muitas mortes nem são
contabilizadas em relação ao já baixo número de casos desse tipo solucionados pelo
Poder Judiciário.
A polícia utiliza a violência letal como uma forma de controle social,
direcionando-a, na maioria dos casos, contra pessoas não identificadas,
em geral pobres, que são rotuladas como “suspeitas” de terem cometido
algum crime ou mesmo de apresentarem uma “atitude suspeita”. Nos
Estados Unidos, diversos estados adotaram a pena de morte como
punição. No entanto, ela só é executada após a observação do devido
processo legal, pelo sistema de justiça criminal, que se inicia com a ação
policial. Esta ação não diz respeito apenas à investigação, que era a base
do processo legal, mas também das ações policiais para conter e prevenir
o crime. Algumas dessas ações podem, em dadas situações, terminar em
tiroteio e na morte de um civil. Quando isto ocorre, o sistema de justiça
criminal irá investigar a atuação do policial e se a força por ele utilizada se
justificava ou não. Enquanto o processo está em andamento, este policial é
afastado de suas funções. No Brasil, ao contrário, não existe pena de
morte oficial, mas as polícias agem com alto grau de letalidade em suas
ações, utilizando a força e a violência de forma desproporcional à ameaça
representada e sem respeito aos direitos das pessoas e aos
procedimentos legais. Caso envolvendo policiais nas resistências seguidas
de morte raras as vezes são investigados e chegam à justiça. Na sua
maioria são arquivados e os policiais continuam a agir, sem qualquer
responsabilização. (Grifos nosso) (Dossiê: Mapas do extermínio:
execuções extrajudiciais e mortes pela omissão do Estado de São Paulo,
2009.
Disponível
em:
http://www.acatbrasil.org.br/down/DOSSIE_pena%20de%20morte%20final.
pdf).
22
“Resolução que recomenda fim dos “autos de resistência” é aprovado pelo Conselho”. Disponível em:
http://www.brasildefato.com.br/node/11252 - 29/11/2012.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Sobre a necessidade premente de sua desmilitarização, a Organização das
Nações Unidas23 já recomendou a extinção da polícia militar no Brasil ou mesmo sua
desmilitarização24, sendo uma das polícias com o maior número de letalidade do
mundo. Após o fenômeno que ficou conhecido como “manifestações de junho de
2013”, a atuação violenta das PMs trouxeram tal questão à evidência.
Organizadas militarmente, tanto a polícia quanto os corpos de bombeiros
(artigo 144, V, CF/88), conservam em sua estrutura a cultura belicista, hierárquica e
centralizada, cuja ideia principal se traduz no “combate ao inimigo interno”. Essa
ideia, segundo alguns especialistas em Segurança Pública está na contramão do
Estado Democrático de Direito, uma vez que sua prioridade não é realizar a
segurança dos cidadãos de maneira coletiva, mas combater e punir “inimigos” ou
“infratores” individualmente.
Com base em tal paradigma, verifica-se elevado número de crimes letais
intencionais, prisões arbitrárias, torturas e execuções extra-judiciais de pessoas
inocentes com uma ação policial ostensiva e preventiva projetada, na maioria das
vezes, sobre a imagem estigmatizada do jovem pobre e preto 25 , além da
criminalização dos pobres e mais recentemente de manifestantes. Essa política
estimula
o
processo
de
encarceramento
voraz
que
atinge,
quase
que
exclusivamente, as camadas sociais mais prejudicadas pelas desigualdades
brasileiras.26
Atualmente, há diversos projetos em tramitação para a desmilitarização da
polícia: um proposto pelo senador Blairo Maggi, outro do ex-deputado Celso
Russomanno, e o mais recente proposto pelo senador Lindbergh Farias (PT/RJ), a
PEC-5127, cujo um dos principais elaboradores é Luiz Eduardo Soares (UERJ)28.
23
“Conselho da ONU recomenda fim da policia militar no Brasil”. Disponível em:
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/05/paises-da-onu-recomendam-fim-da-policia-militar-nobrasil.html - 30/05/2012.
24
“Ouvidor da PM sugere desmilitarização” – Ouvidor admitiu que a truculência, a falta de habilidade no
trato com os cidadãos e os altos índices de mortes são os principais pontos a serem destacados na
atuação da PM. Disponível em: http://pragmatismopolitico.com.br/2013/11/ouvidor-da-pm-sugeredesmilitarização.html - 13/11/2013.
25
“Morte
de
jovens
negros
tem
cenário
de
extermínio”
Disponível
em:
http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,morte-de-jovens-negros-tem-cenario-deexterminio,684009,0.htm – 24/02/2011 e “Jovens negros: o massacre das principais vítimas do Brasil”
Disponível
em:
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/02/jovens-negros-omassacre-dasprincipais-vitimas-do-brasil.html - 03/02/2013
26
“Brasil tem a 4ª maior população carcerária do mundo e déficit de 200 mil vagas”. Disponível em :
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/05/120529_presos_onu_lk.shtml - 29/05/2012.
27
A Proposta de Emenda à Constituição nº 51, de 2013 tramita em conjunto com a Proposta de
Emenda à Constituição nº 73, de 2013 e 52, de 2009, que tramita em conjunto com a Proposta de
Emenda à Constituição nº 25, de 2007; 40, de 2012; 102, de 2011; 52, de 2012; e 49, de 2009, por
versarem sobre a mesma matéria.
28
Especialista em segurança pública, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e
antropólogo. Autor de mais de 20 livros, entre eles Tudo ou Nada, Elite da Tropa e Cabeça de Porco.
1765
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Membros da corporação já se manifestaram a favor da desmilitarização da
instituição. O Coronel Adilson Paes de Souza, que publicou o livro “O guardião da
cidade”, fruto de sua dissertação de mestrado na Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, defende a ampliação da carga horária do estudo de
direitos humanos na formação dos oficiais da Polícia Militar, como forma de
combater a tortura.
No Ceará, o soldado Darlan Abrantes formado em filosofia pela Universidade
Estadual do Ceará, foi expulso da instituição após publicar o livro “Militarismo: um
sistema arcaico de segurança pública” no qual afirma que a atual estrutura das PMs
remete ao período da Ditadura Militar (1964-1985) no país.29
Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de
Lima considera que o modelo ideal é a mudança constitucional, que permitiria que
apenas uma instituição policial pudesse ser responsável pela segurança. Ele
observa, porém, que poderia haver algumas mudanças independentemente da
alteração da Carta, como uma maior transparência das polícias e mais diálogo com
a sociedade, afirmando que além da questão militar há as questões administrativas
e gerenciais que também influenciam em seu comportamento.30
4.3 A cor do sistema prisional: Cárcere e violações de direitos humanos
O sistema penitenciário se refere à terceira fase do processo de
criminalização 31 que envolve a execução das penas privativas de liberdade,
alternativas ou medidas de segurança.
A lógica do aprisionamento é uma atividade cara em todo o mundo, mas que
se
torna
ainda
mais
custosa
em
países
pouco
desenvolvidos
ou
em
desenvolvimento. O “custo da prisionalização” envolve o gasto estatal com cada
indivíduo preso e com a criação de vagas e novas unidades prisionais. Tais custos
seriam aferíveis para, em tese, garantir o previsto
32
sobre os direitos e as
assistências cujas quais todos os presos têm direito, como assistência material,
médica, jurídica, educacional, social e religiosa.
29
http://noticias.r7.com/cidades/expulso-por-defender-desmilitarizacao-pm-desabafa-temos-a-mesmaseguranca-da-ditadura-09022014
30
http://oglobo.globo.com/rio/desmilitarizacao-da-pm-especialistas-ressaltam-que-preciso-mudarconstituicao-9338175#ixzz2ulFJxfJj
31
O processo de criminalização envolve três esferas, a criminalização primária que seria a produção e
criação de normas, a criminalização secundária, configurada na atuação e aplicação dessas normas
pelas agências de atuação do controle e, portanto, que mais explicitam a seletividade e os preconceitos
e discriminações ideologicamente introjetados de um sistema penal (polícia, magistratura, ministério
público e agentes penitenciários) e a execução das penas e das medidas de segurança.
32
Capítulo II da Lei de Execução Penal – LEP (Lei nº7.210 de 11 de julho de 1984)
1766
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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O preso em pena privativa de liberdade só está com vedação à sua liberdade
de locomoção, devendo seus demais direitos constitucionais serem assegurados.
Infelizmente não é o que verificamos no cotidiano funcional prisional.
Violações de todos os direitos humanos são possíveis constatar com o déficit
em torno de 200 mil vagas33, cada preso possui cerca de um quarto dos seis metros
na qual faz juz 34 . A superlotação chega a tanto que no Espírito Santo foram
utilizados contêineres como celas. Até mesmo o atual Ministro da Justiça, José
Eduardo Cardozo, declarou que “preferiria morrer a ser preso em uma penitenciária
brasileira35. O nível de atrocidade do sistema prisional chega a tal ponto que longe
de cumprir com suas funções declaradas de reeducação e prevenção (geral e
especial), afasta cada vez mais o condenado de integrar-se na sociedade de
maneira digna, sendo um explícito produtor da marginalização social. Há falta
absoluta de tudo, espaço, alimentação adequada, produtos de higiene básicos,
infraestrutura apropriada, desde local para dormir, estudar, lazer, até para receber
mães e pessoas com deficiência física.
A prática reiterada pela polícia brasileira de “prende primeiro, investiga
depois” revela o uso excessivo e arbitrário da prisão provisória, violando o princípio
da dignidade da pessoa humana, bem como os princípios constitucionais da ampla
defesa e contraditório, presunção de inocência e individualização da pena.
São Paulo é o Estado com maior quantidade de presos provisórios do país.
De um universo de 174 mil detentos, 57,7 mil estão privados de liberdade e ainda
não foram julgados.36
A cada 3 presidiários, 2 são negros; a cada 10 prisões em flagrante, 7 são de
negros e apenas 2 conseguem responder ao processo em liberdade; de cada 10
presos sem julgamento, 9 são pretos e pardos.37
Em relação ao perfil criminológico monotonamente repetido, temos que entre
os presos provisórios em São Paulo, no Relatório do Projeto Tecer38, que promoveu
33
“Brasil tem a 4ª maior populaçao carcerária do mundo e déficit de 200 mil vagas”. Disponível em :
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/05/120529_presos_onu_lk.shtml - 29/05/2012.
34
Título IV – Dos estabelecimentos penais, Capítulo II – Da penitenciária, artigo 88, parágrafo único, b,
da Lei 7.210/84, mais conhecida como LEP, Lei de Execuções Penais. Segue in verbis:“Art. 88. O
condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório.
Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela
concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência
humana;b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).
35
“Ministro da Justiça diz que ‘preferia morrer’ a passar anos em peninteciária brasileira”. Disponível
em:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1185142-ministro-da-justiça-diz-que-preferia-morrer-apassar-anos-em-penitenciaria-brasileira.shtml - 13/11/2012.
36
Tecer Justiça: presas e presos provisórios na cidade de São Paulo/ Instituto Terra, Trabalho e
Cidadania e Pastoral Carcerária Nacional; coordenação de obra coletiva: Heidi Ann Cerneka, José de
Jesus Filho, Fernanda Emy Matsuda, Michael Mary Nolan e Denise Blanes. – São Paulo: ITTC, 2012.
37
Fonte: Human Rights Watch (HRW) http://www.hrw.org.
38
Idem, p. 32.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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a prestação de serviços de assistência jurídica a pessoas presas em flagrante e
recém-incluídas no Centro de Detenção Provisória I de Pinheiros e na Penitenciária
Feminina de Sant´Ana, em questionário preenchido no momento do atendimento nas
unidades prisionais no período de julho de 2011 a janeiro de 2012, revelaram que
50% dos homens são pretos e pardos e 58,5% das mulheres são das mesmas
categorias, o que compõe a categoria sociológica negro e negra.
Revela ainda que 85,8% dos homens atendidos em relação à escolaridade,
não possuem nem o ensino médio completo, em comparação ao mesmo grau de
escolaridade, 81,2% é o total feminino.
4.4 O genocídio39
Segundo o Mapa da Violência de 201240, no período de 2002 a 2010, o
número de homicídios de brancos caiu 25,5% enquanto o de negros aumentou
29,8%, e na parcela jovem em especial, o aumento é anda maior. Bahia, Paraíba e
Pará foram as unidades da federação que tiveram o maior crescimento no número
de homicídios negros, mais que triplicando em 2010 os números de 2002.
Sobre a evolução da mortalidade violenta no Brasil de 1980 e 2011, o Mapa
da Violência de 201341 mostra que entre esse período morreram 1.145.908 vítimas
de homicídios, 995.284 vítimas de acidentes de transporte e 205.890 pessoas
suicidaram-se, totalizando 2.347.082 de mortes.
A taxa geral de homicídios no Brasil ficou em 27,4 para cada 100 mil
habitantes, no entanto, se considerarmos a taxa geral somente dos homicídios
39
Genocídio é uma terminologia atualmente retomada pelo Movimento Negro no Brasil, para nos
referirmos à situação de extermínio da população negra que se verifica empiricamente, analisando os
principais dados sobre mortalidade, violência policial e vítimas letais no país. No entanto, tal uso,
remete a uma reivindicação já antiga na história brasileira, cuja utilização, sem restrições, tem na obra
de Abdias do Nascimento, “O genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado” (São
Paulo: Paz e Terra.1978), uma precursora e forte denúncia, não só ao mito da democracia racial que
constrói ideologicamente a sociedade brasileira, mas principalmente, às suas letais consequências,
constatadas no extermínio físico e simbólico do segmento negro. À despeito das críticas à sua
utilização, declara Florestan Fernandes no Prefácio à obra mencionada “trata-se de uma palavra
terrível e chocante para a hipocrisia conservadora”. Assim, neste trabalho, nos posicionamos ao lado
desses autores e defendemos a utilização do termo genocídio para explicitar a situação de cruel e letal
desigualdade na qual se encontra a população auto-definida como preta e parda no país. Não
aceitemos o discurso da refutação metodológica da utilização do termo por ser “radical” ou por não
dialogar com setores institucionais. A explicitação do que ocorre com a situação dos negros e negras
brasileiras, não poderia ser denominada de outra forma – sendo mais do que a simples evidência de
uma desigualdade histórica, é a constatação de um processo de genocídio físico e simbólico que
possui sim raízes históricas que se mantém com práticas e ações concretas, informais e institucionais,
até os dias de hoje.
40
Mapa da violência 2012: A cor dos homicídios no Brasil/ Julio Jacobo Waiselfisz – Rio de Janeiro:
CEBELA,
FLACSO;
Brasília:
SEPPIR/PR,
2012.
Disponível
em:
http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_cor.
41
Idem.
1768
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
negros nos estados mais violentos, os números podem chegar a 80,5 a cada 100 mil
em Alagoas (quase 3 vezes maior), 60,5 no Espírito Santo e 60,5 na Paraíba.42
No entanto, em 2011, de acordo com o Mapa da Violência de 2013, a taxa
total de homicídios do país diminuiu para 27,1 para cada 100 mil habitantes, e
Alagoas – o Estado com maior número - caiu para 72,2 homicídios para cada 10 mil
habitantes.
Ainda sim, se comparados somente a taxa de homicídios negros em
separada, percebemos seu aumento, sendo que em 2010 a morte de negros
representava 71,1% de todos os homicídios e em 2011 esse número aumentou em
71,4%. Verificamos, pois, que no conjunto da população o número de vítimas
brancas caiu de 18.867 em 2002 para 13.895 em 2011, o que representa um
decréscimo de 26,4%. Por outro lado, o número de vítimas negras cresceu de
26.952 para 35.297 no mesmo período, isto é, um aumento de 30,6%. Com esse
diferencial a vitimização negra passa de 42,9% em 2002 para 153,4% em 2011, num
crescimento contínuo, ano a ano, dessa vitimização.43
Na população jovem de 15 a 24 anos, a evolução do número de homicídios
do grupo negro se repete de maneira ainda mais intensa. De 2002 para 2011 houve
uma queda de jovens brancos mortos de 6.596 para 3.973 – queda de 39,8%. Em
contraposição, o número de vítimas negras entre jovens cresceu de 11.321 para
13.405 no mesmo período – isto é, um aumento de 24,1%. Com esse diferencial, a
vitimização de jovens negros passa de 71,6% em 2002 para 237,4% em 2011, maior
ainda que a pesada vitimização na população total que nesse ano foi de 153,4%.44
Dessa forma, os dados estatísticos comprovam a cruel associação entre
homicídios e cor da pela das vítimas, concentrando a violência contra a população
negra no seu segmento jovem, revelando uma mortalidade sistêmica e seletiva. O
racismo institucional é espantoso, sendo a impunidade em relação aos casos de
homicídios nas periferias a regra. Não existe estímulo por parte dos organismos
investigadores do Estado em revelar a autoria de tais mortes, pois muitas vezes há o
envolvimento dos próprios policiais.
Em relação ao regime militar, apesar do avanço de criação da Comissão da
Verdade, não são considerados os padrões raciais da Ditadura 45 e nem que os
negros são as grandes vítimas da militarização da PM. Sem querer hierarquizar
42
Mapa da Violência 2013: Homicídios e Juventude no Brasil/ Julio Jacob Waiselfisz – Rio de Janeiro:
CEBELLA,
FLACSO;
2013.
Disponível
em:
http://mapadavilencia.org.br/pdf2013/mapa2013_homicidios_juventude.pdf
43
Idem.
44
Idem, ibdem.
1769
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
sofrimentos, de fato, a questão racial é intensamente contundente e tem raízes
história há no mínimo 400 anos.
5. À GUIZA DE CONCLUSÃO
Diante de tais constatações, fica evidente a prática genocida do Estado
brasileiro e do aparato do sistema penal no decorrer de sua formação. Os
fundamentos dessa movimentação letal articulados são: I) o racismo estruturante da
sociedade que tem raízes históricas e se refere à posição do negro; II) as políticas
de segurança pública de viés racista e punitivistas que criminalizam a pobreza bem
como, o segmento negro, obstando seu livre desenvolvimento; III) determinada visão
de mundo expressas nas políticas criminais e na da criminologia – positivista em
especial - constituída com caráter racista.
O racismo estruturante da sociedade brasileira está inscrito em diversos
âmbitos e nas diversas formas de violência simbólicas e físicas e tem amplo aspecto
no sistema penal. Os números da violência contra jovens negros demonstram a
ação truculenta e assassina da polícia que tem como projeto claramente delineado,
a execução de determinado grupo, classificado/estereotipado como marginal e
delinquente.
Além disso, as execuções perpetradas pela Policia Militar e as atrocidades
cometidas pela Justiça Criminal, no atual estado das coisas, não são punidas e
ainda tende-se a naturalizar a presente situação.
No caso das mortes e execuções em que figuram como vítimas a população
negra, verifica-se uma conveniente negligência do poder público na investigação e
persecução penal nesses casos, com a categoria de classificação desse ato
genocida representada como “auto de resistência”. É tido como pressuposto que a
vítima resistiu à prisão, ou seja, sem a apuração preliminar já se pressupõe a culpa
daqueles que são vítimas de execuções extrajudiciais, torturas, dentre outros, com
isso, a impunidade ganha a cena, e a ação criminosa da Polícia é tida como
“legitima defesa”.
A segurança pública, transforma-se assim em forma de interrupção da vida
negra, não diferenciando-se das ações do capitão do mato, agora policiais militares.
A chibata, o espancamento e a execução no Pelourinho, repetem-se nos tiros
disparados à queima-roupa contra cidadãos negros, vítimas de mortes violentas,
silenciosas e sem testemunhas. Restam aos familiares, em especial as mulheres e
mães desses jovens -que são em grande parte mulheres negras - chorarem a perda.
As elites brasileiras assistem a esse quadro de maneira passiva e
conveniente através da tela da TV que se configura, na atualidade, como 4º poder,
1770
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
ou seja, tem poder de julgamento, decisão – condenação antecipada e de pressão e
manipulação política.
Uma abordagem a partir da criminologia crítica, como pretendemos, deve
levar em conta o racismo em todas as suas manifestações e consequências, para a
partir daí, lançar as bases teóricas para a construção na prática de uma sociedade
menos desigual com a efetiva proteção do direito à vida. Enquanto não houver um
efetivo compromisso de superação do racismo em um projeto de segurança pública
verdadeiramente democrático, questionando a lógica do sistema punitivo baseado
não na proteção da vida humana, mas da propriedade e de interesses racistas que
favorecem o sistema capitalista do lucro a qualquer custo.
A reivindicação de uma política criminal dos setores mais vilipendiados de
nossa sociedade46 deve não só apontar para uma profunda transformação de toda a
estrutura de funcionamento da instituição judiciária e penitenciária, como questionar
suas respectivas lógicas de sustentação. São ações no sentido da descriminalização
e desjudicialização, ou seja, movimentações no sentido do Direito Penal Mínimo47.
Uma reivindicação de política de segurança pública, realmente preocupada
com a realização dos princípios constitucionais, ao invés da repressão, com um
novo conceito de segurança cidadã, deve avançar na proposta da desmilitarização,
na reestruturação do modelo policial, e na atuação da sociedade junto aos órgãos de
segurança pública.
Desta feita, o genocídio da juventude pobre, preta e periférica, se configura
como um crime de Estado, logo tal discussão, só poderia ser traçada dentro do
âmbito da criminologia e do direito penal. Nossa intenção é de contribuir para o
aprofundamento teórico e prático da compreensão das verdadeiras razões
ideológicas por trás dessa movimentação do sistema penal brasileiro expressado por
meio de sua política criminal (instituição judiciária e penitenciária) e sua política de
segurança pública (instituição policial).
46
Baratta trata do tema como política criminal das classes dominadas. (Criminologia crítica, e crítica ao
sistema penal. Introdução à Sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro.:Revan. 2011)
47
O direito penal mínimo, não se refere somente ao conjunto de normas que prevêem crimes e lhes
cominam sanções, mas ao movimento teórico e prático de reivindicação da contração de todo o
sistema punitivo do Estado, a partir de diversas ações e medidas alternativas à esfera penal de
resolução de conflitos.
1771
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
OS DADOS SOBRE HOMICÍDIO DOLOSO COMO
SOCIOLÓGICO
Dalva Borges Lima Dias de Souza1 Michele Cunha Franco2
Palavras-chave: homicídio, dados, segurança pública.
ISSN: 2317-0255
UM
PROBLEMA
O crime de Homicídio doloso é além de problema social, um problema sociológico.
A análise a respeito de como o Estado produz dados a respeito deste crime
possibilita que se perceba a maneira que esse Estado lida com o problema. Esse
trabalho faz a análise : a) da produção de dados no sistema jurídico punitivo do
Estado de Goiás a respeito de homicídios dolosos; b) de dois Planos de Segurança
Pública propostos pelo governo de Goiás em 2011 e 2012 e, c) de processos
julgados relativos a crimes de homicídio intencional ocorridos em Goiânia em 2007 e
2008. O objetivo é perceber como o estado de Goiás opera em relação ao crime em
análise ou, em outras palavras, como exerce o monopólio da força. Para tanto, são
cotejados estudos empíricos e teóricos a respeito do crime de homicídio, assim
como reflexões teóricas a respeito do Estado e do seu exercício de poder.
Introdução
O crime de homicídio doloso3 atinge o bem mais relevante, a vida. Seus
efeitos são irreversíveis e os danos que provoca extrapolam a pessoa do ofendido.
Além de grave é intencional, o que faz com que sua incidência cause relevante
desconforto social e afete a qualidade de vida dos indivíduos. De acordo com
Kalyvas (2008), embora o homicídio não esgote toda a variedade de violências, ele é
uma forma inequívoca e talvez a mais confiável para se analisar o nível de violência.
O autor cita Strauss (2000:7)4 , para quem o homicídio é um “irreversível, direto,
imediato e inequívoco método de aniquilação ”. A ocorrência de crimes de homicídio
doloso no Brasil cresceu fortemente a partir da década de 1980 e, de lá para cá,
cresceram também os estudos realizados no sentido de compreender os motivos
dessa majoração.
O presente trabalho se iniciou a partir da pretensão de se analisar o fluxo, no
sistema jurídico punitivo de Goiás, dos procedimentos e processos relativos aos
crimes de homicídio doloso ocorridos na cidade de Goiânia nos anos de 2007 e
2008. A metodologia então pretendida era a longitudinal ortodoxa, que consiste em
se delimitar um período, em se eleger um tipo de crime e então acompanhar o fluxo
dos procedimentos e processos relativos ao delito escolhido no sistema de justiça
criminal, fase a fase, iniciando-se na Polícia Civil, passando pelo Ministério Público
até chegar ao julgamento pelo Poder Judiciário ou, no caso específico do homicídio
doloso, pelo Tribunal do Júri. Ao final, seria possível ter –se uma noção acerca do
1 Doutora
em Sociologia , professora Adjunta da UFG
2
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da UFG,
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da UFG,
[email protected]
2
3
O crime de latrocínio também resulta em morte, mas o bem jurídico protegido em sua tipificação é o
patrimônio e não a vida.
4
Strauss, Scott, 2000. Definitions and subtypes : a conceptual analyses of genocide.Unpublished
paper,University of California, Berkeley.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
desempenho do sistema jurídico punitivo, por meio da percepção da discrepância
entre a quantidade de crimes cometidos, elucidados e punidos, assim como dos
pontos críticos desse sistema.
Por meio da análise do fluxo processual pretendia-se também captar se as
características sociodemográficas do autor e da vítima, assim como as
características do crime, intervêm no desfecho do processo. Outras nuances, que se
acreditava ser possível captar, seriam relativas aos fatores que interferem na
duração de cada processo em cada fase percorrida, desde o inquérito policial até a
sentença final para, por meio dessas informações, perceber qual a interação entre
os atores que atuam em cada fase : a Polícia Civil, o Ministério Público, a defesa
paga ou gratuita e o Poder Judiciário.
Após aproximadamente dez meses5 de coleta de dados junto à Secretaria de
Segurança Pública, Delegacia Estadual de Investigação de Homicídios em Goiânia e
Cartórios de Varas Criminais do Fórum da Cidade de Goiânia, uma tabulação inicial
dos mesmos não permitiu sequer a apresentação de frequências relevantes, que
conduzissem a
percepções mais acuradas do que já sabido, ou seja, a
predominância de crimes cometidos por e contra homens, mediante arma de fogo.
Os dados pesquisados não permitiram evidenciar outras características dos
envolvidos que não o sexo. Muito raramente, há o endereço da vítima na narrativa
inicial da ocorrência. Tendo em vista que os inquéritos e ou processos estavam
dispersos, distribuídos entre os Delegados de Polícia da Delegacia de Investigação
de Homicídios, Promotores de Justiça ou Defensoria Pública e Advogados, ou ainda
nos cartórios das Varas Criminais competentes para analisa-los, a primeira coleta de
dados se limitou às narrativas iniciais do Inquérito, a que se teve acesso no banco
de dados em planilha Excel que Secretaria de Segurança Pública disponibilizou e
aos livros do Cartório central da Delegacia de Homicídios, em que são registrados
todos os trâmites do inquérito policial e aos livros de sentenças proferidas pelos
duas Varas em que atuam os Tribunais de Júri na cidade de Goiânia.
Junto à Assessoria de Planejamento da Secretaria de Segurança Pública,
obteve-se o acesso ao banco de dados, arquivado em planilha Excel, em que estão
registradas todas as ocorrências relativas a todos os crimes consumados e tentados
que tenham sido relatadas às Delegacias de Polícia Civil, e aos Centros Integrados
de Operações de Segurança, CIOPs. Do ano de 2007, constam 12.511 ocorrências
de crimes de toda natureza e do ano de 2008, são 17.867 registros.
Dentre estes, foram filtradas as ocorrências tipificadas como homicídios
dolosos, ou seja, art.121 c/c art.18, I do Código Penal, com o intuito de excluir os
homicídios culposos assim como homicídios culposos de trânsito, cujo trâmite difere
dos processos relativos aos homicídios dolosos, objeto da pesquisa.
Essas duas bases de dados, todas as ocorrências e os homicídios filtrados,
foram utilizadas para confrontar com as informações colhidas junto à Delegacia de
Homicídios de Goiânia. Analisou-se, ainda, as primeiras narrativas policiais ora da
Policia Militar, ora da policia civil, e é importante se observar que no acervo
pesquisado não há distinção entre a autoria dessa narrativa.
Uma primeira tentativa de ao menos apurar os inquéritos que superaram a
fase policial e chegaram à fase judicial foi feita por intermédio da análise dos livros
de registro da Delegacia de Homicídios de Goiânia, especializada que centraliza as
investigações de homicídios ocorridos na cidade. Foram checados todos os livros
que registravam a remessa de inquérito policial ao judiciário, mas essa estratégia
não se mostrou suficiente, tendo em vista que quando uma delegacia remete um
inquérito ao Poder Judiciário não significa necessariamente que a autoria foi
apurada, ou seja, essa remessa não necessariamente enseja a instauração de um
processo propriamente dito, ainda que ele receba uma capa e número junto ao
Poder Judiciário. O envio pode visar à dilação de prazo para a conclusão do
5 Entre
a solicitação de acesso as informações e a coleta, o período gasto foi de 14 meses
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inquérito ou à requisição de medidas cautelares ou probatórias. Para que a relação
jurídica processual se inicie, é necessário que a polícia aponte ao menos fortes
indícios de autoria do crime, ou seja, que indicie o suspeito. É necessária a
existência ao menos de um suposto réu.
Na Delegacia de Homicídios de Goiânia, foram pesquisados seis livros,
referentes ao período de 2007 a 2012, todos lavrados pelo cartório central da
delegacia, nos quais são registrados quaisquer trâmites dos Inquéritos lá
instaurados, assim como daqueles recebidos de outras delegacias.
São os livros: 1) registro de inquérito; 2) inquéritos recebidos de outras
delegacias; 3) inquéritos remetidos a outras delegacias; 4) inquéritos remetidos ao
Poder Judiciário; 5) inquéritos devolvidos pelo Poder Judiciário e, 6) inquéritos
devolvidos ao Poder Judiciário.
Não há arquivo digital ou físico dos relatórios finais do inquérito policial na
Delegacia de Homicídios, assim como o Ministério Público não arquiva suas
denúncias, ou os pedidos de arquivamento do processo. Por este motivo, optou-se
pela fase processual subsequente, ou seja, a coleta de dados nos livros de
sentenças com o intuito de eliminar os processos julgados dentre aqueles que
deveriam ser localizados. Foram analisados os livros de sentenças prolatadas entre
2007 e 2012 pelas duas Varas Criminais, 13ª e 14ª, em que funcionam os juízos
monocráticos responsáveis por instaurar o júri popular, que tem competência para
julgar os crimes dolosos contra a vida ocorridos na cidade de Goiânia.
Acreditava-se que a sentença condenatória ou absolutória traria a
informações acerca das vítimas e dos réus, assim como das circunstâncias e
motivações do crime, ou seja, informações relevantes à análise pretendida. Essas
expectativas foram frustradas, pois os textos das sentenças geralmente se referem
aos réus e vítimas como “já qualificados no processo” e às circunstâncias como “já
descritas no processo”. Essa frustração induziu à pesquisa das sentenças de
pronúncia, visando a uma melhor descrição dos envolvidos e dos crimes, mas nem
sempre elas trazem os detalhes que se pretendia evidenciar.
Pela tabulação das sentenças de julgamento proferidas pelo Tribunal do Júri,
percebeu-se que em cerca de 20% dos dados, o nome da vítima não constava
dentre os inquéritos registrados na Delegacia de Investigação de Homicídios. Fez se
necessário buscar a procedência do inquérito em todos os registros de ocorrência do
banco de dados da Secretaria de Segurança Pública, ou seja, 30.378 ocorrências de
todo o Estado. Buscava-se pelo nome, pelo sobrenome, pelo bairro em que o crime
ocorreu, e ainda assim, em alguns casos, não havia o registro da ocorrência. Esses
dados foram tabulados sem o número de registro e sem as narrativas iniciais da
ocorrência, uma vez que só apresentavam as parcas informações constantes da
sentença. Outra dificuldade decorreu da proibição constante no art. 4º, § 2º da
Resolução nº 121 do Conselho Nacional de Justiça –CNJ - quanto a se incluir o
nome da vítima entre os dados disponíveis para consulta a processos criminais.
Percebeu-se, então, ser conveniente analisar a produção de dados a respeito
do crime de homicídio doloso, posto que a precariedade dos dados disponíveis
inviabilizou o objetivo inicial da pesquisa. Os dados coletados forneciam apenas
informações pontuais, que não possibilitavam a compreensão do crime de homicídio
doloso nem do fluxo de procedimentos e processos realizados no sentido de elucidálo e de punir o autor. Portanto, da frustração quanto ao objetivo inicial de avaliar as
circunstâncias e características em que ocorrem o crime de homicídio doloso, assim
como de traçar um desenho do fluxo de procedimentos e processos no sistema
jurídico punitivo relativos ao crime, veio a percepção de que a ausência de dados
relativos à segurança pública recorrentemente enfrentada por pesquisadores
brasileiros, seria digna de análise.
O problema de acesso ou mesmo de inteligibilidade de dados de Segurança
publica é comum nas pesquisas relativas à segurança pública no Brasil, conforme
apontam pesquisadores da área que, a despeito dos esforços aplicados e de
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inquestionável expertise, viram-se, em alguns casos, impelidos a reorientar o escopo
de suas pesquisas (ADORNO,94,2002;CANO 2006,2009; VARGAS,2004; MISSE e
VARGAS 2007, RIBEIRO; 2009; RIFIOTIS,2006;
CERQUEIRA 2010;
SOARES,2011; FIGUEIREDO,NEME e LIMA,2013).
A recorrência desta dificuldade é bem ilustrada por Lima (2011), o que faz
compensar a extensa citação:
Não obstante o marco legal existente no Brasil prever que as
instituições responsáveis pela ação estatal de pacificação
social e mediação de conflitos devam trabalhar dentro de um
modelo sistêmico, em que cada uma dessas instituições
desempenha papel e procedimentos específicos e
interdependentes, a experiência demonstra que o jogo de
poder típico das organizações burocráticas de um estado
patrimonialista, nos termos de Raimundo Faoro (2001) 6 ,
impede que este sistema opere integralmente enquanto tal.
Polícias,
Ministério
público,
Poder
Judiciário
e
Estabelecimentos Carcerários operam lógicas autônomas e
fragmentadoras da ação do Estado (p.82)
Da angústia decorrente da dimensão dos problemas impostos pela precária
produção e circulação de dados a respeito de homicídios no estado de Goiás
resultou a percepção de que essas limitações não ocorriam ao acaso, elas eram
recorrentes na experiência de pesquisadores brasileiros graduados e poderiam, por
si só, suscitar reflexões que contribuíssem tanto para uma analise sociológica a
respeito da gestão de dados pelo Estado, quanto a respeito da elaboração e
execução de políticas de segurança pública. Soma-se a isso o fato de que durante o
período em que a pesquisa se desenvolveu os crimes homicídios na cidade de
Goiânia aumentaram significativamente , contrariando a tendência em algumas
capitais brasileiras, ao passo que graves crises afetaram os órgãos incumbidos pela
segurança pública no estado de Goiás, conforme se verá a seguir.
Em quinze anos, entre 1998 e 2013, a taxa de homicídios por 100 mil
habitantes em Goiânia mais que dobrou, pois era de 22,06 e passou a 44,56. 2013
foi o ano recordista em ocorrência de homicídios, com a marca de 621 mortes Em
novembro de 2011, servidores da Secretaria de Segurança Pública do estado
elaboraram um plano de combate a homicídios entretanto, no ano seguinte, o
governo do estado apresentou um plano estratégico para a segurança pública que
em muito diferia da proposta original. Enquanto o primeiro plano fora gestado por
servidores que vivenciam em seus quotidianos os problemas concernentes à
segurança pública, o segundo o fora por uma empresa de outro estado e, embora
tenha havido reuniões com servidores da pasta quando da elaboração da proposta,
ela veio engessada em uma metodologia própria da empresa que foi aplicada a
órgãos diferentes em estados diferentes.
Dentro do período em que a presente pesquisa ocorreu, deslindou-se um
cenário em que era evidente uma crise no campo da Segurança Publica, tanto no
que diz respeito à capacidade de coibir e prevenir práticas criminosas, quanto moral
e institucional. A incidência de crimes de um modo geral e os homicídios em
particular aumentou consistentemente; duas operações deflagradas pela Polícia
Federal e uma pela própria Polícia Civil apontaram que havia grupos de extermínio
formado por policiais militares e que o alto escalão tanto da policia civil quanto da
6 Faoro, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político
brasileiro. 3ª Ed. São Paulo: Editora Globo, 2001
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militar estava envolvido com o crime organizado7 e, em 2013, servidores da Polícia
civil ficaram em greve por três meses, o que evidencia um desgaste nas relações
interpessoais e profissionais entre os dirigentes da pasta e seus servidores. Essa
crise, que se tornou patente na greve, atingiu fortemente a delegacia de homicídios
quando em dezembro de 2013 o seu titular, Delegado Murilo Polati solicitou o
afastamento de três escrivães e dois agentes ali lotados alegando quebra de
hierarquia.
Não bastasse, quase cinquenta moradores de rua foram assassinados entre
agosto de 2012 e dezembro de 2013 e, ainda que não se possa atribuir todos esses
homicídios a agentes da polícia, há indícios de que alguns tenham ligações com
cobranças de dividas provenientes do consumo de drogas que teriam sido vendidas
por policiais traficantes. Os meios de comunicação local , imprensa escrita, rádio e
televisão, passaram a dar cobertura sistemática à ocorrência de homicídios e a
resposta dada pelos setores ligados à Segurança Pública, seja da policia civil, militar
ou Secretário da pasta é, recorrentemente, que dentre 75% a 90% dos crimes de
homicídio teriam relações com “acerto de contas” provenientes do tráfico de drogas.
O tráfico de drogas é indubitavelmente um fator que contribui para o
acréscimo de homicídios no Brasil, sobretudo a partir da década de 1980, essa é
uma hipótese assumida por vários pesquisadores do tema, mas ao mesmo tempo
causa estranheza a certeza com que se afirma porcentagens tão altas de motivação
de homicídios conectadas ao tráfico de drogas, tendo em vista, sobretudo, que
somente cerca de 30% dos crimes são apurados. Dados da ENASP – Estratégia
Nacional de Segurança Pública, apontam Goiás como o segundo estado brasileiro
dentre os que mais arquivam inquéritos relativos a homicídios e também dentre os
que menos solucionam o crime. E, ainda, diante da precariedade de dados relativos
ao problema, como se pode afirmar peremptória e sistematicamente que em
somente dentre 10 a 25% dos homicídios o tráfico de drogas não foi a motivação?
A postura do estado, que não tem as informações necessárias para
esclarecer o fenômeno e, mesmo não as tendo, o atribui majoritariamente a uma
única causa poderia por si só denotar uma ação, mais que uma omissão? Se o
Estado reduz o problema dos homicídios ao tráfico de drogas, isso pode significar
uma postura desse estado em relação às pessoas que morrem vitimas de
homicídio? Sabe-se que pessoas envolvidas com o tráfico de drogas são
satanizadas tanto pelos meios de comunicação como pelo estado, inobstante que a
proeminência do trafico de drogas se dê em virtude de problemas sociais que são os
verdadeiros fomentadores do “exercito de mão de obra” formado por jovens sem
qualificação que colocam suas vidas à disposição desse mercado. Assim, reduzido o
problema a uma parcela indigesta da população , a omissão do estado em relação
ao problema pode parecer mais tolerável, uma vez que pouco se pode fazer para
proteger pessoas que se colocam em uma situação de risco, como no caso do
envolvimento com drogas.
A Precária produção de dados que poderiam contribuir para se compreender
o fenômeno decorre de uma postura deliberada, uma maneira de agir em relação às
vitimas de homicídio que são provenientes majoritariamente das camadas pobres? a
fim de, além de compreender o crime em si, compreender quem são as vitimas
desse crime.
7 Referencia às Operações Sexto Mandamento e Monte Carlo, da Policia Federal e
Operação Resgate, da Polícia Civil, conforme será discutido adiante.
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O crime de homicídio como um problema social e sociológico
O crime, como objeto de análise, não é uma categoria dada a priori, pois para
que uma ação ou omissão sejam consideradas criminosas é necessário que haja
uma lei que assim as defina e essa definição pode variar de acordo com o contexto
histórico, cultural, político e até mesmo científico. A criminalização e
descriminalização de ações ou omissões dependem, pois, do contexto. A primeira
tarefa imposta a quem se dispõe a analisar o crime é a sua contextualização e
problematização, e a segunda, tentar compreender os motivos por que os crimes
ocorrem, quais fatores podem interferir na sua incidência, e o que pode ser feito para
preveni-los.
As teorias que se propõem a essa incumbência também variam de acordo
com o contexto histórico e cultural. De um modo geral, essa tarefa abarca
compreender a relação entre o autor e a vítima do crime, as circunstâncias em que o
crime ocorre, o ambiente socioeconômico e cultural, os fatores que intervieram no
evento e, em outra ponta, quais as medidas podem ser adotadas para prevenir e
evitar que crimes aconteçam e disturbem as relações sociais.
O crime de homicídio, por lesar a vida, que é o bem mais relevante, não
enseja controvérsias legais, embora na prática a condenação pelo crime possa
sofrer variações. Homicídio passional praticado contra mulher supostamente
adúltera foi tolerado no Brasil até a década de 1980 para, a partir dai, ter o
julgamento amenizado em muitos casos sob o argumento de que o autor agiu sob
forte emoção. Homicídio praticado pela polícia contra pessoa que tenha sofrido
condenação anterior, ou em uma zona supostamente de conflito, como as favelas no
Rio de Janeiro e bairros pobres de periferia de grandes cidades são amenizados, ou
até mesmo tolerados.
Cerqueira e Lobão (2003) sumarizam os principais modelos teóricos relativos
à busca dos fatores determinantes da violência e criminalidade. A intenção dos
autores não é a de optar por uma teoria apenas, mas, ao contrário, empreendem no
sentido de interpretá-las como nuances que podem auxiliar na composição de um
quadro geral. Enumeram cinco principais grupos teóricos8, que adotam como fator
causador do crime: a) patologia individual; b) atividade racional de maximização do
lucro; c)sistema perverso ou deficiente; d)desorganização social na sociedade
moderna e; e)situação e oportunidade. Essas teorias, em tese, devem levar em
conta a “compreensão das motivações e do comportamento individual e a
epidemiologia associada, ou como tais comportamentos se distribuem e deslocam
espacial e temporalmente” (p.236)
Segundo os autores, a primeira, de cunho individual e que tem por expoente
Cesare Lombroso, foi abandonada no pós segunda guerra, em virtude do seu forte
teor racista. Só recentemente tem sido retomada, mas sob duas novas perspectivas,
a da biologia social em que se agregam aos aspectos individuais as relações sociais
do indivíduo e a da neurobiologia, que busca as relações entre homicidas e
neuropatologias.
Quando tomado como uma atividade racional, os autores afirmam que o
marco introdutório da perspectiva econômica está no artigo “Crime and punishment:
an economic approach” escrito por Gary Becker em 1938. Para Becker, o ato
criminoso decorre de uma avaliação racional sobre a comparação acerca dos custos
e benefícios na aferição de vantagens por meio de atividades lícitas ou ilícitas e, no
caso da opção por ilicitude, computa-se a possibilidade de punição, ou “deterrence”.
Várias pesquisas citadas pelos autores adotaram essa premissa, embora com
8
Essa enumeração foi feita pelos autores a partir do trabalho CANO, I., SOARES, G. D. As teorias
sobre as causas da criminalidade. Rio de Janeiro: IPEA,2002, mimeo, ao qual essa pesquisa não teve
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ênfase em aspectos diferentes, umas com ênfase no poder dissuasório da punição,
outras no poder de benefícios sociais mínimos garantidos pelo Estado para
desestimular a adesão ao crime ou, ainda, por meio da análise das relações entre o
crime e: mercado de trabalho; renda; desigualdade; trabalhadores sem educação
especializada, dentre outras.
Soares (2011) critica a equação proposta por essa abordagem por deixar
considerações éticas de fora, pois a internalização diferente de éticas faz com que
indivíduos respondam de maneira diferente às mesmas condições e incentivos. E,
em referência a Fleisher9, adiciona que a desigualdade social opera em dois polos
nessa teoria: sob o ponto de vista do autor em potencial, quanto mais pobre, menos
expectativa terá em relação ao emprego legal e, quanto à vítima em potencial,
quanto mais rica, maior sua capacidade de gerar lucro ao criminoso. Esse modelo se
complexificaria, segundo Soares (2011) e Cano e Santos (2007), se considerado
que pessoas com bom nível social e educacional podem maximizar seus lucros sem
a necessidade de recorrer à violência, como no caso de crimes de colarinho branco
e, quanto ao cômputo da possível punição, Cano e Santos lembram que na América
Latina a possibilidade de um homicida ser morto, ou por reação da vítima, ou da
polícia ou por outro grupo oponente é alta, punição maior que qualquer previsão do
Código Penal.
Dentre as teorias que enxergam o crime como subproduto de um sistema
perverso, pode se associar a teoria da anomia, inicialmente proposta por Merton,
mas desenvolvida por vários outros pesquisadores que a ela incorporaram outros
argumentos e variáveis. A premissa geral dessa teoria está no descompasso entre
as aspirações pessoais de sucesso econômico e de status e as possibilidades e
oportunidades ofertadas pelo sistema. A distorção entre as expectativas em relação
à possibilidade de realizá-las, por condições externas ao indivíduo, gera uma
frustração que pode induzir à transgressão. A agressão, segundo Cano e Santos
(2007) tanto pode se direcionar às instituições portadoras das causas geradoras da
frustração ou pode ser difusa, e atingir até mesmo quem esteja na mesma situação
de frustração. Essa premissa pode, segundo os autores, ser útil na associação entre
desemprego e violência doméstica.
Aqui também se alinham as teorias de inspiração marxistas, que, de acordo
com Soares (2011), são predominantes no campo da sociologia latino americana,
quando se trata de analisar os fatores relacionados à criminalidade violenta. A
premissa é a de que, em virtude das desigualdades e injustiças inerentes ao
capitalismo, o proletariado, quando em estágio anterior ao de consciência de classe,
por meio da qual promoveria a revolução, recorreria à violência difusa como
resposta à opressão que lhe é imposta10.
Soares afirma que pesquisas empíricas que adotaram esse modelo e que
não conseguiram criar o nexo de causalidade entre essa teoria e as variáveis
independentes de cunho econômico, são de relativo valor na elucidação do
problema. O autor afirma que tanto as teorias de inspiração marxista, quanto
aquelas que veem o crime a partir da racionalidade econômica de maximização do
crime, partem da mesma determinante: a condição econômica. Para ele, esse
determinismo “macro” é problemático, pois a sobreposição da estrutura pode
obscurecer fatores de ordem subjetiva, somente captáveis se o pesquisador estiver
aberto à interdisciplinaridade, necessária para mapear as nuances de um fenômeno
multicausal e multifacetado, em que a maioria das pessoas expostas à mesma
“inserção estrutural”, não recorre à criminalidade. (p.152).
9 Fleischer, B.M. The effect of income on delinquency. American Economic Review,
v. 56, n. 5, p. 118--‐137, 1966.
10 Como se verá adiante, Misse (2003) chama essa crítica de Brechtiana.
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Cano e Santos (2007) afirmam que essa matriz é limitada para abordar
homicídios cujas etiologias sejam distintas das racionalmente determinadas, como o
homicídio passional, conflitos intersubjetivos que não envolvam razões econômicas
e, ainda, que não é fácil determinar sem equívocos a motivação econômica.
A teoria da desorganização social tem por referência o processo de
socialização do indivíduo, que se dá em relações condicionadas por fatores
estruturais. Em pares que se opõem, a organização social e/ou a presença de bons
laços sociais e familiares, seria um fator coibidor da criminalidade enquanto seu
contrário, um fomentador. Os autores apontam estudos que referendam essa
hipótese, quer no que diz respeito à relação inversa entre laços sociais, ou coesão
social e criminalidade e, por outro lado, positiva em relação à desagregação familiar
e presença de adolescentes sem supervisão.
Pode se inserir nesse grupo, a teoria da associação e diferenciação ou teoria
do aprendizado social, que analisa o processo pelo qual indivíduos orientam seus
comportamentos tendo por referência suas experiências pessoais relacionadas às
situações de conflito. Para tanto, toma-se em conta a supervisão familiar, a coesão
nos grupos de amizade, a moradia com pais e a relação tanto subjetiva quanto
objetiva com jovens delinquentes. (p.241).
E, por último, tendo por referencia a situação e a oportunidade, os autores se
referem à teoria do estilo de vida, que é uma abordagem que leva em conta a
interação entre a vítima e agressor (ambos em potencial) e a tecnologia de proteção
adotada no estilo de vida dessa vítima em potencial. Essa teoria diz mais respeito à
possibilidade de um crime ocorrer do que à sua causação propriamente dita, pois
seu foco está nos hábitos da vítima e não no comportamento ou racionalização do
criminoso ao escolher sua vítima o que, para os autores, a coloca em uma posição
mais tautológica que teórica.
Cerqueira e Lobão (op.cit) enumeram várias pesquisas feitas no Brasil no
sentido de apontar correlações entre a criminalidade e desemprego, desigualdade,
renda, educação, dentre outras e, em relação ao estudo que eles próprios fizeram,
tendo por premissa a teoria do crime como uma ação racional de maximização de
vantagens, considerando também a possibilidade de punição, concluem que
não há como equacionar o grave problema da segurança
pública deixando de enfrentar a questão da exclusão
econômica e social; e a mera alocação de recursos nos
setores de segurança pública a fim de replicar o atual modelo
de polícia – sem que se discuta a eficácia e eficiência – está
fadada a obter desprezíveis resultados para a paz social.
(p.256)
Em relação à premissa de que o desenvolvimento e a urbanização podem
criar atrativos para a prática de crimes, Waiselfiz, no Mapa da violência de 2012,
editado pelo Instituto Sangari, assume que a descentralização da economia
brasileira, com a transferência de fábricas para o interior, em busca de facilidades
fiscais e mão de obra barata, pode ser uma explicação para o que chama de
“interiorização” da violência, ou, um processo de migração dos polos dinâmicos da
violência para “áreas de menor tamanho e presença, não só demográfica, mas
também do poder do Estado” (p.42). Ou seja, associa ao desenvolvimento, à fraca
presença dos aparelhos repressivos do Estado nas cidades de pequeno porte como
um fator estimulador do acréscimo de homicídios nas mesmas.
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O grupo de pesquisadores filiados ao Observatório das Metrópoles 11 não
concorda com essa visão de que a violência se interioriza, embora concorde que a
urbanização acelerada contribuiu para a desorganização social, em virtude do
acréscimo populacional em um contexto em que bens e serviços não estão
disponíveis de modo a garantir condição digna de vida. Esses elementos
combinados desempenhem um papel relevante na dinâmica da criminalidade
violenta no Brasil. Ao contrário da interiorização, o grupo assume que as dinâmicas
violentas estão fortemente conectadas à proximidade em relação às cidades polos
das regiões metropolitanas.
Silva e Barbosa (2006) apontam que a população brasileira praticamente
decuplicou durante o séc. XX e tem mantido um crescimento vigoroso no séc. XXI. O
crescimento populacional acelerado é um fenômeno que se verificou por todo o
globo e é típico da revolução industrial, pela queda das taxas de mortalidade
associada à manutenção de níveis de fecundidade nas sociedades em
desenvolvimento (p.37).
Em relação ao Centro Oeste, os autores afirmam que a transferência da
capital para essa região, fez com que a participação da mesma na distribuição
populacional do país triplicasse, uma vez que até 1900 respondia por apenas 2,1%
e, ao final do século, por 6,8%, sendo que o período mais vigoroso de crescimento
se deu entre 1950 e 1980 (p.47). Outra alteração relevante lembrada pelos autores é
a que se deu no sentido de prevalência da população urbana sobre a rural. Em
1950, a população urbana correspondia a 36% do total da população, em 2000, a
81% e, pode-se acrescentar que, em 2010, a 84%, sendo que já em 2000, a região
centro oeste tinha 87% da sua população vivendo em área urbana.
De acordo com Lima (2006, p.113) os impactos provocados pelo afluxo
populacional em direção às regiões urbanas, não foi devidamente assimilado por
políticas públicas relativas às demandas por moradia, saneamento, educação e
saúde, o que afetou as condições ambientais e sociais das cidades e a infraestrutura
de serviços públicos. No que diz respeito à moradia, a autora afirma que mais do
que por meio de políticas públicas voltadas a programas habitacionais, elas foram
construídas ou por intermédio da iniciativa privada, ou por auto construções,
fenômeno também observado por Caldeira (2000). Os padrões de desigualdade
sociais foram mantidos, senão acirrados, nas populações urbanas. Sachs (2001),
afirma que essa urbanização prematura em uma sociedade profundamente desigual
“configurou um padrão de crescimento metropolitano marcado pelo contraste
gritante entre o luxo ostensivo dos bairros nobres e a proliferação das favelas”
(p.76).
11 O Observatório das Metrópoles é um grupo de pesquisadores que trabalha sob a
coordenação geral do IPPUR - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. As Instituições reunidas no Observatório
desenvolve trabalhos de maneira sistemática sobre 14 metrópoles e uma aglomeração
urbana: Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba, Goiânia, Recife,
Salvador, Natal, Fortaleza, Belém, Santos, Vitória, Brasília e a aglomeração urbana de
Maringá. (http://www.observatoriodasmetropoles.net/)
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O Atlas do Censo Demográfico de 2010 divulgado pelo IBGE12 aponta que
Goiânia e Brasília são as cidades brasileiras que mais recebem imigrantes, sendo
que esse saldo migratório faz com que a região metropolitana de Goiânia tenha tido
na década de 2000/2010 uma taxa geométrica de crescimento populacional acima
da media estadual e nacional, que são, respectivamente, 2,23%;1,84% e 1,17% ou
seja, comparada à taxa nacional, a taxa da região metropolitana de Goiânia é quase
duas vezes superior. A urbanização acelerada e desordenada tem em sua própria
dinâmica a proliferação de problemas sócias, como déficit de moradia e de serviços
públicos capazes de garantir a inserção digna na sociedade.
Katzman e Ribeiro (2008) afirmam que a qualidade das relações sociais esta
condicionada ao grau de desigualdade na distribuição de renda, poder e recursos
capazes de possibilitar o reconhecimento social. O traço mais valoroso das
metrópoles, para os autores, seria a possibilidade de funcionar como um espaço que
viabilize a sociabilidade entre os diferentes. Entretanto, as metrópoles brasileiras,
que se fundaram na desigual distribuição de terras e de oportunidades, apresentam
problemas crônicos que se intensificam com as alterações ocorridas no mundo do
trabalho e que implicam a segmentação e segregação social que esvaziam o
compartilhamento de códigos e, por conseguinte, a empatia e a capacidade de
identificar os problemas como sendo coletivos.
Se, por um lado, a desigualdade social vem se firmando como um fator
associado à violência e criminalidade, é importante que não se incorra no equívoco
de associar o crime à pobreza. A perspectiva que aqui se propõe, deve levar em
conta a relação entre a violência estrutural, ditada por desigualdades sociais e
escassez de oportunidades e a violência direta que resulta em morte, mas, reafirmase, buscando ter cuidado de não se deixar seduzir pela atrativa associação causal e
direta entre pobreza e crime.
Misse, (2006b) chama a atenção para a maleabilidade dessas duas
categorias, o que permite que adquiram “matizes mais ou menos abrangentes e
definições mais ou menos particulares, de modo a englobar outras variáveis causais
em uma ou outra categoria” (p.3). O autor lembra que essa associação ganha força
à medida que as análises criminológicas fundadas na patologia médica (Lombroso)
perdem espaço para aquelas fundadas na patologia social (Garófalo, Ferri e
Durkheim) que, no início do século XX, ganham aura de cientificidade na esteira do
socialismo e do positivismo. A relação causal se consolida, conforme Misse,
valendo-se da ambiguidade inerente às duas categorias.
Importante abordagem teórica, especificamente sobre homicídios é a
tipologia proposta por Spierenburg (1996), que caracteriza as motivações de
homicídios a partir de dois eixos: o impulsivo-racional e expressivo-instrumental. O
primeiro eixo está relacionado ao estado psicológico do autor, enquanto o segundo
ao significado social do ato. Como o próprio nome diz, a violência impulsiva seria
aquela decorrente da imediaticidade da reação do autor, em caráter irrefletido e não
premeditado, refletindo um padrão de sociabilidade frustrada, incompleta, mais
características nas sociedades em que o monopólio da violência pelo Estado não foi
capaz de “criar os constrangimentos externos que levariam à racionalização da
conduta e o autocontrole” (p.). O melhor controle de impulsos e reações, decorrente
do processo civilizador, teria, para o autor, reduzido esse tipo de homicídio
impulsivo, próprio das sociedades tradicionais, isso, no contexto geral da Europa e
específico da Holanda.
A pesquisa a respeito de homicídios enfrenta, além dos problemas teóricos,
que variam temporal e espacialmente, problemas metodológicos. As premissas
teóricas devem enfrentar o dilema entre uma abordagem macro ou micro orientada,
12 http://censo2010.ibge.gov.br/apps/atlas/
1781
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
a percepção do crime como um problema de ordem sócio econômico; ligado à
fraqueza das instituições ou à deficiência em se viabilizar uma sociabilidade
satisfatória, ou seja, um problema estrutural ou, mesmo sem negar os aspectos
estruturais, se deve ser percebido como um problema de ordem cultural, captável
por meio de uma abordagem que inclua a interpretação que os agentes aplicam ao
contexto em que vivem e os significados que atribuem às experiências que
vivenciam.
A aferição de tais premissas enfrenta problemas metodológicos de várias
matizes, como a má qualidade de dados, sobretudo em países, como o Brasil, em
que a área de segurança pública é deficiente em accountability. A deficiência dos
dados pode decorrer tanto em relação à sua qualidade, quanto à disponibilidade,
quer pela gestão pouco democrática, quer pelo baixo nível de elucidação dos
homicídios no Brasil, que trazem pouca informação sobre o autor, a circunstância e
a motivação do crime. Não bastasse as escolhas metodológicas, ainda devem lidar
com a dificuldade de se relacionar variáveis independentes sem que elas
mantenham relações muito fortes entre si e assim prejudiquem a confiabilidade das
conclusões.
O Brasil parece mesclar uma série de fatores que têm sido analisados em
estudos empíricos como fomentadores do crime de homicídios. Embora seja a
sétima economia no mundo, e ainda que nos últimos anos tenha adotado políticas
públicas inclusivas e de distribuição de rendas, persistem severas desigualdades
sociais; segregação social e espacial; déficit de bens e serviços públicos;
urbanização acelerada e desordenada; forte presença do mercado ilegal de drogas e
armas; altos índices de corrupção policial; cultura machista em que o etos da
masculinidade é associado ao comportamento violento; baixa efetividade do sistema
jurídico punitivo; precarização das relações de trabalho em um contexto no qual o
acesso às oportunidades de mobilidade social por meio de trajetos socialmente
valorizados e reconhecidos, ou seja, estudo e trabalho, é renegado a uma grande
parcela da população.
O plano de segurança proposto pelo governo de Goiás para vigorar entre 2012
a 2022 e o como se tem exercido o monopólio da força
O planejamento da segurança pública pelo Estado reflete a
concepção do governante a respeito do problema. Planejamento requer
conhecimento e a qualidade de dados concernentes ao fenômeno irá influenciar
significativamente a qualidade do planejamento. Em um contexto de crise nos
setores de Segurança Publica de Goiás, tanto no âmbito da Polícia Civil , quanto da
Militar, foi contratada a empresa Brainstorming, de assessoria de planejamento e
informática 13 , para elaborar um plano de gestão estratégica da Secretaria de
Segurança Pública, previsto para vigorar entre 2012 e 2022. Essa pesquisa solicitou
informações a respeito do contrato celebrado entre o estado e a empresa
Brainstorming e obteve como informação inicial, prestada pela Superintendente de
Gestão Planejamento e Finanças do Estado, Luciana Daher, que o mesmo foi
custeado em uma parceria público privada entre o Movimento Brasil Competitivo e a
Secretaria de Planejamento, a quem deveriam ser solicitadas as informações.
Em uma nova consulta à Ouvidoria do estado de Goiás, essa pesquisa
solicitou informações sobre cláusulas essenciais do contrato como, prazo, valor,
objeto, possibilidade de termo aditivo, dotação orçamentária que o custearia, assim
como qual o procedimento licitatório havia antecedido a celebração do ato. A
resposta veio por meio do memorando 55/2013 expedido pela Superintendência de
Modernidade Institucional da Secretaria de Estado de Gestão e Planejamento e, de
acordo com o teor do documento, o contrato não gerou qualquer ônus ao Estado de
13 O endereço eletrônico dessa empresa é http://www.brainstormingweb.com.br
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Goiás teria decorrido de um Termo de Cooperação firmado entre o estado de Goiás
e o Movimento Brasil Competitivo14 .Esse Termo de Cooperação, ainda segundo o
memorando , previa ações em vários setores, como educação, meio ambiente,
fazenda, segurança pública, saúde e planejamento, o que confirma a percepção de
Rose e Miller (1992) a respeito da atual tendência nas democracias liberais de uma
interação entre o Estado e a iniciativa privada na definição de ações e políticas
públicas em funções antes consideradas como privativas do Estado.
O planejamento oferecido pela empresa se baseia no método criado por um
de seus sócio-fundadores, denominado Método Grumbach, que se opera por meio
das seguintes etapas : a) identificação do sistema; b) diagnóstico estratégico; c)
analise de causas e consequências ; c.1) medidas reativas, c.2) medidas pré ativas
e , c.3) medidas pro ativas; d) objetivos, análise de medidas e iniciativas
estratégicas. Ainda segundo o plano (p.23) a adoção do método Grumbach irá
permitir a “priorização e sincronização das iniciativas estratégicas para posterior
gerenciamento de projetos e monitoramento de indicadores de desempenho,
traduzindo-se em um planejamento e gestão orientados para resultados, de acordo
com o balanced scored card (BSC)”.
No endereço eletrônico da empresa há um organograma detalhado a
respeito das etapas e estratégias do método Grumbach, mas o que aqui interessa é
o fato de que o plano é calcado em uma linguagem tipicamente do campo da
administração de empresas, cujo objetivo é maximizar resultados, atingir metas, em
uma abordagem próxima ao princípio da eficiência, incorporado ao art. 37 da
Constituição Federal, por força da Emenda Constitucional 19 de 1998, e se coaduna
com a noção de administração gerencial , própria do neoliberalismo.
Essa concepção, que se contrapõe à ideia de Estado burocrático
(Paulo e Alexandrino, 2008) e, por consequência, a certos mecanismos de controle
próprios da burocracia, é condizente com a visão neoliberal de Estado pois, mesmo
reconhecendo que o Estado tem determinadas funções que lhe são peculiares, e a
segurança pública é uma delas, essas funções não devem se pautar no modelo de
gestão legal-burocrática, cercada de controles como a exemplo os procedimentos
licitatórios, mas gerencial, por meio da busca de resultados e eficiência, conforme o
padrão próprio do setor
privado. Um termo recorrente a esse princípio é
“excelência” no desempenho das atribuições estatais, que deve ser obtida por meio
da racionalidade.
O intuito de se citar trechos do plano, como aqui se faz, é o de
evidenciar que os termos mais usados são próprios da perspectiva gerencial,
usualmente aplicável à gestão de empresas privadas , cujos objetivos são mais
facilmente definíveis do que no caso de políticas publicas que envolvam uma
complexidade de fatores, como segurança pública. Pode-se afirmar até mesmo , que
a Segurança Pública é o setor mais complexo dentre as funções essenciais do
Estado, pois é mais fácil que se chegue a um consenso a respeito do que seria uma
política ideal para a educação ou saúde, por exemplo, em que, embora requeiram
que sejam observadas as possibilidades orçamentárias, é quase inconteste a noção
de que a universalização do atendimento de qualidade é um ideal a ser alcançado.
No campo da segurança pública, oscila-se , até mesmo ideologicamente, entre uma
política de recrudescimento penal, com penas, punições e abordagens mais
severas, e uma política que inclua a dimensão social do problema e que adote o
14 O movimento Brasil Competitivo, que é uma associação civil de direito privado e
interesse público, sem fins lucrativos ou interesses econômicos, de acordo com o exposto
em seu endereço eletrônico
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
enfrentamento da desigualdade social e desigualdade de acesso a serviços
educacionais, culturais e oportunidades de mobilidade social.
Enquanto o termo “excelência” foi utilizado por treze vezes ao longo das 116
paginas do documento, a palavra homicídio aparece por uma única vez e da
seguinte forma :
nacionalmente, o crime organizado tem investido grandes
somas de recursos para fortalecer o tráfico de drogas ilícitas,
que é uma das modalidades criminosas mais rentáveis no
país e no mundo. Diante disso, o índice de homicídios
envolvendo
traficantes
e
viciados
aumentou
consideravelmente, principalmente nas regiões com menor
índice de desenvolvimento humano ou composta por grupos
historicamente excluídos(2012 p.17)
Panaceia de todos os males, a racionalidade na aplicação de recursos
parece por si só ser suficiente para “que sejam solucionadas ou mitigadas as causas
dos problemas que envolvem o setor (da segurança pública) e não somente a
resolução de dificuldades do dia a dia” (2012,p.18). Por meio da construção de
“cenários prospectivos e monitoramento de indicadores” (p.31). Pela definição do
plano, cenários prospectivos consiste em uma ferramenta, e que o plano estratégico
foi construído com o objetivo de ser capaz de dotar o setor de ferramentas “para
auxiliar no processo de tomada de decisão” (p.31). A interação entre entidades
governamentais e a iniciativa privada nas democracias liberais tem sido analisada
por Foucauldianos, como Rose e Miller (1992) que propõem que a analise acerca do
poder político, ou a “investigação da problemática do governo” (p.175) não pode
prescindir da percepção a respeito de como a racionalidade política tem se valido de
aparatos de conhecimentos e tecnologias que se propõem a “conhecer, calcular,
experimentar e avaliar” e, em suma, viabilizar que o poder político se opere.
Às páginas 95 e 96, respectivamente, em que se expõe as características do
método Grumbach, define-se a gestão estratégica como “processo contínuo de
redução de variabilidade no sentido de se atingir os objetivos desejados” e estratégia
como “um conjunto de decisões, tomadas no presente, sobre um futuro que é
desejado”. À frente (p.101) afirma-se que o método é capaz de monitorar o futuro
por meio da ‘modelagem de cenário’, ou de utilização de ‘cenários prospectivos’ ,
que no método em questão, englobam “dois tipos de postura estratégica : pré ativas e pró-ativas” (p.103) a primeira, no sentido de preparar a instituição e a
segunda relacionada à construção de “futuros alternativos”. Esses cenários
estratégicos, de acordo com o plano, (p.103) devem levar em consideração as
interações estratégicas. O exemplo dado para interações estratégicas é o dos
“dilemas sociais”, que é assim definido”
Os dilemas sociais estudam as situações em que a
racionalidade individual conduz a uma irracionalidade
coletiva. Nessas situações, cada individuo recebe uma
recompensa maior por não cooperar com os demais;
contudo, se todos os indivíduos fizerem a mesma escolha, o
resultado será pior que aquele que seria obtido por
cooperação coletiva (p.103)
À frente, propõe-se a utilização da “teoria dos jogos” como uma modelagem
matemática dos dilemas sociais. O futuro seria visualizado, pois, pelo equilíbrio de
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Nash, que seria adotado como “o ponto zero para todo o processo de construção de
futuro”. Há, portanto, uma crença ferrenha de que métodos científicos e modelagens
matemáticas , poderiam mensurar e controlar os ‘dilemas sociais’, lá definidos como
e resumidos a um jogo de racionalidades e irracionalidades (p.108).
Rose e Miller (1992) entendem que a “racionalidade política” é uma
ferramenta necessária para se compreender as formas modernas de governo, assim
como é necessário que se compreenda que essa racionalidade é moldada por uma
moral que irá definir tarefas a serem cumpridas no sentido de se alcançar
determinados fins e princípios, como “liberdade, justiça, igualdade, eficiência
econômica, crescimento”. Além do aspecto moral, essa racionalidade traz um
componente epistemológico , que definirá a concepção a respeito do que será objeto
de governo, “sociedade, nação, população, economia”, o que significa dizer uma
definição a respeito de sobre quem ou o que o governo será exercido (p.179).
O Estado deve ser compreendido, portanto, como uma maneira específica
em que a “esfera política” e suas especificidades é dividida com as “esferas não
políticas” e a maneira pela qual essas esferas se relacionam e interagem a partir de
certas tecnologias de poder, ou conhecimento produzido por “pessoas, teorias,
projetos, técnicas” (p.177) que têm um papel central na definição de governo. A
problemática definição entre o real e o ideal, e as falhas e dificuldades que se
operam nessa adequação entre o desejável e o realizável é que vão orientar
programas de governos. Referindo-se à Grã Bretanha e Estados Unidos, os autores
afirmam que a linguagem da “eficiência” (p.181) fez com que programas de governo
passassem a se basear em teorias e explicações por meio das quais se poderia
domar a mais refratária realidade. Ou seja, tais programas evocavam determinados
tipos de conhecimento como capazes de tecnologizar o campo social. (p.183). A
figura do “expert” seria a corporificação da neutralidade, que se opera por meio de
uma ética “acima do bem e do mal” (p.187).
Quando se analisa o Plano Estratégico e se percebe que as ocorrências de
homicídio praticamente se reduzem um problema entre “traficantes e viciados” (p.17)
e que os “dilemas sociais” se limitam a um jogo de racionalidades e irracionalidades
passíveis de serem previstas, mensuradas e controladas por meio de modelagem
matemática, percebe-se que que é cabível a percepção de Rose e Miller quanto à
racionalidade política e as tecnologias de poder aplicadas pelas democracias
liberais.
Entretanto, deve-se sempre ter em mente que a realidade brasileira não pode
ser analisada por meio das mesmas ferramentas pelas quais se avalia a ascensão
das doutrinas e práticas de governo neoliberais na Europa e Estados Unidos. Essa
ressalva se aplica ainda mais a Goiás, onde por um lado se adota um discurso de
eficiência e excelência próprios dos estados neoliberais e, por outro, as práticas,
sobretudo no campo da segurança pública, se coadunam com um modelo
autoritário, em que o poder não se exerce por meio de tecnologias que viabilizam o
“governo à distância” mas, ao contrário, se exerce nos moldes do poder soberano,
para se usar Foucault, em que o soberano , aqui pensado como as forças policiais
que representam o governo em seu mister relativo à segurança pública.
O paradoxo da segurança pública goiana : racional no discurso, soberana na
prática
1785
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Hacking (1992) , afirma que a estatística tem influenciado imensamente as
ciências humanas tendo em vista que, para além da metodologia, ela tem
influenciado na definição de leis e fatos sociais, assim como tem engendrado
conceitos e classificações no âmbito das ciências sociais. Mais do que mera
informação ela se constitui em uma tecnologia de poder à disposição do Estado
contemporâneo. Por meio das estatísticas, passou-se a mensurar a felicidade e
infelicidade, a moralidade, criminalidade, divórcio, índice de condenação nos
tribunais mas, para o filósofo, é relevante pensar que a estatística além de criar
regras e ações administrativas, é capaz de criar classificações por meio das quais as
pessoas irão se enxergar e pensar a respeito de suas vidas e das ações que lhes
são possíveis.
Relativamente a dados sobre crimes, Chambliss (1999) chama a atenção
para a potencialidade de equívocos quando dados sobre crimes sejam elaborados
por setores da burocracia que tenham interesse em “enganar o público” (p.35). Seja
por necessidade de atrair investimentos para determinado setor ou para induzir o
público a crer que a situação está sob controle ou, ao contrário, que determinado
tipo de crime aumenta e requer medidas antissociais. Nesse sentido, em relação ao
Brasil, Lima (2005, 2008 e 2011).
Chambliss (1999,p.55) lembra que as consequências de distorções relativas
à politização das estatísticas criminais reverberam na vida de pessoas, sobretudo
daquelas que, na concepção da mídia e do público geral são os fomentadores da
violência. Em relação aos Estados Unidos, e nesse caso, não difere do Brasil, o
autor afirma que, ainda que ocorram graves crimes corporativos, em bancos e em
“wall street”, as classes pobres, os jovens negros, são vistos como violentos e há
uma demanda de que um forte esquema de controle seja a eles dirigido.
O aumento do temor em relação a essa parcela da população tida como
perigosa, aumenta, por conseguinte, a lacuna entre as comunidades negra e branca
nos Estados Unidos e justifica um massivo encarceramento da população jovem,
pobre e negra. A mudança de hábitos em virtude do medo , por um lado, e o
preconceito que fomenta politicas públicas equivocadas afeta negativamente a vida
de todos, segundo o autor. A polícia urbana se militariza, e se torna mais dura e seu
comportamento desconsidera garantias e direitos constitucionais.
Desproporcionalmente, as atividades voltadas ao controle do crime se
concentram na população estereotipada como “inerentemente criminogênica” e o
crime nos guetos americanos podem ser considerados uma “profecia que se auto
completa” (p.63). Partilham dessa opinião, em relação ao Brasil, Misse (2006) e
Beato e Reis (2000).
De acordo com a classificação pela qualidade de dados relativos à
segurança pública feita pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, Goiás se
insere no grupo 1, que vem a ser o grupo dos que preenchem adequadamente os
dados no SINESP 15 , o que não impede que distorções relativas aos dados de
homicídios ocorram, de maneira semelhante ao que constatou Cerqueira (2012) em
relação ao estado do Rio de Janeiro. De acordo com Abreu e Falcão (2013) ,
jornalistas de O Popular, o jornal contabilizou em 2013 até o mês de novembro 556
15 Sistema
Nacional de Estatísticas de Segurança Pública e Justiça Criminal
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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(quinhentos e cinquenta e seis) homicídios em Goiânia, enquanto para a Secretaria
de Segurança Pública, esse número seria 528 (quinhentos e vinte e oito) e em 2012
os números são, respectivamente para a contabilidade do jornal e da Secretaria, 547
e 577. A divergência é justamente porque os dados da Secretaria não incluem as
mortes havidas por confronto (forjado ou não) com a polícia.
Pensar o papel das estatísticas e, sobretudo a produção e interpretação dos
dados relativos a crime é para Foucault (1991); Hacking (1992); Garland (1997);
Chambliss (1999); Hargetty (2001) pensar de que forma o Estado classifica,
interpreta e a partir dessa produção de conhecimento, irá agir em relação ao
problema do crime. Em síntese, conforme Lima (2005)
As estatísticas criminais tendem a falar mais do que é
considerado pertinente pela burocracia do sistema de justiça
criminal do que traçar as características de crimes e
criminosos [...] A importância de discutir os processos de
produção de estatística está, exatamente, na possibilidade
teórica de revelarem o grau de adesão das práticas de poder
aos requisitos democráticos de transparência e controle
público do poder. (p.32)
Kitsuse e Cicourel (1963) lembram que os esforços teóricos da “sociologia do
desvio” em apontar os fatores sociogênicos presentes na estrutura social capazes
de contribuir para a compreensão da criminalidade esbarram no fato de que
pesquisadores tendem a orientar metodologicamente suas pesquisas de modo a não
distinguirem os comportamentos desviantes que produzem processos
criminogênicos das taxas que apontam a incidência de crimes, ou seja, por partirem
da premissa de que tais taxas podem ser necessariamente explicadas pelos
comportamentos e propõem uma reflexão sobre essa distinção a partir da
averiguação a respeito de como determinados comportamentos desviantes são
produzidos e, concomitantemente , como as taxas sobre tais comportamentos são
geradas, ou seja, numa reflexão que inclua a percepção relativa à conveniência ou
confiabilidade de dados estatísticos oficiais.
Os autores afirmam que os processos constitutivos das taxas de
comportamentos desviantes estão diretamente relacionados com “as ações
adotadas por pessoas que, no sistema social, definem , classificam e registram um
comportamento como sendo desviante” (p.135) e que os critérios utilizados para a
aplicação de uma definição ou categorização de uma conduta podem ser vagos, ou
seja, a definição do que venha a ser vandalismo, ofensa sexual, podem ser
influenciados por questões organizacionais, políticas e ideológicas. Em sentido
semelhante, Agamben (1998), o Misse (1999 e 2006 c) ao questionarem os
processos que definem o que é crime e criminoso .
O papel das estatísticas, de acordo com Foucault (2005), são fundamentais
para se perceber as mudanças operadas no Estado quando se quer captar as
diferenças entre os mecanismos de poder próprios do modelo ‘soberano’ que se
baseia em fundamentos jurídico políticos para aqueles aplicados no modelo da
‘governamentalidade’ no qual dispositivos de saber eivados de ideologia são
utilizados visando à dominação das populações. Elas passam a ser, pois,
instrumentos necessários ao exercício do poder, como uma tecnologia colocada a
serviço do governo.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Feitas essas ressalvas quanto ao fato de que as estatísticas não podem ser
tomadas como absoluta revelação de verdades, posto que sua produção está
condicionada a relações de poder, interesses políticos, ideologias, interferências
tanto internas relativas aos atores que as produzem quanto externas relativas, por
exemplo, à pressões feitas pela mídia, opinião pública e interesses eleitorais. Não
por acaso, a exemplo, o Governador de Goiás, candidato à reeleição, elegeu 2014,
ano eleitoral, como o ano da Segurança Pública. O que significa que ele terá que
mostrar resultados numéricos de redução da criminalidade violenta no estado, posto
que a (in) segurança é preocupação dos eleitores e da imprensa local. Não obstante
tais ressalvas, é importante lembrar a relevância das estatísticas dentro da
“necessidade governamental, sobretudo, de dados que permitam o aumento de
conhecimento sobre a realidade e, por conseguinte, a possibilidade de desenhos de
políticas e ações de intervenção .” (LIMA, 2005, p.34). Dito de outro modo, a
qualidade dos dados a respeito de crimes tanto no sentido de sua produção ,
circulação e inteligibilidade é fundamental para o sucesso ou insucesso de uma
política ou plano traçado visando à contenção do crime. Quando se diz qualidade,
mais do que mera contabilidade de crimes, é necessário que os dados permitam que
se compreenda as dinâmicas e processos que circundam os eventos criminosos.
Se a Estatística é a ciência que sustenta a racionalidade da
governamentalidade, a falta de dados inteligíveis associada ao elevado índice de
violências cometidas pela polícia goiana pode levar a se pensar o exercício do poder
no modelo soberano?.
as estatísticas assumem papel de destaque e podem servir
de ‘accountability’ do sistema de justiça criminal. Neste
processo, nota-se a força de um fenômeno crucial para a
organização do modelo de justiça criminal e que se opõe à
incorporação da transparência e da publicidade dos atos
burocráticos tomados no âmbito do sistema acima citado.
Trata-se do segredo embutido na “arte de governar” e
distribuir justiça. Desta maneira, o acesso à informação
transforma-se, nas organizações de tal sistema, em fator
estratégicos desses jogos de poder (LIMA 2005p.34-35)
Venas Da e Poole (2004) se propõem a pensar o Estado na atualidade
adotando uma estratégia em que ele , Estado, não seja reduzido a uma organização
política que assume uma forma racionalizada de administração e que, por força das
mudanças operadas em virtude de recentes reformas políticas e econômicas ,tem se
enfraquecido, ou encolhido suas atividades de regulação. A estratégia proposta é a
de pensar o Estado em suas práticas regulatórias , disciplinares, e políticas,
sobretudo aquelas dirigidas ao que chamam de ‘margens sociais do Estado’ (p.3). O
que é mais interessante nessa proposta é que essas ‘margens’ não são vistas como
uma excepcionalidade mas como constitutivas do Estado, um componente
necessário, mesmo se pensados os Estados ‘bem sucedidos’ como os liberais
europeus.
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A chave para compreender o Estado em suas margens, segundo as autoras,
seria a relação entre a violência e as funções de ordenação do Estado, numa
proximidade com a concepção Weberiana de monopólio legitimo da força como
função definidora do Estado. Dentro da concepção de legitimidade ou ilegitimidade
da violência, haverá sempre um espaço onde o Estado não impôs suas regras, em
que a selvageria do ‘estado natural’ (Hobbes, Kant, Locke e Rousseau) ainda não
completamente ‘educado’ ou ‘racionalizado’ faz com que os interesses particulares
sejam colocados acima dos interesses sociais, cívicos e coletivos e , portanto,
surgem como formas ilegítimas que ameaçam o Estado. Pensar as margens do
Estado é, para as autoras, pensar os espaços, não meramente territoriais, mas os
espaços em que o inequívoco controle legitimo do Estado não se faz claramente
presente e em que o Estado se refunda em suas funções relativas a lei e a ordem
em práticas que emanam das demandas políticas e econômicas da população.
Embora não proponham uma definição unívoca de ‘margens do Estado’ as
autoras acreditam que as definições gravitam em torno das ideias Foucaudianas de
soberania e disciplina, como formas de exercício de poder o que lhes permite sugerir
três conceitos de margens16 dos quais, interessa a essa pesquisa principalmente o
primeiro, que dá primazia à ideia de margens como periferia vista para criar espaços
naturais para pessoas consideradas insuficientemente socializadas pela/para a lei e
busca compreender as específicas tecnologias de poder – força e pedagogia de
conversão- por meio das quais o Estado administra ou pacifica essa população.
As autoras retomam os conceitos de “homo sacer” “vida nua” em Agamben
(1998) e também de Estado de Exceção (2005) para pensar nas pessoas que não
são acolhidas nem pela lei divina, nem pela lei humana. O homo sacer é uma figura
da lei romana arcaica que, destituída de direitos divinos ou seculares, poderia ser
assassinada sem que o autor fosse condenado por homicídio. Ela não poderia ser
sacrificada, já que não era amparada pelas leis divinas, e nem sua morte ensejaria
punição por parte das leis elaboradas pelos homens, já que estava fora do alcance
também desta lei.
A ideia contida em Estado de Exceção de Agamben, é apropriada pelas
autoras como uma conexão entre essas pessoas passíveis de serem assassinadas,
destituídas de direitos políticos e a soberania exercida dentro e fora da lei, mediante
16 O livro organizado pelas autoras que aqui se discute é o resultado de um seminário que
aconteceu em 2001, em Santa Fé, México, organizado pela School of American Research,
em que antropólogos que desenvolvem seus trabalhos em diferentes países foram
convidados a pensar a contribuição que a antropologia tem a dar na compreensão do
Estado.
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formas de regulação especificamente dirigidas a elas. Segundo elas, para Agamben,
as pessoas que estão excluídas da proteção do Estado no Estado de exceção são
espectros fantasmagóricos, mas elas discordam, pois acreditam que as exclusões
resultam de práticas incorporadas ainda hoje na vida cotidiana, como, por exemplo o
exercício de autoridade por parte da polícia e de ‘chefes locais’ que, assim como os
homo sacer, são considerados fora do alcance da lei. A descrição que as autoras
dão sobre essas pessoas que operam a autoridade, ao mesmo tempo
personificando o Estado, mas fora da lei, “numa apropriação da justiça privada e da
violência” (p.14) remete à apropriação de um poder inerente ao Estado, mas para
fins particulares, conforme a definição que Misse (2005) da `a categoria
‘mercadorias políticas’.
Assim como Foucault, as autoras definem o poder soberano como o poder
exercido sobre a vida e a morte, e a vida, nesse caso, é relacionada com a lei, ou,
mais enfaticamente, é produzida pela lei. Mas aqui não se partilha a compreensão
das autoras quanto ao fato de Agamben tratar as exclusões como “espectros
fantasmagóricos” , pois aqui se assume que a intenção de Agamben (2005) , ao
trabalhar o Estado de exceção, tenha sido justamente a de apontar que ainda
persistem, mesmo nos estados democráticos contemporâneos um espaço destituído
de lei (p.50) . Ele situa o Estado de exceção entre a lei e o fato político, entre a
ordem jurídica e a vida (p.1); compreende que o totalitarismo moderno é o
estabelecimento de uma guerra civil legal, por meio do Estado de Exceção, que
permite a eliminação física de determinadas categorias (p.2) e, por fim, adiante
(p.87) afirma que hoje o Estado de Exceção atingiu seu nível máximo de
desenvolvimento. Entende-se aqui, pois, que ele não está tratando de um fantasma,
mas dando continuidade ao raciocínio iniciado anteriormente quanto trata do homo
sacer e da vida nua, como um elo para se pensar as exclusões que se operam na
vida política, e que são inerentes à arena política.
As interceptações de ligações telefônicas que
subsidiaram a operação
“Sexto Mandamento” deflagrada pela Polícia Federal para investigar a ação de um
grupo de extermínio operado por integrantes da Polícia Militar , cujos teores foram
divulgados pelo Jornal O Popular em 03 de março de 2013, apontam que
simulações de “confronto” entre ladrões e policiais eram feitas com frequência, que
um policial que compunha o grupo afirmava “eu mato por satisfação”, que os
confrontos forjados eram planejados, comentados e celebrados pelos policiais
envolvidos , de diferentes patentes e que, mais grave, as práticas contavam com a
anuência do então secretário da Segurança Pública, que promovia os participantes
1790
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ISSN: 2317-0255
do grupo a patentes mais elevadas, e isso ocorreu com o policial considerado o líder
do grupo, que foi promovido a Tenente-Coronel
Uma reportagem publicada no jornal o Correio Braziliense, em maio de 2011
mapeava os casos de violência policial em nove cidades do Estado, justamente
cidades em que policiais presos na operação Sexto Mandamento tiveram atuação.
Havia caso de chacinas de cinco jovens foragidos da prisão de uma cidade do
interior que foram claramente executados; ainda segundo a reportagem, que baseia
seus dados em peças do Inquérito Policial da operação em tela, o grupo de policiais
respondia por mais de 300 assassinatos e 36 desaparecimentos forçados, ocorridos
entre 2000 e 2011. Sob o comando de um dos réus da operação , membros da
ROTAM17 cometeram 117 homicídios no período compreendido entre 6 de março de
2003 a 15 de maio de 2005, somente na capital Goiânia. Dentre as 117 vítimas,
48,7% (57 pessoas) não tinham ficha criminal. Outras 60 (51,3%) eram foragidas da
Justiça ou acusadas de algum crime.
Vieira (2009) acompanhou em um estudo alguns familiares de pessoas
vitimadas por violência policial na cidade de Goiânia e em duas que integram sua
região metropolitana, Aparecida de Goiânia e Senador Canedo. Em seu
levantamento, feito a partir de Organizações Civis que apoiam vítimas e familiares e
denunciam violências policiais, relatos jornalísticos e denúncias apresentadas à
Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, o autor mapeou
ocorrências ocorridas entre 2003 e 2008 e chegou a impressionantes 44 (quarenta e
quatro) casos de homicídios/execuções; 9 (nove) casos de desaparecimento forçado
e 20 (vinte) casos de agressões físicas, que incluíam torturas. Dentre as vítimas,
72,60% não tinha qualquer problema anterior com a justiça, nenhum registro de
suspeita de cometimento de crime lavrado em delegacia de polícia, e 27,40%
apresentavam registro de ocorrência anterior registrado em delegacia.
De acordo com Oliveira (2013) , dado que os jovens figuram como principais
atores da tragédia dos homicídios no Brasil, duas vertentes contraditórias têm sido
proeminentes entre os discursos a respeito de políticas públicas voltadas a eles, os
jovens : uma que prega maior proteção social e outra maior vigilância e controle. O
autor compara o estado de Goiás com os demais da região centro-oeste e conclui
que o estado “se destaca de forma assustadora entre aquelas unidades em que a
população convive com a inexistência de políticas de enfrentamento da violência”
(p.181).
17 Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas – Grupo especial formado por policiais
militares de Goiás
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Do extenso relatório de pesquisa do Núcleo de Estudos de Violência da USP,
NEVUSP, que foi coordenada por Pinheiro (1999), assim como conclusões de
pesquisa de Izumino, Loche e Cubas (1998), percebe-se que , ressalvadas algumas
peculiaridades, o padrão de violências policiais tem similaridades em vários estados
no Brasil. Os pesquisadores cobriram o período entre 1980 e 1996 ocorrências
noticiadas em veículos de circulação nacional com envolvimento de policiais em
serviço ou fora dele consistentes em confrontos armados, torturas, espancamentos,
maus tratos e abusos de autoridade.
Relatório feito pelo Human Rights Watch em 2009, relativo às violências
policiais nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo chama a atenção para práticas
recorrentes das instituições de segurança e do próprio Poder Judiciário naquelas
unidades da federação que, no entanto, podem ser estendidas aos demais estados
brasileiros : a) acobertamento de casos; b) impunidade; c)falsos socorros
18
;
d)corrupção; e) intimidação de testemunhas; f) ocultação de provas19
Se a gestão transparente dos dados sobre crimes é imprescindível para o
exercício de uma segurança cidadã, democrática (Lima, 2005; Adorno, 1994,1999;
Cerqueira 2000; Beato Fº 2000; Kahn, 2000; Cardia , Adorno e Poleto, 2003; Ribeiro
2010, 2012 a) e, ao lado disso, se somente dados de qualidade poderiam fornecer
elementos para o planejamento de políticas de segurança capazes de combater a
criminalidade com inteligência e nos limites da lei o que a ausência desses dados ,
a fragmentação da circulação dos mesmos, a obscuridade e a falta de transparência
podem sugerir?
A Segurança Pública em Goiás padece de um paradoxo: diz-se pautar em
um plano estratégico baseado na racionalidade, proporcionada por modelagens
matemáticas e estratégias eficientes que proporcionarão um nível de “excelência”
ou, nas palavras do então Secretário de Segurança Pública, baseado em uma teoria
prospectiva capaz de gerar uma gestão “responsável, estratégica, de resultados,
eficiente, realizadora, palavras de um universo corporativo diferente que precisavam
ser aprendidas” (p.12) mas , em contrapartida, em suas práticas, forças policiais
praticam arbitrariedades de toda ordem , no uso de uma força desmedida e
desproporcional ao perigo que alegam combater.
18 Ocorrem quando a polícia leva os cadáveres das vítimas baleadas para hospitais e
nesse processo destroem as cenas do crime e/ou obstruem a capacidade de análise
forense.
19 Segundo o Relatório , é comum que se tire a roupa da vítima para se afastarem
evidencias de execução à queima--‐roupa.
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Se o plano se dá em uma linguagem racional ajustada aos moldes do
exercício de poder próprio do modelo da “governamentalidade” e as práticas, em
contrapartida, se dão nos padrões do exercício do poder próprio da soberania, em
que se pode decidir sobre a vida e a morte, o que esse paradoxo tende a dizer? O
que pode sugerir a omissão do Estado na produção, circulação e gestão de dados
de homicídios, na compreensão do fenômeno, na solução do problema?
Cardia, Adorno e Poleto (2003) dão a dica ao afirmarem que
No Brasil, ao menos, o crescimento da violência nas áreas
urbanas não pode ser adequadamente compreendido - e
conseqüentemente prevenido - , se o abismo que caracteriza
o acesso aos direitos econômico-sociais, para largos setores
da população, não for levado em consideração.(p.43)
E , adiante, lembram , assim como o fizeram Pinheiro 1999; Peralva
2000; Caldeira, 2000; Oliveira 2013, que a transição democrática brasileira não foi
condição suficiente para alterar as praticas de poder dos setores incumbidos da
segurança pública, persistem graves violações de direitos humanos, cuja proteção é
premissa fundamental à democracia. O “como” do poder, para usar um termo
Foulcaudiano não se altera, sugerindo que o Estado brasileiro persiste em suas
práticas autoritárias, mas resta compreender se essas práticas – considerando, nos
moldes do que fazem Bauman (1991) , Agamben (1998), Venas Da e Poole (2004)
as omissões também podem ser consideradas práticas – são dirigidas à população
indistintamente ou se mais localizadas e destinadas a uma parcela específica da
população.
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A DEMANDA NO CRIME DE TRÁFICO DE CRIANÇAS
PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL
ANA PATRÍCIA DA COSTA SILVA CARNEIRO GAMA (UFPB)
INTRODUÇÃO
O tráfico de crianças para fins de exploração sexual é um fenômeno
instalado por toda parte do globo, materializado pela ação de vários agentes que,
mesmo por vezes, não estando diretamente interligados, são responsáveis pela
execução de atividades, que juntas fomentam e transformam esse delito em uma
das atividades mais rentáveis do crime organizado internacional.
As redes criminosas compostas por vários setores da sociedade, no afã de
obtenção de lucro, buscam satisfazer uma demanda que, a cada dia, cresce, sendo
esta composta pelos mais diversos tipos de homens, não existindo um tipo
masculino específico na sua caracterização.
O que se depreende é que são estes homens, “Jonhs”, que fomentam o
mercado do crime do tráfico de seres humanos, principalmente, crianças e
mulheres, para fins de exploração sexual.
Neste trabalho, faremos algumas considerações acerca do cliente na cadeira
da exploração sexual infantil advinda do tráfico.
Em um primeiro momento, abordaremos o que se compreende por
exploração sexual infantil, identificando como ela pode ser determinada. Em
sucedâneo, verificaremos como se dá a mercantilização do corpo humano e qual o
papel dos clientes nesse processo. No mais, verificaremos quem são esse homens
que compram sexo, quais suas necessidades e os motivos ensejadores dos seus
atos. Enfim, exaltaremos a necessidade de uma adequada punição da demanda,
neste caso, especificamente do cliente, de modo a diminuir, ou quiçá eliminar, a
oferta de crianças para fins de exploração sexual pelas redes criminosas,
diminuindo, consequentemente, o mercado do tráfico.
1. Exploração sexual comercial de crianças
A exploração de crianças e adolescentes para fins sexuais é uma das mais
graves violações dos Direitos Humanos. As consequências desses atos sexuais
exploratórios trazem sequelas psicológicas e físicas irreparáveis à vítima, que a
seguirão por toda sua vida, “na medida em que é concebida como ameaça ao
desenvolvimento sexual e psíquico do sujeito em fase de formação”1.
1
LOWENKRON, Laura. Abuso sexual infantil, exploração sexual de crianças, pedofilia:
diferentes nomes, diferentes problemas? Sexualidad, Salud y Sociedad. Revista Latino
Americana. ISSN 1984-6487 / nº 5 - 2010 – p. 13.
2 LEAL e LEAL, Maria de Fátima (Org). Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Na conceituação de abuso sexual infantil, verifica-se a presença de uma
assimetria de poder e do dano psicológico. Denota-se, também, que o
consentimento, no tocante ao conceito e à punição do crime, é irrelevante, uma vez
que a criança é apenas um meio para a satisfação da lascívia alheia, sendo vista
como um objeto e não como um sujeito, como normalmente ocorre em uma relação
sexual entre adultos.
O poder, nesse caso, pode ser expresso de várias formas, dentre as quais se
pode indicar: a força física ou psicológica, facilitada pela diferença de idade; por uma
maior experiência de vida; e por uma posição social privilegiada do explorador em
relação à vítima.
A expressão exploração sexual infanto-juvenil é utilizada de forma distinta
dos conceitos de prostituição e pornografia, esculpidos no artigo primeiro, alíneas “b”
e “c” do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança, já que a
exploração sexual traduz uma situação de passividade da criança, em que não há
qualquer possibilidade de escolha desta.
No mais, diferentemente do conceito de abuso, a exploração sexual remota
às ideias de exploração comercial e de organizações e redes criminosas, levando a
criança da esfera de objeto à mercadoria.
É nesta seara que se encontra o tráfico de crianças para fins de exploração
sexual.
Em 1996, no Primeiro Congresso Mundial contra a Exploração Comercial de
Crianças estabeleceu que,
A exploração sexual comercial de crianças é uma violação fundamental dos direitos
da criança. Esta compreende o abuso sexual por adultos e a remuneração em
espécie ao menino ou menina e a uma terceira pessoas ou várias. A criança é
tratada como um objeto sexual e uma mercadoria. A exploração sexual comercial de
crianças constitui uma forma de coerção e violência contra crianças, que pode
implicar o trabalho forçado e formas contemporâneas de escravidão (LEAL e LEAL,
2
2002, p. 42) .
Quando as crianças exploradas sexualmente são vítimas de tráfico de
pessoas, a dor e o sofrimento provocados são ainda maiores. Nesses casos, elas
são retiradas de seus lares, do convívio dos seus pais e familiares, das instituições
que frequentam e levadas para um lugar que, geralmente, desconhecem.
2 LEAL
e LEAL, Maria de Fátima (Org). Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e
adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil. Relatório Nacional.
CECRIA (Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes), 2002, p.
42.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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E por serem revestidas de uma ingenuidade própria da idade, os clientes se
beneficiam dessa condição para satisfazerem, de forma segura, seus desejos
sexuais em corpos jovens e dóceis que são disciplinados para prestar os serviços de
que o cliente procura. Assim, como dizia Foucault, “é dócil um corpo que pode ser
submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”3.
2. O processo de mercantilização do corpo
O tráfico de crianças para fins de exploração sexual é um problema que
afeta, praticamente, todos os Estados. São inúmeros os estudos que foram
elaborados dentro da perspectiva da conduta do aliciador, das redes criminosas, da
vítima, dos donos de bordéis e casas noturnas, porém sempre deixando às margens
da problemática a questão da demanda.
Contudo, essa questão é um ponto fulcral na compreensão da problemática
apresentada.
A indústria da exploração comercial do sexo é muito eficiente, sendo sensível
as necessidades de seus clientes. É inegável que a demanda pelo sexo comprado
quando ultrapassa os patamares da oferta, fomente a indústria do tráfico de seres
humanos, bem como o da prostituição.
Os fatos históricos são testemunhos dessa afirmativa.
A primeira legislação elaborada no mundo referente ao combate no tráfico de
pessoas, a Convenção Internacional pela Supressão de Tráfico de Escravas
Brancas, de 1910, é um exemplo. Com a abolição da escravatura, houve uma
intensa movimentação de trabalhadores europeus impulsionados pela crise em seus
países de origem. Em paralelo a esse crescimento migratório, surgia o denominado
“tráfico de escravas brancas” (White Slave Trade), na Europa. Mulheres eram
levadas para trabalhar como prostitutas no exterior, suprindo uma demanda dos
imigrantes.
Podemos citar, ainda, o caso do fluxo de soldados norte-americanos no
sudeste da Ásia, em 1960, que aumentou a demanda pelo sexo comercial,
excedendo a oferta, o que fez com que traficantes sequestrassem mulheres e
meninas de vários países da região para suprir as necessidades locais da indústria
da exploração comercial.
Para Michel Foucault, no início do século XVII há um acelerado aumento de
produção de conhecimento sobre a sexualidade, ou seja, uma “discursividade do
3
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir; tradução de Raquel Ramalhete. 37ª Ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2009, p. 132.
1800
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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sexo”, que culmina, no decorrer do tempo, à constituição da “ciência da
sexualidade”.
Fazendo um paralelo com a estrutura do mercado, dentro dos conceitos
básicos da economia, podemos verificar que aquela baseia-se na troca de produtos
e serviços por capital.
Ainda, se referindo às relações sociais estabelecidas entre os mais diversos
sujeitos dentro de um sistema capitalista, podemos observar que elas obedecem a
um contrato social. O que se observa, muitas vezes, é que em certos contratos as
partes não são livres e iguais. Dentro dessa perspectiva, nesses contratos onde as
partes não estão em condições de igualdade, só resta a uma delas, a que se
encontra em uma situação de hipossuficiência em relação a outra, aceitar os termos
do contrato. Dessa forma, surgem as relações dominadoras e subordinantes.
Partindo dessa premissa, podemos entender a exploração sexual comercial
de crianças e adolescentes como uma relação de trabalho? A OIT considera essa
relação entre agentes como a pior forma de escravidão que existe atualmente no
mundo.
Resta claro que um contrato celebrado dentro dos parâmetros acima
estabelecidos está eivado de vícios insanáveis, tendo a violência como fator
indispensável para sua consecução, retirando sua total capacidade de existência no
mundo jurídico, por fugir da legalidade e da moralidade.
O estudo sobre a oferta e a demanda de crianças e adolescentes no
mercado do sexo, passa, necessariamente, pelas estruturas econômicas, sociais e
políticas que estão inseridas a vítima, contudo, não se pode atribuir somente ao
fenômeno da desigualdade social, falta de oportunidades de crescimento intelectual,
falta de estrutura familiar, enfim, à ausência de mecanismos mínimos que garantam
os direitos sociais, econômicos, e culturais do indivíduo, a causa de sua exploração.
Segundo Leal,
é um fenômeno multidimensional, multifacetado e transnacional e tem sua
determinação não somente na violência criminal, mas sobretudo nas relações
macro-sociais (mercado globalizado e seus impactos na precarização do trabalho,
migração, na expansão do crime organizado e na expansão da exploração sexual
4
comercial) .
Atribuir unicamente ao fator social e econômico dos Estados os motivos que
ensejam a exploração do indivíduo ainda em estado de formação física e psicológica
seria admitir que alguns Estados do Globo, por seu alto grau de miséria, como por
4 LEAL,
Maria Lúcia Pinto; LEAL, Maria de Fátima Pinto. Tráfico de Mulheres, Crianças e
Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial: Um Fenômeno Transnacional.
Disponível em: seer.bce.unb.br/index.php/SER_Social/article/download/43/37
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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exemplo o Haiti, não teriam condições mínimas, de enfrentar a problemática da
exploração sexual de crianças, principalmente, quando advindas do tráfico de
pessoas.
Para Pateman, na exploração sexual comercial de crianças e adolescentes
ocorre um “contrato sexual” que se constitui numa forma de acesso e utilização do
corpo por uma pessoa que contrata, por outra, que dispões de seu corpo neste
acordo.
A violência na problemática em pauta é tratada sempre do ponto de vista de
relação de forças expressas sob a forma de dominação. Na prática, as diferenças
sociais, bem como o aspecto cultural são transformadas em relações assimétricas
hierarquizadas, subordinando a vontade de um à do outro. Dessa forma, a violência
pode ser entendida, em termos sociológicos, como “em uma ação que envolve a
perda da autonomia, de modo que pessoas são privadas de manifestar sua vontade,
submetendo-a à vontade e ao desejo de outros”5.
Nesse viés, a questão é saber o motivo pelo qual, em alguns lugares da
sociedade moderna, a compra sexual de crianças e adolescente, está alcançando
índices de crescimento tão vertiginosos.
Observa-se que, assim como os atos de comércio em geral só existem em
virtude de uma demanda, o tráfico de crianças para fins de exploração sexual
também só existem em virtude da existência de clientes que buscam satisfazer seus
desejos sexuais em corpos imaturos e ingênuos. Segundo Andrea Cauduro, “without
demand for trafficked prostitutes this segment of the sex market would not exist”6.
Para a economia, a demanda é determinada pelas várias quantidades que os
consumidores estão dispostos e aptos a adquirir, em função de vários níveis
possíveis de preços, em dado período de tempo. O mercado tende a equilibrar-se
pela lei da Oferta e da Procura, também conhecida como a Lei da Oferta e da
Demanda, a qual estabelece a relação entre a demanda de um produto - isto é, a
procura - e a quantidade que é oferecida, a oferta. A partir dela, é possível descrever
o comportamento preponderante dos consumidores na aquisição de bens e serviços
em determinados períodos, em função de quantidades e preços.
Observa-se que, a existência de uma demanda é diretamente proporcional à
existência da oferta. Nesse prisma, assim como os atos de comércio em geral só
5 FERRARI,
Dalka Chaves de Almeida. O Fim do Silêncio na Violência Familiar.
Editora Ágora: São Paulo, 2002, p. 82.
6 Sem a procura por prostitutas traficadas neste segmento do mercado do sexo, estas
não existiriam. CAUDURO, Andrea. Prostitution and Human Trafficking: Focus
on Clients. New York: Springer, 2009, p. 5.
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existem em virtude de uma demanda, o tráfico de crianças para fins de exploração
sexual também só existem em virtude da existência de clientes.
Os clientes que nos referimos é parte de uma demanda, que é composta por
quatro componentes: os homens que compram atos sexuais; os exploradores que
compõe a indústria do sexo, estando neste grupo inseridos os aliciadores, donos de
bordeis; os Estados que servem como países de destino; e as culturas e ambientes
que não apenas toleram, como também promove a exploração sexual7.
A exploração sexual da criança é feita por homens que compram os atos
sexuais, são os clientes, coloquialmente conhecidos como “Jonhs”. Já a exploração
econômica do sexo é feita pelos demais grupos.
A exploração econômica é proporcionada pela venda de corpos de crianças
para fins de exploração sexual a outrem, sendo esta a materialização da oferta, a
qual só atinge seus índices satisfatórios se a demanda for compatível. Em sentido
estrito, a demanda, no caso, é o cliente.
Assim como no mercado econômico, a demanda masculina também
desempenha um papel fundamental na determinação das características das vítimas
traficadas.
O tráfico de crianças aumenta de forma vertiginosa a cada dia em
decorrência dessas preferencias. Os clientes tendem a demandar por virgens ou
"meninas limpas". Assim, é frequente encontrarmos crianças de 13 anos de idade ou
menores sendo vítimas do crime.
3. Quem são os “Jonhs”: quais os motivos ensejadores de seus atos
Geralmente, a sociedade tende a acreditar que os clientes são portadores de
uma patologia psíquica, sendo homens sádicos, porém, esses fatos não traduzem a
realidade.
É equivocada, também, a ideia de que esses homens que buscam em corpos
imaturos
a
satisfação
de
seus
prazeres
carnais
sejam
seres
isolados,
sentimentalmente desamparados e solitários. A verdade é que eles tem uma maior
quantidade de parceiros sexuais do que aqueles que não compram sexo. Eles
procuram algo a mais que possam encontrar emoção.
Estudos britânicos demonstraram que os clientes do sexo comprado tem
cerca de trinta anos, são casado, empregados em tempo integral , não possuindo
7 GEORGE,
Cheryl. Jailing the Johns: the issue of demand in human sex trafficking.
Disponível
em
http://works.bepress.com/cgi/viewcontent.cgi?article=1007&context=cheryl_george. 1803
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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antecedentes criminais8.
Contudo, de uma maneira geral, são homens que estão por todas as esferas
do globo, pertencentes a todas as etnias, fazendo parte dos mais diversos grupos
sociais. São, na maioria das vezes, casados, não sendo a ausência de uma parceira
o motivo que os impulsionam a transmudar corpos jovens em simples objetos de
satisfação sexual, trazendo sequelas irreparáveis para a vítima que com ela
seguirão ao longo de sua vida, vivenciadas em seu corpo e mente.
Os “Jonhs” compartilham de semelhantes percepções sobre a prostituição,
dentre elas, podemos citar o mito de que as vítimas estão nessa situação de
exploração sexual porque gostam, escolhendo-a por livre disposição e o fato de que
ganham muito dinheiro ao venderem o corpo.
O que os impulsionam, geralmente, é o clamor pelo diferente, pelo sexo
exótico, onde há o incremento da superioridade do macho sobre a fêmea, do poder
de propriedade, igualmente observado pela sensação de domínio que se tem por um
objeto adquirido. Mesmo que por alguns instantes, minutos que sejam, paira sobre o
cliente o poder de propriedade sobre a vítima. Porém, os motivos que levam um
homem a procura do sexo comprado não são homogêneos e por assim ser, Iris Yen
divide os clientes em quatro grupos, baseado em suas motivações para a prática de
seus atos,
First, Negative Compulsive men do not enjoy sex with prostitutes but still
solicit commercial sex. Second, Positive Compulsive men enjoy the sex but
have attempted to stop. Third, Positive Accepting men enjoy sex with
prostitutes, do not try to stop, and generally support legalization of
prostitution. Fourth, Socially Inadequate men are the stereotypical johns who
are shy and socially awkward9.
A estimativa sobre o número aproximado de indivíduos que exploram
sexualmente as crianças é de difícil constatação, devido ao fato de, por eles fazerem
parte dos mais diversos meios sociais, muitas vezes sendo pessoas públicas,
ocupantes de cargos políticos, preferirem o anonimato, mesmo naqueles Estados
8 See Duncan Walker, Beer, Banter... and a Brothel (BBC television broadcast Oct. 3, 2006),
available at http://news.bbc.co.uk/1/hi/uk/5360624.stm.
9 Primeiro, os homens compulsivos negativos que não gosta de sexo com prostitutas, mas
ainda solicitam o sexo comercial. Em segundo lugar, os homens compulsivos positivos que
desfrutam do sexo mas tentaram parar. Em terceiro lugar, os homens positivos que aceitam
e gostam de sexo com prostitutas , não tentam parar e, em geral apoiam a legalização da
prostituição. Em quarto lugar, os homens socialmente inadequados, Johns” estereotipados
que são tímidos e socialmente desajeitados (tradução nossa). YEN, Ir”is. Of Vice and Men:
A New Approach to Eradicating Sex Trafficking by Reducing Male Demand through
Educational Programs and Abolitionist Legislation, 98 J. Crim. L. & Criminology 653 (20072008)
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em que a prostituição é legalizada. Os “Jonhs” não anunciam quem eles são. O
anonimato, ao passo que encoraja os homens a procurarem o sexo comercial,
também os protege da prestação de contas, culpabilidade e consequências do seu
comportamento.
A docilização de corpos de crianças ingênuas, que geralmente vivem à
margem da sociedade, por não serem contempladas pelos serviços mais essenciais
na consecução de uma vida minimamente digna e que muitas vezes são entregues
por sua própria família, é o papel das redes criminosas. Estas, buscam a satisfação
de seus clientes, como em qualquer tipo de mercado.
A questão de ligação da prostituição com o tráfico de seres humanos é o fato
de que, apesar de os clientes não pedirem, exatamente, uma criança traficada, a
sua exigência por uma diversidade, um acesso ilimitado de meninas de diferentes
países, diferentes sexos, culturas e origens, faz com que essa busca de corpos
diferentes, da satisfação de desejos cada vez mais exóticos fomente a indústria do
tráfico de pessoas. É a forma mais clara da mercantilização do corpo.
Segundo Cheryl George,
se não fosse por homens que têm esse senso de direito ao sexo (que têm o implícito
direito de adquirir e explorar sexualmente mulheres e crianças), o comércio do tráfico
sexual entraria em colapso e seria inexistente. Estudiosos no campo da pesquisa de
tráfico sexual e suas muitas causas reconhecem a demanda masculina para o sexo
advindo da prostituição como a causa mais imediata da expansão da indústria do
sexo, sem a qual não seria rentável para os cafetões, recrutadores e traficantes em
buscar um fornecimento de mulheres e crianças... um mercado do sexo desprovido
10
dos consumidores do sexo masculino iria falir (tradução nossa).
Os machos que se utilizam do sexo comprado para satisfazer seus desejos,
não acreditam que suas necessidades sejam supridas dentro de um relacionamento
normal, pautado na igualdade e respeito entre os sujeitos envolvidos. Eles pagam
para desumanizar o ser humano, utilizando-o como simples objeto para sua
satisfação pessoal.
Muitos justificam seus atos até mesmo no fato de que eles são também
objetos de desejo da vítima e que de alguma forma estas o querem como parceiros
10 GEORGE,
Cheryl. Jailing the Johns: the issue of demand in human sex trafficking.
Disponível
em
http://works.bepress.com/cgi/viewcontent.cgi?article=1007&context=cheryl_george, p. 3.
Were it not for men that have this sense of sexual entitlement (that they have the implicit right
to purchase and sexually exploit women and children), the trade of sex trafficking would
collapse and be nonexistent. Scholars in the field of researching sex trafficking and its many
causes recognize “the male demand for the sex of prostitution as the most immediate and
proximate cause of the expansion of the sex industry, without which it would be unprofitable
for pimps, recruiters and traffickers to seek out a supply of women.” As basic as the notion
might sound, a sex market devoid of the male consumers would go bankrupt.
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sexuais. Para eles, é uma experiência que as vítimas acolhem e apreciam. Eis o
relato de um cliente da exploração sexual infantil:
Nessa viagem eu já tive relações sexuais com uma menina de quatorze anos de
idade no México e um com quinze anos na Colômbia. Estou ajudando-as
financeiramente. Se elas não tem sexo comigo, não podem ter comida suficiente. Se
11
há algum problema comigo fazendo isso, vamos UNICEF alimentá-las (Tradução
nossa).
A excitação provém da idéia de relação sexual sem qualquer tipo de
responsabilidade, onde o ser explorador desenvolve, até mesmo, a crença de que
tem o direito a estes serviços sexuais de maneira que resulte em ignorância sobre o
desenvolvimento de relações baseadas na igualdade, verdade, intimidade, respeito
e compromisso. É a teoria da dominação de um gênero sobre outro. Sendo a
denominação gênero aqui empregada da forma mais ampla, não aquela
estabelecida apenas entre um homem e uma mulher.
No sentido marxista, uma relação social pode ser identificada como uma
oposição estrutural de duas classes com interesses antagônicos.
O antagonismo das relações sociais de gênero é um dos instrumentos de
dominação masculina. Para Anne-Marie Devreux,
a noção de antagonismo permite pensar em incluir na reflexão a dimensão de luta
caracterizando a relação social de sexo. Essa noção revela uma dimensão
frequentemente ocultada: os homens também lutam nessa relação social. Lutam às
vezes violentamente para preservar seus interesses de sexo. A urgência científica,
devida ao longo silêncio que ocultou a questão do lugar social das mulheres – tanto
na História quanto na Sociologia, na Economia e nas Ciências Políticas –, fez com
que os primeiros trabalhos sobre os sexos fossem dedicados à caracterização da
inferioridade das mulheres e à pesquisa das causas dessa inferiorização, em todos
os espaços da sociedade. Desse fato, a dominação masculina tornou-se a
dominação das mulheres... Por quem? A resposta ora foi global (pela "sociedade"),
ora ocultada pela referência a supostos handicaps naturais das mulheres, como a
12
maternidade .
Os aspectos históricos, culturais e econômicos de uma data região, em um
determinado intervalo de tempo são fatores que, também, influenciam o
comportamento da sociedade. A formação econômica, social e cultural da América
Latina, por exemplo, produziu uma sociedade escravagista, elites oligárquicas que
dominavam uma porção da sociedade inferiorizadas pela raça, cor, gênero e idade.
As consequências dessa formação sócio-econômica foi o surgimento de categorias
11 Ibid.,
p. 3. On this trip, I've had sex with a 14 year-old girl in Mexico and a 15 year-old in
Colombia. I'm helping them financially. If they don't have sex with me, they may not have
enough food. If someone has a problem with me doing this, let UNICEF feed them.
12
DEVREUX, Anne-Marie. A Teoria das Relações Sociais de Sexo: um quadro de análise
sobre
a
dominação
masculina.
Disponível
em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922005000300004&lng=en&nrm=iso&tlng=pt, p. 8
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dominadas, dentre as quais podemos citar, mulheres, negros, índios e crianças, que
são excluídas de seus direitos.
Essas fatores aliados à cultura contemporânea de desvalorização da figura
feminina, propagada todos os dias, em todos os lugares, de forma ininterrupta,
mediante a publicidade, bem como a pornografia são incrementos que auxiliam no
aumento da exploração sexual, principalmente, de mulheres e meninas.
Em se tratando do papel da publicidade no fomento do sexo comprado que
advém do tráfico de seres humanos, podemos dizer que é muito mais fácil
mercantilizar, abusar e rebaixar um indivíduo quando este já se encontra em um
processo de extrema desumanização. Assim, o primeiro passo no processo de
exploração do ser humano é deixá-lo o máximo desumanizado possível e a
publicidade tem um papel importante, senão indispensável, nesse processo.
A forma como se apresenta a figura feminina em propagandas publicitárias
evidencia sua estreita relação com o sexo. São mulheres e meninas expostas
seminuas, em posições sensuais, muitas vezes até de submissão em relação a
figura masculina, que a coloca para o sociedade na condição de um mero
instrumento de prazer.
E essa sexualização das mulheres passou a ser patrocinada por meninas,
cada vez mais jovens. É comum, hodiernamente, que crianças de 12 anos tenham o
estereótipo e o comportamento de meninas de 18 anos.
As empresas, por sua vez, usam esse tipo de propaganda porque o sexo
vende. Essa é a idéia da sociedade de consumo moderna: tudo tem um preço,
inclusive o sexo. A utilização de meninas, cada vez mais novas, em imagens
altamente erotizadas, fomenta a venda de produtos. E em uma sociedade capitalista
este é o ponto principal.
A pornografia, por sua vez, é outro fator que fomenta a indústria do tráfico de
pessoas. Esta, seria um sistema de banalização e desmontagem do espírito
humano, operando de tal forma a depreciar, desumanizar e suprimir mulheres e
crianças. Ilustra o estupro, a agressão, o assédio sexual, prostituição e o abuso
sexual. Hoje, no entanto, passou a ser visto, simplesmente como sexo. E essa nova
forma de ver a pornografia autoriza e legitima todas as suas forma de
materialização. A pornografia mostra o sexo de uma forma harmoniosa e gloriosa.
Dentro dessa conjuntura, as vítimas passam a aceitar serem tratadas de
forma agressiva e desumana, sendo torturadas e humilhares, servindo de objetos
para a lascívia alheia.
Dessa forma, políticas públicas que ensinem a importância de todos dentro
de uma sociedade democrática, onde os seres humanos devam ser tratados de
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maneira digna, dentro dos parâmetro esculpidos pela Declaração Universal dos
Direitos do Homem, independentemente de cor, sexo, etnia e condição social,
devem ser empregadas.
Crianças vítimas do tráfico de pessoas fazem sim parte da sociedade, devem
ser vistas, devem ser ajudadas. A sociedade tem que entender que os “Jonhs “ não
estão distantes, podem ser qualquer pessoa, o marido, o pai, o tio, o filho. Estão
diante de nossos olhos. É por assim ser, que uma cultura de conscientização deve
ser empregada, uma cultura de erradicação do machismo.
Em suma, os Estados tem que compreender que o agente explorador, o
cliente, é o principal responsável pelo delito, sendo este o que se utiliza da criança,
explorando-a sexualmente, além de ser o principal responsável pelo fomento da
indústria do sexo, fazendo-se necessário, portanto, políticas de prevenção e de
repressão, de forma a conter os atos desses sujeitos. De acordo com Villalba,
Si los traficantes no tuvieran casas en donde colocar las jóvenes a cambio de un
precio estipulado, no hay duda que no buscarían jóvenes vírgenes para venderlas,
porque es regla del derecho mercantil que, cuando no hay demanda, la oferta es
pequeña o nula, y se un género no se vende en un país o región, es evidente que los
comisionistas no se molestarían en ofrecerlo, porque el resultado que obtuviesen
13
sería negativo (VILLALBA, 2003, p. 35) .
4. A necessidade de políticas adequadas de prevenção e punição dos atos
praticados pelos clientes do tráfico de crianças para fins de exploração
sexual
Apesar das dificuldades apresentas sobre a problemática em questão, dados
revelam que os homens que se utilizam da exploração sexual estão preocupados.
Compradores ocasionais demonstraram receio em responder a medidas judiciais
pelos atos por eles praticados. Além disso, os pesquisadores descobriram que uma
parcela significativa dos homens que tinham procurado as prostitutas (mesmo
aqueles que eram compradores de repetição) disseram que eram insatisfeitos com a
experiência, querendo, portanto, parar. Já em outro estudo foi revelado que a
13
Se os traficantes não tivessem casas onde colocar as jovens a troco de uma preço
estipulado, não há dúvida que não buscariam jovens virgens para vendê-las, porque é a
regra do direito mercantil que quando não há demanda, a oferta é pequena ou nula e se um
gênero não se vende em um país ou região, é evidente que os comissionistas não se
molestariam em oferecê-lo, porque o resultado que teriam seria negativo (tradução nossa) .
VILLALBA, Francisco Javier de León. Tráfico de Personas e Inmigración Ilegal. Valencia:
Tirant lo Blanch, 2003.
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maioria dos homens que haviam comprado atos sexuais tinham tentado parar de se
envolverem com prostitutas14.
Esses dados demonstram que políticas públicas eficazes e cuidadosamente
projetadas, bem como um enfrentamento mais eficaz por parte das legislações
internas dos Estados poderiam diminuir largamente a demanda pelo sexo comprado,
que fomenta a indústria do tráfico de pessoas, principalmente, crianças, no mundo.
Apesar da existência de várias convenções internacionais que tratam do
fenômeno, como o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o
Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do
Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças/ONU, de 2000, aprovado pelo
Brasil em 2003, que se tornou conhecido como Protocolo de Palermo, bem como a
Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores, as legislações
internas dos estados tem se mostrado inadequadas em abordar e reduzir a procura
de vítimas do tráfico sexual.
O Protocolo de Palermo é um dos instrumentos mais importantes na
persecução do crime de tráfico de pessoas, vez que trouxe em seu bojo, mais
precisamente em seu artigo 3o, o conceito deste crime. Este documento
internacional, também, foi o primeiro a fazer referencia especificamente ao
componente da procura do sexo traficado. Os Estados signatários devem promulgar
leis visando o combate à demanda que explora sexualmente crianças e mulheres
vítimas do tráfico de pessoas.
A Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores
adotada pela Organização dos Estados Americanos/OEA, de 1994, e aprovada pelo
Brasil em 1997, por sua vez, tem como objeto
a prevenção e sanção do tráfico internacional de menores, bem como a
regulamentação de seus aspectos civis e penais.
Neste sentido, os Estados Partes obrigam-se a:
a) garantir a proteção do menor, levando em consideração os seus interesses
superiores;
b) instituir entre os Estados Partes um sistema de cooperação jurídica que consagre
a prevenção e a sanção do tráfico internacional de menores, bem como a adoção
das disposições jurídicas e administrativas sobre a referida matéria com essa
15
finalidade ;
14 YEN, Iris. Of Vice and Men: A New Approach to Eradicating Sex Trafficking by Reducing
Male Demand through Educational Programs and Abolitionist Legislation. Jornal de Direito
Criminal e Criminologia, volume 98, artigo 6.
15 Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores adotada pela
o
Disponível
em:
Organização
dos
Estados
Americanos/OEA,
artigo
1.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2740.htm 1809
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Já a Convenção da ONU sobre os Direitos das Crianças preconiza, em seus
artigos 34 e 35, in verbis:
Artigo 34 - Os Estados Partes se comprometem a proteger a criança contra todas as
formas de exploração e abuso sexual. Nesse sentido, os Estados Partes tomarão,
em especial, todas as medidas de caráter nacional, bilateral e multilateral que sejam
necessárias para impedir:
a) o incentivo ou a coação para que uma criança se dedique a qualquer atividade
sexual ilegal;
b) a exploração da criança na prostituição ou outras práticas sexuais ilegais;
c) a exploração da criança em espetáculos ou materiais pornográficos.
Artigo 35 - Os Estados Partes tomarão todas as medidas de caráter nacional,
bilateral e multilateral que sejam necessárias para impedir o sequestro, a venda ou o
16
tráfico de crianças para qualquer fim ou sob qualquer forma .
Um grande avanço na temática em questão foi a Convenção do Conselho da
Europa Relativo à Luta contra o Tráfico de Seres Humanos, aprovada pela
Resolução da Assembléia da República nº 1/2008, que determina em seu artigo 19
que os Estados-Partes adotem “medidas legislativas e outras necessárias para
qualificar como infração penal nos termos do seu direito interno a utilização dos
serviços que constituem objeto da exploração“ 17 advinda do tráfico de seres
humanos.
Alguns Estados, dentre eles a França, tentam inserir, em suas legislações
internas uma adequada punição em relação aos atos praticados pelos clientes.
Nesse caso particular, pela nova lei, a prostituição em si continuará sendo legal na
França, enquanto a exploração da prostituição, continuará sendo crime. Por outro
lado, pela primeira vez no país, pagar por sexo passará a ser punido. O governo
argumenta que a lei foi feita para coibir redes de tráfico de mulheres e crianças.
Aliás, esta é uma determinação da Convenção do Conselho da Europa Relativo à
Luta contra o Tráfico de Seres Humanos. No entanto, muitos foram os protestos da
população frente a esse processo de criminalização que está tentando ser firmado
na França.
Por isso, a erradicação do problema passa por, além de mudanças jurídicas,
mudanças sociais. E indispensável uma conscientização da população no processo
de igualdade. As manchas do machismo impregnadas no seio social devem ser
definitivamente apagadas. E esse processo só é possível com a implementação de
16 Convenção da ONU sobre os Direitos das Crianças, ratificado pelo Estado brasileiro
o
mediante o Decreto N 99.710, de 21 de novembro de 1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm. Acesso em: 15 de
janeiro de 2014.
17 Convenção do Conselho da Europa Relativo à Luta contra o Tráfico de Seres Humanos,
disponível em: http://direitoshumanos.gddc.pt/3_9/IIIPAG3_9_13.htm, Acesso em 01 de
janeiro de 2014. 1810
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políticas educacionais que acompanhem o indivíduo desde os primórdios do seu
desenvolvimento.
CONCLUSÃO
A escravidão no mundo é um problema que passados séculos, continua a
existir dentro de uma nova roupagem: o tráfico de seres humanos.
As dificuldades encontradas nos tempos modernos no que tange a sua
persecução são de uma maior magnitude em virtude da organização das redes
criminosas que atuam no crime. Contudo, é imprescindível observar que sem que
houvesse uma demanda, cada vez mais exigente, que compra o sexo de crianças
inocentes, para sua satisfação pessoal, de nada adiantaria referida organização.
Assim como nas leis básicas mercantis, só existe uma oferta porque existe
em paralelo a esta uma demanda que precisa ser suprida.
O principal objetivo dos aliciadores, donos de bordéis, traficantes é a
obtenção de lucro através da exploração de pessoas que se encontram em um
estado de maior vulnerabilidade social e econômica. Assim, sem que houvessem
homens que pagassem àqueles uma vantagem econômica em troca da exploração
sexual de outrem, o crime em pauta não teria sentido.
O processo de mercantilização do ser humano precisa estancado.
Não devemos esquecer que as vítimas são pessoas reais, tão carentes no
respeito aos seus direitos humanos mais basilares, que em determinado estágio de
exploração, tendem a aceitar e naturalizar a monstruosidade de atos que contra elas
são cometidos.
Os Estados tem um papel fundamental na persecução deste crime, devendo
criar mecanismos mais eficazes em seu combate. O processo de globalização, ao
passo que trouxe significativos avanços para a humanidade, em todas as searas da
vida, facilitou a prática de crimes pelas redes criminosas e a busca pelo sexo
comprado.
Hoje é normal que clientes encontrem nos Estados uma rota de exploração
sexual, por onde eles possam recorrer, livremente, utilizando-se muitas vezes de
crianças inocentes para sua satisfação sexual, sem que qualquer punição lhes seja
imposta.
Neste prisma, políticas públicas e uma legislação interna adequada, em
consonância com a legislação internacional, devem ser implementadas de modo a
coibir os atos dos clientes, uma vez que é este quem fomenta a prática do tráfico,
além de ser o principal explorador das vítimas.
1811
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
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1813
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Policiamento Privado e Direitos Civis na Cidade de São Paulo
Cleber da Silva Lopes
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
Introdução
Os estudos sobre policiamento privado ocupam hoje um papel de destaque dentro
do campo dos policing studies. A agenda de pesquisa proposta há mais de uma década por
Bayley e Shearing (2001) vem sendo explorada por diversos estudiosos empenhados em
descrever a realidade do policiamento plural, em avaliar o seu impacto na sociedade e as
políticas estatais destinadas a governar os diversos provedores de policiamento. Mas
tópicos importantes dessa agenda permanecem sub-investigados, sobretudo em países da
Ásia, África e América Latina. É o caso do impacto do policiamento privado sobre os direitos
civis da população. Alguns trabalhos abordaram os poderes e o potencial de ameaça aos
direitos civis presente nas atividades de policiamento privado (Kakalik e Wildhorn, 1971;
Stenning e Shearing, 1979; Paixão, 1991; Stenning, 2000; e Sarre, 2003 e 2008), mas
investigações empíricas sobre como esses poderes são efetivamente mobilizados (Button,
2007; e Button e Park, 2009) e de como eles afetam direitos e liberdades fundamentais
ainda são escassas.
Este artigo visa contribuir para o preenchimento dessa lacuna. Ele investiga as
violações de direitos civis cometidas por seguranças regulares, semirregulares e irregulares
que executam policiamento privado numa das mais importantes cidades da América Latina:
São Paulo. Os agentes de segurança privada de São Paulo têm violado direitos e liberdades
individuais no exercício de suas atividades profissionais? Quais são as principais violações e
onde elas mais ocorrem? Seguranças regulares, semirregulares e irregulares cometem
distintas violações de direitos civis? Essas violações se assemelham às que ocorrem nas
atividades de policiamento público? O trabalho procura responder a essas questões a partir
de uma análise exploratória dos crimes cometidos pelos profissionais de segurança privada
da cidade de São Paulo entre janeiro de 2009 e setembro de 2010.
O artigo está organizado em três partes. A primeira discute, a partir da literatura
existente, os poderes disponíveis aos profissionais de segurança privada, as ameaças
representadas por tais poderes, e o que sabemos sobre o modo como eles são utilizados. A
segunda parte descreve brevemente o policiamento privado existente na cidade de São
Paulo. A terceira parte expõe as questões metodológicas relativas ao estudo dos registros
criminais envolvendo agentes de segurança privada e analisa tais registros à luz das
perguntas que guiaram o estudo. Por fim, a conclusão sumariza os achados mais
1814
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
importantes do trabalho e chama atenção para a necessidade de mais estudos empíricos
sobre as consequências do policiamento privado para os direitos civis.
Poderes e Ameaças aos Direitos Civis nas Atividades de Policiamento Privado
Tanto na literatura brasileira de ciências sociais quanto na literatura internacional de
língua inglesa há uma extensa produção acadêmica tratando dos poderes e das violações
de direitos civis presentes nas atividades de policiamento público, mas pouco foi dito acerca
dos poderes e abusos relacionados às atividades de policiamento privado. Essa situação
parece decorrer em parte de uma compreensão equivocada dos poderes envolvidos no
policiamento executado por agentes de segurança privada, frequentemente subestimados
em comparações com os poderes usualmente mobiliados no trabalho de policiamento
público.
Quando comparado aos policiais, profissionais de segurança privada dificilmente
parecem ameaçadores e dotados de poderes capazes de interferir em direitos e liberdades
individuais. Constrastando as atividades de policiamento público com as de policiamento
privado, autores como Kakalik e Wildhorn (1971) sustentaram que os poderes possuídos
pelos agentes de segurança privada são semelhantes aos dos cidadãos comuns, tendo em
vista que os primeiros não dispõem dos mesmos poderes legais disponíveis à polícia.
Embora essa afirmação seja correta, Stenning (2000) considera que analisar os poderes dos
profissionais de segurança privada apenas sob esse prisma é um equívoco. Para uma visão
mais abrangente dos poderes disponíveis aos profissionais que executam policiamento,
sejam eles agentes públicos ou privados, Stenning (2000) e Mopas e Stening (2000)
sugeriram a interessante imagem de uma caixa de ferramentas a qual os agentes de
policiamento recorreriam quando no trabalho. Nessa caixa haveria ferramentas de quatro
tipos:
(i)
ferramentas legais: normas jurídicas que conferem aos agentes que executam
policiamento a autoridade e a legalidade necessária à imposição de normas de
conduta instituídas;
(ii)
ferramentas físicas e tecnológicas: armas de fogo, armas não letais, algemas,
computadores, câmeras, carros, sirenes, etc;
(iii)
ferramentas pessoais: constituição dos corpos e habilidades físicas, verbais e
qualquer carisma pessoal úteis para a resolução de conflitos; e
(iv)
ferramentas simbólicas: o status dos agentes e organizações de policiamento, o
poder simbólico dos uniformes e o respeito do público à profissão e organização
que provê segurança;
1815
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Segundo os autores, tanto os policiais quanto os agentes de segurança privada têm
à sua disposição ferramentas legais, físico-tecnológicas, pessoais e simbólicas. Mas essas
ferramentas não são as mesmas para os policiais e para os profissionais de segurança
privada, muito menos seriam utilizadas do mesmo modo e com a mesma ênfase. No caso
das ferramentas legais, os agentes de segurança privada disporiam de recursos muito mais
limitados do que os policiais. Enquanto depositária da reivindicação permanente do Estado
em monopolizar o uso da violência legítima, a polícia está autorizada por estatutos
específicos a exercer, em circunstâncias específicas, poderes intrusivos e coercitivos
excepcionais (uso de força letal) que normalmente não estão disponíveis – ou ao menos não
do mesmo modo – para os cidadãos comuns e profissionais de segurança privada.
Embora profissionais de segurança privada não contem com os mesmos poderes
coercitivos disponíveis aos policiais, eles contam com ferramentas físico-tecnológicas,
pessoais, simbólicas e legais que lhes proporcionam poderes impositivos que, sob alguns
aspectos, podem ser potencialmente mais ameaçadores de direitos civis do que os poderes
dos policiais. Esses poderes somente são possíveis em razão da existência de normas
públicas que regulam as atividades de policiamento privado e, principalmente, da existência
de leis de propriedade, contratuais e trabalhistas que atribuem aos proprietários e
empregadores o direito de proteger seus bens e controlar seus empregados.
No Brasil e em diversas partes do mundo, profissionais de segurança privada têm,
como qualquer cidadão, autoridade para efetuar prisões em flagrante delito ou agir em
legítima defesa própria ou de outrem. Mas seus poderes efetivos são maiores do que o dos
cidadãos comuns. A Lei Federal nº. 7.102/83 e a Portaria n°. 387/06-DG-DPF, normas que
regulam a segurança privada no Brasil, garantem aos vigilantes direitos que não estão
disponíveis à maioria da população, como, por exemplo, prisão especial por ato decorrente
do exercício da profissão e porte de armas letais e não-letais quando em serviço. As normas
publicas também concedem aos profissionais de segurança privada prerrogativas especiais
associadas ao exercício da profissão, caso das capacidades técnicas e intelectuais que são
obrigados a adquirir em treinamentos, dos uniformes especiais, coletes a prova de balas,
algemas, rádios de comunicação, equipamentos de vigilância e outros que, em conjunto,
lhes proporcionam as ferramentas normalmente utilizadas no trabalho de policiamento e a
visibilidade que os tornam claramente identificados no meio social.
Além desses direitos e prerrogativas, a segurança privada também possui poderes
legais que derivam em grande parte das leis de propriedade, contratuais e trabalhistas
(Stenning e Shearing, 1979; Stenning, 2000; Sarre, 2003 e 2008;). Essas leis dão aos
empregadores o direito de exercer controle sobre os seus empregados e aos proprietários o
direito de regular o acesso e o uso de suas propriedades, direitos estes que são delegados
aos profissionais de segurança privada. Em alguns casos os proprietários têm não apenas o
1816
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
direito, mas também o dever de policiar os espaços sob sua responsabilidade. As leis
estaduais e municipais existentes no Brasil proibindo o fumo no interior de locais fechados,
por exemplo, atribuem aos proprietários o dever de assegurar o enforcement dessas
normas, tarefa normalmente desempenhada por agentes de segurança privada. É com base
em normas dessa natureza que a segurança privada pode realizar interferências nos direitos
civis dos cidadãos (Shearing e Stenning, 1983). Agindo a mando de empregadores ou
proprietários, agentes de segurança privada podem exigir que pessoas se identifiquem ou
se submetam a revistas fortuitas como condição de acesso à locais de moradia, trabalho,
compras e lazer. Cabe às pessoas o direito de negar a identificação e/ou revista, mas a
negativa pode implicar em ter a entrada no estabelecimento obstruída. Profissionais de
segurança privada em estabelecimentos fechados também têm o poder para expulsar
pessoas dos locais policiados, utilizando-se da ameaça ou uso da força física, em caso de
violação das regras estabelecidas no interior da propriedade. Podem ainda aprisioná-las e
encaminhá-las à justiça criminal, caso a violação tenha desafiado as regras públicas
instituídas e configurado crime. Em última instância, agentes de segurança privada podem
utilizar força letal para proteger a integridade daqueles que os empregam (Paixão, 1991).
Esses poderes não estão disponíveis do mesmo modo para a polícia, pelo menos
nas sociedades democráticas. Agindo fundamentada sob e orientada para o sistema de
justiça criminal, o trabalho da polícia nos países democráticos está limitado pelas regras do
devido processo legal, que prevê procedimentos formalizados que visam proteger a
integridade e a privacidade dos indivíduos. Já a segurança privada não age baseada no
sistema de justiça criminal formal, mas segundo o que foi estabelecido privadamente por
contrato. Ao agir desse modo, ela não está submetida às mesmas regras que orientam o
trabalho da polícia. Para a segurança privada, o mais importante não é obedecer o devido
processo legal para que pessoas sejam presas e processadas sem a violação de direitos
fundamentais, mas sim prevenir e neutralizar ameaças reais e potenciais aos interesses dos
empregadores, daí o uso desinibido que pode fazer do controle de acessos e banimentos
dos espaços policiados (Paixão, 1991; Shearing e Stenning, 1983). Essa capacidade de
negar os bens e serviços desejados em caso de não acatamento das normas estabelecidas
é uma das principais características do policiamento privado e a ela está associada uma
outra que afeta a vida dos cidadãos: a capacidade de imprimir lógicas excludentes aos
espaços policiados (Caldeira, 2003; Shearing e Wood, 2003).
Mas a existência de ferramentas legais, físico-tecnológicas, pessoais e simbólicas
nada diz a respeito dos usos e abusos que os profissionais de segurança privada fazem
dessas ferramentas. Essa é uma questão empírica que até o momento não recebeu atenção
da bibliografia brasileira sobre segurança privada e foi objeto de poucos estudos na
1817
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
bibliografia internacional, cujos trabalhos existentes focaram mais no uso do que nos abusos
dos poderes disponíveis aos agentes que executam policiamento privado.
Com base na realidade dos EUA, Stenning (2000) têm argumentado que as
ferramentas legais e fisicamente coercitivas, amplamente usadas no policiamento público,
tendem a ser pouco utilizadas no trabalho de policiamento privado. Segundo o autor, os
profissionais de segurança privada normalmente realizam um tipo de policiamento mais
baseado no consentimento do que na ameaça ou uso da força física. Essa inclinação para
um policiamento de tipo consensual estaria relacionada a vários fatores. Em primeiro lugar,
organizações de policiamento privado estão mais focadas em prevenção, restituição e
compensação do dolo criminoso do que em repressão, vingança e reafirmação do consenso
moral, que estão no centro do trabalho da polícia. Para que agentes de policiamento privado
desempenhem essas tarefas, poderes legais e coercitivos nem sempre são necessários. Em
segundo lugar, Stenning sustenta que as organizações de policiamento privado
normalmente desencorajam seus agentes a utilizar poderes formais e ferramentas
fisicamente coercitivas no trabalho porque elas estão interessadas em minimizar conflitos e
em realizar um policiamento por consentimento, considerado mais fácil, menos estressante,
caro e perigoso do que o policiamento pela força. Organizações de policiamento privado
também seriam menos confiantes no uso de poderes legais e coercitivos porque teriam
autoridade e capacidade para utilizar ferramentas tecnológicas como alarmes, sensores,
câmeras de vigilância e outros equipamentos sofisticados que permitem um controle social
mais eficiente, barato e menos coercitivo. Finalmente, Stenning argumenta que as
organizações de policiamento privado e seus contratantes são muito influenciados por
processos legais movidos contra eles. Como os tribunais seriam pouco relutantes em
condenar agentes de segurança privada e seus contratantes por erros ou abusos, muitos
patrocinadores e provedores de policiamento privado têm preferido substituir ferramentas
abertamente coercitivas por recursos tecnológicos.
A hipótese de Stenning de que os profissionais de segurança privada tendem a
priorizar um policiamento tecnológico e consensual está em grande parte relacionada às
próprias características do policiamento privado. Sendo assim, era de se esperar que esse
tipo de policiamento estivesse presente em vários contextos nacionais. Mas as evidências a
esse respeito são limitadas e equívocas. Pesquisa realizada por Button e Park (2009) com
agentes de segurança privada que atuavam numa loja de departamentos, num complexo
industrial e num complexo de apartamentos da Coréia do Sul encontrou resultados que
corroboram a hipótese de Stenning. De um modo geral, a grande maioria dos agentes
entrevistados relatou que nunca ou raramente efetuava prisões (70%), revistas (71%) ou
usava força física (82%), fato que estava diretamente relacionado ao baixo grau de
conhecimento e confiança que os agentes exibiam sobre suas ferramentas de trabalho. Os
1818
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
autores sugeriram que essa realidade poderia estar relacionada a três fatores: ao
treinamento inadequado recebido pelos profissionais de segurança privada, ao fato de os
empregadores desestimularem o uso de ferramentas legais e físico-coercitivas e ao temor
de litígios e reclamações que poderiam provocar a demissão dos profissionais de segurança
privada.
Se os achados de Button e Park (2009) apóiam a idéia de que os profissionais de
segurança privada praticam um policiamento por consentimento, o mesmo não pode ser dito
em relação aos resultados encontrados por Button (2007) no Reino Unido. Button
entrevistou 49 agentes de segurança privada ocupados num complexo de lazer/compras e
numa indústria de armas e descobriu que eles usavam estratégias variadas para assegurar
consentimento, agindo de modo semelhante aos policiais (ver Dixon, 1997). Mas nas
situações em que essas estratégias falhavam, eles recorriam a ferramentas abertamente
coercitivas. Isso foi bastante evidente no espaço de lazer/compras pesquisado, que tinha em
seu interior bares e casas noturnas onde brigas e confusões eram freqüentes nos finais de
semana, obrigando os agentes de segurança a mobilizarem ferramentas legais e físicocoercitivas. Enquanto prisões e o uso da força eram raros na indústria de armas, no centro
de lazer/compras aproximadamente 1/3 dos agentes relataram efetuar prisões regularmente
e pouco mais da metade disse usar força física com freqüência. Button também descobriu
que essas ferramentas não eram mobilizadas com base no conhecimento dos poderes
legais detidos pelos agentes e sim a partir de avaliações de senso-comum.
Os trabalhos relatados acima indicam variações significativas em relação ao uso das
ferramentas de que os agentes de segurança privada dispõem para o trabalho de
policiamento. Os estudos não trataram dos possíveis abusos decorrentes do uso de tais
ferramentas, mas presume-se que também haja variações consideráveis em relação a esse
fenômeno. Isso aponta para a necessidade de mais estudos sobre esse tópico de modo a
abranger os diferentes espaços onde os profissionais de segurança privada atuam, bem
como diferentes contextos nacionais. Na sequência analiso essas questões tendo como
lócus de análise as atividades de policiamento privado existentes na maior e mais
importante cidade da América do Sul - São Paulo - e como fonte os registros policiais nos
quais agentes de segurança privada figuram como perpetradores de crimes cometidos no
exercício da atividade profissional. Mas antes de passar à análise desses dados, convém
apresentar brevemente o policiamento privado existente na cidade de São Paulo.
As Atividades de Policiamento Privado na Cidade de São Paulo
Os agentes que executam atividades de policiamento privado na cidade de São
Paulo (e no Brasil como um todo) podem ser divididos em dois grandes universos. De um
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
lado estão as empresas e profissionais de segurança privada que atuam com a autorização
expressa do Estado. Do outro está um universo heterogêneo composto por uma variedade
de serviços protetores executados por agentes não estatais que atuam à revelia da lei ou
sem que haja qualquer tipo de autorização do Estado.
O universo autorizado inclui tanto as empresas de capital privado que possuem
autorização da Polícia Federal para comercializar serviços de “vigilância patrimonial
intramuros”, “transporte de valores”, “escolta armada” e “segurança pessoal privada”
(empresas de segurança privada), quanto as empresas e instituições autorizadas a
organizar, para consumo próprio, atividades de vigilância patrimonial intramuros e transporte
de valores (empresas com segurança orgânica)1. Grosso modo, esses dois segmentos
correspondem àqueles que as legislações de diversos países e a literatura sociológica
tratam pelo termo “segurança privada”. Grosso modo porque as leis de alguns países
incluem na definição serviços de investigação particular e de segurança eletrônica. No
Brasil, tais serviços não fazem parte do universo legal da segurança privada (ver Lopes,
2011).
O setor de segurança privada da cidade de São Paulo apresenta dimensões
surpreendentes, quaisquer que sejam os critérios adotados para dimensioná-lo. Como
mostra a tabela 1, em 2009 a cidade concentrava 11% de todas as empresas de segurança
privada do país e 29% das organizações com segurança orgânica. Era a cidade de São
Paulo quem conferia ao Estado de São Paulo a liderança regional dentro do setor nacional
de segurança privada. Das 460 empresas de segurança privada autorizadas a funcionar
naquele Estado, 207 (45%) estavam efetivamente operando na cidade de São Paulo. No
segmento de segurança orgânica essa concentração era ainda maior, com 83% das
empresas sediadas na cidade.
1
O segmento legal de segurança privada também inclui os chamados “curso de formação”, empresas cuja
atividade-fim não é comercializar serviços de proteção e sim formar, especializar e reciclar a mão-de-obra que
executará policiamento - os vigilantes.
1820
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Tabela 1: Empresas e Profissionais de Segurança Privada Autorizados - 2009
Empresas de
Segurança Privada (1)
N°
Brasil
Região Norte
Região Nordeste
Região Centro-Oeste
Região Sul
Região Sudeste
Minas Gerais
Espírito Santo
Rio de Janeiro
São Paulo
Cidade de São Paulo (3)
1.813
124
367
181
349
792
122
36
174
460
207
Empresas com
Segurança Orgânica
%
N°
100,00
6,84
20,24
9,98
19,25
43,68
6,73
1,99
9,60
25,37
11,42
1.586
113
428
93
187
765
117
25
68
555
464
%
100,00
7,12
26,99
5,86
11,79
48,23
7,38
1,58
4,29
34,99
29,26
Vigilantes (2)
N°
458.761
35.675
85.118
38.228
66.113
233.627
27.738
12.582
48.601
144.706
88.927
%
100,00
8,00
18,55
8,33
14,42
50,92
6,05
2,74
10,59
31,54
19,38
Vigilante por
Habitantes
1: 423
1: 447
1: 626
1: 365
1: 427
1: 354
1: 727
1: 288
1: 330
1: 295
1: 123
Fonte: Polícia Federal, SESVESP, ABTV e ABCFAV
1 - Inclui Empresas de Vigilância Patrimonial, Transporte de Valores, Escolta Armada e Segurança Pessoa Privada;
Consulta à Polícia Federal em 07/07/2009;
2 - Consulta à Polícia Federal em 15/07/2009;
3 - No caso das empresas de segurança privada, contabiliza somente as empresas e os profissionais que
efetivamente operavam no mercado.
Quando o critério para dimensionar o setor de segurança privada é o número de
vigilantes em atuação, a importância da cidade de São Paulo para o setor de segurança
privada do Estado de São Paulo e do Brasil também se confirma. Segundo as informações
da Polícia Federal, em 2009 a cidade de São Paulo reunia cerca de 19% de todos os
vigilantes em atividade no país e 61% dos vigilantes do Estado de São Paulo.
Proporcionalmente à população, o município de São Paulo se constituía no principal
mercado de segurança privada do país: 01 vigilante para cada 123 habitantes.
A esses números soma-se um amplo contingente de atores não-estatais (ou que
agem nessa condição) que executam atividades de policiamento sem um claro respaldo
legal: o universo do policiamento privado irregular e semirregular. De um modo geral,
integram esse universo: (a) empresas juridicamente constituídas como de segurança
privada ou organizações com segurança orgânica que executam policiamento sem a
autorização da Polícia Federal; (b) empresas que prestam serviços típicos de segurança
privada sob a fachada de empresas juridicamente constituídas para atuar em outras áreas conservação e limpeza, administração de condomínios, promoção de eventos, etc; (c)
organizações juridicamente inexistentes ou simplesmente pessoas associadas que prestam
serviços de vigilância patrimonial intramuros ou em vias públicas, segurança em eventos,
serviços de proteção às pessoas, cargas, etc; e (d) seguranças autônomos sem qualquer
tipo de treinamento ou com o treinamento exigido pela Polícia Federal, mas que prestam
serviços como freelancer para pessoas ou propriedades das mais variadas2. No limite, esses
2
Segundo as normas federais que regulam a segurança privada no Brasil, é vedada a prestação de serviços de
segurança de forma autônoma.
1821
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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agentes e organizações podem assumir a forma de justiceiros, esquadrões da morte e
milícias urbanas ou rurais (ver Lopes, 2012).
Ninguém sabe ao certo qual a quantidade de atores privados que atua de forma
regular ou semirregular. As entidades de classe do setor de segurança privada acreditam
que, para cada profissional de segurança privada regularizado, haja três irregulares. Mas
essa é uma estimativa que não tem nenhuma base científica. Estimativas precisas são
difíceis de obter porque há dúvidas em se categorizar determinadas atividades como de
policiamento e conflitos de normas que tornam algumas atividades irregulares sob um ponto
de vista e regulares sob outro. Este é o caso das atividades de vigilância realizada em vias
públicas, seja por organizações ou por indivíduos autônomos. As normas federais que
regulam a segurança privada no Brasil não permitem esse tipo de atividade. Contudo, o
Estado de São Paulo tem promovido o registro de vigias de rua por meio da Polícia Civil,
visando com isso transformá-los em auxiliares dos serviços de segurança pública3. Além das
dúvidas jurídicas, há também dúvidas conceituais quanto à adequação de se caracterizar as
atividades de vigias de rua como policiamento. Alguns dos agentes que atuam na vigilância
de bairros residenciais talvez sejam mais bem definidos como “sentinelas” do que como
agentes de policiamento privado. O termo sentinela faria jus àqueles que se dedicam
explicitamente à atividade de vigilância, porém sem a possibilidade de mobilizar sanções.
Dificuldades de mensuração à parte, parece certo que uma parte importante do policiamento
privado da cidade de São Paulo é executado por profissionais de segurança pública,
especialmente policiais civis e militares. Segundo o presidente da Associação de Cabos e
Soldados da Polícia Militar (PM) de São Paulo, cerca de 85% dos soldados, cabos e
sargentos da PM paulista fazem bicos [moonlight], a maioria na segurança irregular de
estabelecimentos comerciais4.
Se há dúvidas quanto às dimensões das atividades irregulares ou semirregulares de
policiamento privado existente na cidade de São Paulo, o mesmo não pode ser dito sobre a
centralidade que o policiamento privado adquiriu dentro do contexto mais geral das
atividades de policiamento existentes na cidade. Somente o setor legalmente autorizado a
executar atividades de policiamento privado contava, em 2009, com um efetivo maior que a
soma dos efetivos das forças de segurança pública que atuavam na cidade de São Paulo:
3
O registro vem sendo realizado pelo Departamento de Investigações e Registros Diversos da Polícia Civil
(DIRD). A Secretaria de Segurança Pública pretende também oferecer treinamento a esses profissionais. Ver
matéria “SP começa a cadastrar vigilantes para checar se eles têm ‘ficha limpa”, publicada pelo portal G1.com
em 20/07/2011. Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2011/07/sp-comeca-cadastrarvigilantes-para-checar-se-eles-tem-ficha-limpa.html . Acesso em 06 de agosto de 2011
4
Ver matéria “O país dos vigilantes”, publicada na Revista Época, edição n° 636 de 24/07/2010. Disponível em:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI157492-15223,00-O+PAIS+DOS+VIGILANTES.html.
Acesso em 06 de agosto de 2011.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Guarda Civil Metropolitana (6.554), Polícia Civil (11.942) e Polícia Militar (35.578) (ver
gráfico 1).
100.000
90.000
80.000
70.000
Polícia Militar
60.000
Polícia Civil
50.000
40.000
Guarda Civil Metropolitana
30.000
Segurança Privada Regular
20.000
10.000
0
Segurança Privada Regular
Segurança Pública
Fonte: Polícia Federal, Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) e Guarda Civil Metropolitana (GCM)
Gráfico 1: Agentes de segurança privada regular e agentes de segurança pública
- cidade de São paulo (2009)
A comparação entre segurança privada e segurança pública na cidade de São Paulo
indica que a vida do paulistano médio é hoje mais policiada por agentes de segurança
privada do que por agentes de segurança pública. Não apenas por causa da superioridade
numérica da segurança privada, mas também pelo fato de as pessoas passarem parte
substantiva de seu tempo no interior de “communal spaces” (Kempa, Stenning e Wood,
2004) onde os profissionais de segurança privada estão amplamente presente: shoppings
centers, repartições públicas, bancos, instituições de ensino, espaços recreativos,
condomínios residenciais, condomínios de escritórios, etc. Nesse contexto, entender o modo
como os profissionais de segurança privada usam e abusam dos poderes de que dispõem
para o trabalho de policiamento é de grande importância.
Explorando as Violações de Direitos Civis nas Atividades de Policiamento Privado
Notas Metodológicas
Uma forma possível de se analisar as violações de direitos civis presentes nas
atividades de policiamento privado é por meio do estudo dos crimes cometidos por agentes
de segurança privada. A análise empírica apresentada na próxima está baseada nesse tipo
de evidência, obtida a partir do cruzamento entre um banco de dados contendo registros
policiais de crimes e um banco de cadastro de profissionais de segurança privada. O banco
criminal foi obtido junto à Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, em
outubro de 2010, tendo como referência os seguintes parâmetros: (a) local das ocorrências
criminais: cidade de São Paulo; (b) período: 01/01/2009 a 30/09/2010; (c) condição na qual
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
a pessoal figura no Boletim de Ocorrência: “autor”, “autor/vítima” ou “indiciado”; e (d)
profissão declarada à autoridade policial: “guarda”, “vigia”, “vigilante” e “segurança”,
genericamente chamados nesse trabalho de profissionais de segurança privada ou agentes
de segurança privada/policiamento privado. As informações desse banco criminal foram
cruzadas com as informações de um banco da Polícia Federal que continha a relação de
todas as pessoas residentes no Estado de São Paulo que haviam passado pelo treinamento
exigido por lei para desempenhar atividades de policiamento privado. O banco de cadastro
da Polícia Federal também continha informações sobre o vínculo empregatício dos agentes
de segurança privada em 27 de setembro de 2010.
O cruzamento dessas informações permitiu identificar ocorrências criminais
envolvendo profissionais de segurança privada de três tipos: os regulares, os semirregulares
e os irregulares. Profissionais regulares são aqueles que possuem o treinamento exigido
pela Polícia Federal e desempenham suas atividades na condição de funcionários de uma
organização autorizada
a executar
serviços
de segurança privada.
Profissionais
semirregulares são aqueles que possuem o treinamento exigido pelas normas federais, mas
atuam sem vínculo formal com organização de segurança privada autorizada pela Polícia
Federal – vínculo com empresa regular e treinamento são exigências da lei que regula a
segurança privada no Brasil. Já os profissionais irregulares são aqueles que não possuem
nem treinamento nem vínculo empregatício com organizações de segurança privada,
atuando completamente à margem das normas que disciplina a prestação de serviços de
segurança privada.
Como o interesse da pesquisa era apenas sobre os crimes cometidos no exercício
da atividade profissional, informação não disponível nos bancos de dados, foi preciso coletála nos Boletins de Ocorrência policial. Para isso, foram adotas duas estratégias distintas.
Para os profissionais regulares e semirregulares foi realizada pesquisa censitária em 3.694
e 1.572 Boletins, respectivamente. Como a população formada pelas ocorrências
envolvendo agentes de segurança privada irregulares era muito ampla (6.226 Boletins),
optou-se por sortear uma amostra aleatória estratificada com n=443. O planejamento dessa
amostra foi feito com base nos seguintes estratos: (a) delegacia seccional onde a ocorrência
havia sido registrada; (b) tipo de crime registrado; e (c) ano da ocorrência. Optou-se por não
incluir no sorteio as delegacias especializadas no atendimento da mulher, o que implicou na
exclusão de 2.454 registros criminais. Essa decisão foi tomada porque a pesquisa censitária
realizada junto aos Boletins de Ocorrência com profissionais regulares e semirregulares
identificou que somente 0,2% dos crimes registrados em delegacias especializadas no
atendimento da mulher haviam sido cometidos no exercício da atividade profissional.
Também foram excluídos do sorteio 836 registros criminais sem relação nenhuma com o
exercício da atividade de policiamento privado: sonegação, jogo de azar, crimes de trânsito,
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ISSN: 2317-0255
etc. Com essas exclusões, a população submetida à análise amostral foi de 2.936 Boletins
de Ocorrência policial.
As informações provenientes das fontes descritas acima estão sujeitas a alguns
limites de confiabilidade e validade que devem ser observados. O primeiro desses limites
decorre do fato de a população formada por agentes regulares e semirregulares conter
informações criminais do período entre janeiro de 2009 e setembro de 2010, mas somente
informações relativas ao vínculo empregatício (ou sua ausência) de setembro de 2010.
Assim, não é possível saber ao certo se os seguranças que cometeram crimes no período
anterior a setembro de 2010 estavam realmente vinculados a uma organização de
segurança privada autorizada pela Polícia Federal. Essa dificuldade traz alguns problemas,
já que a existência de vínculo com organização de segurança privada é o que permite
identificar com precisão se um profissional de segurança privada que passou por
treinamento desempenha funções de forma regular ou semirregular. Mas há razões para
crer que eventuais distorções ocasionadas por esse fato não são significativas a ponto de
prejudicar a análise. Dados de 2009 da Relação Anual de Informações Sociais do Ministério
do Trabalho e Emprego (RAIS/MTE) indicam que o tempo médio de emprego dos
profissionais regulares de segurança privada da cidade de São Paulo era de 34 meses,
portanto, tempo superior à maior diferença temporal possível entre a data do vínculo
empregatício sabida e as diversas datas de ocorrências criminais analisadas.
As inferências realizadas por esse trabalho também estão sujeitas aos limites de
validade típicos de estatísticas oficiais de criminalidade. Em primeiro lugar, deve-se ressaltar
que o universo analisado é composto somente pelas situações nas quais a ação de um
profissional de segurança privada resultou em algum tipo de crime ou infração que foi
denunciada e registrada pelas autoridades policiais. Abusos cometidos que não chegam até
o sistema de justiça criminal ou que não configuram crime ou infração estão, evidentemente,
fora da análise. Em segundo lugar, é preciso esclarecer que as categorias delitivas contidas
nos códigos formais têm como preocupação central permitir a punição justa de
determinadas ações. Essas categorias pouco dizem a respeito das condições sob as quais
delitos foram cometidos. Isso dificulta sobremaneira análises precisas sobre abusos, já que
versões e concepções conflitantes sobre o que vem a ser um abuso em atividades de
policiamento privado normalmente perpassam o processo de construção do registro
criminal. Um registro de lesão corporal dolosa, por exemplo, pode ter se originado de uma
situação na qual um profissional de segurança privada usou força física de maneira
proporcional à ameaça enfrentada, no que configuraria legítima defesa. Contudo, a vítima
tenderá sempre a relatar à autoridade policial uma situação na qual ela foi alvo de uma
agressão indevida e não justificada. Em última instância, caberá ao policial ouvir as partes
envolvidas e decidir se a ocorrência será ou não registrada e de que forma isso será feito.
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No exemplo em questão, a favor da inferência que se pretende realizar pesa o fato de os
policiais serem peritos no uso da força proporcional, portanto, capazes de avaliar, segundo
critérios profissionais, se determinada ação configura uso abusivo da força, justificando um
registro de lesão corporal. Contra a inferência pretendida pesa o fato de que, se o abuso foi
cometido por um policial fora do dever trabalhando em atividades de policiamento privado
(portanto, agindo na condição de agente de segurança privada), o espírito de corpo
provavelmente pesará na avaliação do policial que estiver atendendo à ocorrência, que
tenderá a não registrá-la ou registrá-la de forma inadequada - exceto em casos muito graves
e com testemunhas.
Resultados
A análise dos registros policiais mostra que o volume de ocorrências criminais
envolvendo os três tipos de agentes que executam policiamento privado na cidade de São
Paulo é bem distinto. A quantidade de crimes cometidos por agentes irregulares é muito
maior do que a quantidade de crimes perpetrados por seguranças regulares e
semirregulares (gráfico 2). A estimativa para os irregulares aponta a existência de algo entre
628 e 862 crimes, contra 277 e 144 crimes cometidos por profissionais regulares e
semirregulares, respectivamente. Esses dados não deixam dúvidas quanto ao fato de que o
policiamento privado executado por profissionais irregulares é muito mais problemático do
que o policiamento realizado por profissionais regulares e semirregulares. Mas esses dados
não autorizam a afirmação de que os crimes estão mais concentrados nas atividades de
policiamento privado irregular, pois não sabemos a quantidade de agentes que executavam
essas atividades no período entre janeiro de 2009 e setembro de 2010. O maior número de
ocorrências envolvendo seguranças irregulares pode simplesmente refletir o fato de haver
mais pessoas executando policiamento privado irregular do que regular e semirregular.
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ISSN: 2317-0255
1000
900
800
700
600
Irregulares
500
Regulares
400
Semirregulares
300
200
100
0
Fonte: Construído a partir de dados da CAP/SSP-SP e Polícia Federal. IC para os irregulares de 95%.
Gráfico 2 - Número de ocorrências envolvendo profissionais de segurança privada
- cidade de São Paulo (01/2009 a 09/2010)
Do ponto de vista da natureza criminal das ocorrências registradas, os dados
indicam que os crimes contra a pessoa predominam, não havendo diferenças estatísticas
significativas entre os três tipos de profissionais. Mais de 2/3 das ocorrências são de crimes
contra a pessoa (gráfico 3). Essa realidade mostra que o potencial de ameaça aos direitos
civis presente nas atividades de policiamento privado tem se concretizado, dando razão às
preocupações manifestas por diversos estudiosos.
Outros *
Crimes contra a
administração pública
Contravenções penais
Semirregulares
Crimes contra o patrimônio
Regulares
Irregulares
Crimes e contravenções
com armas de fogo
Crimes contra a pessoa
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
Fonte: Construído a partir de dados da CAP/SSP-SP e Polícia Federal. IC para os irregulares de 95%.
Gráfico 3 - Natureza criminal das ocorrências envolvendo profissionais de segurança privada
- cidade de São Paulo (01/2009 a 09/2010)
Essas ameaças aos direitos civis não se distribuem de forma homogênea entre os
espaços onde o policiamento privado é ativo. Os dados mostram que os crimes contra a
pessoa se concentram em locais com características distintas, variando de acordo com o
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
tipo de profissional (gráfico 4). No caso dos profissionais irregulares e semirregulares, a
grande maioria dos crimes registrados ocorre em estabelecimentos comerciais e espaços de
entretenimento: casas noturnas, bares e restaurantes. Esse padrão não se reproduz do
mesmo modo entre os profissionais regulares, cujas ocorrências encontram-se mais
dispersas entre diferentes tipos de espaços, com destaque para os terminais de transporte
coletivo, que concentram cerca de 37% dos crimes contra a pessoa cometidos por vigilantes
regulares. Essa realidade parece refletir em alguma medida o fato de determinados tipos de
profissionais estarem mais presentes em alguns espaços do que em outros. Esses dados
também apontam que os crimes contra a pessoa cometidos por profissionais de segurança
privada ocorrem em espaços freqüentados pelo público em geral e não em espaços
privados reservados a públicos específicos, caso das empresas e dos condomínios.
Outros (varios)
Área de recreação
Hospital/prédio de saúde
Banco
Semirregulares
Via pública
Regulares
Estabelecimento comercial
Irregulares
Terminal de trem/metrô/ônibus
Bar/restaurante/casa noturna
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
Fonte: Construído a partir de dados da SSP-SP e Polícia Federal. IC para os irregulares de 95%.
Gráfico 4 - Locais dos crimes contra a pessoa cometidos por profissionais de segurança privada
- cidade de São Paulo (01/2009 a 09/2010)
Uma visão mais contextualizada a respeito do modo como os profissionais de
segurança privada usam e abusam dos poderes de que dispõem para o trabalho de
policiamento pode ser obtida a partir da comparação entre a natureza dos crimes contra a
pessoa cometidos por agentes de segurança privada e as denúncias registradas pela
Ouvidoria de Polícia do Estado de São Paulo de crimes contra a pessoa perpetrados por
policiais civis e militares da cidade de São Paulo. Como mostra o gráfico 5, entre os agentes
de segurança pública predominam as denúncias de abusos de autoridade de naturezas
variadas e os crimes contra a vida. Já nas atividades de policiamento privado as ocorrências
criminais registrada com mais freqüência são as de lesão corporal, seguidas de longe pelas
violações da liberdade individual (ameaça, constrangimento ilegal e seqüestro/cárcere
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
privado) e da honra (calúnia, injúria e difamação). Esse padrão se repete para os três tipos
de profissionais de segurança privada existentes. É curioso notar que nos dados da
Ouvidoria não aparecem crimes contra a honra cometidos por policiais. Isso provavelmente
ocorre porque desvios dessa natureza ou similares, que poderíamos chamar de agressões
verbais, devem estar contidos nas categorias genéricas “abusos de autoridade” e “abusos
de autoridade outros”, agregadas no gráfico 5 sob a rubrica “outros abusos cometidos por
policiais”.
Outros abusos cometidos
por policiais**
Outros crimes contra a
pessoa
Contra a liberdade
individual
Contra a honra
Contravenções
(agressão/vias de fato)
Lesões Corporais
Contra a Vida
0%
Policiais
5%
10% 15% 20% 25% 30% 35% 40% 45% 50% 55% 60% 65% 70%
Seg. privada regular
Seg. privada semi-regular
Seg. privada irregular
Fonte: Construído a partir de dados da SSP-SP e Polícia Federal. IC para os irregulares de 95%.
Gráfico 5: Crimes contra a pessoa denunciados: políciais civis e militares x agentes de segurança privada
- cidade de São Paulo (01/2009 a 09/2010)
O perfil dessas ocorrências parece refletir claramente as distintas ferramentas legais
e coercitivas disponíveis aos policiais e agentes de segurança privada. O grande número de
denúncias de crimes contra a vida envolvendo policiais certamente está relacionado aos
poderes legais e físico-tecnológicos que os policiais dispõem para usar força letal. Como
discutido anteriormente, esses poderes não estão disponíveis da mesma forma para os
profissionais de segurança privada, razão pela qual os crimes contra a vida são raros nas
atividades de policiamento privado. Nessas atividades predominam as lesões corporais, o
que indica que as violações cometidas por profissionais de segurança privada estão
relacionadas ao uso abusivo de força física não-letal.
Infelizmente não é possível comparar a prevalência de casos de lesão corporal
presente nas atividades de policiamento público e nas atividades de policiamento privado
como um todo, pois não sabemos as dimensões do policiamento privado irregular e
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
semirregular. Mas é possível fazer essa comparação considerando apenas o universo do
policiamento privado regular. Como mostra o gráfico 6, os registros criminais de lesão
corpora são tão recorrentes nas atividades de policiamento privado regular (6 casos por 10
mil seguranças) quanto são os casos de policiais denunciados por lesão corporal nas
atividades de policiamento público (7 casos por 10 mil policiais).
Outros abusos cometidos
por policiais
Outros crimes contra a
pessoa
Contra a liberdade
individual
Contra a honra
Contravenções
(agressão/vias de fato)
Lesões corporais
Contra a vida
181,40
0,06
8,63
2,39
44,19
1,89
0,67
18,94
5,96
7,58
0,28
150,88
Policiais
Seg. privada regular
Fonte: Construído a partir de dados da SSP-SP e Polícia Federal. IC para os irregulares de 95%.
Gráfico 6: Crimes contra a pessoa denunciados para cada grupo de 10 mil policiais e seguranças
regulares - cidade de São Paulo (01/2009 a 09/2010)
Aparentemente, a taxa de lesão corporal entre seguranças regulares só não é maior
do que as taxas de policiais denunciados pela prática desse crime porque, por razões
operacionais, os primeiros tendem a atender ocorrências em menor número do que os
últimos. Assim, num contexto de abuso, mais policiais tendem a ser denunciados do que
profissionais de segurança privada. No período analisado, por exemplo, a Ouvidoria
registrou 11 denúncias nas quais foram acusados de lesão corporal 36 policiais, o que dá
uma média de 3,3 policiais acusados por ocorrência. Já nas atividades regulares de
policiamento privado foram registradas 138 ocorrências contra 175 profissionais de
segurança privada, média de 1,2 profissionais de segurança privada por ocorrência.
A julgar pelos dados expostos acima, a hipótese formulada por Stenning (2000)
sobre o caráter pouco coercitivo do policiamento privado parece não se confirmar para a
cidade de São Paulo. A realidade que emerge dos registros criminais analisados parece
mais próxima do cenário encontrado por Button (2007) no centro de lazer/compras estudado
no Reino Unido, onde ferramentas coercitivas eram frequentemente utilizadas, do que a
encontrada por Button e Park (2009) na Coréia do Sul, onde recursos coercitivos eram
pouco empregados. Para o caso de São Paulo, os dados sugerem que os profissionais de
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
segurança privada não apenas usam força física não-letal com freqüência, mas também
abusam desse recurso de forma tão recorrente quanto os policiais.
Conclusão
Com base em informações criminais, esse artigo procurou avaliar de maneira
exploratória o modo como o policiamento privado impacta os direitos civis da população. As
evidências aqui apresentadas mostram que as atividades de policiamento privado existentes
na cidade de São Paulo não são inofensivas aos direitos civis. Os dados indicam que os
profissionais de segurança privada frequentemente violam a integridade física, a liberdade e
a honra dos cidadãos, especialmente dos que freqüentam espaços de entretenimento,
comércio e terminais de transporte público da cidade de São Paulo. Enquanto seguranças
regulares cometem mais violações nos terminais de transporte coletivo, seguranças
irregulares e semirregulares se excedem mais em bares, casas noturnas, restaurantes e
estabelecimentos comerciais. Os dados também sugerem que o padrão de abusos presente
nas atividades de policiamento privado é distinto daquele encontrado nas atividades de
policiamento público. Enquanto policiais parecem usar e abusar com maior freqüência dos
poderes legais que lhes conferem o direito de usar força letal para a manutenção da ordem
pública, profissionais de segurança privada usam e abusam com mais freqüência de
ferramentas físicas e corporais não-letais em nome da manutenção da ordem no interior de
espaços policiados privadamente.
Essas descobertas parecem suficientes para justificar mais esforços de pesquisa em
torno dessa problemática. Até o momento, o modo como o policiamento privado afeta os
direitos e liberdades individuais foi objeto de pouca pesquisa empírica. Esse artigo foi um
primeiro esforço para preencher essa lacuna. Esperamos que a ele venham se somar outros
esforços, contribuindo assim para um melhor entendimento das consequências que a
pluralização do policiamento tem para a vida dos cidadãos.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Notas sobre racismo e ordenamento sexista no sistema de justiça juvenil
Elisa Matos Menezes
Mestre em Estudios de la Mujer
Universidad Autónoma Metropolitana – Unidad Xochimilco
Realizar o debate sobre esta temática no momento em que estamos enquanto
sociedade rediscutindo as legislações punitivas para infância e juventude é de extrema
relevância. Ao refletir sobre a historicidade destas legislações, penso que na realidade
este debate nunca esteve encerrado, e provavelmente nunca estará. Definitivamente
existem ataques relevantes ao pouquíssimo avanço legislativo, que não deixarei de
questionar. Falo por exemplo da lei, que entre outras, está tramitando no senado
federal para inclui parágrafo único no artigo 228, da Constituição Federal, com o
objetivo de considerar penalmente imputáveis os maiores de treze anos que tenham
praticado crimes definidos como hediondos1.
É importante entender o que são questões étnicas e raciais. Como apresentado
de forma pertinente por Rita Segato, raça é signo, é leitura social das pessoas. Ela
não existe geneticamente, e provar a existência de diferenças genéticas para a raça
se trata historicamente de um projeto com motivações eugenistas e que, portanto, com
consequências catastróficas e genocidas.
Cabe lembrar que a criminologia, notadamente, é um âmbito que incorporou e
desenvolveu de forma basilar estas concepções genéticas da raça. E esta criminologia
lombrosiana é ainda hoje fonte de inspiração para muita gente que defende questões
raciais neste âmbito. Esta corrente do pensamento criminológico realiza um cálculo
simples que é observar características físicas das pessoas presas e associá-las a um
padrão comportamental. A conclusão desta observação empírica é que se
determinadas características físicas ocupam maiores índices de determinado crime,
significa que este tipo racial possui propensões a este crime, e que, portanto, devem
ser sujeitos de encarceramento, controle ou extermínio social. Este pensamento
ignora, obviamente, que existe uma seletividade direcionada a determinados
segmentos sociais que serão considerados criminosos. Como defende Flauzina, a
criminologia é, portanto, um espaço estratégico para se falar em raça, porque neste
campo criaram-se teorias que engendraram projetos genocidas.
Quando se fala em raça trata-se da leitura social, ou seja, em como
determinado fenótipo (e não genótipo!) e tudo o que a ele se atribui é lido socialmente.
E é a partir dessa leitura social que falamos da existência de racismo. Neste sentido, o
racismo se estrutura e define quem está dentro ou fora do espectro de humanidade,
como bem define Ana Luiza Flauzina emCorpo Negro caído no chão: o sistema penal
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
e o projeto genocida do Estado Brasileiro. Ou como definiria o Primo Preto, do
Racionais Mc´s:
“60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência
policial. A cada 4 pessoas mortas pela polícia 3 são negras. Nas universidades
brasileiras apenas 2% dos alunos são negros. A cada 4 horas um jovem negro morre
violentamente em São Paulo.”2
O racismo define também as potencialidades e expectativas sociais sobre as
pessoas. E aqui também vou citar Racionais Mc´s:
“Tipo condição de ocupar um cargo bom e tal, talvez em uma multinacional.
Pensando bem que desperdício. Aqui na área acontece muito disso. Inteligência e
personalidade, mofando atrás da porra de uma grade.”
O que seria então falar em etnia, ou questões étnicas? Etnia significa a leitura
do pertencimento comunitário, também definido pelo uso comum da linguagem e da
cultura. Por exemplo, uma pessoa pode ser fenotipicamente indígena, ou ostentar o
signo da raça, porém não se sentir ou ser considerado comunitariamente como
pertencente a alguma etnia. A própria concepção de etnia, que remonta da Grécia
antiga, é problemática uma vez que é pensada para cunhar o estrangeiro, o outro
exótico, e, portanto, não é comum se referir a etnias de grupos hegemônicos,
principalmente grupos humanos brancos e ocidentais. Os grupos étnicos no Brasil, por
exemplo, são marcadamente grupos indígenas. A antropologia realiza um debate
importante sobre essa temática, e ainda que não seja sua tradição fundante,
atualmente tem se aberto para elaborar etnografias de grupos marcadamente não
subalternizados. Meu trabalho vai nessa linha, de realizar uma etnografia do estado
policial.
Existem evidentemente ataques que são etnicamente racistas. Como o que
aconteceu com os Tutsis em Ruanda, ou acontece hoje com os Guarani Kaiowa. Os
grupos humanos negros sobreviveram a este processo em larga escala a princípio
com a escravidão, uma vez que a comercialização dos seus corpos os posicionou
forçosamente em diferentes geografias (diáspora), e como marca desta violência
etnicamente racista foram coagidos ao apagamento da sua memória histórica, e de
qualquer traço de pertencimento ao seu grupo humano original. Este processo de
violência
etnicamente
racista
se
intensifica
com
o
reposicionamento
na
obrigatoriedade de assumir outros símbolos e idiomas como seus, que é justamente
esta formação do Estado nação brasileiro, por exemplo. Assim os grupos negros no
Brasil, diferentemente da história dos grupos humanos brancos que compõe esta farsa
1833
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
de nação, sofreram e sofrem ataques de cunho genocida, o que significa o emprego
forçado da desintegração étnica, motivado de forma evidente por uma estrutura
racista.
Ainda sobre o título do seminário, o que significa falar em “gênero” no sistema
sócio educativo? Gênero é também uma ferramenta analítica, serve para entender
como o ordenamento social diferencia as pessoas de acordo com a leitura do sexo.
Existe um longo debate em torno do conceito que não cabe entrar aqui.
Particularmente, prefiro utilizar a terminologia que indica o sistema sexista ou machista
para interpretar a realidade social. Parece-me que atualmente é politicamente mais
profícuo porque infere uma estrutura social materialmente desigual. Ou seja, não se
trata de um debate filosófico, trata-se de um debate sobre a concretude da vida das
pessoas. E o sistema socioeducativo, enquanto tentáculo do sistema jurídico
articulador do ordenamento social, é também lócus importante onde as estruturas
sexistas estão expostas massivamente.
Mas como o sistema socioeducativo pode ser um importante articulador de
estruturas racistas e sexistas, e que, portanto, tratam de definir àqueles que estão
dentro ou fora do espectro de humanidade?
Para realizar esta análise recorro às etnografias que realizei do sistema de
justiça juvenil do Distrito Federal brasileiro e mexicano. No DF brasileiro me atentei
com maior cautela sobre os aspectos da perpetuação racista do sistema de justiça
manifestados na violência do estado, enquanto no DF mexicano estudei o trato
específico destinado às adolescentes mulheres (também com a leitura sobre racismo e
classismo).
Poderia escolher diversos formatos para apresentar este acúmulo. Apresento a
escuta da dor, uma vez que atentar para a forma como a dor é escutada permite
perceber as “blindagens” para a escuta das denúncias de crimes do estado
perpetrados contra adolescentes. A escuta, ou melhor, a não escuta sobre os crimes
perpetrados contra as e os adolescentes coloca em evidência a potencialidade deste
sistema em considerá-los/as como sujeitos de direito. O fluxograma a seguir apresenta
os momentos em que um adolescente tratou de denunciar a violência policial
perpetrada no sistema de justiça juvenil do DF brasileiro. É uma análise do processo
infracional do adolescente.
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Fluxograma da denúncia de violência policial: da apreensão do jovem a
trajetória no “sistema de garantia de direitos”
Fluxograma da denúncia: Da apreensão a trajetória no sistema de garantia de
direitos
Apreensão do
adolescente
Residência
Local que sofreu a
violência policial
Oitiva
informal
Termo de
declarações: fala do
adolescente sobre a
violência policial
PDIJ MP
Audiência
VIJ
encaminhamento
DCA
CAJE
Exame de lesões
corporais ad
cautelum
B.O.
encaminhamento
Interrogatório do
adolescente e do
parceiro: fala sobre
violência policial
IML
Decisão
interlocutória
CESAMI
TJDFT
Fala sobre a
violência policial
Audiência
de
continuaçã
o
VIJ
CESAMI
Internação
provisória
CESAMI
Solicitação do laudo
do IML
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Cumprimento
da LA
Cumprimento
da
semiliberdade
Ofício da VIJ
Cantinho do
Girassol
Progressão da medida
CDS
Extinção do
processo
VIJ
Trâmite dos autos:
Defensoria
Pública
PDIJ
Alegações Finais
VIJ
Alegações Finais
IML
Laudo
positivo à
violência
(16.02.05)
Sentença
(13.10.04)
Giorgio Agamben (2002) soube precisar o limbo da situação vivenciada pelas
vidas cuja voz legítima ou direito à comunicação é usurpada. A conclusão radical que
este teórico colocou em evidência permite sugerir a objetificação do corpo dessas
jovens. Este corpo passa a ser a sede de uma “vida nua”, destituída de direitos, ou
sobre a qual os direitos não se aplicam. A “vida nua” é constituída pela privação do
direito sobre o corpo que, desta forma, pode ser territorializado pela inflicção da dor,
sustentando assim o salvo conduto do Estado em relação ao corpo das adolescentes.
A “vida nua” é esta vida que não possui status jurídico de pessoa, e sobre ela é
permitida uma gama de operações de estado, inclusive a extinção do direito à vida.
Este autor nos lembra da importância em pensarmos em uma “tanatopolítica”, ou
política sobre a morte, o controle realizado pelo estado sobre o “deixar morrer”, tema
especialmente relevante para discutir os altíssimos índices de extermínio da
população jovem e negra.
Esta inferência é dissonante dos paradigmas jurídicos estabelecidos pelas
legislações de direitos protecionistas da criança e do adolescente no Brasil e no
México, no qual também se estabelece a sua inimputabilidade. Mas, se seguirmos a
teoria do homo sacer desenvolvida por Agamben (2004), teremos de admitir que o
1836
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
ordenamento jurídico mantém um “estado de exceção permanente” que se constitui no
paradigma de poder fundante das democracias modernas.
O corpo dessas adolescentes, quando submetido à violência, é um lócus, um
domínio territorial, sobre o qual o Estado estende e instaura seu poder. O corpo da e
do jovem é, então, convertido em objeto de várias operações de Estado (porque
levadas a cabo em seu nome, por parte de instituições competentes para tanto). Corpo
que assim, resta situado como um lugar de batalha, de disputa, sobre o qual pesam
várias interpelações, endereçadas por uma gama ampla e heterogênea de instituições
do Estado, que cobram a legitimidade de suas determinações e recriam a realidade de
seu poder, materializando e dando concretude à ficção jurídica que lhes sustenta.
Poder de Estado cuja força está radicada na possibilidade de interferir, regular e
determinar os destinos dos corpos sobre os quais se estabelece jurisdição.
Estas enunciações estão circunscritas em um cenário no qual os e as
adolescentes estão inseridos/as no sistema na qualidade de denunciadas/os. O
cenário de criminalização da juventude na America Latina está configurado por uma
série de fatores que complexificam a análise. Em primeiro lugar, destaco o discurso
público, emitido por formadores de opinião como a mídia. A comparação dos
elementos midiáticos no Brasil e no México permite perceber que a desqualificação da
voz dos sujeitos adolescentes que respondem ao sistema judiciário como autores/as
atravessa o contexto latino-americano. Esta característica da credibilidade socialmente
atribuída a estas/estes adolescentes não se alterou com as legislações protecionistas
promulgadas no final da década de 80, o que deixa margem para refletir sobre a
distância entre a lei e a vida (FONSECA, 1999).
Se no discurso público a exigência pelo aumento da punição deste segmento
da população é perceptível, qual seria a prática das instituições do sistema de justiça
juvenil, principalmente se considerarmos a sua atribuição legal de garantir os direitos
humanos das e dos adolescentes?
Nestas pesquisas entrei em contato com inúmeros relatos de jovens sobre
atrocidades policiais, bem como analisei a audibilidade das suas vozes nas instâncias
que circunscrevem a sua passagem pelo âmbito institucional. Pude concluir que a
negação à escuta institucional da denuncia de violência perpetrada contra
adolescentes dentro do sistema de justiça juvenil, gera práticas de objetificação
sistemáticas. As adolescentes entrevistadas na Cidade do México apontam como uma
das práticas violentas a nudez forçada, que é justificada pelos agentes do sistema
1837
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ISSN: 2317-0255
jurídico juvenil como uma medida essencial para discernir a menoridade das
adolescentes. Recorro, no entanto, a uma vasta literatura que trata de definir esta
prática como violência sexual como forma de tortura, especialmente utilizada contra as
mulheres.
Esta negação sistemática de direitos, associada à judicialização das vidas (por
meio da medida socioeducativa) implica na negação do reconhecimento enquanto
sujeitos, e por consequência na desumanização das e dos adolescentes. Ou seja, por
um lado se atribui a qualidade de autor de crime, ou dito de outro modo, de criminoso
aos e as adolescentes, e por outro, não os considera como sujeitos de direito legítimos
cujos crimes perpetrados contra elas e eles poderiam gerar a demanda por justiça.
Passamos então a perceber a retórica legalista de atribuir a inimputabilidade dos
adolescentes no direito penal, para compreender que os reais inimputáveis são os
agentes do estado que poderão perpetrar os crimes que lhes convir em contra dos e
das adolescentes sem que isso mobilize instâncias de responsabilização desta
corporação.
É relevante também pontuar que ainda que exista uma mudança semântica
significativa nos termos para denominar o sistema, de um sistema menorista para
socioeducativo, este esforço não rompe com a lógica central, trata-se, portanto de uma
reforma. E neste sentido ainda que ocupe a terminologia da “socioeducação”, que
acompanha este processo global de direitos da infância e juventude, a lógica continua
a ser a de responsabilização seletiva de determinado estrato social: a juventude pobre
e negra. Esta seletividade é marcada tanto pela composição massiva de corpos
negros ou indígenas, como por exemplo, com as características que agentes do
estado entrevistados informaram ser relevantes para a ideia de “atitudes suspeitas”. O
técnico da academia de polícia militar, por exemplo, informou que “cerca de 80% das
apreensões que os policiais fazem são baseadas nas atitudes suspeitas” e que
“ocorrem antes do crime acontecer”. Quando questionado sobre o perfil do suspeito, o
técnico da academia civil respondeu que “é o que está vestido com o Kit Mala”:
APC: Se ele estiver em local indevido e estiver trajado daquela forma (kit mala)
é geral, mas tem que abordar. Essa é a realidade. Qual é o perfil? O perfil é esse, mas
não pode ter o preconceito, abordar porque tem aquela aparência.
O “Kit mala”, ou “kit peba”, é uma categoria utilizada pelos agentes do Estado
(tanto policiais como promotores do controle externo da polícia) para descrever o
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jovem trajado com bermuda, sandália e boné. O que não está nomeado explicitamente
no discurso destes agentes é que o perfil deste sujeito, além de ser marcado pelas
características da juventude, é racializado. Está explícita também a localização
geográfica deste suspeito, o que é categorizado pelos promotores e técnicos da
academia como “áreas críticas”:
APM: Fiquei 2 anos só trabalhando em local crítico na ROTAM. Uma das áreas
críticas foi: Arapoanga, Planaltina, Sobradinho (periferia em geral).
O policiamento ostensivo das áreas mais pobres da cidade é direcionado com
todo vapor para a criminalização da existência da população negra. Esta seletividade
baseada no território e em seguida nas características das pessoas, o que persiste
com a busca do “elemento suspeito”, coloca em evidência este direito penal do autor,
que está baseado na criminalização da pessoa e não do crime em si. O mapa a seguir,
publicado pela Companhia de planejamento do Distrito Federal (CODEPLAN)
corresponde ao lugar de moradia da população segundo a configuração racial:
Existe ainda neste sistema socioeducativo uma argumentação criminalizante
impressa nas avaliações psicológicas que são também patologiazantes. Coloco aqui,
como exemplo, a análise do processo infracional de um adolescente assassinado por
um Policial Militar. Neste processo havia uma apelação especial da promotoria
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exigindo uma sentença mais gravosa para o adolescente. Aqui, uma frase sintomática:
“À evidência, constata-se que o jovem demonstra personalidade desviada, tendente a
trilhar pelo submundo da delinqüência, desrespeitando as regras de uma sociedade
organizada”.
É importante mencionar que as características raciais dos e das adolescentes
aparecem apenas no Boletim de Ocorrência, ou seja, o momento de caracterização do
“criminoso” pela polícia é o único momento neste sistema que se menciona com todas
as letras o seu lugar na estrutura racista. É ainda expressivo o alto índice de
encarceramento por crimes contra a propriedade, tipificação penal que atinge
especialmente aos despossuídos, marcando também uma estrutura de seletividade
classista do sistema jurídico juvenil.
O sistema penal opera desta forma em todas as condenações, e ao punir a
pessoa e não os fatos, esse sistema opera com um modelo inquisitorial, de caça às
bruxas, como descreve Zaffaroni no seu livro O inimigo no direito penal. Neste sentido
que me refiro a um projeto de sociedade falido, que não deu certo, porque gera os
contextos de violência, ao mesmo tempo em que trata de eliminar de uma forma
personalista aqueles e aquelas que a incorporam e que são socialmente puníveis.
Mas porque falamos em condenação da pessoa e não dos fatos? Além das
características raciais, a lesbianidade, por exemplo, é largamente utilizada nos
processos acusatórios como um elemento comprobatório de culpabilidade. Uma parte
da psicologia jurídica tem servido para realizar esta manobra discriminatória ao definir
sexualidades dissidentes como perversão. O livro de Beatriz Gimeno sobre a
construção da lesbiana perversa nos permite ilustrar essa manobra recorrente nos
julgamentos. Então todas essas características sociais estão imersas no debate do
direito. E operam de forma a determinar a humanidade ou não, a monstruosidade ou
não, das pessoas sub judice.
Outro exemplo de como o julgamento recai sobre a pessoa e não sobre os
fatos é a permissividade da ação policial. A polícia possui uma autorização social para
realizar séries de arbitrariedades contra as pessoas, principalmente contra aquelas
que socialmente se atribui a qualidade de criminosas. Como funcionários da lei, os
policiais possuem esta legitimidade social e jurídica para cometer qualquer crime sem
que sobre ele recaia a mesma medida punitiva que a outros indivíduos. Podemos
perceber que existem dois pesos e duas medidas, o autor do crime é condenado e não
o crime em si. E isso só para exemplificar um lugar de inimputabilidade, entre muitos
outros nessa sociedade que vivemos.
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Mas o que constitui a ideia de crime para as mulheres? Sobre este aspecto
podemos discorrer a partir da criminologia crítica e da contribuição de autoras que
pensaram questões de gênero no campo do direito. O conceito de crime não é fixo,
único, é fixado historicamente. Como por exemplo, para pensarmos sobre crimes e
mulheres, apenas recentemente a violência contra as mulheres perpetrada por
pessoas do seu círculo íntimo é considerada um crime.
É importante interpretar o significado dos baixos índices de encarceramento
das mulheres adolescentes, quando comparados ao índice masculino, que
corresponde a cerca de 10% do total. Este baixo índice não significa que a sociedade
é mais permissiva quanto à correção das mulheres ou que estas sejam mais
“comportadas”. Significa que o lugar coercitivo está em outro âmbito, como na esfera
familiar que centraliza o controle social das mulheres e por esta razão o cárcere não é
exatamente reservado para elas, apenas nos casos em que extrapolam o dever ser
mulher “de família”. O lugar de ordenamento social recai principalmente sobre a
sexualidade das mulheres, o que as retém de ocupar espaços públicos e de disputar
poderes em outras esferas sociais. O cárcere é então reservado para as mulheres que
a ordem “familista” não conseguiu conter.
Na etnografia que realizei na Comunidad de Mujeres (instituição do sistema
jurídico juvenil mexicano para internação das adolescente) percebi especialmente o
sexismo nas ações punitivas do Estado. Além da particularidade da violência sexual
direcionada a elas como parte do cotidiano das revistas vexatórias, os labores que
contém a grade de atividades das adolescentes internas a esta instituição são práticas
de disciplinamento da ordem sexista. Como, por exemplo, atividades de costura, salão
de beleza, cozinha, labores considerados da esfera “feminina”. Neste sentido trata-se
de uma correção ao ordenamento sexual e a internação oferece a possibilidade de
recolocá-las no seu dever ser mulher.
A correção dos crimes das mulheres é realizada, quase sempre, por um
sentido jurídico paralelo, porém aliado ao sentido do direto penal. É como se o
corretivo operasse principalmente de forma subjetiva. É por esta razão que o retrato
dos cárceres ao redor do globo é de mulheres condenadas por crimes que significam a
responsabilização sistemática das mulheres pela reprodução, como o “abandono
familiar”, infanticídio, aborto, trabalhadoras sexuais, ou ainda vários casos de “tentativa
de homicídio” ou mesmo “homicídio” de violentadores. Obviamente o número de
mulheres reclusas por crimes relacionados ao tráfico tem crescido exponencialmente,
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o que acompanha um cenário geral desta definição de inimigo do estado. Mas mesmo
nestes casos é importante perceber que o lugar dessas mulheres está comumente
associado a um ente masculino, e elas são entendidas dentro do cenário como
acompanhantes e não como “cabeças” dos esquemas.
Como resultado desta pesquisa, exponho abaixo algumas questões relevantes
que apareceram em campo. A Agente da Procuradoria de Justicia Especializada en
Justicia para Adolescentes del Distrito Federal (PGJR) entende como comportamento
específico das mulheres os delitos não violentos, ou não tão sangrentos, e o justifica
com base no que chamou de estudos antropológicos. Segundo aponta, os delitos
pelos quais a maioria das adolescentes estão internadas na Comunidad de
Adolescentes Mujeres são roubos a lojas. A Visitadora de Direitos Humanos comenta
que a medida de internação por crimes como roubo ou furto contradizem a legislação
de justiça para adolescentes; uma vez que esta indica a internação como a última
medida a qual o Estado deve recorrer.
A caracterização por parte das e dos servidores públicos do que consideram
como delitos cometidos tipicamente por mulheres, permite pensar sobre a diferença
sexual inerente a educação familiar para as mulheres; já que na visão do defensor de
ofício, as mulheres permanecem mais tempo submetidas ao contexto de seus
familiares e por isso não recaem em “atos delitivos”, como fazem os adolescentes.
Nesta visão está presente uma ideia de que a pedagogia disciplinaria para as
mulheres está circunscrita ao âmbito familiar e, portanto, não existe uma necessidade
tão marcada de recorrer a disciplina do modelo de justiça juvenil do Estado. Nestes
casos, a denuncia que recai sobre a adolescente provém do mesmo âmbito familiar
que as acusa de ter comportamentos agressivos contra os seus membros; atos que
podem ser vistos como uma forma de se manifestar contra a Família – aqui entendida
como uma instituição de controle social. É importante comentar também a opinião do
defensor de que é “raro ver uma mulher que vive na rua” baseada na forma como a
diferença
sexual
opera
no
modelo
político
e
econômico
que
expulsou
sistematicamente as mulheres do domínio público.
Assim, o lugar de controle sobre os corpos das mulheres legitimado pelo
patriarcado é em primeiro lugar familiar, e as mulheres que não estejam circunscritas a
este âmbito serão apropriadas pelo controle dos outros homens, de qualquer um, que
pode ser o patrão no âmbito laboral, ou de toda a vizinhança que marcará sobre a sua
subjetividade a supremacia masculina por muitas estratégias de violência como por
exemplo o assédio. Nos casos em que as mulheres não estejam controladas pelos
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seus familiares homens, e se atrevam a sair do ambiente do lar, viverão as
consequências da violência pública.
No contexto específico das adolescentes, este dispositivo se remarca; já que
também recai sobre elas o adultismo. O mandato de que não ocupem as ruas sobre a
ameaça de ser consideradas as mulheres de ninguém e, portanto de todos”, diminui as
possibilidades de ser alvo do encarceramento massivo das instituições do estado. Isso
porque a matemática é simples, a política do medo as represarias, principalmente as
de caráter sexual, afugenta as mulheres de experimentar a possibilidade de violar as
leis do código externo, o código que os homens empregam para legislar suas relações
de propriedade entre si. E sobre este aspecto, também cabe recordar a visão do
defensor de que ao cometer o delito, as mulheres não são agentes de suas próprias
decisões já que são identificadas como cúmplices e sobre quem os homens exercem
influência.
Outro elemento importante sobre a credibilidade do sistema de justiça juvenil é
que a fala das adolescentes sempre está intermedida por agentes estatais,
principalmente pelo defensor de ofício, e este fato é justificado como a forma de
salvaguardar seus direitos. A fala intermediada nos espaços de decisão sobre o
processo jurídico das adolescentes indica a existência de um modelo de direito
excludente; já que se trata aqui de uma linguagem profissional, a qual os e as
adolescentes não dominam a infinidade de códigos do direito. Existe portanto um
abismo na possibilidade de que possam aceder ao discurso do direito. As
adolescentes se encontram assim como reféns dos especialistas do direito e
principalmente
nos
momentos
de
enunciação
nos
quais
definem
a
sua
responsabilização sobre os crimes ao que são acusadas. Esta situação pode ser
entendida, como propõe Veena Das (Das, 1996: 175-210) como uma expropriação de
suas vozes por profissionais, o que gera distanciamento da experiência imediata do
sofrimento das adolescentes.
É importante trazer ao debate também as diferentes formas de criminalização
das mulheres. Ludmila Goudad escreveu em sua dissertação de mestrado sobre este
tema. A autora menciona dois tipos diferenciados de atribuição do crime às mulheres,
de um lado uma sociedade e sistema jurídico que vitimiza as mulheres ainda enquanto
autoras, e de outro lado uma criminalização que as monstrifica. Nos dois modelos de
criminalização estão imersos os imperativos do dever ser mulher, que é
essencialmente distinto à detenção da violência como parte da natureza feminina.
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Com estas reflexões espero poder contribuir para o debate, e principalmente
trazer à tona a necessidade de discutir justiça em outros âmbitos distintos ao
individual. Este deslocamento do debate permite responsabilizar a sociedade e seu
ordenamento racial e de sexo, e contrapor o poder do estado em executar as
penalidades.
Cada grade de cela é um projeto de sociedade falido. Isso porque a liberdade,
assim como a vida, devem ser direitos fundamentais das pessoas. E é falida uma ética
social que promove a morte e o cárcere como solução para a sua própria falência
moral; como forma de dar por encerrado um assunto que sequer está em debate. É
falida, e também é injusta uma sociedade que permite e promove a morte e o cárcere
de corpos historicamente despossuídos e criminalizados pelos mesmos perpetradores
que recebem do ordenamento jurídico impunidade.
É importante pontuar como esta temática ainda possui pouca expressividade,
principalmente se considerarmos a urgência de falar sobre a intensificação do
extermínio da juventude negra. Percebo que existe uma resistência em falar sobre
racismo e sexismo enquanto estruturas de desumanização que em consequência
proporcionam cenários de extermínio massivos. É inclusive importante pontuar que o
discurso da opressão de classe hegemoniza o debate e não possibilita pontuar estas
especificidades. No entanto, é fundamental trazer o questionamento sobre a não
coincidência de que a maioria esmagadora dos corpos encarcerados no Brasil é de
jovens negros e negras, mesmo perfil da juventude que morre no país. Neste sentido,
trago uma provocação quanto as políticas de governo que ainda que criem programas
de combate ao extermínio deste estrato social, no entanto, não interferem de forma
contundente na atuação da polícia e do sistema jurídico juvenil. Para modificar o
cenário de perpetuação do racismo estrutural deste sistema é necessária uma
transformação radical.
Notas
1 Ver esta tramitação
em:http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=64290
2 Essa música é de 1997. No ano 2000 São Paulo era o 4º estado com maior índice
(22,3 assassinados para cada 100 mil) de letalidade de crianças e adolescentes,
enquanto o DF ocupava o 2º lugar neste hanking macabro. Em 2010, São Paulo
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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passou a ocupar o 26º lugar, último lugar, enquanto o DF permanece hankeando os
altos índices de letalidade, em 4º lugar.
Referências Bibliográficas
Agamben, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2002.
Carneiro, Ludmila G. S. A tragédia de Maria. O Assassinato enquanto experiência
constitutiva. Dissertação para obter o título de Mestra Cidadania, Violência e
Segurança Pública. Universidade de Brasília, 2008.
Das, Veena.Critical events. An antropological perspective on contemporary
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FLAUZINA, Ana Luiza. “Corpo Negro caído no chão: o sistema penal e o projeto
genocida do Estado Brasileiro”. Rio de Janeiro, 2008, Contraponto, 2008.
Gimeno, Beatriz. La construcción de La lesbiana perversa. Visibilidad y representación
de las lesbianas em los médios de comunicación. El caso de Dolores Vazquez –
Wannikhof. Barcelona, 2008.
Matos, Elisa M. O inimputável: crimes do estado contra a juventude criminalizada.
Monografia para obter o grau de bacharel em antropologia social. Universidade de
Brasília, 2009.
SEGATO, Rita Laura. “Raça é signo” In: Série Antropologia, n. 372, Brasília, 2005.
Zaffaroni, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Renavan, 2007.
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A política de segurança pública na Paraíba e o papel do legislativo na sua
construção
Paulo Vieira de Moura1
Pablo Thiago Correia de Moura2
INTRODUÇÃO
No Brasil, após a promulgação da Constituição Cidadã que estabeleceu a
segurança pública como “dever do estado, direito e responsabilidade de todos”
(BRASIL, 2013, p. 88) a política de segurança pública deve ser pensada sob o
contexto de uma sociedade democraticamente organizada, pautada no respeito aos
direitos humanos, à cidadania, à dignidade da pessoa humana e que o enfrentamento
à violência e à criminalidade não significa a prática de arbitrariedades e abusos, mas a
adoção de procedimentos técnicos, jurídicos, políticos e sociais que considerem estas
questões em sua complexidade.
Decorridos aproximadamente 26 anos que o Brasil se constituiu como Estado
Democrático de Direito a política de segurança pública levada a efeito pelos Estadosmembros, Distrito Federal e União continua sendo predominantemente de natureza
repressiva, enquanto as políticas preventivas são postas em segundo plano. Abusos
de poder e de autoridade fazem parte do nosso cotidiano, práticas violentas e
autoritárias contra criminosos e grupos vulneráveis são justificadas por número
significativo da população, independentemente de classe social a que pertença, logo a
defesa dessas práticas não é exclusividade de uma determinada classe social, faz
parte da consciência coletiva brasileira3.
É urgente e necessário abolir das instituições do estado e da sociedade a
cultura autoritária, pois o autoritarismo não é apanágio das instituições estatais, uma
vez que “existe na sociedade um forte viés de autoritarismo, impregnado em usos e
costumes, normas e mesmo leis, independentemente de preceitos constitucionais”,
segundo editorial de O Globo intitulado de Entulho autoritário, publicado em
20.09.2013.
O processo de desconstrução desta cultura nas organizações policiais dar-seá, de certo modo, com os processos de reformulação da política de capacitação e
1
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba e professor adjunto da Unidade
Acadêmica de Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande.
2
Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande.
3
A expressão consciência coletiva é usada aqui na concepção de E. Durkheim que significa “o
conjunto das crenças e dos sentimentos comuns a média dos membros de uma mesma
sociedade”. (BOUDON, 1990, p. 53).
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formação dos seus profissionais; com a revogação do aparato normativo constituído
com base nos princípios e normas da ditadura militar (1964-1985)4 ainda vigente na
maioria dos Estados brasileiros; com o estabelecimento de uma gestão voltada para a
otimização e o gerenciamento de recursos consentâneos com a cidadania, observados
os fundamentos do Estado Democrático de Direito e do Sistema Único de Segurança
Pública. No mesmo sentido, faz-se imperioso a efetivação do controle das atividades
policiais para que se reduzam as injustiças e práticas autoritárias cometidas contra
grupos sociais vulneráveis em nome do controle da violência e da criminalidade como
afirma Luís Antônio Francisco de Souza (2013)
As agências de segurança têm primado pelo controle violento da
criminalidade, pela discriminação de determinados grupos sociais e
pela virtual ineficácia em controlar os membros de seus próprios
quadros. Ao mesmo tempo, essas agências têm se mostrado
indulgentes com os crimes e as ilegalidades das elites.
Sem mecanismos de controle da atividade policial a sociedade brasileira não
superará a tolerância excessiva existente com os atos arbitrários e criminosos
praticados por agentes públicos e por membros da classe social hegemônica5.
Ao longo de décadas o Brasil não consegue realizar, na área de segurança
pública, a transição do autoritarismo para a democracia a que se propôs. Esse
processo de transição não é politicamente fácil de materializar-se em razão de fatores
políticos e culturais. Não se desconhece na segurança pública a complexidade de sua
política e a necessidade do envolvimento das diversas esferas de governo e dos seus
poderes (CARVALHO e SILVA, 2011). Mas, a transição democrática dessa área não é
impossível, requer a participação do legislativo em parceria com o executivo, com o
judiciário, com o ministério público e com a sociedade civil. As instituições acadêmicas
públicas e privadas também podem contribuir com o processo de transição.
Com base na produção acadêmica e nas políticas de segurança pública
desenvolvidas no Brasil e, em particular, na Paraíba considerando os desafios
enfrentados pela sociedade e pelos poderes constituídos na sua construção é que se
estudou a contribuição da Assembleia Legislativa da Paraíba (ALPB), em sua 17ª
legislatura6 (2011-2013), à política de segurança pública deste Estado-membro da
República Federativa do Brasil.
4
Esse aparato normativo foi denominado popularmente de entulho autoritário.
A expressão classe hegemônica deve ser entendida como manifestação de uma classe social
sobre as demais, fazendo prevalecer sua prática e interpretação da realidade (Gramsci, 1978).
6
Legislatura é período de quatro anos coincidente com o mandato parlamentar (BRASIL, 2004,
p. 359).
5
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No que se refere à metodologia, analisou-se a produção legislativa a partir das
matérias apresentadas por parlamentares, mesa diretora, frente parlamentar, bancada
dos partidos e comissão parlamentar à Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba
(ALPB), no período de 2011 a 2013, em especial as dedicadas à segurança pública,
identificadas nas propostas de emendas à constituição (PEC)7, projetos de lei
complementar (PLO)8 e projetos de lei ordinária (PLO)9, todavia não foram
examinados os projetos de resolução, decretos legislativos, pedidos de informação,
processos, recursos e requerimentos, exceto os referentes às sessões especiais e
itinerantes e às audiências públicas.
Não foram, igualmente, examinadas as proposições legislativas de iniciativa do
poder executivo porque este não figura como objeto do presente estudo. A coleta de
dados foi realizada no site da ALPB10 e no Diário Oficial do Estado da Paraíba, além
de livros, artigos e revistas, impressos e online, que tratam do tema.
O trabalho é constituído da seguinte forma: a primeira parte de natureza
descritiva compreende apresentação conceitual e perspectivas teóricas da área
legislativa e de segurança. A segunda parte explicativa mostra os resultados e teorias
que expliquem as ações da ALPB na área de segurança pública.
A pesquisa analisa a produção da Assembleia Legislativa da Paraíba na área
de segurança pública a partir dos seguintes parâmetros: a) os limites institucionais
(jurídico e político) da atuação do poder legislativo como propositor de políticas; b) o
volume das propostas apresentadas pelos deputados estaduais; c) e as temáticas
dessas proposições legislativas classificando-as.
PODER LEGISLATIVO: LIMITES E POSSIBILIDADES DE SUA ATUAÇÃO
O poder legislativo, exercido por representantes do povo, tem a função de
fiscalizar o poder executivo, produzir iniciativas que regulamentem a vida do cidadão e
debater questões de interesse da sociedade (ABRUCCIO, TEIXEIRA e COSTA, 2001),
inclusive na área de segurança pública uma vez que cabe ao estado “manter e
preservar a segurança, a ordem pública e a incolumidade da pessoa e do patrimônio”,
conforme prescreve o art. 7º, § 1º, inc. V, da Constituição do Estado da Paraíba
(PARAÍBA, 2013, p. 16), como também legislar “sobre fixação e modificação do efetivo
7
Proposta de Emenda Constitucional seu objetivo é promover alterações no texto da
Constituição.
8
Projeto de Lei Complementar que tem por finalidade a regulamentação de norma prevista na
Constituição.
9
Projeto de Lei Ordinária destinado às matérias não previstas nas propostas de emenda
constitucional, nem nos projetos de lei complementar.
10
Braga e Nicolás (2008) tratam sobre a metodologia de análises das fontes virtuais focando
na homepage oficial dos Legislativos Estaduais e as informações que esses sites oferecem
para pesquisa.
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da Polícia Militar”, além de dispor sobre “criação, estruturação e atribuições das
Secretarias de Estado e órgãos da administração pública estadual” (PARAÍBA, 2013,
p. 42-43) e funciona como sistema de freios e contrapesos.
O sistema de freios e contrapesos está previsto na Constituição Federal de
1988 em seu art. 61, § 1º, sendo seu objetivo evitar prioritariamente a concentração de
funções por parte de um dos poderes em detrimento dos demais e coibir os arbítrios
que porventura possam surgir (CINTRA, 2004). Em síntese: procura-se com esse
sistema de freios e contrapesos impedir a hipertrofia de um dos poderes, máxime do
executivo.
Ao discorrer sobre o art. 61, § 1º, da Constituição da República Federativa do
Brasil e sobre o sistema de freios e contrapesos Ribeiro Junior (2005, p. 7) afirma que
esta norma “visa atenuar ou elidir possíveis interferências de outros poderes em
assuntos que, a priori, a Constituição deixou a cargo de um poder ou de uma
autoridade”. E acrescenta, ainda, o aludido autor
Tal consideração é válida não apenas em relação ao § 1º do art. 61,
mas também a todas as normas que estabelecem competências,
reservam matérias e compartilham atribuições. Se o princípio da
separação de poderes tem tamanha dimensão em nosso
ordenamento – chegando até mesmo a ser cláusula pétrea (art. 60, §
4º, III) – o mínimo que se pode fazer em defesa desse princípio é
objetivar o patrocínio de normas que visem sempre o equilíbrio,
evitando-se, por esta forma, as mútuas e indesejadas interferências
entre os poderes, e por conseguinte, entre suas autoridades.
(RIBEIRO JUNIOR, 2005, p. 8).
Outra competência que a Constituição estadual atribuiu ao legislativo da
Paraíba é a de “fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas comissões,
os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta” conforme se
observa do art. 54, inc. XVII, da Constituição do Estado (PARAÍBA, 2013, p. 44), ou
seja, este instrumento jurídico lhe outorgou o papel de controle dos atos da
administração pública.
No campo da interpretação constitucional tem-se indagado se é possível
juridicamente os parlamentares apresentarem proposições legislativas que constituem
matérias de iniciativa privativa do executivo. Estabeleceu-se, nos últimos anos, um
debate nos meios acadêmicos e nos tribunais sem que se tenha consenso sobre esta
matéria. Uma corrente teórica defende a interpretação literal do texto da Constituição
não admitindo tal propositura pelos deputados; outra que começa a se estruturar
defende a possibilidade de propositura por parte dos deputados em matérias de
iniciativa privativa do executivo desde que atendidos determinados requisitos.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Os adeptos da primeira corrente entendem inconstitucionais as leis aprovadas
pelo legislativo por iniciativa própria quando a matéria da deliberação trata de
proposição de iniciativa privativa do executivo, interpretação literal da norma
constitucional,
enquanto
que
os
partidários
da
segunda
defendem
a
constitucionalidade dessas proposições legislativas, mesmo que figurem como de
iniciativa privativa do executivo e digam respeito à criação de programas relativos às
políticas públicas (CAVALCANTE FILHO, 2013, p. 20).
Para melhor compreensão desse debate transcreve-se abaixo comentário de
Cavalcante Filho sobre esse entendimento na mais alta Corte de Justiça do Brasil
Trata-se da ADI nº 3.394/AM, que teve como Relator o Ministro Eros
Grau. Nesse julgamento, o Pleno declarou constitucional lei que
criava programa de gratuidade de testes de maternidade e
paternidade. Afastou-se, no voto do Relator, a alegação de
inconstitucionalidade da lei por vício de iniciativa, já que, ao contrário
do afirmado pelo requerente, a lei atacada não cria ou estrutura
qualquer órgão da Administração Pública local. Nesse caso, datado
de 2008, a Corte, por oito votos a dois, declarou a constitucionalidade
da norma (CAVALCANTE FILHO, 2013, p. 20).
Em predominando esse novo entendimento jurídico no Supremo Tribunal
Federal e na magistratura brasileira cria-se a possibilidade de uma maior contribuição
do legislativo às políticas públicas.
Apesar das limitações impostas ao legislativo no campo jurídico como visto
acima, este fato não impede ao legislativo de contribuir com a formulação das políticas
públicas e de exercer o controle sobre elas. As possibilidades dos parlamentares
apresentarem projetos de lei são várias e as de analisarem os projetos de lei de
iniciativa do executivo são diversas, inclusive na área das políticas de segurança
pública.
As possibilidades de atuação do poder legislativo não se restringem ao campo
da formulação do direito, pois compete também a este dispor sobre o sistema de
controle interno e promover o monitoramento e a avaliação das políticas públicas
aprovados em seu âmbito de atuação, quer sejam as proposições de sua iniciativa ou
de iniciativa do executivo. Afinal, o “planejamento, monitoramento, avaliação de
resultados, gasto eficiente dos recursos financeiros devem ser parâmetros
procedimentais na construção da política pública de segurança nas ações de combate
à violência” (SAPORI, 2007, p. 109).
Somente nas últimas décadas é que se tem cobrado da burocracia estatal
maior nível de profissionalização com relação à elaboração, ao monitoramento e à
1850
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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avaliação das políticas públicas. Ao comentar as políticas de segurança pública Luis
Flávio Sapori (2007, p. 109) afirma
Desse ponto de vista, a história das políticas de segurança pública na
sociedade brasileira nas últimas décadas se resume a uma série de
intervenções governamentais esporádicas, reativas, voltadas para a
solução imediata de crises que assolam a ordem pública.
Diante desse quadro percebe-se a necessidade de tornar as intervenções
governamentais permanentes e consentâneas com as demandas sociais, motivo pelo
qual se espera uma maior participação do poder legislativo no debate e na
composição das políticas públicas. Somente assim haverá a possibilidade de surgir
uma nova cultura em relação às essas políticas que assegure os direitos da pessoa
humana e sua universalidade.
No campo político, o legislativo tem ampla atuação uma vez que dispõe de
diversos mecanismos previstos na Constituição da República Federativa do Brasil, na
Constituição do Estadual da Paraíba, no Regimento Interno da Assembleia Legislativa
da Paraíba entre outros diplomas legais.
A Assembleia Legislativa da Paraíba tem entre suas atribuições dispor sobre
matérias relativas ao plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual;
fixação e modificação do efetivo da polícia militar; planos e programas estaduais e
setoriais de desenvolvimento; criação, transformação e extinção de cargos, empregos
e funções públicas; criação, estruturação e atribuições das Secretarias de Estado e
órgãos da administração pública estadual; julgar o governador e o vice-governador do
Estado, nos crimes de responsabilidade (PARAÍBA, 2013; PARAÍBA, 2012).
O parlamentar pode em razão da natureza da matéria e em face do interesse
popular ampliar a discussão nas comissões permanentes ou mesmo, se for o caso,
propor a criação de comissões, inserindo a população nesse debate, sem olvidar a
realização de audiências públicas, itinerantes e sessões especiais com a sociedade
civil e suas entidades para ouvir seus reclamos e entender suas proposições jurídicas
e políticas.
O parlamento deve abrir-se ao recebimento de petições, reclamações,
representações ou queixas de quaisquer pessoas não apenas contra atos ou
omissões das autoridades ou entidades públicas, mas para que a sociedade civil tenha
um espaço para contribuir com a elaboração das políticas e quiçá com o seu
monitoramento e avaliação (BRASIL, 2013; PARAÍBA, 2013). O uso dos mecanismos
de participação popular no parlamento não inviabiliza o debate nos meios de
comunicação.
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Importante destacar as comissões parlamentares, sejam permanentes (fixas
independente da legislatura), sejam temporárias (criadas para apreciar determinado
assunto e por prazo limitado), como espaços de negociações e deliberações por
temáticas especificas (CINTRA E LACOMBE, 2004) na construção do ordenamento
jurídico e das políticas públicas. Nessas são asseguradas juridicamente, tanto quanto
possível, a representação proporcional dos partidos e dos blocos parlamentares que
integram a Casa legislativa.
O modus operandi do Poder Legislativo se dá através de instrumentos e
mecanismos institucionais (TOMIO e RICCI, 2012) pelo qual atua com proposições:
propostas de emenda à constituição, projetos de lei complementar, projeto de lei
ordinária, projetos de lei delegada, medidas provisórias, decretos legislativos e
resoluções, conforme se observa das normas previstas na Constituição Federal, na
Constituição Estadual, nos seus regimentos internos e legislação vigente. O
Regimento Interno da Assembleia do Estado da Paraíba prevê as proposições acima
mencionadas e podem ser apresentadas pelos deputados estaduais de maneira
individual ou coletiva, no protocolo geral da ALPB, perante as comissões existentes na
casa ou em plenário. É importante dar atenção às estruturas e normas internas do
legislativo como indutoras do comportamento parlamentar. Elas influenciam (no
sentido mais de restringir) as atividades e deliberações legislativas. (BAPTISTA,
2010).
A literatura temática que trata das relações entre os poderes Executivo e
Legislativo (FIGUEIREDO E LIMONGI, 1999; FIGUEIREDO, 2001; DINIZ, 1995;
AMORIM NETO, 2004; AMORIM NETO e SANTOS, 2002; ABRANCHES, 1988) indica
a existência de uma desigualdade de atuação entre os poderes. O Poder Executivo
detém supremacia em relação ao Legislativo e esta decorre de prerrogativas como a
de editar medidas provisórias (MP) com força de lei11; solicitar urgência numa votação;
legislar em determinadas áreas por iniciativa própria e privada; vetar, parcial ou
totalmente, as leis aprovadas pelo Legislativo entre elas emendas orçamentárias12
(TOMIO, 2011).
11
Medida Provisória é ato normativo com força de lei que pode ser editado pelo Presidente da
República em caso de relevância e urgência. Tal medida deve ser submetida de imediato à
deliberação do Congresso Nacional (BRASIL, 2002, p. 98).
12
A Emenda orçamentária restringe emendas propostas vindas do legislativo, sujeitando-as a
revisão, essas têm que estar compatíveis com o plano plurianual e as leis de diretrizes
orçamentárias (fixadas pelo Executivo) não podendo o Poder Legislativo criar despesas, ou
seja, não podem criar receita para dotação de pessoal e seus encargos. Desse modo, esse
mecanismo pode ser utilizado como instrumento de barganha política em virtude de sua
vinculação com a patronagem (CINTA E LABOMBE, 2004; COUTO, 1991).
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A Constituição Estadual da Paraíba (1989, p. 51) fortalece a supremacia do
executivo ao disciplinar o processo legislativo (seção VI), mais especificamente sobre
as leis (subseção III) em seu artigo 63, § 1º dispõe textualmente
São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:
I - fixem ou modifiquem os efetivos da Polícia Militar, obedecendo ao
disposto no inciso III do art. 52 desta Constituição;
II - disponham sobre:
a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração
direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;
b) organização administrativa, matéria tributária, orçamentária e
serviços públicos;
c) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de
cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, reforma e transferência
de militares para a inatividade;
d) organização do Ministério Público, da Advocacia do Estado e da
Defensoria Pública do Estado;
e) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da
administração pública.
Da leitura do dispositivo constitucional depreende-se que o legislativo tem as
suas atividades limitadas constitucionalmente e que nas matérias acima o Poder
Executivo se sobrepõe ao Legislativo.
Para que se compreenda e se possa ter uma idéia aproximada dessa atuação
do executivo em detrimento do legislativo veja o exemplo da Paraíba. No período de
2011 a 2013 o governador editou 59 medidas provisórias, encaminhou 101 projetos de
lei ordinária à Assembleia Legislativa e vetou 232 projetos de lei aprovados pela ALPB
e de iniciativa dos seus deputados. É por este e outros fatos que alguns estudiosos do
legislativo o enxergam como instância homologatória do executivo (ABRUCIO, 1998;
COUTO, 1991; TOMIO e RICCI, 2012).
POLÍTICAS PÚBLICAS E DE SEGURANÇA
Entende-se por políticas públicas como a negociação de interesses coletivos e
particulares, submetidas a normas legais, orientadas em diversos níveis por base
técnico-especializada e suas etapas compreendem a formulação, implementação e
avaliação. Entre os atores que influenciam as políticas públicas destacam-se o
governo, a burocracia, os partidos e os grupos de interesse. Essas políticas têm como
finalidade os interesses e direitos do cidadão.
Como embasamento teórico a essa caracterização de políticas públicas que foi
apresentada acima, recorre-se a alguns autores que corroboraram com essa
perspectiva, entre os quais Boneti (2006, p.74) ao afirmar que as políticas públicas
podem ser entendidas como “o resultado da dinâmica do jogo de forças que se
estabelece no âmbito das relações de poder, relações essas constituídas pelos grupos
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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econômicos e políticos, classes sociais e demais organizações da sociedade civil.” Ou
seja, políticas públicas entendidas enquanto produto da dinâmica entre os diferentes
atores sociais.
Para Dye (1984) política pública é “o que o governo escolhe fazer ou não fazer”
(DYE,1984 apud SOUZA, 2006). A decisão governamental de investir em determinada
área está imerso por aspectos que envolvem escolha política, viabilidade técnica e
econômica, público alvo, segundo Dye.
A finalidade da política pública é a perspectiva que trabalha Guareschi (2004),
segundo ele
O conjunto de ações coletivas voltadas para a garantia dos
direitos sociais, configurando um compromisso público que visa
dar conta de determinada demanda, em diversas áreas.
Expressa a transformação daquilo que é do âmbito privado em
ações coletivas no espaço público. (GUARESCHI et al, 2004,
p.180)
Diante das contribuições teóricas dos autores supra mencionados é possível
concluir que o tema das políticas públicas pode ser compreendido como
procedimentos e ações práticas em formas de programas capitaneadas pelo estado e
no campo conceitual não é possível a consolidação de uma única definição para
política pública em razão de sua complexidade e possibilidades de abordagens e
analises a que são submetidas por pesquisadores.
Nos últimos 14 anos o Estado brasileiro empenha-se em efetivar uma política
de segurança que observe as bases e fundamentos do Estado Democrático de Direito,
desse esforço contabilizam-se a elaboração de alguns Planos Nacionais de Segurança
Pública13, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
14
e a
colaboração com a edição de dezenas de planos estaduais de segurança pública.
No entanto essa política encontra dificuldades para a sua implementação entre
essas se destacam o sistema federativo, a cultura política, a não participação plena da
sociedade civil, a ausência de percentuais orçamentários para custear a segurança
pública e a falta de articulação das políticas públicas entre si15.
A Paraíba elaborou o seu Plano Estadual de Segurança Pública referente ao
período de 2003-2007 e o publicou em julho de 2003 tendo o então governador do
Estado, em sua apresentação, afirmado que o Plano visava a constituição das bases
13
I Plano Nacional de Segurança Pública (2000) e o II Plano Nacional de Segurança Pública
(2003)
14
Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (2007).
15
Esse tema é abordado em Os planos de segurança pública e a construção de uma política
nacional (MOURA, 2014).
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fundamentais das ações, atividades, operações e realizações dos órgãos de
segurança pública e estabelecia suas diretrizes para esta área (PARAÍBA, 2003),
todavia durante o período acima citado pouco foi realizado pelo Estado e os anseios e
as perspectivas de melhoria com essa “nova” política foi frustrada para muitos.
A prevenção nas atividades dos órgãos públicos de segurança fora
estabelecida no Plano Estadual de Segurança Pública 2003-2007 como uma de suas
prioridades (Diretriz Geral 2) – “os órgãos de segurança pública darão ênfase ao
fortalecimento de um sistema de prevenção à ocorrência do crime e da desordem”
(PARAÍBA, 2003, p. 23), todavia o que a população assistiu foi a continuidade da
política repressiva mesclada por alguns projetos de prevenção, como os de
policiamento comunitário, em número reduzido e concentrados na Capital e em
Campina Grande. Essas experiências não se multiplicaram, nem se constituíram, ao
longo desses anos, em prioridades para esses órgãos do Estado. O governo não
atuou na proteção do cidadão com a participação da comunidade como previra.
O Estado também se propôs a desenvolver ações no campo da legislação
visando a atualização das leis na área de segurança pública adequando-as ao Estado
Democrático de Direito, porém no período de vigência do Plano Estadual de
Segurança Pública do Estado da Paraíba não foi encaminhado à Assembleia
Legislativa projetos de lei referentes à “estrutura dos órgãos Estaduais de Segurança
Pública,
estabelecendo
as
estruturas
organizações,
atribuições,
limites
de
competência, autonomia organizacional, estrutura hierárquica e equivalência de
cargos e salários”, nem relativas aos regulamentos disciplinares das organizações
policiais do estado como estabelecido pelo Estado em seu plano de segurança.
Na atual legislatura a ALPB debateu, em audiência pública, projeto de lei
referente à unificação da corregedoria da Secretaria de Segurança Pública
considerado por entidades da sociedade civil como importante à política de segurança
do Estado. A unificação da corregedoria fora prevista no Plano Estadual de Segurança
Pública e tinha como objetivo a “apuração e adoção de providências administrativas e
legais de fatos que vão contra a administração pública, desrespeito aos direitos
humanos, envolvimento com as organizações criminosas e corrupção” (PARAÍBA,
2003, p. 36), porém em face da pressão sobre os deputados e o governo realizada por
instituições representativas das corporações policiais que se insurgiram contra o
projeto de lei o governo do Estado recuou em seu propósito, tendo solicitado à ALPB a
devolução do projeto de lei sob o argumentando de promover alterações no
mencionado projeto de lei. Registre-se que até esta data a Assembleia Legislativa não
o analisou.
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Decorridos vários anos e dispondo de recursos do governo federal e,
igualmente, ter escolhido a segurança pública como um dos seus objetivos prioritários
(art. 2º, inc. VI, Constituição Estadual) a Paraíba continua com déficit no campo
legislativo em matéria de segurança pública e nesse cenário é que se examina a
contribuição da ALPB a esta área.
DADOS E SUA ANÁLISE
Quando do exame dos dados coletados, as proposições legislativas não foram
submetidas à análise jurídica comparativa para verificar se atendem aos requisitos da
Lei Complementar nº 95/98. Esta disciplina “a elaboração, a redação, a alteração e a
consolidação das leis” e, igualmente, estabelece as “normas para a consolidação dos
atos normativos” (BRASIL, 2014) e serve de parâmetro e subsidio para o processo
legislativo desenvolvido nas Assembleias Legislativas dos Estados e no Congresso
Nacional.
As proposições legislativas também não foram analisadas quanto a sua forma,
ou seja, não foram examinadas se a forma escolhida pelo proponente (projeto de lei
complementar ao invés de projeto de lei ordinária) era a mais adequada tecnicamente.
Levantada a produção legislativa da Assembleia Legislativa da Paraíba, no
período de 2011 a 2013, verificou-se que a ALPB discutiu 2049 propostas de emenda
constitucional, projetos de lei complementar, projetos de lei ordinária e deliberou sobre
requerimentos de sessão especial, itinerante e audiências públicas. As matérias
tratavam de saúde, educação, segurança, conforme se observa da tabela abaixo.
TABELA 1: Propostas legislativas submetida à pela ALPB no período de 2011 a 2013
Instrumento Legal
Quantidade
Projeto de Lei ordinária
1686
Proposta de Emenda Constitucional
28
Projeto de Lei Complementar
24
Requerimento de Sessão Especial / itinerante / audiência pública
311
TOTAL GERAL
2049
Fonte: Sistema de Apoio ao Processo Legislativo da ALPB.
Dos dados acima se chega à conclusão de que numericamente, nos três anos
supra mencionados, o trabalho legislativo da ALPB pode ser considerado producente,
no entanto ao se analisar as matérias quanto ao seu conteúdo vê-se que as limitações
de natureza jurídica e política interferem na qualidade do trabalho dos parlamentares.
A legislação vigente constitui-se em obstáculo ao trabalho do legislador que
recorre a expedientes constitucionalmente discutíveis, embora política e socialmente
relevantes como se observa nos seguintes exemplos de projetos de lei ordinária:
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“autoriza o Poder Executivo a implantar o serviço de disque-denúncia móvel, no
âmbito das polícias civil e militar do estado da Paraíba”; “autoriza o poder executivo a
criar o programa de assistência habitacional emergencial do estado da Paraíba que
remaneja famílias de baixa renda que residam em área de risco e dá outras
providências”; “autoriza o Poder Executivo a estabelecer convênios com clínicas
particulares, associações comunitárias, igrejas, organizações não-governamentais e
entidades que prestam atendimento e tratamento de dependentes químicos e dá
outras providências”; “fica o poder executivo autorizado no âmbito do estado da
Paraíba a destinar recursos e adotar medidas cabíveis para instalações de brinquedos
adaptados para crianças portadoras de necessidades especiais em parques, praças e
outros locais públicos destinados à prática de esporte e lazer” (PARAÍBA, 2013).
A Tabela 1 mostra que o instrumento legislativo mais utilizado foi o projeto de
lei ordinária com 1686 proposições, este fato não pode ser considerado anormal ou
uma característica especifica do parlamento paraibano neste período; explica-se pela
natureza da proposição que tem como finalidade às matérias não previstas nas
propostas de emenda constitucional, nem nos projetos de lei complementar, por
conseguinte são considerados os mais comuns e triviais no parlamento brasileiro.
Selecionados os dados dos três primeiros anos da atual da 17ª legislatura
foram constatadas 147 matérias relativas à segurança pública como se observa da
tabela abaixo
TABELA 2: Produção Legislativa em Segurança pública no período de 2011 a 2013
Tipo de matéria
Quantidade
Projeto de Lei Ordinária
121
Proposta de Emenda Constitucional
01
Projeto de Lei Complementar
02
Requerimento de Sessão Especial / itinerante / audiência pública
23
TOTAL
147
Fonte: Sistema de Apoio ao Processo Legislativo da ALPB.
Procedida a seleção dos dados constantes da tabela 2, foram as matérias
classificadas quanto a sua natureza em 5 grupos temáticos e receberam as seguintes
denominações: a) legislação em segurança pública16; b) políticas, programas e
conselhos; c) campanhas educativas e de divulgação; d) valorização e incentivo
profissional e e) controle estatal da atividade policial e que agora se reproduz na
tabela 3 abaixo.
16
Convém ressaltar que as PEC, PLC e PLO são juridicamente normas legislativas e que
integram o chamado ordenamento jurídico e, igualmente, podem dispor sobre a instituição de
políticas, programas, projetos, ações, conselhos e órgãos; campanhas educativas e de
divulgação; valorização e incentivos profissionais e controle estatal da atividade policial.
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TABELA 3 – proposições legislativas em Segurança Pública e grupos temáticos
Proposições legislativas
PEC
PLO
PLC
REQ.
Legislação em Segurança Pública
00
59
01
Políticas, programas e conselhos
00
31
01
Campanhas educativa e de divulgação
00
24
00
Valorização e incentivo profissional
01
05
00
Controle estatal da atividade policial
00
01
00
Debates e Discussões
23
Total
01
120
02
23
Fonte: Sistema de Apoio ao Processo Legislativo da ALPB.
Foram denominadas de legislação em segurança pública as proposições
legislativas de qualquer natureza que estabelecem regras determinantes de
imposições e proibições ao agir das pessoas ou instituições públicas e/ou privadas
com a finalidade de melhorar a segurança dos cidadãos, tanto na área repressiva
como preventiva.
No grupo das proposições em segurança pública destacam-se as que dispõem
sobre a instalação de câmeras nos ônibus coletivos intermunicipais; instalação de
circuito interno de tv e de detectores de metais nas entradas que dão acesso as casas
noturnas, boates, escolas públicas estaduais; instalação de câmeras ou de
microcâmeras de vídeo e áudio nas viaturas automotivas que servem as áreas de
segurança pública e da defesa social; de cercas elétricas em propriedade privadas e
bloqueadores de telefonia celular e rádios de comunicação no território paraibano;
normas para atendimento as vitimas de crime de pedofilia e seus familiares. Estas
matérias foram propostas por meio de projetos de lei ordinária e por um projeto de lei
complementar que instituía o assédio moral no âmbito da administração pública
estadual. Merece ser mencionado que os destinatários dessas proposições foram as
crianças e adolescentes com 13 proposições e as mulheres com 3.
O segundo grupo foi nominado de políticas, programas e conselhos. Este tem
como característica a instituição de políticas, programas e conselhos na área de
segurança pública. Da análise dos dados coletados depreende-se que as proposições
deste grupo dedicaram-se a instituir políticas, programas e conselhos com a finalidade
de lutar conta à violência; prevenir o uso de drogas licitas e ilícitas; proporcionar
tratamento de dependentes de drogas e o atendimento multidisciplinar às vítima de
violência e sua inclusão nos programas de segurança pública, saúde e de assistência;
incentivar a criação de conselhos de proteção e promoção de grupos vulneráveis,
dentre esses destaquem-se o que cria o Conselho Estadual de Segurança Pública e
Defesa Social. Todas as proposições referentes a este grupo foram encaminhadas por
meio de projeto de lei ordinária.
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Convém informar que no segundo grupo temático predominaram as questões
referentes às drogas (álcool, cigarro e substâncias químicas) com 13 proposituras e a
violência contra mulheres, crianças, adolescentes e população LGBTT com 11
proposições.
As campanhas educativas e de divulgação compõem o terceiro grupo, foi assim
denominado porque visa a realização de campanhas educativas para prevenção da
violência e do uso de drogas. A divulgação de informações sobre pessoas
desaparecidas e estatísticas sobre violência constitui outra finalidade deste grupo,
suas proposições foram concretizadas por meio de projeto de lei ordinária. As
propostas legislativas com relação a este grupo recaíram principalmente sobre três
grupos sociais: crianças e adolescentes (9), Mulheres (5) e Idosos (2).
A valorização e o incentivo profissional compõem o quarto grupo das
proposições legislativas e visam melhorar as condições pessoais e profissionais dos
trabalhadores da segurança pública. Neste grupo, os projetos de lei ordinária
apresentados à Assembleia Legislativa têm como objetivo isentar os profissionais da
segurança pública do pagamento de taxas estaduais, assegurar a gratuidade nos
transportes coletivos intermunicipais e conceder-lhes benefícios fiscais. Uma proposta
de emenda constitucional estabelece a integração dos delegados de polícia às
carreiras jurídicas do Estado, assegurando-lhes a garantia de que não serão
arbitrariamente removidos dos locais em que estão lotados. Os membros da
magistratura e do ministério público gozam desta garantia constitucional nominada de
inamovibilidade.
Apenas um projeto de lei ordinária proposto pode ser enquadrado no grupo das
proposições legislativas referentes ao controle estatal da atividade policial. Esse
projeto trata da regulamentação das operações policiais no acompanhamento e
contenção de manifestações públicas.
Os requerimentos para a realização de sessões especiais e itinerantes, bem
como as audiências públicas promovem o intercambio de experiências do parlamento
com a sociedade civil e proporciona a possibilidade do conhecimento de demandas e
suas contribuições. Dentre eles se sobressaem os voltados à convocação de
autoridades políticas dos diferentes poderes e a participação da sociedade civil. As
aludidas sessões trataram de variados temas entre os mais destacados enumeram-se
os destinados a debater a luta e prevenção às drogas (3), à violência e ao abuso
sexual infanto-juvenil (6) e as melhorias na segurança pública (4).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Da análise dos grupos de proposições legislativas descritos acima é possível
inferir-se que a produção do legislativo paraibano no período de 2011 a 2013 pode ser
considerada producente quanto ao aspecto qualitativo, especialmente em relação aos
grupos temáticos legislação em segurança pública; políticas, programas e conselhos,
não obstante as limitações de natureza jurídica e política que interferem no trabalho
dos parlamentares.
A Assembléia Legislativa da Paraíba no conjunto de sua produção mostrou-se
indiferente a questões caras ao Estado Democrático de Direito não promovendo o
debate, nem apresentando proposições legislativas sobre questões cruciais entre as
quais se destacam a formação e capacitação profissional, o controle externo e interno
da atividade policial, a revogação e reforma da legislação remanescente do estado de
exceção que foi constituído durante a ditadura militar como o regulamento disciplinar
da Policia Militar da Paraíba.
Não há na Assembleia Legislativa da Paraíba atuação coletiva dos deputados
por meio das bancadas, das frentes e dos blocos parlamentares ou mesmo dos
partidos políticos. Os coletivos existentes na Assembleia têm atuação mais destacada
nos embates políticos ente governo e oposição e no fomento aos debates sobre
determinadas matérias. A atuação parlamentar coletiva fortalece o debate e qualifica
as proposições legislativas.
Por fim, observamos que as questões relacionadas à segurança pública não
podem ser tratadas como política limitada de governo, mas como um processo amplo,
complexo a ser enfrentado tanto pelo estado quanto pela sociedade. Na perspectiva
de uma política de estado, a política de segurança pública não pode dispensar a
participação da sociedade e a contribuição dos parlamentares.
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1862
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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IDENTIDADE DOS DELEGADOS DE POLÍCIA NO ESTADO DEMOCRÁTICO
Silvia Renata de Araujo Oliveira
Vasconcelos Vila Nova
Introdução
Na concepção de Estado weberiano a repressão policial (uso ou possibilidade de
uso da força) constitui-se legítima, cabendo às forças coercitivas estatais reprimir e controlar
as condutas estabelecidas como desviantes. O desafio do Estado Moderno seria o uso da
força num formato aceito pelo ideário humanitário.
A Constituição Federal de 1988, marco normativo da democracia brasileira
contemporânea, está pautada em valores humanitários e democráticos, estabelecendo
limites legais de atuação ao próprio Estado, pelo que se supõe que a atuação estatal
repressiva deverá estar enquadrada nesses valores. Embora seja esse o referencial
“axiológico” do Estado brasileiro, pós-1988, a atuação da principal instituição repressiva do
Estado brasileiro, a Polícia, é apontada como dissociada desses valores humanitários e
democráticos (BONELLI, 2002; OLIVEIRA, 2004; RATTON, 2007; ZAVERUCHA, 2009).
As polícias brasileiras passam por questionamentos quanto ao formato de
repressão adotado, práticas de tortura são apontadas como forma de obter confissões
durante investigações criminais, e uso de métodos inadequados de tratamento, a exemplo
de maus-tratos como meio de punição de presos.
Aliada as críticas ao trabalho das instituições de polícia a sociedade reclama por
mais segurança pública. A pesquisa My World coordenada pela Organização das Nações
Unidas (ONU) que tem por objetivo captar as prioridades que fariam diferença para a vida
das pessoas e de suas famílias, contou no Brasil com a participação do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Identificando que a terceira prioridade dos brasileiros
é a proteção contra o crime e a violência (61,44%), ficando atrás das prioridades de
melhoria dos serviços de saúde (87,64%) e educação de qualidade (72,97%). (NERI, 2014)
A discussão sobre os profissionais de polícia não pretende aqui corroborar a crítica
à própria existência das polícias, nem mesmo refletir quanto à legitimidade da atuação
repressiva do Estado. Importante pontuar que não apresentaremos o tema sob a lente de
orientação marxista, com a qual muitas vezes foram tratadas no Brasil as questões de
polícia, numa visão diabólica (OLIVEIRA, 2004, p. 24), destacando a função policial como
agência de controle contra as aspirações proletárias, sempre a serviço da classe capitalista.
Conforme dispõe Muniz (1999), a polícia é apresentada por parte de muitos dos
estudos brasileiros com propósito único de oprimir os que permanecem alienados do valor
do seu trabalho, percepção da qual decorreria certa inutilidade ou ausência de sentido em
qualquer estudo de polícia, uma vez que a priori o papel dos membros da polícia já estaria
determinado por um Estado comprometido com os poderosos contra a massa de
trabalhadores.
1863
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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O Estado, na concepção weberiana, consiste numa relação de homens dominando
homens, relação mantida por meio de violência considerada legítima. Ao monopolizar o uso
legítimo da força física como meio de domínio dentro de um território, o Estado combinou os
meios materiais de organização nas mãos de seus líderes e expropriou todos os
funcionários autônomos dos estamentos que antes controlavam esses meios por direito
próprio. O Estado tomou-lhes as posições e se colocou no lugar mais elevado (WEBER,
2004, p.104), com base no domínio legal, no qual, em virtude da fé na validade do estatuto
legal e da competência funcional se espera obediência no cumprimento das obrigações
estatutárias. (WEBER, 2004)
São as regras do estatuto legal que determinam, ao mesmo tempo, a quem e em
que medida as pessoas devem obedecer. A dominação racional-legal se especifica por
encontrar legitimidade no direito estatuído de modo racional, com pretensão de ser
respeitado pelos membros do Estado (WEBER, 2009, p. 139).
Se o Estado weberiano é definido como associação que detém uso legítimo da
força, o Estado Social, de influência iluminista, propõe um desafio à noção de autoridade
assentada sob princípios pacíficos, onde a resolução de conflitos pautar-se-ia em
procedimentos humanitários (MUNIZ, 1999).
Embora seja esse um pensamento simpático para a ideia de coerção no Estado
Social a priori, uma lógica a ele se contrapõe: O Estado monopoliza força visando à ordem e
propor a manutenção da ordem por meios pacíficos ensejaria abrir mão da própria
pretensão.
Os funcionários a quem cabe a aplicação da força estariam diante de uma
“simulação” do seu próprio papel. O papel da polícia é manter ordem por meio da força e o
Estado Social exigiria dos seus funcionários práticas repressivas que não utilizem a força. O
que leva a orientações de sentidos contrários: orientação imposta para alcançar o objetivo
estatal de manutenção da ordem por meio de força e uma orientação proposta pelos valores
humanitários de ordem sem força.
E a observação a essa “lógica” contraditória não se presta a render homenagens ao
exercício de polícia baseada em torturas ou outras práticas violentas inúteis e abjetas,
desnecessárias e deformantes a estruturas estatais iluminadas. Não me reporto à
experiência observada por Paixão (1997) da polícia “de moleque” que não hesita em
chicotear as classes baixas durante a domesticação ou da polícia “de gente” dócil em
relação aos privilégios de classe e status, que imprimem, ambas, violência instrumental que
afeta a garantia de direitos civis e nega o due process of law.
Refiro-me ao conceito de repressão, ingrediente central da estratégia estatal que
implica contenção através da força/violência para realização do conceito de Estado (social
ou democrático).
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Monjardet (2012, p. 22) usa a analogia da polícia a um martelo que serve
principalmente
para
bater
pregos,
mas
serve
para
quebrar
vidros
ou
portas,
emergencialmente, quando fixado em um vagão ou ônibus, habilitado para escalar
montanhas ou rachar cabeças e conclui que não é a soma das possíveis utilidades do
martelo que pode defini-lo, mas a dimensão dos seus usos: aplicar a força.
A Polícia está habilitada a intervir em todos os lugares, em todos os tempos e em
relação a qualquer um, é instrumento de aplicação de força sobre um objeto que lhe é
designado por quem a comanda e não tem finalidade própria, recebe um papel de quem a
instrumentaliza (MONJARDET, 2012, p. 22)
Bittner (2003) observa que ao invés de tentar derivar o papel da policia dos ideais
programáticos deveríamos procurar discernir o seu papel olhando as condições da realidade
prática em que as fórmulas serão presumivelmente aplicadas.
Para elucidar o papel da policia na sociedade moderna Bittner (2003, p. 100) diz
que se deve partir da revisão de quais são as exigências encontradas na realidade prática
das polícias que a partir delas darão respostas para buscar as aspirações morais. E
acrescenta que as aspirações mais nobres da humanidade não contêm os meios
necessários que assegurem sua sobrevivência coletiva. E aceitando a necessidade de
existência da polícia a sociedade prefere não fazer parte de sua ação, e apresentam um
prazer perverso em olhar com desprezo para a polícia por assumir a responsabilidade de
fazer esse trabalho.
Visamos, numa perspectiva weberiana, uma investigação com orientação em duplo
sentido de causalidade histórica e sociológica, considerando que a ação diversa de
profissionais pode ensejar acontecimentos históricos diferentes se decisões e circunstâncias
forem alteradas. O estudo se propõe a analisar o papel de um grupo profissional que faz
parte da Polícia Civil do estado de Pernambuco, os delegados, buscando observar quem
são, o que fazem e como se relacionam no Estado Democrático recente.
Em meio a demanda por melhores condições da segurança pública e das críticas
ao formato de repressão os delegados de polícia civil também passam por questionamentos
quanto a sua expertise, dúvidas são levantadas quanto a necessidade da formação jurídica
para a investigação criminal de infrações.
Visando refletir quanto ao papel dos policiais brasileiros, sobretudo no tocante à
atuação dos Delegados de Polícia Civil, em um cenário normativo firmado pela Constituição
Federal de 1988, buscamos investigar a perspectiva desses profissionais quanto ao seu
próprio atuar no Estado Democrático. Utilizando o estudo de caso, buscamos apreender a
percepção dos delegados pernambucanos quanto ao seu papel no Sistema de Justiça
Criminal e, dessa forma, analisar a identidade profissional dos delegados, através das suas
práticas, saberes e interações profissionais.
1865
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Arcabouço Metodológico
Em relação à orientação metodológica se propôs um estudo de corte transversal de
caráter qualitativo e quantitativo do tipo exploratório. Para isso elegemos como estratégia de
pesquisa o estudo de caso, devido a sua adequação para situações em que o fenômeno de
interesse não pode ser isolado do seu contexto (YIN, 2001) mesclando dados qualitativos,
através de entrevistas individuais, e dados quantitativos, obtidos mediante questionários,
ambos realizados com delegados pernambucanos, abrangendo uma média de 20% dos
delegados em atividade no Estado de Pernambuco, do total de 4691 em exercício.
Diferente da dificuldade da maioria dos pesquisadores que se defronta com a
desconfiança dos integrantes do grupo analisado, não enfrentei a crise de depressão e tédio
tropical aos quais se refere Malinowski (1997, p. 19) quando descreve a sua inserção no
campo e os primeiros contatos com os “nativos” do Pacífico. Não precisei aprender nova
língua, novos costumes ou mudar minhas vestimentas, visando uma aproximação com os
nativos.
Já detenho os aprendizados para decodificar os códigos que se utilizam os
“nativos”. Eu já falo “policialês”. Possuo a imagem da vida da aldeia de onde estou. A
paisagem dos nativos já se mostra aos meus olhos diariamente.
Malinowski (1997, p. 21) busca uma certa magia para se colocar no lugar do nativo
que, para mim, não se fez necessária. Compartilho o mesmo lugar dos nativos. Há quatro
anos eu já vivo na “aldeia”. Sou nativa, entro e saio da aldeia sem causar mudanças de
comportamentos, sem alterar a naturalidade da paisagem ou impor constrangimentos a
quem está diante do desconhecido.
É claro que mesmo inserida neste espaço como nativa esforcei-me para criar uma
“eu pesquisadora”, na tentativa de experimentar a crítica sobre o “eu nativa” nessa função
de pesquisadora. Creio que minhas facilidades acabam no ingresso e trânsito fácil no
campo. O figurino de nativa que me garantiu passe livre precisou ser trocado, sendo preciso
um travestir de pesquisadora ou um despir-se de nativa. Esforço que busquei através do
cuidado com o rigor metodológico em todos os momentos da pesquisa. Um dos principais
cuidados no campo: a busca atenciosa de utilização adequada das técnicas de entrevista.
Se o investigador nunca pode livrar-se “inteiramente” de seu papel de estranho
acredito que não posso livrar-me “inteiramente” do meu papel de membro da aldeia. Nessa
confusão de papeis, corro o risco de testar novas ideias. É o encontro dialógico com o
incompreendido que exige de nós o arriscar a testar nossas ideias preconcebidas e
1
Dados provenientes do demonstrativo do quadro de pessoal da Polícia Civil, realizado em 31 de
janeiro de 2013. Fonte: UNIAP – Unidade de Administração de Pessoal da Polícia Civil do Estado de
Pernambuco.
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ISSN: 2317-0255
preconceitos. Esperanço-me do que diz Garrison (apud DENZIN, 2006, p. 199) quando
afirma que pertencemos à tradição que de certo modo controla a interpretação, o que não
significa que restabelecemos as tendenciosidades da tradição, pois o intérprete põe em risco
os próprios preconceitos ao deparar-se com o que deve ser interpretado.
A pesquisa, desenvolvida em duas etapas, buscou mesclar dados quantitativos e
qualitativos e contou com um primeiro momento de coleta de dados, por meio de
questionário, com amostra não estratificada, utilizando-se o envio por correio eletrônico,
visando à construção de um amplo perfil dos delegados de Pernambuco e de um
ranqueamento da importância que é dada pelos respondentes das situações que vivenciam
no cotidiano e do tipo de atividades que realizam em interações com outros grupos do
sistema profissional no qual estão inseridos. Tal importância foi utilizada na análise
relacional com os dados colhidos na segunda etapa da pesquisa, desenvolvida através de
entrevistas, visando apreender de modo livre e espontâneo as percepções dos delegados
em relação à sua prática.
A segunda etapa da pesquisa consistiu na produção de dados através de entrevista
em profundidade, com opção de informantes chaves. O corpus qualitativo foi composto
levando em consideração local de atuação, bem como posição na hierarquia institucional,
sexo e tempo de atividade, bem como tempo na instituição e estágio na carreira. No tocante
ao quantitativo de delegados e delegadas observamos um percentual proporcional em
relação ao universo de homens e mulheres existente2.
Os dados das entrevistas foram analisados utilizando-se a técnica de análise de
conteúdo, lastreada na interpretação (BARDIN, 2002). Considerando-se o material recolhido
foi realizada uma compilação do que se destacava, num processo taxonômico, preocupado
em estabelecer ordem de sentido, em categorias de análise: práticas, saberes e interações
profissionais.
No tocante aos questionários, criou-se um banco de dados, em matriz única,
utilizando o SPSS - Statistical Package for the Social Sciences, em que foram efetuadas
análises estatísticas descritivas e inferenciais. O tamanho da amostra permitiu a avaliação
de tendências.
Visando identificar a aproximação ou distanciamento dos delegados com uma
identidade que se aproxima do mundo do Direito ou da segurança pública, cuja observação
pode trazer à tona afirmação ou insegurança dos respondentes quanto à sua própria
identidade criamos duas variáveis compostas, denominadas grau de correspondência com o
mundo do Direito e grau de correspondência com o mundo da segurança pública. Por
termos vários indicadores sobre determinados fenômenos, juntamos dezenove indicadores
Segundo dados da UNIAP – Unidade de Administração de Pessoal da Polícia Civil do Estado de
Pernambuco, em 01 de outubro de 2012. As delegadas eram 30% do grupo.
2
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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em cada uma das variáveis. Para tanto realizamos o teste de confiabilidade para avaliar a
consistência interna entre os indicadores. Na primeira variável composta: grau de
correspondência com o mundo do Direito foi realizado o teste cronbach´s alpha que
devendo se aproximar de +1 resultou em 0,813 e 0,830 (cronbach’s alpha based on
standardized itens). Assim como na segunda variável composta – grau de correspondência
com o mundo da segurança pública que teve resultado de 0,788 e 0,799 (cronbach’s alpha
based on standardized itens). Ambas alcançaram bom nível de confiabilidade.
Após criadas as variáveis compostas com os dezenove indicadores elencados,
recodificamos as variáveis em novos intervalos de classe criando três faixas ou intervalos:
baixo, médio e alto grau de correspondência com o mundo da segurança pública e do
Direito, realizada para permitir uma avaliação mais precisa da identidade dos delegados com
esses dois mundos, haja vista que indicadores individualmente previam ordenação em
quatro níveis.
Estabelecendo como foco relações entre delegados e os demais profissionais da
segurança publica e do mundo do Direito, a análise foi feita comparando-se as práticas
profissionais desses grupos.
A escassez legislativa no tema polícia
Parcamente definidas as atribuições dos profissionais de polícia na legislação
brasileira, é em único Artigo (144) que a Constituição Federal de 1988 trata do tema
segurança pública, estabelecendo ser a segurança “dever do Estado, direito e
responsabilidade de todos”, devendo ser exercida para a preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio.
O legislador constituinte sem conceituar a vaga expressão ordem pública incumbe a
sua preservação e interpretação conceitual às Polícias Federal, Rodoviária Federal,
Ferroviária Federal, Civis, Militares, Corpos de Bombeiros Militares e Guardas Municipais.
Aquelas três primeiras vinculadas ao Governo Federal, as três subseqüentes instituídas em
cada um dos estados da federação e Distrito Federal. E estas últimas que poderão, ou não,
existir nos municípios, segundo a decisão discricionária dos prefeitos.
A tabela 1 resume esquematicamente as atribuições, âmbito de atuação e cargos
componentes das instituições de segurança pública no Brasil.
3
Tabela 1 .
3
Utilizado como referência para os cargos de nível estadual o Estado de Pernambuco. O quadro
traz os órgãos previstos no Artigo 144 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2010), o âmbito
de atuação e tarefas observando também informações das leis nacionais que prevêem os quadros
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Âmbito de atuação, cargos e atribuições dos órgãos de Segurança Pública
Polícia Civil
Âmbito de
atuação
Cargos*
Polícia
Polícia Militar Rodoviária
Federal
Estadual e DF Estadual e DF
Delegado de
Polícia
Perito Criminal
Médico Legista
Agente
Escrivão
Auxiliar de
Perito
Auxiliar de
Legista
Datiloscopista
Operador
de
Telecomunicação
Coronel
TenenteCoronel
Major
Capitão
Tenente (1º e
2º)
Sargento (1º,
2º e 3º)
Cabo
Soldado
Nacional
Policial
Rodoviário
Federal
Polícia
Ferroviária
Federal
Nacional
Corpo de
Bombeiro
Estadual e
DF
Coronel
TenenteCoronel
Major
Componente
Capitão
s da Polícia
Tenente (1º e
Ferroviária
2º)
Federal
Sargento (1º,
2º e 3º)
Cabo
Soldado
Polícia
Federal
Nacional
Delegado
Perito
Escrivão
Agente
Papiloscopista
Guarda
Municipal
Municipal
Componen
-tes da
Guarda
Municipal
Apuração de
crimes:
Contra a
ordem
política e
social
Em
detrimento da
União
De polícia
judiciária
Atribuição
Apuração de
infrações
penais (exceto
as infrações
militares e as
de
competência
da União)
Aos Delegados
cabe a Direção
das Polícias
Civis
Policiamento
ostensivo e
preservação
da ordem
pública
Forças
auxiliares e
reserva do
Exército
Crimes cuja
Execução de prática tenha
atividades de repercussão
defesa civil. interestadual
ou
Patrulhamento Patrulhamento
internacional
ostensivo das ostensivo das
e exija
rodovias
ferrovias
repressão
federais
federais.
Forças
uniforme
auxiliares e
reserva do
Prevenção e
Exército
repressão do
tráfico de
drogas
Proteção
de bens,
serviços e
instalações
dos
próprios
Municípios
Contrabando
e
descaminho
De polícia
marítima,
aeroportuária
e de
fronteiras
Embora o Artigo 144, no parágrafo sétimo, diga que uma lei disciplinará a
organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública de maneira
dos órgãos federais de segurança e no âmbito estadual os cargos da Polícia Civil foram
relacionados de acordo com a Lei Complementar de Pernambuco nº 137, de 31 de dezembro de
2008.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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a garantir a eficiência de suas atividades já se passaram mais de vinte e cinco anos da
promulgação da Constituição Federal de 1988 e nenhuma lei dispõe sobre o modelo ideal
para os órgãos de segurança, não havendo nem mesmo normatização geral sobre o
trabalho dos profissionais de polícia.4.
A classe política se recusou a enfrentar a desconstrução ou reconstrução do
modelo de polícia pós-ditadura. Estamos diante de um vazio normativo relativo aos
profissionais de segurança pública, mantido por mais de um quarto de século após a
Constituição Federal de 1988. A legislação federal não tratou do tema polícia na democracia
recente. Assim como a legislação pernambucana5.
Embora as formulações no tema polícia pouco tenham levado em conta a ausência
de regulamentação normativa. No tocante aos delegados esse grupo profissional conta hoje
em todo o Brasil com cerca de 15 mil. A polícia federal tem cerca de 2 mil desses delegados,
enquanto os demais compõem as polícias civis de cada um dos estados. Em Pernambuco
existem 700 cargos de delegados de polícia civil, desses, somente 450 estão ocupados.
Esses delegados sofrem questionamentos das práticas policiais em desacordo com os
valores estatuídos pelo Direito, aliado a escassos resultados no campo da Segurança
Pública. Portadores do bacharelado em Direito, os delegados não detêm a mesma posição
de outros profissionais do mundo do Direito e são atrelados no Brasil à truculência, não
conseguindo, no período pós 1988 associar-se a novos papeis como conquistado por outros
grupos profissionais dentro do sistema de Justiça Criminal.
Diante do espelho
No tocante ao perfil dos informantes observa-se que (70%) das nomeações
ocorreram após 1998, o que indica renovação dos quadros. O último concurso público para
o cargo de delegado realizado entre os anos de 2006 e 2008 em Pernambuco aprovou 220
candidatos que foram nomeados a partir de agosto de 2008.
É possível identificar que a maioria dos delegados se graduou em Direito após a
aprovação da Constituição Federal de 1988 (82,5%). A grande maioria dos que exercem a
função atualmente fez faculdade após a Constituição Federal de 1988, portanto, tendo
formação jurídica lastreada nos conceitos democráticos e humanitários, normativamente
implementados pela Constituição Federal democrática.
Os delegados pernambucanos apontam como marco da sua constituição como
classe o ano de 1974, quando publicada em janeiro a Lei nº 6.657 que instituiu a polícia de
4
Projeto de Lei n º 1.949 está sendo elaborado desde 2007, para instituir a Lei Geral das Polícias
Civis, texto que se propõe a normatizar questões como organização, princípios, diretrizes e
competências das Polícias Civis estaduais.
5
Lei estadual nº 6.425, conhecida como Estatuto Policial, data de 29 de setembro de 1972
1870
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carreira. Buscam assim se dissociar de um período onde a ocupação do cargo ocorria por
indicações políticas. E tentam suplantar uma identificação com a realidade dos policiais ad
hoc, como eram chamados os policiais nomeados em publicação no Diário Oficial que
passavam a ter licença para portar arma de fogo, por meio do porte de uma “carteira de
polícia”. Esses suplentes chegavam a contar com maior número do que os quadros de
policiais civis de carreira e rendiam além da “economia” aos cofres públicos, votos aos
políticos que faziam as designações (ZAVERUCHA, p. 29, 2009).
Grupos do mundo do Direito, como advogados, juízes e promotores conseguiram
atrelar-se a um papel de justiça e idoneidade com as mudanças no cenário sócio-políticonormativo pós Constituição Federal de 1988, enquanto os delegados não teriam
conseguido o reconhecimento de um papel social, lastreado no conhecimento e defesa do
Direito e encontram ausência de reconhecimento no campo que mantém uma recusa da
legitimação da sua expertise e dos seus saberes jurídicos.
Enquanto juízes, advogados e promotores constroem uma identidade coletiva que
enfatiza a autoridade moral e a expertise frente aos próprios membros e a opinião pública,
(BONNELI, 2002, p. 115) reforçando a autonomia profissional, os delegados tiveram
dificuldade para construir uma identidade coletiva com fortalecimento do ethos jurídico.
O processo de identificação profissional é um ato cognitivo, utiliza o saber prático e
o saber formal, adquirido na formação profissional. Para consolidá-la é necessário que os
indivíduos se sintam reconhecidos e valorizados. O reconhecimento identitário é um
processo cuja formação estrutura-se num espaço de identificação que é inseparável de
espaços de legitimação dos saberes e das competências associadas às identidades
profissionais, confundindo-se o espaço da atividade profissional e o espaço de
reconhecimento das identidades profissionais (PERRUCI, 2003).
Kant de Lima (2008, p. 42) apresenta uma ambigüidade que empresta às polícias
caráter potencialmente contaminador e desorganizador da ordem estabelecida, sujeitando-a
a acusações sistemáticas que torna a identidade policial clandestina. Apesar de uno o
Sistema de Justiça Criminal, a esfera do trabalho policial é rotulada pela cultura jurídica
como uma categoria distinta, enfatizando-se o caráter inquisitorial das práticas policiais na
produção de provas durante a apuração dos crimes.
O trabalho do delegado embora apresente características semelhantes ao restante
do Sistema de Justiça Criminal, recebe o estigma de trabalho jurídico sujo (HUGUES, 1962).
O conceito de dirty work atribuído a Hughes (1962) refere-se ao trabalho moralmente
degradante ou repulsivo. No Sistema de Justiça Criminal o trabalho do delegado aparece
como um aspecto desvalorizado, onde o primeiro momento da incriminação é considerado
repugnante a um sistema moral que prega a liberdade, mas, impõe a prisão aos que não
são capazes de cumprir as regras impostas.
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Os delegados são autorizados a impelir a prisão dos agressores das normas sociais
dentro de um grupo, contra os próprios membros do grupo (BAYLEY, 2006, p. 22) causando
indignação da moral grupal, o que lhes confere desprestígio social pela tarefa que executam.
Simbolicamente a utilização do Direito pelo delegado é desrespeitada pela moral
vigente no mundo do Direito, o que implica uma re-significação da posição de bacharéis a
quem é recusada a identificação positiva
Os delegados sujeitos da pesquisa dão continuidade à formação acadêmica,
registrando-se 71,3%, deles com pós-graduação, embora seja identificado pequeno
percentual com cursos de mestrado (5%) e doutorado (1,3%).
A continuação dos estudos após a graduação indica alteração do perfil dos
delegados em busca de um aperfeiçoamento da sua formação acadêmica, o que vai de
encontro a pesquisa de perfil social e ideológico dos profissionais do mundo do Direito
realizada por Bonelli em 2002 (p. 275) quando identifica que a maioria dos delegados da
amostra são provenientes de faculdades de baixa competitividade (faculdades privadas) e
contraria o apontado por Zaverucha (2009, p. 138) que a maioria dos delegados não passam
por cursos de especialização após entrarem na Polícia.
Se
ao
reivindicar
uma
jurisdição,
uma profissão
pede
à sociedade
o
reconhecimento de sua estrutura cognitiva, no tocante aos delegados, no período
democrático, o alicerce profissional tem sido minado por questionamento sobre processo
histórico, cultura de violência, ausência de mérito, formação acadêmica deficitária,
instrumentos de atuação inadequados, o que contesta o status profissional e dificulta o
reconhecimento.
Embora os delegados realizem o trabalho de investigação de crimes com autonomia
semelhante aos médicos quando diagnosticam a doença (BONELLI, 2002, p. 206) seu valor
como profissional do Direito é recusado.
O tipo de educação formal lastreada em conceitos democráticos e humanitários que
adquiriram os delegados formados após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a
continuação da formação acadêmica, aliadas a jovialidade (73,9% da amostra tem idade
entre 25 e 44 anos), pode ser capaz de alterar visões a respeito do trabalho e estimular a
mudança de valores autoritários. É possível admitir que novas gerações ainda que tenham
recebido a transmissão da tradição social, através dos processos de socialização, não a
reproduzirão por completo porque irão introduzir críticas, rejeições e inovações ao que
receberam.
As delegadas de polícia
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A amostra apresenta 73,8% de homens e 26,3% de mulheres, um percentual
bastante próximo do universo do grupo. Dados de outubro de 2012 da Divisão de Cadastro
de Pessoal da Polícia Civil apresentam 70,1% de homens e 29,9% de mulheres, o que
confirma o predomínio do masculino na profissão. Houve uma pequena diminuição desse
predomínio masculino, em uma década, ao se comparar com os achados de Sadek (2003),
em pesquisa realizada entre os anos de 2001-2002, aparecendo o Estado de Pernambuco
com 23,7% de delegadas de polícia.
Ao realizarmos retrospectiva da ocupação feminina nos quadros da Polícia Civil,
constatamos que as mulheres passaram a fazer parte da instituição recentemente. Embora
a Polícia Civil pernambucana conte com quase dois séculos de existência foi somente na
década de 1970 que as primeiras mulheres começaram a integrar o seu quadro funcional.
Em 1971 foram criados 12 cargos de agentes femininas de investigação, com a
finalidade de fazer revista em visitas de presos políticos. As agentes femininas trabalhavam
aos sábados e domingos nos presídios Barreto Campelo e Bom Pastor, nesse último, onde
existiam presas políticas e ainda no aeroporto, realizando revistas em viajantes.
As mulheres passam a integrar a classe de delegadas com a implementação da
polícia de carreira. Em 1974 o ingresso no cargo passou a ser por concurso público externo
e interno6 e as primeiras delegadas aprovadas em concurso, naquele mesmo ano iniciaram
as atividades a partir de 1975. De acordo com as informações colhidas, o concurso contou
com 60 aprovados, dos quais 13 eram mulheres.
No último concurso realizado entre os anos de 2006-2008, houve aprovação de 73
mulheres (32,1%) e 155 homens (67,9%)7. Entretanto, não dispomos dos dados relativos ao
quantitativo de mulheres e homens que disputaram as vagas nesse concurso, nem tão
pouco no concurso realizado em 1974.
Os homens que dominavam o universo dos delegados até 1974 persistem como
maioria. Entretanto, desde o ingresso das mulheres no cargo tem havido um crescimento
constante da ocupação feminina o que permite supor uma tendência de igualação de
delegadas e delegados nos próximos anos.
O gráfico 3 a seguir apresenta a evolução da participação de homens e mulheres
no cargo em Pernambuco. Foi construído com base em informações coletadas na Academia
de Polícia, referentes aos primeiros cursos de formação, dados constantes no Estatuto da
Associação de Delegados de Polícia de Pernambuco e informações de história oral.
Gráfico 1.
A participação de homens e mulheres no cargo
6
Conhecido por acesso
Disponível em
http://www.ipad.com.br/policiacivil2006/relacao_classificacao_apos_aval_psicol_crit_desempate_13_08_2008/d
elegadodepolcia.html. Acesso em 29 de nov. 2012
7
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Segundo o levantamento, entre os anos de 1974 e 1975, havia uma média de 60
delegados em Pernambuco, acrescidos de 24 nomeados em 1975 provenientes do primeiro
concurso realizado para o cargo. E é a partir daí que ingressaram as primeiras três
delegadas, num universo de cerca de 84 profissionais .
Nos anos seguintes foram nomeadas mais 10 mulheres, das quais 75% aprovadas
no concurso e 25% que já ocupavam cargo de agentes e passaram a exercer o cargo de
delegadas em virtude do acesso (formato de ingresso que permitia a agentes de último nível
à promoção ao cargo de delegada). Ao final dos anos 1970 o número médio de delegados
era de 120, dos quais 13 cargos eram ocupados por mulheres.
As situações de desafios no início da ocupação feminina ocorriam não só no
ambiente institucional, mas também nos ambientes criminosos, que também contam com o
predomínio do masculino. As delegadas encontravam-se provocadas pelo contexto social
que não previa mulheres comandando o combate ao crime, o que facilitava a recusa da
“autoridade” feminina:
(...) lá no Recife antigo, que naquela época só existia zona, ou seja, baixo
meretrício, só é o que tinha, e quando nós subimos, onde hoje é a delegacia
do primeiro distrito, quando nós subimos tinha um monte de homem lá e
disse: ôpa tem carne nova no pedaço (Kate Marrone).
Embora as delegadas representem quase um terço dos membros da Polícia Civil,
as mulheres não ocupam cargos na cúpula da Polícia pernambucana, estando o staff
superior da PCPE totalmente ocupado por homens, o que também se reflete na Secretaria
de Defesa Social e nesta última, ainda, com mais força a dominação do masculino, não
havendo nenhuma mulher que tenha ocupado o cargo de Secretária de Defesa Social ou
Secretária de Segurança Pública no Estado de Pernambuco, exclusão presente também no
staff superior. As únicas exceções são a nomeação da delegada Dinahyr Novaes como
Secretária de Segurança Pública adjunta no ano de 1990 e a nomeação da delegada Olga
Câmara para a chefia da Polícia Civil, em abril de 2001.
1874
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Polícia, polícia para quem precisa de polícia: a percepção da prática
O diagnóstico das tarefas desempenhadas pelos delegados apresenta grande
variedade.
A tarefa investigativa realizada através do inquérito aparece como a principal
atividade do delegado. Na presidência do inquérito e lavratura do auto de prisão em
flagrante o delegado observa sua principal atuação.
Entre as principais características observadas para a confecção de um bom
inquérito os delegados percebem como de maior importância: a interpretação do Direito com
razoabilidade, a prática investigativa e o conhecimento de técnicas de entrevista e
interrogatório (96,3%).
O respeito à dignidade da pessoa humana aparece como importante na maioria ou
em todas as situações para 95% dos respondentes. Acompanhados da característica de
aplicação da lei com observância irrestrita aos direitos humanos (92,5%) e a experiência
policial com importância em todas ou na maioria das situações para 90% dos respondentes.
A modificação nos quadros ativos da carreira pode ser ocasião propícia para
mudança das práticas que orientam o grupo. Ainda que as organizações sejam
caracterizadas pela continuidade, processos de mudança podem alterar a estabilidade de
valores e crenças e trazer a diversidade capaz de interromper a continuidade mantida pelos
controles, sobretudo aqueles transmitidos às novas gerações.
As gerações mais jovens expostas à diversidade de valores que acumularam numa
formação normativa democrática permitiria um maior rol de escolhas entre diferentes modos
de práticas e valores ou uma combinação de elementos da cultura em novas configurações.
Em relação ao ranqueamento das tarefas investigativas mais corriqueiras o gráfico
a seguir reproduz a percepção dos respondentes.
Gráfico 2.
Tarefas investigativas mais corriqueiras
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120
100
80
60
40
20
0
comparecer a realizar oitiva de preservar a
coletar provas ava
locais de crimes
pessoas
ordem com uso após avaliação
c
progressivo da
jurídica da
Os delegados observam como tarefas mais corriqueiras
de fatos para
força a avaliação
legalidade
classificação jurídica e a interpretação da legislação vigente para confecção de peças e
relatórios (100%), enquanto a preservação da ordem por meio de uso progressivo da força é
a tarefa apresentada como menos corriqueira, aparecendo em poucas ou nenhuma situação
em 72,5% das respostas.
Ainda aparecem entre as atividades mais corriqueiras a coleta de provas após
avaliação jurídica de legalidade (91,3%); oitiva de pessoas com uso de técnicas de
entrevista e interrogatório (93,8%) e comparecimento a locais de crimes (68,8%).
Embora o uso excessivo da força seja elemento reiteradamente apresentado nas
avaliações sobre os profissionais de polícia, no caso dos delegados pernambucanos a ação
de repressão com uso da força (adequada ou excessiva) aparece em poucas situações
entre as tarefas corriqueiras. O que demonstra que as notícias referentes a abuso da força
podem ter dimensão que não reproduz a sua recorrência no caso desses policiais.
Os achados vão ao encontro de outras pesquisas. O anuário de segurança de
2013, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2013), apresenta um dado significativo,
apenas uma morte em confronto com a Polícia Civil de Pernambuco no ano de 2012 e
nenhuma morte no ano de 2011. A mesma avaliação de mortes em confronto com a Polícia
Militar pernambucana registra números de 31 mortes para o ano de 2012 e 24 mortes para o
ano de 2011.
Ao mesmo tempo em que investigam crimes de tráfico de drogas, homicídio, roubo,
furto, os delegados também elencam atividades que visam solucionar conflitos diversos,
atividades de aconselhamentos e orientações de questões jurídicas alheias a seara criminal.
O que vai ao encontro dos achados de Oliveira (2004, p. 29) em pesquisa realizada na
década de 1980, quando identificou que parte das pessoas que procuravam os
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comissariados8 não tinham assuntos jurídicos a resolver, muitas vezes procurando um
conselho ou informações relativas a questões burocráticas em geral.
“É gente sem noção, atender doido, gente chorando, gente errada que acha que
está certa, o que demanda 40% do dia atendendo ao público” (Macgyver).
Alguns delegados vêem essa amplitude como uma atuação preventiva de crimes
mais graves. Outra explicação pode ser em decorrência da maior concentração de órgãos
assistenciais nos centros de poder, implicando uma inexistência de órgãos como Ministério
Público, Judiciário, Defensoria e outros órgãos do Sistema de Justiça Criminal ou unidades
de assistência.
Para alguns delegados a atuação em tarefas de aconselhamento e assistência
social implica em um desvio da função Uma delegada relata que durante seu período de
trabalho no Interior a escassez de recursos e a incompletude da equipe de policiais
necessários a impeliam a realizar tarefas além das suas: “Na falta de pessoal o delegado
passa a exercer o trabalho dos outros membros da polícia, realizando trabalho pericial, ou
atendimento de pessoas” (Helô).
A auto-imagem dos delegados apresenta ambigüidade: ao desempenharem seu
papel se observam como profissionais de segurança pública, na maioria ou todas as
situações
e profissionais do Direito com percentuais superiores a 95%, e ambos se
percebem com forte auto-imagem de conciliadores (66,3%) e promotores de cidadania
(75%).
Num contexto social que anseia por ações estatais, a pluralidade de funções do
delegado tentam responder a essas reivindicações e englobam além de tarefas
investigativas de crimes comuns como homicídio, roubo, furto, tráfico de drogas a
investigação de crimes complexos como os crimes cibernéticos e o acolhimento de pessoas
que podem ser vítimas de crimes ou flagelados, doentes mentais, bêbados ou carentes de
qualquer tipo. Vários entrevistados, tal como já mencionado descrevem atuações de
conciliação, aconselhamento familiar, orientação financeira. As atividades recobrem toda
sorte de acidentes e conflitos experimentados pelos indivíduos:
A mesma polícia que “investiga roubo, furto, homicídio, crime cibernético” (John
Mackley), “concilia famílias, soluciona problemas de dívidas a mando dos políticos, atende
doido, gente chorando, gente errada que acha que está certa e faz inquérito, busca provas”
(Macgyver).
É possível encontrar na percepção do papel desempenhado referência a uma
função social e comunitária, tanto quanto repressiva. As ações de atenção social são
8
Os comissariados eram espécie de postos policiais de menor complexidade. Atualmente não existem mais, e
todas as situações de alta, média ou baixa complexidade são encaminhados para as delegacias.
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percebidas
como
resultado
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das
interações
do
grupo
em
ambientes
que
são
predominantemente pobres e carentes de assistência estatal.
Ainda que perdure a percepção social de crueza, as novas gerações de delegados
se percebem precipuamente como garantidores dos direitos da sociedade: “o delegado de
polícia hoje é um garante da sociedade, porque elé é antes de mais nada, vamos dizer, um
protetor dos direitos fundamentais, direitos individuais, como também um protetor de toda
sociedade” (Magnum)
Talvez não exista nada mais revelador sobre a visão social do trabalho
desempenhado nas delegacias de polícia do que a expressão “24 barra 7” que significa, não
só no Brasil, mas também em outros países9 o funcionamento das unidades policiais 24
horas por dia, durante os 7 dias da semana. E assim, o sentimento da população em relação
às unidades de polícia é que se trata de fonte ininterrupta de atenção.
A constância do trabalho policial permite que um turbilhão de situações sejam
trazidas às Delegacias diariamente, havendo a expectativa de atenção para qualquer
evento: “as portas estão abertas sempre” (Macgyver); “A delegacia é o primeiro lugar onde a
população bate à porta” (Magnum).
Os conflitos que chegam às delegacias englobam desde pedidos de orientação e
repreensão de mães para os seus filhos “mal criados”, a situações gravíssimas, como
crimes de homicídio, roubo, estupro, tráfico de drogas, extorsão mediante seqüestro.
Diferente de polícias, como a norte-americana que passou de um grupo de
servidores civis de ampla utilidade que cuidava de distribuição de sopa aos pobres,
inspetores de caldeiras, padronizadores de pesos e medidas e hospedaria de mendigos
durante a noite e a partir do final do século XIX passa para um trabalho focado no controle
da criminalidade (TONRY, 2003, p. 577), a Policia Civil de Pernambuco dá continuidade ao
formato de prestadores de variados serviços, sem um foco no trabalho voltado ao controle
da criminalidade.
A pluralidade de tarefas distancia a polícia de especializar-se na investigação. Para
Bayley (2006, p. 24) uma força policial não especializada é capaz de fazer muitas outras
coisas, citando as policias da França e Prússia, que durante os séculos dezoito e dezenove
eram instrumentos de regulamentação governamental para todos os fins, realizando
inspeções sanitárias, emitindo permissões de moradia e garantindo suprimento de comida.
9
Durante visita ao Departamento de Polícia de New York na qual buscava observar semelhanças e diferenças das
características dos policiais brasileiros e novaiorquinos, em virtude do meu inglês pouco desenvolvido, não
conseguia formular a pergunta sobre o formato de funcionamento de uma dada unidade que me era apresentada,
e buscando uma expressão simples que ajudassem meus interlocutores a me compreenderem, lembrei-me do
24/7 e ao proferir as palavras twenty-four for seven houve rápido entendimento da expressão pelos policiais de
New York que me recebiam. O 24/7 é utilizada pelos policiais como exigência de alerta e prontidão contínua.
Denominando até mesmo a arma de fogo, pistola PT 24/7 .40 que é calibre restrito ao uso dos policiais no Brasil.
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As experiências internacionais demonstram que uma polícia multivariada tem
características de amadorismo. Nos Estados Unidos, ao menos até os anos 1920, para
muitos necessitados, os departamentos de polícia eram o lugar de apoio, os postos policiais
tinham dormitórios para abrigar hospedes (velhos, enfermos, incapacitados, órfãos ou sem
teto). No final do século XIX, a polícia passou a se concentrar mais no controle do crime.
Esse papel assistencial foi percebido como amadorismo pela justiça criminal, que se dirigiu
ao cuidado do crime em tempo integral (TONRY, 2003, p. 586).
Em Pernambuco perpetua-se indefinição e utilização variada da polícia. O Decreto
nº 22.149, de 2000, que regulamenta a Secretaria de Defesa Social, prevê entre as
atribuições da Polícia Civil a participação em atividades de defesa civil. O que demonstra
uma opção governamental por uma Polícia Civil não especializada na tarefa de apuração de
infrações penais. A carência de estrutura para desempenho do trabalho investigativo
aparece como forte fator de desestímulo aos delegados, apesar de indicarem uma melhor
qualificação dos equipamentos dispensados à Polícia Civil nos últimos anos. Persiste a
reclamação quanto ao crescimento das exigências impostas à classe, que passou a ser
cobrada por melhores resultados no tocante ao trabalho investigativo, sem dispor da
possibilidade de dedicação exclusiva a tais tarefas.
OS SABERES: o precioso anel de rubi
No desempenho das atividades diárias, o principal conhecimento a que recorrem
delegados é o Direito Penal utilizado em todas as situações por 93,8% dos respondentes. E
as entrevistas dão substrato a essas informações angariadas nos questionários. Os
conhecimentos do Direito são associados às tarefas investigativas realizadas pelos
delegados que ressaltam que uma boa investigação, que permita um término eficaz do
processo de incriminação é baseada na apuração de provas que atine para as questões de
natureza jurídica. Não sendo possível àquele que não detêm o conhecimento técnico
jurídico a capacidade de realizar investigação eficaz.
Com efeito, houve mudanças importantes ao longo da história no que se refere à
formação dos delegados, que indica a passagem de uma Policia Civil militarizada para uma
fundada na formação acadêmica. A partir de 1974, o bacharelado em Direito tornou-se
requisito para o ingresso no cargo, o que foi efetivamente respeitado para indicação do
cargo de Secretário de Segurança Pública a partir de 1989.
A Secretaria de Segurança Pública foi transformada em Secretaria de Defesa
Social, no ano de 1999, quando as indicações para o cargo de Chefe de Polícia continuaram
a ser feitas com base na formação jurídica e experiência policial, observando ainda a
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previsão da Constituição de Pernambuco de indicação de um delegado, ocupante do último
nível da carreira. Entretanto, para o cargo de Secretário de Defesa Social o governo de
Jarbas Vasconcelos optou pelo modelo militarizado e indicou como primeiro Secretário o
General de brigada, Adalberto Bueno da Cruz, substituído pelo Coronel da Polícia Militar Iran
Pereira dos Santos que ocupava o cargo de Comandante da Polícia Militar.
Para Zaverucha (2009, p. 25) a mudança no nome da secretaria não implicou uma
discussão sobre o significado da expressão que batizou a mesmíssima estrutura. Em
Pernambuco houve uma concepção de Segurança Pública militarizada que foi alargada
quando da extinção de uma velha Secretaria de Segurança Pública para a nova Secretaria
de Defesa Social. A chegada da Secretaria de Defesa Social vem acompanhada de tão forte
conteúdo militar que a Lei 11.629 de 1999 que a institui prevê que cargos em comissão e
funções de confiança sejam ocupados por militares para que membros do Exército possam
ocupá-los como se trabalhassem em dependências militares.
A indicação do Secretário de Defesa Social passou a fundar-se na formação jurídica
e experiência policial a partir da nomeação do Secretário Romero Menezes e seus
sucessores Servilho Paiva, Wilson Damázio e Alessandro Carvalho. Contudo, o perfil
militarizado da Secretaria que se propõe de defesa tenha desaparecido da figura do
Secretário o militarismo persiste no seu staff que tem a maioria dos cargos de direção
ocupados por militares.
A identificação com características do mundo do direito e com um ethos lastreado
nos valores constitucionais é apresentada pelos respondentes, como indica o gráfico nº 5.
Gráfico 5.
Grau de correspondência com o mundo do Direito e com a segurança pública
60
50
40
30
20
10
0
baixa
média
alta
média
baixa
alta
correspondência com o
mundo da segurança correspondência com o
pública
mundo do direito
A amostra aponta para uma maior correspondência com o mundo do Direito, 51,4%
dos delegados apresentam correspondência com características de atuação, tarefas,
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saberes,
formação
do
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mundo
do
Direito,
enquanto
16,7%
apresentam
média
correspondência e 31,9% baixa correspondência.
A correspondência com tarefas características e atores do mundo da segurança
pública é pulverizada: 34,2% da amostra apontam para uma alta correspondência com esse
meio, enquanto 35,6% apontam para uma média correspondência e 30,1% para baixa
correspondência.
Por outra parte, os delegados reafirmam a sua identificação com as características
do mundo do Direito e a formação de um ethos para os valores constitucionais
democráticos. Os entrevistados tomam parte dos mesmos valores partilhados pelos
membros do mundo do Direito: “o delegado é antes de mais nada um operador do Direito”
(Magnum). Profissionais do mundo do Direito afastam-se da comparação com delegados e
tentam desatrelar-se de qualquer ligação com a polícia, buscando um ethos distinto.
Conclusão
A amostra aponta para uma elevada correspondência dos delegados com
características de atuação, tarefas, saberes, formação do mundo do Direito (51,4%) e os
delegados apontam como principal fator complicador para a realização do trabalho as
insatisfatórias condições de trabalho.
Aos Delegados ficam as tarefas de contato vivo com a sociedade e suas falhas. O
trabalho deles implica a avaliação da incriminação em meio a mistura complexa de gritos
das mães, mulheres, filhos dos acusados ou das vítimas, medo das testemunhas, choro de
uns, reclamações de outros, às vezes choro e reclamações de todos, sangue que pode ser
da vítima, do acusado ou às vezes de ambos, álcool e outras substâncias como maconha,
crack, cocaína, que aparecem com certa constância junto a crimes, ou somente as
substâncias que formam as emoções humanas que acompanham a espécie humana como
ira, inveja, cobiça, ou outras das transgressões voluntárias das leis morais ou religiosas.
Tais dados indicam que parece imprópria a crítica segundo a qual os delegados não
deveriam se imiscuir no ethos jurídico, mas que é preciso considerar o lugar das condições
de trabalho nos resultados obtidos.
No caso dos delegados pernambucanos se percebe uma carência de estrutura de
trabalho, rotinas complexas que exigem estruturas institucionais mais aperfeiçoadas e um
desequilíbrio entre os componentes do Sistema de Justiça Criminal e Polícia, resultante da
disputa por posições de prestígio que geram um descrédito do trabalho dos delegados por
serem executores de tarefas desprestigiadas.
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Se os Delegados são diferentes, em que sentido poder-se-ia dizer que suas
práticas e valores são os mesmos? Admite-se que as organizações caracterizam-se pela
continuidade e que os processos de mudança podem ser capazes de interromper essa
continuidade.
Desse modo, como foi observado, a formação lastreada em conceitos
democráticos e humanitários obtida pelos delegados estudados no contexto pós
promulgação da Constituição Federal de 1988, suscitou
a continuação da formação
acadêmica. Por outro lado, foi constatada modificação do quadro caracterizada pela
presença de adultos “jovens”, miscigenação, diversidade sexual e desafeição política. Tais
mudanças podem alterar o trabalho e a própria cultura organizacional desde que objeto de
reflexões críticas e suscitar atitudes de inovações.
Poder-se-ia dizer que um novo perfil de delegados está em formação, no qual,
ganha relevo o alargamento de escolhas entre diferentes práticas que combinam elementos
da cultura policial em novas configurações. Entretanto a ausência de aperfeiçoamento das
condições estruturais das polícias, após 25 anos de regime democrático continuado, é
percebida como principal obstáculo à efetivação de uma instituição de polícia adequada.
Os resultados empíricos trazem a percepção dos delegados de um trabalho
realizado em meio a toda ordem de carências estruturais. No caso de Pernambuco o
crescimento do aperfeiçoamento acadêmico baseado no saber jurídico, aliado a outros
fatores como renovação dos quadros e gerenciamento das atividades podem aparecer como
variáveis que interferem na melhoria da qualidade do trabalho de investigação realizado por
inquérito policial. Em Pernambuco o aumento da taxa de elucidação dos crimes sob
coordenação gerenciada permite a necessidade de desconsiderar outros indicadores que
podem estar correlacionados aos baixos índices de elucidação de crimes no Brasil.
A pesquisa indica que a melhoria das condições de trabalho e infra-estrutura
aliadas a planejamento sistemático de ações podem contribuir para a delimitação da
jurisdição do delegado, com investigação lastreada no conhecimento jurídico, condição para
apontar para a militarização dos procedimentos investigativos, com tendência de absorção
do ethos técnico-jurídico pelo ethos militarizado.
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REFERÊNCIAS
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Chicago: Chicago University Press, 1988.
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Paulo, 1996.
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Jun
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1885
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
A (in) constitucionalidade do processo de licenciamento ex officio da polícia
militar: um estudo a partir da realidade pernambucana
Flávia Roberta de Gusmão Oliveira1
Marta Thais Leite dos Santos2
RESUMO
A nova ordem constitucional brasileira, iniciada com a promulgação da Constituição
Federal de 1988, não foi suficiente para extinguir algumas normas e regulamentos
militares, que permanecem vigentes até hoje, que limitam a prática democrática,
representando um dos enclaves herdados do período ditatorial (GARRETÓN, 2006).
Neste estudo serão analisadas as normas que discorrem sobre o processo de
licenciamento ex officio da Polícia Militar de Pernambuco (PMPE), comparando-o com
os demais processos administrativos disciplinares (conselho de justificação e conselho
de disciplina) presentes na corporação e demonstrando as inconstitucionalidades das
normas que disciplinam esse processo de licenciamento, que apesar de evidentes,
não são questionadas e permanecem em vigor, amparadas em um texto constitucional
amplo, vago e subjetivo. As inconstitucionalidades apontadas são justificadas por
ferirem os seguintes princípios: contraditório e ampla defesa, isonomia, devido
processo legal, juiz natural; além disso, tais normas estão em desacordo com o prazo
para estabilidade do serviço público, definido na Carta Magna brasileira. A
metodologia utilizada será qualitativa, amparada em uma pesquisa bibliográfica, com
ênfase na análise das leis, haja vista que a discussão dessa temática é muito escassa
na doutrina jurídica.
Palavras-chaves: Licenciamento ex officio. (in) constitucionalidades. PMPE.
ABSTRACT
Brazil's new constitutional order, started with the enactment of the Constitution of 1988
was not enough to extinguish some military rules and regulations, which remain in
force today, which limit democratic practice, represented an inherited enclaves of the
dictatorial period ( Garretón 2006).On this paper, there is going to be analyzed some
rules that discourse about the "ex officio" licensing process of Military Police of
Pernambuco (MPPE), comparing it with the others administrative disciplinary
processes (justification council and disciplinary council) presented in the corporation
and demonstrating the unconstitutionaties of the rules that disciplines this licensing
process, witch althought evident, are not questionated and remains in vigour,
supported by a wide, vague and subjective constitutional text. The pointed
unconstitutionalities are justified for hurting the following principles: contradictory and
full defense, equality, due process, natural justice; Moreover, such rules are in
desagreement with the stability period for the public service, defined in the Brazilian
Constitution. The methodology will be qualitative, based on a literature review, with
1
Mestranda em Direitos Humanos pela UFPE, Pós-graduanda em Gênero, Desenvolvimento e
Políticas Públicas pela UFPE e Bacharela em Direito pela UNICAP. E-mail:
[email protected].
2
Mestranda em Direitos Humanos pela UFPE, Pós-graduanda em Direitos Fundamentais e
Democracia pela UEPB, Graduada em Direito pela UEPB e graduada em Comunicação
Social/Jornalismo pela UFPB. E-mail: [email protected].
1886
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
emphasis on analysis of the laws, considering that the discussion of this subject is very
scarce in legal doctrine.
Keywords : Licensing ex officio. (Un)constitucionalities . MPPE
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo analisar o processo de licenciamento ex
officio, aplicado as praças sem estabilidade assegurada no âmbito da PMPE,
procurando enfatizar alguns pontos deste processo que estão em desacordo com os
princípios constitucionais garantidos pela Lei Maior brasileira.
Grande parte das normas administrativas brasileiras, principalmente aquelas
que regulam o serviço militar, seja ele federal ou estadual, apresentam resquícios do
período ditatorial, essa permanência representa, conforme Garretón (2006) um
enclave herdado que dificulta a consolidação democrática brasileira.
Galindo (2012, p. 197) destaca que: “as experiências constitucionais
democráticas após períodos de autoritarismo político sempre enfrentam dificuldades
acerca dos problemas advindos dos anos de exceção”.
Academicamente ainda há poucos estudos sobre as normas disciplinares
utilizadas pelos militares estaduais, destacamos apenas um estudo realizado pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que será mais bem comentado adiante. Em
Pernambuco não foi localizada nenhuma discussão sobre a temática, o que demonstra
a importância deste estudo, ainda inicial.
O artigo está estruturado didaticamente em três partes, inicialmente
discutiremos sobre a redemocratização brasileira e os enclaves autoritários herdados.
Depois discutiremos sobre o processo de licenciamento ex officio propriamente dito,
ilustrativamente tal processo será analisado a partir da realidade pernambucana, neste
sentido iremos discorrer sobre o posicionamento da PMPE na Secretaria de Defesa
Social no estado de Pernambuco e faremos algumas considerações iniciais sobre o
processo de licenciamento ex officio que situem o leitor sobre o assunto analisado. Por
fim, analisaremos as possíveis in (constitucionalidades) deste processo, antes porém
será destacada a força princiológica constitucional.
Metodologicamente será utilizado o método qualitativo, a partir da pesquisa
bibliográfica, embasada na análise da doutrina e da legislação que versam sobre o
assunto estudado.
2 A REDEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA E OS ENCLAVES AUTORITÁRIOS
HERDADOS
1887
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
O término da ditadura civil-militar inaugurou o período de transição do
autoritarismo para a democracia no Brasil, todavia, após 30 anos da eleição do
primeiro presidente civil, depois do Golpe de 1964, percebemos que a democracia
brasileira está restrita às questões políticas (direito ao voto) ainda estando longe de
ser efetivada a democracia social.
Nóbrega Júnior adotando a teoria minimalista, afirma que no Brasil vigora uma
semi-democracia, ele explica, ancorado em Mainwaring que:
Uma teoria minimalista sobre a análise de regimes políticos
democráticos para efetivar a afirmação de que existe democracia
num dado país, tem de preencher os seguintes critérios: 1) promover
eleições competitivas, livre e limpas para o Legislativo e o Executivo;
2) pressupor uma cidadania adulta abrangente e inclusa no processo
de escolha (voto); 3) proteger as liberdades civis e os direitos
públicos e 4) efetivar governos eleitos que de fato governam e onde
militares estejam sob jugo dos civis. (MAINWARING et alli apud
NÓBREGA JÚNIOR, 2009, p.47-48)
O autor demonstra que o componente liberal, que é essencial para a efetivação
da democracia, está demasiadamente fragilizado no atual cenário das instituições
brasileiras. Além disso, é destacada a tradição histórico e cultural que não permite que
essas instituições atuem no desenvolvimento de uma sociedade baseada nos
princípios igualitários e no respeito aos direitos humanos, sem contar a força política
de atores não eleitos, como as forças armadas brasileiras (NÓBREGA JÚNIOR, 2009),
tudo isso demonstra que muitos dos critérios definidores do conceito de democracia,
descritos pela teoria minimalista, não sejam cumpridos, nos restando constatar que no
Brasil vigora no máximo uma semi-democracia.
Esse posicionamento é asseverado pelo fato do período de transição do
governo militar para o governo civil ter ocorrido de forma negociada e conservadora,
na medida em que houve a manutenção de inúmeros aspectos autoritários vigentes no
período anterior, os quais continuaram (e continuam) influenciando a sociedade
brasileira, no sentido de cercear e limitar o alcance da democratização (OLIVEIRA,
2000).
Garretón denomina esses aspectos autoritários de enclaves herdados,
segundo ele:
Realmente, as situações pós-autoritárias geralmente exibem três
outros enclaves herdados. Um desses é o legado institucional – isto
é, a coexistência de normas democráticas e de cláusulas
constitucionais ou legislativas que limitam a prática democrática. Uma
segunda característica remanescente no cenário pós-autoritário são
seus atores políticos, organizações e setores sociais,
principalmente aqueles internos ou ligados aos militares, que não se
encontram totalmente integrados no jogo e que, algumas vezes, até
conspiram contra ele. O terceiro enclave [...] é caracterizado pela
1888
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
presença generalizada de mentalidades, atitudes e valores
3
antidemocráticos ou autoritários. (GARRETÓN, 2006, p.73)
O processo de licenciamento ex officio, sem dúvida alguma, representa um
enclave herdado, relacionado ao legado institucional, visto que ele representa uma
norma administrativa remanescente ao período ditatorial brasileiro, eivada por várias
nuances que vão ao encontro da força principiológica constitucional, mitigando o
critério para existência da democracia de proteção das liberdades civis e dos direitos
públicos.
2 COMPREENDENDO
O
LICENCIAMENTO
EX OFFICIO,
A PARTIR DA
REALIDADE PERNAMBUCANA
Antes de analisarmos os princípios constitucionais que não são plenamente
respeitados no processo de licenciamento ex officio é necessário enfatizar que
centraremos nosso estudo na normativa vigente no estado de Pernambuco, todavia
em corporações policiais de outros estados brasileiros também continuam em vigor
normas semelhantes à pernambucana, que apresentam vários institutos eivados de
resquícios autoritários e amplamente questionáveis no atual estado de direito
brasileiro.
Em um estudo já mencionado, que foi realizado pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro e publicado pelo Ministério da Justiça, no segundo volume da
coleção Pensando a Segurança Pública, intitulado “Direitos Humanos” foram
analisadas as legislações disciplinares adotadas e válidas para as polícias militares,
bombeiros militares, polícias civis e polícias técnicas de todos estados brasileiros,
além das normas referentes à Polícia Federal e à Polícia Rodoviária Federal. Segundo
o estudo:
As legislações disciplinares das polícias do Brasil, tanto as militares
quanto as civis, com algumas exceções correspondentes a diplomas
mais modernos, ainda se caracterizam pela ênfase na preservação
da hierarquia, deixando em segundo plano a regulação das
relações com a sociedade. O sistema disciplinar, além de estar
dirigido a proteger sobretudo a imagem da instituição, defende uma
moral social conservadora e tradicional e, a partir dela, regula não só
a conduta profissional, mas também a vida privada dos agentes. Os
profissionais de segurança pública, para evitarem ser punidos,
precisam mostrar todas as virtudes e nenhum defeito, conformando
uma figura idealizada de um ‘super-homem moral’ inatingível na
prática e que provoca diversos efeitos perversos. (...) O clima
institucional que se depreende dos regulamentos é autoritário,
com severos limites à liberdade de expressão e com uma visão do
3
Sem grifo no original.
1889
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
profissional dos níveis inferiores como alguém que obedece
passivamente ordens superiores, sem o direito mesmo de solicitar
mudanças, muito menos de debatê-las publicamente. Os diplomas
legais se posicionam claramente contra a transparência
institucional, pois tendem a punir a divulgação de dados e
4
informações . (BRASIL, 2013, p. 367-368)
Ou seja, em muitos estados o enclave herdado do legado institucional é
bastante presente, ainda hoje, nas normas válidas para os militares, sendo várias
dessas normas contrárias aos princípios constitucionais do estado democrático
brasileiro, o que, no entanto, não é suficiente para a arguição de uma análise da
constitucionalidade delas.
2.1 A Polícia Militar de Pernambuco, enquanto órgão operativo da Secretaria de
Defesa Social
A criação do Ministério da Defesa (MD), no âmbito da União, objetivava
diminuir a participação política dos militares, os subordinando a um comando único,
preferencialmente civil, todavia o que tem se percebido é que este objetivo não tem
sido alcançado, pois na maior parte das vezes os ministros desta pasta são escolhidos
com base nos interesses das Forças Armadas, para Nóbrega Júnior:
O MD aparece à primeira vista, como um grande avanço para a
consolidação da democracia no Brasil, mas, na verdade esconde, nos
bastidores, a verdadeira ação em seu bojo, ou seja, o domínio dos
castrenses como força política no planejamento, gestão e execução
das atividades de Defesa. Tem-se um domínio de jure de um ministro
“fantoche”, mas de facto o que se verifica é a autonomia dos
comandos militares (Exército, Aeronáutica e Marinha) na direção do
MD. A coordenação do setor de segurança nacional está nas mãos
dos verde-oliva (NÓBREGA JÚNIOR, 2009, p.180).
Em Pernambuco, uma ideia semelhante ocorreu com a proposta de criação da
Secretaria de Defesa Social (SDS), que foi consolidada em 1999, tendo como objetivo:
Promover a defesa dos direitos do cidadão e da normalidade social,
através dos órgãos e mecanismos de segurança pública, integrar as
ações do Governo com vistas à preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio no âmbito do Estado;
planejar, coordenar e controlar as atividades de polícia ostensiva, de
polícia judiciária e a apuração de infrações penais, e de defesa civil,
prevenção e combate a sinistro; prover a execução das ações de
polícia técnica e científica e de medicina legal; exercer as atribuições
de polícia administrativa e de fiscalização de atividades
potencialmente danosas; manter-se articulada com órgãos
4
Sem grifo no original.
1890
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
competentes para a execução da polícia ostensiva de guarda, de
trânsito e do meio ambiente; realizar serviços de resgate, busca e
salvamento, socorro e atendimento médico emergencial à vítimas de
acidentes e calamidades; assegurar, por atuação conjunta dos seus
órgãos de segurança, a execução das políticas públicas de
prevenção e repressão à criminalidade e de prevenção e controle de
sinistro (PERNAMBUCO, 1999).
A criação da SDS implicou, portanto, na perda de poder do Comando da
Polícia Militar de Pernambuco, que antes tinha status de Secretaria de Estado e do
antigo Secretário de Segurança Pública, que era um policial civil. Atualmente as duas
forças policiais (civil e militar) e o Corpo de Bombeiros estão subordinados a SDS,
como órgãos operativos.
Inicialmente a criação da SDS não enfraqueceu os militares estaduais, pois a
pasta de Secretário de Defesa Social foi assumida por militares, o primeiro secretário,
por exemplo, foi o General de Brigada Adalberto Bueno da Cruz, posteriormente,
contudo, o comando da SDS passou para as mãos de civis, sendo a maior parte deles
delegados da Polícia Federal, o que de certa forma possibilitou um maior controle civil
sobre os militares estaduais.
O fortalecimento da SDS em Pernambuco, contudo, não foi suficiente para
dirimir alguns enclaves autoritários ainda presentes nas corporações militares
pernambucanas, Polícia Militar de Pernambuco (PMPE) e Corpo de Bombeiros
Militares de Pernambuco (CBMPE), isso porque a Constituição Federal Brasileira não
alterou a condição de força auxiliar do Exército desses organismos militares estaduais.
Com isso percebemos que ainda vigoram muitas normas que evidenciam uma
perspectiva militarizada e autoritária, que não é condizente com a realidade
constitucional brasileira, principalmente quando consideramos a força normativa
principiológica do atual estado de direito brasileiro.
Neste artigo serão analisadas as normas que versam sobre o processo de
licenciamento ex officio, dando destaque as nuances que possam demonstrar uma
discussão sobre as (in) constitucionalidades dessas normas.
2.2 O processo de licenciamento ex officio: considerações iniciais
Antes de discutirmos sobre o processo de licenciamento ex officio propriamente
dito, é necessário fazermos algumas considerações iniciais sobre as normas
administrativas que regem as relações dos militares estaduais, as principais dessas
normas são: o Estatuto dos Policiais-Militares do estado de Pernambuco (Lei
1891
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
6.783/1974) e o Código Disciplinar dos Militares do Estado de Pernambuco (Lei
11.817/2000)5.
Tais normas regulamentam as relações administrativas vivenciadas pelos
militares estaduais, a maior parte dessas relações é diferenciada pela separação
existente nas corporações militares entre oficiais e praças, o artigo 14 do Estatuto da
PMPE define os círculos hierárquicos e a escala hierárquica, conforme exposto na
tabela a seguir:
Círculo de Oficiais Superiores
Coronel PM
Círculo de oficiais
Tenente-Coronel PM
Major PM
de
Oficiais
Postos
Círculo
Intermediários
Círculo de Oficiais Subalternos
Capitão PM
Primeiro-Tenente PM
Segundo-Tenente PM
Círculo de praças
Círculo
de
Subtenentes
e
Subtenente PM
Graduações
Sargentos
Círculo de Cabos e Soldados
Primeiro-Sargento PM
Segundo-Sargento PM
Terceiro-Sargento PM
Cabo PM
praças Especiais
Círculo de
Soldado PM
Frequenta
o
Círculo
de Aspirante-a-Oficial PM
Oficiais
Excepcionalmente
ou
em Aluno-Oficial PM
reuniões sociais tem acesso
ao Círculo de Oficiais
Praças
Excepcionalmente ou em reuniões Alunos do Curso de Formação de
sociais tem acesso ao Círculo de
Sargento PM
Subtenente e Sargentos
Frequenta o Círculo de Cabos e
Aluno de Curso de Formação de
Soldados
Soldados PM
5
É importante ressaltar que tais normas são válidas para a PMPE e para o CBMPE, todavia
neste artigo falaremos especificamente da PMPE.
1892
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Essa separação (Oficiais, Praças e Praças Especiais) é importantíssima e irá
repercutir em muitos aspectos na regulação da atividade policial militar.
Uma
dessas
repercussões,
diretamente
associada
aos
processos
administrativos disciplinares a que estão sujeitos os militares estaduais, diz respeito ao
período de estabilidade do Policial-Militar, segundo o Estatuto, em seu artigo 49, inciso
IV, alínea “a”, as praças irão adquirir estabilidade, após 10 (dez) anos ou mais, de
tempo de efetivo serviço; já a estabilidade do Oficial é automática, tão logo ele conclua
o Curso de Formação de Oficiais e o período de aspirantado6, ele já se torna servidor
estável.
Essa distinção do período de estabilidade irá diferenciar a aplicabilidade dos
diversos processos administrativos disciplinares existentes na legislação administrativa
castrense estadual. Os aspirantes-a-Oficiais e as praças com estabilidade assegurada
serão submetidos a Conselho de Disciplina (Art. 48 do Estatuto da PMPE), os oficiais
serão submetidos a Conselho de Justificação Art.47 do Estatuto da PMPE), já as
praças sem estabilidade serão submetidas a licenciamento ex officio a bem da
disciplina. (art.109, §2º, alínea “c”).
O quadro a seguir sintetiza as principais diferenças entre esses processos
administrativos disciplinares:
POSSIBILIDADE
PROCESSO
ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR
Conselho
disciplina
COMPETÊNCIA
DE
NORMA
PARA JULGAR
AFASTAMENTO
REGULADORA
DO SERVIÇO
de O procedimento é Serão
feito
afastados Estatuto da PMPE
pela das atividades que e
o
Decreto
Corregedoria Geral estiverem
3639,
da SDS e Compete exercendo.
agosto de 1975.
ao
nº
de 19 de
Comandante-
Geral
da
Polícia
Militar o julgamento
do feito.
6
Durante o período de aspirantado, o Aspirante-a-Oficial será considerado praça especial e
terá estabilidade assegurada.
1893
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
Conselho
justificação
ISSN: 2317-0255
de O procedimento é Poderá
feito
ser Estatuto da PMPE
pela afastado
do há também a Lei
Corregedoria Geral exercício de suas Complementar
nº
da SDS e compete funções
158/2010,
ao
remete a regulação
Tribunal
de automaticamente
Justiça do Estado ou
a
critério
do do
de Pernambuco o Comandante-Geral
julgamento do feito.
Conselho
Justificação
da Polícia Militar, norma
conforme
que
de
para
federal,
utilizada
pelo
estabelecido em lei Exército, que é Lei
específica.
5.836, de 05 de
dezembro de 1972.
Licenciamento ex O procedimento é Não há regulação O
Estatuto
officio a bem da feito por um Oficial sobre um possível PMPE
disciplina
da
própria afastamento
da
apenas
do menciona
a
Organização Militar Licenciado.
possibilidade
Estadual (OME) em
licenciamento,
que o militar está
regulação é feita
lotado e Compete
pelo
ao
Normativo nº 002
Comandante-
Geral
da
Polícia
Milita o julgamento
do
a
Suplemento
de 31 de janeiro de
2007 da PMPE.
do feito.
Fonte: OLIVEIRA, LEITE, 2014, baseado no Estatuto da PMPE e no SUNOR 002/2007 da PMPE.
3
A FORÇA PRINCIPIOLÓGICA CONSTITUCIONAL E O PROCESSO DE
LICENCIAMENTO EX OFFICIO: DESTACANDO AS (IN) CONSTITUCIONALIDADES
Inicialmente faremos um destaque para importância da força principiológica na
ordem constitucional, enfatizando a ênfase dada aos princípios no pós-positivismo.
3.1 A força principiológica constitucional no ordenamento jurídico brasileiro
1894
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
O direito constitucional tem reconhecido cada vez mais a importância dos
princípios constitucionais no ordenamento jurídico brasileiro. Este reconhecimento está
alinhado com a doutrina constitucionalista internacional, pois ela gradativamente:
(...) vem assinalado o papel prescritivo da principiologia jurídica, visto
que, com o advento do paradigma pós-positivista, os princípios foram
inseridos no campo da normatividade jurídica. Como normas jurídicas
de inegável densidade valorativa e teleológica que consubstanciam
direitos fundamentais dos cidadãos, os princípios jurídicos adquiriram
enorme importância nas sociedades contemporâneas, reclamando
dos juristas todo esforço para emprestar-lhes aplicabilidade e
efetividade. (SOARES, 2006).
A normatização dos princípios tem sido defendida atualmente pela maior
dinamicidade que eles podem dar ao direito, no atual conjectura social. Espínola
(2003, p.82) afirma que: “os princípios jurídicos como princípios constitucionais têm a
mais alta normatividade do sistema jurídico”. Ele acrescenta que o reconhecimento
desta normatividade mudou a “antiquíssima postura” do direito brasileiro, a qual dava
impria aos princípios meramente uma posição subsidiária frente aos elementos de
integração da ordem jurídica (ESPÍNOLA, 2003).
Um dos principais teóricos que discute sobre a principiologia é Robert Alexy.
Para ele os princípios e as regras são espécies que fazem parte do gênero norma e
distingui-los é essencial, porque a partir dessa distinção será possível estabelecer o
ponto de partida para a compreensão das possibilidades e dos limites da
racionalidade, relativas aos direitos fundamentais (ALEXY, 1993).
O autor aponta que a distinção entre normas e princípios, via de regra, é
explicada pelo critério da generalidade (princípios têm grau de generalidade alto,
enquanto normas têm baixo), todavia ele aponta que este é um critério falho e prefere
diferenciá-los de forma qualitativa e não por questões de grau, podemos dizer que:
Na visão de Alexy, as regras são normas que exigem um
cumprimento pleno e, deste modo, podem apenas ser cumpridas ou
descumpridas. A forma característica de aplicação das regras é a
subsunção. Os princípios, contudo, são normas que ordenam a
realização de algo na maior medida possível, relativamente às
possibilidades jurídicas e fáticas. As normas principiológicas figuram,
por conseguinte, como mandados de otimização, podendo ser
cumpridos em diversos graus. A forma característica de aplicação dos
princípios é, portanto, a ponderação.(SOARES, 2006).
Ou seja, a aplicação das regras ocorrem de forma imediata de forma
subsuntiva, enquanto que a aplicabilidade dos princípios será relativa, sendo
determinada no caso concreto pela ponderação entre princípios dicotômicos.
1895
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
3.2 Discutindo as (in) constitucionalidades do processo de licenciamento ex
officio
Antes de falarmos dos princípios, é necessário começarmos a discussão a
partir da diferença no prazo para estabilidade das praças e dos oficiais na PMPE, que
está em desacordo com a Lei Maior brasileira, que em seu artigo 41 prevê que: “São
estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento
efetivo em virtude de concurso público” (BRASIL, 1988).
Tal regra é válida para todos os servidores públicos, pois desde a emenda
constitucional nº 18, de 1998, não há mais distinção entre servidores civis e militares. A
manutenção de uma seção específica na Constituição Federal (CF) destinada aos militares dos
7
Estados, do Distrito Federal e dos Territórios serviu apenas para regular as especificidades
relacionadas ao serviço militar o que não invalida a aplicabilidade do artigo 41 que é destinado
a todos os servidores públicos, inclusive os militares.
Diante disso, fica evidente que estabelecer o prazo de estabilidade de 10 anos para
praças e da estabilidade automática é incompatível com a previsão constitucional de três anos
para aquisição da estabilidade no serviço, sem contar que tal diferenciação fere o princípio da
igualdade ou isonomia, na medida em que estabelece um tratamento diferenciado para
membros da mesma corporação.
O princípio da igualdade é definido pelo caput do art. 5º da Constituição Federal, in
verbis: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade...” (BRASIL, 1988).
Com relação ao princípio do devido processo legal, descrito pela Carta Magna
brasileira em seu art. 5º, inciso LIV, que diz: “ninguém será privado da liberdade ou de seus
bens sem o devido processo legal” (BRASIL, 1988).
Percebemos a fragilidade da adoção do princípio do devido processo legal no processo
de licenciamento ex officio pelo fato dele ser regulado por uma portaria do Comando da PMPE,
posto que o princípio da legalidade administrativa exige que a administração pública deva agir
pautada na lei, sendo portanto uma portaria um ato frágil para a regulação de um procedimento
destinado a demissão de um servidor público.
Diretamente ligado ao princípio do devido processo legal, temos o princípio do juiz
natural (previsto nos incisos XXXVII e LIII do art. 5º da CF), que deve ser garantido de forma
tridimensional, o que significará que: “não haverá juízo ou tribunal ad hoc, isto é, tribunal de
exceção; todos têm o direito de submeter-se a julgamento (civil ou penal) por juiz competente,
pré-constituído na forma da lei; o juízo competente tem de ser imparcial” (NERY apud LENZA,
2012, p.1007).
7
Seção III do título da Administração Pública.
1896
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
No processo de licenciamento o princípio do Juiz Natural também é desrespeitado,
uma vez que o oficial encarregado do licenciamento será nomeado dentre os oficiais da OME
do licenciado, o que pode gerar ações corporativistas ou, por outro lado a perseguição, a
depender do caso em concreto, tal fato não ocorre nos conselhos de disciplina e de
justificação, que são julgados por órgãos colegiados, compostos por três oficiais, além do que
8
há previsão legal de arguição de suspeição, nos dois casos e não há no processo de
licenciamento.
Por fim temos os princípios do contraditório e da ampla defesa, garantidos pelo
art. 5º, inciso LV da CF, que diz: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e
aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes” (BRASIL, 1988).
O capítulo V da portaria que regula o processo de licenciamento dispõe sobre o
direito ao contraditório e a ampla defesa dados ao licenciado, todavia percebemos que
tais princípios não são respeitados plenamente, pois no caso de ausência do
licenciado não há previsão de publicação da intimação em órgão de divulgação
próximo ao seu domicílio, o que é previsto nos conselhos de disciplina e justificação
(desde que a pessoa submetida ao conselho – de disciplina ou de justificação - seja da
reserva ou reformado). Além disso, há limitação da indicação de testemunhas, o
licenciado apenas poderá indicar 03 (três) testemunhas.
Os princípios constitucionais ora analisados são asseverados pela lei Nº
11.781, de 06 de junho de 20009, que regula o processo administrativo disciplinar no
âmbito da administração pública no estado de Pernambuco, no art. 2º desta norma é
previsto que: “A Administração Pública Estadual obedecerá, dentre outros, aos
princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade,
moralidade, ampla defesa contraditório, segurança jurídica, impessoalidade e
interesse publico10” (PERNAMBUCO, 2000). Ainda no mesmo artigo, em parágrafo
único são descritos os critérios que deverão ser observados no Processo
Administrativo Disciplinar, segue a transcrição do referido parágrafo:
Parágrafo -Único -Nos processos administrativos serão observados,
entre outros, os critérios de:
I) atuação conforme a lei e o Direito:
8
A previsão do quantitativo de oficiais que compõem o Conselho de Disciplina é regulada pelo
art. 5º do Decreto nº 3.639, de 19 de agosto de 1975, já os casos de suspeição são descritos
pelas alíneas do parágrafo segundo do mesmo artigo. No Conselho de Justificação o tema é
o
previsto no art. 5º da Lei n 5.836, de 05 de dezembro de 1972 (referente às Forças Armadas,
mas que é válida para PMPE e os casos de suspeição também são descritos pelas alíneas do
parágrafo segundo do mesmo artigo.
9
A lei pernambucana que regula o Processo Administrativo Disciplinar (lei Nº 11.781, de 06 de
junho de 2000) copia literalmente a norma federal que disciplina a temática no âmbito da
administração pública federal (Lei nº 9784, de 29 de janeiro de 1999)
10
Sem grifo no original.
1897
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ISSN: 2317-0255
II) atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou
parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei:
III) objetividade no atendimento do interesse público, vedada a
promoção pessoal de agentes ou autoridades;
IV) atuação segundo os padrões éticos de probidade, decoro e boa
fé;
V) divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as
hipóteses de sigilo previstas na Constituição;
VI) adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações,
restrições, e sanções em medida superior àquelas estritamente
necessárias ao atendimento do interesse público;
VII) indicação de pressupostos de fato e de direito que determinarem
a decisão;
VIII) observância das formalidades essenciais à garantia dos
direito dos administrados;
IX) adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado
grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;
X) garantia dos direitos à comunicação, à apresentação das
alegações finais, a produção de provas e a interposição de
recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas
sItuações de litígio;
XI) proibição de cobranças de despesas processuais, ressalvadas as
previstas em lei:
XII) impulsão, de oficio, do processo administrativo, sem prejuízo da
atuação dos interessados;
XIII) interpretação da norma administrativa da forma que melhor
garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada
aplicação retroativa de nova interpretação.
XIV) garantia de cumprimento dos prazos de entrega de certidão e
documentos solicitados, necessários à instrução processual
11
administrativa de interesse do administrado . (PERNAMBUCO,
2000).
Os itens destacados da lei pernambucana do processo administrativo
disciplinar convergem com os pontos evidenciados na análise dos princípios
constitucionais e demonstram a fragilidade jurídica do licenciamento ex officio.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em 1984, assumiu a presidência da república brasileira, o primeiro presidente
civil após o Golpe Militar de 1964 e chama-nos a atenção o fato de que, após 30 anos,
ainda tenhamos que discutir sobre os enclaves autoritários herdados do período
ditatorial, provavelmente isso aconteça pelo fato do Brasil ter vivenciado um processo
de transição negociado, pelo qual os militares deixaram o planalto, mas
permaneceram indiretamente no Poder, essa perspectiva é evidenciada por Zaverucha
(2000 e 2010) e Nóbrega Júnior (2009).
11
Sem grifo no original.
1898
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Sem dúvida alguma, um dos principais enclaves herdados é o legado
institucional, que permite que normas autoritárias permaneçam em vigor no período
pós-autoritário.
Neste artigo analisamos o processo de licenciamento ex officio da PMPE,
regulado por normas administrativas (a maior parte delas remanescentes do período
ditatorial e as mais atuais que ainda refletem o pensamento do período, visto que as
alterações trazidas não mudaram substancialmente o texto legislativo).
Vimos que muitos aspectos relacionados ao processo de licenciamento ex
officio é incompatível com vários princípios constitucionais, no entanto, a norma
permanece válida, sem que haja o questionamento da sua constitucionalidade e nos
perguntamos: por quê?
Percebemos que há uma inércia no tratamento desta matéria, ninguém
questiona e continua válida uma norma que diferencia oficiais e praças dando
privilégios aos primeiros e mitigando os direitos dos segundos.
Sugerimos que seja respeitado o prazo constitucional para estabilidade de 03
(três) anos para os todos militares estaduais de Pernambuco e a adoção de um
processo disciplinar único para todos os policiais estáveis.
A efetividade democrática brasileira necessita de uma maior discussão sobre
esse legado institucional, esperamos com este artigo apenas iniciar essa discussão a
partir do processo de licenciamento ex officio em particular, mas outras normas e
outros institutos também precisam ser analisados e discutidos.
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1900
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
1901
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Adolescentes em conflito com a lei e punição: a execução das medidas
socioeducativas de meio fechado em Belo Horizonte
Victor Neiva e Oliveira
Isabela dos Santos Dias Gonçalves
(UFMG)
Introdução
O adolescente classificado como infrator pela Polícia Militar da cidade de Belo
Horizonte é encaminhado para um local chamado Centro Integrado de Atendimento ao
Adolescente Autor de Ato Infracional (CIA/BH)1. Um espaço em funcionamento desde
janeiro de 2009 e no qual estão reunidas todas as instituições responsáveis pelo
processamento dos menores (Polícia Militar, Polícia Civil, Ministério Público, Defensoria
Pública, Judiciário e Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas). O objetivo
principal deste arranjo institucional é a responsabilização imediata do adolescente autor
de ator infracional com a aplicação de medidas socioeducativas – de advertência, de
reparação de dano, de meio aberto (liberdade assistida ou prestação de serviço à
comunidade) ou meio fechado (semiliberdade ou internação) 2.
Ao ingressar neste centro o adolescente percorre as distintas instituições e
dependendo da natureza da medida socioeducativa recebida segue caminhos bastante
diferenciados. Neste trabalho optamos por seguir o percurso dos adolescentes punidos
com medidas socioeducativas de meio fechado, em especial, as de internação. O objetivo
consiste em descrever a dinâmica de funcionamento das instituições nas quais cumprem
a medida de privação de liberdade.
Antes, porém, de apresentar a realidade destas unidades, será descrito
detalhadamente o caminho percorrido por estes adolescentes pelas instituições que
compõe o sistema de justiça juvenil. Desde a fase do processo judicial até a fase de
execução da medida socioeducativa. A questão que aqui se coloca, portanto, é a
seguinte: quais são os impactos deste arranjo institucional (CIA/BH) sobre a fase de
execução da medida socioeducativa de internação?
1
Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla desenvolvida pelo Centro de Estudos de Criminalidade
e Segurança Pública (CRISP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), entre os meses de junho de
2012 e agosto de 2013, intitulada: “Diagnóstico do acompanhamento e fiscalização da execução das medidas
socioeducativas da Vara Infracional da Infância e Juventude de Belo Horizonte”. Pesquisa realizada no
âmbito do Edital nº 01/2011 da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG. A
equipe foi composta pelo Prof. Dr. Cláudio Beato (coordenador geral), Prof. Dr. Frederico Couto Marinho
(coordenador técnico), Profª. Drª. Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro (pesquisadora), Victor Neiva e Oliveira
(pesquisador), Ana Maria Montanon (assistente de pesquisa), Tarcísio Perdigão Araújo Filho (assistente de
pesquisa)
e Isabela dos Santos Dias Gonçalves (assistente de pesquisa).
2
Como a prestação desse serviço envolve agências de distintos níveis (governamentais e não
governamentais, estaduais e municipais, do executivo e do judiciário), pode-se afirmar que essas
organizações, em conjunto, conformam um sistema frouxamente articulado. No Brasil, a categoria "sistema
frouxamente articulado" foi utilizada, de maneira pioneira, na década de 1980, por Edmundo Campos Coelho
(1986), para se referir ao trabalho realizado pelas organizações do sistema de justiça criminal brasileiro. Para
ele, apesar de a legislação processual penal estabelecer claramente quais são as funções das polícias
(militar e civil), da promotoria, da defensoria e do judiciário na apuração de responsabilidades penais e do
sistema penitenciário na responsabilização dos infratores, a sistemática violação de tais procedimentos
dentro de cada uma dessas agências e, especialmente, na passagem do trabalho de uma organização para
outra, levava à criação de algumas lacunas e, com isso, viabilizava-se tanto que alguns casos se perdessem
como outros ficassem bloqueados, não seguindo à próxima fase. Nesse sentido, o termo frouxamente
articulado se devia ao entendimento de que em uma articulação perfeita nenhuma atividade deixaria de ser
realizada e, muito menos, a passagem do caso de uma instituição à outra se faria de maneira tão frouxa.
1902
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Para responder a essa questão, durante os meses de maio e junho de 2013, os
pesquisadores do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP) da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) acompanharam a rotina de quatro
unidades de internação localizadas na cidade de Belo Horizonte. Foram feitas
observações do cotidiano institucional e realizadas entrevistas com técnicos de
atendimento (psicólogos, assistentes sociais e pedagogas), diretores e agentes
socioeducativos. A análise se concentrou nos seguintes aspectos da dinâmica destas
instituições, quais sejam: 1) o processo de admissão dos adolescentes (mapeamento
preliminar da trajetória infracional e distribuição pelos alojamentos); 2) o perfil dos
adolescentes; 3) a rotina institucional e 4) as práticas punitivas ás quais recorrem à
administração.
Trata-se, aqui, de desvelar os espaços institucionais, atores e procedimentos
específicos envolvidos na execução da medida socioeducativa de internação na cidade
de Belo Horizonte.
O sistema de meio fechado em Minas Gerais
A Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas do Estado de Minas
Gerais (SUASE) é o órgão governamental responsável pela execução das medidas de
semiliberdade, internação provisória e internação. Esta subsecretaria tem hoje sob a sua
responsabilidade 10 casas de semiliberdade e 21 unidades de internação. Das dez
casas, sete estão localizadas na capital mineira e as outras três nas cidades de Muriaé,
Juiz de Fora e Governador Valadares. Dentre as vinte e uma unidades de internação, 04
são de internação provisória3. Das dezessete unidades restantes, sete estão localizadas
em Belo Horizonte e as outras dez encontram-se espalhadas pelo interior de Minas
Gerais4.
A partir de dados apresentados pela SUASE é possível desvelar a privação de
liberdade de adolescentes no Estado. O Gráfico 1 apresenta um quadro geral dos
adolescentes com medidas de privação de liberdade atendidos pela SUASE, entre 2003
e 2010.
3
Destas quatro unidades de internação provisória, três estão localizadas em Belo Horizonte e uma no interior
do Estado. Informações disponíveis no site: https://www.seds.mg.gov.br/socioeducativo.
4
Existem casos de unidades nas quais o regime de internação é compartilhado com o regime provisório,
dada à dificuldade de se manter duas casas distintas em um mesmo município. Este situação é encontrada
na única unidade de internação feminina existente na capital do Estado, a qual recebe tanto adolescentes em
situação provisória quanto as sentenciadas pela justiça juvenil.
1903
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Gráfico 1 - Distribuição anual dos números absolutos e das taxas por 10 mil habitantes
Adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em meio fechado
Minas Gerais (2003 a 2010)
1.200
1.064
1.026
6,0
1.041
957
1.000
Números absolutos
5,0
618
600
5,2
5,0
4,6
4,0
450
420
3,9
400
3,0
Taxas por 10.000 habitantes
5,0
802
800
3,0
200
2,0
2,2
2,0
0
2003
2004
taxa /10 mil hab.
2005
2006
2007
2008
2009,4
2010
número adolescentes cumprindo medidas privativas de liberdade
Fonte: SEDH/PR/SPDCA
De acordo com as informações sumarizadas no Gráfico 1, é possível verificar que
a população de adolescentes em meio fechado (internação provisória, internação e
semiliberdade) mais que dobrou no Estado no período analisado. A distribuição dos
registros mostra que, em 2010, havia 1.041 adolescentes em meio fechado contra 420,
em 2003, ou seja, houve um crescimento de 148% em oito anos.
Quando essas informações são decompostas por tipo de medida (internação
provisória, internação e semiliberdade) é possível identificar as diferenças no ritmo de
crescimento para cada uma delas (Gráfico 2). Assim, enquanto a quantidade de medidas
de internação executadas aumentou 102% (passando de 323 para 652 casos), a
internação provisória aumentou 5,5 vezes (passando de 52 para 284 casos) e a
semiliberdade apresentou um crescimento de 2,3 vezes (passando de 45 para 105
casos).
1904
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Gráfico 2 - Distribuição anual dos números absolutos de adolescentes em cumprimento de medidas
socioeducativas
Apenas medidas de meio fechado, por tipo de medida
Minas Gerais (2003 a 2010)
700
652
624
621
577
600
501
Números absolutos
500
400
445
353
323
302
302
284
265
300
206
200
113
100
0
52
45
2003
52
138
115
95
103
105
60
45
2004
2005
Internação
2006
2007
Internação provisória
2008
2009
2010
Semiliberdade
Fonte: SEDH/PR/SPDCA
As informações apresentadas acima revelam o crescimento progressivo da
aplicação de medidas de meio fechado pela justiça juvenil mineira, sobretudo as de
internação. Ou seja, nos últimos anos, um contingente cada vez maior de adolescentes é
encaminhado para as unidades de internação do Estado. Na cidade de Belo Horizonte,
por exemplo, com a criação do CIA buscou-se uma maior articulação entre os órgãos do
sistema de justiça juvenil e rapidez na aplicação de punições aos adolescentes autores
de atos infracionais, porém esta mudança gerou problemas sobre a fase de execução
das medidas socioeducativas. Este arranjo institucional no âmbito do sistema
socioeducativo da capital mineira será apresentado detalhadamente a seguir.
O Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional
(CIA/BH)
O Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional
(CIA/BH) foi criado a partir da Resolução Conjunta 68 de 02/09/2008, com o objetivo de
transformar em realidade o art. 88, incisos I, V e VI, do Estatuto da Criança e do
1905
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Adolescente (ECA)5, ou seja, com o propósito de dar maior "agilidade e efetividade à
jurisdição penal juvenil, tanto na apuração da prática de atos infracionais, quanto na
aplicação e execução de medidas socioeducativas" (TJMG, 2012: 02).6 O objetivo
principal deste arranjo é a responsabilização imediata do adolescente, tão logo a ação
desviante seja classificada pela Polícia Militar como uma infração.
Em Belo Horizonte, antes da criação do CIA/BH, todos os procedimentos estavam
dispersos em cada uma das organizações identificadas (Polícia Militar, Polícia Civil,
Ministério Público, Defensoria Pública, Judiciário e Sistema de Execução de Medidas
Socioeducativas) que juntas compõem o sistema de justiça juvenil para adolescentes em
conflito com a lei. Tais agências eram distantes em termos operacionais e físicos, já que
cada qual contava com uma sede própria e procedimentos específicos de trabalho. Essa
situação fazia com que diversos adolescentes incriminados na fase policial "escapassem"
entre uma fase e outra do processo judicial e, por conseguinte, não fossem
responsabilizados, posto não terem percorrido o fluxo de procedimentos até o final.
Baseando-se nesse diagnóstico, o CIA/BH foi criado para aumentar a efetividade
do fluxo de procedimentos empregados no processo de incriminação do adolescente
autor de ato infracional, a partir da concentração, em um mesmo espaço físico, de todas
as instituições que possuem atribuições diretas ou indiretas na realização de tal atividade.
O objetivo maior da constituição desse arranjo institucional era fazer com que todos os
adolescentes apontados como autor de atos infracionais fossem adequadamente
responsabilizados, sem qualquer tipo de perda ao longo do fluxo de processamento.
Para Sapori (1995), iniciativas dessa natureza visam uma maior eficiência do
sistema, ou seja, visam garantir que todos os crimes submetidos à apreciação do sistema
de justiça recebam uma punição. Logo, a criação de arranjos institucionais que visem
promover uma maior articulação entre as agências que compõem o sistema de justiça
criminal pretendem aumentar a produtividade, sem qualquer preocupação com a
dissuasão do comportamento criminoso. Exatamente por isso, modelos com essa
perspectiva são denominados pelo autor como "justiça em linha de montagem", uma vez
5
Trata-se da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente
e dá outras providências.
6
O art. 88 do ECA estabelece as diretrizes da política de atendimento ao adolescente autor de ato
infracional, sendo que o inciso I faz referência à municipalização do atendimento, o inciso V faz referência à
integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e
Assistência Social, preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização do atendimento inicial a
adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional, e o inciso VI à integração operacional de órgãos do
Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Conselho Tutelar e encarregados da execução das políticas sociais
básicas e de assistência social, para efeito de agilização do atendimento de crianças e de adolescentes
inseridos em programas de acolhimento familiar ou institucional, com vista na sua rápida reintegração à
família de origem ou, se tal solução se mostrar comprovadamente inviável, sua colocação em família
substituta, em quaisquer das modalidades previstas no art. 28 desta Lei.
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que seus operadores não se preocupam em compreender quais são as variáveis que
podem explicar o comportamento criminoso e, dessa maneira, aplicar uma sanção mais
eficaz do ponto de vista da prevenção do crime cometido pelo indivíduo punido e pelos
demais que assistem à punição.
Portanto, na justiça em linha de montagem, o sistema funciona em articulação
perfeita, garantindo que todos os casos apresentados, recebam uma sentença de
condenação no menor tempo possível, satisfazendo o desejo de punição imediata sem
qualquer tipo de impunidade (dada pelo escape de casos do sistema).
Para o alcance dessa articulação máxima, os distintos operadores do direito
(polícias, promotoria, defensoria e juiz) constroem uma série de acordos com vistas à
garantia de uma padronização altamente eficiente, que desconsidera quaisquer
especificidades e individualidades. Em um cenário como esse, a preocupação principal
dos atores não é compreender a dinâmica social que leva ao crime e, por conseguinte, à
rotulação do indivíduo como criminoso. A preocupação principal dos atores passa a ser a
de "bem classificar" os processos em categorias que, por sua vez, definiriam os padrões
de ação e de decisão, garantindo o sucesso do caso, em termos dos critérios de
eficiência propostos pela própria justiça criminal (Sapori, 1995).
A categoria "justiça em linha de montagem" pode ser empregada para descrever a
rotina do CIA/BH, já que os atores que processam o adolescente autor de ato infracional
não se preocupam com os motivos que levaram o indivíduo ao cometimento de um
determinado delito e, por conseguinte, qual seria o papel das instituições que processam
essa conduta no sentido de solucionar esse problema. Pelo contrário, todas as rotinas
são engendradas com o objetivo de fazer com que todos os adolescentes apresentados
pela Polícia Militar como responsáveis pela prática de um “crime” sejam prontamente
punidos, independentemente da viabilidade de execução da medida socioeducativa que é
imputada ao adolescente.
Então, após esse primeiro registro da PM, o adolescente é encaminhado ao
CIA/BH e, uma vez nesse espaço físico, é entregue à Polícia Civil que, ato contínuo,
aciona os pais ou responsáveis do menor para o seu acompanhamento durante todos os
atos judiciais que visam a sua incriminação. Em seguida, o adolescente é levado ao juiz,
que convoca o defensor público e o promotor de justiça para a realização de uma
audiência imediata, na qual esses operadores do direito discutem a natureza jurídica do
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caso, as circunstâncias da infração, se houve ou não emprego de violência no seu
cometimento e se o adolescente possui ou não experiência com o sistema de justiça. 7
Encerrada essa análise, o adolescente pode receber as seguintes determinações
judiciais: (1) remissão, que nada mais é do que o perdão judicial pela conduta praticada;
(2) arquivamento do processo, caso a conduta do adolescente não seja considerada ato
infracional, se verifique que não foi o adolescente responsável por sua prática ou, ainda,
caso seja constatado que o procedimento de apresentação do adolescente a essa
audiência no CIA/BH padece de algum vício jurídico que não garante a sua continuidade;
(3) determinação de medida protetiva. 8
No caso de atribuição de medidas protetivas, o adolescente é encaminhado ao
Núcleo de Atendimento às Medidas Socioeducativas e Protetivas (NAMSEP), órgão da
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH) instalado no CIA e, após atendimento,
remetido para os serviços de saúde, educação e assistência social, localizados perto de
sua residência, nos termos da medida recebida.
No caso de medidas de meio aberto, o adolescente é levado ao NAMSEP e, após
atendimento, encaminhado ao Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) mais
próximo de sua residência para cumprimento da medida socioeducativa de liberdade
assistida (LA) ou de prestação de serviços à comunidade (PSC). No caso de medidas de
meio fechado, o adolescente é encaminhado ao núcleo da Subsecretaria Estadual de
Atendimento às Medidas Socioeducativas (SUASE), que o conduzirá a um Centro de
Internação Provisória (CEIP) até que uma vaga seja liberada no estabelecimento que
condiz com a natureza da medida recebida (semiliberdade ou internação)9.
7
É importante destacar que nesse caso não se trata de reincidência propriamente dita, já que essa apenas
se configura quando, tendo o adolescente cometido um crime e recebido uma punição para a qual não cabe
qualquer tipo de recurso judicial, venha a cometer um novo crime. Então, se o adolescente comete três
condutas consideradas crime pelo Código Penal em um pequeno espaço de tempo, de tal maneira que em
nenhuma delas ele chegou a receber uma sentença pelo Poder Judiciário, o adolescente apenas é
considerado como possuindo experiência com o sistema de justiça criminal, mas não é considerado, para fins
jurídicos, como reincidente.
8
As medidas protetivas são aquelas que procuram proteger o adolescente da prática de um novo ato
infracional e, por isso, buscam fortalecer os laços familiares e comunitários desse. Nos termos do art.101, são
medidas protetivas aplicáveis ao adolescente infrator: "I - encaminhamento aos pais ou responsável,
mediante termo de responsabilidade; II - orientação, apoio e acompanhamento temporários; III - matrícula e
frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV - inclusão em programa
comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V - requisição de tratamento médico,
psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI - inclusão em programa oficial ou
comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII - acolhimento institucional;
VIII - inclusão em programa de acolhimento familiar; IX - colocação em família substituta."
9
O Art. 120 do ECA estabelece que “o regime de semiliberdade pode ser determinado desde o início, ou
como forma de transição para ao meio aberto, possibilitada a realização de atividades externas,
independentemente de autorização judicial. A medida de internação, em contraste, constitui uma medida
privativa de liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento, de acordo com o Art. 121.
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O CIA/BH também promove a realização de uma série de procedimentos
relacionados ao monitoramento e à avaliação de como as medidas socioeducativas são
executadas e de como os adolescentes têm progredido (ou não) em sua execução. Para
tanto, essa instituição conta com o Setor de Atendimento ao Adolescente em Situação de
Risco (SAASE), que acompanha as medidas de meio aberto; e o Setor de
Acompanhamento das Medidas Restritivas de Liberdade (SAMRE), que acompanha as
medidas de meio fechado. Logo, com o encerramento da audiência judicial, primeiro o
adolescente é encaminhado ao NAMSEP ou ao núcleo da SUASE, de acordo com a
medida recebida; e, em seguida, o SAASE e o SAMRE são notificados dos
encaminhamentos realizados por essas unidades, para que sejam capazes de
acompanhar a movimentação do adolescente na fase de execução da medida
propriamente dita.
Com a constituição do CIA/BH todas as ações relativas ao processamento do
adolescente autor de ato infracional deixam de ser realizadas no espaço de cada uma
das organizações para ser realizado dentro do próprio CIA, inviabilizando qualquer tipo
de escape do adolescente entre uma fase e outra do processo de incriminação. Além
disso, como todos os atores participam imediatamente do processo, o adolescente
processado passa a ter maior clareza de que setor é responsável por qual atividade e
quando é necessária a sua atuação, o que facilita a vocalização de demandas e
problemas.
O adolescente que percorre todas as organizações do CIA e recebe ao final da
audiência judicial uma medida de meio fechado é encaminhado ao Centro de Internação
Provisória Dom Bosco (CEIPDB), instituição na qual aguarda o surgimento de uma vaga
condizente com a natureza da medida por ele recebida (semiliberdade ou internação).
Neste momento, tem início o fluxo de execução das medidas de meio fechado.
A porta de entrada do sistema: o Centro de Internação Provisória Dom
Bosco
Na cidade de Belo Horizonte, existe duas unidades de internação provisória para
adolescentes do sexo masculino, quais sejam: o Centro de Internação Provisória Dom
Bosco – CEIPDB e o Centro de Internação Provisória São Benedito – CEIPSB. O
CEIPDB é considerado a “porta de entrada” do sistema socioeducativo para todos os
adolescentes em conflito com a lei do sexo masculino. Eles são enviados primeiramente
para esse centro e uma parte desses meninos são selecionados para o CEIPSB. O
CEIPSB tem capacidade para abrigar sessenta e cinco adolescentes. Essa unidade
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recebe os adolescentes com primeira passagem pelo sistema socioeducativo e com
idade entre 12 e 13 anos. Os adolescentes com mais de uma passagem pelo sistema
permanecem no Dom Bosco.
No CEIPDB encontram-se recolhidos cento e trinta e dois adolescentes. A equipe
técnica é composta por doze técnicos de atendimento, dentre eles, pedagogos,
assistentes sociais, psicólogos e terapeutas ocupacionais. A segurança da unidade está
sob a responsabilidade de cento e quarenta e quatro agentes socioeducativos.
Nesse centro de internação provisória os adolescentes aguardam, por um período
máximo de quarenta e cinco dias, a audiência com o juiz a ser realizada no CIA. Nessa
audiência, caso seja constatada a prática de ato infracional e aplicada uma medida
socioeducativa de inserção em regime de semiliberdade ou internação, o adolescente
retorna para o CEIP e aguarda o encaminhamento para alguma casa de semiliberdade
ou unidade de internação da cidade. O desligamento do adolescente pode acontecer se,
porventura, a audiência judicial não for agendada no transcorrer desses dias.
Ao chegarem à unidade os adolescentes passam por uma averiguação preliminar
realizada pelos agentes da equipe de segurança. Os adolescentes são questionados
sobre as passagens pelo sistema socioeducativo, idade, envolvimento com gangues,
tráfico de drogas e é verificado seu porte físico. Esse conhecimento inicial da trajetória
biográfica e delituosa desses meninos recém-chegados é realizado com vistas a evitar a
eclosão de brigas, desavenças ou acertos de contas nos núcleos de alojamento. Na
unidade existem três núcleos de alojamento nos quais se encontram distribuídos os cento
e trinta e dois adolescentes. No núcleo 01 estão recolhidos os adolescentes mais novos e
com segunda ou terceira passagem pelo sistema. No núcleo 02 estão os adolescentes
com quatro passagens ou mais pelo sistema. No núcleo 03 estão os adolescentes mais
velhos. Cada núcleo é supervisionado por um único agente socioeducativo por turno de
trabalho (matutino, vespertino e noturno).
Esses alojamentos tem capacidade para abrigar quatro adolescentes, porém, em
alguns, convivem oito ou nove. Como não é possível construir novas camas de alvenaria
nesses espaços, são colocados colchões no chão para os adolescentes dormirem. A
superlotação conjugada com condições precárias de habitabilidade constitui um dos mais
graves problemas vivenciados pelo centro10. A mudança no sistema socioeducativo com
a criação do CIA em 2009 contribuiu para o aumento da população de internos, segundo
os técnicos de atendimento. Esta unidade tem recebido um contingente cada vez maior
10
Na unidade foram relatados problemas de comidas ruins servidas nos horários das refeições, mau cheiro e
ratos rondando os alojamentos no período da noite.
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de adolescentes penalizados com medida de semiliberdade e internação, pois estes
retornam ao centro para esperar a liberação de vagas nas casas de semiliberdade e
unidades de internação, após a aplicação da medida pelo juiz.
No CEIP, existe uma sobrecarga de trabalho e um déficit de vagas em virtude do
encaminhamento constante de novos adolescentes. No período de realização da Copa
das Confederações, em julho de 2013, a população do centro chegou a cento e noventa
internos. Alguns técnicos salientaram que o CEIP é a unidade “referência” dos
operadores do CIA, pois todos os casos pendentes são encaminhados para lá. Quando
esses adolescentes são encaminhados para a unidade os técnicos precisam conversar
com cada menino e elaborar relatórios nos quais constam suas informações pessoais e
processuais. Esses relatórios são encaminhados ao juiz antes da realização da primeira
audiência judicial para discussão dos casos dos adolescentes.
A população de adolescentes recolhidos no CEIP se caracteriza por perfis
bastante heterogêneos, principalmente, em relação a sua situação processual. Nos
alojamentos estão recolhidos os adolescentes que aguardam uma audiência com o juiz,
os adolescentes das casas de semiliberdade penalizados pelo cometimento de alguma
infração disciplinar e os adolescentes penalizados com medida de regime de
semiliberdade e internação que aguardam a liberação de vagas nas casas de
semiliberdade e unidades de internação. Os atos infracionais mais recorrentes desses
meninos são: tráfico de drogas, furto, roubo e homicídio. A reincidência no ato infracional
também foi apontada como algo característico do perfil desses meninos11.
Os adolescentes têm horário para acordar, tomar café, frequentar aulas, oficinas,
futebol e culto religioso. A escola é um benefício concedido àqueles que demonstram
interesse em frequentar as aulas, pois não existe estrutura física e material escolar (giz,
cadernos e lápis) suficiente para atender a toda à população. Além do mais, por uma
questão de segurança, as turmas não podem ter mais de oito alunos. A série do aluno é
autodeclarada, uma vez que a equipe de técnicos não tem condições de apurar o
histórico escolar do adolescente junto às escolas nas quais estudaram devido ao período
curto de acautelamento na unidade. Os adolescentes que faltam quatro vezes perdem a
vaga. Na unidade existe duas turmas de 2ª e 5 ª série, quatro turmas de 6 ª e 7 ª e duas
de 8 ª e 9 ª.
Como a unidade convive com “picos” constantes de superlotação, as
preocupações da administração se concentram nos problemas relacionados ao controle,
contenção e segurança dos meninos. As infrações disciplinares mais problemáticas que
11
Na unidade existe um caso de um adolescente que está na 19° passagem pelo sistema.
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ocorrem na convivência entre os adolescentes são as agressões físicas e o uso de
drogas. Muitos adolescentes engolem as drogas e defecam para usa-las quando estão
no interior dos alojamentos. Quando estas duas situações de infração disciplinares
consideradas graves pela administração são detectadas, acontece a apuração dos fatos
e os infratores são punidos com o encaminhamento para os alojamentos do núcleo 04.
Nesse espaço, existem quatro alojamentos solitários destinados àqueles adolescentes
que infringiram as normas da instituição. Esses adolescentes “insubordinados” são
apartados da convivência com seus pares por um tempo determinado.
Nos dois alojamentos chamados de “casinhas”, em contraste, com os do núcleo
04, estão os adolescentes considerados de “bom comportamento” pela administração. Os
adolescentes recolhidos nas casinhas recebem um tratamento diferenciado em relação
ao restante da população, pois podem jogar futebol e assistir televisão todos os dias. A
população somente assiste televisão aos finais de semana e não usam a quadra de
futebol frequentemente.
No CEIP, existem as reuniões de estudos de caso que são realizadas com a
participação dos técnicos de atendimentos, técnicas do SAMRE e diretores das unidades
de internação. Nessas reuniões é discutida a trajetória infracional, comportamento do
adolescente na unidade e pertencimento ou não a gangues. A apresentação desses
casos pelos técnicos do CEIP tem por objetivo levar ao conhecimento dos diretores os
adolescentes que serão encaminhados para as unidades por eles administradas. Após
esta reunião os adolescentes punidos com medida de internação deixam as
dependências do CEIP e ingressam nas unidades de internação.
Promovendo a responsabilização dos adolescentes: as unidades de
internação da cidade de Belo Horizonte
Centro de Atendimento ao Adolescente – CEAD
O Centro de Atendimento ao Adolescente – CEAD é uma unidade localizada na
região do Barreiro, em Belo Horizonte, e destinada ao acolhimento de adolescentes do
sexo masculino penalizados pela justiça juvenil com uma medida de internação. Os
responsáveis pela administração da unidade são a diretoria geral e o diretor de
segurança. A equipe de técnicos de atendimento é composta por dois psicólogos, duas
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assistentes sociais e uma advogada. Esse corpo técnico, por sua vez, encontra-se
incompleto devido à falta de um terapeuta ocupacional e um pedagogo.
A população de adolescentes do CEAD está distribuída em duas alas nas quais
estão os alojamentos. Os alojamentos têm capacidade para abrigar quatro adolescentes,
porém alguns estavam com seis em seu interior. Nesses espaços existem três camas,
locais para os adolescentes guardarem seus pertences e uma pequena “fossa” no chão
para fazerem suas necessidades fisiológicas. Cada ala conta com um espaço contíguo
para tomarem banho.
As condições físicas da unidade não estão completamente adequadas e, somente
após o fim da reforma será possível separar os adolescentes, conforme estabelecido pelo
Estatuto da Criança e Adolescente - ECA12. Enquanto isso, o critério da administração
para alocar os adolescentes em cada ala ao ingressarem no CEAD é o porte físico. Em
uma das alas estão os “meninos maiores” e em outra os “meninos menores”. Na unidade
também existem locais para os adolescentes assistirem televisão, refeitório, salas de
aula, biblioteca, quadra de futebol e salas para oficinas de artesanato.
Esses adolescentes recolhidos na unidade são meninos com idade entre 12 e 15
anos e em sua maioria cumprem medida por cometimento de tráfico de drogas. Outra
característica dessa população apontada pelos técnicos é a reincidência no ato
infracional.
Muitos adolescentes ingressam na unidade com doze anos, saem com
quatorze anos e retornam com quinze anos. Ou seja, existe uma passagem reiterada de
muitos desses meninos pela instituição.
Uma rotina é previamente estruturada pela administração da unidade. Os
adolescentes acordam às sete horas da manhã, tomam café, estudam, almoçam,
participam de oficinas de artesanato e jogam futebol no período da tarde, lancham,
assistem televisão, jantam e retornam para seus respectivos alojamentos. Existem
atividades externas como, por exemplo, oficinas de teatro e passeios culturais, esses
últimos são realizados no período das férias escolares.
Uma das precauções tomadas pela administração ao distribuir os adolescentes
nos alojamentos é evitar colocar em um mesmo espaço adolescentes com alguma “rixa”
ou desavença. Outra medida para tentar impedir a eclosão de conflitos é a realização de
refeições e atividades separadas por ala de alojamentos. Ou seja, a ala B somente
começa sua refeição após a ala A se retirar completamente do espaço.
O Art. 123 do ECA estabelece que “a internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para
adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de
idade, compleição física e gravidade da infração”.
12
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Apesar desse controle exercido pela administração, não deixam de existir os
casos de indisciplina como, por exemplo, as brigas, discussões e agressões físicas entre
os adolescentes. Quando esses adolescentes cometem infrações consideradas graves
são punidos com o encaminhamento a cela solitária. Para uma cela escura, com um
banco de alvenaria e uma fossa para fazer suas necessidades fisiológicas, são
encaminhados pelos agentes até eles “acalmarem”. Eles ficam recolhidos nessa cela,
muitos batem o pé a noite inteira na grade e alguns urinam e defecam nesse espaço, por
estarem bastante “enfurecidos” com a aplicação da punição. Quando as situações de
indisciplina são extremamente conflituosas os técnicos do CEAD recorrem a SUASE e a
Diretoria de Educação Socioeducativa para a resolução do problema.
Centro Socioeducativo Horto – CSEHO
O Centro Socioeducativo Horto – CSEHO está localizado na região leste de Belo
Horizonte e tem capacidade para abrigar cinquenta e oito adolescentes do sexo
masculino. A unidade foi construída recentemente pelo governo estadual e inaugurada
em dezembro de 2011. A equipe de técnicos de atendimento é composta por três
psicólogos, dois advogados, assistentes sociais e um pedagogo. Essa equipe, por sua
vez, está incompleta, pois falta um pedagogo e um terapeuta ocupacional.
A população de sessenta adolescentes encontra-se distribuída em três núcleos de
alojamento, a saber: o verde, amarelo e azul. Cada núcleo fica sob a responsabilidade de
um agente socioeducativo e a comunicação dos adolescentes com esses agentes é
realizada através de uma pequena fresta existente na porta do alojamento. Os
alojamentos tem capacidade para abrigar somente dois adolescentes.
Assim que os adolescentes ingressam na unidade uma das primeiras medidas
dos agentes é realizar um mapeamento preliminar da sua trajetória delituosa. Eles são
questionados sobre seu local de moradia, envolvimento com gangues e tráfico de drogas.
Somente após esse conhecimento ocorre a distribuição dos recém – chegados para os
núcleos. Os meninos envolvidos com gangues, tráfico de drogas e moradores de uma
mesma região da cidade são colocados junto com meninos que alegaram não ter
nenhum envolvimento. Outro critério adotado pelos agentes para separar os
adolescentes é o cometimento de infrações disciplinares. Aqueles adolescentes com
muito problemas disciplinares são colocados junto com adolescentes considerados “mais
tranquilos”. Essa verificação inicial realizada pela equipe de segurança visa impedir a
eclosão de brigas e agressão física durante a convivência nos alojamentos.
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Os adolescentes, em sua grande maioria, são moradores de periferia e foram
penalizados devido ao envolvimento com tráfico de drogas, assalto e furtos. No CSEHO
eles acordam às seis horas, tomam café da manhã, estudam de sete às onze horas,
almoçam, participam de oficinas no período da tarde, assistem televisão a noite e
retornam aos seus respectivos alojamentos para dormir. As oficinas ocorrem na própria
unidade e existe uma parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial SENAC para ofertar cursos profissionalizantes aos adolescentes interessados. Os cursos
são de mecânica de motos, eletricidade, culinária, pintura de carros, garçom e
churrasqueiro.
Nos primeiros meses de funcionamento da unidade ocorreram algumas
rebeliões13 e, em virtude desse histórico, algumas medidas de controle foram adotadas
pela administração durante a realização das atividades rotineiras dos adolescentes. A
administração procura evitar que os sessenta adolescentes fiquem em um mesmo
espaço físico. Eles são divididos em blocos de vinte para todas as atividades (café da
manhã, almoço, oficinas) e um bloco somente começa sua atividade quando o bloco
anterior se retira totalmente do espaço.
Um controle rígido é exercido pela administração tanto na distribuição criteriosa
dos adolescentes em cada núcleo, quanto na separação da população durante as
atividades de rotina. Em consonância com essas duas medidas existem a aplicação de
punições as infrações disciplinares cometidas pelas adolescentes. Quando os agentes
detectam alguma situação que configura infração as normas disciplinares - brigas,
agressão física, drogas, desrespeito ao agente, chutes nas portas do alojamento e
desleixo com a limpeza – é acionada a comissão disciplinar da unidade.
A comissão disciplinar é composta por um advogado e o coordenador de
segurança do CSEHO. Eles têm a atribuição de apurar as infrações cometidas pelos
meninos e aplicar as sanções. As reuniões são realizadas no mesmo dia ou no dia
posterior ao cometimento da infração, pois necessitam de tempo para averiguar o caso.
Dependendo da ostensividade do ato cometido são aplicadas as punições como, por
exemplo, o recolhimento do adolescente em seu próprio alojamento por no mínimo oito
dias e no máximo vinte e dois dias. Os adolescentes que cometem atos considerados
gravíssimos pela administração (agressão física) são recolhidos durante quinze dias e
saem dos alojamentos somente para um banho de sol de trinta minutos, frequentar aula
ou receber atendimento de algum técnico. Quando é detectada a existência de drogas
13
Nas rebeliões os adolescentes alegaram maus tratos e agressão física dos agentes para com eles.
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com os meninos nos alojamentos são punidos com a suspensão da televisão no período
da noite.
Centro Socioeducativo Santa Helena - CSESH
O Centro Socioeducativo Santa Helena – CSESH é uma unidade localizada na
regional Barreiro, na cidade de Belo Horizonte, e abriga adolescentes do sexo masculino.
A população de trinta e seis adolescentes encontra-se recolhida em uma única ala na
qual estão os alojamentos. Esses alojamentos têm capacidade para três internos. Em um
mesmo alojamento convivem os adolescentes considerados mais “agitados” com os mais
“calmos” e os mais “veteranos” com os “novatos”. Essa estratégia de distribuição da
população tem o propósito de manter o equilíbrio nesses espaços. A administração
também evita colocar em um mesmo alojamento aqueles que moram em um mesmo
bairro ou região da cidade, pois podem ocorrer conflitos ou brigas.
Os adolescentes apresentam idade entre 16 e 18 anos e, em sua grande maioria,
estão cumprindo medida de internação por roubo e homicídio. Outra característica da
população é a reincidência no ato infracional, sobretudo, tráfico de drogas. Na unidade
participam de uma multiplicidade de atividades diárias como, por exemplo, as escolares,
carpintaria, pintura, panificação com preparo de alimentos para padaria e pizzas, lavam
suas próprias roupas e auxiliam na faxina de seus alojamentos. Aos domingos participam
de cultos ou oficinas com grupos religiosos que atuam de forma voluntária na unidade.
Durante as atividades realizadas no interior do CSESH existe a preocupação em
não deixar toda a população de adolescentes reunida em um mesmo espaço. A equipe
separa os meninos em dois grupos e as atividades são realizadas de forma separada, por
uma questão de segurança. Os problemas disciplinares mais recorrentes na unidade são
as brigas. Quando ocorrem essas situações a administração recolhe os infratores em
celas “solitárias” por um período de dois ou três dias. Durante esses dias eles são
isolados dos seus pares pela administração.
Centro de Reeducação Social São Jerônimo – CRSSJ
O Centro de Reeducação Social São Jerônimo – CRSSJ é uma unidade
localizada na região leste de Belo Horizonte e encontram-se recolhidas adolescentes do
sexo feminino cumprindo medida de internação e em situação de internação provisória. A
unidade é a única, em Minas Gerais, destinada ao acolhimento de meninas e, por isso,
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atendem a todas as cidades mineiras. Nos alojamentos existem doze adolescentes em
situação provisória e vinte e seis cumprindo medida de internação. Ou seja, a unidade
conta com uma população de trinta e oito meninas. Esses alojamentos têm capacidade
para abrigar quatro ou cinco meninas. A equipe do CRSSJ é composta por três diretores
(geral, atendimento e segurança), dois técnicos ocupacionais, dois advogados, um
psicólogo, duas pedagogas e duas assistentes sociais. Essa equipe está incompleta, pois
falta um técnico ocupacional e um advogado.
As adolescentes, em sua maioria, estão cumprindo medida devido ao
cometimento de tráfico de droga, seguido, de homicídio e assalto. Os atos mais
frequentes das adolescentes que chegavam a unidade eram roubos ou meninas de rua
envolvidas com drogas. Nos últimos anos, ocorreu uma mudança no perfil infracional
dessas meninas, pois os atos cometidos são cada vez mais graves como, por exemplo,
homicídios, de acordo com os técnicos de atendimento.
Como a unidade recebe tanto adolescentes em situação provisória, quanto
adolescentes já penalizadas pela justiça, são estruturadas rotinas diferenciadas para
cada estrato dessa população. Nos alojamentos nos quais estão recolhidas as
adolescentes provisórias são realizados acompanhamentos pelos técnicos, participam de
oficinas e assistem à aula independente da sua série escolar14. Elas tomam café as sete
da manhã, às oito horas saem para a sala de aula, almoçam as onze, participam de
oficinas as quatorze horas, tomam café da tarde as quinze e retornam para os
alojamentos as dezessete horas. Como a permanência na unidade é temporária são
poucas as atividades destinadas a essas adolescentes. Além do mais, não podem
participar de atividades externas como cursos profissionalizantes e passeios realizados
fora da unidade. Essas últimas atividades são destinadas exclusivamente as internas dos
alojamentos de internação.
Nos alojamentos coletivos nos quais estão as adolescentes cumprindo medida de
internação, em contraste, são estruturadas diversas atividades para a rotina. Elas tomam
café as seis e meia da manhã, sete e meia saem para assistir aula, almoçam ao meio dia,
participam de cursos profissionalizantes e oficinas as quatorze, as dezenove horas é
servido o jantar e participam de atividades de lazer (quadra ou televisão) até as vinte e
duas horas. O retorno aos alojamentos acontece depois das vinte e duas horas.
14
As meninas recolhidas nos alojamentos provisórios estudam em uma única sala na qual todas são acompanhadas por
uma professora. As meninas que cumprem medida de internação, diferentemente do provisório, assistem a aulas
específicas da sua série escolar. Cada professora fica responsável por desenvolver um trabalho de acordo coma série de
suas alunas.
1917
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
No CRSSJ existem parcerias com atores externos para disponibilizar cursos,
oficinas e atividades recreativas as adolescentes. Essas parcerias são realizadas de duas
formas, a saber: as estabelecidas pelo governo estadual com a Ong “De peito aberto” e
as mobilizações feitas pela própria equipe que trabalha na unidade. Um grupo de policiais
militares ministra oficinas de percussão e dança. Um grupo do Sesc ensina
semanalmente as adolescentes a confeccionarem tapetes. Aos sábados e domingos são
ofertadas atividades de cunho religioso com a participação alternada de igrejas parceiras
(Igreja Universal do Reino de Deus, Deus é maior e pastores do Colégio Batista) e um
grupo espírita. As adolescentes também auxiliam na limpeza da unidade: lavam a quadra
e limpam seus alojamentos.
Essas atividades desenvolvidas no interior da unidade ocorrem separadamente.
Explico-me: as adolescentes dos alojamentos provisórios não realizam suas atividades
de forma conjunta com as adolescentes dos alojamentos de internação. Uma das
determinações do Estatuto da Criança e Adolescente – ECA é a separação dos
adolescentes em situação de acautelamento provisório dos adolescentes sentenciados
com medida de internação. Como não existe no Estado uma unidade destinada
exclusivamente para adolescentes do sexo feminino em situação provisória são
encaminhadas para o CRSSJ. No entanto, apesar desses alojamentos diferenciados
separarem fisicamente as adolescentes, fica um de frente para o outro. Ou seja,
acontecem conversas entre as adolescentes “provisórias” com as da “internação”.
Quando os agentes detectam esses diálogos, chamam a atenção das meninas e aplicam
sanções, pois não pode ocorre esse tipo de contato.
Essas situações de contato entre “provisórias” e as da “internação”, desrespeito
aos agentes, brigas e discussões, configuram infração as normas da unidade. As duas
últimas situações, por sua vez, acontecem com maior frequência. Muitas vezes, os
agentes estão revistando uma menina para entrar no alojamento, ela corre e beija uma
menina de outro alojamento. Esse namoro que aflora entre elas constitui um dos
problemas cotidianos mais difíceis de administrar. Algumas adolescentes se conhecem
da rua ou criam um vínculo amoroso no transcorrer da convivência. A relação amorosa
entre duas adolescentes gera ciúmes entre elas e, por vezes, acarreta essas brigas e
discussões nos alojamentos. Um simples olhar para a namorada da outra pode irrompem
em uma briga ou agressão física, configurando uma situação de indisciplina. Apesar do
relacionamento amoroso entre as adolescentes (namoros, carícias e beijos) não constituir
uma violação ao regulamento disciplinar do CRSSJ, a manifestação pública desses
“namoros” nos alojamentos é considerada como um desrespeito aos agentes e, portanto,
passível de punição.
1918
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Quando os agentes detectam na convivência entre as meninas situações de
conflitos, discussão e brigas recorrem à medida de “contenção” dessas meninas. Elas
são algemas para não partirem para a agressão física. Agora, caso extrapolem os limites
de tolerância dos agentes, são apartadas da convivência. Na unidade existem três
alojamentos solitários, separados dos demais, nos quais as meninas que cometeram
algum tipo de infração são recolhidas por um ou mais dias. Os agentes ficam sempre de
prontidão para evitar esses contatos amorosos entre as adolescentes e, sobretudo, para
que não cometam suicídio com a amarração de lençóis nas grades das janelas dos
alojamentos. O namoro não é uma infração as normas do regimento, mas é considerada
a causa de uma série de situações problemáticas que configuram faltas, por isso, os
agentes tentam sempre conter esses relacionamentos.
Considerações Finais
Com a criação do CIA o objetivo consistia em tornar o sistema de justiça juvenil
mais eficiente no tocante a identificação dos adolescentes autores de atos infracionais e
sua consequente punição com a aplicação de medidas socioeducativas. A integração de
distintos órgãos em um mesmo espaço conferiu maior celeridade à fase do processo
judicial e impactou negativamente sobre o trabalho das agências de ponta.
Este novo arranjo, por sua vez, não contemplou os problemas que o excesso de
eficiência no fluxo do sistema de justiça juvenil teria para as instituições de ponta, quais
sejam: as que cuidam da responsabilização do adolescente infrator. O fim da frouxa
articulação fez com que o sistema tivesse menos “escapes” de adolescentes durante as
fases de processamento pelos órgãos e se tornasse mais punitivo. O tempo entre o
cometimento do ato infracional pelo adolescente e seu julgamento diminuíram. Como
consequência as agências passaram a receber um número cada vez maior de
adolescentes sem terem, contudo, a sua capacidade de acolhimento expandida.
No caso da execução das medidas socioeducativas de internação, conforme
apresentamos nas seções anteriores, o excesso de eficiência gerou problemas de
superlotação, preocupação dominante da equipe administrativa com a segurança,
controle e contenção dos adolescentes com vistas a evitar os conflitos nas unidades,
sobrecarga de trabalho para a equipe técnica e precariedade da estrutura física. O
encaminhamento progressivo de adolescentes para estas unidades desvelou a
dramaticidade da realidade dos adolescentes privados de liberdade, bem como as graves
violações de direitos humanos nestes espaços institucionais.
1919
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
A realidade das unidades de internação revela o quanto o respeito aos direitos
dos adolescentes privados de liberdade referenciados no Art. 124 do Estatuto da Criança
e Adolescente – ECA15, em sua grande maioria, permanece num plano meramente
formal. As mudanças no sistema de justiça juvenil ocorreram com vistas a torna-lo mais
eficiente e punitivo, porém sem qualquer preocupação com mudanças nas condições
para o atendimento do adolescente punido com medida de internação.
Referências
CAMPOS COELHO, Edmundo. A Administração da Justiça Criminal no Rio de Janeiro:
1942-1967. Dados - Revista de Ciências Sociais, vol. 29, no. 1: 61-81. Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), 1986.
Conselho Nacional de Justiça. Panorama Nacional – A Execução das Medidas
Socioeducativas de Internação. Departamento de Monitoramento e Fiscalização do
Sistema Carcerário/CNJ, 2012.
FELTRAN, Gabriel de Santis. Diário Intensivo – a questão do adolescente em conflito
com a lei em contexto. Revista Brasileira Adolescência e Conflitualidade, 01 – 44, 2011.
GREENWOOD, Peter. Juvenile Crime and Juvenile Justice. In Crime: Public Policies for
Crime Control, edited by James Q. Wilson and Joan Petersilia. Oakland, CA: ICS Press,
2002.
MISSE, Michel. Notas sobre a sujeição criminal de crianças e adolescentes. In: SÉ, J. T.
S.; PAIVA, V. (orgs.). Jovens em conflito com a lei. Rio deJaneiro: Garamond, 2007.
RIBEIRO, Ludmila; SILVA, Klarissa. Fluxo do sistema de justiça criminal brasileiro: um
balanço da literatura. Cadernos de Segurança Pública, p. 14-27, 2010.
SAPORI, Luís Flávio. A administração da Justiça Criminal numa área metropolitana. In:
Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 29, p. 143-156, out. 1995.
15
Dentre os direitos do adolescente privado de liberdade referenciados no Art. 124, destacamos: ser tratado com
respeito e dignidade; ter acesso aos objetos necessários à higiene e asseio pessoal; habitar alojamento em condições
adequadas de higiene e salubridade; receber escolarização e profissionalização e realizar atividades culturais, esportivas
e de lazer.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA NA AMÉRICA CENTRAL E O PAPEL DA
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS.
Laura Betti Monteiro Radicchi (UFMG/FAFICH)
Maria Guiomar da Cunha Frota (UFMG/ECI)
1
Introdução
A violência institucionalizada contra a criança na América Central é recorrente
tanto em períodos ditatoriais quanto em períodos democráticos. Todos os países da
região são signatários da Convenção Interamericana de Direitos Humanos que
estabelece no seu artigo 19 os direitos da criança. Em seu artigo primeiro a
Convenção determina que o Estado deve “zelar pelo respeito aos direitos humanos
reconhecidos e garantir o exercício dos mesmos por parte de toda a pessoa sujeita à
sua jurisdição”. Além disso, a Convenção também reforça essa responsabilidade ao
firmar em seu artigo segundo que o Estado deve introduzir as medidas internas que
forem necessárias ao cumprimento da Convenção.
Questiona-se então, como se constituem os padrões de violação aos direitos da
criança na América Central e como os mesmos se perpetuam extrapolando períodos
ditatoriais.
A metodologia adotada consiste no estudo de três casos de processos de
violação aos direitos da criança ocorridos na Guatemala, Honduras e El Salvador
julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para a análise das questões
propostas são estabelecidos dois tipos de categorias:
a) Categorias externas referentes ao Estado Latino Americano no qual a
violação ocorreu e que incluem: o agente violador, o padrão de violência e o regime
político. Essas categorias são empregadas para verificar se o caso de violação tipifica
um padrão recorrente de violência na história do país.
b) Categorias internas referentes ao processo no âmbito da Corte e que
incluem: as medidas reparatórias firmadas pela corte e o grau de cumprimento das
mesmas pelo Estado. Essas categorias são empregadas para interpretar os processos
a partir das perspectivas dos três atores partícipes dos mesmos: os representantes
das vítimas, os representantes do Estado violador e os juízes da Corte Interamericana.
1
Maria Guiomar da C. Frota professora associada da UFMG/ECI, doutora em sociologia pelo
IUPERJ, [email protected] .Laura Radicchi, graduanda em ciências sociais da
UFMG/FAFICH, bolsista de iniciação científica ( FAPEMIG/PROBIC);
[email protected]
1921
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
2. Referencial Teórico
Para investigar as questões propostas adota-se como perspectiva inicial a
necessidade de associar a literatura sociológica relativa ao tema da violência com
aquela relativa aos direitos humanos e à construção do estado de direito, nos
contextos de transição democrática.
Na América Central, um dos problemas sociais mais graves tem sido a
expansão generalizada da violência tanto cotidiana, no nível microsocial, quanto
institucionalizada, no âmbito estatal.
Os jovens têm sido apontados como os principais responsáveis por esse
quadro, mais especificamente os grupos denominados maras ou pandilhas2 que se
expandiram a partir da década de 1990. Esses grupos têm agregado um número muito
alto de jovens em El Salvador, Honduras, Nicarágua e Guatemala, conforme dados
sistematizados por ÁLVARES e OROPEZA (2008, p. 94), apresentados tabela 1 a
seguir:
TABELA 1- Membros de pandilhas ( fundamentalmente Salvatrucha e Mara 18)
PAÍS
MEMBROS
El Salvador
10.5000
Honduras
36.000
Nicaragua
2.2000
Guatemala
14.000
Total
62.000
Fonte: Adaptado de USAID (2006).
Os governos, nesses países, têm respondido à atuação das maras com
políticas de endurecimento e controle social e não com políticas de caráter protetivo e
preventivo. Políticas estas que tem tido como conseqüência a não redução do crime e
a aumento das violações aos direitos humanos.
Os autores que se ocupam do tema têm apontado que não há correspondência
entre a realidade (dados relativos à autoria de crimes) e a percepção social dos jovens
como autores principais dos delitos. ALVAREZ e OROPEZA(2008) citam, por exemplo,
que “apenas 13 % dos homicídios em El Salvador podem ser seguramente atribuídos
às pandilhas” (pag. 94).
2
As pandillas juvenis não são um problema novo nem exclusivo da América Central. Por muitos anos,
elas existiram em países como Irlanda, Estados Unidos, Brasil e Colômbia. Os especialistas não têm uma
definição unificada sobre o termo pandilla juvenil. Alguns sociólogos definem as pandillas juvenis como
grupo de jovens “desviados” ou “anti-sociais” que comentem delitos; outros definem como grupos de
indivíduos que vivem na pobreza e marginalizados, encontrando nas pandillas, um grupo social que
oferece uma alternativa de identidade e auto-estima. Uma caracterização universal sobre as pandillas
juvenis é difícil de alcançar, já que as mesmas variam em sua composição, tamanho, organização e
atividades de acordo com o contexto em que se encontram.
1922
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
Paradoxalmente
ISSN: 2317-0255
o
jovem
vítima
de
violação
é
percebido
social
e
institucionalmente como criminoso potencial e as violações aos direitos humanos não
são percebidas como problema relevante. Isso pode ser percebido na enquete
realizada pelo Latinobarometro. Uma das perguntas propostas era qual o problema
mais importante do seu país?3 Para os entrevistados dos três países estudados, El
Salvador Guatemala e Honduras o principal problema é o da delinquência com
respectivamente 40,1%, 30,4% e 29,8%. Para os entrevistados de El Salvador o
segundo pior problema são as questões econômicas com 18,8%. Já na Guatemala, os
entrevistados acreditam que o segundo maior problema do país é a presença de
pandillas com 21,3%. Os entrevistados hondurenhos acreditam que o segundo maior
problema de seu país é o desemprego com 24,4%.4
Para Alvarez e Oropez o fenômeno da criminalização da juventude pobre nos
países do triangulo norte é associado a adoção de políticas criminais como medidas
isoladas e quase exclusivas de abordagem do problema da criminalidade. Adotam-se,
nesses países, leis e políticas que “implicam utilizar os sistemas judicial e penal para
dar respostas a efeitos de problemas sociais como a marginalização, a pobreza, a
desigualdade e o desemprego. “ (pag. 95)
Uma outra linha de interpretação importante para a compreensão do problema
é aquela relativa à impunidade em termos da apuração de crimes contra os direitos
humanos. Estudos sobre justiça de transição têm indicado que violações aos direitos
humanos ocorridas durante às ditaduras militares na América Central não tem sido
apuradas nos contextos de transição para a democracia. A gravidade das violações
pode ser dimensionada nas seguintes cifras: em El Salvador no período de 1978 e
1983, em um total de 50.000 pessoas assassinadas, 42.171 morreram nas mãos de
agentes do estado. Na Guatemala o Estado foi responsável por 90 % das violações
que perfazem 500.000 mortos e desaparecidos, entre 1954 e 1985 (BARAHONA,
2012; pag.108-9). Na perspectiva de BARAHONA diante da premência de se firmarem
acordos de paz que pusessem fim aos prolongados e violentos conflitos armados,
foram firmados acordos conciliatórios. Prevalece assim um quadro de impunidade,
especialmente em relação à violência institucional (policial), que se mantêm no
contexto pós-ditatorial.
Os países da América Central ratificaram a Convenção dos Direitos da
Criança(CRC) e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos(CIDH).
5
Ao
3
Dados retirados do Latinobarômetro 2011
As outras alternativas possuem uma porcentagem muito baixa dando a entender que os maiores
problemas dos países são a violência e a economia, que possuem uma ligação direta. (ref.)
5
Esses países também assinaram o protocolo de reconhecimento da competência da corte para julgar as
violações à CIHD
4
1923
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
ratificarem documentos internacionais, mais especificamente A CRC e CIDH, os
países signatários se comprometem a adequar sua legislação e políticas no sentido de
garantir os direitos previstos. Mas o que as pesquisas empíricas vêm indicando é
justamente um movimento em direção contrária ao estado garantista e protetor. O que
se constata é o aumento generalizado da violência institucionalizada e também difusa
contra o jovem- principalmente o jovem pobre, negro e/ou índio - como se ilustrará
com os dados históricos e com os testemunhos que compõem os casos apresentados
à Corte Interamericana.
3. Contexto histórico
Honduras, El Salvador e Guatemala se caracterizaram por períodos ditatoriais
longos e de extrema violência institucionalizada, mas é possível identificar algumas
particularidades de cada país relevantes para a presente pesquisa. No caso de
Honduras foi explorado seu contexto político ditatorial e sua repercussão para as
pandillas e maras. No caso de El Salvador destacou-se a guerra civil e sua conexão
com os conflitos no campo. E na Guatemala indicou-se o contexto histórico e político
do país. Essas categorias nos auxiliam a compreender o padrão de violação de
direitos humanos nos respectivos Estados.
A ditadura militar hondurenha durou 19 anos (1963-1982), o chefe do golpe era
Lopéz Arellano (o golpe militar hondurenho não foi reconhecido pelo presidente dos
EUA John F. Kennedy). Como todo governo militar durante este período na América
Latina, Arelano possuía uma posição fortemente anti-comunista. O principal motivo de
o golpe militar ter ocorrido em Honduras foi o medo dos militares de que o vencedor
das eleições fosse Rodas, que havia prometido ao Partido Liberal que iria revisar a
Constituição de 1957 e instaurar novamente o controle civil sobre as Forças Armadas
hondurenhas. A transição da ditadura para o governo civil em Honduras ocorreu de
maneira aceitável aos olhos dos militares, que conservaram muita autonomia e
continuaram desempenhando um papel de grande destaque durante a década de
1980.
O surgimento das maras e pandillas em Honduras está vinculado à violência
política e a crise econômica ocorrida durante as décadas de 1970 e 1980 gerando
uma imigração massiva de hondurenhos para os EUA. Muitas famílias estabeleceramse nos bairros pobres aonde enfrentaram uma situação difícil: em Los Angeles,
algumas áreas aonde se fixaram os imigrantes estavam dominadas por pandillas
juvenis. Em 1996 o governo federal dos Estados Unidos inicia uma política de
deportação em massa de jovens hondurenhos por sua suposta participação em
1924
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
pandillas juvenis. Muitos dos deportados viveram nos EUA quase toda a sua vida, e ao
retornar ao seu país de origem encontraram um ambiente estranho: um país em
processo de reconstrução após a violência política, a pobreza e o desemprego.
A evolução das maras e pandillas varia conforme os períodos históricos.
Registram-se pandillas juvenis desde a década de 1970, com influencia cultural das
pandillas norte-americanas. Estas se diferenciam das hondurenhas por ter um território
fixo e demarcado, um nível de violência muito alto, armamento caseiro ainda que às
vezes utilizem armas de fogo e alto consumo de droga.
As maras e pandillas são as expressões mais visíveis da violência social em
Honduras. Nos últimos 15 anos ganharam atenção da mídia devido a seus atos de
violência extremas como os homicídios, as mutilações, torturas, extorsões e outras
formas de delito. O problema das pandillas não é novo no país uma vez que são
formas tradicionais de expressão da juventude marginalizada.
El Salvador passou por períodos de violência e repressão. A elite salvadorenha
era composta por oligarcas que controlavam os campesinos por meio de políticas
desleais de ocupação de terra e coerção militar. Esse sistema repressivo de governo
desapropriou as terras comunitárias indígenas, gerando uma desigualdade na
distribuição de terras. Essa desigualdade levou à uma série de revoltas campesinas
em 1832, que culminou,149 anos mais tarde em uma guerra civil que assolou o país.
A guerra civil salvadorenha (1959 a 1980) concentrou-se em três grandes
áreas do país6. A guerra permeava todos os aspectos da vida dos cidadãos. Para os
ricos significavam viver em fortalezas rodeadas por seguranças. Para a classe média
significava não sair a noite e tomar cuidado com o que era dito ao telefone. Para os
cidadãos que poderiam ser alvos dos esquadrões da morte significava planejar cada
passo. E para os pobres significava migrar-se constantemente e muitas vezes se
exilar. A guerra em seus 10 anos de duração resultou em mais de 75 mil
salvadorenhos mortos e 20% da população deixou o país. A idéia de transição violenta
da ditadura para a democracia deu lugar a uma transição negociada.
A Guatemala, mais do que Cuba, foi o palco da Guerra Fria na América
Central. Como a grande parte dos países da América Latina passou por ciclos
ditatoriais de repressão e violência(1931-1944); (1954-1983), intercalados por um
breve período democrático (1945-1954).
A década de 1960 pode ser caracterizada como o início da repressão da
guerrilha pelo aparato militar guatemalteco, essa repressão se intensificou
permanecendo até o fim do regime. Em 1963 um golpe colocou o Exército
6
As regiões de Ahuachapán, La Union e a capital de San Salvador
1925
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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guatemalteco no poder, elevando a um novo patamar a militarização da vida política
do país. O Exército passa a governar como instituição, controlando a burocracia do
governo, organizando projetos de modernização montando um Estado contrainsurgente. A ajuda dos EUA foi intensificada nesse período, o país enviou
equipamentos e instrutores para treinar o Exército da Guatemala e auxiliar no combate
das Forças Rebeldes Armadas (FAR).
Nos anos de 1981 e 1983 os soldados e os grupos para militares cometeram
mais de seiscentos massacres. Estes eram uma política planejada para destruir a
base social da guerrilha e erradicar todos os elementos da sociedade que não podiam
ser controlados pelo exército. Em cada região, a lógica e a velocidade dos massacres
tomaram formas próprias, dependendo de diversos fatores, tais como nível de
organização social, a relação da população com os rebeldes, a força da insurgência e
a importância estratégica do lugar. Entretanto, esses massacres possuíam um padrão
comum: antes de ocorrerem o Exército estabelecia bases e acampamentos nas
montanhas e aumentavam a violência contra os líderes comunitários, através de
execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçado e torturas. Essa violência, ao final
de 1981 tornou-se terror indiscriminado. No curso de duas décadas-1980 e 1990 - de
conflito armado foram mortas mais de 200.000 pessoas, 40.000 foram torturadas e um
número incontável de pessoas desapareceu.
A repressão da guerrilha na Guatemala é considerada a pior da América
Central deixando uma oposição mínima e sem eficácia. Existe ainda a intimidação do
camponês, do sindicato e do ativista dos direitos humanos. O poder do Exército ainda
é inabalável, os responsáveis pelo genocídio continuam impunes e muitas vezes ainda
ocupando cargos públicos.
4. Pesquisa empírica
Na pesquisa empírica foram analisados três casos de violência institucional
contra jovens do triangulo norte, julgados pela CIDH. Essa analise permite apontar os
processos de violação aos direitos da criança cometidos por agentes policiais, na
perspectiva das vítimas e seus familiares.
Para isso, foram estabelecidas categorias referentes ao processo judicial no
âmbito da Corte, a saber: as violações cometidas, as medidas determinadas pela
Corte e as medidas cumpridas pelo Estado.
Servellon Garcia vs. Honduras
Marco Antonio Servellón García, Rony Alexis Betancourth Vásquez, Orlando
Álvarez Ríos e Diomedes Obed Gárcia Sanchés foram detidos durante uma operação
de prevenção realizada pela Força de Segurança Pública (FUSEP), entre os dias 15 e
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
16 de setembro de 1995. Os quatro jovens foram supostamente executados
extrajudicialmente por agentes do Estado. No dia 17 de setembro do mesmo ano seus
corpos foram encontrados em diferentes locais da cidade de Tegucigalpa, Honduras.
O caso foi levado para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 11
de outubro de 2000, após o Estado e as famílias das vítimas não chegarem a um a
acordo a Comissão resolveu levar o caso até a Corte Interamericana de Direitos
Humanos. A Corte acatou o caso em 2 de fevereiro de 2005 e considerou que foram
violados os seguintes artigos: direito à vida (artigo 4), direito à integridade pessoal
(artigo 5), direito à liberdade pessoal (artigo 7), garantias judiciais (artigo 8), direitos da
criança (artigo 19) e direito à proteção judicial (artigo 25).
Como provas foram apresentados para a Corte os depoimentos autenticados e
tomados ante notário publico. Foi apresentada por parte da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos a perícia do ex-Comissário Nacional de Direitos Humanos de
Honduras (Leo Valladares Lanza). Pelos representantes dos familiares das vítimas foi
apresentado o testemunho da atual diretora da ONG Centro de Investigação e
Promoção de direitos Humanos (Reina Auxiliadora Rivera Joya) e de um advogado
(Carlos Tiffer-Sotomayor). O Estado apresentou o testemunho de uma advogada (Lolis
Maria Salas Monte), do assessor presidencial em matéria de segurança e ex-Consultor
da Comissão Interinstitucional da Proteção da Integridade da Juventude (Ramón
Antonio Romero Cantareto) e o testemunho do supervisor geral da Secretaria de
Segurança (Ricardo Rolando Díaz Martínez).
O testemunho do ex-Comissário Nacional de Direitos Humanos em Honduras
demonstra como o Estado e o Sistema judiciário hondurenho é ineficaz para lidar com
os problemas de violência estatal:
El Estado ha adoptado medidas tendientes a mejorar la situación de los niños,
pero todavia persiste un elevado número de muertes de jóvenes y persiste la
casi total ineficacia en las investigaciones, así como la falta de sanciones a los
responsables. Se han llevado ante los tribunales a miembros de la policía
sindicados de abusos a los derechos humanos de niños, niñas y adolescentes,
pero es escasa la relación con los casos denunciados. El Estado há
aumentado las medidas represivas en contra de los jóvenes. Por un lado, no
existe uma política criminal que evite los excesos en contra de los jóvenes y,
por otro lado, los esfuerzos por las medidas de prevención y protección son
débiles. El Instituto Hondureño de la Niñez y de la Familia (en adelante
“IHNFA”) se caracteriza por su burocracia, que lo hace ineficaz. Igualmente, el
Código de la Niñez y la Adolescencia, a pesar de uma década de vigencia, no
ha tenido eficaz aplicación y falta la debida formación de los jueces.
De su Informe como Comisionado Nacional de los Derechos Humanos y de las
observaciones de la situación actual, el perito concluye que existe un contexto
de violência respecto de niños, niñas y adolescentes en Honduras, que
persiste la impunidad y que no se brinda un adecuado tratamiento a los
privados de libertad. (p.8)
O testemunho da diretora a ONG Centro de Investigação e Promoção de
Direitos Humanos enfoca como a violência tem sido um enorme problema no país e
que diante de altíssimos números de homicídios a polícia passou a dar mais enfoque a
1927
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
delinquência comum. O treinamento profissional da polícia continuou sobre o domínio
das forças armadas até o final da década de 1980, estas que foram denunciadas por
várias violações de direitos humanos.
A diretora afirma ainda que em 2002 o
Comissário de Direitos Humanos, Leo Valladares Lanza, apresentou um relatório que
acusa o Estado e em particular as forças policiais de organizarem e/ou tolerarem
esquadrões da morte, estes agiriam da mesma maneira que agiam na década de 1980
praticando o desaparecimento forçado de pessoas e executando extrajudicialmente,
pois segundo a diretora existe no país uma campanha de “limpeza social”.
Na perspectiva da diretora os jovens são vítimas e vitimadores de
acontecimentos violentos. Nos últimos três anos quase 14.000 pessoas perderam a
vida de maneira violenta, as vítimas são em sua maioria homens de 16 a 35 anos de
idade, os agressores também são na maioria dos casos homens.
A diretora diz em seu depoimento que a juventude hondurenha, especialmente
a pobre, vive em contextos violentos e geralmente é vítima de extermínio em
consequência da suspeita de participarem de pandilhas.
Em seu testemunho o advogado Carlos Tiffer-Sotomayor, demonstra que a
violência é um problema estrutural e que o Estado não está preparado para lidar com
a mesma:
La violencia actual en Centroamérica es resultado de un largo proceso
estructural vinculado con problemas de índole social, económico y políticomilitar. En los últimos años se há expandido un fenómeno de violencia juvenil,
que en el caso de Honduras ha alcanzado el nivel de pandillas juveniles.
En Honduras la respuesta estatal tiene una acentuación en la represión, no
sólo institucional sino incluso privada, que busca eliminar la violencia con más
violencia, configurando uma política pública completamente equivocada.
Cuando esta represión va enfocada hacia niños y adolescentes, la
problemática y la dimensión de la respuesta violenta son mayores, pues ellos
incorporan la violencia como patrones culturales, por lo que serán adultos
también violentos. Las políticas públicas debían ser orientadas a políticas
sociales y, especialmente, educativas. A su vez, la mejor política criminal debe
de ser una buena política social, especialmente al tratarse de las pandillas
juveniles o maras. (p.10)
Na
perícia
apresentada
pelo
Estado,
o
ex-Consultor
da
Comissão
Interinstitucional de Proteção à Integridade Moral e Física da Juventude, afirma que
existe um desencontro entre os números de assassinatos de crianças fornecidos pelo
Estado e o fornecido por ONGS:
Desde 1986 hasta 2002 murieron violentamente y en condiciones no
esclarecidas aproximadamente 700 niños y niñas, conclusión basada en las
hojas de levantamiento de cadáveres del Departamento de Medicina Forense
del Ministerio Público y de la DGIC, que brindan la información más fidedigna.
Lo anterior explica la diferencia entre las cifras del Estado en comparación con
los números presentados por organizaciones no gubernamentales que tienen
como fuente la imprecisa información publicada en los diários nacionales. Las
muertes interpandillas constituyen aproximadamente el 60% de los casos; la
acción del crimen organizado y el narcotráfico ocasiona más del 30% de dichas
muertes y un 8% es atribuido a grupos particulares clandestinos de “limpieza
social”. Las investigaciones también han establecido que entre los presuntos
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
culpables figuran policías vinculados a grupos particulares y clandestinos de
“limpieza social”, procediéndose de inmediato a su enjuiciamiento penal. Los
resultados de las distintas acciones tienden a ser evidentes y decisivos en el
mediano y largo plazo, aunque ya existen valiosos resultados de corto plazo.
(p.12)
Contrapondo o depoimento do ex-consultor, a diretora executiva da ONG
Centro de Investigação e direitos humanos afirma que:
Los datos en general, señalan que en Honduras en los últimos tres años han
perdido la vida violentamente casi 14,000 personas. Las estadísticas informan
que en una gran proporción de las víctimas de violencia son hombres jóvenes
de 16 a 35 años de edad. Los agresores también son mayormente hombres
jóvenes. Estudios afirman que la participación de niños en actividades
delictivas no es mayor del 18% en más de dos décadas. (p.9)
No testemunho da advogada Lolis Maria Salas Monte é enfatizado o que o
Estado fez e vem fazendo para resolver o problema da violência infantil:
Se construye un Plan Nacional de Atención a la Niñez y la Adolescencia,
programado a ser ejecutado en el período de 2002-2010. Recientemente
fueron convocados sectores gubernamentales, la sociedad civil y
organizaciones no gubernamentales a efecto de revisar el referido Plan y
mejorar la elaboración de las acciones que se llevan a cabo en el país a favor
del sector de la niñez y la adolescencia. Una de las grandes recomendaciones
va dirigida a la inclusión de un nuevo capítulo sobre la violencia contra los
niños, niñas y adolescentes, en el cual se incorporan apartados de maltrato
infantil, abuso sexual, y sobre maras o pandillas.
Otro esfuerzo del Estado fue la intervención del Instituto Hondureño de la
Niñez y la Família (IHNFA) que motivó la conformación de una Comisión
Interventora para diagnosticar la realidad de este Instituto, de la cual la perito
fue parte desde agosto de 2003 hasta septiembre de 2004. Esta Comisión
Interventora elaboró el Diagnóstico Situacional sobre el escenario institucional
del IHNFA y sugirió estrategias para lograr el respeto absoluto al interés
superior del niño y la niña. Como resultado, el Estado amplió el período de
nombramiento de la Comisión Interventora, tiempo en el cual se ejecutaron una
serie de acciones para asegurar la protección de los menores en situación de
riesgo social y en conflicto con la ley, con base en la legislación nacional y los
instrumentos internacionales em materia de niñez y adolescencia. Asimismo,
se logró establecer un acercamiento con todos los sectores de la sociedad civil
y organizaciones no gubernamentales para analizar la situación del IHNFA y
para conocer tanto el trabajo realizado por el Estado como por estos sectores.
(p.11)
Os depoimentos foram importantes para esclarecer o contexto de violência
contra jovens, principalmente as execuções extrajudiciais. Outro ponto importante é
como as pandillas e maras são um problema crônico do país. A década de 1990 foi o
marco da repressão estatal preventiva e armada às pandillas juvenis, em Honduras
passa a existir um contexto de violência que é marcado pela vitimização de crianças e
adolescentes em situação de risco. As mortes de jovens suspeitos de envolvimento
com as maras e pandillas tornaram-se cada vez mais frequentes entre 1995 e 1997. A
violência obedece a um padrão comum, sendo eles: as vítimas são jovens e
adolescentes, a causa das mortes, que normalmente são execuções extrajudiciais
caracterizadas pela extrema violência e a publicidade dos crimes uma vez que os
corpos das vítimas ficam expostos para a população.
Nota-se a partir disso que os relatos tiveram um peso importante para a
definição das reparações estabelecidas pela Corte. Na Sentença de reparação, a
Corte definiu que o Estado deveria:
1929
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
1.
ISSN: 2317-0255
Indenizar as famílias das vítimas por danos morais e materiais,
totalizando respectivamente: US$ 135.000,00 e US$40.000,00
2.
Realizar um ato de reconhecimento público de culpa com relação aos
fatos ocorridos
3.
Nomear uma rua ou praça na cidade de Tegucigalpa em memória das
vítimas e deve fixar uma placa nesse local com o nome delas.
4.
Realizar uma campanha com a finalidade de sensibilizar a população a
respeito da importância da proteção de crianças e adolescentes.
5.
Deve estabelecer um programa de formação e capacitação para os
agentes policiais, judiciais, do ministério público e agentes penitenciários sobre a
proteção especial que deve ser prestada pelo Estado para crianças e adolescentes.
6.
Criar uma base de dados unificada entre todas instituições envolvidas
na investigação, identificação e sanção dos responsáveis pelas mortes violentas de
crianças e adolescentes.
7.
Deve investigar os fatos ocorridos para identificar, julgar e sancionar os
culpados.
8.
Publicar no diário oficial o país a sentença proferida pela Corte.
Dessas oito medidas até a última Supervisão de Sentença realizada em
22/11/2011 o Estado havia cumprido as seguintes medidas: publicar no diário oficial a
sentença proferida pela Corte, realizar um ato público de reconhecimento de culpa,
nomear uma rua ou praça em homenagem as vítimas e fixar nesse local um placa com
o nome delas, estabelecer um programa de formação sobre a proteção especial que
deve ser prestada pelo Estado para as crianças e adolescentes e a criação de uma
base de dados unificada.
Caso Molina Theissen vs. Guatemala
O jovem Marco Antonio Molina Theissen, de 14 anos de idade, foi sequestrado
por membros do Exército da Guatemala no dia 6 de outubro de 1981. Nesse dia a
vítima estava com sua mãe quando chegaram três homens armados em sua casa.
Algemaram a vítima, colocaram uma fita em sua boca para que não gritasse. Sua mãe
foi arrastada pela casa por um dos homens que vasculhava tudo o que podiam
encontrar. Um dos sujeitos a empurrou e a espancou, outro homem levou Marco
Antonio para fora da casa. Quando um dos homens soltou a porta, ela saiu de casa e
viu que a vítima foi colocada na parte de trás de um carro que tinha placa oficial com o
número 17675. A família da vítima descobriu que este carro pertencia a G2, ou seja, a
Inteligência do Exercito da Guatemala. A família fez várias procuras infrutíferas pela
vítima, e o Estado não informa onde a vítima está e/ou o que aconteceu com o jovem.
1930
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
A denúncia do caso foi feita na Comissão Interamericana de Direitos Humanos
no dia 8 de setembro de 1998, 17 anos após o desaparecimento da vítima. Entretanto,
o caso só foi acatado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no dia 4 de julho
de 2003. A Corte considerou que foram violados os seguintes artigos da Convenção
Interamericana de Direitos Humanos: direito à vida (artigo 4), direito à integridade
pessoal (artigo 5), direito à liberdade pessoal (artigo 7), garantias judiciais (artigo 8),
proteção à família (artigo 17), direitos da criança (artigo 19) e proteção judicial (artigo
25). A Corte também considerou que foram violados os artigos I e II da Convenção
Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de pessoas. A sentença de fundo e
reparações foi proferida em 3 de julho de 2004, e a última Supervisão de Sentença foi
feita em 16 de novembro de 2009.
Como prova documental foram apresentadas pelos familiares das vítimas e
seus representantes diversas alegações, argumentos e anexos. O Estado mandou
diversos anexos como prova documental. A Comissão Interamericana incluiu os
depoimentos
colhidos
ante
fedatário,
do
coordenador
do
Projeto
Jovens
Desaparecidos durante o Conflito Armado Interno na Guatemala (Oscar Ernesto
Reyes) e do diretor do Grupo Apoio Mútuo (Mario Alcides Polanco Pérez).
Como provas testemunhal e pericial foram incluídas no processo os
testemunhos da mãe da vítima (Emma Theissen Álvarez Vda. de Molina), das irmãs
da vítima (Ana Lucrecia Molina Theissen, María Eugenia Molina Theissen e Emma
Guadalupe Molina Theissen), de um sociólogo (Axel Mejía Paíz). A perícia de um
médico (Carlos Martín Beristain), de uma psicóloga (Alicia Neuburger). O Estado não
apresentou testemunhas.
A irmã da vítima, Emma Guadalupe Molina Theissen, em seu depoimento
descreve o que ocorreu enquanto esteve presa na base militar:
El 27 de septiembre de 1981, cerca de las 8 de la mañana, viajaba de
laCiudad de Guatemala a Quetzaltenango en un autobús que fue detenido en
el Departamento de Sololá por un retén del ejército. Miembros del ejército
ordenaron a los pasajeros que se bajaran del autobús y procedieron a
registrarlos. Ella llevaba documentos internos y propagandísticos del Partido
Guatemalteco del Trabajo. Cuando los soldados la registraron se dieron cuenta
que llevaba esos documentos y fue detenida. Los primeros dos días de su
detención fue interrogada durante todo el día por dos hombres que trataban de
establecer quién era ella, qué era lo que sabía y qué hacía dentro de la
organización. En esos dos días no hubo violencia física, pero el segundo día
por la noche al negarse a dar la información que los hombres le pedían y que
ella desconocía, ellos se enojaron mucho y la trasladaron vendada y esposada
hacia una parte del edificio de la base militar. Ahí la llevaron a una habitación,
la acostaron y la esposaron a los barrotes de la cama. Más tarde en la
madrugada y reiteradamente después, durante todos los días posteriores a esa
noche, llegaron varios hombres a la habitación, la torturaron y en algún
momento entraron varios soldados a la habitación y la violaron. (p.14 e 15)
A mãe da vítima afirma que o crime foi cometido por vingança, uma vez que
sua filha Emma havia sido capturada pelo exército, mas conseguiu fugir:
1931
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Está convencida que fueron los militares los que se llevaron a Marco Antonio.
Cuando se enteró del secuestro de Emma Guadalupe y que logró huir, fue
lógico pensar que lo ocurrido a su hijo era una venganza de los militares, ya
que Marco Antonio no tenía algún tipo de militancia política. (p.10)
Ainda conforme o testemunho da mãe, a dinâmica da família mudou após o
sequestro:
Em
seu
Desde la desaparición de su hijo Marco Antonio se siente en completa
indefensión. A raíz de los hechos sintió que pasaba de ser un ser humano
común y corriente a “valer cero”; pasaba a ser una “paria” dentro del mismo
país y eso persistió porque hubo más atropellos, controles y persecuciones.
Guatemala se gobernaba con la impunidad. La desaparición de Marco Antonio
afectó a la familia porque fue una tragedia para cada uno en la relación que
tenían. No hubo una entidad gubernamental u organismo que los amparara, no
hubo justicia en ese momento y cada quien, cada núcleo familiar, como pudo,
se refugió de alguna manera. Se veían en la clandestinidad, porque no había
otra manera, por el mismo temor, el mismo dolor que sentían los reprimía. Para
el año 1984, vivían de un lado para otro, comiendo si se podía, durmiendo
donde se pudiera. Entonces se produjo otro golpe para la familia, mataron al
esposo de su hija María Eugenia de la manera “más vil y grosera”. Tuvieron un
control de parte de lo que llamaban en esa época la “panel blanca”, en la cual
se llevaban a las personas y las hacían desaparecer. No tuvo más remedio
que buscar la forma de salir y librar a los hijos que le quedaban y así fue como
llegaron a la Embajada ecuatoriana, donde se asilaron. Lo que más motivó la
salida fue la muerte de su yerno, padre de dos niñas pequeñitas, y lo urgente
era librar a su familia. Jamás había pensado salir de Guatemala y le duele
mucho no poder estar allá. (p.10)
testemunho
o
sociólogo
Axel
Meíja
Paíz,
afirma
que
o
desaparecimento forçado de crianças era uma prática comum do Exército
guatemalteco, que 90% do sequestros de crianças foram executados pelo Exército e
que 90% desses casos não são solucionados. Diz ainda que a Comissão Nacional de
Busca de Jovens Desaparecidos registrou mais de 1000 desaparecimentos de jovens
de 10 etnias diferentes. Destes 1000 casos apenas 120 foram resolvidos e em apenas
80 as famílias reencontraram os jovens desaparecidos. O informe da Comissão para o
Esclarecimento Histórico informa que houve mais de 600 massacres aonde crianças
foram capturadas e levadas para bases militares, orfanatos ou a instituições do Estado
que promoveram adoções. Afirma que nos anos de 1979 e 1984 o número de adoções
na Guatemala aumentou. Estima que o número de crianças e jovens desaparecidas
durante o conflito armado foi entre 4500 a 5000.
Ainda no testemunho do sociólogo, é apontado que o sequestro da vítima
tratou-se de uma prática da inteligência militar dirigida a líderes e a membros de
famílias que eram vinculados a atividades socialistas ou que manifestaram seu
desacordo com a política do Estado, com o objetivo de paralisar, danificar e afetar a
família. A vítima era a figura mais vulnerável da família, por ser uma criança e por ser
o único filho homem. Esta foi uma prática documentada em pelo menos cinco famílias
que foram estudadas pela Comissão de Busca de Jovens Desaparecidos.
Oscar Ernesto Reyes afirma que no Informe Hasta Encontrarte: Niñez
Desaparecida por el conflito armado interno em Guatemala é assinalado que 86% dos
casos reportados de desaparecimento de crianças, são desaparições forçadas. Os
1932
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
outros 14% ocorreram devido ao conflito armado. Afirma que a maioria dos casos de
desaparecimento que tem conhecimento o autor foi o Exército da Guatemala em
conjunto com as forças paramilitares existentes no período.
Os testemunhos colhidos e analisados pela Corte são importantes em vários
sentidos. Pois, a partir deles fica claro que o que ocorreu foi um crime político e de
vingança, já que a irmã da vítima Emma foi sequestrada por ser militante do Partido
Trabalhista Guatemalteco e conseguiu fugir. Outro ponto importante que os
depoimentos demonstram é o fato de que o desaparecimento forçado de crianças foi
um padrão de violência durante o período do conflito interno armado na Guatemala.
Nota-se a partir disso que os relatos tiveram um peso importante para a definição das
reparações estabelecidas pela Corte. Na Sentença de reparação, a Corte definiu que o
Estado deveria:
1. Indenizar a família por danos morais e imateriais, totalizando respectivamente
US$ 275.400,00 e US$ 415.000,00.
2. O Estado deve realizar com a presença de suas autoridades um ato público de
reconhecimento de sua responsabilidade em relação aos fatos ocorridos.
3. O Estado deve designar um centro educacional existente na Cidade da
Guatemala e dar a el um nome que faça alusão as crianças desaparecidas
durante o conflito armado interno e colocar nesse centro uma placa em
memória da vítima.
4. O Estado deve publicar a sentença no Diário Oficial da Guatemala
5. Investigar os fatos ocorridos para identificar, sancionar e punir os culpados.
6. O Estado deve adotar medidas legislativas ou administrativas e de qualquer
outra índole que sejam necessárias para criar um banco de informações
genéticas.
7. O Estado deve informar o paradeiro dos restos mortais da vítima e entregá-los
para a família da vítima.
8. O Estado deve criar um procedimento que permita obter a declaração de
ausência e presunção de morte por desaparecimento forçado.
Dessas oito medidas, até a última Supervisão de Sentença feita em 2009, o
Estado havia cumprido as seguintes medidas: Realizar um ato público de
reconhecimento de culpa, pagamento das indenizações por danos morais e materiais
e dar a um centro educacional na Cidade da Guatemala um nome que faça alusão as
crianças desaparecidas durante o conflito interno.
Caso Hermanas S. Cruz vs. El Salvador
1933
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
As irmãs Ernestina e Erlinda Serrano Cruz desapareceram no dia 2 de junho de
1982, quando foram supostamente capturadas por militares na operação Guinda del
Mayo, que ocorreu entre 27 de maio e 9 de junho de 1982. Essa operação contou com
mais de 14 mil militares e ocorreu no município de San Antonio de la Cruz, situado na
província de Chalatenango. As irmãs tinham respectivamente 7 e 3 anos de idade
quando desapareceram. Ernestina e Erlinda Cruz foram vistas pela última vez há 21
anos entrando em um helicóptero das Forças Armadas de El Salvador.
A família das vítimas só abriu um processo interno 11 anos após o
desaparecimento. Isso ocorreu porque ela se refugiou em Honduras durante um
período e existia medo por parte da família de ir até a justiça de El Salvador. Em 1995,
a justiça salvadorenha afirmou não ser capaz de julgar e sancionar os culpados, muito
menos identificar o paradeiro das vítimas. Somente após 21 anos da ocorrência a
família, através de representantes, levou o caso para a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, que encaminhou o caso para a Corte. A Corte acatou o caso, em
14 de junho de 2003, e considerou que foram violados os seguintes artigos da
Convenção: direito a garantias judiciais (artigo 8.1), direito à proteção judicial (artigo
25) e direito à integridade pessoal (artigo 5).
Como provas documentais foram apresentados testemunhos e perícias
tomados ante notário público e declarações juradas. Por parte da família das vítimas e
seus representantes, foram apresentados os seguintes testemunhos: do irmão das
vítimas (José Fernando Serrano Cruz), de uma jovem desaparecida durante o conflito
da Guinda de Mayo, em 1982, e depois reencontrada por sua família (Andrea Dubón
Mejía) e da mãe das vítimas (Maria Victoria Cruz Franco). Os testemunhos propostos
pelo Estado foram: de um primo do pai das vítimas (Roque Miranda Ayala), de uma
vizinha da mãe das vítimas (Blanca Rosa Galdaméz de Franco), do irmão mais velho
da mãe das vítimas (Antonio Miranda Castro), de um parente distante da mãe das
vítimas (Mardoqueo Franco Orellana).
As perícias propostas pelos familiares das vítimas e seus representantes
foram: de uma psicóloga membro da Associação Pró-Busqueda (Rosa América Laínez
Villaherrera), do assessor jurídico da Comissão da Verdade de El Salvador (Douglass
Cassel), do procurador adjunto para a defesa dos Direitos Humanos (David Ernesto
Morales Cruz) e de uma psicóloga que entrevistou a família das vítimas em 2004 (Ana
C. Deutsch). O Estado propôs apenas a perícia de um militar aposentado (Marcial Vela
Ramos).
Como provas testemunhais, foram apresentadas por parte da família das
vítimas os depoimentos da irmã das vítimas (Suyapa Serrano Cruz), de uma jovem
desaparecida durante o conflito armado, mas que conseguiu reencontrar sua família
1934
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
(María Elsy Dubón de Santamaría) e do sacerdote e diretor da Associação Próbusqueda (Juan María Raimundo Cortina Garaígorta). Por parte do Estado, foram
apresentados os depoimentos da ex-presidente da Aldeia Infantil SOS de Santa Tecla
(Ida María Gropp de García), de um militar aposentado (Jorge Alberto Orellana
Osório), da depoente do processo penal interno (María Esperanza Franco Orellana de
Miranda) e do fiscal que estava a cargo do caso das vítimas (Miguel Uvence Argueta
Umaña).
O Estado em nenhum momento assume a culpa do crime cometido e que o
desaparecimento forçado de crianças era uma prática comum. Isso fica claro nos
depoimentos que El Salvador coletou para compor as provas documentais, como pode
ser observado no testemunho da ex-presidente da Aldeia Infantil SOS de Santa tecla:
El 6 de junio de 1982 las señoras voluntarias de la Cruz Roja salvadoreña
levaron a la Aldea de Santa Tecla a seis niños, con edades entre los veinte
días y ocho años. Según lo que el director de la Aldea comentó a la testigo, las
señoras de la Cruz Roja dijeron que los niños provenían de una zona de
Chalatenango en la cual se había dado un ataque de la Fuerza Armada, que
ésta los había encontrado solos y que se los habían entregado a la Cruz Roja,
pero no entregaron a la Aldea ningún documento con información sobre esos
niños.(p. 22)
Os testemunhos coletados pelo Estado afirmam que as vítimas não existiam e
que por isso elas não poderiam ter desaparecido. Além disso, apontam que o que
motivou denúncia feita pela senhora Maria Victoria Cruz Franco foi a possibilidade de
que ela conseguisse algum benefício financeiro, como pode ser visto no depoimento
do irmão mais velho da mãe da vítima:
Durante 1980 el testigo vivió muy cerca de la familia Serrano Cruz, y aseguró
“no haberle visto [a su hermana] alguna niña que se llamara Erlinda y
Ernestina”, ni haberla visto embarazada para entonces. Considera que la
señora Cruz Franco “qu[ería] probar algo que no e[ra] cierto, ya que el objetivo
e[ra] claro, […] qu[ería] obtener un beneficio económico”. (p. 13)
Apesar das contradições presentes nas provas documentais, a Corte acata o
caso, pois constata que o desaparecimento forçado de crianças era uma prática
recorrente em El Salvador durante o período da luta contra a guerrilha. Isso fica claro
nos depoimentos de peritos, como do diretor da Associação Pró-Busqueda:
De acuerdo con la experiencia de Pro-Búsqueda, durante el conflicto armado
en El Salvador existió un patrón sistemático de desaparición de niños y niñas
durante los operativos militares. El caso de Ernestina y Erlinda cabe
perfectamente en el patrón general de desaparición de niños y niñas durante el
conflicto. La Fuerza Armada y las instituciones humanitarias que tenían a los
niños no hicieron nada por encontrar alos familiares de éstos, se los llevaron a
orfanatos y a cuarteles o los “vend[ían] en adopción”. (p. 20)
Em seu testemunho, a irmã das vítimas, Suyapa Serrano Cruz, descreve como
suas irmãs mais novas, Ernestina e Erlinda, foram capturadas pelos militares:
Cuando huían del Ejército, su madre y sus hermanos Fernando y Rosa
lograron pasar el río para llegar a Chichilco, mientras que ella, su bebé, el
padre de la testigo y los hermanos de la testigo Erlinda, Ernestina y Enrique, se
refugiaron en un monte llamado “Los Alvarenga”. Erlinda y Ernestina pedían
agua constantemente y lloraban mucho, en especial Erlinda que era la más
pequeña y tenía una herida en el hombro. Su padre y su hermano Enrique
fueron a buscar agua mientras que las niñas, el bebé y ella se quedaron
1935
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
esperando. Cuando los tiroteos y gritos se escuchaban más cerca, la testigo se
separó de las niñas porque su bebé lloraba mucho y temia que las
encontraran. Escuchó que los militares encontraron a las niñas, y se gritaban
sobre qué hacer con ellas, y dijeron que se las llevaban aunque el helicóptero
llegaba hasta el día siguiente. Cuando los gritos se oían lejos de lazona en
que ella estaba, salió a buscar a las niñas, pero no tuvo éxito.Luego, se
reunió con su padre y hermano y fueron nuevamente al lugar de los hechos a
buscar a las dos niñas, pero no las encontraron. (p.18 e19).
Em relação às consequências do desaparecimento das vítimas para a família,
a psicóloga Ana C. Deutsch afirma em seu depoimento que:
A raíz de la desaparición de las niñas Serrano Cruz sus hermanos sufrieron
muchos daños psicológicos y físicos, tales como depresión, descenso de
autoestima, angustia, estrés, etc. Todos sufrieron y sufren síntomas crónicos
de “estrés postraumático”. Con el tiempo el impacto traumático se hizo más
severo, la desesperanza aumentó y con ello el sentimiento de impotencia y
angustia. A pesar de que Ernestina y Erlinda desaparecieron hace más de
veinte años, siguen siendo “una ausencia presente” en la familia, que se
intensificó desde que se activó su búsqueda, lo cual causó que también se
reactivara el dolor (p. 17)
Quanto à postura do Estado durante o processo interno, a mãe das vítimas
demonstra o descaso das autoridades em ouvi-la e em investigar os fatos ocorridos:
La testigo fue dos veces a la Fiscalía a denunciar lo sucedido a Ernestina y
Erlinda, acompañada por un miembro de la Asociación Pro-Búsqueda. La
primera vez fue atendida de mala manera por un fiscal, quien la amenazó com
llamar a la policía. La segunda vez la atendió otro fiscal, quien tampoco le
creía. En dos oportunidades visitó a un juez, quien en principio no le creía y
luego “la atendió bien”.(p. 12)
O depoimento de Douglas Cassel, assessor jurídico da Comissão da Verdade
de El Salvador, demonstra que a justiça salvadorenha foi ineficaz em investigar os
delitos cometidos pelo seu aparato militar e que não foi capaz de controlar esse
aparato. Afirma ainda o depoente que a comissão da verdade aconselhou que o
Estado fizesse diversas reformas em seu sistema judiciário. No entanto, mesmo com
tais reformas, ainda não houve o julgamento de diversas pessoas que cometeram
graves violações dos direitos humanos. Em 1993, com a adoção da Lei de Anistia, a
possibilidade de julgar esses militares foi extinta.
Os depoimentos colhidos e analisados pela Corte são importantes em dois
sentidos. Um deles é que a Corte constata que o desaparecimento forçado de crianças
foi uma prática comum durante o período de guerrilha em El salvador. O outro é que a
Corte afirma que as vítimas Ernestina e Erlinda Serrano Cruz estavam desaparecidas
e que as buscas foram improdutivas. Nota-se a partir disso que os relatos tiveram um
peso importante para a definição das reparações estabelecidas pela Corte. Na
Sentença de reparação, a Corte definiu que o Estado deveria:
1. Indenizar a família das vítimas por danos morais e materiais, totalizando
respectivamente US$165.000,00 e US$550,00.
2. Investigar os fatos ocorridos para identificar, punir e sancionar os culpados.
3. Criar uma comissão de busca nacional de jovens desaparecidos durante o
conflito armado.
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4. Criar uma página na internet para auxiliar na busca desses jovens
desaparecidos.
5. Criar um Banco de material genético para auxiliar na busca de pessoas
desaparecidas.
6. Fazer um ato público de reconhecimento de culpa pelo desaparecimento das
vítimas.
7. Publicar a sentença no diário oficial de El Salvador.
8. Fornecer assistência médica e psicológica necessária para os familiares das
vítimas.
9. Designar um dia para homenagear as crianças e os jovens desaparecidos
durante o conflito armado.
Dentre essas nove medidas determinadas pela Corte, o Estado, até a última
supervisão de sentença, cumpriu apenas a medida de publicação da sentença no
diário oficial.
Conclusão
A contextualização histórica nos permite delinear um padrão de violência e
violação de direitos nos países julgados pela Corte. Na Guatemala a situação de
pobreza e falta de perspectiva em que se encontram diversos jovens é resultado de
uma repressão violenta no país desde a década de 1950, os índios maias e negros
sempre foram excluídos da economia e do poder político. A Guatemala sempre foi um
país absurdamente racista e esse racismo aumentou com a repressão à guerrilha
aonde tudo o que era indígena era associado ao comunismo e por isso deveria
desaparecer. Além disso, a guerra destruiu o conceito de família tradicional, a maior
parte das famílias que tiveram a sua vida influenciada pela guerra acabaram
fragmentando-se. Na Guatemala o ciclo de violência e repressão foi intensificado em
1980. As práticas de desaparecimento forçado eram comuns, assim como
assassinatos, estupros e torturas. No curso de duas décadas, ate o término da guerra
em 1996 o Estado havia matado mais de 200.000 pessoas, feito desaparecer 40.000 e
torturado não se sabe quantos mais.
Em Honduras temos o problema da violência infantil, as Maras e as Pandillas e
falta de sensibilidade do governo e da população de lidar com elas. O governo tenta
de maneira ineficaz conter o problema desses grupos, acaba apelando para a
violência e se não incentivando, sendo conivente com a limpeza social proporcionada
por grupos de extermínio.
Por fim em El Salvador, o combate à guerrilha permeava todos os aspectos da
vida dos cidadãos. As práticas de desaparecimento forçado de pessoas pelo exército
salvadorenho eram comuns, nas quais várias crianças assim como adultos
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desapareceram sem deixar nenhum rastro. Ao final do combate entre guerrilha e
Estado, mais de 75 mil pessoas morreram e cerca de 20% da população (cerca de um
milhão de pessoas) abandonaram El Salvador para se refugiarem em outros países.
Quanto a manutenção e expansão desse quadro de violência e de violação aos
direitos mesmo após a instauração de regimes democráticos é pertinente considerar
que isso se explica por conjunto de causas associadas, a saber:
1)Manutenção de uma polícia militarizada e que atua muitas vezes de modo
conivente e/ou associada a grupos paramilitares e de extermínio.
2) Impunidade diante dos crimes cometidos por agentes estatais o que corrobora a
permanência da violência institucional e aumenta a descrença da população nas
instituições.
3) Modificações no plano legislativo interno que embora sigam padrões da
legislação internacional não se desdobram em políticas sociais efetivas para garantir
direitos da criança, especialmente para aquelas em situação de risco.
4) Prevalência de políticas de criminalização da juventude que corroboram e
estimulam a estigmatização social dos jovens pobres que de vítimas para a ser vistos
como criminosos.
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Theissen versus Guatemala. Sentencia de fondo y reparaciones. Disponível
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CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Molina
Theissen versus Guatemala. Supervisión de Cumplimiento de Sentencia.
Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/casos.cfm. Acesso em: 03/04/2014.
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CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Hermanas
Serrano Cruz versus El Salvador. Sentencia de fondo y reparaciones.
Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/casos.cfm. Acesso em: 03/04/2014.
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CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Hermanas
Serrano Cruz versus EL Salvador. Supervisión de Cumplimiento de Sentencia.
Disponível: http://www.corteidh.or.cr/casos.cfm Acesso em: 03/04/2014.
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CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Servellon
Garcia versus Honduras. Sentencia de fondo y reparaciones. Disponível em:
http://www.corteidh.or.cr/casos.cfm. Acesso em: 03/04/2014.
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CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Servellon
Garica versus Honduras. Supervisíon de Cumplimiento de Sentencia.
Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/casos.cfm. Acesso em: 03/04/2014.
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GRANDIN, Greg. A revolução Guatemalteca. São Paulo: Editora UNESP,
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SUE-MONTGOMERY, Tomie. & WADE, Christine. A Revolução Savaldorenha:
Da revolução à reforma. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
Resumo
A violência institucionalizada contra a criança na América Central é recorrente tanto
em períodos ditatoriais quanto em períodos democráticos. Todos os países da região
1939
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
são signatários da Convenção Interamericana de Direitos Humanos que estabelece no
seu artigo 19 os direitos da criança
Questiona-se então, como se constituem os padrões de violação aos direitos da
criança na América Central e como os mesmos se perpetuam extrapolando períodos
ditatoriais.
A metodologia adotada consiste no estudo de três casos de processos de
violação aos direitos da criança ocorridos na Guatemala, Honduras e El Salvador
julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para a análise das questões
propostas são estabelecidos dois tipos de categorias:
a) Categorias externas referentes ao Estado Latino Americano no qual a
violação ocorreu e que incluem: o agente violador, o padrão de violência e o regime
político. Essas categorias são empregadas para verificar se o caso de violação tipifica
um padrão recorrente de violência na história do país.
b) Categorias internas referentes ao processo no âmbito da Corte e que
incluem: as medidas reparatórias firmadas pela corte e o grau de cumprimento das
mesmas pelo Estado.
Palavras chave:violência,criança, CIDH
Abstract
The institutional violence against children in Central America it’s concurrency in
dictatorial periods as for democratic periods. All countries in the region have signed
the American Convention on Human Rights which states in Article 19 rights of the child.
In this paper, we question what are the patterns of violation of children rights in Central
America and how they are how they are perpetuated extrapolating dictatorial periods.
To answer these questions we study three cases of children’s rights violation that
occurred in Guatemala, Honduras and El Salvador judged by the Inter-American Court
of Human Rights. For the analysis of the proposed questions two types of categories
are established:
•
External categories related to the Latin American State which the violation
occurred, and that included the violator agent, the pattern of violence and the
political regime. This category is used to determine whether infringement case
typifies a recurring pattern of violence in the country's history
•
Internal categories relating to proceedings in the Court and which include:
reparations demanded by the court and the degree of compliance therewith by
State
Key Words: violence, child, CIDH
1940
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Prestando Continência: a militarização da Polícia Militar do Estado de
São Paulo (PMESP) e Carabineros de Chile
Alexandre Pereira da Rocha, Universidade de Brasília
1. INTRODUÇÃO
A militarização da Polícia Militar do Estado de São Paulo – PMESP (doravante
PMESP) e Carabineros de Chile tem sido um traço marcante na história dessas
instituições. Em contextos políticos distintos essas polícias oscilaram entre maiores ou
menores graus de militarização. Note-se que a interdependência entre os campos
políticos e policiais na América Latina se expressa nas transições de regimes
autoritários para democráticos, sendo que, nos primeiros, as polícias foram
submetidas a maior instrumentalização, enquanto, nos segundos, por consequência
dos primeiros, delas são exigidas reformas que promovam permeabilidade às
demandas da sociedade civil.
Essas transformações nas polícias decorreram da proeminência que as Forças
Armadas tiveram no campo da política de vários países latino-americanos, o que
ratifica a tese de Kalmanowiecki (1995), para quem o lugar da organização militar no
regime político demarca a extensão do envolvimento da polícia na atividade política. É
notório que, nos regimes autoritários militares brasileiro e chileno (respectivamente
1964-1985 e 1973-1990), as polícias uniformizadas foram hipermilitarizadas, destarte,
sob a democratização, deveria ser quase natural que as reformas policiais operassem
a desmilitarização. Todavia, desmilitarizar é um tema espinhoso, quando apontado à
PMESP e a Carabieneros de Chile.
A presença de períodos autoritários no Brasil e no Chile influenciou no grau de
militarização das PMESP e Carabineros, contudo, a militarização das polícias não é
decorrente apenas desses regimes políticos repressivos. As histórias da PMESP e
Carabineros demostram que essas forças policiais foram constituídas como corpos
militares desde suas origens. Tem que, por volta do século XIX e meados do XX, o
ideal de militarização foi o meio de controle das polícias e da sociedade, pois ele
equivalia à civilidade, modernidade, patriotismo, disciplinamento. Com efeito, o
militarismo nas polícias foi sendo racionalizado, não somente como ferramenta de
enfrentamento da delinquência e dos distúrbios civis, mas também como máquina
política de imposição da lei e da ordem. Com os anos, esse maquinário ganhou corpo
e consciência próprios e, por conseguinte, o militarismo se tornou a razão de ser da
PMESP e de Carabineros (ROCHA, 2013, 93).
Com essas considerações, este artigo aborda como PMESP e Carabineros
permanecem militarizadas, mesmo após a redemocratização no Brasil e no Chile e
dos contrassensos que modelo militar de polícia tem gerado à segurança pública
desses países. Numa primeira parte, analisa-se as defesas das instituições PMESP e
1941
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Carabineros para se preservarem como instituições militares. Na segunda parte,
discute-se empecilhos a reformas na PMESP e Carabineros, sobretudo no que se
refere à desmilitarização dessas polícias.
2. PMESP E CARABINEROS: PRESTANDO CONTINÊNCIA
O que representa a militarização para PMESP e Carabineros de Chile
atualmente? Se essas organizações têm se afastado do campo militar a partir da
democratização, em que se fundamenta a militarização delas? Como elas se avaliam
enquanto estruturas militares?
Examinar esses questionamentos é necessário para compreender os motivos
da continuidade da militarização, mesmo em cenários que apontam para uma crise da
identidade militar das polícias. Isso ocorre porque o isoformismo militar das polícias do
tipo gendârmicas brasileira e chilena não é um traço isolado a certos momentos
históricos, mas é o próprio habitus delas. Em outras palavras, a estética ou caráter
militar na PMESP e em Carabineros não é maquilagem ou adorno, é a razão delas
serem. De acordo com Bourdieu (2006), o estético se aprofunda com o tempo e a
vivência, passando, portanto, a ser o próprio fim. Assim:
A estética pura enraíza-se em uma ética ou, melhor ainda, no ethos do
distanciamento eletivo às necessidades do mundo natural e social que pode
assumir a forma de um agnosticismo moral (visível quando a transgressão
ética se torna um expediente artístico) ou de um estetismo que, ao constituir
a disposição estética como princípio de aplicação universal, leva ao limite a
denegação burguesa do mundo social. Compreende-se que o
desprendimento do olhar puro não possa ser dissociado de uma disposição
geral em relação ao mundo que é o produto paradoxal do condicionamento
exercido por necessidades econômicas negativas – o que é designado
como facilidades – e, por isso mesma, propício a favorecer a distanciamento
ativo a necessidade (BOURDIEU, 2006:13).
Bourdieu (2006) explica que a estética de diferentes classes, grupos e
organizações sociais não é uma excepcionalidade que individualiza, mas sim a própria
razão de ser e o que define a dimensão ética. Assim, por exemplo, o “prestar
continência”, uma das manifestações estéticas mais notórias entre militares, para
PMESP e Carabineros, não é resquício de um passado autoritário, quando as polícias
eram instrumentalizadas pelas Forças Armadas, caudilhos ou governantes de ares
castrenses. É um habitus histórico e rotinizado vigorosamente, o qual encontra
justificativas em códigos, normas, valores e culturas, enfim, é uma ética particular.
Na PMESP, o ritual da continência está inscrito no decreto nº 91.652, de 1985,
e especificado pelo RDPMESP e outras normas internas. Em Carabineros, o
reglamento nº 30, de 1972, e em outras normas internas. No geral, essas
1942
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
normatizações tratam de saudações, cerimonias, protocolos que ressaltam os
princípios da hierarquia e disciplina.
As instituições PMESP e Carabineros são orgulhosas do seu perfil militarizado,
ornado desde seus primeiros anos de formação. É claro que, no meio policial,
principalmente entre os agentes que estão na ponta, existem insatisfações quanto ao
excessivo rito militar, que promove discriminação entre policiais subalternos e oficiais.
Não obstante, no conjunto das instituições, há uma valorização do militarismo,
independente de o mesmo acarretar situações paradoxais em termos organizacionais,
estratégicos e culturais. Em linhas gerais, o dilema de ser uma estrutura militarizada
internamente e ter de lidar frequentemente em condições civis, tem colocado os
policiais-militares ambiguamente entre a ordem militar e a função policial. Contudo, até
que ponto esse é um problema para PMESP e Carabineros?
O modelo militar da PMESP é definido por normas constitucionais e legislações
específicas. A Constituição de 1988 manteve a estrutura das polícias de constituições
anteriores. Nesse texto, no Capítulo III, referente à “Segurança Pública”, art. 144,
parágrafo 5º, é dito que, às polícias militares, cabem o papel de policiamento ostensivo
e a preservação da ordem pública. Já o parágrafo 6º estabelece que elas são forças
auxiliares e reserva do Exército, subordinando-se, juntamente com as polícias civis,
aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. A art. 42 expõe
claramente que os membros das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiro Militares
pertencem a instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina.
A art. 22, referente às competências do governo federal, isso é, da União,
informa, no inciso XXI, que cabe à União legislar privativamente no estabelecimento
de normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e
mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares.
Além do texto da Carta Política de 1988, a PMESP está submetida
expressamente às seguintes normas: Constituição do Estadual de São Paulo; Decreto
Federal nº 88.777, de 30 de setembro de 1983, que estabelece o regulamento para as
Polícias Militares e Bombeiros Militares (R-200); Decreto-lei Estadual n.º 217, de
08/04/1970, que constitui a Polícia Militar do Estado de São Paulo, integrada por
elementos da Força Pública do Estado e da Guarda Civil de São Paulo; Lei Orgânica
da Polícia do Estado de São Paulo (Lei Complementar Estadual n.º 207, de
05/01/1979); Lei Complementar Estadual n.º 893, de 09/03/2001, que institui o
Regulamento Disciplinar da Polícia Militar; Lei Estadual n.º 616, de 17/12/1974, que
dispõe sobre a estrutura, competência, deveres e direitos da polícia militar; Decreto
1943
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Estadual n.º 44.447, de 24/11/1999, que dispõe sobre a estruturação da Polícia Militar
do Estado de São Paulo; Decreto nº 91.652, 16 de setembro de 1985, que considera
que, em virtude de as Polícias Militares serem consideradas Forças Auxiliares,
reservas do Exército e que, por tradicionalmente adotarem normas semelhantes às
Forças Armadas, devem seguir as mesmas prescrições militares no que diz respeito a
continências, honras, sinais de respeito e cerimonial.
No Chile, o ordenamento de Carabineros é menos complexo do que a PMESP,
porque se trata de uma organização submetida exclusivamente às legislações
nacionais. Não obstante, o militarismo está mais enraizado, visto que encontra
justificativas históricas e culturais delineadoras do próprio povo chileno. Legalmente, o
modelo militar está inscrito na Carta Política de 1980, que, no art. 101, discrimina os
papéis das “Forças Armadas e das instituições policiais”.
Entretanto, à época da edição daquela Constituição, as forças policiais
estavam vinculadas administrativamente ao Ministério da Defesa, fato que mudou em
2011. O inciso segundo da Constituição estabelece que Carabineros está inserido no
rol das “Forças Armadas, Forças de Ordem e Segurança Pública. Trata-se de uma
organização armada essencialmente obediente e não deliberantes, sendo uma
estrutura profissional, hierárquica e disciplinada.
A Lei Orgânica de Carabineros de 1990 reforçou o modelo militar desenhado
na Constituição de 1980, como está explícito no art. 1º: “Os Carabineiros do Chile são
uma instituição policial técnica e militar, que integra a força pública e existe para dar
eficácia ao direito; sua finalidade é garantir e manter a ordem e a segurança pública
interna em todo o território da República e cumprir as demais funções dispostas na
Constituição e demais leis. Além disso, se integrará com as Forças Armadas na
missão de garantir a ordem institucional da República.”
Além disso, há o Estatuto del Personal de Carabineros, configurado pelo
decreto com força de lei nº 2, de 1968 (em vigor, mas reformado por legislações
posteriores); o Código de Justiça Militar, a qual estão submetidos os integrantes de
Carabineros em quaisquer situações consideradas como crimes militares; Reglamento
nº 1, de 1995, que trata da organização de Carabineros.
Os conjuntos dessas normas, aos quais se submetem a PMESP e Carabineros
de Chile, consolidam um modelo policial-militar, que, apesar das críticas, permanece
com poucas alterações. No geral, essas normas têm garantido às forças policiais
militarizadas uma relativa autonomia, visto que o caráter especial das legislações
confere prerrogativas diferenciadas quanto às formas de organização, controle e
1944
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
comportamento. Essas normas significam a materialização ou racionalização do
habitus militar, evocado pela PMESP e Carabineros desde sua fase formativa no início
do século XIX. Em suma, a estrutura normativa trata da estética e do caráter militar,
que PMESP e Carabineros não apenas reconhecem ter, mas que defendem frente aos
movimentos reformistas.
Além do aparato normativo, há toda uma cultura, repassada por meio das
escolas, das literaturas, dos canais de comunicação institucional e dos ritos formais e
informais no âmbito das polícias que amalgamam o modelo militar na PMESP e
Carabineros.
Especificamente na literatura produzida pelos próprios policiais, obtive acesso
a duas obras que são consideradas pelas organizações como basilares para
compreensão do motivo do modelo policial-militar. Elas foram indicadas por oficiais
das corporações, como sendo referências na discussão sobre a estética ou caráter
militar das polícias.
Na PMESP, destaca-se a monografia “Estética Militar e Instituições Policiais
(1997)”, do ex-comandante da corporação, coronel Carlos Alberto de Camargo. Em
Carabineros, ressalta-se o artigo científico “El Carácter Militar en la Evolución Jurídica
de Carabineros de Chile (2011)”, do major de Carabineros, Daniel Soto Muñoz. Ambos
os autores são oficiais que desenvolvem atividades acadêmicas nas instituições
policiais e fora delas, sendo que os trabalhos deles supramencionados intentam, por
meio do conhecimento científico, justificar o modelo militar nas polícias. Ou seja, eles
buscam tratar com objetividade o militarismo nas polícias, o que permite examinar os
limites e as possibilidades da desmilitarização.
Na PMESP e Carabineros, o binômio hierarquia e disciplina é tratado como
estrutura estruturante das organizações policiais. Além disso, ele faz com que as
polícias se alinhem ao conjunto de normas do Estado, que prescreve hierarquia e
disciplina com sinônimo de burocratização, racionalização e eficiência. Nesse aspecto,
o modelo militar, no contexto formativo do Estado moderno weberiano, simboliza um
tipo ideal de administração, no qual os serviços se realizam em concordância com
rigorosos deveres e direitos (BENDIX, 1977; MALISKA, 2006:19). Dessa forma, como
apresenta Rouquié (1984), o setor militar do Estado moderno é equivalente à
modernização, na medida em que os exércitos se manifestam como corpos altamente
burocráticos. As polícias militarizadas bebem dessa fonte, pois a militarização oferece
uma lição exemplar de disciplina, de camaradagem, de patriotismo, de hierarquia e de
respeito (ROUQUIÉ, 1984:127).
1945
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Na página pública e institucional da PMESP, assim se descreve a organização:
A Polícia Militar é hoje uma Organização fardada, organizada militarmente,
subordinada ao Governador do Estado, através da Secretaria da Segurança
Pública e do Comando Geral da Corporação, e que presta seus serviços
dentro do rigoroso cumprimento do dever legal. Por ser um corpo militar,
dispõe de meios e ferramentas para coibir excesso no seio da tropa, fatos
esses a que nenhuma organização está imune, mas que, dada a reação
draconiana aplicada aos infratores, inibe e desestimula atitudes antissociais.
A maior prova disso é a correta apresentação das estatísticas pela
Corporação, incluindo os desvios de seu pessoal e as punições sofridas
pelos maus [...] Contando com o imprescindível apoio das autoridades
constituídas, a quem sempre serviu e servirá impessoalmente, a Polícia
Militar do Estado de São Paulo pretende continuar sendo mais um dos
pilares da grandeza de São Paulo e do Brasil, fiel ao lema que ostenta em
1
seu brasão: lealdade e constância! (grifo do autor)
Nessa descrição, a organização militar é ressaltada por privilegiar o
cumprimento ao dever legal, a impessoalidade e o controle dos policiais. Nesse
sentido, o coronel Camargo da PMESP salienta que, desde a criação das milícias
estaduais no século XIX, tem sido discutida a natureza militar das organizações
policiais brasileiras. Segundo ele, essa discussão tem assumido um caráter
maniqueísta, no qual se coloca a formação militar em contraste com a formação
policial, por se reconhecer na primeira, não somente os aspectos de uma estética
militar, como também de uma cultura voltada para a preparação técnica e psicológica
do soldado para a guerra (CARMARGO, 1997:03).
Contudo, segundo o autor, não há incompatibilidade entre a formação militar e
policial. Aliás, a primeira é essencial para segunda. Tem-se que a estética militar significada como o conjunto de estímulos externos que reforça no homem a aceitação
de valores positivos, dentre os quais, a sua entrega incondicional à causa pública, o
respeito à hierarquia e à disciplina - é necessária às instituições policiais
(CARMARGO, 1997:03).
Por sua vez, na página pública e institucional de Carabineros, a corporação se
rotula como:
La Constitución Política de la República de Chile, establece
que Carabineros de Chile existe para dar eficacia al derecho, garantizar el
orden público y la seguridad pública interior, en todo el territorio de la
República. El dar eficacia al derecho, implica desarrollar funciones policiales
que permitan por un lado, darle realidad tangible al ordenamiento jurídico,
por la vía de fiscalizar el cumplimiento de leyes y reglamentos entregados a
su responsabilidad, y por otro, cumpliendo además, los mandatos judiciales
y del Ministerio Público en el trabajo de investigación, orientado al
esclarecimiento del hecho punible y determinación de los responsables. El
garantizar el orden público, exige de Carabineros desarrollar y focalizar sus
1
História institucional da PMESP. Disponível em: <http://www.policiamilitar.sp.gov.br/inicial.asp>.
Acessado em 07 de abril de 2013.
1946
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
esfuerzos en velar por el respeto a las normas de convivencia y contribuir a
que exista armonía en el desarrollo de las actividades del grupo social. […].
En la tarea de garantizar la seguridad pública, subyace una noción de
asegurar la tranquilidad y paz social que requieren los ciudadanos y el
2
propio Estado, para el ejercicio de sus derechos, deberes y funciones. […]
(grifo do autor)
Carabineros enfatiza seu papel constitucional de dar eficácia ao direito, garantir
a ordem e segurança pública. Para alcançar tal finalidade, o viés militar da polícia foi
uma decisão política tomada em um período histórico, que não contradiz a função
policial. O major Muñoz de Carabineros afirma que, do ponto de vista político, a
decisão de qualificar um organismo como “militar” é estritamente discricional por parte
do Estado.
O militar vai além das externalidades e se configura por um vínculo, condição
ou estatuto jurídico que cria o Estado e que estabelece direitos e obrigações para um
tipo de funcionário público, que está adstrito a certa organização. Nesse processo,
Carabineros se define legalmente como “uma instituição policial técnica e de caráter
militar”, a qual tem uma dupla natureza: militar e policial. Ambas determinam a
identidade de Carabineros e são a base jurídica de sua organização e funcionamento
(MUÑOZ, 2010:101-102).
A partir do ordenamento jurídico, nota-se que a noção de “caráter militar” se
refere tanto à natureza organizacional de Carabineros, como ao estatuto jurídico do
seu pessoal. De uma perspectiva jurídica, o “caráter militar” não é um matiz de “o
militar”, mas que ambos são termos idênticos (MUÑOZ, 2010:131). Para autor,
portanto, o caráter militar de Carabineros se impõe em equivalência à natureza militar
das Forças Armadas, sendo que a distinção está na função policial designada à polícia
uniformizada.
O coronel Camargo da PMESP, na defesa da estética militar para as polícias,
estabelece cinco argumentos: i) hierarquia e disciplina são indispensáveis para
administração pública; ii) hierarquia e disciplina são necessárias para controlar a tropa;
iii) estética militar não se confunde com cultura bélica; iv) estética militar é necessária
para internalização dos valores da disciplina e da hierarquia; v) estética militar nas
instituições policiais é fator de garantia do respeito aos direitos dos cidadãos
(CARMARGO, 1997: 04). Com esses argumentos, nota-se que o modelo militar
configura a organização, o controle e o comportamento das polícias fardadas.
Página institucional de Carabineros – Misión y Visión. Disponível em: <http://www.carabineros.cl/#>
Acessado em 07 de abril de 2013.
2
1947
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
A estética ou caráter militar situa-se não como apetrecho, mas como a gênese
da polícia militarizada, ou seja, a estética torna-se a ética. Além dos mais, a estética
militar é distinta da propriamente militar operada pelas Forças Armadas. O campo
policial-militar é delineado por uma estética e ética, enfim, habitus particular, que,
embora análogo ao campo das Forças Armadas, é autônomo e distinto.
Compreender o significado da estética para PMESP é condição para se chegar
à sua ética. O conceito dado por Camargo (1997) à estética policial é simplesmente
um conjunto de estímulos destinados a internalizar no militar uma ética especial. A
estética manifesta-se por meio do cerimonial militar, de gestos, de atitudes, de todo o
comportamento que materialize a obediência (seja às ordens dos superiores ou do
ordenamento jurídico do Estado) e da disposição incondicional de cumprir o dever.
Assim, engloba valores, como patriotismo, civismo, profissionalismo, lealdade, honra,
coragem, hierarquia e disciplina. Diante disso, a estética militar, muito mais do que
responsável pela boa apresentação da tropa e dos militares individualmente, é
geradora de uma psicologia individual (CAMARGO, 1997:13).
Segundo Camargo (1997), o militarismo na polícia encontra uma justificativa
cultural. O autor classifica que geralmente o povo brasileiro tem um caráter
indisciplinado e individualista, o qual tende a acatar as normas de convívio sob algum
tipo de coerção. Nesse cenário, a vida em sociedade, ou seja, comunitária, somente é
possível por meio de esforços e incentivos endógenos, os quais as polícias militares
são adequadas para realizar.
A sociedade brasileira, portanto, careceria de um espírito de vida coletivo, cuja
consequência é a prática de transgressões, busca de vantagens e sucesso a qualquer
preço, com desrespeitos às normas de convivência, atitudes que podem fomentar a
anarquia,
a
violência
e
predispor
ao
crime.
Contra
essas
características
desagregadoras e indisciplinadas do povo brasileiro, é que se firma o militarismo ou a
estética militar.
Esse entendimento reverbera com o defendido por Olavo Bilac, em “Defesa
Nacional”, para quem a militarização dos cidadãos, o serviço militar obrigatório no
início do século XIX, seria uma forma de infundir nos brasileiros disciplina, dignidade,
patriotismo, civismo, higiene, em suma, o militarismo serviria para elevar o nível moral
dos brasileiros3. Esses conceitos, sujeitos a interpretações distintas, são praticamente
reproduzidos no Regulamento Disciplinar da PMESP, art. 7º, que trata dos valores
essenciais dos policiais militares, a saber, patriotismo, civismo, hierarquia, disciplina,
3
Confira: CAMARGO, Elizabeth de Almeida Silvares Pompêo de. A poesia do corpo: a defesa de uma
moral austera. Educ. Soc. [online]. 2006, vol.27, n.94 [cited 2013-04-07], pp. 13-46.
1948
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profissionalismo, lealdade, constância, verdade real, honra, dignidade humana,
honestidade, coragem.
Rosemberg (2010) nota que essa tendência de distinção moral da força policial
de São Paulo está presente desde sua fase formativa, sendo que o policial militar,
símbolo da presença do Estado, deveria se postar como agente de uma ordem ideal,
lançado para apaziguar o ambiente da desordem, isso é, para civilizar. Portanto, a
ética policial não somente forma o bom policial, mas representa o cidadão modelo por
ter incorporado valores necessários à civilidade.
O indivíduo que se torna policial militar, por ser procedente de uma sociedade
na qual prevalece um padrão de comportamento individualista e rotineiramente
indisciplinado, traz os vícios dessa sociedade. Para tanto, ele deve passar pela
lapidação militar, pois:
Os integrantes das polícias fardadas estaduais passam a fazer parte de
organizações que têm como função básica disciplinar as relações sociais na
comunidade, investidos do poder de polícia que, quando não exercido
discricionariamente dentro dos limites legais, quando utilizado com abuso
(excesso ou desvio) pode-se tornar instrumento de agressão aos direitos
inalienáveis dos indivíduos. O mal causado pode ser muito grande, se
consideramos que as polícias fardadas constituem forças públicas armadas,
com considerável poder ofensivo. Elas, portanto, devem ser extremamente
disciplinadas (CAMARGO, 1997:33).
O policial militar tem um destino diferente do soldado das Forças Armadas.
Camargo (1997) salienta que, embora ambos sejam forjados sob as doutrinas
militares, ao primeiro, são atribuídas técnicas, habilidades e preparo psicológico para
enfrentar o perigo na preservação da ordem e saber agir em comunidade; ao segundo,
a finalidade é a guerra e a sua instrução visa prepará-lo psicologicamente para o
combate com o inimigo.
Diferentemente do soldado militar, o policial militar tem de se relacionar com a
sociedade que policia, logo ele deve estabelecer uma relação de confiança e respeito
com os cidadãos (CAMARGO, 1997:30). A estética militar da polícia, portanto,
descola-se da exclusivamente militar. O coronel Camargo defende uma lógica
diferenciada para o policial militar, o que lança questionamentos sobre o fosso entre o
ethos policial e o militar (BRODEUR, 2004; CHEVIGNY, 2000; COSTA, 2004;
FAIRCHILD, 1984; DAMMERT e BAILEY, 2007). O policial militar e a polícia do tipo
gendârmica teriam um ethos policial, posto que fossem analogamente militar. Assim, a
estética ou caráter militar das polícias não é orientada para uma cultura bélica
(CAMARGO, 1997:50; MUNÕZ, 2011).
1949
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Além das justificativas culturais, o coronel Camargo traz razões práticas que
abonam a adoção da estética militar nas polícias uniformizadas, sendo elas: a) grande
extensão do território brasileiro; b) necessidade de representar a autoridade do
Estado; c) integração nacional, pois as polícias militares estaduais são vistas com uma
unidade; d) controle de grandes efetivos; e) garantia contra a corrupção e violência; f)
estrutura apta para emprego em caso de crises; g) modelo de órgão de administração
pública; h) responsabilidade na segurança interna e na defesa territorial (CAMARGO,
1997:37-38).
O estabelecimento de razões indica que a estética militar está inserida no
âmbito da racionalização do policiamento, que, em virtude das características do
Estado brasileiro, exige o militarismo nas polícias fardadas como condição de realizar
com eficácia o monopólio legítimo da violência. Ademais, de maneira alguma, o
militarismo na polícia é encarado como anacronismo ou atraso institucional, ao
contrário, ele é qualificado como elemento de integração e modernização das polícias
brasileiras.
A estética militar na PMESP é reforçada, sobremodo pela validação do
Regulamento Disciplinar da corporação (RDPMESP ou Lei nº 893 de 2001), que, no
art. 1º, firma a hierarquia e a disciplina como bases da organização policial militar.
Essa norma se estabelece como código de deontologia, que, grosso modo, refere-se à
ideia de controlar as atividades de determinadas profissões por meio da autoimposição
de deveres, sendo que, voltados às polícias, os códigos de deontologia estabelecem
as regras e as obrigações essenciais ao trabalho dos policiais, inscrevendo-se em um
quadro jurídico de referência, que define com precisão a natureza das modalidades da
ação policial (COSTA e PORTO, 2011).
O RDPMESP prescreve que a deontologia policial-militar é constituída pelos
valores e deveres éticos, traduzidos em normas de conduta, que se impõem para que
o exercício da profissão policial-militar atinja plenamente os ideais de realização do
bem comum, mediante a preservação da ordem pública. Isso demonstra que os
mecanismos de coerção internos, ou seja, os deveres preestabelecidos giram em
torno da ética militar, a qual pretende que, por meio dos valores policiais-militares
(patriotismo, civismo, hierarquia, disciplina, profissionalismo, lealdade, constância,
verdade real, honra, dignidade humana, honestidade, coragem), realize-se a atividade
profissional com retidão moral4.
4
Conferir Artigos 6º, 7º e 8º do RDPMESP.
1950
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
A defesa do coronel Camargo sobre a estética militar das polícias não é
particularidade da PMESP, mas traço extensivo às demais polícias militares estaduais
no Brasil. De maneira semelhante ao coronel Camargo, por exemplo, posiciona-se o
coronel Laercio Giovani Macambira Marques, da Polícia Militar do Ceará. Segundo ele,
a estética militar é uma ferramenta que objetiva facilitar a manutenção de uma
hierarquia e de uma disciplina rígidas, as quais são fundamentos essenciais para o
exercício do comando de corporações ostensivas, armadas e com poder/dever de
constranger outrem até o limite legal e legítimo de matar em defesa do cidadão ou
para garantir o pleno funcionamento dos poderes constituídos.
Nesse sentido, o tratamento da segurança pública é função quase exclusiva
das polícias militares, porquanto a preservação da ordem pública e a defesa do
cidadão e do patrimônio, em parceria com a sociedade, é a principal missão
institucional dessas polícias na ordem constitucional de 1988, em detrimento da
doutrina de guerra do período anterior. Assim, para o coronel Macambira, firma na
expressão “polícia militar” o termo militar é secundário e auxiliar do termo principal –
polícia – e não o contrário5.
Os veículos de comunicação internos e externos de Carabineros contribuem
para reforçar a imagem institucional da corporação. Nesse sentido, situa-se o artigo já
mencionado do major Muñoz, publicado pela revista Académica de Carabineros de
Chile. O autor revisa a história da instituição em duas fases, uma imediatamente
anterior à fundação de Carabineros, em 1927, e outra no transcorrer do
desenvolvimento da instituição.
Nas duas fases, ele destaca a natureza militar e a função policial, através das
legislações de cada época. Na segunda fase, isso é, a partir de 1927, ele distingue
três etapas: a) instrução militar (1927-1960); b) instrução policial e caráter militar
(1960-1975); e c) instrução policial técnica e caráter militar (1975-1990). Com isso, o
estudo de diversas normas orgânicas de Carabineros permite elucidar como a
instituição evoluiu conjuntamente com as mudanças jurídicas e políticas do país
(MUÑOZ, 2010:102). Observa-se que Carabineros surgiu como estrutura militar e
posteriormente foi sendo desenvolvida a função policial, portanto, o caráter militar está
intrínseco à instituição e não colide com o exercício policial.
O major Munõz de Carabineros, da mesma forma que o coronel Camargo da
PMESP, defende que as dúvidas sobre o caráter militar da corporação decorrem de
entendimentos enviesados e noções inexatas. Ele apresenta argumentos contrários
5
A Controversa Desmilitarização das Polícias. Viva Rio, 05/10/2009. Entrevista. Disponível em:
<http://www.comunidadesegura.org/pt-br/node/43209/73272> Acessado em 11 de abril de 2013.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
aos que alegam incongruência no caráter militar de Carabineros. Assim, tem-se
entendido que a palavra “caráter” denotaria um matiz do “militar”, de modo que se
trataria de acepções distintas. Entende-se também que qualificação militar estaria
conferida pelo Código de Justiça Militar e que, consequentemente, bastaria modificar
esse código para eliminar o caráter militar de Carabineros. Por fim, defende-se que o
militar se referia unicamente ao campo da defesa, então, a justificação militar de
Carabineros estaria vinculada à sua dependência ministerial, o que a formação militar
conferiria a Carabineros certa atitude de combate bélico (MUÑOZ, 2010:102).
Os argumentos do major Muñoz são interessantes, porque alegam que não é a
simples retirada das polícias militarizadas do campo das Forças Armadas que
transmudará o caráter militar delas. Comparado à PMESP, Carabineros tem retardado
o desvencilhamento do campo da defesa, pois ainda se submete integralmente à
Justiça Militar e, apenas em 2011, deixou de se reportar ao Ministério da Defesa.
Por sua vez, a situação da PMESP serve para comprovar que, mesmo
ocorrendo um distanciamento das polícias militares do campo das Forças Armadas, a
estética militar permanece. No Brasil, apesar de o exército ter capacidade de
ingerências legais nas polícias uniformizadas, na prática, isso pouco ocorre. Ademais,
os polícias militares não mais estão submetidos integralmente à Justiça Militar, pois,
por exemplo, policiais envolvidos em crimes dolosos contra a vida de civis são
julgados pela justiça comum6. Nada obstante, a analogia militar, sobretudo em termos
organizacionais, não decaiu. Ou seja, não é necessariamente a proximidade das
Forças Armadas das polícias uniformizadas que as tornam militarizadas.
Segundo Muñoz (2010), conferir caráter militar a Carabieneros foi uma opção
discricionária do Estado. Desse modo, a organização militar é um tipo de instituição
vinculada ao monopólio da força estatal. A corporação é identificada facilmente por
sua estrutura hierárquica e por seus uniformes. Suas principais características são a
ordem constitucional e legal, sendo que se associam a um tipo de organização, que
está dotada de um sistema de comando que impõe deveres ao serviço (MUNÕZ,
2010:102).
Nesse aspecto, a Constituição de 1980 assinalou igual natureza jurídica militar
às Forças Armadas e Carabineros, ao estabelecer que “as Forças Armadas e
Carabineros, como corpos armados, são essencialmente obedientes e não
deliberantes”. Dessarte, o caráter militar implica que Carabineros está organizado
sobre princípios e valores castrenses. Os valores mais importantes, associados à
6
Lei nº 9.299, de 07 de agosto de 1996. Altera dispositivos do Código Penal Militar e de Processo Penal
Militar.
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disciplina militar, são a hierarquia, a disciplina, a obediência e a coesão orgânica.
Esses são “bens jurídicos” e são protegidos pelo regime disciplinar e pela sanção
penal (MUNÕZ, 2010:107). O próprio autor aclara a relevância do caráter militar de
Carabineros, ao classificá-lo como um “bem jurídico”, visto que corresponde a um bem
vital à comunidade ou ao indivíduo, que por sua significação social é protegido
juridicamente.
A natureza militar de Carabineros não significa nenhuma ingerência das Forças
Armadas na corporação policial, pois a Constituição de 1980 e a Lei Orgânica de
Carabineros descartam qualquer intervenção na polícia uniformizada pelos órgãos da
Defesa. Nesse contexto, Muñoz (2010:127) explica que Carabineros tem uma missão
específica, delimitada constitucionalmente. A função policial deve cumprir-se de
caráter exclusivo e excludente em todo o território da República, além de maneira
invariável no tempo, mesmo em situações de “exceção constitucional” (guerra interna
ou grave comoção interior, guerra externa, grave alteração da ordem pública,
calamidade pública).
O caráter militar de Carabineros, portanto, está paralelo ao das Forças
Armadas e não é a ele vinculado ou submetido. Para o major Muñoz, o ato de criação
de Carabineros, em 1927, selou a identidade militar e policial da instituição: instituição
de caráter militar, que está a cargo em todo o território da República, da manutenção
da segurança e da ordem pública, da vigilância, do cumprimento das leis (MUNÕZ,
2010:130).
No processo democrático, uma das críticas mais contundentes dirigidas a
Carabineros é sua vinculação à Justiça Militar, pelo fato de esta lhe conferir um juizado
especial em diversos tipos de crimes. O carabinero, ou seja, o agente policial,
independente da graduação na corporação, é considerado como um típico militar pelo
ordenamento jurídico chileno. Por conta disso, não há contradição legal entre a função
policial de Carabineros e sua submissão ao juizado militar. A vinculação de
Carabineros à jurisdição penal militar é consequência de sua natureza militar.
O direito penal surge da necessidade de resguardar a identidade militar dos
corpos castrenses. Dessa maneira, o direito penal militar é um efeito, não uma causa.
Dessarte, Carabineros não é uma instituição militar, porque está estabelecido no
Código de Justiça Militar, mas o “foro militar” existe para garantir a disciplina militar
dentro de Carabineros (MUÑOZ, 2010:131). Esse entendimento de Carabineros impõe
limites à desmilitarização como medida de reforma da organização, afinal, a natureza
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militar de polícia uniformizada é um fenômeno conato, que pode ser alterado somente
pela via de reformas constitucionais. Como observa o major Muñoz:
Es importante destacar que este “carácter militar”, inalterable a lo largo del
tiempo en las normas orgánicas de Carabineros, no sólo ha sido una
propiedad conferida por la ley, sino que se ha afirmado en las definiciones
constitucionales de 1833, 1925 y 1980. El fundamento constitucional del
“carácter militar” de Carabineros es su naturaliza de un “cuerpo armada” y
su estructura de “fuerza de aire, mar y tierra”. El “carácter militar” de
Carabineros, en consecuencia, no podría modificarse legalmente sino sólo
en virtud de una reforma constitucional. Este “carácter militar” no ha tenido
una relación unívoca con la función de defensa. La posibilidad de
participación conjunta de Carabineros con las Fuerzas Armadas ha pasado
por diversas posibilidades, que han sido coincidentes con la situación
política y constitucional de las diversas épocas (MUÑOZ, 2010:132-133).
A explicação para o caráter militar de Carabineros, realizada pelo major Muñoz,
encontra esteio na Manual de Doctrina de Carabineros, que estabelece os valores
éticos da instituição e se firma como um código de deontologia. Segundo esse manual,
o caráter militar de Carabineros está lúcido em sua organização interna e estrutura
hierárquica, as quais são formadas por escalões e graduações militares, que, em
conjunto com a doutrina, demarcam princípios, valores e férrea disciplina que
distinguem profissionalmente Carabineros.7
Nesse caso, a dimensão ética é corolário do caráter militar, o que abaliza os
campos do controle, da organização e do comportamento de cada membro de
Carabineros. Conforme o manual, o caráter militar de Carabineros é uma engenharia
interna da organização, que lhe diferencia e lhe concede condições de atingir seus fins
com eficiência:
Carabineros de Chile tiene un marcado carácter militar y se estima que ello
es un componente esencial para suficiencia , ya que implica funcionar
mediante una jerarquía de mando que unifica criterios y procedimientos – lo
que impide apartarse del logro de los objetivos orientados al bien común – y
mantener una severa disciplina, con prescindencia absoluta de actividades
políticas o gremiales. […] En este sentido, tenemos que entender entonces
que el carácter militar tiene un efecto de orden interno; es decir, en el
funcionamiento de la Institución como sistema. Pero este carácter militar no
es extensivo en una dimensión externa a su relación con la comunidad, ya
8
que en este caso el carácter que prevalece es el ‘policial’ .
O Manual de Doctrina de Carabineros considera que a doutrina é um conjunto
orgânico de princípios, valores, crenças e ideias basilares, que permitem caracterizar a
conduta de um grupo de pessoas, como um selo particular que as distingue das
demais, constituindo essas em condicionantes como um guia de ação para orientar o
7
8
Manual de Doctrina de Carabineros de Chile, 2010, p. 66.
Idem, p. 79.
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pensamento, as palavras e a ações9. Assim, “os Carabineros não podem prescindir de
uma reflexão ética ao atuar. A responsabilidade ética e social de nossa missão
institucional é o motor de desenvolvimento integral de Carabineros, pois é o que nos
leva a nos preocuparmos não apenas na instrução, aprimoramento e especialização
profissional, mas também a nos interessar por nossa formação em valores”10.
A devoção estrita à doutrina visa formar cidadãos-modelos, que, por estarem
atuando nas ruas, sejam símbolos de uma nação ordeira, pois, segundo manual
repassado aos carabineros, “a formação não é apenas porque nos educarmos como
especialistas na resolução técnica dos desafios profissionais, contudo também como
indivíduos que aspiramos àquilo que é bom, justo, correto”11. Nesse sentido, são
estabelecidos os valores institucionais de Carabineros: vocação ao serviço pública;
patriotismo; honra; constância; espírito de sacrifício; espírito de justiça; lealdade;
versatilidade; tradição; e companheirismo.
Dos argumentos do coronel Camargo da PMESP e do major Muñoz de
Carabineros, aos ordenamentos jurídicos e códigos de ética ou regimes disciplinares,
a estética ou caráter militar é defendido pelas polícias uniformizadas em questão. Para
os autores supracitados, não há incompatibilidade entre o habitus militar das polícias e
o exercício da função policial, pois o militarismo nas polícias está concentrado no
âmbito da organização e não da estratégia.
Na prestação do serviço público, ou seja, nas relações com a sociedade, as
polícias uniformizadas são exclusivamente “polícia” e não estruturas militares,
portanto, defendem que não há um confronto de um ethos militar versus um ethos
policial. A comparação entre PMESP e Carabineros demonstra que essas
organizações julgam não deixar de serem polícias pelo fato de serem revestidas de
uma natureza militar. Ademais, elas defendem que passaram por processos
diferenciados de estruturação, especialização e profissionalização, os quais deram
origem à polícia militarizada ou gendârmica.
A militarização nas polícias brasileira e chilena é um fenômeno ambíguo, pois,
apesar de caudatário das transformações do campo político, ocorre independente
delas. Nesse caso, PMESP e Carabineros escrevem suas histórias não circunscritas
às vicissitudes políticas, mas em uma marcha pari passu ao desenvolvimento dos
Estados, que elas arguem estarem sempre dispostas ao serviço da lei e da ordem. Por
conta disso, a PMESP se considera como uma instituição militar, cujas origens datam
9
Idem, p.19.
Idem, p.14.
11
Idem, p. 16.
10
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do ano de 1831, enquanto Carabineros alega que sua condição militar tem sido
inalterável desde a Constituição de 1833.
Isso quer dizer também que o perfil militar das organizações policiais não está
adstrito ao das Forças Armadas, mas está em equivalência ou paralelo. Com efeito, o
subcampo policial militar é assente no Brasil e no Chile e o que ele propõe a esses
países é: polícias militarizadas agem prestando continência ao Estado democrático de
direito, logo são legítimas e qualificadas para atuar na segurança pública. Reconhecer
esse subcampo é oportuno para se entender os revesses da desmilitarização na
PMESP e Carabineros.
3. REFORMAS NAS POLÍCIAS: DESMILITARIZAR É PRECISO?
O debate da reforma policial é uma questão política não adstrita às
organizações policiais. As reformas jamais devem esquecer que o policiamento é
indissociável da política (BAYLEY, 1997:06). Nesse sentido, a natureza do regime
político influência no processo de reformas. Bayley (1997) adverte que a reforma
requer a permissão dos regimes políticos, mas não a sua condução. A ocupação dos
governos brasileiro e chileno pelos militares nos anos 1960 e 1970 trouxe um novo
regime, que teve habilidades de utilizar os aparatos policiais para o alcance dos seus
fins políticos.
A retomada da democracia, a partir dos anos 1980, de alguma forma, abriria
oportunidades para mudanças nas polícias deixadas pelos generais. Não obstante, no
Brasil e no Chile, elas têm ocorrido em um ritmo lento, cerceado pelos interesses das
corporações policiais ou postergadas por conta das demandas urgentes de segurança
pública. Isso demonstra que a natureza do regime político pode favorecer as reformas,
porém, se não houver empenho da classe política e acordos das lideranças policiais
para que elas aconteçam, a tendência é o continuísmo. Essa situação tem marcado a
realidade da PMESP e Carabineros de Chile.
O processo de democratização ocorrido em muitos países da América Latina
nos anos oitenta e noventa evidenciou, entre outras coisas, uma incompatibilidade
entre as normas democráticas e direitos humanos com a atuação e características das
polícias (FRÜHLING, 2003:05). Não obstante as polícias latino-americanas tenham
passado por reformas pontuais nos aspectos técnicos e procedimentais no período de
democratização, elas quase não abordam tópicos que acarretam mudanças
substanciais nas doutrinas e nos arranjos institucionais e culturais.
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A discussão da reforma nas polícias insere-se em um debate sobre a
valorização dos direitos individuais, da cidadania e da consolidação do Estado
democrático de direito. De forma específica, as polícias são protagonistas de um
quadro em que a segurança pública é vigorosamente compreendida como bem público
a ser buscado sem violações a outros direitos consagrados. Assim, em um contexto
marcado pela criminalidade, pela desconfiança cidadã em relação às polícias e pelas
práticas de corrupção e de uso abusivo da força, a reforma policial representa um
alinhamento do policiamento aos princípios democráticos.
Sem dúvida, durante os primeiros anos de democracia, foram poucos os países
que puderam gerar uma mudança na gestão e na doutrina policial na América Latina.
Dessa maneira, a reforma das polícias não é apenas uma necessidade de responder
aos problemas de criminalidade presentes em todos os países da região, mas também
um elemento fundador do processo de consolidação democrática (DAMMERT,
2007a:108).
As características das forças policiais latino-americanas ajudam explicar o
terreno das reformas. No geral, as polícias da região adotam estrutura hierarquizada,
em muitos casos, militarizada com grande distância social e de preparação profissional
distinta para oficiais e subordinados. Isso tem gerado uma falta de motivação e
interesse dos agentes inferiores na escala hierárquica. Os sistemas de capacitação
enfrentam falências, pois não têm tido êxito em incentivar a capacidade de iniciativa e
a inovação do pessoal (FRÜHLING, 2006:03). Outro atributo das polícias da região é o
fato de serem vistas pela cidadania com desconfiança, devido à pouca eficiência, à
corrupção e à baixa profissionalização de seus membros (DAMMERT, 2007:108).
Particularmente para o Brasil e o Chile, Frühling (2006) observa que aquelas
características das polícias latino-americanas estão cristalizadas em sistemas policiais
que possuem normas orgânicas, estabelecendo as faculdades legais, as carreiras
policiais e os requisitos para entrar na polícia, as doutrinas que regem as corporações,
os aparelhos de formação dos seus membros, seus salários e benefícios. Nessas
circunstâncias, as reformas encontram obstáculos endógenos, porquanto elas
significam o desmonte de status quo e de interesses das elites polícias. Não obstante,
a contiguidade dessas estruturas obstina avanços do regime democrático e reformas
em outras estruturas do Estado contemporâneo, o que tem provocado mudanças de
origem exógena nas polícias.
A temática reforma das polícias não alcança apenas as polícias militarizadas,
todavia, nessas corporações, ela é tenaz, porque implica mudanças em modelos,
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normas, valores e culturas profundamente enraizados. Especialmente para PMESP e
Carabineros, que historicamente foram militarizadas e com predisposição ao
insulamento durante os regimes autoritários.
A tendência seria a desmilitarização constar como item essencial do pacote de
reformas sob os regimes democráticos. Entretanto, transcorrido mais de duas décadas
de experiência democrática no Brasil e no Chile, suas forças policiais militarizadas se
mantém com poucas mudanças estruturais. Além disso, durante o período
democrático,
as
sucessivas
e
diversas
gestões
governamentais
delegaram
sistematicamente às polícias o manejo exclusivo dos assuntos de segurança pública,
sem, no entanto, ocorrer nenhuma revisão ou reconversão do perfil militarista dessas
instituições (SAÍN, 2003:04).
De forma ambígua, essas polícias se afastaram do campo das Forças Armadas
para estruturarem e defenderem um próprio campo de atuação, o campo policialmilitar, o qual transita entre os contextos militar e civil. Aquelas polícias concordam
com reformas parciais, mas são intransigentes quando o assunto é modificações na
estética ou caráter militar, mesmo que isso se coloque como enclave a processos de
democratização amplos nas estruturas de policiamento.
As reformas nas polícias militarizadas brasileira e chilena têm ocorrido de
maneira pactuada – entre governos e lideranças das polícias. Assim, em uma marcha
incremental as mudanças ocorrem, todavia sem transformar radicalmente a estrutura,
que, no caso da PMESP e Carabineros, é a sua condição militar.
Pereira e Ungar (2004) observam que, no Brasil, a reforma policial foi
moderada, com mudanças nos treinamentos, nos currículos, introdução de novas
técnicas de uso da força física, desvinculação das Forças Armadas, criação de
ouvidorias (ombudsman) e corregedorias (personnel purges) e alterações em alguns
aspectos da jurisdição militar. Por sua vez, no Chile, o grau de mudanças é baixo,
visto que Carabineros de Chile – por estar montado em um sistema policial
centralizado, nacional e em uma estrutura constitucional que lhe concede autonomia –
tem controle sobre as demandas reformistas. Dessa forma, o controle externo em
Carabineros não alcança aspectos institucionais, sendo que a sociedade civil
praticamente não dispõe de mecanismos para fiscalizar a polícia uniformizada.
No entanto, mudanças não são garantias de melhorias na avaliação da polícia,
na confiança que os cidadãos depositam nela, porque a PMESP, que passou por
mudanças parciais, tem um grau de confiança de 33%, ao passo que Carabineros,
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com raras mudanças, tem grau de confiabilidade acima de 60% (PEREIRA e UNGAR,
2004:05).
Entre avanços e retrocessos, tem caminhado a reforma nas polícias
militarizadas brasileira e chilena. Nessa situação, um dos pontos que mais tem sido
identificado como símbolo de retrocesso é o militarismo. A desmilitarização, portanto,
constitui-se em um item da reforma, que visa desmontar o rígido formalismo militar e
construir uma disciplina policial.
Tanto na PMESP como em Carabineros, a militarização se configurou com
uma tendência histórica, porquanto, em contextos históricos específicos, adotou-se o
modelo militar em detrimento de outros (PIETRO, 1990; ROSEMBERG, 2011). Por sua
vez, no tocante à desmilitarização, as polícias mencionadas seguem trajetórias
relativamente distintas, em virtude do ambiente sociopolítico em que estão inseridas.
No Brasil, o clima de inconformismo com o modelo policial militar é
reconhecido, sendo que, em pesquisa de 2009, do Ministério da Justiça, Secretaria
Nacional de Segurança Pública (SENASP/MJ), observou-se que apenas 15% dos
policiais militares brasileiros defendem a manutenção do atual modelo de polícia e
77% querem mudança. Embora os oficiais demonstrem muito mais apreço pela
identidade militar do que os não oficiais, no geral, 39,9% dos policiais militares de
todas as patentes preferiam um modelo civil de polícia12.
Há, no âmbito do Congresso Nacional brasileiro, tramitando diversos projetos
de desmilitarização ou unificação das polícias. Em 1991, o jurista Hélio Bicudo,
quando exercia o mandato de deputado federal, apresentou o projeto de lei nº1, de
4/6/1991, com a finalidade de desmilitarizar a Polícia Militar e unificar as organizações
policiais em um só organismo civil (BICUDO, 2000). Em 1997, o então governador de
São Paulo, Mário Covas, encaminhou à Câmara Federal projeto de emenda à
Constituição para a unificação dos comandos das polícias Civil e Militar, ademais
propondo a subtração do caráter militar das polícias e a competência da Justiça Militar
para julgar crimes cometidos por policiais militares (MORGADO, 2010: 194-195).
No mesmo sentido, seguiu a proposta da ex-deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP)
de unificação das polícias, que tramita desde 199713. Outro projeto recente é a
proposta de emenda constitucional nº 102, de 2011, encaminhada pelo senador Blairo
12
O QUE PENSAM OS PROFISSIONAIS DE SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL. Relatório de
Pesquisa Ministério da Justiça-SENASP/PNUD, coordenado por Luiz Eduardo Soares, Marcos Rolim e
Silvia Ramos (2009). Disponível em: <http://www.rolim.com.br/2002/_pdfs/300809.pdf>. Acessado em: 22
de novembro de 2012.
13
Zulaê volta a defender a unificação das polícias. Estadão, 14/12/2001. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/arquivo/cidades/2001/not20011214p22208.htm> Acessado em 10 de maio de
2013.
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Maggi (PR/MT), que visa revisar o art. 144 da Constituição de 1988, de forma
incremental na medida em que faculta aos estados criarem uma polícia única em um
caráter civil14.
Recentemente vem ganhado destaque a proposta de emenda
constitucional nº 51, de 2013, apresentada pelo senador Lindbergh Farias (PT/RJ), a
qual pretende uma profunda mudança no sistema policial brasileira, sobretudo com a
desmilitarização das polícias15.
No Chile, não foi possível encontrar pesquisa do tipo “o que pensam os polícias
militares”, porque praticamente inexiste um debate aberto sobre o caráter militar de
Carabineros.
A
forte
autonomia
institucional
permite-lhe
rechaçar
o
tema
desmilitarização em termos organizacionais, embora tenham ocorrido mudanças no
campo estratégico.
Isso não tem impedido, entretanto, insatisfações pontuais contra o rígido
adestramento militar16, a estanque estrutura de ascensão e o fosso entre os quadros
de oficiais e praças. Por conta disso, recentemente, Carabineros tem buscado
modificações no âmbito organizacional, por exemplo, em 2005, rompeu com a barreira
que separava os canais de ascensão entre homens e mulheres, assim, a partir da
aprovação da Lei nº 20.034, há um único canal de progressão funcional para ambos
os sexos17. Também a partir de 2009 tem-se realizado a experiência de progressão de
suboficiais do corpo de praças para os quadros de aspirantes a oficiais18.
Na relação contra outras instituições, a autonomia de Carabineros tem
ocasionado problemas, pois, por exemplo, a polícia uniformiza e a Policía de
Investigaciones – PDI nutrem uma rivalidade histórica, decorrente do conflito de
competências, especialmente no tocante à área de investigação. Assim, em certas
ocasiões, a rivalidade entre ambas as instituições se tornou pública, chegando ao
ponto do alto comando da polícia uniformizada propor a unificação (OVIEDO,
2002:329). Nesse caso, uma suposta unificação representaria a extinção da PDI e a
14
Vide: PEC 201/2011. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=98269etp=1>. Acessado em 10 de maio de
2013. Vide: Governo Federal estuda seriamente desmilitarização das polícias. Blog de notícias de polícias
e bombeiros militares do Brasil – Uniblogbr. Disponível em: <http://www.uniblogbr.com/2012/02/governofederal-estuda-seriamente.html>. Acessado em 10 de maio de 2013.
15
Vide: SOARES, Luiz Eduardo. PEC-51: revolução na arquitetura institucional da segurança pública.
Disponível em: http://www.luizeduardosoares.com/?p=1185. Acessado em 14 de abril de 2014
16
Guantanamo en Chile: Carabineros aplica torturas criminales en sus cursos. Panorama News,
19/08/2011. Disponível em: <http://www.pnews.cl/2011/08/19/video-de-carabineros-muestra-comotorturan-a-funcionarios/> Acessado em 10 de maio de 2013.
17
Escalafón único en Carabineros. BNC, 15/07/2005. Disponível em:
<http://www.bcn.cl/actualidad_legislativa/temas_portada.2005-10-30.7574156282>. Acessado em 10 de
maio de 2013.
18
Oportunidade para todos. Revista Carabineros de Chile, Edición nº 676, Agosto de 2011, pp. 40-45.
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incorporação das funções dela por Carabineros. Em outras palavras, em uma situação
semelhante à anterior de 1932.
Não há consenso sobre esse tema. O que tem ocorrido é a tentativa da criação
de uma base de dados unificada entre Carabineros e PDI19. Além dessa controvérsia,
por Carabineros ser uma polícia-total, ou seja, com atuação em todo o território do
país, tendo, assim, de atuar em funções tipicamente militares, como a proteção de
fronteiras. No Chile, a desmilitarização entra em um tópico mais amplo que
corresponde retirar do domínio das Forças Armadas e de Carabineros a prioridade por
definir os valores da nacionalidade e do Estado, os quais estão firmados na Carta
Política de 1980. Ou ainda, em transmudar a versão militar da sociedade descrita por
Larraín (2001) e Soto (2005).
Enfim, PMESP e Carabineros discordam vigorosamente de reformas que
afetem o ethos militar, ou seja, o limite aceitável de desmilitarização das forças
policiais militarizadas no Brasil e no Chile é o que não toque na coluna da hierarquia e
da disciplina como condicionante da organização, do controle e do comportamento.
Esse aspecto tem mantido as polícias militarizadas insuladas em seu próprio campo
de atuação, gerando uma tendência à autonomização. Tal fato tem sido um dos
obstáculos a mudanças nos modelos de polícia e, inclusive, no campo da segurança
pública. Sob a democracia, essas proeminências não têm regredido, ao contrário, elas
têm se cristalizado, porque as polícias militarizadas continuam se considerando
especiais e mantendo um relacionamento bastante assimétrico com a sociedade.
Seguindo suas próprias convicções, as polícias militarizadas defendem que é a
distinção militar que as caracteriza e as fazem melhor. É nesse cenário, de avanços e
retrocessos, que tem se desenrolado o processo de reforma na PMESP e
Carabineros.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
PMESP e Carabineros têm se renovado, mas a passos lentos e, às vezes,
retomando rumos do passado. Entretanto, em geral, há um reconhecimento da
necessidade de mudanças nas estruturas das polícias, profissionalização policial,
diminuição do uso ilegal da força. Por outro lado, não é predominante ainda o
reconhecimento da necessidade de estabelecer mecanismos de colaboração com a
19
Comisión Reforma entrega a Piñera informe con 44 propuestas. La Tercera, 09/11/2012. Disponível em:
< http://papeldigital.info/lt/2012/11/09/01/paginas/012.pdf> Acessado em 10 de maio de 2013.
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comunidade, que permitam reduzir a desconfiança cidadã e aumentar a legitimidade
da ação policial (DAMMERT, 2007: 118).
No tocante à militarização, PMESP e Carabineros têm defendido que essa não
é questão a ser modificada, pois não se constitui uma deficiência, mas sim uma
virtude. Basicamente, a desmilitarização da PMESP e Carabineros tem significado um
distanciamento das polícias do predomínio das Forças Armadas e da ideologia bélica,
em graus variados nos aspectos organizacionais e estratégicos.
Ademais, o que se tem observado no Brasil e no Chile diante das
manifestações populares de 2011, 2012 e 2013, por aprofundamentos do regime
democrático e mudanças nas forças policiais, é o reforço da militarização da
segurança pública, através das Forças Armadas e das polícias militarizadas. Esse tipo
de militarização sempre se constitui em uma opção política, a qual tem encontrado
forte respaldo nas corporações militares e policiais da América Latina. Note-se, o
paradigma militar, enquanto definidor do horizonte das políticas e ações de segurança
e ordem pública, consegue sustentação na opinião pública das sociedades dessa
região.
Essa situação paradoxal tem legitimado a continuidade do militarismo nas
forças policiais, a despeito dos entraves que isso representa para o processo de
democratização do campo da segurança pública. Tem-se que a desmilitarização da
PMESP e Carabineros – e mais, do campo da segurança pública do Brasil e do Chile –
não é simplesmente tomar um caminho inverso, mas refundar essas organizações em
uma lógica societal, isto é, comunitária.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Reificação e Resistência: O adolescente selecionado pelo Sistema
de Justiça Juvenil em Porto Alegre
Mariana Chies Santiago Santos1
Introdução
O presente trabalho apresenta um panorama geral dos processos de esquecimento
do reconhecimento do adolescente selecionado2 pelo sistema de justiça juvenil. Para tanto,
discutem-se as possibilidades de utilizar o conceito de reificação, do herdeiro da terceira
geração da Escola de Frankfurt, Axel Honneth. Nesse sentido, parte-se da ideia geral de
que os adolescentes passam, dentro do sistema de justiça juvenil gaúcho, por seis esferas
de reificação.
O trabalho centra-se na hipótese de que quando algum dos operadores do sistema
de justiça reifica os adolescentes, ele não atenta apenas contra uma norma, mas comete um
erro mais fundamental, porque atenta contra as condições elementares que estão na própria
base de nosso discurso sobre a moral. Há, portanto, dentro do sistema de justiça juvenil,
uma rotinização e uma habitualização do esquecimento do reconhecimento ao adolescente
selecionado pelo poder punitivo estatal.
Por outro lado, a ideia do trabalho é de apresentar, também, as formas de resistência
desses adolescentes dentro do Sistema de Justiça Juvenil, seja por meio de lutas travadas
contra os operadores jurídicos, seja com formas de resistência às normas impostas dentro
das instituições de internação ou das unidades executoras de medidas em meio aberto.
Nesse sentido, mobiliza-se uma parte do referencial teórico de Michel Foucault,
principalmente ligado ao final de sua vida, quando disserta sobre o lugar e o papel do
indivíduo enquanto sujeito de lutas de resistência.
1 Uma possível forma de abordagem?
O método de pesquisa é o âmago da atividade científica, e a teoria e a metodologia
apesar de serem coisas diferentes, são questões fundamentais, cada uma a sua maneira,
que circundam e compõem o campo de atividade que é permeado por diferentes disciplinas
(MAY, 2011, p. 01).
A pesquisa social está circunscrita na ciência social. Dessa forma, a "ciência" é
aqui tratada como um corpo coerente de ideias, uma vez que tem um método e por esse
motivo diferencia-se das
1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (PPGS/UFRGS). Especialista e Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS). Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa em Violência e
Cidadania - GPVC/UFRGS, ao Grupo de Pesquisa em Políticas de Segurança Pública e Administração da
Justiça Penal - GPESC/PUCRS e ao Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de
Conflitos - INCT-InEAC da Universidade Federal Fluminense. Advogada do Grupo 10 - Grupo de
Assessoria a Adolescentes Selecionados pelo Sistema de Justiça Penal Juvenil do Serviço de
Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - G10/SAJU/UFRGS. contato:
[email protected]
2 Esclarece-se para fins deste trabalho que o termo "selecionado" é utilizado para tratar do funil do Sistema
de Justiça. Muito embora este termo seja utilizado, sobretudo, para tratar do Sistema de Justiça
Criminal, acreditamos que ele seja apropriado também para o Sistema de Justiça Juvenil.
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nossas opiniões pessoais e das imaginações especulativas (MAY, 2011, p. 02). A
pesquisa social de um fenômeno pode oferecer diferentes formas de abordagem e
perspectivas (2011, p. 26).
A importância da teoria, por sua vez, é que ela serve de base para a coleta de
dados, porquanto permite um olhar crítico quando da ida ao campo de estudo. Para isso, é
necessário assumir que uma teoria, mesmo que seja imprescindível para o problema
sociológico que esteja sendo pesquisado, vai propiciar apenas uma visão rasa daquele
fenômeno. É nesse sentido que a teoria e o método de pesquisa devem se combinar à
reflexão, à experiência e ao questionamento. Uma é complementar à outra e as duas devem
ser questionadas e repensadas sempre (MAY, 2011, p. 28). A ligação entre as teorias
estudadas e o campo de pesquisa é essencial para que o pesquisador possa compreender o
campo estudado.
Ressalta-se também, que deve-se ter cuidado na escolha de não utilizar teorias, uma
vez que corre-se o risco de adotar uma postura ingênua ao imaginar que nenhuma pesquisa
foi feita a respeito do tema proposto. Às vezes não há nada escrito sobre o que se estuda,
mas provavelmente há pesquisas que se interrelacionam com o problema de pesquisa que
espera-se desenvolver (FLICK, 2006, p. 57).
Para qualquer tipo de pesquisa, então, impõe-se a necessidade de revisão
bibliográfica para explorar aquilo que já foi pesquisado sobre temas relacionados ao
problema proposto. Tal levantamento da literatura, porém, não esgota as possibilidades
analíticas quando se tem a pretensão de realizar uma pesquisa na área das Ciências
Sociais. Pelo contrário: amplia-as. Portanto, é imprescindível incluir entre as etapas deste
trabalho a pesquisa bibliográfica relacionada ao Sistema de Justiça Juvenil e seus efeitos
sobre os adolescentes selecionados pelo poder punitivo estatal; no controle do crime; além
de trabalhar para a construção de uma sociologia crítica da violência e das conflitualidades,
a partir da teoria do reconhecimento de Axel Honneth e do arcabouço teórico de Michel
Foucault.
Acredita-se, porém, que o conhecimento expande-se a partir do trabalho empírico, no
qual é necessário manter a vigilância epistemológica que exige a explicitação da força
objetiva das relações sociais, que para Bourdieu (2004) chama-se de princípio da nãoconsciência. Essa necessidade de rompimento com o conhecimento de origem cartesiana vê
imprescindível duvidar das leis gerais impostas sobre os conceitos “simples”. Estabelece,
pois, um paradoxo, já que “quanto menor o grão de matéria, mais realidade substancial se
tem” (BACHELARD, 1968, p. 160), logo, não existiria uma noção de simples, sendo o
pensamento cartesiano a simplificação de tais conceitos. Assim, com a noção de que a
sociedade é formada por seres humanos, que são dotados de paixões e preconceitos, ela
estará em um eterno (re)começar, já que sempre necessitará de um alargamento dos
quadros de conhecimento ora impostos.
Desta forma, a ideia é de que seja realizado um trabalho qualitativo de campo, com o
intuito de observar, explicar e compreender a situação dos adolescentes selecionados pelo
poder punitivo estatal. Tal estudo basear-se-á na técnica de pesquisa de entrevistas, não
estruturadas ou semi-
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estruturadas, já que as duas, a primeira mais e a segunda um pouco menos, propiciam uma
maior liberdade de narrativa dos sujeitos da pesquisa, uma vez que se pretende trazer ao
estudo um elemento intersubjetivo, descritivo e compreensivo para compreender os
fenômenos sociais que se pretendem como tema da pesquisa.
As entrevistas, na pesquisa social qualitativa, são uma das técnicas mais utilizadas,
uma vez que é a partir da narrativa dos entrevistados que recebemos as descrições do
mundo que pretendemos estudar. Por outro lado, acredita-se (2011, p. 72), que as
entrevistas caracterizam-se por um espectro que vai desde uma conversa informal até uma
conversa baseada em um texto totalmente estruturado (GASKELL, 2011, p. 64). De início já
descarta-se a possibilidade de utilizar uma entrevista com estrutura fechada (survey) por
compreender a necessidade de construir as questões a partir das vivências com as
interlocutores.
Aqui, entende-se necessária uma outra explicação: tendo em vista que as ciências
sociais, em geral, estudam as relações e os fenômenos sociais as pessoas com as quais se
pretende trabalhar não serão tratadas como objetos de pesquisa, mas como interlocutoras,
uma vez que um pesquisador é um ser humano em busca de respostas que só outro ser
humano pode lhe proporcionar. Outra questão que merece um especial cuidado é que um
diálogo formal pode trazer um problema que pode ser muito sério: indução à resposta por
parte do pesquisador. Ao construir uma questão, mesmo que aberta, de um jeito ou de
outro, acaba-se induzindo, não propositadamente, mas infelizmente acontece, a respostas
que não se sabem a priori, mas que se espera obter. A técnica de pesquisa também se
justifica pelo fato de tensionar o campo acadêmico para incorporar as vozes desses
adolescentes aos discursos nessa área para que tais vozes possam agir como sinalizadoras
de outras vozes que já foram silenciadas, esquecidas, desprezadas e reificadas.
Para o trabalho proposto aqui, fez-se um acompanhamento com 5 adolescentes que
participavam de oficinas no Programa de Prestação de Serviço à Comunidade3 da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Partiu-se de ideia de acompanhar as oficinas
oferecidas pela Faculdade de Educação, para que se pudesse apresentar a proposta do
trabalho e trocar ideias com os adolescentes sobre o sistema de justiça pelo qual passaram.
Dessa forma, a pesquisadora apresentou-se para os grupos das oficinas no período da
manhã e da tarde, que ocorriam, à época, nas terças-feiras.
O diálogo proposto proporcionou uma releitura dos pressupostos da pesquisa e fez
com que o trabalho partisse para um novo trajeto, qual seja, a troca de experiências entre os
adolescentes a partir da formulação de perguntas genéricas. As discussões aconteceram
durante 2 manhãs e duas tardes com os adolescentes participantes das oficinas, que
estavam cumprido a medida socioeducativa de
3
O Programa de Prestação de Serviços à Comunidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul —
PPSC/UFRGS existe desde o ano de 1997 e é fruto do convênio inicialmente firmado entre a Universidade e a 3ª
Vara do Juizado da Infância e da Juventude e, atualmente, com o Programa de Execução de Medidas
Socioeducativas em Meio Aberto - PEMSE. Vinculado à FASC, o PEMSE é o responsável pela execução de
medidas socioeducativas em meio aberto no município de Porto Alegre. O Programa tem como principal
objetivo acolher adolescentes autores de ato infracional para o cumprimento da medida socioeducativa de
Prestação de Serviços à Comunidade
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prestação de serviço à comunidade em setores da UFRGS uma vez por semana durante
4hs e, também, uma vez por semana se juntavam nas oficinas promovidas pelo PPSC.
A necessidade de contar histórias, de contar os acontecimentos, de dialogar é uma
capacidade universal, e as "comunidades, grupos sociais e subculturas contam histórias
com palavras e sentidos que são específicos à sua experiência e ao seu modo de
vida" (JOVCHELOCITCH; BAUER, 2003: 91). E foi a partir da experiência e do modo de
vida desses adolescentes que procuramos entender o que se passou durante todo o trajeto
deles no Sistema de Justiça Juvenil.
As narrativas dos interlocutores não tem uma ordem cronológica evolutiva (assim
como quase todos os fenômenos sociais). E o mais importante está circunscrito em toda a
narrativa, não só no começo, tampouco só no fim. Assim, fica claro que tais narrativas vão
além das sentenças e dos acontecimentos que as constituem. Os sentidos da narrativa
permeiam todas as histórias dos adolescentes. As fotos abaixo demonstram como o Sistema
de Justiça Juvenil foi percebido durante a interação pesquisadora/adolescentes.
Foto 1 - Esquema representativo do Sistema de Justiça Juvenil a partir do olhar da pesquisadora
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Foto 2 - A bagunça do Sistema de Justiça Juvenil a partir do olhar dos interlocutores
A partir disso, traçamos algumas considerações e alguns questionamentos que
abordaremos no decorrer deste artigo.
2 O estado da arte e o início do percurso teórico
Atualmente, a temática da responsabilização de adolescentes protagonistas de ato
infracional carece de devida atenção no campo da Sociologia e do Direito, principalmente da
Sociologia da Violência e do Direito Penal e Criminologia. O tema do Sistema de Justiça
Juvenil, como um todo, não tem a devida atenção do campo das Ciências Humanas4 e das
Ciências Sociais Aplicadas, embora saibamos que existem muitos trabalhos na área da
Sociologia da Violência e da Administração da Justiça Penal que trabalham com sistema
carcerário adulto e com as instituições de segurança pública.
Ao mesmo tempo, vemos uma crescente demanda social para a ampliação da
responsabilização dos adolescentes autores de atos infracionais. Discussões sobre
maioridade penal, aumento do tempo de internação dos adolescentes infratores, e
necessidade de maior punição entram em debate frequentemente, principalmente quando
algum crime com grave violência é praticado por
4
Na área da Antropologia existem diversos trabalhos que tratam desse tema. Na Sociologia vemos muito pouca
produção a respeito da temática.
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menores de idade (CAMPOS, 2009). Estão em tramitação, por exemplo, as PEC 171/19935
e 279/20136, que buscam a imputabilidade penal do maior de dezesseis anos com a
alteração do artigo 228 da Constituição da República, o que nos parece inviável, tendo em
vista se tratar de uma cláusula pétrea7. Uma das consequências que percebemos é um
afastamento do Sistema de Justiça Juvenil da perspectiva garantista do Direito Penal,
fazendo com que não haja qualquer reflexão acerca de política-criminas nessa área.
Faz-se, pois, essencial a superação tanto de um Sistema de Justiça Juvenil apartado
das garantias processuais-penais, quanto de uma visão de que os adolescentes
representados (denunciados) por ato infracional se encontram em suposta vantagem por
estarem amparados por uma legislação de responsabilização especial, ou seja, aplicação de
medidas socioeducativas - reeducação e não punição pura e simples. Por isso, essencial a
entrada da Sociologia nesse debate para a produção de um conhecimento emancipador
nessa área.
Assim, o trabalho busca demonstrar a realidade enfrentada pelos adolescentes
selecionados pelo Sistema de Justiça Juvenil, buscando enfrentar os determinismos e
reducionismos que perpassam essa área, apontando para a necessidade da consolidação
de um verdadeiro processo legal e humano ao adolescente, consubstanciado nos
fundamentos garantistas e do seu reconhecimento enquanto sujeito de direitos. A verdade é
que defendemos liberdades coletivas quando estas nos dizem respeito individualmente.
Será que vamos, um dia, conseguir defender o outro simplesmente porque ele é (ou deveria
ser) semelhante a nós em direito e dignidade? Será que veremos o outro como um igual?
Reconhecendo-o simplesmente pelo seu status de ser humano?
O Brasil transformou-se, a partir da Constituição da República de 1988, em um
Estado Democrático de Direito, baseado, entre outros, no princípio da Dignidade da Pessoa
Humana. É objetivo desse Estado construir uma sociedade livre, justa e solidária (BRASIL,
1988). Com isso, as leis, a partir desse momento foram se alterando para entrarem em
consonância com essa nova Carta Política e, por isso, a lei que trata das crianças e dos
adolescentes também mudou. Assim, tem-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente ECA - (BRASIL, 1990) adotou a Doutrina da Proteção
5
Ver, a esse respeito, íntegra da Proposta de Emenda Constitucional, disponível em:
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD27OUT1993.pdf#page=10 acesso em 12 abr 2014. De acordo
com essa proposta, o menor de 18 anos não estaria sujeito a qualquer sanção de ordem punitiva, mas tão-somente
às medidas socioeducativas. Para o autor dessa proposta, Benedito Domingos, ex-deputado federal do Partido
Progressista do Distrito Federal, é indiscutível que os adolescentes tem capacidade de discernir entre o caráter
lícito e ilícito dos atos que praticam e, por isso, de determinar-se de acordo com esse entendimento. Utiliza-se,
inclusive, do Velho Testamento para justificar a redução da imputabilidade penal.
6
A
íntegra
dessa
PEC
pode
ser
acessada
aqui:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1101128&filename=PEC+279/2013
acesso em 12 abr 2014. Segundo essa proposta, baseada nos dizeres de um Promotor de Justiça e de uma
Psiquiatra Forense, a redução da imputabilidade penal justifica-se pela ausência de verdadeira punição aos
menores de 18 anos.
7
Em resumo, cláusulas pétreas são aqueles artigos da Carta Magna em que ficam impostas restrições materiais,
não podendo, em tese, sofrerem modificações, a não ser pela elaboração de uma nova Constituição (lei regente)
do Estado.
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Integral8 que parte da compreensão de que as normas que cuidam de crianças e de
adolescentes devem concebê-los como cidadãos plenos, porém sujeitos à proteção
prioritária, tendo em vista que são pessoas em desenvolvimento físico, psicológico e moral
e, ainda, que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes
à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata o ECA, assegurando-selhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar
o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de
dignidade (BRASIL, 1990).
Ainda, é importante mencionar que o Brasil é signatário da Declaração Universal dos
Direitos da Criança, conhecida como Regras de Beijing (ONU, 1959), da Convenção sobre
os Direitos da Criança (ONU, 1989) e dos Princípios Orientadores de Riad - princípios
orientadores das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (ONU, 1990).
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que crianças e adolescentes são definidos como
sujeitos de direitos, também são alvos de políticas de proteção (SHUCH, 2005, p. 309).
Assim, tem-se que, diferente do que era implementado pelos Códigos de Menores de 1927
e 1970, se tem hoje no Brasil uma legislação especial, baseada nos Direitos Humanos, que
busca proteger e socioeducar os adolescentes protagonistas de ato infracional que agora
são considerados, ao menos em tese, como sujeitos de direitos. Dessa forma, desde a
promulgação do ECA diversas transformações foram feitas para reconfigurar a
"racionalidade de atendimento à infância e juventude" (SHUCH, 2005, p. 160).
Como dissemos anteriormente, o campo da Sociologia não vem se debruçando, da
maneira que pensamos adequada, a respeito desse tema. Ocorre que apesar da pequena
quantidade de trabalhos nessa área, alguns deles merecem destaque como parte integrante
do campo da Sociologia da Administração da Justiça Penal e da Sociologia da Violência e
das Conflitualidades.
No Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFRGS, por exemplo, tivemos
uma dissertação de Mestrado, defendida em 2008, em que a autora se propôs a investigar a
Casa de Atendimento Socioeducativo Feminino do Rio Grande do Sul (CASEF). Essa casa
é a mais antiga do estado e sua população hoje é de apenas 2,51%9 do total de internos da
Fundação de Atendimento Socioeducativo do RS (FASE/RS). Em 2007, de acordo com a
autora, essa população também era baixa, tendo um total de 2,4% da população total.
O CASEF tem um apelido curioso, qual seja, "casa de bonecas" e a autora explica
que isso se dá por duas razões principais. A primeira delas é pela sua similaridade com uma
casa adequada aos padrões normais, isto é, "disposição dos móveis, o colorido da sala, as
janelas, os sofás - que em nada lembram uma prisão" (FACHINETTO, 2011, p. 105). O
segundo motivo é que as atividades
8
O artigo 227 da Constituição da República de 1988 sedimenta o entendimento: "É dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão" (BRASIL, 1988 - sem grifo no original).
9
Ver, a esse respeito: http://www.fase.rs.gov.br/dados.php, acesso em 12 abr 2014.
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desenvolvidas na casa são, em sua grande maioria, relacionadas aos trabalhos
domésticos, bem como na brincadeira de criança com o mesmo nome (2011, p. 106).
Rochele Fachinetto (2011) construiu, a partir de sua pesquisa de campo, um estudo sobre
as formas de socialização (primárias e secundárias) das adolescentes que estavam, à
época, em privação de liberdade. De acordo com ela, a socialização primária refere-se "aos
primeiros processos de socialização que envolvem as relações na família, na escola e na
comunidade" (2011, p. 106) e a partir desse primeiro tipo de socialização a pesquisa
mostrou que as meninas internadas na FASE não fugiam do perfil do sistema carcerário,
qual seja, "baixas condições econômicas; baixa escolaridade e dificuldade de se manter no
sistema escolar; pouca ou nenhuma inserção no mercado de trabalho formal; entrada
precoce no mundo infracional e também precoce iniciação no consumo de drogas" (2011,
p. 122).
A socialização secundária, por sua vez, diz respeito à vivência das adolescentes a
partir do momento em que estão dentro do sistema (FACHINETTO, 2011, p. 106), Nesse
sentido, a autora explica que não são apenas as condutas das adolescentes que são
controladas quando estão dentro do sistema, mas a internalização de "um modelo de
"mulher"" diferente daquele que as meninas apresentavam quando estavam fora do sistema.
Isso porque os cursos e as atividades desenvolvidas dentro da unidade eram (e ainda
são10) todas voltadas ao cuidado da casa, isso tudo para que elas se tornem boas
mulheres aos olhos da sociedade. A autora adverte, ainda, que as meninas são punidas
duas vezes quando estão no sistema, uma vez judicialmente já que infringiram uma lei e,
por esse motivo, receberam uma medida socioeducativa e outra, de cunho moral, quando
são "ensinadas" a se comportarem como uma mulher de respeito, já que infringiram normas
sociais (2011, p. 123).
Em resumo, o seu trabalho demonstrou que o controle exercido dentro da Casa de
Atendimento Socioeducativa mais antiga do estado é definitivamente maior do que nas
casas onde estão internados os meninos, uma vez que a questão de gênero é fundamental
para a submissão das adolescentes no cumprimento de suas medidas socioeducativas11.
Na mesma linha, uma tese de doutorado, defendida em 2011, na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) tratou
dos adolescentes em cumprimento de Liberdade Assistida (LA) na cidade de São Paulo. A
tese discutiu, em resumo, as possibilidades que os adolescentes pobres têm de exercer sua
10
Esclarece-se, apenas à título explicativo, que fala-se em "ainda são" em virtude de assessoria prestada junto ao
Grupo 10 do Serviço de Assistência Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ao
qual esta pesquisadora é vinculada desde o ano de 2011 como advogada voluntária e atendeu, durante dois anos
(2012-2014) uma adolescente internada na referida instituição.
11
Importante, a esse respeito, mencionar que a autora do presente artigo participa de uma pesquisa em
andamento da Série "Justiça Pesquisa" do Conselho Nacional de Justiça, que tem como, entre outros, o objetivo
de compreender a realidade do CASEF, a casa mais antiga para o cumprimento de Medida Socioeducativa
(MSE) de internação do RS. O que se percebeu, em resumo, a partir da análise do material coletado, foi de uma
sujeição por parte das adolescentes em função da disciplina imposta pela instituição. Outrossim, a partir do
referencial pós-estruturalista e das teorias queer, foi lançado um olhar para compreender como se dá a
transformação dessas adolescentes em mulheres honestas, a partir da hegemonia da heterossexualidade
monogâmica. Por fim, a partir da incorporação das histórias dessas adolescentes àquele trabalho, foi possível
perceber a necessidade de uma maior produção de conhecimento na área. Os resultados não diferenciam-se
muito daqueles encontrados por Fachinetto (2008).
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cidadania no cumprimento da medida socioeducativa (MSE) de Liberdade Assistida, uma
vez que o ECA propôs, quando promulgado, que essa MSE seria um espaço de possível
garantia de direitos e exercício da cidadania. Na sua análise, a autora ressalta que essa
medida desconsidera os conflitos e tensões sociais inerentes aos contextos desses
adolescentes e acaba por reiterar as situações de limitação do exercício da cidadania12
(PAULA, 2011).
Mesmo que com o ECA tenha havido uma mudança da justiça recuperadora
(Código de Menores, 1927 e 1979) para uma figura jurídica chamada medida
socioeducativa, com uma dimensão pedagógica da punição, tratando os adolescentes como
sujeitos em condições peculiares de desenvolvimento, ainda há uma ausência de estatística
para podermos olhar se o Sistema de Justiça Juvenil tem conseguido recuperar esses
jovens e isso gera, de acordo com a literatura, uma frustração (PAULA, 2011). Há, por outro
lado, um movimento de endurecimento penal que se fortalece com a ideia de sacrificar
simbolicamente alguns indivíduos, segregando-os do seio social, em nome da manutenção
do status quo. Essa ideia se fortalece cada vez mais porque ela se coloca como solução
para afastá-los e assim, de uma justiça recuperadora se passa ao paradigma de uma justiça
sacrificial. O que fica claro, ainda, é que desde o surgimento do chamado Sistema de
Justiça Juvenil, a recuperação do indivíduo e a correção de condutas mantêm-se como
finalidade de atuação estatal que faz com que a vingança e a expiação do mal sejam
propagadas. Ainda, de acordo com a autora, os adolescentes quando estão na vida
infracional (e mesmo os que estão fora dela) permanecem "nas capilaridades da vida social
e nos limiares da cidadania" (PAULA, 2011, p. 252).
Anteriormente, Alvarez (1997) já havia demonstrado como as raízes históricas dos
Códigos de Menores de 1927 e 1979 determinaram as características da nossa cultura e de
nossa prática na área da Infância e da Juventude. Ele constata, em suma, como a
construção de uma menorização das crianças e dos adolescentes foi influente no final do
século XX e, por consequência, dificultou e ainda dificulta a implementação do ECA.
12
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Liberdade Assistida assim é estabelecida: "Art. 118.
A liberdade assistida será adotada sempre que se afigurar a medida mais adequada para o fim de acompanhar,
auxiliar e orientar o adolescente.
§ 1º A autoridade designará pessoa capacitada para acompanhar o caso, a qual poderá ser recomendada por
entidade ou programa de atendimento.
§ 2º A liberdade assistida será fixada pelo prazo mínimo de seis meses, podendo a qualquer tempo ser
prorrogada, revogada ou substituída por outra medida, ouvido o orientador, o Ministério Público e o defensor.
Art. 119. Incumbe ao orientador, com o apoio e a supervisão da autoridade competente, a realização dos
seguintes encargos, entre outros:
I - promover socialmente o adolescente e sua família, fornecendo-lhes orientação e inserindo-os, se
necessário, em programa oficial ou comunitário de auxílio e assistência social;
II - supervisionar a freqüência e o aproveitamento escolar do adolescente, promovendo, inclusive, sua
matrícula;
III - diligenciar no sentido da profissionalização do adolescente e de sua inserção no mercado de trabalho;
IV - apresentar relatório do caso" disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm acesso em 12 abr 2014 (sem grifo no original).
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A teoria que, em um primeiro momento, embasa o presente trabalho, por sua vez, e
que será brevemente exposta aqui centra-se em dois conceitos principais trabalhados por
Axel Honneth, quais sejam, reconhecimento e reificação. Em relação ao conceito de
reconhecimento, podemos expor, de maneira sucinta que nas sociedades capitalistas
burguesas os sujeitos aprenderam a referir-se a si mesmos a partir de três atitudes
diferentes: (i) nas relações íntimas, caracterizadas por práticas de afeto e preocupação
mútuos sendo capazes, por isso, de compreender-se como indivíduos com suas próprias
necessidades; (ii) nas relações jurídicas (de direitos) em que se desenvolvem segundo um
modelo de igualdade de direitos e obrigações mutuamente outorgados, aprendendo, desse
modo, a compreender-se como sujeitos de direitos, aos quais se deve a mesma autonomia
que aos demais membros da sociedade; e (iii) nas relações sociais flexíveis (estima social),
em que é influenciada por uma interpretação unilateral do "princípio do êxito" e faz com que
haja uma competição do ser humano por status profissional e, por isso, os seres humanos
aprendem a se compreender como sujeitos que possuem habilidades e talentos (cada um a
sua maneira) valiosos para a sociedade (FASER; HONNETH, 2006, p. 113). Percebe-se,
então, que existem três esferas de reconhecimento: amor, direito e estima social.
Às três esferas de reconhecimento, então, Honneth nos propõe três formas de
desrespeito: ao amor estariam ligados os maus-tratos e a violência; ao direito estariam
ligados a privação de direitos e a exclusão e, por fim, à estima social estariam ligadas a
degradação e a ofensa. Essas três formas de “esquecimento” do reconhecimento, ou como
o próprio autor chama de formas de reconhecimento “recusado”, serão apresentadas
brevemente a seguir.
Primeiramente o autor fala da perda da autoconfiança, isto é, das relações de amor
serem quebradas. Em outras palavras, quando um indivíduo perde a capacidade de ser
dono do seu próprio corpo, quer dizer, quando alguém (outro indivíduo) apodera-se deste
corpo para provocar maus-tratos, tortura, ou coisa que o valha, existe uma provocação de
“um grau de humilhação que interfere destrutivamente na auto-relação prática de um ser
humano” (HONNETH, 2003, p. 215). A partir daí, conclui-se que, esse primeiro tipo de
esquecimento do reconhecimento não varia historicamente, tendo em vista que “o sofrimento
da tortura ou da violação será sempre acompanhado, [...], de um colapso dramático da
confiança na fidedignidade do mundo social e, com isso, na própria auto-segurança” (2003,
p. 216). É nisso que o autor se baseia para distinguir os outros tipos de desrespeito,
porquanto eles estão baseados em uma mudança histórica.
Já o segundo tipo de desrespeito está baseado na perda do auto-respeito, isso é,
das relações jurídicas, com a privação de direitos e a exclusão. Em um primeiro momento
desta distinção o autor pretende explicitar o conceito de direitos como tudo aquilo que faz
com que uma pessoa seja igual as demais, isto é, “aquelas pretensões individuais com cuja
satisfação social uma pessoa pode contar de maneira legítima” (HONNETH, 2003, p. 216).
Quando lhe é tirado esse direito, a pessoa acredita que sua capacidade moral é inferior a
dos demais membros da sociedade, sendo, portando, denegada a ela a própria pretensão
jurídica. Nesse sentido quando as pretensões jurídicas socialmente vigentes são
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denegas a um ser humano, ele acaba sendo lesado na expectativa intersubjetiva de ser
reconhecido como sujeito capaz de formar juízo moral e, assim, acaba perdendo a
capacidade de se compreender como sujeito de direitos igual aos demais (2003, p. 217).
Para caracterizar o grau desse tipo de esquecimento do reconhecimento, o autor demonstra
que o tempo histórico em que ele está contido é imprescindível para se saber até que ponto
isto vale, isto é, quando os direitos e garantias são iguais para todos, esse tipo de
esquecimento pode diminuir, do mesmo modo, quando se trata de um tempo onde não há
universalização dos direitos, isso pode ser agudizado. Aqui, a ideia de trazer essa teoria ao
debate justifica-se, uma vez que acreditamos que apesar de vivermos um tempo de
universalização dos direitos não há, dentro do sistema de justiça juvenil, direitos e garantias
para todos os que ali passam.
O último tipo de reconhecimento recusado é aquele que desrespeita a auto-estima
dos sujeitos. Aqui, tem-se a ideia de que quando uma pessoa ou um grupo de pessoas
impõe o seu modo de ver o mundo sobre uma outra pessoa ou um outro grupo de pessoas,
estas últimas tendem a se ver degradadas, isto é, tira-se “dos sujeitos atingidos toda a
possibilidade de atribuir valor social às suas próprias capacidades” (HONNETH, 2003, p.
217).
O que o autor considera fundamental, no que diz respeito ao reconhecimento
recusado é que se pode fazer um link com a patologia, isto é, quando uma pessoa é
maltratada, ou, têm seus direitos violados, ou ainda, sofre pelo desrespeito de sua autoestima, a consequência que isso pode trazer é a mesma de uma enfermidade. Honneth
deixa claro esse pensamento colocando que “com a experiência do rebaixamento e da
humilhação social, os seres humanos são ameaçados em sua identidade da mesma
maneira que o são em sua vida física com o sofrimento de doenças” (2003, p. 219).
Finalmente, Honneth utiliza-se da ideia de John Dewey para expor que é através desse
desrespeito ao reconhecimento que o sujeito desrespeitado absorve sentimentos negativos,
travando assim, batalhas. A ideia fundamental é de que toda aquela reação emocional de
recusa que vai ao encontro com a experiência de desrespeito ao reconhecimento contém,
em si mesma, a alternativa de que a injustiça aplicada ao ser humano lhe pareça, em termos
cognitivos, um motivo de resistência política (2003, p. 224).
Todos estes conflitos vividos no dia a dia dos sujeitos são, em suma, as maneiras
pelas quais eles têm de se desenvolver moralmente e assim desenvolver a sociedade.
Assim, a relação de reconhecimento que será traçada pelo autor é aquela que contém
“todos os pressupostos intersubjetivos que hoje precisam estar preenchidos para que os
sujeitos possam ser protegidos nas condições de sua auto-realização” (HONNETH, 2003, p.
270).
É nesse momento que chegamos a parte das discussões a respeito do conceito de
reificação. Assim o autor expõe a ideia de que devemos entender como reificação: “um
atentado contra pressupostos necessários de nosso mundo socialmente vivido” (2008, p.71).
O importante a ser analisado aqui é a ligação que o termo reificação tem ao conceito de
reconhecimento. Honneth demonstra que “na relação do ser humano com seu mundo, o
reconhecer sempre antecede o conhecer,
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de tal modo que por reificação devemos entender uma violação contra esta ordem de
precedência” (2008, p. 71). O que se entende, portanto, é que quando alguém é reificado, a
pessoa ou grupo de pessoas que fez isso está esquecendo de reconhecer essas pessoas e,
no caso em tela, os adolescentes selecionados pelo poder punitivo do Estado. Desse modo,
para Honneth a reificação só se configura a partir de uma "desconsideração de todas as
características humanas do próximo” (2008, p. 77). Quando trazemos o conceito de
reificação para o debate, acreditamos que ele serve como ponto de partida para
percebermos como o adolescente selecionado pelo sistema de justiça juvenil é tratado, ou
seja, parte-se do pressuposto que desde sua seleção pela polícia ostensiva retiram-lhe suas
características de ser humano e, à medida que ele vai passando por todas as etapas
subsequentes do sistema de justiça (Polícia Civil, Ministério Público, Defensoria Pública,
Juízes e FASE/CREAS/UEs), só sobram números e prontuários e não mais adolescentes
que estão sob a proteção do Estado. Nesse sentido, importante referir, por exemplo, o que
L. disse:
quando não tem ninguém olhando, eles se arreinam
trecho de entrevista com L. quando discutido o tema da Brigada
Militar
A., da mesma maneira, relata a situação que viveu ao ser interpelado por um policial
militar na comunidade onde reside com sua família
depois de me dar o paredão, os porco me espancaram
trecho de entrevista com A., quando discutido o tema da Brigada
Militar
Esses são alguns exemplos, entre os vários vividos por esses adolescentes. Um
relato que também chamou a atenção foi, quando requisitado a falar sobre a Defensora
Pública que acompanhou sua oitiva perante o Delegado da Polícia Civil, R. resmungou:
aquela que me mandou confessar o que eu não tinha feito?
é, ela que me disse pra confessar, senão ela não ia poder me ajudar.
se ela não tivesse falado, eu não teria assumido a culpa.
não tinha feito nada. e respondi por um troço que não era meu.
trecho de entrevista com R., quando discutido o tema da Defensoria
Pública
Nesse trecho do relato de R. fica claro que o agente responsável por orientá-lo
juridicamente omitiu-se de sua função. O próprio artigo 134 da Constituição da República
(BRASIL, 1988) deixa claro o papel do defensor público, como agente essencial para a
administração da justiça. Entretanto, parece que nesse caso, a advogada agiu sem pensar
que existia um ser humano a sua frente que estava precisando de orientação para não ser
representado por algo que não havia sido feito.
A ideia geral do trabalho proposto foi o de discutir com os adolescentes a
respeito dessa trajetória dentro do sistema. Aqui trouxemos apenas alguns exemplos.
Por fim, a respeito da ideia de trabalharmos o tema da resistência e da luta por
parte desses adolescentes, pensamos em mobilizar o referencial de Michel Foucault,
quando este aborda a
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resistência como papel importante e decisivo para o futuro da vida sociopolítica e também
como papel revolucionário na nossa atualidade. Partindo do pressuposto de que nem todas
as lutas levantadas pelos grupos sociais é, efetivamente, luta de resistência ao poder, mas
de que a força de alguns grupos tem potencial de contestar os sistemas hegemônicos de
poder (com êxito, às vezes, de modificá-los), a nossa premissa é de que esses
adolescentes, ao resistir ao poder, travam lutas.
Dessa forma, o que ficou claro, ao menos por enquanto, com essa pequena entrada
no campo, é de que em alguns casos, os adolescentes travam lutas contra as diversas
formas de submissão que lhe são impostas. Essas lutas poderiam, a princípio, ir contra as
tecnologias de poder. Lutas que poderiam ir contra o gigantesco aparato de técnicas e
procedimentos desenvolvidos para conhecer, dirigir e controlar a vida desses adolescentes,
seja por seus estilos de existência, suas maneiras de sentir ou de pensar (CASTELO
BRANCO, 2001).
A respeito disso, a arma e o coração desenhados na Foto 2 podem ser vistos como
uma forma de luta. Além disso, alguns trechos de entrevistas exibem, talvez, um pouco
dessas lutas.
o gurizão me apoiou,
quando eu cheguei, eu tava de larica.
trecho de entrevista com L., em debate sobre a FASE.
era promotora ou advogada?
a mina era louca, nem dei trela.
trecho de entrevista com L., em debate sobre a Defensoria
Pública.
A ideia que se apresenta, ao menos nesse início de forma-artigo-início-de-tese, é de
que os adolescentes são capazes de criar, produzir e inventar novos modos de
subjetividades e novos estilos de vida. E, dessa forma, são capazes de se reinventar e de
se recriar enquanto sujeitos e não só objetos de um sistema reificante.
4 Um esboço de considerações finais
O que se pode perceber, a partir dessa inserção no campo, é que o sistema de
justiça juvenil trata os adolescentes em conflito com a lei de maneira (bastante) diferente do
que está na lei, conforme explicita boa parte da literatura a partir da década de 1990
(FACHINETTO, 2008; PAULA, 2011). O que se constata, portanto, é que eles continuam
sendo tratados da maneira semelhante aquela imposta pelo Código de Menores, ou seja,
são objetos de intervenção do Estado e devem ser segregados ao invés de reeducados e
protegidos, conforme prevê a doutrina da proteção integral.
Assim, apesar da mudança de legislação no ano de 1990 e da adoção, por parte do
país, das convenções internacionais concernentes a essa temática, os agentes do sistema
de justiça juvenil continuam reificando esses adolescentes, tornando-os mais um número de
processo ou de autuação, para segregá-los do convívio social. A partir da interlocução com
eles é que podemos compreender como se dão esses processos de reificação pelos quais
eles passam desde sua seleção para a entrada no sistema. Porém, conforme apresentado
há pouco, é possível que o Thiago, a Bruna, o Wuesley e o Cleber não sejam apenas mais
a
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um Silva13, sem valor social algum, mas se reinventem, de maneira a criar novos modos
de subjetividades, mesmo que seja dentro do próprio sistema.
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1979
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
A filtragem racial e a Polícia Militar do Estado de São Paulo
Maria Carolina de Camargo Schlittler1
Jacqueline Sinhoretto2
Apresentação
A seletividade no sistema de justiça criminal e na segurança pública é,
desde os anos de 1970 e 1980, um tema recorrente aos estudos sobre controle
estatal do crime e punição no Brasil. Entretanto, foi somente em tempos
recentes que a questão racial passou a ser discutida como um componente de
seletividade, seja nas práticas jurídicas seja nas práticas policiais.
A proposta desta comunicação é discutir alguns dados de duas
pesquisas realizadas pelo Grupo de Estudos sobre Violência e Administração
de Conflitos (GEVAC/UFSCar), no ano de 2013, no âmbito da linha de
pesquisa Segurança Pública e Relações Raciais, do Programa de Pós
Graduação em Sociologia (PPGS) da UFSCar. Para tanto, é necessário
explicitar os objetivos destes estudos.
O primeiro deles, intitulado “A filtragem racial na seleção policial de
suspeitos: segurança pública e relações raciais no Brasil”, é um estudo
comparativo realizado em quatro estados brasileiros (São Paulo, Rio de
Janeiro, Minas Gerais e Distrito Federal) e que investigou a existência da
filtragem racial3 nas práticas das polícias militares. O recorte metodológico se
orientou pela investigação de três eixos: i) indicadores da atividade policial e
seus resultados sobre os distintos grupos étnico-raciais; ii) compreensão das
acusações de racismo institucional na atuação policial formulados pelo
associativismo civil e identificação de ações de enfrentamento ao racismo no
campo da segurança; iii) compreensão das respostas institucionais das polícias
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar. Integrante do Grupo de Estudos sobre Violência e
Administração de Conflitos (GEVAC) da UFSCar. Bolsista CAPES. Orientanda da Prof.ª. Dr.ª. Jacqueline Sinhoretto. Contato:
[email protected]
2 Professora do Departamento de Sociologia da UFSCar. Líder do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos
(GEVAC) da UFSCar. Contato: [email protected]
3 Filtragem racial (racial profiling, em inglês) é um termo utilizado pa ra descrever os mecanismos pelos quais os policiais valorizam as
características físicas, de aparência e vestimenta, como fatores exclusivos ou primordiais para a decisão de suspeitar e agir sobre um
indivíduo ou grupo de pessoas.
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militares para o enfrentamento ao racismo institucional, como punição de
abusos, procedimentos de abordagem policial e cursos de formação policial 4.
Já a segunda pesquisa, intitulada “Segurança Pública e Relações
Raciais em São Paulo: letalidade policial e prisões em flagrante”, desenvolvida
pelo GEVAC e com financiamento parcial do CNPq, objetivou verificar a
existência de mecanismos de produção da desigualdade racial na atividade
policial de São Paulo. Diante da inexistência de dados disponíveis sobre a
atividade policial de abordagem, foram utilizados outros indicadores de
monitoramento do tratamento policial nos diferentes grupos da população
paulista. Para tanto, foram coletados e analisados dados quantitativos sob
letalidade e prisões em flagrante.
No acúmulo da produção destas pesquisas emergiu o reconhecimento,
construído no plano analítico por meio do tratamento dos diferentes dados
coletados em campo, de que a racialização das relações sociais no Brasil se
expressa de maneira contundente no campo da segurança pública. As
evidências empíricas da produção da desigualdade racial na segurança pública
foram identificadas a partir de três indícios a) inexistência de indicadores sobre
a questão racial no campo da segurança pública, b) dados sobre letalidade
policial e c) dados sobre prisões em flagrante. Evidências de que o controle do
crime é operado de forma racializada foram reunidas na análise das entrevistas
de policiais militares, de diferentes patentes, e que ocupam tanto cargos de
gestão como atuam em operações nas ruas.
Os dados reunidos nesta comunicação pretendem problematizar os
resultados da atividade policial e seu impacto sobre os diversos grupos sociais,
usando os indicadores de cor/raça. E ainda, como as informalidades da prática
policial na atividade de seleção de suspeitos permitem as práticas policiais
abusivas, criando desvantagens para alguns grupos populacionais, em especial
os jovens negros.
A invisibilidade da questão racial para a segurança pública: os desafios
da coleta de dados
4 A pesquisa foi financiada pelo Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública e PNUD, mediante edital Pensando a
Segurança Pública – 2ª edição. Para o desenvolvimento da pesquisa, a UFSCar liderou uma rede de pesquisa que envolveu os grupos
da Universidade Federal de São Carlos (GEVAC e NEAB), da Universidade Federal Fluminense (NUFEP), Universidade de Brasília
(NEVIS) e Fundação João Pinheiro (NESP), agregando 34 pesquisadores.
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Um dos desafios comuns às duas pesquisa citadas foi a busca por
indicadores na segurança pública para servir ao propósito de investigar a
produção de desigualdades nas práticas policiais, sobretudo considerando-se o
recorte racial. Verificou-se que a categoria cor/raça não figura nos dispositivos
de análise e monitoramento de ações do campo da segurança pública. Não
que a categoria não exista nos documentos e sistemas que geram os registros
das polícias e demais registros técnicos. Por vezes, ela existe. Mas ela não é
tratada como indicador relevante de avaliação da ação policial e de toda a
segurança pública.
Ainda que a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo
(SSP/SP) divulgue mensalmente dados sobre alguns tipos de ocorrências e
atividades policiais, estes não podem ser desagregados segundo informações
que permitam reconhecer o perfil dos indivíduos que são alvo das investidas
policiais5. Constata-se ausência de sistematização de dados, seja pela não
desagregação dos dados divulgados, seja pela “opacidade”6 destes números
(Lima, 2011).
Verificou-se ainda que não há bases de acesso público sobre o
resultado das atividades policiais, principalmente, no que se refere à
abordagem policial – indicador privilegiado para reconhecer e monitorar o
fenômeno da filtragem racial na prática policial de seleção dos suspeitos.
Diante da indisponibilidade de informações, indicadores sobre letalidade policial
e prisões em flagrante foram buscados como forma de informar o perfil das
pessoas que são alvos das ações policiais.
Para a obtenção destas informações foi necessário a) solicitar à SSP/SP
levantamentos aprofundados nas bases de registros de ocorrência sobre
prisões em flagrante e cruzamentos específicos que permitissem analisar as
5 A SSP/SP mantém setor que divulga periodicamente, desde 1995, estatísticas criminais organizadas por tipos de crime, que podem
ser desagregados por cidade e, no caso da cidade de São Paulo, por distrito. A Coordenadoria de Análise e Planejamento divulg a os
dados relacionados a ocorrências policiais e produtividade policial mensalmente no site da SSP/SP, desde 2011. Trimestralmente
divulga dados relativos à atuação das polícias, conforme a Lei 9155/9510, incluindo as ações que resultaram em homicídio. Con tudo,
os dados divulgados não são desagregados pelo perfil dos envolvidos, tampouco usam a classificação cor/raça. Consultar o site da
SSP/SP. Disponível em <http://www.ssp.sp.gov.br/novaestatistica/Trimestrais.aspx>. Consultado em 10 de abril de 2014.
6 Para Renato Lima (2011), as estatísticas produzidas pelo sistema de justiça criminal têm um papel político na história brasil eira.
Segundo o autor, mesmo com o processo de redemocratização e o aumento da pressão por transparência e controle público das
agências estatais de justiça e segurança, o “segredo” permanece como modus operandi do sistema de justiça criminal, sobretudo p ela
polícia, na transparência dos dados, nas sofisticadas tecnologias e linguagens técnicas usadas pelos operadores. O problema s e
desloca da produção de conhecimento para o uso que se faz dos dados produzidos. Neste sentido, mesmo havendo constante
produção de números, eles pouco permitem conhecer mais a fundo a realidade a que se referem, o que cria um efeito de opacidad e.
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informações desagregadas pelas variáveis de cor/raça dos presos e b)
construir uma base de dados sobre letalidade policial a partir de consulta aos
processos reunidos na Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo 7. A
atividade de coleta foi empreendida pela equipe de pesquisadores do
GEVAC/UFSCar8.
A SSP/SP forneceu, entre informações de outras naturezas, uma tabela
sobre o perfil das pessoas presas em flagrante, segundo a informação cor do
preso e tipos de crimes mais frequentes, para o período de 2008 a 2012, no
estado de São Paulo. Analisar os dados referentes ao perfil racial dos presos
na modalidade flagrante mostrou-se um interessante indicador para o objetivo
pretendido, pois este tipo de prisão poucas vezes decorre de uma investigação
criminal prévia, executada por meio de mandado judicial, sendo muito mais
recorrente em casos de abordagem policial. Permite ainda verificar a atuação
de estereótipos racializados na atividade de identificação dos “suspeitos” –
prática operacionalizada por um saber-fazer policial não pautado em critérios
objetivos e permeada por um conjunto de valores e moralidades informado pelo
cotidiano e construído “na rua” (Kant, 2009).
Já a estratégia de analisar os dados referentes à letalidade policial se
justifica pela existência, em praticamente todos os casos autuados na
Ouvidoria9, de documentos oficiais como Boletim de Ocorrência, Inquérito
Policial Civil ou Militar, laudos necroscópicos, entre outros, que em geral
trazem informação sobre a cor/raça da vítima de homicídio. Dossiês da
Ouvidoria sobre ocorrências de outras naturezas, como abuso de autoridade e
abordagem excessiva, foram consultados na fase de teste do desenho da
coleta de dados, mas foram excluídos devido à escassez de documentos que
descrevem informações sobre a vítima, constituindo uma fonte muito limitada.
Assim, nos casos de homicídio cometido por policiais, é possível observar o
7 Agradecemos a inestimável colaboração do Ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, de seu assessor e de toda a equipe de
servidores da Ouvidoria para que a equipe de pesquisa pudesse ter acesso aos documentos que serviram de fonte.
8 Esta pesquisa foi coordenada por Jacqueline Sinhoretto, sendo a coordenação do campo realizada por Giane Silvestre com a
participação dos pesquisadores Maria Carolina Schlittler, Giulianna Denari, Kathleen Ângulo, Henrique Linica Macedo, David Marques,
Yasmin Miranda e Letícia Canonico de Souza.
9 A Ouvidoria recebe denúncias de diferentes naturezas sobre práticas consideradas abusivas e/ou excessivas por parte dos polic iais
civis e militares. Realiza também um acompanhamento minucioso dos casos de homicídio envolvendo policiais, provocando as
respectivas corregedorias, Defensoria Pública, Ministério Público e Judiciário com pedidos de informações e providências cabíveis em
cada um dos casos. Para cada denúncia que a Ouvidoria recebe abre-se um processo interno de acompanhamento até que uma
providência seja tomada pelo órgão responsável. Processos que se revelaram uma rica e complexa fonte de dados para a presente
pesquisa.
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perfil da vítima com base nos documentos oficiais e observar a frequência da
variável cor/raça.
O acesso às informações referentes à prática policial e sua relação com
a variável cor/raça foi também buscado por uma terceira estratégia
metodológica, que esteve ligada especialmente ao desenvolvimento da
pesquisa “A filtragem racial na seleção policial de suspeitos: segurança pública
e relações raciais no Brasil”. Trata-se da observação direta a partir de
entrevistas com policiais (oficiais e praças) e trabalho de campo junto aos
policiais em operação nas ruas10.
Foram acessados interlocutores de diferentes patentes, tanto da gestão
do sistema de segurança pública como policiais militares que atuam nas ruas
realizando abordagens. O objetivo foi acessar diferentes saberes policiais: um
de caráter operacional – com policiais de linha, que possuem experiência de
trabalho nas ruas – e outro de cunho gerencial e doutrinário – com policiais que
ocupam cargos de comando nas corregedorias, diretorias ou seções de
planejamento, operação e ensino, policiamento comunitário, direitos humanos,
entre outras.
Os dados quantitativos
O banco de dados sobre letalidade policial foi constituído por
informações coletadas em processos, autuados na Ouvidoria da Polícia do
Estado de São Paulo, sobre mortes em decorrência da ação policial, entre os
anos de 2009 e 2011. Nos 734 casos analisados foram coletadas informações
referentes a 939 vítimas e 2162 autores (policiais). Em relação ao perfil das
vítimas, verificou-se que elas são predominantemente negras11 (61%), homens
(97%) e jovens, entre 15 e 29 anos. Ao realizar o cruzamento das variáveis
cor/raça (conforme registro no BO) e idade, é possível perceber que a maioria
das vítimas é formada por jovens negros, conforme gráfico 1.
10 O trabalho de campo com policiais em operações nas ruas foi realizado com aqueles que atuavam no centro cidade de São Paulo,
aos finais de semana. Optou-se pelo local e pelos dias em razão da existência da “Operação Delegada”, que é um convênio entre a
PMESP e a Prefeitura do Município de São Paulo, firmado em 2009, com o objetivo de empregar policiais militares em dias de fo lga no
controle da atividade do comércio informal no centro da cidade. O convênio prevê remuneração adicional àqueles que se inscrev erem
no programa, o que atrai policiais de diversas cidades da região metropolitana e de diferentes unidades da corporação. Tal
especificidade no perfil dos profissionais que atuam no convênio foi percebida como uma possibilidade de acessar um grupo de
profissionais bastante heterogêneo da PMESP.
11 Para a coleta dos dados foram utilizadas as categorias negro, preto, prado. Contudo, para a análise exposta, entende-se a categoria negro
como a soma das categorias preto e pardo, seguindo assim a tendência da produção estatística oficial e das análises acadêmicas preocupadas
em dimensionar as desigualdades raciais no país.
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Gráfico 1 - Idade e cor/raça das vítimas de mortes em decorrência da ação policial.
Estado de São Paulo, 2009 a 2011
140
Número de vítimas
120
100
80
60
40
20
0
Negro
Branco
Fonte: Ouvidoria da Polícia; GEVAC/UFSCar
Os dados indicam que a letalidade policial é maior sobre a população
negra. Ao calcular as taxas de mortos por 100 mil habitantes, dentro de cada
grupo de cor/raça, no ano de 2011, é possível observar que são mortos três
vezes mais negros do que brancos. Conforme tabela 1 e gráfico 2.
Tabela 1 - Mortos em decorrência da ação policial segundo grupos de cor/raça, em taxas
por 100 mil habitantes.
Estado de São Paulo, 2011
População residente
Mortos em decorrência da ação
policial
Taxa
Negros
Brancos
14.287.843
26.371.709
193
131
1,4
0,5
Fonte: Ouvidoria da Polícia; IBGE; GEVAC/UFSCar
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Gráfico 2 – Mortos em decorrência da ação policial segundo grupos de cor/raça, em
taxas por 100 mil habitantes.
Estado de São Paulo, 2011
1,4
0,5
Negros
Brancos
Fonte: Ouvidoria da Polícia; GEVAC/UFSCar
Outro dado relevante, agora em relação ao perfil dos autores (policiais),
é que a Polícia Militar é responsável por 95% da letalidade policial no estado,
sendo que 90% dos autores são praças, com destaque para soldados e
sargentos. Por volta de 30% pertencem a grupamentos especiais, com
destaque para a ROTA e a Força Tática.
Os resultados da ação policial violenta refletem a desigualdade racial na
segurança pública, já que as ações policiais vitimam três vezes mais negros do
que brancos, quando se considera a proporcionalidade entre brancos e negros
na população paulista. No ano de 2011, por exemplo, em cada grupo de 100
mil negros 1,4 foi vítima de ação letal da polícia; enquanto que num grupo de
100 mil brancos a taxa de letalidade por ação da polícia é 0,5. Portanto, as
taxas de mortes produzidas pelas polícias, segundo cada grupo de cor/raça,
refletem a produção da desigualdade racial, assim como a persistência do
racismo institucional no campo da segurança.
Foram fornecidos pela CAP/SSP à equipe de pesquisa os dados sobre
prisões em flagrante para os crimes de roubo e homicídios, desagregados pela
cor/raça dos presos, mesmo tendo sido solicitados os dados sobre os crimes
mais frequentes. Os dados obtidos indicaram que a vigilância policial recai
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preferencialmente sobre a população negra. A série histórica é referente ao
período de 2008 a 2012, e indica que 54,1% dos presos em flagrante são
negros, conforme gráfico 3.
Gráfico 3 - Prisões em flagrante no estado de São Paulo (roubo e homicídio), segundo
cor/raça
2008-2012
AMARELO
IGNORADO
0,1%
2,9%
BRANCOS
42,9%
NEGROS
0,0%
54,1%
10,0%
20,0%
30,0%
40,0%
50,0%
60,0%
Fonte: SSP/SP
É possível observar uma sobrerrepresentação da população negra nas
prisões em flagrante, pois quando se calcula a taxa de presos em flagrante no
ano de 2012 segundo cor/raça proporcionalmente às populações branca e
negra residentes no estado com 18 anos ou mais, a maior incidência das
prisões em flagrante sobre a população negra é observada. Enquanto que para
cada 100 mil habitantes brancos 14 são presos, para cada 100 mil habitantes
negros 35 são presos12, nos tipos de crime analisados.
12 Taxa calculada a partir do número de prisões em flagrante obtido junto à Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo
no ano de 2012 e população residente no estado de São Paulo com 18 anos ou mais, de acordo com o Censo 2010 do IBGE, segundo
brancos e negros.
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Tabela 2 – Presos em flagrante segundo cor/raça (roubos e homicídios), em taxa de 100
mil habitantes em São Paulo – 2012
Negros
Brancos
10.187.982
19.719.035
Presos em flagrante em 2012
3592
2682
Taxa por 100 mil habitantes
35
14
População residente
com 18 anos ou mais
Fonte: IBGE; SSP; GEVAC/UFSCar
Gráfico 4 – Presos em flagrante segundo cor/raça (roubo e homicídio), em taxa de 100
mil habitantes em São Paulo – 2012
35
14
Negros
Brancos
Fonte: IBGE; SSP; GEVAC/UFSCar
Os dados sobre prisões em flagrante apontam maior vigilância policial
sobre a população negra, que se reflete na concentração do número de prisões
em flagrante sobre este grupo. Este tipo de prisão não decorre de uma
investigação criminal prévia, executada por meio de mandado judicial, sendo
muito mais recorrente em casos de abordagem policial. Ou seja, os dados
indicam que, no cometimento de delitos, os negros são flagrados com maior
frequência do que brancos, pois são mais visados pela ação policial.
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Os números fornecidos pela SSP listaram como principais ocorrências
em que ocorrem flagrantes os crimes de roubo e homicídio 13. O primeiro
subdivide-se em 16 tipos e, para análise, optou-se em agregar as ocorrências
em dois grandes grupos – roubos e homicídios. Foi possível perceber a alta
representatividade do crime de roubo nas prisões em flagrante (tabela 19).
Tabela 3 - Presos em flagrante, segundo agregado de ocorrências.
Estado de São Paulo, 2008-2012
Ocorrência
Presos
Percentual
Homicídios
1877
2,7%
Roubos
68322
97,3%
Total
70199
100,0%
Fonte: SSP/SP
Como destacado acima, a maioria das pessoas presas é negra (54,1%).
Porém, ao compararem-se brancos, negros e casos de cor ignorada segundo o
agregado das ocorrências, nos casos de pessoas presas por homicídio a
maioria é branca, representando 55,7%, negros representam 42,2% (vide
tabela 4).
Tabela 4- Presos em flagrante segundo cor/raça, por agregado de ocorrências.
Estado de São Paulo, 2008-2012
Cor/raça
Homicídios
Percentual
Roubos
Percentual
Brancos
1044
55,7%
29059
42,6%
Negros
789
42,1%
37197
54,5%
Ignorados
42
2,2%
1993
2,9%
Total
1875
100,0%
68249
100,0%
Fonte: SSP/SP
Portanto, os dados sobre prisões em flagrante expressam que a
vigilância policial privilegia as pessoas negras e as reconhece como suspeitos
13 Não foram fornecidos pela SSP os dados sobre outros crimes, como o de tráfico de drogas.
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criminais, flagrando em maior intensidade as suas condutas ilegais, ao passo
que os brancos, menos visados pela vigilância policial, gozam de menor
visibilidade diante da polícia, sendo surpreendidos com menor frequência em
sua prática delitiva. É possível também que as atividades criminais mais
frequentemente cometidas por negros sejam mais vigiadas, ao passo que
atividades criminais mais comuns entre brancos despertem menor atenção da
polícia.
Como dito anteriormente, o acesso às informações referentes à prática
policial e sua relação com a variável cor/raça foi também buscado por meio de
entrevistas com policiais militares14, de diferentes patentes, que ocupam cargos
de gestão e atuam no policiamento das ruas da capital do estado.
De maneira geral, tanto oficiais quanto praças negaram a prática da
filtragem racial nas atividades de policiamento, creditando à “fundada suspeita”
o mecanismo principal para a seleção daqueles que sofrem investidas da
polícia. A “fundada suspeita” é fruto, segundo os interlocutores, da experiência
que o policial adquire nas ruas para identificar um suspeito ao primeiro olhar e
os signos da suspeição. Esta experiência adquirida é nomeada de “tirocínio
policial” – qualidade positivada entre os interlocutores e construída mediante o
“tempo de rua” que um policial possui.
Contudo, ainda que a seletividade racial na ação policial seja negada
entre os interlocutores, muitos dos elementos que compõem a chamada
“fundada suspeita” remetem a características específicas de grupos sociais,
como faixa etária, pertença territorial, signos de um estilo de vestir, andar e
falar que reivindica aspectos da cultura negra, e que é, em muitos casos,
também constituinte de uma cultura “da periferia”. Conforme atestam os
depoimentos, a vestimenta e a postura corporal são consideradas indícios
empíricos a fundamentar a suspeita policial.
Estando a atividade da Polícia Militar ancorada no campo do
policiamento ostensivo, a possibilidade do confronto inesperado com um
potencial “inimigo” é algo presente na rotina do policial, o que faz da
abordagem um momento especialmente tenso e imprevisível. O desfecho
favorável deste momento, ao menos para na visão policial, dependerá da
14 Vale destacar que a Polícia Militar é responsável por 95% dos casos de mortes em decorrência da ação policial, segundo os dad os
coletados na Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo.
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capacidade do agente em realizar a suspeição, conseguindo destacar
potenciais “inimigos” do meio da multidão, antecipando e administrando assim
os riscos da abordagem.
“Concretizar a suspeita” para eles é uma competência inscrita num
campo em que estão presentes tanto componentes objetivos, advindos de uma
ordem técnica racionalizada e transmitida por meios institucionalizados, como
por componentes que escapam à objetivação. Estes remetem a um saber
informal, adquirido no cotidiano e construído “na rua”. A materialidade do
tirocínio é expressada quando o policial tem a habilidade de mapear lugares,
horários, condições em que é possível realizar uma operação policial “bemsucedida”, bem como quando é capaz de avaliar a existência de armas ou de
objetos ilícitos a partir de uma leitura dos movimentos corporais dos
transeuntes ou dos motoristas.
Como afirmaram diversos autores (Paixão, 1982; Kant de Lima, 1995;
Mingardi, 1992), para as polícias brasileiras prevalece a concepção de que o
criminoso pode ser “reconhecido” por aquele que detém um saber policial.
Saber, porém, que só pode ser transmitido na prática, por não ser público e por
não estar registrado em normas escritas. Ele é antes uma habilidade
desenvolvida pela(o)s policiais, a partir de suas práticas cotidianas, de ser
capaz de antecipar a conduta de uma pessoa mediante sinais que esta exibe
em seu corpo, em sua fala, em sua expressão e na interação com policiais.
Kant de Lima evidenciou em seus estudos que esta prática policial não é
apreendida nas escolas de formação, tendo assim sua “própria teoria”,
constituída a partir do dia-a-dia do trabalho policial - por sua vez, a teoria das
escolas de formação das polícias também tem sua própria prática (Lima, 1995).
Com as entrevistas percebeu-se que o tirocínio leva os policiais a
abordarem pessoas que utilizam vestimentas e símbolos do hip hop. Ou seja, a
suspeição recai sobre tipos de pessoas que são racializados a partir de
marcadores corporais, sendo a vestimenta aquele melhor verbalizado pelos
policiais. Diante da dificuldade de racionalizar as formas pelas quais a polícia
seleciona as pessoas que serão abordadas, a racialização fornece elementos
para orientar a sua ação, sobretudo a partir de marcas fixas: adereços,
tatuagens, vestimentas típicas de certas tribos urbanas.
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Se, por um lado, negam ações discriminatórias a partir de categorias
raciais, principalmente no que tange à abordagem, por outro, os policiais
admitem haver um público “alvo” preferencial das ações policiais: “não há
abordagem discriminatória na PM contra negros, é mais mesmo em relação
aos pobres. Não dá pra dizer que a PM aborda rico e pobre da mesma
maneira”, afirmou um policial entrevistado. Contudo, conhece-se a acusação de
que as pessoas negras são mais frequentemente presas: “os policiais são
muito acusados de prenderem pessoas porque elas são negras, principalmente
na periferia”, revela outro excerto de entrevista.
Os entrevistados, em geral, reconhecem a filtragem e preferência de
abordagem de tipos de pessoas caracterizados por sua corporalidade, que
mistura traços de classe, faixa etária, território e signos culturais expressos
pelo gosto ou estilo de vida – combinação que marca o tipo com o signo da
suspeição criminal15. Esta discriminação é nomeada pelos entrevistados como
“discriminação de classe”. Ao mesmo tempo, recusa-se reconhecer os
componentes raciais desta discriminação; o racismo é tabu na fala dos
policiais. Não obstante, o que eles nomeiam como classe está muito distante
de ser uma classificação puramente econômica, tratando-se, diversamente, de
uma leitura racializada da classe, uma classe que possui cor, gênero, idade e
origem.
Os dados provenientes das três estratégias de acesso às informações
de como as práticas policiais se relacionam com os diferentes grupos raciais,
convergem no entendimento de que o controle do crime no estado de São
Paulo está ancorado no policiamento ostensivo e na vigilância acentuada sobre
determinados grupos populacionais, além de ser marcado pelo excesso do uso
da força policial, que culmina em um alto grau de letalidade (cf. Sinhoretto,
2014).
A análise conjunta dos dados estatísticos com os dados oriundos das
entrevistas permite o reconhecimento de que a seletividade racial na prática
policial – demonstrada pelas estatísticas – é operada quando as variáveis
raça/cor, idade, região, horário e corporeidade se cruzam, pois os “tipos
suspeitos” são construídos pelos policiais a partir de critérios estigmatizantes
15
Conforme conceito elaborado por Michel Misse (2009)
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que informam tanto a ação policial como as medidas a serem tomadas pelos
mesmos.
O reconhecimento de que o controle estatal do crime em São Paulo,
especialmente, o executado pela Polícia Militar, produz efeitos diferenciados a
depender do público alvo das investidas policiais leva à conclusão que a
segurança pública em São Paulo é operada de modo racializado.
O controle do crime e a produção de desigualdades
Durante os anos de 1980, alguns autores analisaram diferentes períodos
do século XX como forma de compreender as permanências e rupturas, em
tempo de democracia, na aplicação desigual de regras e procedimentos
judiciais a indivíduos de diferentes grupos sociais.
No que se refere ao campo da justiça criminal, destacam-se os estudos
de Costa Ribeiro (1995)16 e Sam Adamo (1983)17. As conclusões destes
autores apontaram que, no período analisado, aos negros eram dadas penas
mais
severas
pelos
representantes
do
sistema
jurídico-policial,
comparativamente aos brancos. A explicação era que o estereótipo de
criminoso e o status econômico dos “não-brancos” se combinavam num
sistema de acumulação de desvantagens para os mesmos, o que levava os
agentes do sistema de justiça criminal a usar critérios diferentes para julgar
brancos e “não-brancos” (Ribeiro, 1995; p. 63)18. O que foi também apontado
por Edmundo Campos Coelho (1986), em sua pesquisa sobre o fluxo da justiça
criminal do Rio de Janeiro, entre os anos de 1942 e 1967. Segundo este, certos
grupos sociais, marcados por cor, situação ocupacional e nível de educação,
sofriam a vigilância policial de forma mais intensa.
Adorno, em seu estudo publicado no ano de 1996, problematiza como a
cor/raça é um elemento relevante na distribuição desigual de justiça. O autor
argumenta que, mesmo quando analisados crimes juridicamente idênticos
cometidos por negros e por brancos, “os réus negros tendem a ser mais
16 O autor pesquisou o Tribunal do Júri da cidade do Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX.
17 O autor analisou as estatísticas oficiais da polícia do Rio de Janeiro, entre os anos de 1880 e 1940.
18 Ideia corroborada por estudiosos do período, como por exemplo, Nina Rodrigues, quem afirmava que as pessoas da raça preta e
mestiça eram mais “(...) afeitas ao crime do que as pessoas da raça branca” (NINA RODRIGUES, 1984). Ele e outros autores como
Euclides da Cunha (1936) e Arthur Ramos (1937) procuravam em fatores biológicos e culturais explicações para as estatísticas
criminais da época, que mostravam que pretos e pardos eram mais condenados do que brancos.
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perseguidos pela vigilância policial, enfrentam maiores obstáculos de acesso à
justiça criminal e mais dificuldades de usufruir do direito de ampla defesa
assegurado pelas normas constitucionais” (p. 54). Outro estudo de sua autoria,
também da década de 1990, analisa como o fato criminal é menos importante
no processo judicial do que as análise das “moralidade” das pessoas
envolvidas no conflito, ou seja, como a desigualdade social influencia na
aplicação do Direito Penal (Adorno, 1994).
Pinheiro (1979, 1997), Paixão (1982), Mingardi (1992), Oliveira (2004),
Mesquita Neto (1999), Francisco de Souza (1994) e Kant de Lima (1995)
assumiram a vanguarda na realização de pesquisas sobre o papel das polícias
na produção de desigualdades em tempos de democracia. Estes autores
enfatizaram
as
possibilidades
e
limites
de
reformas
das
polícias,
principalmente, diante da característica discricionária do trabalho policial e da
dimensão informal da cultura organizacional das polícias.
A conclusão comum a estes estudos é que existem processos sociais
que modificam o pressuposto constitucional de que todas as pessoas serão
tratadas da mesma forma pelas polícias. Vale salientar o trabalho de Pinheiro
(1979) sobre as dificuldades que as polícias, ao longo da história do país,
tiveram em exercer o monopólio legítimo da violência, dentro de marcos legais
de respeito aos direitos civis, diante de representantes de classes
populares/subalternas.
Conforme analisa Pinheiro (2000, p. 263), a não consolidação dos
direitos civis, associada a uma cultura policial autoritária e a discricionariedade
do trabalho policial acabam legitimando a violência policial seletiva. Kowarick
(2002) atesta a constatação de Pinheiro (2000) ao relatar a eclosão de
esquadrões da morte, compostos por policiais e atuando, sobretudo, em
periferias.
Entretanto, se a questão social sempre permeou estudos sobre a
atuação das polícias na produção de desigualdades, o mesmo interesse de
pesquisa não é percebido sobre a questão racial. São escassos os estudos que
questionam o quão desigual pode ser a atuação das polícias diante dos
diversos grupos raciais, especialmente no estado de São Paulo. É válido frisar
que tal lacuna não ofusca a produção de estudos que relacionaram como o
1994
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
critério cor/raça influencia o fluxo do sistema de justiça criminal, conforme se
verificou nas pesquisas descritas nas páginas anteriores desta comunicação.
Esta escassez de estudos que dimensionem a raça como fator de
desigualdade na segurança pública pode estar relacionada ao fato de que,
diferentemente dos EUA19, no Brasil, até a década de 1990, a questão da raça
não se configurou enquanto um forte elemento de análise das desigualdades,
seja na percepção do Estado, seja como pauta de mobilizações políticas
coletivas.
No contexto brasileiro, a subalternidade provocada pelo pertencimento
racial e social não aparece de forma objetiva o que, de certo modo, “esvazia” a
construção típica e ideal de raça, tal como apresentada nos contexto
americano ou sul-africano, por exemplo. Segundo Guimarães (2002), esse
dilema foi percebido pelas lideranças do Movimento Negro no final do século
XX que, sabiamente, tentaram acomodar suas reivindicações e suas políticas
afirmativas a fórmulas mais abrangentes como a do “negro carente”.
Para dar conta desta realidade racial brasileira, em que a desigualdade
racial aparece imbricada à desigualdade de classe, Guimarães (1999)
acompanha a tendência de uso do conceito de “racialização” para fins
analíticos (que também aparece em Silvério, 1999), pois permite verificar as
interssecionalidades (Brah, 2006) entre classe e raça em fenômenos sociais.
Ou seja, possibilita compreender, analiticamente, o significado de certas
classificações sociais e de certas orientações de ação informadas pela ideia de
“raça”.
Para Guimarães, o termo “racialização” é importante porque resgata a
ideia de raça enquanto uma categoria indispensável: “a única que revela que
as discriminações e desigualdades que a nação brasileira de ‘cor’ enseja são
efetivamente raciais e não apenas de classe” (p.50). A utilização do conceito,
de maneira analítica e metodológica, permitiria ao sociólogo “inferir a
permanência da ideia de raça disfarçadas em algum tropo” (p. 54).
19 Nos EUA, o tema do racial profiling tem sido debatido desde a década de 1970, quando militantes antirracistas (como por exemplo,
o movimento Black Powers e os nacionalistas chicanos), passaram a elaborar críticas ao racismo do Estado, visando denunciar a s
injustiças nos setores de segurança, informações e policiamento policial nos EUA (Amar, 2005, p 237). Estudos como os de Amar
(2005) e Meeks (2000) tiveram sucesso em apontar a raça enquanto um fator de desvantagem para alguns grupos em situações de
contato com a polícia, no contexto norte americano. Outros condicionantes de desvantagens, como por exemplo, a questão
socioeconômica, foram apontados como fatores secundário neste processo .
1995
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
A seletividade racial na ação policial: o papel do policiamento ostensivo e
do combate militarizado
No que se refere a Polícia Militar, alguns estudiosos se dedicaram a
compreender
como
o(a)s
policiais
realizam
o
trabalho
ostensivo
e,
principalmente, como ocorre a identificação de suspeitos. Suassuna (2008), por
exemplo, a partir de pesquisa de campo conduzida no Distrito Federal junto à
PM, problematiza como a pressão por eficiência pode reforçar possíveis
saberes apreendidos “nas ruas”, recheados de construções estereotipadas
acerca de quem é “o suspeito”.
Para o desempenho otimizado da função policial, a atividade de
suspeição é um instrumento importante e, diante da ausência de critérios
institucionais para a suspeição, critérios subjetivos são mobilizados pelos
policiais militares. Segundo Suassuna, a tentativa de tornar mais objetiva a
mobilização destes critérios leva os policiais a descreverem o chamado de “kit
peba” – o qual serve como indicativo para a suspeição de pessoas e que se
refere a um modo de andar, peças do vestuário, formas de falar e olhar, uso de
acessórios, horários e locais de trânsito.
O trabalho de Suassuna (2009) é importante para demonstrar como
conflitos entre os níveis institucional e do agente (policial militar) – que, por
ventura, possam surgir da utilização de saberes informais para a seleção de
suspeitos o que, em tese, afrontaria os saberes institucionais apreendidos nas
academias de polícia – são relativizados diante da necessidade de eficiência
nos resultados da instituição. Ou ainda, como estes “informalismos” (Paixão,
1982) tem anuência velada do Estado em favor da produtividade no trabalho do
policial.
Situação semelhante foi descrita, nos anos de 1980, por Mingardi (1992)
sobre a ilegalidade das prisões correcionais (os chamados “corrós”) nas
delegacias de polícias e das “vistas grossas” que o Estado fazia sobre a sua
existência. Ou ainda, segundo o autor, como o Estado assegurava a
permanência destas prisões por meio, por exemplo, do fornecimento de
alimentação a estes “presos”. O autor relata que a ausência de conflito entre a
instituição policial e esta prática informal dos policiais civis decorria, sobretudo,
da imprescindível utilidade dos “corrós” na garantia de eficiência da atividade
1996
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
policial, principalmente, no procedimento de montagem do inquérito policial “de
trás para frente” (Idem, p. 54).
A hipótese é que a atuação policial marcada pela informalidade, e
orientada por práticas racializadas, pode se relacionar à busca por eficiência na
atividade policial, inscrita justamente em um campo com pouca confrontação
pelos níveis institucionais de controle da polícia, dada a pressão por eficiência
e otimização de resultados. Ou seja, há uma prática policial consolidada,
executada no nível “da rua” e administrada pelas posições de comando, que
legitima tipos de ações como forma de administrar o controle estatal do crime a
segmentos populacionais específicos. Afinal, há todo um aparato institucional,
como por exemplo a possibilidade do registro nas delegacias de polícia das
mortes em decorrência policial na categoria “resistência seguida de morte”, que
se não valida a ação racializada, ao menos, não interrompe a sua continuidade.
Uma exemplificação deste argumento é o papel do Ministério Público na
legitimação das mortes cometidas por policiais, conforme demonstra o estudo
de Misse (2011) sobre os autos de resistência no Rio de Janeiro. Ou então, o
estudo de Sinhoretto, Silvestre e Schlittler (2014) que verificou que a maioria
dos policiais autores de mortes não foram indiciados, pois a conclusão do
inquérito é que não houve crime de homicídio por parte dos policiais.
O que implica afirmar que seletividade nas ações policiais pode se
atrelar às discussões sobre como o limite entre força legítima e violência
policial é algo impreciso e relacional, conforme é possível verificar nos estudos
de Klockars (1996), Muniz et al (1999), Mesquita Neto (1999), Costa (2003),
Costa & Medeiros (2002), Porto (2000), Adorno (2002). A conclusão destes
trabalhos é que a linha demarcatória entre a força legítima e a
arbitrariedade/abuso policial não é fixa, e sim varia em função da forma como
cada sociedade interpreta a noção de violência e representa a função policial.
O limite entre violência policial e estrito cumprimento da função policial
atrela-se à representação social do indivíduo que sofre a ação policial,
produzindo desigualdades na aplicação de regras e de procedimentos judiciais
e da segurança pública. Conclusões sedimentadas, principalmente, pelos
trabalhos de Paixão (1982) e Mingardi (1992) os quais sugerem que, em certos
contextos, as informalidades e a violência policial podem ser admitidas, ou
ainda, tratadas como método de trabalho.
1997
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Outra hipótese, complementar a primeira, conforme o modelo analítico
desenvolvido em Sinhoretto (2014), é que a resposta militarizada para o
combate aos supostos “criminosos” é, atualmente, uma das estratégias de
controle estatal do crime, a qual produz alto número de mortes e é justificada
pelas autoridades da segurança pública como uma forma legítima de atuação.
Outra estratégia é a chamada “clássica” que produz maior número de
indiciamentos, de condenações e de presos cumprindo pena no sistema
carcerário, em expansão vertiginosa.
Entretanto, estas seriam explicações rasas se à questão racial não for
dada relevância analítica. A proposta deste paper – e do programa de pesquisa
a que este se liga – é relacionar o padrão das relações raciais a um modelo de
policiamento que, por um lado, privilegia o policiamento ostensivo em
detrimento do processo de investigação policial, culminando assim num
elevado índice de prisões em flagrante e encarceramento em massa. E por
outro lado, tem um viés militarizado na vigilância policial, atingindo
desigualmente sobre os grupos racializados e sobre determinados tipos de
crimes, produzindo um altíssimo grau de letalidade policial, com vítimas
preferenciais
entre homens jovens e negros,
oriundos de
territórios
estigmatizados.
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2000
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
A rotina e a crime: o papel dos repertórios de “guerra” nas relações entre
PMESP e PCC
David Esmael Marques da Silva (UFSCar)1
Introdução
Este texto sistematiza alguns dados qualitativos coletados no percurso de uma
pesquisa de mestrado em fase de conclusão. O objetivo da pesquisa foi conhecer as
percepções e as práticas de indivíduos ligados a instituições estatais2 sobre a nova
organização das dinâmicas criminais paulistas e sobre o Primeiro Comando da Capital
(PCC) em São Carlos, cidade média da região central do estado de São Paulo.
As mudanças nas dinâmicas criminais e a consolidação de uma nova
organização do “crime”, dentro e fora dos presídios do estado, têm sido estudadas e
documentadas, em diferentes perspectivas, por uma série de pesquisadores3. Estes
estudos apontam a consolidação do PCC, a partir da década de 2000, como
organização hegemônica no estado de São Paulo, sendo o principal efeito das
mudanças nas dinâmicas criminais. Contudo, conforme Silvestre et all (2013) e
Sinhoretto (2014), esta mesma atenção não havia sido dada às instituições estatais de
gestão do crime e da violência. Desta forma, a referida pesquisa de mestrado procurou
atentar para os efeitos da construção da hegemonia do PCC em três instituições
estatais, do ponto de vista dos indivíduos que trabalham nestas instituições. Para
tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com funcionários da Secretaria
Municipal
de
Cidadania
e
Assistência
Social
(SMCAS),
que
trabalhavam
cotidianamente em bairros periféricos da cidade, com oficiais da Polícia Militar do
Estado de São Paulo (PMESP) e um delegado da Polícia Civil do Estado de São Paulo
(PCESP).
Este texto discutirá percepções de interlocutores4 de nossa pesquisa sobre
mudanças na abordagem que a PMESP realiza a indivíduos que tem “envolvimento”
1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar) e membro do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (GEVAC).
Pesquisa intitulada “Da festa à chacina: formas de gestão do da pobreza, do crime e da violência em São
Carlos/SP ”, orientada pela Prof.ª Dr.ª Jacqueline Sinhoretto.
Bolsista CNPq. Contato:
[email protected].
2
Foram interlocutores da pesquisa funcionários da Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência
Social (SMCAS), da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) e da Polícia Civil do Estado de São
Paulo (PCESP).
3
Como exemplos destes estudos podemos citar Adorno e Salla (2007), Biondi (2009), Dias (2011),
Feltran (2011), Hirata (2010) e Telles (2010).
4
Especificamente os interlocutores da pesquisa que eram funcionários da SMCAS e trabalham
cotidianamente no Jardim Encosta, nome fictício que atribuímos a um bairro da periferia de São Carlos.
Dois destes interlocutores também são moradores do bairro há mais de vinte anos. No entanto, também
2001
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
com o “crime”5. Segundo estas percepções, as mudanças em questão se dão,
sobretudo, no nível de violência empregado durante a abordagem da PMESP. Assim,
nossos interlocutores percebem que há uma diminuição no emprego da violência em
abordagens da PMESP, e apontam que esta diminuição está diretamente relacionada
aos períodos de enfrentamento militarizado entre PMESP e PCC, como os ocorridos
em 20066 e 20127, considerados enquanto “guerras”. Desta forma, estes episódios de
“guerra” entre PMESP e PCC teriam impacto na forma de realização de abordagens
da PMESP, conforme demonstraremos adiante.
Este texto está dividido em três seções principais: inicialmente apresentamos o
argumento de que há mudanças na forma de realização de abordagens da PMESP,
marcada por uma diminuição da violência policial. Descrevemos então a “onda” de
homicídios de 2012 em São Carlos e suas relações com um contexto mais amplo de
enfrentamento militarizado entre PMESP e PCC, a nível estadual. Finalizamos com a
reflexão acerca da importância destes períodos de enfrentamento militarizado na
mobilizaremos, pontualmente, as percepções de nossos interlocutores junto à PMESP e à PCESP para
reforçar alguns aspectos dos argumentos deste texto.
5
Neste texto trataremos principalmente da figura do “irmão”, isto é, do integrante do PCC. No entanto, é
sabido que, tanto dentro do sistema prisional paulista quanto fora dele, outros indivíduos convivem com o
“código de conduta” (MARQUES, 2007) que orienta a atuação dos integrantes do PCC (BIONDI, 2009;
DIAS, 2011; HIRATA, 2010). Desta forma, indivíduos que participam das dinâmicas criminais, mas que
não são “batizados”, isto é, integrantes de fato do PCC, podem compartilhar deste “código de conduta” e
sua atuação se aproximará muito da atuação esperada de um “irmão”. É neste sentido que utilizo a
expressão “envolvido” com o PCC.
6
Adorno e Salla (2007) apresentam alguns números e nos fornecem uma dimensão dos acontecimentos
do período que ficou conhecido como dos “ataques de maio de 2006”, atribuídos ao PCC, e da reação das
instituições estatais de controle do crime a estes “ataques”: “entre 12 e 20 de maio de 2006, 439 pessoas
foram mortas por armas de fogo, no estado de são Paulo, conforme laudos necroscópicos elaborados por
23 Institutos Médico-Legais, os quais foram examinados pelo Conselho Regional de Medicina.
Comparativamente a igual período em anos anteriores, bem como às semanas anteriores e posteriores a
esse período, o volume de mortes é bastante elevado, sugerindo um cenário de excepcionalidade. Essas
mortes foram acompanhadas de ondas de violência, como rebeliões em 73 presídios do estado, agressões
e ataques contra agentes públicos, sobretudo policiais e agentes penitenciários; contra civis; contra
prédios privados, como bancos, e públicos, como postos policiais; além de incêndios de veículos de
transporte público como ônibus” (ADORNO e SALLA, 2007, p. 7). Este “volume de mortes bastante
elevado, sugerindo cenário de excepcionalidade” caracteriza o que chamamos aqui de “enfrentamento
militarizado”, no qual o conflito entre PMESP e PCC passa a se desenvolver por meio de uma sequência
de homicídios.
7
Uma matéria 17 de dezembro de 2012 do portal de notícias Outras Palavras na internet nos apresenta
uma a dimensão do que chamamos de enfrentamentos militarizados entre PMESP e PCC em 2012:
“Outubro de 2012 registrou o recorde de homicídios e latrocínios na Grande São Paulo no ano: 345. Na
capital, o aumento foi de quase 110% em relação ao ano anterior. O número só pode ser comparado aos
493 mortos entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, cuja macabra contagem diária (média de 55 por dia)
somente tem paralelo nos 111 detentos executados pela PM no Massacre do Carandiru, em 2 de outubro
de 1992. Mesmo assim, a atual crise na segurança teve destaque nos jornais e TVs apenas após as
eleições. Até então, as quase cem vítimas entre policiais, principalmente PMs de baixa patente e fora do
horário de serviço, e as centenas de casos de pessoas baleadas nas proximidades desses assassinatos nas
horas seguintes, estavam sendo tratadas, todas, como “casos isolados”.” Disponível em:
http://outraspalavras.net/uncategorized/sao-paulo-as-origens-da-violencia/. Acesso em 20/04/2014.
2002
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
negociação dos termos das abordagens policiais em microcontextos considerados “de
rotina”, como os conhecidos por meio da pesquisa.
Mudanças nas abordagens da PMESP a indivíduos “envolvidos” com o PCC
No contexto social focalizado pela pesquisa, a saber, São Carlos e, mais
especificamente, o Jardim Encosta, os enfrentamentos militarizados entre PMESP e
PCC parecem ter importância central na regulação das relações cotidianas (sobretudo
as abordagens) entre policiais militares e indivíduos “envolvidos” com as dinâmicas
criminais. Para demonstrar a importância destes períodos de “guerra” na negociação
dos termos das abordagens8 da PMESP pelos indivíduos relacionados ao PCC é
necessário que façamos a distinção entre dois períodos na realização destas
abordagens9. O primeiro período, temporalmente localizado antes dos “ataques de
maio de 2006”, é caracterizado pela maior ocorrência de episódios de violência
(ofensas morais, espancamentos, homicídios) durante abordagens da PMESP. O
segundo período, após os “ataques de maio de 2006”, é caracterizado pela maior
capacidade de negociação dos termos da realização das abordagens da PMESP
adquirida pelos integrantes do PCC. A seguir, apresentaremos alguns elementos
empíricos que tem como objetivo representar cada período referido acima e nos ajudar
a perceber a modificação na forma de atuação da PMESP, segundo a perspectiva dos
interlocutores da pesquisa junto ao Jardim Encosta.
Para ilustrar o formato das abordagens da PMESP no período anterior aos
“ataques de maio de 2006”, destacamos uma cena, ocorrida nos anos 2000, na qual
todos os adolescentes e jovens do Jardim Encosta10 eram incentivados a participar
das atividades e projetos sociais oferecidos no Centro Comunitário da Juventude
(CCJ), localizado em um bairro vizinho. Tanto os profissionais da Assistência Social
quanto da PMESP identificavam os adolescentes que tinham “envolvimento” com o
tráfico de drogas e roubos na região. No caminho entre os dois bairros estes
adolescentes eram abordados pela PMESP e sofriam agressões. Com a recorrência
destas ações, os adolescentes deixaram de frequentar aquelas atividades.
Assim, observa-se duas lógicas estatais operando no modo de lidar com os
adolescentes que se relacionavam com dinâmicas criminais. A primeira, da
Assistência Social, partia do pressuposto que estes adolescentes precisariam ser
8
Isto é, a negociação dos níveis de violência utilizados (ou da não utilização da violência) durante uma
abordagem da PMESP.
9
Como já afirmamos, tratamos aqui das percepções de nossos interlocutores junto ao bairro, previamente
caracterizados, sobre as mudanças em questão.
10
Nome fictício do bairro periférico estudado mais atentamente na pesquisa. O nome do bairro é mantido
em sigilo para preservar o anonimato de nossos interlocutores.
2003
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
inseridos em atividades sociais e educacionais, ofertadas pelo município por meio dos
Centros da Juventude, que contribuíssem para seu “resgate”. Já na perspectiva da
PMESP, a repressão violenta era uma das formas de controlar o contato entre os
jovens e adolescentes e as atividades do mundo do crime.
Nos anos recentes, sobretudo no pós “ataques de maio de 2006”, ocorreu uma
mudança na forma pela qual a PMESP passou a se relacionar com os indivíduos com
atuação nas dinâmicas criminais no bairro. O cenário atual não seria mais tão
frequentemente associado a expressões como “abuso de poder” ou “abuso de
autoridade” que caracterizavam o contexto dos anos 2000. Na perspectiva destes
interlocutores da pesquisa, a violência policial vivenciada em situações de abordagem
variaria segundo contextos de ordem mais ampla, relacionados ao comandamento da
PMESP e aos enfrentamentos militarizados (as “guerras”) entre esta e o PCC.
Assim, a distinção entre o contexto da virada para os anos 2000 e o contexto
mais recente é evidenciada na fala de um dos interlocutores:
Hoje eu vejo uma polícia [militar] mais, com seus modos de pensar,
mas também vendo o que ela tem que cumprir. Querendo bater, mas
querendo respeitar a lei, ao mesmo tempo. Querendo abusar da
autoridade, mas querendo respeitar, ao mesmo tempo. Então eu vejo
que entrou mais o medo, de respeitar, porque antes eles enfiavam a
borracha, eles batiam, levavam pra matagal. Hoje não, hoje eu vejo
que eles fazem só se não tiver testemunha mesmo. Porque se tiver
bastante gente, o máximo que eles podem fazer, longe, pra ninguém
ver, é dar uma pisa, mas não chega a ceifar a vida não. (Caruso,
11
entrevistado em 17 de dezembro de 2013 )
Desta forma, ilustramos a percepção de que a forma de relacionamento entre
indivíduos com atuação nas dinâmicas criminais e PMESP se alterou. Na cena
descrita, assim como em tantas outras que conhecemos em campo e que também
situavam-se nos anos 2000, a possibilidade da repressão violenta nas abordagens da
PMESP, “enfiando a borracha” (referindo-se às surras com cassetetes) ou “levando
para matagal” (com o objetivo de executar o indivíduo abordado), era mais facilmente
acionável. Mais recentemente, emergem as figuras do “medo” e do “respeito”, e a
questão da visibilidade das abordagens perante os próprios moradores do bairro
ganha importância.
11
Caruso completou 25 anos em 2013 e morava no Jardim Encosta desde que nasceu. Seu irmão foi
integrante do PCC até se suicidar por conta de pressões decorrentes da posição que ocupava na
organização. Caruso atuou nas dinâmicas criminais, sobretudo no tráfico de drogas no bairro. Após sua
prisão, converteu-se a uma religião neopentecostal e abandonou a vida no “crime”. Quando entrevistado
em 2013, trabalhava como zelador do Centro Comunitário do Jardim Encosta.
2004
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
A mudança na forma de atuação da PMESP nas abordagens fica evidenciada
pela análise de um caso empírico, ocorrido após os “ataques de maio de 2006”,
relatado durante trabalho de campo no Jardim Encosta. Tratava-se de uma reunião
entre integrantes do PCC e outros indivíduos relacionados às dinâmicas criminais da
cidade (aproximadamente 40 pessoas), que estava ocorrendo na quadra do Centro
Comunitário do Jardim Encosta (CCE), e foi interrompida pela ação da PMESP. Cerca
de 30 indivíduos foram detidos para abordagem nesta ação da PMESP, sendo
colocados ajoelhados no centro da quadra. A abordagem dos policiais militares iniciase com violência e cometimento de “excessos”. No entanto, a manifestação dos
indivíduos abordados, por meio da argumentação e ameaça, se referindo aos “ataques
de maio de 2006” como motivados por “excessos”, “covardias” e “injustiças”, na
atuação da PMESP12, consegue negociar os termos da abordagem, tornando-a menos
violenta e pautada no que é considerado como “respeito”.
Um dos interlocutores da pesquisa, já citado, foi um dos abordados neste
episódio e foi um dos indivíduos que se manifestou e demandou uma abordagem com
“respeito”. Este interlocutor não era integrante do PCC, mas participava das dinâmicas
criminais e compartilhava do “código de conduta” dos integrantes do PCC,
comportando-se da maneira como seria esperado de um “irmão”. Assim, evidencia-se
em sua fala os termos nos quais as relações com a PMESP seriam considerados
“justos” ou pautados no “respeito”:
“se a PM pega em flagrante, com drogas, roubo, já era. Caiu mesmo,
vai levar preso. Mas não com violência, espancamento e injustiça. Se
tiver irmão no meio, ele vai se manifestar, vai cobrar” (Caruso,
entrevistado em 17 de dezembro de 2013).
Na perspectiva dos indivíduos que participam das dinâmicas criminais haveria
“limite tolerável” de dureza nas abordagens e operações da PMESP. Ultrapassar este
limite seria considerado uma “injustiça”. Estas seriam “respondidas” por meio de um
repertório que vem se desenvolvendo e sendo explicitado publicamente em “crises de
segurança pública” como as de 2001, 2006 e 2012, a saber, ataques a “bens” públicos
ou privados a execuções de agentes do estado. Por sua vez, a PMESP reagiria
acionando seu repertório igualmente desenvolvido neste período: multiplicação de
execuções em determinados territórios de periferia, por meio de práticas disseminadas
“Injustiças” e “covardias” são categorias equivalentes, utilizadas em circuitos relacionados ao “mundo
do crime” e ao PCC para se referir a episódios de utilização da violência na atuação repressiva da PMESP
(ou de outras instituições estatais de controle do crime), como em espancamentos ou homicídios
considerados “injustos” e “covardes”, sobretudo em relação a integrantes do PCC.
12
2005
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
em grupos de extermínio (e também em operações policiais oficiais, que se tornam
mais intensas).
Assim, este novo contexto, pós “ataques de maio de 2006”, seria caracterizado
pela maior capacidade de negociação dos termos da abordagem da PMESP por parte
dos indivíduos abordados, sobretudo os que integram o PCC ou estão muito próximos
à sua órbita de influência. Nestas situações de abordagem microcontextualizadas, os
integrantes do PCC fazem referência aos períodos de enfrentamentos militarizados
entre PCC e PMESP com o objetivo de dissuadir os policiais militares da utilização da
violência. No limite, esta mensagem-ameaça transmitida significa que o cometimento
de uma “injustiça” naquela abordagem poderia resultar em uma “resposta” do PCC
(segundo o já aludido repertório de ataques a bens públicos ou privados e homicídios
de policiais). Em um contexto social como o de São Carlos, uma cidade média do
interior do estado, no qual os policiais militares são conhecidos dos moradores em
geral, assim como suas famílias e residências, este tipo de argumento-ameaça parece
ter efetividade em seu propósito durante a abordagem, causando maior preocupação
com a segurança pessoal dos policiais militares.
Os enfrentamentos militarizados entre PMESP e PCC em 2012
A partir de setembro de 2012, São Carlos viveu um período de rápido
crescimento nos números de homicídios13 e essa situação reflete em alguma medida o
contexto de elevação no número de homicídios no estado de São Paulo desde o final
de maio do mesmo ano. Segundo dados da imprensa14, a chamada “onda” de
homicídios de 2012, com quadro intensificado na região metropolitana de São Paulo e
reflexos em outras regiões do interior do estado e na baixada santista, teria tido início
em um enfrentamento entre a ROTA15 e supostos integrantes do PCC na Zona Leste
da capital. Neste episódio, seis pessoas foram mortas e três presas. Dentre os mortos,
pelo menos uma pessoa teria sido levada para outro lugar, torturada e executada
pelos policiais, de acordo com uma testemunha da investigação do caso. Uma série de
execuções de policiais, sobretudo praças e fora do horário de serviço, se seguiu a
esse confronto16. Em outro sentido, para cada morte de policial se seguiram outras dez
13
Segundo levantamentos da imprensa local junto à Secretaria de Segurança Pública do Estado de São
Paulo, os homicídios cresceram 81% em 2012 na cidade, passando de 16 homicídios em 2011 para 29 em
2012. Disponível em: <http://www.jornalpp.com.br/policia/item/26987-homic%C3%ADdios-crescem81-em-s%C3%A3o-carlos>. Acesso em 21/04/2014.
14
http://outraspalavras.net/uncategorized/sao-paulo-as-origens-da-violencia/ - Acesso em 11.09.2013.
15
Batalhão correspondente à elite da Polícia Militar do estado de São Paulo, atuante principalmente na
região metropolitana da capital.
16
Segundo informações da imprensa e da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a “onda” de
violência no estado totalizaria 370 homicídios entre maio e dezembro de 2012, sendo 50 agentes policiais
2006
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
mortes, em média, nas horas seguintes e em regiões próximas à do homicídio. Dessa
sequência de homicídios emergia um padrão caracterizado por tiros efetuados por
homens encapuzados em motos sem placas ou em carros com vidros escuros contra
grupos de pessoas nas regiões periféricas da capital.
Em declaração pública17 em novembro, o então delegado-geral da Polícia Civil
paulista Marcos Carneiro de Lima afirmou que várias vítimas de homicídio,
excetuando-se as vítimas de chacinas18, tiveram suas fichas criminais levantadas em
delegacias distantes dos locais onde seriam executadas antes de serem mortas. Outro
fator que ajudaria a compor a elevação acentuada no número de homicídios neste
período no estado de São Paulo seria a “cortina de fumaça” criada pelo contexto de
enfrentamento, ensejando crimes e vinganças interpessoais não diretamente
relacionadas ao conflito observado.
Em São Carlos, um policial militar foi executado por dois homens, um deles
encapuzado, calçando luvas pretas e armado com um revolver calibre 38, com seis
tiros dentro de seu carro enquanto prestava serviço como segurança a uma empresa
durante sua folga.
Segundo os interlocutores da pesquisa junto ao Jardim Encosta, seguiu-se a
morte deste policial militar um período de atuação intensa da PMESP na região. Os
relatos dos moradores apontavam a utilização de bombas de efeito moral “por todo
lugar” no bairro. Os moradores que reclamaram das ações da PMESP no bairro
levaram até o Centro Comunitário restos de bombas utilizadas pelos policiais militares.
Entretanto, esta relação mais violenta entre policiais militares e moradores não estaria
restrita a este contexto. Para uma interlocutora que trabalhava no Centro Comunitário,
há policiais que trabalham de forma “correta”, mas há os policiais que “exageram” na
violência. Entretanto, pondera que os policiais militares enfrentam situações
complexas no bairro, pois quando realizam ações no bairro geralmente encontram
situações de ilegalidade, sobretudo no que diz respeito ao tráfico de drogas.
Em dezembro de 2012, uma situação envolvendo adolescentes do bairro e
policiais militares evidenciou uma prática policial marcada pela disposição para o
confronto violento como uma resposta aos inúmeros “ataques” vivenciados pelos
policiais. Numa manhã do final de dezembro de 2012, a rotina do Centro de
Referência de Assistência Social (CRAS) da região foi interrompida por dois policias
e 320 civis. Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/11/onda-de-violencia-pode-termatado-370-pessoas-em-2012-diz-defensoria.html>. Acesso em 21/04/2014.
17
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/11/22/delegado-diz-que-vitimas-da-violenciaem-sp-tiveram-ficha-criminal-levantada-pela-policia-antes-das-mortes.htm - Acesso em 11.09.2013.
18
Na capital e região metropolitana de São Paulo ocorreram ao menos 16 chacinas entre junho e
novembro, com 28 mortes, a menos de cinco quilômetros onde foram executados policiais.
2007
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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militares que adentraram ao CRAS muito exaltados, alegando terem sido ofendidos
pelos adolescentes. Um dos policiais questionou a supervisora do CRAS sobre quem
eram aqueles adolescentes e por que não estavam na escola e esta respondeu que
eram frequentadores do CRAS e participantes do ProJovem (programa do governo
federal que objetiva a elevação da escolaridade e qualificação profissional) que tinha
atividades durante a tarde, e que foram até o CRAS para jogar bola, como comumente
faziam. Neste momento, os policiais alegam que os adolescentes seriam traficantes e
acusam a supervisora de permitir que “bandidos” frequentem o CRAS. Em meio a
essa discussão os policiais teriam começado a agredir fisicamente os adolescentes,
justificando que haviam sido ofendidos. A mãe de um dos adolescentes chega às
pressas depois de ser avisada da situação e começa e discutir com os policiais sobre
a agressão e acaba sendo agredida também.
A situação foi presenciada por várias funcionárias do CRAS, que ligaram para a
secretária da SMCAS, que veio até o CRAS. Esta confrontou os policiais militares,
dizendo que estavam desrespeitando um organismo público, que era o Centro de
Referência em Assistência Social, ao que um policial respondeu com a seguinte
pergunta: “onde tava a assistência social quando o policial foi morto?”. O advogado da
prefeitura foi chamado e registrou-se um boletim de ocorrência. O comandante interino
daquele batalhão da PMESP também foi até o CRAS e justificou que os policiais
estavam muito nervosos devido à série de mortes de policiais militares que estavam
acontecendo naquele período.
Da mesma forma que em outras cidades do estado de São Paulo, em São
Carlos também ocorreram execuções de moradores de periferias, após a morte do
policial militar. O conflito entre PMESP e PCC passou a influenciar a dinâmica social
cotidiana dos bairros de periferia, cujos moradores estavam em estado de alerta
devido aos casos de homicídio. Assim, a despeito da percepção de que o conflito que
se desenhava neste período se dava entre PMESP e PCC, a condição dos moradores
de bairros periféricos localizados entre os dois polos beligerantes construía uma
sensação social de insegurança e medo de possíveis mortes de pessoas não
envolvidas no conflito, seja por “engano” (no caso de uma “bala perdida”) ou ainda em
ações de “vingança” da PMESP contra integrantes do PCC.
Assim, as narrativas de episódios protagonizados por indivíduos encapuzados
em carros com vidros escuros disparando contra os chamados “bananas”
(adolescentes que trabalham
nas
biqueiras vendendo
drogas
para
ganhar
“pouquíssimo” dinheiro) ou contra dependentes de crack (duas categorias de
indivíduos que não integram efetivamente o PCC) no Jardim Encosta e outros bairros
de periferia da cidade figuram nos boatos que correram estes mesmos territórios como
2008
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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ações perpetradas por policiais militares descaracterizados e como motivo de medo e
atenção para os moradores de bairros de periferia da cidade.
Uma declaração do delegado responsável pela investigação à imprensa em
meados de outubro é bastante representativa dos acontecimentos brevemente
descritos do período. Nesta, ele afirma que até agosto ocorreram entre dez e onze
homicídios que foram esclarecidos pela Polícia Civil, todos com características
consideradas normais pelo histórico do município, relacionados a crimes passionais ou
“problemas envolvendo drogas”. A partir de setembro, os homicídios passaram a ter
características de execução, na qual “a pessoa chegava e dava vários tiros” e muitas
das vítimas já tinham antecedentes criminais. Trata-se de uma série de homicídios
atípica, tanto em relação ao número de ocorrências quanto à forma de execução. O
delegado conclui afirmando que as investigações precisam ser feitas caso a caso de
modo a averiguar se realmente há uma relação entre eles e se não há casos de
oportunistas que se aproveitam do momento de tensão na sociedade para resolver
questões pessoais, tratando-se de investigações que demandam tempo, comparação
de projéteis e oitivas de pessoas.
No final de outubro de 2012 a imprensa local noticiou a execução de sete
pessoas em um bairro periférico da cidade, todas dependentes de crack e a maior
parte em situação de rua. Cada cadáver desta chacina foi encontrado com pelo menos
quinze perfurações causadas por disparos de arma semiautomática desferidos por
dois homens encapuzados que chegaram ao local de carro e fugiram a pé por uma
mata próxima. Três pessoas que conseguiram escapar dos tiros teriam prestado
depoimento à Polícia Civil no local e fornecido uma descrição dos suspeitos. Segundo
o delegado responsável pela investigação do caso, foi a primeira vez que um crime
com essas características aconteceu em São Carlos.
Após esta chacina, o prefeito da cidade convocou uma reunião especial com o
delegado da Polícia Civil responsável pelas investigações, o comandante do batalhão
da Polícia Militar, o chefe da Defesa Civil e a secretária da SMCAS, para discutir o
andamento das investigações e medidas que poderiam encaminhar para que fato
semelhante não voltasse a ocorrer. Nesta reunião, a secretária da SMCAS expôs sua
opinião de que as investigações não poderiam descartar a hipótese de tratar-se de
ação de um grupo de extermínio.
Segundo o delegado da Polícia Civil, entrevistado durante a pesquisa, após o
homicídio do policial militar em São Carlos, a equipe da Delegacia de Investigações
Gerais (DIG) começou a investigação do caso. Esta investigação teria possibilitado,
por meio de uma parceria com a central de inteligência por escutas telefônicas do
2009
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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GAECO19 e Polícia Militar em Ribeirão Preto, a identificação de pessoas que
ocupavam as principais posições nesta estrutura regional do PCC, na visão da Polícia
Civil. Ainda segundo o delegado, as quatro figuras de liderança regional identificadas
nesta investigação seriam os mandantes dos homicídios do policial militar em São
Carlos e de outros dois policiais militares na região. Três deles foram presos e o
quarto foi morto em confronto com a PMESP em outra cidade da região. Destaca-se a
fala deste delegado sobre a motivação para o homicídio:
“O policial não foi escolhido por nenhum motivo, foi aleatório. O
problema da questão na época era que a polícia, segundo a facção,
tinha abusado na repressão, e tinham provocado mortes que eles não
admitiam... e aquilo seria uma represália contra a ação da PM. Não
em si o policial, o policial em si, mas um representante da PM
aleatoriamente escolhido, que tem que pagar por esse saldo da
facção” (delegado, entrevista realizada em 12 de dezembro de 2013)
Em relação à chacina, na perspectiva do delegado, seria um caso de difícil
apuração para a Polícia Civil, pois a maior parte das testemunhas está morta e
porque, no caso de haver participação de policiais militares, estes poderiam tentar
inibir ou dificultar a investigação. No entanto, esta investigação teria conseguido
identificar uma pessoa que sobreviveu a chacina e mais duas testemunhas. As três
pessoas narrariam os fatos de posições diferentes, permitindo um quadro mais amplo
de informações. A única sobrevivente teria descrito uma pessoa e seu veículo que
teria passado pelo local antes dos executores. Várias diligências teriam sido feitas
para encontrar o veículo, sem sucesso. Outras solicitações de cruzamentos de dados
referentes à GPS com a localização de viaturas da PM, horários e outras informações
estariam em andamento quando o delegado responsável pelo caso foi transferido para
a Delegacia de Investigações sobre Entorpecentes (DISE).
19
O GAECO - Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, criado pelo Ministério
Público do Estado de São Paulo em 1995, tem como função a prevenção e a repressão das atividades de
organizações criminosas no Estado, devendo oficiar nas representações, inquéritos policiais,
procedimentos investigatórios de natureza criminal, peças de informação e ações penais, mediante
atuação integrada com o Promotor de Justiça Natural, e coordenando ações conjuntas com outras
instituições. Atualmente, existem quatorze Núcleos de atuação, distribuídos em todas as regiões do
Estado de São Paulo. Disponível em: < http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/gaecos >. Acesso em
21/04/2014.
2010
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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A importância enfrentamentos militarizados na regulação das relações entre
PMESP e PCC
A análise que fazemos acerca dos enfrentamentos militarizados entre PMESP
e PCC em 201220 entende que a ação da ROTA na Zona Leste da capital, na qual seis
supostos integrantes do PCC foram mortos, foi considerada uma “covardia/injustiça”21
pelos integrantes do PCC, que disseminaram um “salve”22 determinando que dois
policiais militares deveriam ser executados para cada integrante do PCC morto pela
PMESP. Com a circulação deste “salve” as execuções de policiais militares
começaram a acontecer em todo estado.
A partir da execução do policial militar em São Carlos diferentes lógicas
entraram em marcha nas instituições estatais de controle do crime23. Por um lado esta
ocorrência criminal é judicializada mobilizando as instituições da justiça pública, isto é,
há uma investigação, produção de provas, colaboração entre instituições estatais,
acusações formais, prisões e julgamento. Em paralelo se dá a intensificação do
policiamento ostensivo por parte da PMESP em bairros periféricos da cidade,
conforme relatado no tópico anterior. Em outro sentido, a mesma ocorrência criminal
gera uma resposta extra-legal por parte de indivíduos relacionados à instituição da
qual o executado fazia parte. Resposta esta aparentemente não direcionada aos
prováveis responsáveis pela execução, mas sim pulverizadas em direção a pessoas
com antecedentes criminais e dependentes de crack em bairros periféricos. O padrão
de atuação nas execuções e na chacina, semelhantes aos observados na capital no
mesmo período, foi uma das hipóteses de investigação da Polícia Civil.
Em São Carlos, o ciclo de homicídios e retaliações próprios ao conflito entre
PMESP e PCC em 2012 parece ter sido encerrado com a execução de sete
dependentes de crack em situação de rua em uma chacina. Este episódio parece ter
tido o efeito semelhante ao do um sacrifício de um “bode expiatório” no contexto deste
conflito. Isto porque os executados não eram integrantes do PCC, e, portanto, nenhum
ator protagonista deste conflito vingaria estas mortes, tendo em vista que o contraE que também nos ajudem a pensar sobre a “crise de segurança pública” em 2001 e sobre os “ataques
de maio de 2006”.
21
Esta ação da ROTA não foi a primeira e nem a única operação da PMESP que teve resultados
considerados enquanto “covardia” pelos integrantes do PCC. Após a ocorrência de algumas destas ações
da PMESP que culminaram com morte de integrantes do PCC, esta ação específica da ROTA funcionou
como uma espécie de estopim de um conflito que já vinha acumulando tensão a cada episódio. Algumas
ações da PMESP que teriam contribuído para o acúmulo de tensão no conflito entre PMESP e PCC são
elencadas nesta reportagem de Bruno Paes Manso para o jornal O Estado de S. Paulo em 04/11/2012:
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,por-que-sp-chegou-a-atual-situacao,955255,0.htm. Acesso
em 21/04/2014.
22
Uma forma de comunicado que circula entre os integrantes do PCC, dentro e fora do sistema
penitenciário.
23
Sinhoretto (2014) discute diferentes lógicas e estratégias utilizadas pelas instituições estatais no
controle do crime no estado de São Paulo.
20
2011
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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ataque dos integrantes do PCC poderia oferecer oportunidade a novo ciclo de
homicídios. No entanto, o ato de execução em si figura como uma demonstração de
força, uma mensagem devolvida pelos indivíduos ligados à PMESP a seus inimigos do
PCC.
Entendemos que no momento em que a tensão e a violência nas relações
entre PMESP e PCC atinge um patamar considerado enquanto “injustiça” ou
“covardia” pelos integrantes do PCC24, como a referida ação da ROTA, os integrantes
do PCC acionam o repertório de “guerra” que vem se desenvolvendo e sendo
explicitado publicamente em 2001, 2006 e 2012, a saber, de ataques a “bens” públicos
ou privados e as execuções de agentes de instituições estatais, como policiais
militares. A PMESP reagiria acionando seu repertório igualmente desenvolvido no
mesmo período: multiplicação de execuções em determinados territórios periféricos
das cidades, por meio de práticas disseminadas em grupos de extermínio. Estes
enfrentamentos militarizados teriam o efeito de um “termostato”25, devolvendo o
conflito entre PMESP e PCC a um patamar caracterizado pela menor ocorrência de
homicídios (“injustiças/covardias”) entre estes dois atores beligerantes.
Este arrefecimento do nível de violência nas relações entre PMESP e PCC está
diretamente relacionado com os períodos de “guerra” como ocorrido em 2012. É
possível perceber a importância destes períodos de enfrentamento militarizado entre
PMESP e PCC na regulação das relações entre estes dois atores por meio da análise
das mudanças nas abordagens “de rotina”26 realizadas pela PMESP. Em 2013 um
integrante do PCC teria muito mais capacidade (e obrigação) de se manifestar, contra
“excessos”, “injustiças” e “covardias” durante abordagens. Para isto, há a necessidade
de ser um bom argumentador, isto é, convencer discursivamente os policiais militares
que o estão abordando de maneira “injusta” ou “covarde”, e de que é este tipo de ação
da PMESP que engendra os enfrentamentos militarizados (“guerras”) como os de
2001, 2006 e 2012. No caso de cidades como São Carlos, onde os policiais não
raramente são conhecidos da população em geral, as ameaças às suas famílias
podem ser empregadas. Um exemplo disto é um episódio relatado durante a pesquisa
de campo no qual um conhecido integrante do PCC do Jardim Encosta, durante uma
24
Grupamentos especiais da PMESP e em especial a ROTA parecem desempenhar um papel central nos
episódios deste conflito com o PCC.
25
O termostato é um dispositivo que desliga temporariamente um sistema de aquecimento quando a
temperatura atinge determinado teto. A metáfora se justifica porque quando as relações entre PMESP e
PCC atingem um patamar elevado de violência (as “injustiças/covardias”) os repertórios de “guerra” de
ambos os atores (os enfrentamentos militarizados) são mobilizados e devolvem o conflito a um patamar
menor de acúmulo de violência.
26
Neste ponto, a utilização da expressão “de rotina” para designar a atuação da PMESP tem como
objetivo diferenciá-la dos períodos caracterizados pelos enfrentamentos militarizados como os ocorridos
em 2012.
2012
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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abordagem que sofreu em meio a uma sequência de ações da PMESP contra sua
casa (e sua família) com o objetivo de intimidá-lo, fala para os policiais militares: “não
mexa com a minha família, que não tem nada a ver com os meus negócios, que eu
não mexo com a sua, que eu sei onde mora”.
De maneira geral, os policiais militares entrevistados durante a pesquisa são
unânimes em afirmar que a preocupação do profissional da polícia com sua segurança
pessoal foi intensificada. Neste sentido, os “ataques de 2006” configuram um marco
importante. Após este marco, não haveria mais “sossego”. Ressalta-se a atenção com
os momentos de entrada e saída de casa na volta do trabalho, assim como durante a
estadia em qualquer local público. A necessidade que o policial, principalmente o
policial militar, tem de estar atento e precavido em seu período de folga foi reforçada.
Outro elemento que reforça a análise das relações entre indivíduos que
participam das dinâmicas criminais e a PMESP no período após os “ataques de 2006”
é o fato de que muitos indivíduos abordados pela PMESP se utilizam de variadas
estratégias para afirmar que integram o PCC. Na visão dos policiais militares
entrevistados, os indivíduos que realmente fazem parte do PCC não manifestam sua
filiação. Contudo, os indivíduos que afirmam integrar o PCC durante as abordagens da
PMESP, se utilizam desse blefe como estratégia de amedrontamento dos policiais
militares. Dito de outra forma, muitos indivíduos que não são efetivamente integrantes
do PCC se utilizam de discursos e tatuagens com referência ao PCC como forma de
empoderamento em uma situação de abordagem e se colocar em condições de
negociar os termos e os resultados da abordagem.
Por meio da análise dos elementos empíricos mobilizados neste texto,
pudemos perceber a importância dos períodos de “guerra” entre PMESP e PCC na
regulação
das
relações
entre
estes
dois
atores
sociais,
equacionando
temporariamente seu conflito e devolvendo-o a um patamar menor de acúmulo de
violência letal. Por fim, a análise do material empírico coletado durante pesquisa de
campo na periferia de São Carlos nos ajudou a perceber nas relações
microcontextualizadas, como os momentos de abordagem da PMESP, como os
integrantes do PCC operacionalizam a referência aos enfrentamentos militarizados
como mecanismo de negociação dos termos e resultados da abordagem.
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2014
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O Modelo de Internações Compulsórias em Gravataí e os Direitos
Humanos
Rafael Damasceno Ferreira e Silva
(Prefeitura Municipal de Gravataí)
1 – Introdução:
A presente comunicação foi elaborada a partir de pesquisa ainda em
andamento, iniciada em julho de 2013, e pretende apresentar à comunidade
acadêmica os resultados parciais do levantamento proposto, possíveis hipóteses e
reflexões que se desenham a partir dos dados já colhidos. Pretende-se, ainda, dividir
com outros pesquisadores uma proposta de método – ainda em construção – para
que, a partir da dialética do debate, se possa aperfeiçoá-lo e, talvez, aplicá-lo a
pesquisas de maior amplitude.
O autor atua na condição de Procurador Jurídico desde 2011, representando o
Município de Gravataí em Juízo em processos relativos ao direito à saúde. A partir
dessa atuação, enfrenta a realidade do crescimento da judicialização da saúde, a
dificuldade de proporcionar a defesa do interesse público perante as atuais tendências
jurisprudenciais vigentes, e, mais especificamente, a problemática das Internações
Compulsórias.
Desde o início, tem sido objeto de incômodo profissional e científico do autor o
volume das ações de internação psiquiátrica, o invariável deferimento dos pedidos de
antecipação da tutela para internação de familiar, a pouca ou nenhuma chance de
sucesso em recursos ou pedidos de reconsideração dessas decisões, o pouco espaço
para intervenção no debate, a padronização do andamento dos processos e, mais
agudamente, o silêncio em relação à condição de saúde - prévia e posterior ao
deferimento da medida – do paciente submetido a tratamento forçado, o que seria - ou
deveria ser – a justificativa central da judicialização. Em uma palavra: a banalização
dessas ações.
Diante dessas inquietações, decidiu-se pela realização de um levantamento
desses processos, a fim de quantificar os dados relativos ao crescimento da
judicialização da saúde mental em Gravataí, verificar a existência de padrões nos
pedidos e no trâmite, e, se possível, identificar o grau de eficácia das internações
compulsórias deferidas, já que a imensa maioria desses processos tem chegado ao
final sem informações suficientes acerca do sucesso ou insucesso da medida.
Para tanto, tomou-se como objeto os processos oriundos da Vara de Família
da Comarca de Gravataí ajuizados no ano de 2011, tendo o Município de Gravataí no
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pólo passivo e tendo como causa de pedir a internação compulsória de pessoa adulta
usuária de drogas. Em seguida, procedeu-se à identificação das partes e ao registro
do telefone e endereço das mesmas, bem como a coleta de dados relativos aos
seguintes padrões: (1) se o pedido foi instruído com laudo médico ou com outro tipo de
início de prova da dependência química; (2) qual o tipo de substância psicoativa
utilizada; (3) a presença ou não de citação do usuário de drogas (corréu na ação); (4)
se constou notícia ou avaliação médica nos autos, posterior ao ajuizamento; (5) se
houve novo pedido nos autos; (6) o estado jurídico atual do processo e (7) outros
dados que marquem a especificidade do caso concreto levado à Juízo.
O objetivo final do trabalho de pesquisa em desenvolvimento é demarcar
quantitativa e qualitativamente a hipótese de que a internação compulsória é, além de
potencialmente violadora de direitos e garantias individuais, ineficaz. Para tanto, etapa
fundamental é o contato com os atores desses processos, já que uma minoria dos
processos judiciais analisados contém dados acerca do cumprimento da decisão
judicial ou notícias da recuperação do paciente.
Já a presente comunicação pretende algo muito mais limitado: apresentar os
dados parciais de um primeiro levantamento que foi capaz de quantificar essas ações
e observar os padrões recorrentes no ajuizamento, no andamento do processo e nas
decisões judiciais.
2 – Nota sobre as Internações Compulsórias:
A Internação Compulsória (IC) pode ser definida como a internação forçada de
um paciente psiquiátrico, quando determinada através de ordem judicial. Como tal,
insere-se no sistema da Lei 10.216, de 06 de abril de 2001, a chamada Lei da
Reforma Psiquiátrica (LRP), que prevê, ainda, mais dois tipos de internação: a
Internação Voluntária (IV), que é a que se dá a pedido do próprio paciente e a
Internação Involuntária (II), que se caracteriza por dar-se contra a vontade do
paciente, mas determinada a critério médico.
A Internação Compulsória, portanto, não pode ser destacada de um sistema
legal (LRP) que surge em um contexto jurídico-social e histórico de superação dos
modelos de isolamento e segregação, questionados em nível internacional a partir da
década de 1960 (movimento antimanicomial). Em 1990, o Brasil adotou a Declaração
de Caracas, da Organização Mundial da Saúde, firmando compromisso na ênfase de
um modelo de saúde mental baseado na atenção primária, e que priorize os direitos
humanos e a saúde comunitária, em detrimento do modelo asilar.
2016
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Nesse âmbito histórico, a internação forçada de pacientes psiquiátricos passa a
sofrer sérias críticas, sendo substituída, jurídica e tecnicamente, por um paradigma
assistencial e comunitário de saúde mental. Nessa tendência, surge no Brasil o
sistema dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), instituído nacionalmente pela
Portaria 224 MS, de 29 de janeiro de 1992. Os CAPS são, ainda hoje, o modelo
prioritário na organização da assistência à saúde mental no SUS.
Assim, toda modalidade de tratamento psiquiátrico só faz sentido se
visualizada dentro de um sistema jurídico de proteção e garantias dos direitos dos
pacientes1, motivo pelo qual a internação psiquiátrica, mesmo a voluntária, deve ser
considerada como um recurso extremo e excepcional.
O Art.4º da LRP é explícito nesse sentido: “a internação, em qualquer de suas
modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem
insuficientes”.
Às modalidades de internação forçada (II e IC) são impostos uma série de
rígidos requisitos, exatamente por seu caráter potencialmente violador de direitos
fundamentais. As IIs, por exemplo, necessitam de comunicação ao Ministério Público,
em setenta e duas horas, tanto na internação quanto na alta (art. 8º § 1º da LRP).
Além disso, criado pela Portaria GM/MS 2391/02, apresenta-se o sistema das
Comissões Revisoras das Internações Psiquiátricas Involuntárias. Há, portanto,
requisitos legais que submetem a decisão médica a controles técnicos e sociais mais
amplos2.
Já a Internação Compulsória segue o disposto nos artigos 6º e 9º da LRP:
Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo
médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.
1
o
Segundo a LRP, em seu Art.2 , Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; II - ser
tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar
sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;III - ser protegida contra qualquer
forma de abuso e exploração;IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;V - ter direito à
presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização
involuntária;VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;VII - receber o maior número de
informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;VIII - ser tratada em ambiente terapêutico
pelos meios menos invasivos possíveis;IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de
saúde mental.
2
Além da regulação jurídica das IIs, há ainda critérios de Ética Médica e consensos técnicos da área da
psiquiatria. Um exemplo é o estudo “Parâmetros Legais para a Internação Involuntária no Brasil”,
(BARROS e SERAFIM: 2009) que refere que, dentre as causas que podem justificar internação
involuntária na dependência química são “agressividade e intoxicação com risco de morte” e, na síndrome
de abstinência, “agressividade e risco a terceiros”.
2017
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação
psiquiátrica:
III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça
Art. 9º A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação
vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança
do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados
e funcionários.
Alguns autores afirmam que a IC somente é aplicável se houver previsão
específica na “legislação vigente”. Seriam exemplos dessas previsões as Medidas de
Segurança, previstas no Código Penal, Lei de Execuções Penais e Código de
Processo Penal; a Medida Sócio-Educativa prevista no Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA); ou as Medidas de Proteção previstas no ECA e no Estatuto do
Idoso3. Tal levaria, como corolário, à seguinte conclusão; “fora desses casos, é
evidente que descabe a medida de internação Compulsória”4. Do ponto de vista legal,
há quem defenda, portanto, que “não existe menção na legislação atual em vigor,
sobre a possibilidade de internação involuntária de drogodependentes”5.
Importante reiterar que na IC também vigora a imposição legal (art. 6º da LRP)
da presença necessária de um laudo médico circunstanciado6, requisito essencial para
qualquer tipo de internação psiquiátrica.
Sobre esse laudo pendem diversas limitações legais, regulamentares e de
Ética Médica, tendo em vista a necessidade de preservar-se o princípio geral da
autonomia do paciente7 corolário de princípios constitucionais e internacionais de
Direitos Humanos. Há, também, indicações técnicas que orientam a atuação dos
profissionais da psiquiatria, e que restringem a intervenção médica na vontade do
3
Nesse sentido: FERREIRA (2014); ZIMMER (2011); e CORREIA JUNIOR e VENTURA (2013).
FERREIRA (2014).. “De forma geral, o que vemos são internações psiquiátricas promovidas contra
enfermos, porque (i) não aceitam serem submetidos a avaliações psiquiátricas; (ii) quando avaliados,
resistem a serem levados até o hospital de tratamento; (iii) quando estão em condições de serem levados
para o tratamento, este não é disponibilizado pelo Poder Público. Vejam que para nenhuma das hipóteses
acima, existe previsão legal para exarar decreto judicial de internação compulsória”. p. 04
5
CORREIA JUNIOR, 2013.
4
6
Portaria GM/MS 2391/02, art. 9º. Embora faça referência expressa a que não se aplica às ICs, numa
interpretação sistemática podemos admitir que não há outro conceito na legislação que melhor defina o
que é um “Laudo Circunstanciado”. O caráter “circunstanciado” do laudo, por vezes, é negligenciado, até
pela falta de clareza da LRP quanto ao que significa.
É o que reza o artigo. 31 do Código de Ética Médica, ao dizer ser vedado ao médico: “Desrespeitar o
direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas
diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”. De acordo com MENEZES e
GESSER (2012) “Por se tratar de uma medida, em princípio ofensiva à autodeterminação, o médico
haverá que analisar detidamente a sua necessidade, avaliando ainda, se o paciente, de fato está com
prejuízo em sua capacidade de juízo crítico”.
7
2018
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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paciente aos casos em que haveria risco de auto ou heteroagressão8, sendo, portanto,
afastado, do ponto de vista dos Direitos Humanos, a mera imposição de abstinência
ao consumo de drogas através de tratamento forçado.
Dentro dos limites desta comunicação não é possível aprofundar as potenciais
violações de Direitos Humanos subjacentes à expansão das ICs no Brasil. Um breve
inventário, porém, aponta no sentido de que o uso desmesurado das internações
forçadas viola o direito à autodeterminação9, à liberdade de locomoção, o devido
processo legal, a cláusula geral de liberdade e a dignidade da pessoa humana.
O uso desmedido de internações mediadas pela intervenção judicial pode
representar violação ao próprio “direito à saúde”, que serve de fundamento para essas
decisões, já que a orientação das políticas públicas de saúde mental é pela priorização
do tratamento ambulatorial, capaz de evitar a segregação (preservando, assim, o
direito à dignidade da pessoa) e permitir ao paciente o acesso a direitos sociais e
culturais importantes, como a convivência comunitária, o direito ao trabalho, dentre
outros:
“Registros de experiências mostram que os tratamentos compulsórios
têm levado a recorrentes reincidências, tornando a intervenção ineficaz
e aumentando os danos sociais e a saúde do indivíduo, reforçando
comportamentos de violência intrafamiliar, afastando o usuário do
servico e aumentando o ônus ao estado devido ao elevado número de
internações compulsórias sem resolutividade”10.
Nesse sentido, própria falta de eficácia das internações forçadas11 pode ser
considerada uma violação aos direitos à saúde e ao acesso à justiça, na medida em
que se submetem atores sociais a um jogo de promessas não-cumpridas, cujo
resultado pode ser custoso, a começar pela possibilidade de desestabilização da
confiança da pessoa que usa drogas nas instituições de saúde.
Ademais das violações inerentes à expansão das internações forçadas,
existem as proporcionadas pelos ambientes concretos onde essa internações
8
Nesse sentido: BARROS e SERAFIM (2009), UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME
(2010). MENEZES e GESSER (2012).
9
Apenas importante referir que a autonomia do indivíduo não se anula completamente com a
dependência química. Mesmo os “loucos de todo gênero” e interditos possuem um resquício de
autonomia, o que deve ser preservado juridicamente. Nesse sentido, por exemplo, ler MARTINS-COSTA,
Judith (2009).
10
NUNES (2010).
De acordo com Dartiu Xavier, em entrevista à Caros Amigos, “a eficácia é muito baixa. Existem estudos
mostrando que nesses modelos de internação compulsória o máximo que se consegue de eficácia é 2%,
ou seja, 98% das pessoas que saem da internação recaem depois. Certamente, porque a pessoa não
está nem convencida a parar”.
11
2019
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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costumam ser cumpridas. No contexto brasileiro, isso é extremamente relevante, pois
não pode ser considerado acidente o fato de que inspeção do Conselho Federal de
Psicologia em 68 (sessenta e oito) locais de internação para usuários de drogas, em
25 (vinte e cinco) estados da federação, encontrou violações aos Direitos Humanos
em todos eles, entre as quais: imposição de credo religioso, segregação, proibição de
comunicação com o exterior, castigos físicos, ausência de higiene, e serviços de
saúde12.
3 - Gravataí no Contexto da Judicialização da Saúde – Com especial
enfoque à Saúde Mental:
No que respeita à saúde, Gravataí13 assumiu a Gestão Plena do SUS em 2006,
mas não conta com serviços de alta complexidade. No âmbito da saúde mental, conta
com serviço de psiquiatria no Serviço de Urgência e Emergência, apenas com leitos
de observação; conta, ainda, com 06 (seis) leitos psiquiátricos no Hospital
contratualizado, exclusivos para dependência alcoólica e tentativas de suicídio. Além
disso, o Município contratou 18 (dezoito) leitos em Clínica Psiquiátrica privada (Clínica
Libertá), para atender a demanda de internações compulsórias14. O serviço de saúde
mental ambulatorial do SUS consiste em um CAPS II, um CAPS-AD e um CAPS-i15.
Quanto à judicialização da saúde, Gravataí, sede de Comarca16, insere-se no
contexto jurídico nacional, além de partilhar da cultura estadual de litigância judicial17,
12
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (2011).
13
Gravataí é uma cidade de aproximadamente 255.000 habitantes, conforme Censo de 2010 (IBGE), o
que a coloca na sexta posição no ranking das cidades mais populosas do Rio Grande do Sul. Localiza-se
na Região Metropolitana de Porto Alegre, distante 30 km da Capital. É o quinto PIB do Estado, possui um
IDH de 0,811, considerado alto para os padrões brasileiros, e economia fortemente baseada na indústria
(destacando-se a presença de grande parque da montadora General Motors). Apesar disso, é um
Município com um centro urbano relativamente pequeno para a população apresentada, e dotado de
território bastante extenso para os padrões de uma Região Metropolitana (497 km²), destacando-se
imensa área suburbana e rural. Fonte: http://www.gravatai.rs.gov.br/ Acesso em 13.04.2014.
14
Fonte: https://gravatai.atende.net/#!/tipo/pagina/valor/23 Acesso em 13.04.2014. A estrutura da atenção
básica consiste em 14 Unidades Básicas de Saúde, 12 Unidades da Estratégia da Saúde da Família,
além de diversos serviços centralizados. Conta, ainda, com um Serviço de Urgência e Emergência 24
horas e um Hospital particular contratualizado, com 189 leitos SUS.
15
Centro de Atenção Psicossocial, Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas e Centro de
Atenção Psicossocial Infantil – Vide Portaria 615/2013, do Ministério da Saúde.
16
A Comarca de Gravataí abrange os Municípios de Gravataí e Glorinha, e a Justiça Estadual conta com
três Varas Cíveis, duas Varas Criminais, um Juizado da Infância e Juventude e uma Vara de Família,
além de um Juizado Especial Cível e um Juizado Especial Criminal. Há aproximadamente 90.000
(noventa mil) processos em trâmite. A Defensoria Pública estadual conta atualmente com 04 (quatro)
Defensores Públicos, sendo apenas dois deles com atuação na área cível. O Ministério Público conta com
08 (oito) Promotores de Justiça. O Município é sede, ainda, de três Varas da Justiça do Trabalho e de
uma Vara da Justiça Federal. Fontes: http://www.tjrs.jus.br
http://www.mp.rs.gov.br e
http://www.dpe.rs.gov.br - Acesso em 13.04.2014
2020
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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no que respeita ao volume de ações e aos padrões jurisprudenciais adotados. Num
breve olhar a respeito dessa evolução, há evidências de um crescente recurso ao
Poder Judiciário de parte da população para a garantia individualizada do direito à
saúde - requerendo medicamentos, internações hospitalares, cirurgias ou internação
psiquiátrica de familiares - a partir de meados da década passada. Embora desde
1988 a Constituição Federal garanta o Direito à Saúde, nos termos do artigo 196,
“direito de todos e dever do Estado”, a efetividade dos direitos econômicos, sociais e
culturais, em termos de exigibilidade judicial, ainda dependeria de mudanças de
paradigmas hermenêuticos e jurisprudenciais, todavia ainda em construção18.
Nessa tendência, em Gravataí, a partir do ano de 2007, tivemos um
crescimento bastante significativo de processos relativos à saúde:
Conforme o Quadro I, em anexo, verifica-se que em 2006 foram ajuizadas
apenas 43 ações relativas ao direito à saúde, tendo o Município de Gravataí como réu.
Já em 2007 ocorre um crescimento significativo: são 181 processos ajuizados a mais,
ou seja, um crescimento na ordem de 320%. Em 2008 foram ajuizadas 242 novas
ações. Em 2009, 382. Em 2010, 446. Em 2011, 426. Em 2012 foram ajuizadas 528
novas ações; e em 2013 foram 656 novos processos ao total.
Se considerarmos o número de ajuizamentos de 2013 em relação a 2006, o
crescimento de ações desse tipo deu-se na ordem de astronômicos 1525% (mil
quinhentos e vinte e cinco por cento), o que marca a utilização do Poder Judiciário por
parte da população como instância de administração paralela de distribuição de
recursos do SUS.
17 “”
Com 13 mil processos, RS é campeão nacional em ações judiciais na saúde”. Disponível em
http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/geral/noticia/2013/11/com-113-mil-processos-rs-e-campeao-nacional-emacoes-judiciais-na-saude-4336052.html
18
A partir da análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, é possível
identificar-se três momentos no que respeita a efetivação do direito à saúde na esfera judicial: a) antes de
2005, quando existiam poucas ações e pouca chance de sucesso em pedidos dessa naturezaIsso porque
a doutrina majoritária considerava o caráter programático do direito à saúde, isto é, dependente de
políticas públicas (necessariamente levadas a cabo pelo Executivo) para sua efetivação, ou adotava a
tese da “reserva do possível”, isto é, não poderia o Judiciário determinar que recursos financeiros que
existem para atender a saúde de todos pudessem voltar-se à garantia do interesse da parte b) uma fase
de transição, entre 2006 e 2009, com a maior aceitação das demandas por parte do Judiciário gaúcho,
mas com a criação de filtros jurisprudenciais que procuravam limitar os pedidos dentro de parâmetros de
razoabilidade(respeito às competências de distribuição de medicamentos, necessidade de negativa de
tratamento ou fornecimento do insumo desejado, necessidade de instrução com laudo SUS, respeito à fila
de espera, apenas para citar alguns); c) a fase atual, de 2010 até hoje: marcada pelo recurso massivo ao
Judiciário e por jurisprudência que parece corroborar praticamente todo e qualquer pedido relativo à
saúde, ao que se percebe, aparentemente sem qualquer compreensão dos princípios e da lógica interna
da saúde pública.
2021
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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Já o ano de 2014 apresenta uma interessante tendência de diminuição da
judicialização, na ordem de 53% em relação a 2013, considerando os números
projetados. Até o mês de março foram “apenas” 88 ações (relativas à saúde em geral).
Uma provável explicação para essa queda na demanda deve-se ao sucesso do projeto
de aproximação entre a Defensoria Pública e a Secretaria de Saúde do Município de
Gravataí, iniciado em novembro de 2013, e cujo impacto ainda será devidamente
mensurado no futuro19.
Os processos de internação compulsória representam percentual significativo
das ações relativas à saúde, ajuizadas a partir de 2007. No entanto, somente foi
possível conseguir dados confiáveis relativos ao objeto específico de cada ação do
ano de 2011 em diante. O Quadro II, em anexo, compara o total de ações relativas ao
direito à saúde com o número de processos oriundos da Vara de Família20.
Até 2006, as ações de internação judicial eram raras. Naquele ano apenas 01
(um) processo de internação compulsória foi ajuizado, sendo que os dados fornecidos
pela distribuição do Fórum apontam que entre os anos de 2003 e 2006 foram
ajuizados 07 (sete) processos na Vara de Família constando o Município de Gravataí
no pólo passivo. Em 2009 houve o recorde de ações ajuizadas por ano: 92. Já em
2013, houve o ajuizamento de 81 novas ações na Vara de Família.
Para fins de melhor identificação do que representam os processos de
internação psiquiátrica judicial frente aos demais relativos ao direito à saúde,
apresentaremos os dados dos últimos dois anos completos: 2012 e 2013, por objeto.
19
Apenas para fins de ilustração, já que foge aos limites desse trabalho, trata-se de projeto bastante
singelo, que consiste em reunir mensalmente as equipes da Procuradoria-Geral do Município e da
Secretaria da Saúde com os Defensores Públicos, a fim de discutir estratégias para reduzir a
judicialização e melhorar o ajuizamento e o cumprimento das liminares. Consistiu, ainda, em dotar a DPE
de uma estagiária do curso de direito, fornecida pelo Município, exclusivamente voltada para auxiliar no
atendimento aos assistidos na área da saúde e, antes do ajuizamento da ação (que costumava ser
automático), proceder contato com os canais da SMS responsáveis pelo fornecimento do bem da vida
pretendido. Em caso de resolutividade imediata da demanda (ou informação de que é possível para
breve), evita-se o ajuizamento. Registre-se que a DPE não transige com os direitos de seus assistidos, e
que nem o Município dá privilégios administrativos para atendimento aos encaminhamentos da DPE.
Apenas o contato, a aproximação, o diálogo, tem reduzido substancialmente os ajuizamentos. No campo
das internações compulsórias, a fim de evitar a banalização dos pedidos, elaborou-se Protocolo (EM
ANEXO - ) a ser entregue ao assistido, para que o mesmo se engaje no CAPS-AD, ou tente resgatar o
familiar que usa drogas para o serviço. Os números falam por si, apesar do curtíssimo período em que o
projeto vem se desenvolvendo (menos de 06 meses).
20
Nem todos os processos em trâmite na Vara de Família têm como objeto a internação compulsória,
mas são bastante raros os que dizem respeito a outros objetos; em geral, são algumas Medidas de
Proteção em benefício de idosos, movidas pelo Ministério Público. Entende a Jurisprudência dominante
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que são as Varas de Família as competentes para o
processamento e julgamento desse tipo de ação, pois relativa “ao estado e à capacidade da pessoa”.
2022
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Conforme se pode verificar no Quadro III, em 2012 foram ajuizadas, tanto na
Vara de Família quanto no Juizado da Infância e Juventude, 63 (sessenta e três)
novas ações de internação psiquiátrica (exluindo-se, agora, outros objetos possíveis
de trâmite naquelas Varas, como os pedidos de internação de idoso em Instituições de
Longa Permanência de Idosos – ILPIs). Tal representa, diante do total de ações
relativas à saúde, 12%. Já as ações tendo por objeto cirurgias, consultas e exames
somaram 214 processos, ou 40,5% do total. As ações de medicamentos representam
205 processos, ou 38,8% do total. Na rubrica “outros”, foram 46 ações, ou 8,7% do
total.
Em 2013 as ações de ICs somaram 101 processos, ou 15.7% do total, - um
significativo crescimento frente ao ano anterior. As ações tendo por objeto cirurgias,
consultas e exames somaram 315 processos, ou 48% do total; as de medicamentos
foram 199, ou 30,3% do total e ainda houve 41 outras ações, ou 6,3% do total21.
Observe-se que o total de Internações Compulsórias superou a soma de todos
os demais processos, excetuando-se os relativos à Regulação e aos Medicamentos
propriamente ditos. Em 2013 houve um crescimento da representatividade das
Internações Compulsórias em relação ao ano anterior, na ordem de 15,3% do total.
Considerando-se a totalidade de atendimentos possíveis no SUS, a natureza e
urgência de muitas dessas demandas, os medicamentos de que a população
necessita, as cirurgias atrasadas, etc., e o volume que representa a totalidade das
demais demandas de saúde frente a dependência química, os números são
impressionantes.
4 – Análise dos Processos Judiciais de Internação Compulsória de
Pessoas que Usam Drogas ajuizados em 2011:
Para a finalidade de nossa pesquisa, foi escolhido o ano de 2011, já que o risco
de insucesso na localização das partes é maior quanto mais antigo é o ajuizamento.
21
No topo dos ajuizamentos em Gravataí encontram-se as ações relativas a cirurgias, exames, consultas
ou tratamentos de saúde em geral, dentre aqueles cujas vagas e prestadores são controlados pelo
Departamento de Regulação. Trata-se de uma peculiaridade do Município, já que o padrão é o
predomínio de ações de medicamentos. Dentre essas, predominam as cirurgias traumatológicas, exames
de CPRE, cirurgias vasculares e pedidos de encaminhamento para tratamento oncológico. Em segundo
lugar, encontram-se os ajuizamentos de ações de medicamentos, predominando pedidos de
medicamentos de competência do Estado, e que são indeferidos administrativamente por motivo de o
paciente não apresentar o CID contemplado nos protocolos clínicos, mas também medicamentos fora da
listagem de medicamentos do SUS e mesmo pedidos de medicamento oncológico e de alto custo. Na
rubrica “outros” incluem-se ações que pedem leites especiais, suplementos alimentares, fraldas,
transporte, órteses e próteses, bem como ações indenizatórias tendo como objeto questões relativas à
saúde ou aos atendimentos em unidades de saúde.
2023
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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No entanto, era necessário que houvesse algum tempo de maturação para permitir a
observação do trâmite do processo, bem como para observar se houve ajuizamentos
posteriores, e, ainda, permitir aos familiares avaliarem a eficácia das medidas.
Recortou-se o objeto, ainda, excluindo-se os processos em trâmite no Juizado da
Infância e Juventude, pela dificuldade de proceder-se contato, pelas garantias que
cercam as crianças e adolescentes em nosso sistema jurídico. Exluíram-se, também,
aqueles cujo objeto era a internação compulsória de pessoas com doenças mentais
não ligadas ao uso abusivo de substâncias psicoativas.
Durante o ano de 2011 foram ajuizados 75 (setenta e cinco) processos na Vara
de Família, contra o Município de Gravataí. Desses, excluiu-se uma impugnação de
benefício de AGJ, sete ações para vagas em ILPIs e quatro ações de internação
compulsória que onde o corréu era adolescente, e que foram encaminhadas para o
JIJ, por competência. Os 63 (sessenta e três) processos restantes são relativos a
internações compulsórias, dentro dos quais separou-se, ainda, o conjunto de ações
relativas a pacientes portadores de doenças mentais não relacionadas com drogas. O
universo da pesquisa, portanto, atinge 55 (cinquenta e cinco) processos22, embora os
dados colhidos até o momento refiram-se a apenas 50 (cinquenta) desses processos,
pois ainda não foi possível ter acesso a todos.
Os 50 (cinquenta) processos, portanto, passaram por uma análise primeira, em
que se procedeu à coleta dos dados (tais como elencados na Introdução), o que
permitiu que chegássemos às seguintes constatações:
A) Padrão de Ajuizamento Os processos de internação compulsória praticados na Comarca de Gravataí
obedecem a um padrão: tramitam na Vara de Família os processos ajuizados por
familiares, em geral representados pela Defensoria Pública (ou, mais raramente, por
advogado particular) na condição de autores, contra determinada pessoa adulta que
padece de doença psiquiátrica e/ou que usa drogas e que esteja, na visão desses
familiares, necessitando de internação psiquiátrica, ainda que contra sua vontade. A
pessoa que usa drogas ocupa o pólo passivo, isto é, responde ao processo na
condição de réu. Acompanhando-a no pólo passivo, figuram os Entes Públicos Estado
do Rio Grande do Sul e Município de Gravataí, para que sejam condenados ao
fornecimento da internação desejada.
22
Vide Quadro IV, em anexo
2024
Anais
do VIII
VIII Encontro
Encontro da
da ANDHEP
ANDHEP
Anais do
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2317-0255
Quando o usuário de drogas ou paciente psiquiátrico é criança ou adolescente,
as ações tramitam no Juizado da Infância e Juventude. É particularmente forte, aqui, a
atuação do Ministério Público na condição de autor, embora também atue a
Defensoria Pública.
Interessante referir que o padrão de ações envolvendo leitos psiquiátricos
como um todo segue o paradigma acima. Em três anos de atuação, vimos apenas 02
(dois) casos - em um oceano de praticamente 2000 processos ativos - em que o
próprio dependente químico ingressou em Juízo para obtenção de leito, o que se
poderia denominar “ação judicial de internação voluntária resistida”.
De um total de 50 processos analisados, 49 deles (ou 98%) foram ajuizados
por familiares. Em apenas 01 (um processo, ou seja, em 2% deles) houve ajuizamento
pelo Ministério Público. O padrão descrito corresponde à Vara de Família, recorde-se.
O ajuizamento por familiar dá-se, invariavelmente, pela via da Ação Ordinária,
com pedido de antecipação de tutela para que os réus - Estado e Município -,
providenciem a vaga para internação psiquiátrica na rede SUS ou, não a encontrando,
a comprem na rede privada de saúde. No pólo passivo, ainda, é acionada a pessoa
que usa drogas, frente ao qual há pedido de internação compulsória e busca e
apreensão.
B) Laudo Médico e demais documentos Os pedidos costumam ser instruídos com algum início de prova, a reforçar o
pedido de antecipação da tutela. Dentre o universo pesquisado, em 30 processos (ou
60%) houve juntada de laudo médico indicativo da necessidade de internação para
desintoxicação. Já em 20 processos (40%) os pedidos não foram instruídos com laudo
médico, mas com outro tipo de informação.
Registre-se que a LRP exige laudo médico (art. 6º), o que torna particularmente
grave o quadro apontado. Embora a maioria dos processos seja instruída com laudo
prévio, em 40% deles – um número bastante significativo – o familiar ingressa em
Juízo munido de outro tipo de documentação.
Dentre os 20 processos com essa característica, 14 deles (28%) foram
instruídos com “declarações de vizinhos”.
Tal era, no momento, praxe na Defensoria Pública, provavelmente diante da
dificuldade do familiar em levar o paciente a um médico para uma avaliação prévia, já
que os relatos muitas vezes envolviam violência ou situação de rua e, em todos os
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casos, por evidente, resistência ao tratamento. Os familiares eram, então, orientados a
buscar três vizinhos capazes de firmar uma declaração de que “fulano/a faz uso de
drogas”, reconhecer firma em Cartório e tal documento era juntado ao pedido inicial.
Houve, ainda, 03 processos (6%), instruídos exclusivamente com um Boletim de
Ocorrência. Embora, em tese, seja crime registrar ocorrência policial falsa, o valor
probatório de um BO é extremamente relativo, pois o que registra é a “queixa” do
familiar, tal como é narrada diante da autoridade policial. Já nos demais casos (03
processos), foram juntados outros documentos, como fichas de comparecimento ao
CAPS-AD, ou uma declaração de servidor do CAPS-AD, descrevendo que o familiar
procurou aquele serviço para queixar-se de que “seu filho estava usando drogas”.
Observa-se, ainda, que a imensa maioria dos laudos juntados à inicial trazem
pouco ou nenhum detalhamento sobre a situação clínica do paciente, e quase nunca
dados que esclareçam os motivos pelos quais aquele determinado paciente necessita
de internação contra a sua vontade, se foi tentado tratamento ambulatorial e falhou,
etc. Tampouco indicam período de tratamento. Em geral apenas referem que fulano é
usuário de drogas, coloca em risco sua família, que não consegue ficar abstinente,
não adere ao tratamento e, ato contínuo, indicam internação psiquiátrica. Poucos,
inclusive, referem a droga ou as drogas de eleição do paciente e, quase nunca, há
referência ao tipo de tratamento indicado ou tempo de duração do mesmo.
C) Deferimento do Pedido de Antecipação da Tutela Dentre o universo pesquisado, houve o deferimento do pedido de antecipação
da tutela em todos os casos. Em apenas 01 (um) caso a primeira manifestação do
juízo foi de indeferimento. Tal deveu-se ao fato de que a inicial não fora instruída com
qualquer informação sobre o paciente. Logo em seguida, porém, a parte autora juntou
três declarações de vizinhos e a antecipação da tutela foi deferida.
Da análise realizada até o presente momento deriva a constatação da
simplicidade da instrução de pedidos de internação compulsória, e, também, da
ausência de critérios rígidos para deferimento dos pedidos de antecipação da tutela.
Para fins de ilustração, colaciona-se exemplo de decisão interlocutória padrão
na época (2011):
Vistos. Defiro o benefício da gratuidade da justiça à parte autora. Trata-se de
Ação Ordinária com pedido de tutela antecipada ajuizada por FULANO em
face de FULANINHO, seu filho, bem como em desfavor do Estado do Rio
Grande do Sul e do Município de Gravataí. Narrou a petição inicial, em suma,
que o requerido é portador de dependência química, usuário de múltiplas
2026
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drogas, não conseguindo abster-se do consumo das drogas, constituindo
risco para si e sua família. Pede a internação de seu filho, bem como a
antecipação dos futuros efeitos da eventual sentença de procedência. Passo
a analisar a tutela de urgência requerida. Efetivamente os fatos narrados na
inicial dão conta de que a situação em que se encontra o réu é de extrema
gravidade, pois é usuário de drogas. De outra banda, cabe ressaltar que o
demandado não está se submetendo a qualquer tratamento para combate de
sua dependência, razão pela qual é necessária a intervenção judicial. Com
efeito, presentes os requisitos do artigo 273 do Código de Processo Civil.
Diante disso, DETERMINO seja o requerido AVALIADO e, caso seja indicado
pelo profissional da área médica a INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA do réu
FULANINHO, o Município de Gravataí deverá proceder, em prazo não
superior a 48h, a internação do requerido em leito público, ou comprar vaga
em instituição hospitalar privada, com ala psiquiátrica, para internação e
tratamento enquanto durarem os sintomas que ensejaram a medida.
Outrossim, enquanto não efetivada a medida, e sendo caso de internação,
deverá o requerido permanecer internado no SUE 24h, até a obtenção da
vaga em instituição adequada para seu tratamento pelo Município de
Gravataí. Expeçam-se os ofícios que se fizerem necessários para o
cumprimento da medida, bem como mandado de busca e apreensão do
requerido e de intimação do SUE 24h. Intime-se, com urgência, na pessoa do
Secretário da Saúde. Outrossim, sabido que a medida de internação é
paliativa e visa apenas a afastar o risco risco atual a que a pessoa esteja
submetida em razão dos efeitos da droga, necessário, nestes casos, após a
internação emergencial, o encaminhamento do requerido para tratamento
terapêutico do seu vício. Assim, a parte autora fica desde já advertida de que
após a internação de emergência, deverá providenciar no engajamento do réu
em tratamento terapêutico de seu vício, comprovando os esforços envidados
para tratamento adequado da ré na rede pública, juntando relatórios de
atendimento ou outros documentos que demostrem que ao menos houve a
tentativa de recuperação do drogadito. No mais, citem-se. Diligências.
O conteúdo das decisões que deferem liminarmente o pedido, por insistência
da atuação da Procuradoria Geral do Município quanto à necessidade de laudo,
passaram a contornar de forma bastante inteligente essa lacuna: antes, os Juízes
simplesmente determinavam a internação. A partir de dado ponto, passaram a
determinar que o suposto usuário fosse encaminhado ao Serviço de Urgência e
Emergência e, uma vez lá, avaliado por profissional médico. Se esse profissional
médico indicasse a internação, o Município deveria providenciá-la de imediato
A boa vontade e a cautela dos magistrados em não determinar diretamente a
internação sem avaliação médica, evitando distorções, não foi capaz de contornar o
problema da imposição simbólica do Mandado Judicial. Houve relatos informais de
médicos que expressaram medo de futura responsabilização (nada garante que
alguém com alta médica não irá envolver-se em um episódio de violência). Na prática,
constatou-se que todos os pacientes judicializados acabam sendo internados.
2027
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Tal modelo gera um hibridismo entre as IIs e as ICs, e acaba por banalizar as
avaliações médicas, que não se sentem obrigadas, sob o manto da ordem judicial, a
prover os requisitos legais previstos para as IIs, gerando um efeito de deslocamento
da responsabilidade:
“determino se o médico indicar” / “já que há um mandado
judicial, interne-se”. Tal modelo ao menos tem a vantagem de evitar distorções como
as narradas no estado de Santa Catarina, em que pacientes com alta médica são
mantidos institucionalizados, aguardando manifestação judicial23.
D) Das referências às Drogas Utilizadas São muitos os processos em que não há referência à droga supostamente
utilizada. Em geral, como veremos, pouca ou nenhuma informação é dada a posteriori
e contamos, quase sempre, com o laudo (ou mero relato) que instrui a inicial. Pelo que
foi possível apurar, num universo de 50 processos, 23 deles fazem referência à
“múltiplas drogas” (ou 28% dos casos); 14 deles fazem referência, exclusivamente, ao
crack (28%), em 04 processos, exclusivamente álcool (8%); e os demais apresentam
incongruências. Dos 06 processos (12%) que referem uso de cocaína, em metade
deles apenas é indicado o CID F14.2, que refere “transtornos mentais e
comportamentais devidos ao uso da cocaína”, sem especificar, no entanto, se de
forma fumada (crack) ou aspirada (pó). Os restantes 03 (três) processos (ou 6%) dos
casos fazem referência apenas a “drogas”.
Dentre os 28 casos de “múltiplas drogas” aparecem o álcool (13 casos), o crack
(04) a cocaína (01) e, em 13 deles, a referência às “múltiplas drogas” não especifica
quais drogas seriam essas. Assim, se somarmos os 13 casos de “múltiplas drogas”
inespecíficas com os 03 casos cuja notícia é apenas que o corréu usa “drogas”,
teremos 16 casos, ou 28% do total. Ou seja: em um processo judicial cujo objeto é o
tratamento de um paciente que sofre de dependência química contra sua vontade,
defere-se internação psiquiátrica, contesta-se, replica-se e sentencia-se sem ao
menos saber exatamente que droga é usada24.
E) Da Posição do Réu (suposto usuário) no Processo O dado seguinte diz respeito à presença do corréu nos atos processuais. A
rigor, o padrão de ação praticada coloca os supostos usuários de drogas como réus, e,
23
Vide DEOMARIO (2012). Fatos também referidos em CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (2012).
24
Não há notícias de outro processo de internação compulsória envolvendo adulto por uso de maconha
mas houve um caso, recentemente, de pedido proveniente do Ministério Público de internação de
paciente adolescente por uso de cannabis, embora associado a transtornos comportamentais (reais ou
imaginários) e situação familiar extremamente complexa.
2028
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como tais, precisam ser citados, isto é, notificados formalmente para que respondam a
ação. Em 40% dos casos não houve citação. Já houve casos de processos que foram
sentenciados sem que houvesse citação do corréu.
Sobre esse aspecto, registre-se, ainda, que jamais corréu algum contestou a
ação, a não ser em um único caso, em que foi nomeado curador especial (um
Defensor Público) que contestou por negativa geral.
Alega-se, por vezes, ser desnecessária a citação ou a presença do réu ou,
ainda, quando incapaz de compreender o ato, costuma-se negar os pedidos de
nomeação de curador especial, sob a alegação de que não há conflito de interesses
entre o paciente e seu familiar, gerando-se caso, ímpar, de lide “sem” conflito de
interesses25.
Outro ponto diz respeito à questão da não-participação do réu (suposto
usuário) no curso do processo, ainda que na condição de “objeto” da intervenção
estatal em sua liberdade. Nos casos analisados, apenas em um (02%) deles houve
audiência (a pedido do Município) e, ainda assim, sem a participação do réu.
Mesmo no que respeita às informações acerca do estado de saúde do réu, os
processos analisados revelaram-se surpreendentemente pobres. Em 42% dos casos
(21 processos) não há qualquer tipo de informação adicional acerca do cumprimento
da medida judicial. Os processos, com mais de dois anos de trâmite, chegam muitas
vezes ao final sem qualquer notícia do progresso do caso, da situação do paciente, se
houve adesão ao tratamento, se o paciente fugou, ou eventualmente veio a óbito. Se
25 Do ponto de vista processual trata-se de uma inovação jurídica incompreensível. Sem citação do
corréu, sequer correria o termo inicial do prazo para apresentação de contestação por parte dos Entes
Públicos. Jamais poderia haver sentença. Porém, ao chegar ao Tribunal de Justiça, alguns casos dessa
natureza têm sido julgados da seguinte forma: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PROCESSUAL
CIVIL. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA. CURADOR ESPECIAL. Nos casos de avaliação e internação
compulsória não há conflito de interesses, não sendo cabível a citação do paciente nem a nomeação de
curador especial. RECURSO PROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70055464861, Sétima Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 08/07/2013)”. Ou seja,
encontra-se o modelo praticado diante de uma (dentre várias) aporia: o processo é litigioso enquanto
confortável que o seja. Diante de potencial violação da liberdade individual de um suposto usuário de
drogas, deixa de sê-lo. Interessante que a lide somente existiria colocando-se o interesse do autor/familiar
contra o interesse, justamente, do drogadito/réu. Inclusive, pode-se considerar que perante os Entes
Públicos a “lide” (enquanto litígio, conflito de interesses) é ficta, já que em processos relativos à saúde
entende a jurisprudência atual que inexiste necessidade de negativa administrativa. Nos casos de
internação compulsória, ademais quando as decisões passam a referir a necessidade de avaliação
médica prévia e – “se indicada” – posterior internação, tampouco há sentido em considerar os Entes
Públicos no pólo passivo, pois há carência de ação. Não ouve – e não se pode pressupor que existapretensão resistida. Ademais, não era legítima a demanda do familiar contra o usuário de drogas antes
que houvesse indicação médica de internação. Muito menos contra os Entes Públicos, pois, no mais das
vezes, os serviços de saúde sequer sabiam da existência do usuário, que dirá de sua (eventual)
necessidade clínica de internação.
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desejarmos informações médicas, a ausência de dados sobre para alarmantes 82%
dos casos (41 processos).
Dos apenas 09 processos (ou 18%) que apresentaram laudo médico posterior
ao pedido inicial, quatro deles o fazem a pedido dos familiares, que o juntam ao
processo para instruir novo pedido judicial de internação compulsória.
Ou seja, tem-se que o padrão predominante é a frágil instrução dos pedidos e a
ainda mais frágil instrução do processo. Muitos processos são sentenciados movidos
pelo automatismo26.
Não há, de fato, em Gravataí, controle judicial das altas médicas. O
cumprimento dá-se com a avaliação e encaminhamento do paciente a uma clínica
contratualizada (em 2011 eram as clínicas Gramado e Nova Vida, ambas localizadas
em Porto Alegre), para um período de desintoxicação que variava entre 15 e 28 dias.
Em geral, recebiam alta do psiquiatra responsável, sem que fosse providenciada – ou
exigida – comunicação nos autos.
F) Da Reiteração dos Pedidos O levantamento realizado apresentou uma taxa de 80% dos processos
que, ao menos até a data pesquisada, não haviam sido instruídos com novos pedidos
de internação. Em 10 casos (20%) houve novos pedidos. Dentre esses, 04 (ou 40%)
foram instruídos com laudo médico, enquanto que em 06 deles (60%) houve juntada
de declarações de vizinhos.
Já em relação à ocorrência de outras ações envolvendo a mesma parte
(a pesquisa foi feita pelo nome do usuário de drogas), em trâmite na Vara de Família,
dos 50 casos analisados, 29 dos réus (ou 58%) são réus em outros processos de
mesmo objeto, anteriores ou posteriores. Dois dos supostos usuários respondem ou
responderam a mais quatro processos semelhantes.
A presença de reiterados pedidos em um mesmo processo – ou a
existência de mais processos com as mesmas partes,
objeto e causa de pedir
26
Caso curioso ocorreu em processo em que foi juntada promoção do Ministério Público pedindo para
oficiar-se ao SUE 24 Horas, para que o serviço informasse se o paciente fora internado, as causas da
alta e outros dados. O Juízo deferiu o pedido e expediu o ofício. O SUE 24 Horas respondeu ao ofício
informando que “para localizar o prontuário do paciente era necessário informar dia, mês e ano da
internação” (o sistema não é informatizado e os prontuários são guardados por data). Ou seja: os dados
requeridos pelo Ministério Público e deferidos pelo Juízo não foram aos autos. Em seguida, dá-se vista à
Defensoria Pública, que se manifestou apenas com promoção manuscrita, no verso do documento (em
juridiquês, “manifestação por cota”) apenas dizendo-se “ciente do ofício respondido” (!). Em seguida,
processo vai para sentença sem as informações “necessárias” e com um ofício que, a propósito, ninguém
parece ter lido.
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(litispendência) - é de difícil interpretação, sem que tenhamos os motivadores que
operaram nos atores envolvidos. Tal reiteração pode tanto significar a falência da
internação compulsória em termos de eficácia de tratamento para manutenção do
paciente em abstinência, quanto seu relativo “sucesso” (afastar paciente das ruas em
momento em que sofre ameaças de traficantes ou outros usuários, dar um “descanso”
para a família, evitar suicídio ou risco de auto ou heteroagressão, etc), ainda que
ideologicamente clivado. De alguma forma, muitos familiares recorrem novamente à
justiça. A etapa posterior envolve entrevistas pessoais, e pretende iluminar a questão.
Por fim, ressalte-se que, de fato, vários pacientes estiveram vinculados
ao CAPS-AD antes do ajuizamento da ação. Dos pacientes pesquisados, o CAPS-AD
retornou que possuía registro de 31 deles (62%), todos eles com vínculo anterior ao
processo judicial. Desses, apenas 12 (ou 24%) do total, retornaram ao CAPS-AD
pouco após a internação, sendo que nenhum deles, porém, mantém vínculo ativo com
o serviço no presente. Hipótese ainda a ser verificada é se a institucionalização
forçada afasta o paciente dos serviços de saúde, e por quê.
5 – Considerações Finais:
Apesar dos esforços de construção de uma nova política de saúde
mental, da formação de um consenso de valorização dos direitos humanos dos
pacientes psiquiátricos e de toda a rediscussão do proibicionismo em relação às
drogas que hoje assistimos, parece estar havendo retrocessos no sentido de permitir o
retorno, através de ideologias da lei e ordem e higienistas, do modelo asilar e
hospitalocêntrico anteriormente praticado. Parece haver um movimento de “ContraReforma Psiquiátrica” em curso.
Parte desse movimento de retorno do modelo asilar, ao que parece, é
reforçado pela exploração emocional do senso comum midiático, em especial após o
advento do fenômeno “crack”27; em parte, assomam-se interesses pecuniários e de
dominação política. Mas uma parte significativa pode ser creditada à Judicialização. A
relação do proibicionismo com as ICs é fato a ser investigado, mas, por hipótese,
27 Nesse sentido “O uso indiscriminado da internação compulsória ou involuntária como principal
alternativa, principalmente no que se refere às pessoas em situação de rua, e antes mesmo da utilização
de ações extra-hospitalares de base territorial, reflete ainda importante força das concepções moraljurídica e biomédica, tão amplamente discutidas pela reforma psiquiátrica, no campo de trabalho com
usuários de drogas. Percebe-se que, quando o fenômeno do uso de crack extrapolou os limites dos
espaços privados ou discretos para seu uso e se tornou rotina de um extenso grupo de excluídos
socialmente, que passaram a consumir a droga nos espaços públicos das pequenas e grandes cidades
brasileiras, a perspectiva de internação aparece como resposta ao clamor popular para solucionar o
problema de segurança e realizar a assepsia dos espaços públicos ocupados por tão perigosos e
desagradáveis inquilinos” (ASSIS ET AL. 2013).
2031
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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presente. Soma-se, ainda, o sofrimento das famílias, a pressão midiática e social, o
medo da responsabilização moral. Tudo isso acaba por clivar ideologicamente parcela
significativa do Judiciário, tornando o contato entre o sistema jurídico e o sistema de
saúde não eivado de poucas contradições.
Impende realizar o diálogo entre os campos jurídico e de saúde mental de
forma mais transparente28.
Como se viu, a internação compulsória é potencialmente violadora de direitos.
E tais violações não se resumem à autonomia privada dos indivíduos. Pode estar em
cheque algo menos óbvio, também, e de igual importância: a violação de direitos
econômicos, sociais e culturais, como o próprio “direito à saúde”, haja vista a situação
concreta vivenciada (Conselho Federal de Psicologia, 2011), ou mesmo o que se
extrai da presente pesquisa: as intervenções podem representar mais um passo nas
frustrações no isolamento social das pessoas que usam drogas.
O tratamento da saúde pelo direito não deve ser objeto de espetacularização,
tanto quanto de rotinização burocrática. Por vezes, como ensinaram Joaquin Herrera
Flores, Franz Hinkelammert e David Sanchez Rubio, dentre outros, (vide HERRERA
FLORES, 2000), o discurso dos direitos humanos (direito à saúde do usuário), se
retirado de seu contexto, e se utilizado de forma idealística ou espetacularizada, pode
servir para reforçar políticas de exclusão, segregação e afastamento dos serviços.
Sem compreensão do contexto, pode-se cair em “inversões ideológicas”, como: para
preservar-se o direito à saúde, intervêm-se, sem conhecimento, em serviços de saúde,
tendo como resultado o efeito diverso do esperado – além do efeito de negar aos que
não recorrem ao judiciário (ferindo o princípio da igualdade) o acesso a esses mesmos
serviços.
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ASSIS, Jaqueline de. Et At. A Internação para Usuários: Diálogos com a Reforma
Psiquiátrica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo
16(04)
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584.
dezembro
de
2013.
Disponivel
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http://www.scielo.br/pdf/rlpf/v16n4/07.pdf. Acesso em 12.04.2014.
Nesse sentido, coloca ZIMMER (2011): “No campo da Saúde Mental, entendemos tais ações de
exclusão e asilamento de pessoas, como um movimento de Contra-Reforma Psiquiátrica. Apontamos
também para um ponto frágil no movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira. O diálogo com o judiciário,
o enfrentamento dos tensionamentos tornam-se necessários para recolocar a questão da loucura na
sociedade contemporânea”.
28
2032
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
BARROS, Daniel Martins de e SERAFIM, Antonio de Pádua. Parâmetros legais para a
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2033
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
ANEXOS –
Quadro I – Total de Processos Relativos à Saúde na Comarca de Gravataí –
Município de Gravataí como réu –
Ano
Nº de Processos
Saúde
Percentual em
relação ao ano
anterior
2006
43
2007
181
+ 320%
2008
242
+ 33%
2009
382
+ 57%
2010
446
+ 16%
2011
426
- 4,5%
2012
528
+ 24%
2013
656
+ 24%
2014 (até março)
88
2014 (projetado)
88 x 4 = 352
- 53%
2034
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Quadro II - Total de Processos Relativos à Saúde –Total na Vara de Família –
Percentual em relação ao ano anterior (ajuizamentos na Vara de Família) –
Percentual dos processos da Vara de Família em relação ao montante de
Processos Relativos à Saúde na Comarca de Gravataí –
Ano
2006
Nº
Processos
Saúde –
43
Vara de Família
% em relação ao
ano anterior
01
% em
relação ao
montante
total
Processos
Saúde
2,3%
(07 de 2003 a 2006)
2007
181
31
+ 3100%
17,3%
2008
242
73
+ 135%
30%
2009
382
92
+ 26%
24%
2010
446
90
- 0,46%
20%
2011
426
75
- 16,6%
17%
2012
528
59
- 21,3%
12%
2013
656
81
+ 37%
12,3%
2014 (até
março)
88
04
- 80%
4,5%
2014
88 x 4 = 04 x 4 = 16
(projetado) 352
2035
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Quadro III Processos/ Objetos - Direito à Saúde –
ANO 2012
OBJETO
TOTAL
Percentual / 528
Cirurgias, Exames,
Consultas
214
40,5%
Medicamentos
205
38,8%
Internações
Compulsórias (VF e
JIJ
63
12%
Outros
46
8,7%
TOTAL
528
100%
TOTAL
Percentual / 528
Cirurgias, Exames,
Consultas
315
48,0%
Medicamentos
199
30,3%
Internações
Compulsórias (VF e
JIJ)
101
15,4%
Outros
41
6,3%
TOTAL
656
100%
ANO 2013
OBJETO
QUADRO IV VF 2011
TOTAL ICs
AD
Doença Mental
75
63 (100%)
55 (87%)
08 (13%)
2036
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DEMONSTRAÇÃO DAS TENDÊNCIAS E PADRÕES NOS PROCESSOS DE
INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA EM GRAVATAÍ – Total Pesquisado: 50 processos.
1 - Quem ajuiza:
Familiar: 49 (98%)
Ministério Público: 01 (2%)
2 - Presença de Laudo Anterior
30 SIM (60%)
20 NÃO (40%)
Tipo de informação: 30 (60%) Laudo Médico
03 (6%) B.O.
14 (28%) Declarações de Vizinhos
03 (6%) Outros
2037
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3 - Deferimento imediato da liminar:
SIM – 49 (98%) - NÃO – 01 (02%)
4 - Tipo de Droga:
Crack 14
Cocaína - 06
Álcool - 04
“Drogas” - 03
Múltiplas Drogas 23
Das quais aparecem: Cocaína 01
Crack 04
Álcool 13
Não Especificada 13
2038
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5 - Citação do Corréu (dependente químico) –
SIM – 30 (60%)
NÃO – 20 (40%)
6 – Realização de Audiência de Instrução –
NÃO – 49 processos (98%) SIM – 01 processo (02%)
7 - Informação nos autos
SIM – 29 (58%)
NÃO – 21 (42%)
2039
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8 - Avaliação Médica nos Autos (posterior ao ajuizamento)
SIM – 09 (18%)
NÃO – 41 (82%)
9 - Novo Pedido nos Autos
NÃO – 40 (80%)
SIM – 10 (20%)
Instrução dos novos pedidos (total = 10 processos)
LAUDO MÉDICO – 04 (40%)
DECLARAÇÕES DE VIZINHOS – 06 (60%)
2040
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10 - Outros Processos (anteriores ou posteriores)
29 - SIM (58%)
21 - NÃO (42%)
Entre os quais:
Outro (único) – 12
Outros 02 – 11
Outros 03 – 04
Outros 04 - 02
11 - Estado atual do Processo
Em andamento
30
Julgado
20
- Dos quais:
Sentença de Mérito 07
Extinção
13
2041
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PROCEDIMENTO PARA INTERNAÇÕES COMPULSÓRIAS
TERMO DE ESCLARECIMENTO E CONSENTIMENTO
1. Para ingressar com Ação Judicial para Internação Compulsória ou fazer
pedido de internação compulsória em processo em andamento é essencial a
apresentação pela parte deste formulário integralmente preenchido pelo CAPS-AD
comprovando que o paciente precisa de internação e que ele e/ou seu familiar aderiu
aos tratamentos fornecidos pelo CAPS - AD.
2. Para o CAPS-AD preencher esse documento, o dependente químico e/ou
seus familiares deverão comparecer ao CAPS-AD, localizado na Rua Santa Fé nº 249,
parada
64,
Gravataí/RS
(telefone:
3421-5060)
para
passar
por
entrevistas
de
acompanhamento com a finalidade de identificar a real necessidade de internação e de
aprender a lidar melhor com os problemas causados pela dependência química.
3. Apenas quando constatada a total impossibilidade de tratamento espontâneo
(por livre e espontânea vontade) pelo paciente e que o familiar está comprometido com o
tratamento do dependente químico é que se fará pedido de internação compulsória pela via
judicial
A comprovação de que o familiar do dependente químico está comprometido
com o tratamento será feita pela apresentação desta ficha de atendimento totalmente
preenchida pelos profissionais do CAPS-AD.
4. A internação do paciente, se necessária, é feita em clínica conveniada, pelo
período de 15 (quinze) dias, onde o paciente é medicado e é fornecido tratamento dos
sintomas mais graves da abstinência (falta da droga no organismo). Após esse período, é
necessário o acompanhamento permanente do paciente no CAPS-AD.
Também pode se fazer necessária a internação em Comunidade Terapêutica.
Essas comunidades, no entanto, somente podem receber pacientes que concordem com o
tratamento, sendo inviável mantê-los à força naquele local.
Estou plenamente ciente e esclarecido(a) quanto aos termos acima
Nome do paciente:
Nome do familiar responsável:
Assinatura: ..........................................................................................Data: / /2014
2042
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
DADOS DO PACIENTE E DE FAMILIAR [preenchimento obrigatório pela Defensoria
Pública]:
Nome do paciente:
Idade do paciente:
Endereço do (ou local onde se encontra o) paciente:
Nome do familiar responsável:
Endereço e telefone do familiar responsável:
Data:
Descrição resumida dos eventos que levaram o familiar a procurar a Internação
Compulsória (descrever tipo(s) de droga utilizada, se há evento de agressão, B.O.,
processo judicial anterior):
2043
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
[ preenchimento obrigatório pelo CAPS-AD]
Descrição complementar dos eventos que levaram o familiar a buscar o CAPS-AD:
…......................................................................................................................................
…......................................................................................................................................
…......................................................................................................................................
…......................................................................................................................................
…......................................................................................................................................
…......................................................................................................................................
ATENDIMENTOS no CAPS-AD (de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, salvo nas terças,
em que o atendimento é interrompido entre às 12h30 até às 15h) :
1º Atendimento – ACOLHIMENTO
Data: ___/___/______
Tipo de atendimento e relatório: …...................................................................................
….......................................................................................................................................
….......................................................................................................................................
….......................................................................................................................................
2º Atendimento – INTEGRAÇÃO
Data: ___/___/______
Tipo de atendimento e relatório: …...................................................................................
….......................................................................................................................................
….......................................................................................................................................
….......................................................................................................................................
3º Atendimento – GRUPO DE FAMÍLIA
Data: ___/___/______
Tipo de atendimento e relatório: …...................................................................................
….................................................................................................................
….......................................................................................................................................
4º Atendimento – GRUPO DE FAMÍLIA
Data: ___/___/______
Tipo de atendimento e relatório: …...................................................................................
….......................................................................................................................................
….......................................................................................................................................
….......................................................................................................................................
2044
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
5º Atendimento – GRUPO DE FAMÍLIA
ISSN: 2317-0255
Data: ___/___/______
Tipo de atendimento e relatório: …...................................................................................
….......................................................................................................................................
….......................................................................................................................................
….......................................................................................................................................
6º Atendimento – GRUPO DE FAMÍLIA
Data: ___/___/______
Tipo de atendimento e relatório: …...................................................................................
….......................................................................................................................................
….......................................................................................................................................
….......................................................................................................................................
BUCAS ATIVAS:
1ª Data: ___/___/______
Local: ..........................................................................................................................................
Descrição da abordagem:
…......................................................................................................................................
…............................................................................................................................................
…..................................................................................................................................................
2ª Data: ___/___/______
Local: ..........................................................................................................................................
Descrição da abordagem:
…......................................................................................................................................
…............................................................................................................................................
…..................................................................................................................................................
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
ADOLESCENTES ENVOLVIDOS EM ATOS INFRACIONAIS E A AÇÃO POLICIAL
Autores:
José Nilton de Sousa – Universidade Federal Fluminense/UFF
Liliane Cardoso d’Almeida – Programa Oficina do Saber/UFF
Resumo:
O estudo discute “as relações que se produzem quando
um(a) adolescente autor(a) de ato infracional é
encaminhado a uma Delegacia Especial de Proteção –
DPCA.” Para tal discussão, nos apoiamos na ideia do
controle social – entendido este como relações sociais
capazes de garantir a conformação comportamental dos
indivíduos a um conjunto de regras e princípios
estabelecidos numa sociedade.
Palavras-chaves: Controle Social, Adolescentes, Polícia.
Abstract:
The study discusses "relations that occur when a
teenager, author of an act of infringement, is taken to a
Special Police Protection – DPCA”. For this discussion,
we support on the idea of social control, considering it as,
social relations which ensure the behavior conformation of
individuals to a set of rules and principles in a society.
Keywords: Social Control, Adolescents, Police
2046
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
APRESENTAÇÃO
O trabalho tem como elemento central estudar as relações que se produzem
quando o adolescente autor (a) de ato infracional é encaminhado (a) a uma autoridade
policial de uma Delegacia Especializada de Proteção – DPCA(s). Para seu
desenvolvimento nos apoiaremos em discussões a respeito das estratégias de
controle social desenvolvidas pela sociedade brasileira, ao logo de sua história1 para
com as crianças e adolescentes das camadas desfavorecidas economicamente. E
leituras e análises de informações a partir de dois bancos de dados a respeito dos
jovens que foram levados a DPCA de Niterói entre os anos 2008 e 20092.
Segundo Correia (2006), o termo “controle social” é empregado no campo da
sociologia para dar conhecimento dos mecanismos que estabelecem a ordem social
acomodando a sociedade e submetendo os indivíduos a determinados padrões sociais
e princípios morais. Desta maneira, garante a resignação de comportamento dos
indivíduos a um conjunto de regras e princípios estabelecidos e aprovados. Prossegue
a autora, colocando que na teoria política o significado de “controle social” é ambíguo,
podendo ser formado tanto a partir da noção do controle do Estado sobre a sociedade
quanto para marcar o controle de setores organizados da sociedade civil sobre as
ações do Estado.
Esclarecemos que a noção de controle social trabalhada neste estudo tem
como referência o campo da sociologia e perpassa pelas estratégias de controle
construídas historicamente como forma de instituir determinados padrões sociais e
culturais. Objetivamos, ainda, perceber a correspondência entre o controle social, a
criminalização da pobreza e a ocorrência do controle social institucionalizado, com
ênfase na instituição polícia, sobre crianças e adolescentes oriundos das camadas
menos favorecidas.
Torna-se importante salientar que ao longo, de nossa história vivenciamos
duas Doutrinas – Direito Penal do Menor e Situação Irregular do Menor – e estamos
em processo de implementação da terceira – a Doutrina de Proteção Integral (CUNHA,
1998).
A doutrina do Direito Penal do Menor tendo como referência o Código Penal de
1830 preocupou-se especialmente com a delinquência e baseava-se na "pesquisa do
discernimento" como meio de decidir pela responsabilidade de um jovem. O dito
“menor” tornava-se responsabilidade do Estado quando vítima de algum tipo de delito
1
Esse percurso é importante para apreendermos o modo como às ideias circulam Ginzburg (1991), e remontam a um
processo de longa duração histórica.
2
Banco DPCA/Niterói com os dados coletados na Delegacia de Acervo Cartorário de Niterói e Banco com dados
fornecidos pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro.
2047
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
ou quando agente de algum tipo de delito penal. No primeiro Código Penal
Republicano de 1890, esta prática sofreu pequena limitação onde se reconheceu a
“inculpabilidade” para os menores de 9 anos e manteve para os até 14 anos o exame
de discernimento.
Essa tendência em especificar o jovem com conduta rotulada de desviante fez
com que o termo menor, usado juridicamente, fosse se transmudando para uma marca
do sujeito. Como o Direito Penal do Menor se aplicava aos jovens praticantes de
algum tipo de delito penal o termo menor foi se associando aos mesmos. Com o
tempo essa marca ganha uma dimensão sociológica ao ponto de adquirir o poder de
ditar a função e a posição social de um sujeito, quando relacionado a um episódio
conotado como crime (RODRIGUES, 2000), (BULCÃO, 2002), (SHECAIRA, 2007).
Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX o país passou
por modificações políticas, sociais e econômicas que influíram no reposicionamento do
lugar social e do modo de relacionamento dos sujeitos. Essa dinâmica chegou à esfera
das crianças e adolescentes, em 1923, com a instituição do primeiro Juízo de Infância
do Brasil e do Código de Menores de 1927. A inspiração assistencialista deste Código
produziu a ambiência favorável da Doutrina da Situação Irregular orientadora das
formulações de políticas públicas para área da infância nos cinquenta anos seguintes.
Em decorrência de vários percalços, em 1979, é instituído um novo Código de
Menores em que seu primeiro artigo dizia, “esta Lei trata da proteção e da vigilância
dos menores em situação irregular”, sinalizando que a “nova” ordem deveria estender
a tutela do Estado aos jovens abandonados e aos carentes (CUNHA, 1998, pag. 15).
Ao longo do século a doutrina da situação irregular consolidou a institucionalização de
crianças e adolescentes e teve sua mais expressiva representação na Fundação
Nacional de Bem-Estar do Menor – FUNABEM.
O Código de 1979, se comparado ao de 1927, não teve vida muito longa, pois
o seu sustentáculo político se abalava na medida em que a esperança no retorno da
democracia se anunciava. Em função de mobilização de vários setores sociais ao final
da década de 1980 promulgou-se a Constituição Federal de 1988. Nessa
reorganização de forças políticas a esfera das crianças e adolescentes se reestruturou
através dos artigos 227 e 228. Em 13 de julho de 1990, foi aprovada a Lei Federal
8069 – Estatuto da Criança e Adolescente - ECA. Esta Lei destaca o princípio da
prioridade absoluta e define como sujeito de direitos toda criança ou adolescente,
independente de classe social, cor da pele ou religião.
Sendo assim, os princípios destacados pelo ECA ao mesmo tempo que
promovem condições para eliminação do uso do termo menor sinalizam que a pobreza
não pode mais ser justificativa para a intervenção judicial. Na esteira da mudança de
2048
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
parâmetros, o ECA estabelece que somente adolescentes responsáveis pelos
chamados ‘atos infracionais’, (atos descritos na legislação penal como crimes ou
contravenção) receberão medidas sócioeducativas, que devem ser executadas, seja
em meio aberto ou privativo de liberdade, em locais diferentes das medidas protetivas.
Apesar de todos os avanços da Lei 8069/90 e do seu reconhecimento no plano
internacional percebemos que a realidade em torno de muitas crianças e adolescentes
não se alterou, ainda, substancialmente, a partir dos ditames da lei. Pelo contrário,
constatamos práticas tutelares e repressoras, em especial no tocante à questão do
adolescente envolvido em ato infracional.
As práticas sociais em relação às intervenções no atendimento aos
adolescentes em situações de conflito com a lei, especialmente, no sistema
socioeducativo, incluindo os atendimentos nas Delegacias de Proteção a Criança e
Adolescente, DPCA(s), podem ser configuradas como de não cidadania e boa parte
dos adolescentes, especialmente os que cumprem tais medidas encontram-se
submetidos a situações degradantes e de não-garantia de seus direitos.
Considerando as conclusões do “Levantamento Nacional do Atendimento
Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei3” dos anos e 1996 a 2009,
observamos a tendência e evolução da aplicação das medidas socioeducativas em
todo o país. Entre as 58.504 milhões de crianças e adolescentes4 brasileiras, em 2009,
havia em torno de 16.940 adolescentes cumprindo medidas socioeducativas, sendo
que 11.901 na internação, 3.471 na internação provisória e 1.568 em semiliberdade,
em ambos os sexos.
Os dados apontam para uma enorme diferença nas taxas de crescimento de
internação entre os Estados da Federação, demonstrando que a preocupação pelo
controle social e a vigilância ainda prevalece entre as medidas a serem tomadas. Há
uma tendência ao encarceramento juvenil que, muitas vezes, se fundamenta não na
lei, mas numa suposta periculosidade atribuída aos antecedentes dos adolescentes, à
falta de respaldo familiar, ao desajuste social, ao uso/abuso de drogas... Sendo assim,
a medida de internação toma a forma de segregação. A antropóloga Alba Zaluar
coloca que:
“Em lugar de investigação criminal bem feita e aplicável a todos
os casos, uma evidente adesão à profecia do pobre perigoso,
do menino carente monstruoso, faz da atitude policial orientada
3
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, SEDH. Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo ao
Adolescente em Conflito com a Lei, realizado no período de 20/12/2009 a 22/02/2010.
4
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Indicadores Sociais de 2008. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, 2008.
2049
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
por teorias criminológicas ultrapassadas um fator a mais na
repetição da criminalidade”. (ZALUAR, 1994, pag.63).
À institucionalização5, (SEDH, 2010, pag. 9), de crianças e adolescentes
demonstra que as raízes de uma ideologia de criminalização da pobreza fincaram-se
profundamente no modo de ser da sociedade brasileira, garantindo até hoje a
sobrevivência de maneiras e discursos sobre o “tratamento do problema do menor”,
seja ele carente, órfão, abandonado ou infrator.
A ideologia de criminalização da pobreza que se faz presente na proposta de
diminuição da idade penal dos jovens6 não considera que esses são também vitimas
de violência, a correlação mais expressiva desta violência encontra-se no volume
absurdo de homicídios que ocorrem por todo o território Nacional.
Independente das determinações do ECA e do SINASE (Sistema Nacional
Sócio Educativo)7 que indicam a necessidade de novas unidades e de melhorias nas
condições para atender o adolescente em meio fechado, entendemos que apenas
construir novas unidades ou melhorar as existentes não solucionará totalmente o
problema dos atos infracionais praticados por adolescentes.
Há necessidade de
justiça social, escola não excludente, melhor distribuição de renda e outras medidas
sociais, não só junto ao adolescente, mas também, de modo imprescindível, junto à
sua família. Tais necessidades se fazem indispensáveis, especialmente quando se
trata de jovens de origem popular; porém não devemos descartar que os
enfrentamentos deste fenômeno exigem mudanças do modo de ser de nossa
sociedade. A questão, como se vê, é bastante complexa. Podemos assumir que a
infração juvenil é resultado de múltiplas determinações e seu enfrentamento, quanto à
execução das medidas com vista a uma “reintegração” do adolescente à comunidade,
requer que cada etapa seja a mais qualificada possível.
Uma etapa, pouco estudada, mas que requer um olhar aguçado visto ser a
porta de entrada do sistema socioeducativo, são as Delegacia de Proteção à Criança e
ao Adolescente – DPCA(s). Elas integram o eixo de defesa do Sistema de Garantia de
Direitos, com a atribuição de ser uma “delegacia especializada de proteção”. Porém
devemos ter a compreensão de que é tênue a linha entre os processos de controle,
vigilância, punição e proteção.
5
A institucionalização de crianças é um dispositivo jurídico-técnico-policial que pretendia ter o objetivo de "proteger a
infância" (WEBER, 2012).
6
Ver Propostas de Emendas a Constituição Federal, PECs.
7
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) é o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de
caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração de ato
infracional até a execução de medida socioeducativa. Esse sistema nacional inclui os sistemas estaduais, distritais e
municipais, bem como todas as políticas, planos, e programas específicos de atenção ao adolescente em conflito com
a lei.
2050
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
A posição de uma delegacia de proteção no Sistema de Garantia de Direitos
dita que a qualidade no tratamento dado ao adolescente ao chegar a DPCA pode vir a
ser um diferenciador importante que norteará as relações que serão destinadas para
as etapas seguintes à apuração de autoria de ato infracional. Propor um olhar crítico
em torno das minúcias que se formam nesse espaço de relações pode nos auxiliar no
esclarecimento de colocações como a de Adorno: “a despeito das inovações
introduzidas, o novo estatuto legal não parece ter se desvencilhado completamente de
suas raízes policialescas e repressivas” (1996, pag. 87).
A DPCA/NITERÓI E O CONTROLE SOCIAL
Ao longo das leituras e análises formuladas através dos conteúdos dos bancos
de dados relemos a questão central do estudo: “que relações se tecem quando o
adolescente autor (a) de ato infracional é encaminhado a uma autoridade policial?”
Para dar conta da questão preparamos elementos auxiliares como gráficos, tabelas,
cruzamentos de informações e análises estatísticas, o que nos permitiu a formulação
da proposição de que o que se tece na instituição policial são encadeamentos de uma
das etapas do controle social a ser elaborada a partir de adolescentes selecionados e
levados a DPCA.
Esses encadeamentos contemplam adolescentes que, em sua maioria
absoluta, estão entre 15 a 17 anos e compõe-se quase que integralmente de jovens
do sexo masculino. Para além desse quantitativo devemos observar as informações
analisadas dos bancos de dados da pesquisa não no sentido de determinar quem são
os praticantes e por que cometem atos infracionais, mas em questionar porque
determinado adolescentes em nossa sociedade são definidos como praticantes de
atos infracionais (ANDRADE, 2003).
Nesse sentido, o encadeamento adolescente selecionado e levado a DPCA, diz
respeito a escolhas anteriores realizadas pelo sistema de controle social. Baratta
(2002) afirma que o sistema penal dirige suas ações contra determinadas pessoas,
mais que contra ações legalmente definidas como delitos. Aceitamos que essa
colocação se estenda, também, ao sistema dito socioeducativo.
Por outro lado, Andrade (2006 apud COLET, COUTINHO, 2008; pag. 7 e 8)
afirma que a seletividade do controle social é determinada, também, por fatores sócios
estruturais:
2051
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
Em primeiro lugar, à incapacidade estrutural do sistema penal
operacionalizar, através das agências policial e judicial, toda a
programação da Lei penal, dada a magnitude da sua
abrangência. Pois está integralmente dedicado “a administrar
uma reduzidíssima porcentagem das infrações, seguramente
inferior a 10%” [...]. Em segundo lugar, a seletividade do
sistema penal se deve à especificidade da conduta praticada e
das conotações sociais dos respectivos autores. Pois
impunidade e criminalização são orientadas pela seleção
desigual de pessoas de acordo com seu status social e não
pela incriminação igualitária de condutas.
Além desses determinantes estruturais apontados por Andrade que deduzimos
serem influenciadores da seletividade das ações do sistema penal e das medidas
socioeducativas conta-se, também, que o universo de todos os supostos
criminalizados não é possível de ser identificada, devido ao elevado “número de
delitos e de delinquentes que não chegam a ser descobertos ou condenados”
(CONDE, HASSEMER 2008, pag. 95), caracterizando uma cifra oculta8. Assim, os
crimes “desvendados” e que aparecem nos dados estatísticos, como os atos
infracionais de nossa pesquisa, constituem apenas uma pequena porcentagem do
total de condutas ilícitas efetivamente existentes em uma sociedade.
Com relação à seletividade do sistema penal ser orientado pela seleção
desigual de pessoas de acordo com seu status social e não pela incriminação
igualitária de condutas, Andrade (2003, pag. 267) reitera que:
“a clientela do sistema penal é composta regularmente em
todos os lugares do mundo por pessoas pertencentes aos
baixos estratos sociais, isto indica que há um processo de
seleção de pessoas às quais se qualifica como delinquentes e
não, como se pretende, um mero processo de seleção de
condutas qualificadas. O sistema penal se dirige quase sempre
contra certas pessoas, mais que contra certas ações
legalmente definidas como crime”.
Zaffaroni (1991) na mesma linha de colocação de Andrade confirma que todas
as instituições privativas de liberdade estão povoadas por pobres, sinalizando que há
um processo de seleção de pessoas às quais se qualifica como delinquentes,
complementando essas colocações Andrade sinaliza que a seleção imposta pela
São os casos as subnotificações, negociações paralelas entre vítimas, agressores e autoridades, crimes do “colarinho
branco”, políticas públicas que privilegiam a contenção de uma ou outra modalidade delituosa, e ainda, a desistência
da vítima em denunciar a ocorrência do crime. O crime de “colarinho branco relaciona-se a infrações a normas
praticados por pessoas colocadas em posição de alto prestigio social. (BARATTA, 2002, pag. 67).
8
2052
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
trama do sistema de controle social é influenciada por variáveis latentes, apontando
que:
“imunidade e criminalização (recriadoras de cifras negras
internas ao longo do corredor da delinquência) são
condicionadas por fatores e variáveis latentes relativas à
“pessoa” do autor (e da vítima) que transcendem o catálogo de
elementos legais e oficiais que formalmente vinculam a tomada
de decisões das agências de controle, (2003, pag. 267 - 268).”
Santos (2011) apresenta outra contribuição no sentido que ainda que sejam
apontadas as variáveis sócio estruturais para determinar a criminalidade como
comportamento do sujeito, parece legítimo supor que essas variáveis (por exemplo: a
escolaridade e o emprego) teriam ainda maior poder sobre a criminalização da
juventude deficitária, como atividade seletiva do sistema de controle baseada no status
social do adolescente: carências e déficits sociais não seriam, simplesmente, variáveis
independentes no sentido de causas da criminalidade atuantes sobre o individuo, mas
a própria origem da filtragem do processo de criminalização que produz a clientela do
sistema de controle social.
As reflexões de Baratta, Santos, Zaffaroni, Andrade e Moraes podem ser
identificadas juntas as condições socioeconômicas dos adolescentes levados a DPCA
de Niterói e as análises estatísticas formuladas, tendo como referência, entre outras
variáveis, o local de moradia, a escolaridade, a cor ou raça eo local de apreensão. Ou
seja, são adolescentes em sua maioria, moradores de áreas de baixo poder
econômico, com níveis de escolaridades concentrados no ensino fundamental, de
origem afro-brasileira, e são apreendidos, em maior número, no espaço da favela,
dependendo do tipo de ato infracional que estejam envolvidos.
Dias e Andrade (2003, pag. 268) concluem que:
“a regularidade verificada na distribuição seletiva da
criminalidade (imunização das classes altas e criminalização
das baixas) e traduzida no predomínio desproporcionado de
pobres nas prisões e nas estatísticas oficiais da criminalidade,
não pode imputar-se ao acaso, mas deve se interpretadas
como grandeza sistematicamente produzidas.”
O encadeamento de das etapas do controle social supõe a existência de
etapas de seleção realizadas anteriormente. Baratta nos recorda que:
“O cárcere representa, em suma, a ponta do iceberg que é o
sistema penal burguês, o momento culminante de um processo
2053
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema
penal, com a discriminação social e escolar, com a intervenção
dos institutos de controle do desvio de menores, da assistência
social etc.” (BARATTA, 2002, pag. 167)
Como complemento Baratta especifica que a escola é “o primeiro segmento do
aparato de seleção e de marginalização na sociedade”, (2002, pag. 171).
As funções exercidas pelo sistema escolar respondem à exigência de
reproduzir e de assegurar as relações sociais desiguais do modelo de sociedade em
que vivemos. Baratta nos coloca que,
“o sistema escolar que vai da instrução elementar à média e à
superior, reflete a estrutura vertical da sociedade e contribui
para criá-la e para conservá-la, através de mecanismos de
seleção, discriminação e marginalização” (2002, pag. 172).
Fonseca e Pimenta (2012) nos trazem um olhar de que, apesar da educação,
no Brasil, ser um direito, conforme o artigo 2059 do texto constitucional, o interior dos
estabelecimentos de ensino reproduz incessantemente o quadro de desigualdades
social. Uma maneira de constatar esta desigualdade, principalmente por conta da
discriminação do tipo racial e do preconceito existente seria acompanhar a evolução
dos indicadores de alfabetização, anos escolaridade, permanência da população
negra, por exemplo, que apresentam uma grande discrepância em relação aos
brancos10.
A dificuldade de acolher e conviver com as diversidades culturais apresentada
pelos estabelecimentos de ensino e pelos profissionais envolvidos direta ou
indiretamente no processo escolar transforma a instituição escola em um lugar de não
prazer que dificulta a criação de elo de identificação com o ambiente, (AUGÉ, 1994).
Sendo assim, percebe-se que a trajetória de sucesso ou fracasso de crianças e
adolescentes pertencentes aos estratos sociais estigmatizados e criminalizados
depende, muitas das vezes, em muito do tipo de atitude dos profissionais, com
relações a aceitá-las e a mantê-las na escola.
Polli (2008, pag. 29) nos coloca que:
9
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho.
10
O Relatório das Desigualdades Raciais no Brasil, produzido pelo Laboratório de Análises Econômicas, Históricas,
Sociais e Estatísticas das Relações Sociais (Laeser) do Instituto de Economia da UFRJ demonstra essa desigualdade
escolar. Ver, também, IBGE – Síntese dos indicadores Sociais 2010 - Quando se comparam os indicadores
educacionais para brancos, pretos e pardos, também se percebe uma redução das desigualdades entre os grupos,
mas, no que diz respeito à média de anos de estudo e à presença de jovens no ensino superior, em 2009 os pretos e
pardos ainda não haviam atingido os indicadores que os brancos já apresentavam em 1999. Além disso, no ano
passado, as taxas de analfabetismo para as pessoas de cor ou raça preta (13,3%) e parda (13,4%) eram mais que o
dobro da taxa dos brancos (5,9%).
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“Esse processo, que aparenta ser uma forma muito peculiar de
ajuste da origem social a determinados destinos sociais dos
indivíduos, está atrelada a um modelo de controle social
perverso, de contenção de populações consideradas
“perigosas11”, fato que não apenas seleciona e reproduz as
estruturas sociais, mas que também legitima visões de mundo,
condições sociais degradantes e representações sociais que
criminalizam e punem indiscriminadamente o outro12”.
Tomemos um exemplo corriqueiro do sistema escolar para exemplificar essa
teia de relações. O impedimento de crianças e adolescentes de classes populares
para se adaptarem a escola passa muitas das vezes pela adaptação a um mundo em
parte
estranho
a
eles,
e
pelas
dificuldades
de
assimilarem
os
modelos
comportamentais linguísticos desconhecidos de seu universo cultural. Nesse sentido
Brito (1997, pag. 175 – 176) traz uma colocação exemplar relativo ao ensino de
linguística:
“Se se quer efetivamente modificar a situação de
marginalização e exclusão de determinados segmentos sociais
é preciso assumir que é não o domínio de uma variedade
linguística que permite o acesso ao conhecimento, mas sim
que, como demonstra a análise da escrita que fizemos, é o
acesso à cultura e informação que amplia o conhecimento
linguístico. Enfim, reconhecer que o preconceito contra
determinadas modalidades e formas de expressão é
consequência dos processos de exclusão e estigmatização
sociais e que o estudo da língua e da escrita deve
necessariamente passar pela recusa de todos e qualquer
preconceito linguístico.”
Baratta (2002) nos ensina que muitas das vezes a atitude do professor para
com esses jovens é marcada por preconceitos e estereótipos negativos, que
condicionam a aplicação seletiva e desigual. Pesquisas apontadas, também, pelo
professor Baratta confirmaram a correlação do rendimento escolar com a percepção
que o menino tem do juízo e das expectativas do professor em relação a ele. No caso
das crianças e adolescentes provenientes de grupos marginais, a escola é a primeira
volta do espiral que o incita, cada vez mais, para o seu papel de marginalizado.
Portanto como bem coloca Baratta (2002) o sistema escolar e o penal se
assemelham na reprodução das relações sociais e de manutenção da estrutura
11
12
Cf. Coimbra (2001)
Cf. Todorov, (1993)
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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vertical da sociedade. Semelhança que pode ser notada pela presença no sistema
penal dos mesmos mecanismos de discriminação frequentes no sistema escolar.
Essa relação entre os dois sistemas foi apontada em 1933 por Rusche:
“O direito penal realiza, no extremo inferior do continuum, o que
a escola realiza na zona média e superior dele: a separação do
joio do trigo, cujo efeito ao mesmo tempo constitui e legitima a
escala social existente e, desse modo, assegura uma parte
essencial da realidade social” (RUSCHE, 1933 apud
BARATTA, 2002, pag. 171).
A visibilidade do papel desempenhado pela escola junto aos adolescentes
levados a DPCA de Niterói pode ser percebidas pela defasagem idade/série; pelo
volume expressivo de adolescentes retidos no ensino fundamental e pela presença de
adolescentes de baixa escolaridade das regiões de menor poder econômica da
cidade. Esses dados associados a outros (como o controle informal da família, igreja,
opinião pública, clube...) nãopossíveis de serem captados pela estrutura do banco de
dados estudados formatam as “pré-seleções” que esses jovens sofrem ao longo de
sua infância e juventude.
O encadeamento de etapas de controle social e seleção de determinados
adolescentes para serem levados a DPCA que ‘não pode imputar-se ao acaso’, se
materializam também sobre a influência do que A. TURK (1969)13 definiu como leis de
um código social latente (second, basicrules14) em operação com os mecanismos de
seleção15 entre os quais evidencia-se o ‘estereotipo16’ de autores (e vítima)17,
intermediado pelo que se compreende sobre a criminalidade no contexto do senso
comum (ANDRADE, 2003, pag. 268, 269). Esses estereótipos que fazem parte do
13
A. TURK, 1969, pag. 39 apud ANDRADE, 2003, pag. 268.
Conceito que nomeia a totalidade do complexo de regras e mecanismos reguladores latentes e não-oficiais que
determinam efetivamente a aplicação da lei penal pelos agentes de controle penal. (A. TURK, 1969, pag. 39 apud
ANDRADE 2003, pag. 268)
15
Com o conceito de mecanismos de seleção “designam-se os operadores genéricos que imprimem sentido ao
exercício da discricionariedade real das instancias formais de controle e permitem explicar as regularidades da
presença desproporcionada de membros dos estratos mais desfavorecidos nas estatísticas oficiais da delinquência,
ou – como outros autores preferem – entre os clientes das instancias formais de controle.” (DIAS e ANDRADE 1984,
pag. 386 – 387)
16
Os estereótipos são construções mentais, parcialmente inconscientes que, nas representações coletivas ou
individuais, ligam determinados fenômenos entre si e orientam as pessoas na sua atividade quotidiana. (ANDRADE,
2003, pag. 269)
17
De fato, ‘a intervenção estereotipada do sistema penal age sobre a ‘vítima’, como sobre o ‘delinquente’. Todos são
tratados da mesma maneira. ’ (HULSMAN, 1993, pag. 83 apud ANDRADE 2003, pag. 269). Assim como a imagem da
delinquência está associada a certo estigma que indica quem fica dentro e quem fica fora do seu universo, a imagem
da vitimização também o está. Uma pesquisa do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher evidencia esta
esteriotipação na analise de sentenças penais relativas a crimes de estupro. Reconstruindo desde o teor das sentenças
penais as variáveis mediantes as quais o juiz constrói o estereotipo do estuprador e da vítima que condicionam a
decisão, esta pesquisa demonstra que enquanto as mulheres cuja condição permite estereotipá-las como ‘honestas’,
do ponto de vista sexual são consideradas vítimas; as que, pelas mesmas variáveis, são estereotipadas como
‘desonestas’, em especial as prostitutas, não apenas são consideradas vítimas, mas podem passar da condição de
vítima a provocadoras ou autoras do crime, especialmente se o autor não corresponder ao estereótipo de estuprador.
(ANDRADE, 2003, pag. 269)
14
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“estoque de conhecimento18” dos agentes de controle social formal e informal, e são
transmitidos pelos próprios além de processos derivados de estruturas organizacional
e comunicativa do sistema penal são sem dúvida um dos principais mecanismos na
distribuição desigual da criminalidade. Os estereótipos associados aos pobres sejam
os relacionados à cor da pele, o local de moradia, a aparência além de tornarem-se os
pobres mais vulneráveis a criminalização permitem explicar, em parte, a presença
expressiva desse contingente populacional nas estatísticas oficiais sobre a
delinquência.
Os conceitos de second code e basicrules associam a seleção operada pelo
controle penal formal com o controle social informal, mostrando como os mecanismos
seletivos presentes na sociedade influem e condicionam a seletividade decisória dos
agentes do sistema penal. Sendo assim, o sistema penal aparece como filtro último e
um estágio avançada de um processo de seleção que tem lugar no controle informal
(família, escola, mercado de trabalho, opinião pública, igrejas, clubes...), mas os
mecanismos deste atuam também paralelamente e por dentro do controle penal
(ANDRADE, 1996, pag. 12), (BARATTA, 2002)
A contribuição de A. Turk (1969) com a definição do código social extralegal
ofereceu elementos explicativos capazes de superar as argumentações oferecidas
pela explicação etiológica. Com isso a clientela do sistema penal é constituída de
pobres (minoria criminal) não porque tenha uma maior tendência a delinquir, mas
precisamente porque tem maiores chances de serem criminalizados e rotulados como
delinquentes. As possibilidades (chances) de resultar rotulados, com as graves
consequências que isto implica, se encontram desigualmente distribuídas de acordo
com as leis de um second code constituído especialmente por uma imagem
estereotipada e preconceituosa da criminalidade, (ANDRADE, 1996).
Essa complexa rede de interações entre mecanismos formais e informais
permeada de olhares estereotipados são captados nas análises dos bancos de dados
estudados, por exemplo, nas dezenove categorias referenciadas para caracterizar os
adolescentes levados a DPCA; na presença, ainda, arraigada do termo discriminatório
“menor” associado aos adolescentes de origem afro-brasileiros, em especial, aqueles
relacionados a atos infracionais análogos a Lei de drogas; nas relações entre o local
de ocorrência do ato infracional e a classificação enquanto Auto de Infração do Ato
Infracional /AIAI e Auto de Apreensão de Adolescente por Ato Infracional /AAAPAI; no
estilo de organização textual do campo dinâmica do evento do documento base do
estudo, registro de ocorrência, ou no caminho/textual pronto para os registros dos auto
de apreensão onde se constrói argumentos, fundamentando fatos para se alcançar a
18
Berguer e Luckmann (1985)
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“verdade policial” (FOUCAULT, 2009) ou como bem coloca Dias e Andrade (1984,
pag. 541 apud ANDRADE, 2003, pag. 269):
“(...) do que não se pode duvidar é da força persuasiva dos
estereótipos e da sua eficácia seletiva: eles operam claramente
em benefícios das pessoas que exibem os estigmas da
respeitabilidade dominante e em desvalor dos que exibem os
estigmas da associabilidade e do crime.”
Podemos garantir que o modo de ser da sociedade brasileira conserva ideias,
valores, opiniões e crenças a respeito da população empobrecida e com isso a
segrega e exclui dos direitos de usufruir dos bens produzidos pela sociedade, gerando
o que estudamos como a criminalização da pobreza (COIMBRA, 2006). As práticas
tutelares e repressoras que são dirigidas aos adolescentes em conflito com a lei
simbolizam bem esse essa situação, apesar do ditame da lei 8069/90.
De modo a concluir registramos o desafio de fazer valer o conceito de proteção
nas ações cotidianas da DPCA. Num primeiro momento alcançar esse desafio passa
pela formação e qualificação dos profissionais e pelo acréscimo de funções que os
levem a ultrapassar a restrição de somente:
“esclarecer as circunstâncias do crime, tais como a autoria, a
forma como o crime foi praticado, os meios pelos quais o
criminoso perpetrou seu intento e outros detalhes relevantes.”
(ESPUNY, 2009 pag.9).
A DPCA pode vir a desenvolver um papel diferenciador no “atacar as causas”
da delinquencia infanto-juvenil, visto que para ela são encaminhados os mais diversos
casos rotulados como atos infracionais. O que lhe confere prioridade nas análises das
informações e consequentemente no direcionar discussões para busca de proteção
das crianças e adolescente.
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Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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A VIOLÊNCIA POLICIAL NO BANCO DOS RÉUS: UMA ANÁLISE DOS
VEREDICTOS DOS TRIBUNAIS DO JÚRI DA CIDADE DE GOIÂNIA.
Rodrigo Lustosa Victor (Primeiro Autor)
Mestrando PPGIDH/NDH/UFG
Ricardo Barbosa de Lima (coautor)
Orientador PPGIDH/NDH/UFG
RESUMO
O presente estudo aborda a questão de como os cidadãos goianienses,
convocados a servir perante os Tribunais do Júri, enfrentam e julgam casos de
violência policial homicida. Para tanto, foram examinados, comparativamente, os
resultados dos julgamentos de policiais e não policiais, ocorridos nos últimos 11 anos
em Goiânia, totalizando 2.479 casos. O texto, primeiramente busca identificar e
caracterizar a existência de uma prática policial de assassinatos. Em seguida, fornece
uma visão panorâmica da instituição do júri e registra os resultados da pesquisa
empírica. Por fim, a guisa de uma primeira interpretação, indica a Hermenêutica
Filosófica, nos contornos estabelecidos por Hans Georg Gadamer, como uma das
chaves explicativas para o peculiar sentido conferido ao direito à vida, pelos Tribunais
do Júri de Goiânia.
Palavras-chave: júri; violência; policial; hermenêutica
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A presente pesquisa aborda a questão de como os cidadãos goianienses,
convocados a servir perante os tribunais do júri, enfrentam e julgam casos de violência
policial homicida. O objetivo final é constatar se a prática de assassinatos por agentes
policiais é ou não aceita/legitimada pelo júri e em que medida isso acontece.
Reivindica-se o tribunal do júri como um lugar privilegiado para a observação
desta questão, porque, em tal ambiente, não se está diante apenas de um processo
judicial, mas, sobretudo, de um julgamento em que a própria sociedade ou, ao menos
uma parcela que se pretende representativa dela, é chamada a julgar, de forma que o
compartilhamento de valores e sensibilidades pode ser observado, a partir da análise
das decisões daí emanadas.
Em etapa subsequente à conferência dos resultados de julgamentos de
policiais, realizados nos últimos onze anos, pelos Tribunais do Júri da Cidade de
Goiânia, a pesquisa avançou em um esforço teórico-metodológico para compreensão
das razões justificadoras dos caminhos percorridos pelos cidadãos-jurados, indicando
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a Hermenêutica Filosófica, na conformidade do pensamento de Hans Georg Gadamer
(1960)1, como uma das possíveis hipóteses explicativas para os resultados colhidos.
Estruturalmente o trabalho, além destas considerações iniciais e da conclusão
que lhe serve de fecho, se divide em três títulos, a saber: “Mortes matadas em
Goiânia”, momento em que se identifica a existência do “método de assassinatos de
suspeitos” pela polícia goiana; “O tribunal do júri no enfrentamento da questão
policial”, quando são elucidados os mecanismos de funcionamento do júri, bem como
anunciados os resultados da pesquisa de campo, consistente na análise dos
resultados dos julgamentos pelos tribunais do júri de Goiânia, nos últimos onze anos;
por fim, no título, Violência policial e tribunal do júri: contribuições da hermenêutica
filosófica”, a Hermenêutica Gadameriana é indicada como uma das possíveis chaves
explicativas para as constatações extraídas da observação empírica.
2. MORTES MATADAS EM GOIÂNIA
A presente pesquisa iniciou-se em julho de 2012 e, provavelmente, será
encerrada em julho de 2014. Durante a sua realização cerca de 800 pessoas
serão assassinadas na cidade de Goiânia, onde, todos os dias, pelo menos
uma pessoa morre vítima de crime de homicídio. No ano de 2000, os mortos
somaram 250, em 2010 foram 393. Esse último número permite afirmar a
ocorrência de 30,2 homicídios por cem mil habitantes, o que basta para conferir
à capital goiana a 14a colocação no ranking de homicídios das capitais
nacionais2, além de inseri-la entre as cidades mais violentas do mundo,
superando lugares notabilizados pela violência, como é o caso da capital
haitiana, Porto Príncipe3.
No Estado de Goiás e, particularmente na cidade de Goiânia, não
existem dados oficiais sobre o envolvimento de policiais na prática de
homicídios, entretanto, em diversos casos concretos, são eles indicados como
autores destas infrações penais. Algumas destas situações foram publicizadas
1
A Obra Verdade e Método (1960) institui a Hermenêutica Gadameriana, para sua melhor compreensão
foi essencial a leitura da obra do Prof. Rodolfo Viana Pereira (2001), intitulada Hermenêutica filosófica e
constitucional.
2
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2013. Mortes Matadas por Arma de Fogo. Páginas
2
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2013. Mortes Matadas por Arma de Fogo. Páginas
23/26.
3
Informação proveniente da ONG mexicana, SEGURIDAD, JUSTICIA Y PAZ – Concejo Ciudadano
23/26.
3
Informação proveniente da ONG mexicana, SEGURIDAD, JUSTICIA Y PAZ – Concejo Ciudadano
para la Seguridad Pública y Justicia Penal; disponínvel in http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx/ T.
http://twitter.com/joseaortega FB.
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através da imprensa, a exemplo da “operação sexto mandamento”4, exposta
em 15 de fevereiro de 2011, quando, e pela qual, se investigou a existência
de suposto “grupo de extermínio” instituído pela polícia militar e aplicado em
todo Estado de Goiás.
No contexto da divulgação da mencionada operação, o jornal “O
Popular” publicou5:
“[...] Em 7 anos, 224 confrontos...
Cerca de 9% dos assassinatos ocorridos em Goiânia nos últimos sete anos
aconteceram durante supostos confrontos entre policiais militares e bandidos.
É o que revela a estatística da Delegacia de Investigações de Homicídios.
Neste período foram registrados 2.429 homicídios na capital. Destes, 224
assassinatos ocorreram durante supostos confrontos. Todos os casos foram
investigados pela Corregedoria da Polícia Militar, pela Delegacia de
Homicídios e pelo Ministério Público.
De acordo com o procurador-geral de Justiça de Goiás, Eduardo Abdon
Moura, em alguns destes casos - não disse quantos ou quais porque o
processo corre em segredo de Justiça -, descobriu-se que não aconteceram
confrontos mas execuções sumárias. Suposta ação do grupo de extermínio em
ação desde 1996, segundo o procurador-geral do Ministério Público [...]”.
A partir de relatos dessa natureza, colhidos de notícias de imprensa, o “Instituto
Brasil Central” (IBRACE-GO)6, informa que entre os anos de 2000 e 2012, trinta e
cinco pessoas desapareceram em Goiânia, após abordagens policiais e, no mesmo
período, mais cento e quarenta e quatro foram assassinadas também pela polícia,
conforme se verifica no quadro abaixo:
VÍTIMAS DE HOMICÍDIOS COMETIDOS POR POLICIAIS MILITARES EM GOIÂNIA
ANO
2002
NÚMERO DE VÍTIMAS
17
4
“[...] A Polícia Federal em Goiás deflagrou, na manhã desta terça-feira (15), a Operação Sexto
Mandamento para cumprir 19 mandados de prisão preventiva e oito mandados de prisão temporária, bem
como mandados de busca e apreensão. Foram compostas 18 equipes com 131 policiais federais e 12
oficiais da Polícia Militar de Goiás.
A investigação que durou aproximadamente um ano teve por objetivo principal desarticular uma
organização criminosa com alto poder de influência e de intimidação composta por policiais militares de
Goiás, das mais diversas patentes.
Segundo as investigações, a organização criminosa tinha como principal atividade a prática habitual de
homicídios com a simulação de que os crimes capitais foram praticados em confrontos com as vítimas.
Dentre as vítimas, figuram casos de execução de crianças, adolescentes e mulheres, sem qualquer
envolvimento com práticas criminosas [...]”
Disponível
em:
http://www.brasil.gov.br/defesa-e-seguranca/2011/02/pf-deflagra-operacao-sextomandamento-em-goias.
5
Edição de 15 de fevereiro de 2011. Disponível em: http://jornalggn.com.br. Acesado em 20.08.2013.
6
O banco de dados do IBRACE-GO é montado a partir de notícias publicadas nos jornais de maior
circulação no Estado de Goiás jornais, sendo, respectivamente, os jornais “O Popular” e “Diário da
Manhã”.
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2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
TOTAL
*Fonte: Instituto Brasil Central (IBRACE-GO), 2013.
18
16
12
15
10
19
24
10
Não Consta
03
144
Tem-se, então, que nos últimos dez anos, pelo menos cento e setenta e nove
pessoas foram “eliminadas” pela polícia em Goiânia. Este quantitativo é suficiente para
sustentar a afirmação de que os homicídios praticados por agentes policiais não são
representativos de casos isolados, pelo contrário, constituem-se em uma prática de
relativa frequência.
Muitos deste casos terminam por serem julgados pelos Tribunais do Júri da
cidade de Goiânia, onde o poder jurisdicional é entregue a uma parcela da sociedade,
razão pela qual o estudo da referida instituição se mostra útil. É este o passo seguinte.
3. O TRIBUNAL DO JÚRI E O ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO POLICIAL
Entre nós o Tribunal do Júri se encontra formalmente posto no artigo 5o,
XXXVIII, da Constituição Federal, em meio as garantias fundamentais do cidadão. É
nesse sentido que Paulo Rangel (2012, p. 263) assinala que
“[...] A constituição estabelece um sistema de garantias constitucionais
significando o conjunto instrumentalizado e organizado de institutos jurídicos
que prevê, para assegurar a conservação e renovação de suas normas, uma
permanente observação, fazendo valer seu cumprimento efetivo e a
defendendo contra toda e qualquer agressão aos seus postulados; e o júri,
garantia fundamental (art. 5o, XXXVIII) que é, não poderia ficar fora dessa
proteção [...]”
A instituição do júri se insere, portanto, entre aqueles direitos cuja finalidade
primeira é colocar o indivíduo a salvo de possível arbítrio pelos poderes constituídos.
Nesse ambiente, assume o júri função protetora. Por um lado, garante à
sociedade o direito de julgar, por si, supostos autores de crimes dolosos contra a vida
e, por outro, resguarda o acusado de eventuais abusos por parte do Estado Juiz,
conferindo-lhe o benefício de ser julgado por seus pares, por juízes leigos, cuja
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manifestação, ditada pela consciência e livre de fundamentação, representaria o poder
popular no exercício da função jurisdicional.
Para além desta posição privilegiada em que se encontra o Tribunal Popular no
contexto de nosso ordenamento jurídico, ou mesmo, servindo de suporte a tão
destacada inserção constitucional (entre direitos e garantias fundamentais), estão os
significados, os sentidos simbólicos conferidos ao júri, que acabam por suportar o seu
elevado status.
Nessa linha de raciocínio, Lenio Luiz Streck (1993, p.52), na obra Tribunal do
Júri: símbolo e rituais, afirma que
“[...] na sociedade, as coisas sociais são o que elas são através das
significações que elas figuram, mediata ou imediatamente, direta ou
indiretamente. A instituição da sociedade existe enquanto
materialização desse magma de significações imaginárias sociais,
traduzíveis por meio do simbólico. A relação dos agentes sociais com
a realidade (que aparece) é intermediada por um mundo de
significações.
Nesse sentido... estas reflexões se reportam aos julgamentos pelo
Tribunal do Júri [...]”
De fato, na contemporaneidade, particularmente no Brasil, a instituição do júri
dispõe de considerável capital simbólico que, no mais das vezes, lhe envolve por ares
de democracia, como fosse uma instituição tisnada com as cores da liberdade,
destinada, por vocação, a combater o arbítrio e insurgir-se contra possíveis abusos do
poder constituído. Mesmo no campo do debate jurídico, onde existem ácidas críticas
ao Tribunal do Júri, são numerosas as referências à instituição como sendo “a mais
democrática instituição jurídica brasileira”7 , “patrimônio da cidadania”8, “baluarte da
democracia”9, dentre outras.
Este capital simbólico transmitido ao júri lhe configurou como uma instituição
legítima dentro dos ordenamentos jurídicos onde ele se insere. Em tais espaços,
concebe-se o Tribunal do Júri como um lugar de proteção a direitos, tanto assim que,
como já indicado, no caso brasileiro, a instituição tem registro constitucional,
exatamente entre os direitos e garantias fundamentais do cidadão.
Inscrito em locus constitucional tão privilegiado, o júri é orbitado por outras
garantias de extremada relevância, que, por um lado, lhe conferem maior robustez,
7
Tucci, Rogério Lauria. Tribunal do Júri: estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
8
Almeida, Ricardo Vital de. O júri no Brasil - Aspectos Constitucionais - Soberania e democracia social
– Equívocos propositais e verdades contestáveis. Leme/SP: CL EDIJUR, 2005, p.27.
9
Junior, Angelo Ansanelli. O Tribunal do Júri e a Soberania dos Veredictos. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2005, p. 15.
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ISSN: 2317-0255
mas, por outro, implicam na necessidade de alinhamento entre o júri e estes outros
direitos que o cercam.
Assim, simbolicamente, no âmbito do universo jurídico, o Tribunal do Júri se
constitui em um ambiente de respeito à ordem constitucional em geral e,
particularmente, de reafirmação da inviolabilidade do direito à vida e de proibição da
pena de morte10.
Não obstante, em variadas situações, sobretudo quando se trata de
julgamentos de policiais, percebe-se que o júri legitima o ato de matar.
A pesquisa de campo realizada, indica haver certa leniência por parte dos
jurados em relação aos acusados policiais, pois, de maneira geral, em casos tais, as
teses apresentadas pelas defesas dos réus encontram maior receptividade.
O levantamento feito teve por universo todos os julgamentos realizados pelos
dois Tribunais do Júri da Cidade de Goiânia, entre os anos de 2003 e 2013. Através da
verificação dos livros de registros de sentenças e do banco de dados informatizado do
Poder Judiciário, nos foi possível verificar que, durante o período em questão,
ocorreram 2.479 julgamentos, dos quais 158 referiam-se a policiais11.
O exame dos respectivos veredictos demonstrou que, em linhas gerais, o
Tribunal do Júri se apresenta como uma arena de disputas acirradas entre acusação e
defesa, porquanto, considerada a totalidade dos casos, produto da soma entre os
julgamentos de policiais e não policiais, foi possível constatar que a acusação obteve
êxito, no sentido de ver sua pretensão integralmente acolhida pelo júri, em 48,8% dos
julgamentos, enquanto que a defesa viu suas teses, principais ou secundárias, serem
acolhidas nos outros 51,15%.
Os dados apresentados na Tabela 2 indicam de forma detalhada esta situação
Tabela 2. Julgamentos de policiais e não policiais (2003 – 2013).
Total de julgamentos
2479
100%
Condenações com acolhimento integral das teses acusatórias
1211
48,8%
Absolvições
849
34,2%
Desclassificações para homicídio simples
149
6,41%
10
Conforme dispõe o artigo 5º, inciso XLVII da Constituição Federal, no Brasil não podem haver penas
de morte, salvo em caso de guerra declarada; de caráter perpétuo; de trabalhos forçados e nem de
banimento.
11
Os registros do Poder Judiciário do Estado de Goiás contém sensíveis deficiências no que se refere à
qualificação dos acusados que são submetidos a julgamento pelo júri, de modo que não nos foi possível
distinguir, com precisão, entre policiais civis e militares. Não obstante, a percepção geral é de que a
grande maioria dos casos se refere a julgamento de policiais militares. Comprovadamente, do universo de
82 casos, apenas 05 se referiam a policiais civis.
2066
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Desclassificações para homicídio culposo
28
1,1%
Desclassificações para lesão corporal
197
7,9%
Desclassificações para outros tipos penais
28
2,3%
Aplicações de medidas de segurança
06
0,2%
Extinção de punibilidade
01
0,04%
Teses defensivas acatadas
1268
51,15%
Fonte: Pesquisa “A violência policial no banco dos réus: uma análise dos veredictos populares
dos tribunais do júri da cidade de Goiânia”, 2014.
Como se percebe, há expressivo equilíbrio entre o acolhimento de teses
acusatórias e defensivas, mas esta realidade apresenta variações quando são
destacados e reagrupados os veredictos em conformidade com o parâmetro “réus não
policiais” e “réus policiais”. No primeiro caso, julgamentos de não policiais, a alteração
do índice “teses defensivas acatadas” se mostrou quase que insignificante, baixando
de 51,15% para 49,98%, como segue disposto na Tabela 3:
Tabela 3. Julgamentos de não policiais (2003/2013)
Total de julgamentos
2321
100%
Condenações com acolhimento integral das teses acusatórias
1161
50,02%
Absolvições
760
32,74%
Desclassificações para homicídio simples
154
6,64%
Desclassificações para homicídio culposo
22
0,95%
Desclassificações para lesão corporal
191
8,23%
Desclassificações para outros tipos penais
26
2,2%
Aplicações de medidas de segurança
04
0,17%
Extinção de punibilidade
01
0,4%
Teses defensivas acatadas
1160
49,98%
Fonte: Pesquisa “A violência policial no banco dos réus: uma análise dos veredictos populares
dos tribunais do júri da cidade de Goiânia”, 2014.
Entretanto, analisados os dados referentes apenas aos julgamentos de
policiais, percebe-se que o índice “teses defensivas acatadas” apresenta aumento
substancial, chegando ao patamar de 68,35%.
A propósito, segue a respectiva Tabela:
Tabela 4. Julgamentos de policiais (2003/2013)
Total de julgamentos
158
100%
2067
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Condenações com acolhimento integral das teses acusatórias
50
31,65%
Absolvições
89
56,32%
Desclassificações para homicídio simples
05
3,16%
Desclassificações para homicídio culposo
06
3,8
Desclassificações para lesão corporal
06
3,8
Desclassificações para outros tipos penais
02
1,27%
Aplicações de medidas de segurança
00
00
Extinção de punibilidade
00
00
Teses defensivas acatadas
108
68,35%
Fonte: Pesquisa “A violência policial no banco dos réus: uma análise dos veredictos populares
dos tribunais do júri da cidade de Goiânia”, 2014.
Estes dados, em perspectiva objetiva, revelam que um “acusado policial”, em
comparação a um “acusado não policial”, tem cerca de 20% mais chances de êxito
perante o júri e, sob outro ângulo, mas de forma igualmente precisa, mostram que tãosomente 31,6% dos policiais levados a julgamento popular, pela suposta prática de
assassinato, são condenados nos moldes como pretendido pela acusação.
Tem-se, então, o ponto crucial do presente trabalho, consubstanciado na
enorme tensão verificada entre o Tribunal do Júri, dotado de significativo capital
simbólico, que lhe envolve por uma áurea de “instituição libertária”, e a concretude dos
julgamentos aí realizados, a partir dos quais se pode pensar os Tribunais Populares,
particularmente os da Cidade de Goiânia, como um espaço de legitimação do mais
elevado grau de desrespeito aos Direitos Humanos, qual seja, a violência
estatal/policial contra a vida.
4.
VIOLÊNCIA
POLICIAL
E
TRIBUNAL
DO
JÚRI:
CONTRIBUIÇÕES
DA
HERMENÊUTICA FILOSÓFICA.
Essa situação, de frequente absolvição de policiais acusados de assassinatos,
torna possível inserir o debate no sentido de que a própria sociedade, quando
chamada enfrentar situações de flagrante violação de Direitos Humanos, em muitos
casos, ou nega vigência a estes direitos ou confere a eles singular e excessiva
relatividade, assimilando, particularmente no caso do júri, valores próprios de uma
espécie de “senso comum de justiça”, segundo o qual “bandido bom é bandido morto”
e “direitos humanos deveriam servir apenas para pessoas direitas”.
Nesse sentido, recente pesquisa da Secretaria Nacional de Direitos Humanos,
realizada com duas mil e onze pessoas, logrou concluir que 43% delas manifestaram
2068
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
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algum grau de concordância com a primeira frase mencionada - “bandido bom é
bandido morto” - e que 34% concordam com a segunda assertiva - “direitos humanos
deveriam ser apenas para pessoas direitas”.
Acredita-se, então, que existem ideias compartilhadas por parte da população
brasileira que impedem que certos direitos fundamentais atinjam a eficácia desejada.
Claro que esta questão pode ser abordada sob diversas vertentes. Supõe-se,
inclusive, que o “estilo de pensamento conservador”, tal como concebido por KARL
MANNHEIM12, tendo sido demasiadamente difundido entre nós e encontrando apoio
no tradicionalismo, enquanto tendência à manutenção do modus vivendi, seja, senão o
único, mas pelo menos um dos grandes obstáculos ao grau de efetividade que se
espera alcancem os Direitos Fundamentais em nossa sociedade.
Aqui, porém, pretende-se desvendar qual auxílio a Hermenêutica Filosófica
pode fornecer para a compreensão problema sob análise.
Em seu percurso no tempo a Hermenêutica passou por diversas etapas, da
preocupação com a correta interpretação das sagradas escrituras até, pelo impulso
iluminista, conseguiu alcançar variadas áreas do conhecimento humano, a exemplo da
filosofia e do direito.
Destacados pensadores se preocuparam com a Hermenêutica, dentre eles,
pela relevância que alcançaram, menciona-se FRIEDRICH D. E. SCHLEIERMACHER
(1768 – 1834), que, no início do século XIX, reclamou validade universal aos
processos interpretativos e WILHELM DILTHEY (1833 – 1911), que construiu uma
Hermenêutica voltada para as ciências humanas, refutando a importação de métodos
interpretativos próprios das ciências naturais, privilegiando a distinção entre o explicar
e o compreender e gizando que as Ciências Exatas podem explicar, enquanto que as
Ciências Humanas devem ser capazes de compreender.
Coube a MARTIN HEIDEGGER (1889 – 1976) promover importantíssimas
alterações nas concepções da Hermenêutica, levando a cabo o chamado giro
12
No sentido de definir os lindes e as características do conservadorismo, Karl Mannheim (1986)
engendrou formulação que nos parece realmente profícua, qual seja a ideia de que é possível verificar a
existência de “estilos de pensamento”. Mannheim busca na história da arte, a fonte para o
desenvolvimento de sua ideia, porque nesse âmbito “o conceito de estilo sempre teve um importante
papel, na medida em que tornou possível a classificação tanto das semelhanças como das diferenças das
diversas formas de pensamento” (MANNHEIM, 1986, p. 78) e prossegue ele a dizer que “o método se
tornou tão exato que agora é quase sempre possível datar precisamente uma obra de arte pela simples
análise de seus elementos formais”. Partindo da concepção de “estilo de pensamento conservador”
desenvolvida por Karl Mannheim, se pode afirmar que o pensamento conservador é provido das seguintes
características: apego ao imediato, ao real, ao concreto; preocupação com a ação imediata, com detalhes
concretos em mudanças locais, sem se preocupar com a estrutura do mundo em que vive; renúncia a tudo
que possa parecer especulação ou hipótese; noção de que a propriedade deve conferir privilégios a seu
dono; conceito de liberdade calcado na ideia de que cada homem deve ser livre para desenvolver suas
habilidades dentro de seus limites.
2069
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
ISSN: 2317-0255
fenomenológico, onde engendrou a noção de que a Hermenêutica seria um verdadeiro
modo de existência, um elemento constitutivo do ser no mundo (Dasein).
Assim, se constrói uma Hermenêutica compreendida como “análise das
possibilidades que o ser tem de existir e de se manifestar através dos fenômenos que
ocorrem no horizonte do tempo (PEREIRA, 2001, p.17).”
Outra importante contribuição de HEIDEGGER foi no sentido de demonstrar
que o sujeito apenas pode compreender algo a partir de seus pré-juízos, como ele
próprio afirma:
“[...] A interpretação de algo como algo funda-se, essencialmente,
numa posição prévia, visão prévia e pressuposições... Em todo
princípio de interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que a
interpretação necessariamente já "põe", ou seja, que é
preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção
prévia. [...]” (Heidegger, 1988, p. 207).
Pois foi na confluência destas conclusões que Gadamer - com o seu giro
hermenêutico - funda a Hermenêutica Filosófica, indagando, essencialmente, como é
possível compreender.
A rigor, a Hermenêutica Gadameriana não está preocupada com a edificação
de um método interpretativo, mas em desvendar os processos da compreensão em
toda experiência humana sobre o mundo.
Neste sentido, Gadamer, como afirma Vivente Roberto, citando Osuna
Fernández-Largo:
“[...] describirá el comprender como el carácter óntico original
de la vida humana misma, o, lo que es lo mismo, la forma
originaria de realización del estar ahí. La comprensión engloba
toda la experiencia y autoconciencia que es capaz de asumir el
existente humano13 [...]” (Rodrigues, Vicente Roberto, 2008).
Gadamer, enfim, constrói uma Hermenêutica que se propõe esclarecer como
ocorre a compreensão na práxis da vida, durante a existência humana no mundo, no
tempo, ao longo de sua história e, para tal, edifica as chamadas “estruturas
fundamentais da compreensão”, adiante analisadas.
4.1 DAS ESTRUTURAS FUNDAMENTAIS DA COMPREENSÃO
13
descreve o compreender como o caráter ôntico original da vida humana, como a forma originária de
realização do ser aí. A compreensão engloba toda a experiência e auto-consciência capaz de assumir o ser
humano existente no mundo.
2070
Anais do VIII Encontro da ANDHEP
Na
Hemenêutica
ISSN: 2317-0255
Filosófica
Gadameriana
cinco
são
as
“estruturas
fundamentais da compreensão” - horizonte histórico, círculo hermenêutico, mediação,
diálogo e linguisticidade.
Em apertadíssima síntese, estas estruturas podem ser assim definidas: a)
Horizonte histórico: raio de alcance de nossa visão, na conformidade da experiência
histórica em que nos inserimos; b) Círculo Hermenêutico14: interação entre o horizonte
do intérprete e o horizonte de onde provém o objeto interpretado; c) Mediação15: tudo
que compreendemos, toda nossa visão é mediada pelo prisma formador da visão do
sujeito; d) Diálogo16: repousa na importância da indagação, em se conceber a dialética
da pergunta e da resposta como um processo de abertura para a compreensão; e)
Linguisticidade17: toda compreensão se dá através da linguagem - o ser que pode ser
compreendido é linguagem. E, para Gadamer, a linguagem é convencional, razão pela
qual o problema hermenêutico estaria não no domínio da língua, mas no correto
acordo sobre o assunto, que ocorre no medium da linguagem.
14
O conceito pressupõe um enlace dialético em que a compreensão se molda no processo relacional entre
a consciência histórica do intérprete – formada pelo conjunto difuso e atemático de preconceitos trazidos
pela tradição – e a abertura interpretativa permitida pelo objeto a partir de seu mundo particular (...)Sendo
assim, o círculo hermenêutico ocorre no instante em que o sujeito, através de sua pré-compreensã