Ver/Abrir - Acervo Mesoamericano

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Ver/Abrir - Acervo Mesoamericano
Universidade Federal Fluminense
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia
Curso de Graduação em Antropologia
THIAGO JOSÉ BEZERRA CAVALCANTI
“LA ZONA MAYA NO ES MUSEO ETNOGRÁFICO,
SINO PUEBLOS EN MARCHA”:
INTRODUÇÃO AO “CALENDÁRIO MAIA”
E À DIVERSIDADE PAN-MAIA NA MESOAMÉRICA
Niterói
2014
Universidade Federal Fluminense
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia
Curso de Graduação em Antropologia
THIAGO JOSÉ BEZERRA CAVALCANTI
“LA ZONA MAYA NO ES MUSEO ETNOGRÁFICO,
SINO PUEBLOS EN MARCHA”:
INTRODUÇÃO AO “CALENDÁRIO MAIA”
E À DIVERSIDADE PAN-MAIA NA MESOAMÉRICA
Monografia apresentada ao Curso de Antropologia da
Universidade Federal Fluminense, como requisito
parcial para a obtenção do título de Bacharel em
Antropologia.
Campo de Confluência: Estudos Mesoamericanos.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Sylvia França Schiavo
Coorientador: Prof. Dr. Nikolai Grube
Niterói
2014
Universidade Federal Fluminense
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia
Curso de Graduação em Antropologia
THIAGO JOSÉ BEZERRA CAVALCANTI
“LA ZONA MAYA NO ES MUSEO ETNOGRÁFICO,
SINO PUEBLOS EN MARCHA”:
INTRODUÇÃO AO “CALENDÁRIO MAIA”
E À DIVERSIDADE PAN-MAIA NA MESOAMÉRICA
Aprovada em 11 de dezembro de 2014 (B’elejeb’ Junajpu, Ome Tochtli)
BANCA EXAMINADORA
.............................................................
Prof.ª Dr.ª Sylvia França Schiavo (Orientadora)
Universidade Federal Fluminense
.............................................................
Prof. Dr. Nikolai Grube (Coorientador)
Universität Bonn
.............................................................
Prof. Dr. Ovidio de Abreu Filho
Universidade Federal Fluminense
Niterói
2014
Às comunidades e pessoas maias e mesoamericanas,
de ontem e de hoje; à memória de seus 260×260 dias.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço à minha professora desorientadora Sylvia França
Schiavo, decana e únicx marxista do departamento de antropologia (GAP) que, entre
a escrita e a oralidade, tornou-se minha grande amiga em meio a vários ritos de
passagem compartilhados e que viveremos em nossas memórias e a cada futuro
encontro. Essas memórias são também nossos esteios coletivos e se cruzam
também entre o passado e o presente da universidade e da vida, incluindo nas idas
e vindas o nosso grande camarada Fernando Calado (presente!), através de quem
expresso meu agradecimento geral a colegas discentes, técnico-administrativxs e
docentes do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF) e da Universidade
Federal Fluminense (UFF).
Ao professor Nikolai Grube, que dispôs de seu tempo para atender-me nos
momentos de dificuldade, minha sincera gratidão. Em seus diálogos comigo, Nikolai
trouxe-me a certeza de trilhar um caminho pertinente tanto no que se refere aos
estudos mesoamericanos quanto às minhas escolhas político-epistemológicas. Sua
presença foi fundamental para o amadurecimento da jornada de superação das
fronteiras. Junto a ele, reitero minha admiração pelxs colegas Linda Schele e John
Ellis Montgomery que, apesar de eu não ter conhecido, certamente avançaram no
sentido de uma ciência maianista aberta, feita com xs maias e não meramente
“sobre” elxs. Acredito que nosso desafio coletivo é o de dialogar com cada vez mais
maias (acadêmicxs ou não), e também com outrxs pesquisadorxs independentes,
horizontalizando as trocas de saberes.
Minha gratidão também ao professor Ovidio de Abreu Filho, um dxs criadorxs do
curso de graduação em Antropologia, por compartilhar com xs estudantes suas
reflexões acerca do devir minoritário e suas posições políticas coerentes acerca da
universidade e do meio acadêmico. E também por ser um dxs avaliadorxs desta
monografia, num momento de bastante mudança para todxs xs diretamente
envolvidxs com esta escrita.
Agradeço à moçambicana Sandra Monteiro Leite, que me recebeu em Lisboa, e à
portuguesa Cristela Francisco e sua família, que me hospedou em Coimbra. Aos
colegas portugueses Luís “Alektryon” Gonçalves e José Miguel Pimenta-Silva, que
receberam e comentaram uma versão prévia desta monografia.
Estendo saudações à professora desorientadora que mais me acompanhou ao
longo da graduação, Marcia Oliveira Moraes. Junto ao grupo “Perceber Sem Ver”,
ela marcou minha trajetória de graduação concedendo-me a oportunidade de uma
dupla familiarização. Estive tanto num grupo de pesquisa quanto no “microuniverso”
do Instituto Benjamin Constant (IBC), principal instituição de educação para pessoas
cegas do Brasil. Fui bolsista ao longo de todos os seis semestres em que cursei o
bacharelado em antropologia; nos dois primeiros anos (2012 e 2013), como
estagiário técnico-administrativo pela Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) e, no
último ano (2014), como bolsista de iniciação científica pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O mote do grupo, vinculado ao
departamento de psicologia (GSI), é o de “PesquisarCOM”; o fazer colaborativo
torna-se uma estratégica político-epistemológica que aponta para a desnaturalização
da dicotomia e das fronteiras entre “pesquisador” e “pesquisado”. Certamente é uma
proposta bastante próxima à transformação revolucionária da própria antropologia,
também proporcionada pela experiência etnográfica e que pode servir à
transdisciplinaridade.
A longa (e dupla) experiência como bolsista, além de ser um privilégio na
universidade pública, constituiu-se em minha “experiência de campo” mais cotidiana
ao longo da graduação. Uma experiência bastante “feminina”, de acolhimento e
sensibilidade, de maior cuidado com a palavra escrita, falada e principalmente
escutada. Fui o único homem presente no grupo durante estes três anos, o que
contribuiu na minha formação não apenas como acadêmico mas também como
pessoa. Num ambiente composto apenas por mulheres, fiquei mais sensível às
questões (e opressões) de gênero, que atravessam a própria escrita formal e
influenciaram as escolhas de escrita desta monografia.
Entre essas mulheres, além de Marcia, estiveram (em ordem alfabética)
Alexandra Justino Simbine (Khanimambu!), Beatriz Pizarro dos Santos Lopes,
Camila Araújo Alves, Danielle Maria Sokol, Gabrielle Freitas Chaves, Jeane Silva de
Souza, Josselem Conti de Souza Oliveira, Juliana Pires Cecchetti Vaz, Larissa
Ribeiro Mignon, Lia Paiva Paula, Louise Goransson Savelli, Luana de Assis Garcia,
Luciana de Oliveira Pires Franco, Marisa do Amaral Gomes, Raffaela Petrini de
Oliveira, Tayana Valente Moutinho, Thainá Rosa Oliveira da Cunha e Thais Amorim
Silva.
Meus mais sinceros agradecimentos são renovados à minha família nuclear:
Sandra Mara Jotta, Brasiliano Cavalcanti e Gabriel Cavalcanti. Sem elxs, eu não
poderia ter me dedicado tanto ao estudo da Mesoamérica como pesquisador
independente, menos ainda poderia dispor de tanto tempo para a universidade e ao
trabalho de pesquisador. O agradecimento alcança a todas as pessoas da família
num sentido mais amplo, como José Bezerra Cavalcanti (avô Lenine) e Yolanda
(avó); e a demais amigxs – citadxs aqui nominalmente ou não – que de alguma
tornaram mais coletiva minha experiência de vida para além da universidade.
Agradeço à minha companheira de tantas liminaridades, Ana Paula Germano, por
sua atenção, paciência e carinho comigo na vida e nos estresses do último ano de
graduação. Certamente os ciclos são de luta, mas também de sementes e
aprendizados.
Muito contribuíram também Silvia de Araújo Yamada e Maristela Zancan para a
viabilização dos empreendimentos de pesquisa que me levaram até aqui, com
passagens pela América Central e por Portugal. Além delas, devo também minha
gratidão à historiadora Luana Neres de Sousa, que ajudou-me de diversas maneiras
no início da minha formação acadêmica.
Finalmente, agradeço a todxs xs maias e entusiastas maianistas com quem estive
pessoalmente na Guatemala, em El Salvador, Honduras e Belize, e com quem
conversei pela rede mundial de computadores durante os últimos anos, incluindo
Fabían Frías Sastillán (Apab’yan Tew), Oscar Ajkaj e família, Lolmay Pedro Oscar
García Matzar, Enrique Salguero, Julio David Menchú Cruz e família, e ao casal
América e Noé López (e filhxs).
Mais uma vez, a todas as comunidades maias combativas!
“Quisieron enterrarnos pero no sabían que éramos semillas”
Subcomandante Marcos
“Ando a ver. O caracol sai do arrebol. A cobra se concebe
curva. O mar barulha de ira e de noite. Temo igualmente
angústias e delícias. Nunca entendi o bocejo e o pôr-do-sol.
Por absurdo que pareça, a gente nasce, vive, morre. Tudo se
finge, primeiro; germina autêntico é depois. Um escrito, será
que basta? Meu duvidar é uma petição de mais certeza.” (João
Guimarães Rosa)
RESUMO
Esta monografia é um estudo introdutório ao “calendário maia” que atenta para a
diversidade étnica pan-maia e algumas formas de diferenciação sociocultural a partir
do uso dos calendários na Mesoamérica. Buscando a transdisciplinaridade, e a
superação das fronteiras rígidas entre as ciências e entre ciência e política, o
trabalho serve como semente para o fomento dos estudos mesoamericanos e para
uma ciência horizontal.
Palavras-chave: calendário maia, Mesoamérica, transdisciplinaridade.
RESUMEN
Esta tesis es un estudio introductorio del “calendario maya” que da atención a la
diversidad étnica pan-maya y algunas formas de diferenciación sociocultural
relacionadas con el uso de los calendarios de Mesoamérica. Buscando la
transdisciplinariedad y la superación de los bordes rígidos entre las ciencias y entre
la ciencia y la política, el trabajo sirve como una semilla para los estudios
mesoamericanos y una ciencia horizontal.
Palabras clave: calendario maya, Mesoamérica, transdisciplinariedad.
ABSTRACT
This thesis is an introductory study of the “maya calendar” that gives attention to
the pan-maya ethnic diversity and some forms of sociocultural differentiation related
to the use of calendars in Mesoamerica. Seeking transdisciplinarity and the
superation of the rigid edges between sciences and between science and politics, the
work serves as a seed for both Mesoamerican studies and a horizontal science.
Keywords: maya calendar, Mesoamerica, transdisciplinarity.
LISTAS
ÍNDICE DE FIGURAS
Figura 1: Mapa da Mesoamérica com suas principais subdivisões...............................................34
Figura 2: Mapa da área maia com as divisões entre terras baixas e terras altas.........................38
Figura 3: Mapa da zona maia subdividida em áreas setentrional, central e meridional...............39
Figura 4: Tronco linguístico maia..................................................................................................... 41
Figura 5: Mapa linguístico da área maia........................................................................................... 42
Figura 6: Mapa das línguas nativas da Mesoamérica......................................................................43
Figura 7: Mapa linguístico da Guatemala......................................................................................... 45
Figura 8: Mapa da comunidade linguística maia Mam, que transcende fronteiras nacionais.....46
Figura 9: Caricatura da reação à continuidade cultural pan-maia.................................................48
Figura 10: Representação dos 20 dígitos maias..............................................................................51
Figura 11: Exemplos de construção aritmética e representação de numerais grandes..............53
Figura 12: Série Inicial e Série Complementar ilustradas na Estela 10 de Piedras Negras.........55
Figura 13: Detalhe da estela 1 de Cobá com o grandioso registro da conta longa......................58
Figura 14: Representações antropomorfas dos 20 dígitos.............................................................60
Figura 15: Glifos dos 20 dias do Tzolk’in......................................................................................... 64
Figura 16: Glifos dos meses do Ja’ab’............................................................................................. 74
Figura 17: Roda calendárica.............................................................................................................. 80
Figura 18: Glifos antropomorfos completos para a data 9.15.5.0.0 (Estela D de Copán).............84
ÍNDICE DE TABELAS
Tabela 1: Cronologia arqueológica simplificada da Mesoamérica.............................35
Tabela 2: Os 260 dias do Tzolk’in...............................................................................68
SUMÁRIO
1
QNUKUL QANIL...............................................................................................17
1.1
Parágrafo único................................................................................................18
1.2
O começo do ciclo que não tem começo e nem fim........................................19
1.3
Ciclo do objetivo...............................................................................................19
1.4
Escrita e oralidade............................................................................................20
1.5
¡¿ μέθοδος ?!....................................................................................................25
1.6
A missão e a autoridade...................................................................................27
2
NA’OJIXIK UK’UX UWACH ULEW.................................................................. 29
2.1
¿Mayas en Brasil?............................................................................................29
2.2
Anahuac........................................................................................................... 31
2.3
Tinha um “período clássico” no meio do caminho: entre “auges”,
eurocentrismo e evolucionismo...................................................................................36
2.4
Mayab’..............................................................................................................37
2.5
Extintxs?...........................................................................................................44
3
TUN, K’ATUN, TUN – CALENDÁRIO MAIA....................................................49
3.1
Matemática e conta longa – entre cálculo comercial e cálculo temporal ........51
3.2
Calendário ritual de 260 dias........................................................................... 64
3.2.1 Ciclo de 20 dias................................................................................................66
3.2.2 Oxlajun ti k’u.....................................................................................................69
3.3
Ja’ab’................................................................................................................ 73
3.4
Junab’...............................................................................................................78
4
UWACH Q’IJ – MARCANDO A DIFERENÇA NAS FACES DOS DIAS..........83
4.1
Observações teóricas sobre a diferenciação dxs sujeitxs calendáricxs ..........85
4.2
Calendários mesoamericanos como marcadores da diferença ......................87
4.3
O zero como marcador da diferença................................................................89
4.4
Referências espaciais e cromáticas.................................................................90
4.5
Data de “ano novo”...........................................................................................91
4.6
Grupo de marcadores...................................................................................... 91
4.7
Marcador inicial ou terminal............................................................................. 93
4.8
Principal marcador de ano............................................................................... 94
4.9
Ponto de início do ciclo de 52 anos................................................................. 94
5
CONCLUSÃO...................................................................................................96
6
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................99
17
1
QNUKUL QANIL1
A presente monografia tem por objetivo principal semear uma introdução ao
“calendário maia”, ou melhor, ao sistema calendárico mesoamericano. Minha
experiência investigativa, ao mesmo tempo teórica, “etnográfica” e “netnográfica”,
está relacionada a tais contagens de tempo atualmente usadas na Guatemala (e na
diáspora maia),2 que podem ser consideradas “fatos sociais totais” nas sociedades
em que foram e ainda são utilizadas.3
Como primeiro objetivo específico, pretendo adubar o terreno em que as
sementes serão lançadas tratando brevemente de uma questão significativa: a da
identidade maia. Atentarei para a existência da diversidade maia, considerando
tratar-se de um ponto estratégico para a familiarização do público lusófono com as
questões que envolvem os estudos maianistas.
Um segundo e não menos importante objetivo específico é o de germinar esta
introdução tratando destes calendários enquanto marcadores da diferença. Mostrarei
de que maneira os usos destes ciclos distinguem as pessoas em uma mesma
sociedade ao mesmo tempo em que discernem culturas entre si. Para isso,
abordarei – entre outros aspectos – a diversidade de usos matematicamente
possíveis; por exemplo, num ano de 365 dias há virtualmente 365 possíveis datas
para marcar o “ano novo”. Antes disso, nesta introdução situarei minha escrita para
além dxs maias.
1
2
3
Introdução, literalmente “Nossa explicação ordenada” em língua maia Mam.
Diáspora maia refere-se em especial a uma emigração em massa forçada principalmente – mas
não apenas – durante os períodos mais sangrentos da ditadura na Guatemala. Desde o golpe
engendrado com apoio da CIA, em 1954, até a assinatura do acordo de paz, quase em 1997,
milhares de maias foram para os países vizinhos, para os EUA e outras partes do mundo.
Marcel Mauss define “fato social total” quando diz que “Há anos nossa atenção dirige-se ao
mesmo tempo para o regime do direito contratual e para o sistema das prestações econômicas
entre as diversas seções ou subgrupos de que se compõem as sociedades ditas primitivas, e
também as que poderíamos chamar arcaicas. Existe aí um enorme conjunto de fatos. E fatos que
são muito complexos. Neles, tudo se mistura, tudo o que constitui a vida propriamente social das
sociedades que precederam as nossas — até às da proto-história. Nesses fenômenos sociais
'totais', como nos propomos chamá-los, exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas
instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas sendo políticas e familiares ao mesmo tempo —;
econômicas — estas supondo formas particulares da produção e do consumo, ou melhor, do
fornecimento e da distribuição —; sem contar os fenômenos estéticos em que resultam esses
fatos e os fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam.” (MAUSS, 2003, p. 187).
Entendo que a busca de um ponto de vista “entre seções” faz de Mauss um dxs precursorxs das
ideias de interseccionalidade. O fato social total seria, por definição, essencialmente
interseccional, pois apenas fatos sociais de alcance a todas as seções são “totais”. Se
particularmente prefiro a transdisciplinaridade, me pergunto: será possível pensar uma
“tran”seccionalidade?
18
1.1
Parágrafo único
Ou, como diria Sylvia Schiavo, o objetivo desta monografia é “pensar
criticamente”; afinal, “é a única maneira de pensar”. Esta monografia deve ser lida
desde uma perspectiva que considere as possibilidades de uma “escrita horizontal”,
ou mesmo “transversal”, de diversas implicações. Que seja uma escrita para todxs, 4
partindo de um indivíduo que por sua vez estranha as políticas institucionais.
Portanto, minha escrita se coloca como um discurso que visa relativizar ou
desnaturalizar a ciência e as obrigaçoẽs acadêmicas envolvidas em um “Trabalho de
Conclusão de Curso” (TCC). Estar na academia, um espaço de bastante dominação
e feito de fronteiras que começam por segregar duramente quem está “lá fora”, só é
interessante enquanto houver gana pela popularização da universidade. O acesso
universal deve ser acompanhado por uma abertura da didática e da epistemologia.
Como lembrou Dennis Tedlock (1999, p. 112), no caso dxs maias “escrever da
maneira antiga com clareza era” produzir lemo tzij (“palavras espelhadas” ou
“palavras-espelho”), cholo tzij (“palavras ordenadas”) e ajilan tzij (“palavras
contadas”), mas “uma vez que a página foi reduzida à escrita alfabética, o espelho
se foi”.5 Finalmente, no tempo sem fim, a responsabilidade há de ser inteiramente
minha sobre a escrita; esta monografia é, contudo, regulada por um tempo
específico, e restrita à palavra reificada no papel, que amanhã já será anacrônica; ao
mesmo tempo, como o tempo, ela não pode ter começo ou fim. Que possam nascer
debates mais horizontais a partir de suas sementes...
4
5
Ao longo de todo este texto, utilizarei de uma estratégia de escrita inclusiva (ou neutra) de gênero.
Em nossa língua, quando falamos de pessoas coletivamente, reforçamos a dominação masculina
mesmo quando existe apenas uma pessoa do sexo masculino. As discussões de gênero são,
claro, demasiado complexas, e não me coloco aqui como um especialista, mas como um autor
que está aderindo a uma prática que acredito ser relevante para uma escrita coerente com a
minha visão política. Neste caso, privilegio a letra “x” em plurais tradicionalmente terminados em
“os”, como acontece na palavra “todxs”. A alternativa do uso do caractere “@” parece ser mais
conhecida, e usada tanto em trabalhos acadêmicos – por exemplo, MARTÍNEZ MAURI;
RODRÍGUEZ BLANCO, 2009 – quanto pelo movimento zapatista (vide MARCOS, 2008). Preferi
“x” em lugar de “@” para uma escrita não-binária (uma vez que “@” é entendida como “o/a”).
Reconheço que esta estratégia pode dificultar de maneira pontual a inclusão de leitorxs cegxs,
porém também acredito que a tecnologia da leitura de telas é, mais do que se pode imaginar,
facilmente adaptável para favorecê-lxs diante das mudanças cada vez mais dinâmicas na língua.
Trata-se da escrita antiga maia, em hieróglifos; os termos nativos estão em língua K’iche’.
19
1.2
O começo do ciclo que não tem começo e nem fim
Quando começa um ciclo?
Cadê o relativismo do seu tempo?
A formação, dessa vida aqui, tem início e fim?
Se o ciclo da vida humana – individual ou mesmo socialmente pensado – tem
início e tem fim, o mesmo não se pode dizer do tempo; ninguém cá esteve antes de
o tempo existir, tampouco haverá de estar quando o tempo casualmente cessar. E,
bem, disso xs maias e mesoamericanxs em geral já sabiam bem; aliás, toda gente
sábia há-de-saber-sem-nem-estudar. É que por aqui a escrita é de estudar, e assim
se perde a maldita da vontade de versar. Escrevo falando, como quem diz: essa
escrita é um triz; falar é que é bom, sentir a palavra pelo nariz!
A minha formação não vem de agora, começou no mundo lá fora. Não se fez de
grandes leituras, mas de imensas bravuras. Estar na academia é aquela coisa: gato
preto mia. E se não for pra falar, que graça tem? É preciso sonhar, ir além. Rendime, tal Dom Quixote, a uma esperança que é um desafio de criança: fazer algo
maior do que a minha pança.
1.3
Ciclo do objetivo
O “objetivo” deste documento “antropológico” é também meu “objeto” há mais de
cinco ciclos sinódicos de Vênus.6 Como pesquisador independente, tive a
oportunidade de adentrar as searas da argumentação científica sem ter uma prévia
formação acadêmica, sentindo os “ares” de ambientes próprios à análise da “teoria
ator-rede” (LATOUR, 2011).
“Tal é a tese da antropologia simétrica de Bruno Latour (2000)
acerca do conhecimento científico: a ciência não é resultado do
funcionamento da razão, atributo de um sujeito dado e separado do
contexto social e político. A ciência é uma prática híbrida que não
cessa de articular, conectar atores heterogêneos, humanos e não
humanos. Desse modo, as tradicionais categorias que embasaram o
pensamento moderno são colocadas em xeque: natureza e
sociedade, sujeito e objeto, pesquisador e pesquisado não são
6
Em termos da matemática mesoamericana do tempo, 584×5 = 365×8.
20
domínios separados e estanques. São efeitos de nossas práticas
híbridas, suas fronteiras são pactuadas e renegociadas pelos
coletivos.” (MORAES, 2008)
Foi bem por aquela idade, no começo do milênio e já como amante da
astronomia, que aproveitei uma brecha pontual na avaliação escolar e dediquei-me
por escolha própria à pesquisa do que, àquela altura, eu chamava de
“arqueoastronomia pré-colombiana”. Durante a pesquisa, mergulhei no que então
chamava de “etnomatemática inca” (aquela, feita com os chamados quipus) e
“etnomatemática maia”. Sem-saber-sabendo, eu estava iniciando minha trajetória
como pesquisador por caminhos bastante transversais, pautados por intersecções
entre campos do conhecimento institucionalizados.
Posteriormente, a partir de 2005, aprofundei-me no estudo do “calendário maia” e
iniciei, no ano seguinte, o Projeto Calendário MesoAmericano Independente e
Aberto (Projeto CMAIA). Tive a oportunidade de falar sobre a matemática e os
calendários em vários espaços, principalmente fora da academia, e ao mesmo
tempo de conversar com diversxs especialistas estrangeirxs através da internet.
Depois de tudo isso é que eu me convenci e abracei a ideia de realizar meus
propósitos de pesquisador também pelas vias da universidade. Antes da metade do
ciclo da graduação, publiquei meu primeiro livro (CAVALCANTI, 2012), e agora
encerro este período de descobertas através destas linhas. Não por acaso, tal obra
é referência recorrente para esta escrita, sem ignorar que minha trajetória anterior à
universidade foi fundamental não apenas para esta publicação como para aproveitar
a graduação com mais maturidade.
1.4
Escrita e oralidade
É bem sabido, desnaturalizando a escrita e a literatura, que pensar escrevendo e
escrever pensando permite registrar e reproduzir, mas não ouvir e falar por si. A
oralidade primária,7 essa da qual uma vez escrevendo já não experimento, é aquela
7
De acordo com Walter Ong (1998), oralidade primária é “a oralidade de culturas não afetadas pela
cultura escrita (…) a das pessoas que desconhecem inteiramente a escrita. (…) a oralidade de
uma cultura totalmente desprovida de qualquer conhecimento da escrita ou da impressão. É
'primária' por oposição à 'oralidade secundária' da atual cultura de alta tecnologia, na qual uma
nova oralidade é alimentada pelo telefone, pelo rádio, pela televisão ou por outros dispositivos
eletrônicos, cuja existência e funcionamento dependem da escrita e da impressão. Atualmente, a
cultura oral primária, no sentido restrito, praticamente não existe, uma vez que todas as culturas
têm conhecimento da escrita e sofreram alguns de seus efeitos. Contudo, em diferentes graus,
21
em que a palavra é apenas a impressa e expressa nos corpos, nas bocas e ouvidos.
É também para sentir o gosto para além do papel que eu relutei, por muitas vezes, a
ler e a escrever.
“As ciências sociais, ao fazerem seu conhecimento, definem estratégias
epistemológicas que criam categorias analíticas com as quais nomeia,
define, problematiza e descreve o que se afirma saber e buscar saber. Na
antropologia, mais ainda na etnologia, essas categorias analíticas buscam
se fundir com as categorias dos interlocutores a partir das quais eles
pensam seus mundos, suas relações, seus espaços, entre outros muitos
sentidos possíveis. Esses dados etnográficos se apresentam como
autoevidentes – parte do outro – sob o que James Clifford (1998) tem
chamado de autoridade etnográfica. (...)
O que buscamos pensar é como essa autoridade etnográfica define formas
epistemológicas que criam fronteiras, as quais, pelo lugar das ciências
sociais nos estados nacionais contemporâneos, onde essa autoridade
etnográfica é também uma autoridade de saber com poder político e até
jurídico, esses limites não são só uma fronteira para conhecer as coisas,
mas também uma forma de normatizar as coisas.” (LARA, 2013)
Disso se faz não só a antropologia, mas a escrita. Por isso, escrevo relutando
para expressar minha resistência à reificação da palavra. Aparentemente, resta
pouco espaço para a oralidade em sociedades “letradas”.
A “clássica” autoridade da antropologia precisa manter suas fronteiras, mas estou
pela luta decolonial que vislumbra a ruptura desses muros. A escrita de uma
monografia muitas vezes envolve algum tipo de coerção; é desejoso que se
mantenha fronteiras bem definidas para que sua autoridade seja reconhecida e
valorizada. Que audácia seria se as monografias se propusessem a produzir mais e
reproduzir menos!
Porém, entre a teoria e a práxis há muito mais do que o suposto rigor “imparcial”;
quando a ciência nega a política e se crê dona de si é que a práxis está em perigo.
Este perigo é maior em um contexto de fragmentação e definição de fronteiras
político-epistemológicas que expressam antes uma disputa por poder, com a criação
e manutenção de nichos restritos, do que uma horizontalização da ciência. Para
mim, então, não interessa ciência que não seja “com política”.
“Há dois lados: aqueles que atualizam uma versão tradicional da
ciência versus política e aqueles que compreenderam que essa
antiga epistemologia política (para chamá-la pelo seu verdadeiro
nome) é o que enfraquece tanto a ciência como a política no
muitas culturas e subculturas, até mesmo num meio de alta tecnologia, preservam muito da
estrutura mental da oralidade primária”.
22
momento em que as questões em jogo tornam-se amplas demais (...)
O grande limite do antigo acordo era tornar impossível qualquer
conexão da ciência com a política e não contra a política. (...) O
deslocamento de uma ciência versus política para uma ciência com
política certamente não se dá sem perigo.” (LATOUR, 2014)
É neste momento conturbado, e a partir dessas reflexões e de uma posição
política bem definida, que a minha escrita se forja; ela é fruto do trabalho. E este
trabalho é o de escrever para além do que se espera e para além do que a escrita
tem sido na maioria das vezes. Afinal, até bem pouco tempo a escrita foi de modo
geral ferramenta exclusiva dos elitismos pelo mundo.
Tamanha dominação sobre a escrita tem a dizer sobre os usos históricos dela,
enquanto armas de persuasão ideológica e científica. Tornou-se um domínio cada
vez mais individual do discurso e da manipulação e reificação das palavras, que
também abriu, por exemplo, caminho para a construção burguesa do “capital
cultural”,
especialmente
em
seu
estados
objetivados
e
institucionalizados
(BOURDIEU, 1998). Não por acaso, James Clifford (CLIFFORD & MARCUS, 1986)
ajuda a introduzir o problema da escrita em antropologia lembrando que “no século
dezenove, a literatura emergiu como instituição burguesa intimamente aliada com a
'cultura' e a 'arte'”. A retórica da literatura – da escrita, da antropologia... – “está
mudando e é contestável”, e é precisamente por isto que hoje é possível questionar
e descortinar os discursos eternizados em escritas passadas.
Também por isto é costume “científico”, já no mestrado, achar sua monografia de
graduação “muito fraca”. É que na academia se treina muito a escrita; e, quanto
maior a autoridade que se lhe reconhece individualmente, maior é a probabilidade
de que se esqueça de ouvir.
“Contam, xs mais antigos avxs, que tiveram por presente a palavra e
o silêncio para se mostrar e para tocar o coração dx outrx. Falando e
escutando aprendem a caminhar as mulheres e os homens
verdadeirxs. É a palavra a forma de se caminhar para dentro. É a
palavra a ponte para atravessar ao outro (...). X poderosx usa a
palavra para impor seu império de silencio. Nós usamos a palavra
para nos fazer novxs. X poderosx usa o silêncio para esconder seus
crimes. Nós usamos o silêncio para nos escutar, para nos tocar, para
nos saber.” (Comitê Clandestino Revolucionário Indígena,
Comandância Geral do Exercito Zapatista de Libertação Nacional;
1995).”8
8
Adaptando de LARA, 2014.
23
Apenas a partir dos múltiplos encontros, com suas palavras orgânicas e silêncios
reflexivos, é possível fazer desta escrita uma antropologia “que atravessa e é
atravessada, na qual buscamos aproximar e encontrar intersecções entre diferentes
campos etnográficos e teóricos separados por fronteiras de todo tipo” (LARA, 2014).
Isto é, com certeza, buscar uma antropologia para além da antropologia. Fixar-se na
antropologia é também demarcar uma fronteira e, se é de interesse desnaturalizar
as fronteiras, prefiro a transdisciplinaridade; o que se chamaria de intersecções
epistemológicas
trata-se
de
um
fenômeno
evidenciado
cotidianamente:
o
pensamento é “transdisciplinar”. Ou não é.
“Se concordarmos com isso, temos que redimensionar o alcance de
uma antropologia que atravessa e é atravessada, a qual, por um
lado, vem cruzando limites de conceito ao desautorizar etnográfica e
teoricamente as fronteiras disciplinares, geográficas, temáticas ou
ideológicas; mas que, também, vem sendo atravessada
epistemológica e politicamente ao se engajar com as perguntas e os
questionamentos que estes coletivos, em seus diferentes processos
políticos e de relação, colocam à disciplina e ao senso dominante de
mundo” (LARA, 2014)
A história da antropologia mostra como a escrita sobre “x outrx”, dita também
“ciência da alteridade”, foi cotidianamente usada como arma (PRICE, 2011) de
dominação de outras culturas e outrxs indivíduxs ao longo de suas – feliz ou
infelizmente – poucas décadas de vida. Escrita e antropologia podem ser então,
para xs (neo)colonialistas, um “casamento” perfeito ainda hoje. E, assim, também
devem ser vistas como ferramentas a serem apoderadas pelxs que lutam por uma
descolonização ampla que vislumbra uma verdadeira horizontalização do fazer
científico.
A história da escrita e da academia “do tempo presente”, contudo, aponta antes
para uma massificação produtivista do que para reflexões consequentes que não se
pretendam despolitizadas. Eis aqui o embate que envolve diferentes usos da
autoridade antropológica, um conflito que não escapa às disputas entre classes,
ideologias, etnias, gêneros... Continuam existindo grupos que dominam, não apenas
o uso da escrita, mas também as instituições que ainda detêm aparelhos capazes de
ditar a própria formação do senso comum; o “senso dominante de mundo”.
24
A luta pelo empoderamento através da escrita é árdua. Por isso há também
claramente uma disputa; estamos numa conjuntura de crescente universalização da
alfabetização, mas que não deve ser entendida ou naturalizada como se for a uma
universalização do letramento.
As fronteiras entre o que é ou deveria ser uma escrita científica ou de ficção
parecem atualmente cada vez mais “borradas”, razão pela qual as ciências humanas
e sociais são costumeiramente desconsideradas enquanto “ciências”. Sem dúvida
isto se deve também à ilusão de superioridade das ciências “duras” (ou melhor, de
“cientistas durxs”) com seu incurável “objetivismo universalista”.
Não se trata, porém, de descartar o universalismo em favor do localismo, mas sim
de perceber que as ciências “com 'C' maior” temem as brechas discursivas, e mais
ainda aquelas da escrita, já que textos científicos também apresentam semelhanças
com a literatura ficcional. Esta ameaça à objetividade “científica” da escrita não está
somente nas “humanas e sociais”, mas passa pela própria conclusão de que não
existe língua universal, menos ainda escrita universal e é também por isso que todxs
xs humanxs não escapam por completo do etnocentrismo.
Logo, é preciso afirmar de maneira provocadora que as elites acadêmicas
(inclusive as das ciências “duras”, ditas exatas e universais) fazem também
“etno”ciência. Afinal, “até a matemática produzida por matemáticxs profissionais
pode ser vista como uma forma de etnomatemática porque ela foi produzida por um
grupo cultural identificável e (…) ela não foi a única a ser produzida” (BORBA, 1990,
p. 41).9 Portanto, o relativismo deve ser combatido sempre que for usado para
naturalizar um discurso epistemológico “puro”, isento ou universal. Ele – o
relativismo – jamais deve ser usado em favor das ideologias dominantes, e por isso
devemos combater seu uso irrestrito; o que não significa, em hipótese alguma,
abraçar o antirrelativismo.10
Para conceituar “etno”ciência nesta introdução, evoco aqui pela primeira vez
minhas próprias palavras:
“Nos dias de hoje, os acadêmicos chamam de 'etnociência' todo
aquele conhecimento de outras culturas (indígenas e africanas, por
9
10
Tradução minha.
Para um debate pertinente sobre o assunto, ver GEERTZ (2001), que compara o antiantirrelativismo ao anti-anticomunismo, ambas a meu ver posições políticas pertinentes como
resposta a duas paranóias mais ou menos generalizadas.
25
exemplo) que é passível de ser chamado de ciência mas não tem
espaço no meio acadêmico, ainda hoje marcadamente eurocêntrico.
A etnociência é, para mim, uma excelente ferramenta de educação.
Graças à etnohistória, podemos mostrar a 'visão dos vencidos'; mais
do que isso, permite-nos romper com o ensino de história em que os
velhos heróis europeus são louvados (...). Dessa maneira, os
estudantes, desde muito cedo, podem ser incentivados a pensar a
ciência para além do que a escola tradicional ou a grande mídia
chama de ciência.”
As fronteiras ocidentais entre “cultural”, “artístico” e “científico” são fundamentais
para que exista uma “etno”ciência, que ganha ares de “outra” ciência. Entretanto,
hoje questiono ainda mais o uso deste conceito em termos opressores. É preciso
combater aquelxs que usam o prefixo “etno” como sinônimo para “pseudo”, “menor”
ou “menos importante” ciência; esta constitui em prática academicista denunciada
inclusive por nativxs maias (AJ XOL CH’OK, 2008), e eu me insiro então entre xs
que são muito críticxs a este tipo de diferenciação.
A “etno”ciência enquanto imposição de fronteira qualitativa ou valorativa naqueles
termos revela-se um embuste ao escrutínio de uma antropologia decolonial. Há,
operando nessa fronteira, tentativas de conservar a ciência dx ricx sobre a dx pobre,
a do homem sobre a da mulher e a dx brancx sobre x índix e x negrx, por exemplo.
Se não há uma ciência que não seja “etno”, então são todas ciências.
1.5
¡¿ μέθοδος ?!11
Me proponho a ir além da antropologia, a buscar além das fronteiras. Em outro
sentido, almejo uma liberdade epistêmica ora ensaiada que poderia se definir – em
termos nativos da academia – por “transdisciplinaridade”. Busco transcender as
separações, barreiras e fronteiras. No caso de outras sociedades e “outras ciências”
– “etno”ciências – existe a possibilidade de se pensar uma “transdisciplinaridade”
mais orgânica, que não necessariamente esteve sob o jugo da departamentalização
do saber.
Esta é a condição de várias epistemologias outras. Muitas das formas de
conhecer que estão para além da academia representam um bojo de conhecimento
científico ainda hoje ignorado. Tal ignorância ocorre graças a um (neo)colonialismo
11
Em grego, méthodos.
26
epistêmico e à hegemonia da academia sobre a ciência num paradigma de
capitalismo misto, entre a tradição eurocêntrica e a (re)produção estadunidense.
Pensar outras epistemologias deve ser sempre um empreendimento encarado
metodologicamente, a princípio, como um exercício de “transdisciplinaridade”.
Entendo que as “etno”ciências seriam aquelas que simplesmente não podemos
divididir arbitrariamente em “naturais”, “exatas” e “sociais”. E, se as ciências ditas
acadêmicas também são “etno”ciências, esses domínios científicos podem ser vistos
como forjados, que não gozam na prática da independência idealizada em relação
às outras formas de saber num contexto de fragmentação. Primeiro como tragédia,
depois como farsa.
Reafirmo minha necessidade em buscar diálogos para além da antropologia e de
colocar a minha escrita como algo que transcenda as divisões disciplinares, cuja
objetividade é discutível. É claro que trata-se de um processo em andamento, e não
sinto que minha formação acadêmica tenha contribuído tanto quanto poderia para
que meus esforços fossem hoje mais direcionados neste sentido.
Assim, não cabe a mim reificar um método, eleger um método único, exclusivo e
soberano sobre o meu fazer científico. A etnografia tem sido exageradamente
central para a “antropologia brasileira”, 12 e isto ocorre na contramão da abrangência
internacional e interseccional da disciplina. No meu caso, o de quem se debruça
sobre xs maias e seus “dois mil anos de literatura” 13 (e muito mais de oralidade), fica
evidente que, quanto mais ampla e “transdisciplinar” for a pesquisa e a antropologia,
melhor.
Na “história da ciência” (isto é, do desenvolvimento da produção acadêmica),
então, não é surpresa constatar que para os estudos maianistas a “abordagem dos
quatro campos” fomentada por Franz Boas foi e continua sendo importantíssima. 14
Na medida do possível, trarei dados principalmente da linguística, da epigrafia e da
geografia (entre outras, além das “etno”ciências), e estes podem ser considerados
tão ou mais importantes em comparação aos dados etnográficos.
Estou
disposto
à
horizontalização
do
“fazer
científico”
em
favor
das
epistemologias historicamente excluídas pela academia. Se não há horizontalização
12
13
14
Para um debate atualizado acerca da distinção entre antropologia e etnografia, ver INGOLD, 2008.
Ver TEDLOCK, 2010.
Ver PATTISON, 2011.
27
dos debates político-epistemológicos e éticos nas formações acadêmicas, a
hegemonia da academia sobre a ciência continua se dando pela via da farsa política.
Costumo dizer que a arte se fez “livre” da via burocrática e do jugo da academia,
e que a ciência também haverá de se fazer livre. Nos novos usos da própria escrita
científica e com as inovações em sua divulgação, existe hoje uma conjuntura cada
vez mais apropriada para isto, para derrubar os muros que impediam e ainda
impedem o acesso de todxs à produção (e aos meios da produção) científica.
1.6
A missão e a autoridade
Acredito no caráter de intervenção pedagógica que a escrita, enquanto resgate e
criação de memórias discursivas e sistematização de conhecimentos, proporciona.
Enquanto paradigmas colonialistas e opressores se ressignificam na academia e na
antropologia, de mãos dadas ao capitalismo e à mercantilização da educação, cabe
justamente a antropólogxs desnaturalizar os próprios usos da antropologia.
Nos termos de Latour, posso dizer que busco criticamente as interseccionalidades
de uma “ciência com política”. Minha monografia não deixa de ser um sintoma do
que indica Tatiana Gomes Rotondaro (2012):
“Um dos aspectos que pretendo discutir se refere ao que observo
como uma 'abertura antropológica' das ciências humanas, que de
modo algum corresponde a sua antropologização. Argumento que
em função da proliferação de crises, pela quais passam as
instituições contemporâneas, sociólogos e cientistas políticos tendem
a abrir seus esquemas macroexplicativos da realidade social ao
escrutínio e à combinação de metodologias antropológicas como
meio de encontrar bases para a construção de novos parâmetros que
possam balizar projetos políticos normativos inclusivos.”
A melhor maneira de fazer uma “abertura antropológica” no meu caso é trabalhar
por uma introdução consistente ao “calendário maia” e a debates dos mais diversos
e que me são caros, considerando abordagens que ajudem na abertura de novos
campos, projetos e linhas de pesquisa. É claro que isso haverá de amadurecer cada
vez mais em futuras escritas.
Como observou Bruno Latour (2014) acerca da cosmovisão moderna, “a maior
parte dos nossos modos de mapear onde estamos, para onde vamos e o que
28
deveríamos fazer foi definida por uma divisão de tarefas entre ciência e política”.
Não surpreende, então, que a universidade seja um lugar de disputas por poder
ideológico e econômico. Se há uma divisão latente entre ciência e política, com
departamentos e institutos se separando indefinidamente, programas de pósgraduação discutindo maior diferenciação entre mestrado e doutorado, pergunto:
será que há prática científica coletiva ou políticas individualistas disfarçadas de
epistemologia?
Os crônicos problemas da “antropologia brasileira” também passam por uma
carência de esforços interseccionais. Não por acaso, as autoridades antropológicas,
ou quiçá ainda mais as autoridades etnográficas, têm sido constantemente
questionadas nas últimas décadas. Estes questionamentos nunca saíram de pauta,
especialmente após a publicação de Writing culture: The Poetics and Politics of
Ethnography (CLIFFORD & MARCUS, 1986).
Escrever não é fácil, pode ser poético mas necessariamente é político. As
contradições entre teoria e práxis estão por todo lado; nem tudo é relativizável. A
divisão entre “universalistas” e “localistas” evidencia como dicotomias pouco úteis
ainda podem informar e limitar a antropologia e outras ditas ciências, dificultando o
diálogo transdisciplinar. É necessário avançar pelas trilhas da desnaturalização das
classificações hegemônicas sobre a própria “epistemologia” e os conceitos de “saber
científico”. Para mim, este é o único projeto viável de antropologia; um caminho
sempre tecido, que não se limita e nem estabelece fronteiras para a ciência.
É com esta gana que prossigo para tratar dxs maias e ao mesmo tempo contribuir
para uma maior liberdade reflexiva. Como diria Ciro Flamarion Cardoso, “não sou
monotemático”, e nem monodisciplinar. Ao contrário, busco a transdisciplinaridade
mais livre e desafiadora possível, que interfira nas diferentes áreas e divisões
institucionais da “ciência”. O relativismo é uma ideologia, e portanto os interesses
que movem seus distintos usos não podem ser indefinidamente relativizados aos
sabores individualistas. Se todo mundo é “antropólogx”: que antropologia você faz?
Are k’u xchiqak’am wi,
xchiqamajij wi ukútunisaxik.15
15
“Assim, vamos assumir,
vamos começar o ensinamento” (SAM COLOP, 2012).
29
NA’OJIXIK UK’UX UWACH ULEW16
2
2.1
¿Mayas en Brasil?
Os estudos sobre xs maias são escassos no Brasil, e é bem verdade que também
pouco se sabe sobre indígenas “brasileirxs” na região maia. Ainda assim, me parece
que pesam, como agravantes no caso da ignorância acerca dxs maias, o fato de
existir a nível mundial, globalizado e midiático, uma deturpação de seus calendários
e a suposta profecia do “fim do mundo” em 2012.
Como antropólogo maianista,17 lamento constatar cotidianamente uma escassez
de pesquisas lusófonas, ainda que o mercado editorial voltado à língua portuguesa
tenha sido bastante “aquecido” pelo “fim do mundo”. Meu principal objetivo por
muitos anos – e ao longo da graduação – foi o de “desmistificar xs maias”, tamanha
é a desinformação a seu respeito, o que se dá inclusive em círculos acadêmicos.
Diante da pouca formação e familiaridade que se tem no Brasil (ou nas
universidades brasileiras) em relação à Mesoamérica como um todo e a maias em
especial, ocorre que ainda hoje falta mais informação com respaldo científico, a
começar pela contagem dos dias. Em nossa sociedade lusófona de massa, boa
parte do senso comum acerca dxs maias continua a ser formado por movimentos de
“nova era” e místicxs independentes.
Isto resulta em uma série de desinformações a respeito dxs maias, articuladas em
redes e eventualmente oriundas de literaturas mitológicas próprias e não raramente
fantasiosas do ponto de vista etnológico. É evidente que estas influências são
maiores quando não há um campo de estudos mesoamericanista ou maianista
desenvolvido, caso do Brasil. O país é valorizado por diversos movimentos e autorxs
da “nova era”, facilitando a circulação de várias versões esotéricas e mesmo
gnósticas sobre maias, que prejudicam os estudos consequentes ao mesmo tempo
em que são privilegiadas pela grande mídia, como foi durante o ano de 2012.
Respirando à margem da pauperização midiática, é possível encontrar
publicações interessantes sobre maias em português. Entre xs autorxs de formação
16
17
“Sentindo/entendendo o 'coração da terra'” em língua maia K’iche’.
Em espanhol, mayista; em inglês, mayanist. Não confundir com adeptx do maianismo (ver
CAVALCANTI, 2012).
30
acadêmica, podemos mencionar (mais ou menos ordenadxs cronologicamente)
Affonso Varzea, Franz Joseph Hochleitner, Antonio Porro, Alexandre Guida Navarro,
Sérgio Luiz Rodrigues Medeiros (tradutor do Popol Wuj para o português com
Gordon Brotherston) e Flavia Pedroza Lima. Já nos anos recentíssimos, surgiram
maestrxs como xs historiadorxs Igor Luis Andreo, Joyce Pinto Almeida Carvalho e
Miguel Pimenta-Silva, além das antropólogas Dina Susana Mazariegos García e
Nora Epifanía Murillo Estrada.18
Carvalho, inclusive, concluiu seu mestrado em 2014 tratando da cosmovisão maia
a partir de documentos indígenas pós-invasão como o Popol Wuj, sob orientação de
Eduardo Natalino dos Santos, 19 mesoamericanista líder do Centro de Estudos
Mesoamericanos e Andinos (CEMA), vinculado à Universidade de São Paulo (USP).
Junto ao Museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA) da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF), fundado por Hochleitner, O CEMA é uma das
principais referências institucionais no que diz respeito aos estudos mesoamericanos
no Brasil. É digno de mencionar que as duas antropólogas citadas se formaram pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que nos últimos tempos abriga um
nicho promissor de produção etnográfica maianista, além de ter em seus quadros o
professor e poeta aqui lembrado, Sérgio Medeiros.
Nem todxs que integram este breve portfólio dos estudos maianistas lusófonos
são brasileirxs ou mesmo nativxs da lusofonia, o que é promissor para o crescimento
do campo de estudos mesoamericanos no Brasil. Melhor ainda quando nos
deparamos com pesquisadorxs reconhecidxs mundialmente que são capazes de ler
e eventualmente escrever em português, como é neste momento por exemplo o
caso de Nikolai Grube.
Lembro, também, que esforços mais historiográficos, que ampliarão este portfólio
e poderão tecer considerações aprofundadas sobre as investigações lusófonas,
estão a caminho. Partilho deste interesse com Pimenta-Silva, e possivelmente com
mais pesquisadorxs com quem espero ter a chance de dialogar e que poderei citar
num futuro não muito distante.
18
19
Por sugestão de Pimenta-Silva, menciono também xs investigadorxs portuguesxs Miguel Conde,
Diniz Conefrey, Luís Lopez e Ines Varela-Silva; entretanto, lamentavelmente nem todxs têm
publicações em língua portuguesa acerca dxs maias ou da Mesoamérica. Acredito que precisamos
fomentar a escrita maianista em português, que é um dos pilares desta monografia.
A tese de doutorado do historiador, que fala sobre os calendários nahuas (SANTOS, 2011), é
digna de um lugar de destaque no que se refere ao estudo de calendários mesoamericanos no
Brasil.
31
Uma impressão geral, após tratar da desinformação e elencar tantos nomes
oriundos da academia em contrapartida, é de que também tem faltado um bocado
de “divulgação científica”. Em resposta a isto, iniciei no começo de 2014 o projeto
Acervo Mesoamericano.20
Trata-se de um repositório de nível profissional, utilizado por centenas de
universidades e profissionais bibliotecárixs no mundo e que, neste caso, é destinado
a construir uma biblioteca para os estudos mesoamericanos. Seu intuito é
armazenar inclusive textos, em qualquer língua, incluindo as línguas indígenas.
Desta maneira, aceno que é importante pautar as questões que dizem respeito ao
acesso livre,21 que hoje surge como uma alternativa viável para a democratização do
acesso à produção acadêmica. Para uma real popularização, é necessário estranhar
o próprio controle capitalista que se dá no acesso a muitas pesquisas consideradas
“de ponta”. Seria muito mais interessante se a abertura ao acesso fosse também
respaldada pelxs pesquisadorxs mais respeitadxs. Aqui, volto novamente à defesa
de uma ciência com política.
2.2
Anahuac22
Para entender de que terra falo e em respeito aos solos em que estou por lançar
minhas sementes, e consequentemente poder também pisá-los com consciência, é
preciso começar falando de América e de Mesoamérica. Se, continentalmente, xs
maias estão na América, regionalmente estão na Mesoamérica. No que se refere à
América, uma excelente referência introdutória é a seção/publicação do sítio virtual
de Julio Cezar Melatti, que trata das “áreas etnográficas”. 23 Ela servirá para que se
compreenda de que maneiras o que se convencionou chamar de Mesoamérica 24 se
diferencia – e se aproxima – em relação a outras regiões da América no concernente
às culturas e sociabilidades humanas.
20
21
22
23
24
Acessível em www.acervomesoamericano.org.
Há vasta produção sobre o assunto e sobre as iniciativas de “repositórios temáticos”; para uma
primeira familiarização com o assunto, ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Acesso_livre.
“Margeado pela água” em língua Náhuatl. Pimenta-Silva (comunicação pessoal) atenta para a
necessidade de maior problematização desta categoria nativa e seus usos políticos e estou de
acordo.
Ver http://www.juliomelatti.pro.br/areas/00areas.htm. Como obra introdutória e ao mesmo tempo
abrangente, deixa a pensar várias lacunas a serem preenchidas a partir de esforços coletivos.
Paul Kirchhoff, propositor do termo “Mesoamérica” (1943), chegou à conclusão de que as
sociedades da região eram variações de um tema cultural afim, todas relacionadas ou derivadas
de uma cultura ancestral comum que remonta a um passado longínquo.
32
Acredito, contudo, que se tratem de áreas culturais que transcendem a etnografia,
e cuja existência se embasa transdisciplinarmente – como haveria de ser em todo
estudo que envolve cultura desde uma perspectiva holista. A etnografia, sem dúvida,
é importante para a antropologia e para situar a experiência dx antropólogx no
mundo; é principalmente a “escrita”25 desta experiência, como já disse Geertz . Mas
mesmo as experiências mais belas (e as teorias-metodologias mais “racionais”)
nunca se constituíram em solução mágica e capaz de satisfazer a abrangência e as
ânsias do interesse antropológico, que precedem a etnografia. A antropologia surgiu
antes de Malinowski e não estaria destinada a acabar num utópico fim da etnografia.
Por isso, é preciso estranhar sempre contextos como o brasileiro, em que a
etnografia emerge como central na antropologia, especialmente pois é por esta via
que a autoridade antropológica se reforça e ganha maiores implicações jurídicas. Se
não vejo ciência e política como necessariamente separadas ou separáveis, é
precisamente por isto que não se pode desconsiderar os abismos entre discurso e
práxis, ideologia e realismo político.
Não seria prudente – se buscamos uma antropologia decolonial – deixar de
mencionar que as categorias toponímias América e Mesoamérica não são nativas da
própria América. Hoje, a principal categoria usada tanto entre descolonizadorxs
quanto entre organizações não-governamentais (ONGs) e movimentos pequenoburgueses da “nova era” para se referir à América em seu conjunto é a de Abya
Yala. Esta é considerada sinônimo de América na língua do povo Kuna e cujo
avanço na adoção continental também se dá em terras maias da Guatemala
(PORTO-GONÇALVES, 2009).
Já no que se refere à Mesoamérica, a categoria nativa mais popularizada é a de
Anahuac,26 oriunda da língua Náhuatl. Não por acaso, a Mesoamérica é descrita
como sendo “o mundo conhecido” pelxs mexicas (astecas), falantes mais
conhecidxs daquela língua, em 1519 (época das invasões). 27 Mais do que uma
referência ao mundo literalmente conhecido, trata-se ainda mais do mundo
dominado pelxs mexicas, ou que pelo menos lhes era mais familiar e sobre o qual
sua influência era maior.
25
26
27
Ainda que hoje possa ser uma “escrita” através de outros meios que não a escrita alfabética, como
produções audiovisuais, são documentos que contém discursos construídos e que podemos “ler”.
Anahuac foi também o título de um livro do “clássico” da antropologia, Edward B. Tylor (1861);
ainda que seja aparentemente um dado muitas vezes ignorado na própria antropologia, talvez esta
seja uma das razões para a popularização e apropriação política do termo.
Prefiro a perspectiva de “invasão” para tratar da suposta “descoberta” europeia da América.
33
Geograficamente, a Mesoamérica não pode ser contudo fixamente definida; isto
é, seus limites encontram-se em constante revisão. A grosso modo, é possível dizer
que tal macrorregião consiste numa área que vai desde o norte do México (ou
mesmo que chega às terras estadunidenses fronteiriças, outrora mexicanas),
passando por Guatemala, Belize, El Salvador, Honduras e parte de Nicarágua e
Costa Rica. Mais do que uma região, trata-se de uma área cultural caracterizada
pela presença de um sem-número de sociedades que usaram um calendário
incomum de 260 dias, por exemplo, cultivaram o milho [etc] (MILLER; TAUBE, 1997:
9). Este calendário de 260 dias, indubitavelmente, é um marcador de diferença
mesoamericano tanto em relação às outras regiões da América quanto do mundo.
A Mesoamérica tem seu próprio processo de desenvolvimento histórico, e há para
ela há uma cronologia específica, de corte temporal tradicional feito pelxs
arqueólogxs (NAVARRO, 2008). Essa periodização privilegia xs maias ao ser
definida especialmente a partir da noção da existência de um período “clássico” que
coincide com o “auge maia”, havendo um corte que define o que vem antes como
“pré-clássico”, e o período posterior como “pós-clássico”. O Anahuac, por exemplo, é
muito “pós-clássico”.
Isto se deve ao fato – que Alexandre Guida Navarro ajuda bem a lembrar – de
que, para xs maianistas, o período clássico é considerado tradicionalmente como
“(...) o auge da civilização maia, devido à imponência de seus palácios, às estelas –
monumentos verticais onde foram registradas inscrições hieroglíficas (…) [e] sua
elaborada cerâmica policrômica” (NAVARRO, 2008). Na tabela 1, há um esboço da
cronologia mesoamericana; assim como as fronteiras geográficas, as fronteiras
temporais não podem ser rígidas; o próprio período clássico se subdivide, gerando
novas fronteiras. Para Simon Martin e Nikolai Grube (2008), por exemplo, o fim do
período clássico ocorre com o último registro do calendário de conta longa, 28
correspondente ao ano de 909 EC, 29 um corte simbólico bastante importante para
historiadorxs do calendário maia.
28
29
Para uma introdução à conta longa, ver próximo capítulo.
Prefiro “Antes da Era Comum” (AEC) e “Era Comum” (EC) como alternativas laicas a “Antes de
Cristo” (a.C.) e “Depois de Cristo” (d.C.) para referência a datação no âmbito dos calendários
juliano e gregoriano.
34
Figura 1: Mapa da Mesoamérica com suas principais subdivisões.
Fonte: Foundation for the Advancement of Mesoamerican Studies, Inc. (doravante FAMSI).
35
Tabela 1: Cronologia arqueológica simplificada da Mesoamérica.
Período
Arcaico
Duração
? - 1900 AEC
Culturas, cidades e
informações
Primeiras ocupações humanas
Oralidade primária
Domesticação do milho
Desenvolvimento do calendário de 260
dias
Primeiros indícios de escrita (?)
Formativo inicial
~ 1900 – 900 AEC
Olmeca, zapoteca
Xochipala, San Lorenzo
Formativo médio
~ 900 – 350AEC
Monte Albán, La Venta; El Mirador (“maia”)
Formativo tardio
~ 350 – 50 AEC
Monte Albán, Colima
Proto-clássico
Clássico inicial
~ 50 AEC – 300 EC Teotihuacán, Izapa, Kaminaljuyú
~ 300 – 600 EC
“Maias”
Tikal, Uaxactún, El Tajín, Escuintla
Clássico tardio
~ 600 – 909 EC
Palenque, Yaxchilán, Cacaxtla
Clássico
ou
~ 909 – 1200 EC
Transição “maia-tolteca”
terminal
Xochicalco, Mitla, Chichen Itzá
Pós-clássico inicial
Pós-clássico tardio
~ 1200 – 1519 EC
Mexicas (astecas)
Tenochtitlán, Tula, Tlaxcala, Mayapán
Invasão e
pós-invasão
~ 1519 – Hoje
Início da invasão e da opressão europeia
Destruição das últimas cidades nativas
(Tayasal, última cidade maia, 1697)
Independências e Estados nacionais
“Guerra das castas” (1847-1901)
EZLN (1994), “paz” na Guatemala (~1997)
“Ciclo de 2012” (2014... “Ome Tochtli”, etc)
Fonte: Elaboração própria (original), baseada em MILLER; TAUBE, 1997 e CAVALCANTI, 2012.
36
2.3
Tinha um “período clássico” no meio do caminho: entre “auges”,
eurocentrismo e evolucionismo
Desde o século XVI, a “cultura maia” foi admirada e perseguida pela civilização
europeia, graças à invasão da América. O frade Diego de Landa, ao queimar um
número incerto – mas possivelmente muito grande – de códices em Maní, foi talvez
x maior dxs destruidorxs da história escrita maia em seus próprios termos
hieroglíficos. O “auto de fé” de Landa contribuiu para que se conheça muito menos a
história maia propriamente dita e do período pré-invasão; mas também escreveu a
obra Relación de las Cosas de Yucatán (~1566), com registros úteis para a
compreensão da escrita em hieróglifos.
Bartolomé de Las Casas, por sua vez (cristão cedo arrependido), ao escrever
sobre as populações indígenas observou que algumas delas “igualavam-se aos
gregos e os romanos, e até, em alguns de seus costumes, os superavam” ( apud
LAPLANTINE, 2003). A comparação com gregxs e romanxs serve para demarcar o
“alto grau de evolução” de alguns grupos indígenas, diferenciando-os da grande e
mal vista maioria. Esta é uma espécie de parâmetro eurocêntrico para o que veio a
se chamar ou a se diferenciar depois como “alta cultura”; não surpreende que tal
comparação ainda se faça presente no imaginário ocidental. Xs maias da
antiguidade ainda são eventualmente referidxs como “gregxs da América”
(PEREIRA, s.d.).
Atento para o fato de que, se chamamos o período que corresponde ao “auge”
das elites maias – aquele de palácios, estelas e escrita hieroglífica – de “clássico”,
isto ocorre também por influência da arqueologia e da história antiga eurocêntricas.
Nelas, o “período clássico” costuma corresponder a uma espécie de “auge grego”: o
tempo de Sócrates, Aristóteles e Platão.
Isto serviu para ilustrar o respeito europeu à grandiosidade maia, mas é algo que
também desviou modelos teóricos eurocêntricos inadequados para os estudos
maianistas. Aqui, evidencia-se um problema de alcance imensurável e implicações
político-metodológicas bastante complexas; xs próprixs maias poderão contribuir no
avanço diante de muitos desses problemas, num fazer científico mais horizontal em
que se paute a descolonização da própria epistemologia.
37
2.4
Mayab’
Embora o objetivo desta monografia também seja antes o de situar xs maias na
Mesoamérica, faz-se necessário contextualizar a “área maia” ou “zona maia”, que é
costumeiramente chamada de Mayab’ entre xs nativxs.
“A área maia, situada na confluência entre a América do Norte e a
América Central, apresenta no aspecto geográfico, duas grandes
divisões, comumente designadas de Terras Altas e Terras Baixas,
subdividindo-se nas regiões meridional, central e setentrional. A área
meridional compreende essencialmente as Terras Altas da
Guatemala, formada por uma cadeia montanhosa de origem
vulcânica, cujos picos mais altos alcançam 4000 metros de altura.
Possui um clima quente e úmido, estendendo-se da porção oriental
de Chiapas, no México, até El Salvador. Esta região é regada por
dois sistemas fluviais principais. O primeiro forma o rio Motágua, que
nasce no atual Departamento de Quiché, na Guatemala, corre em
sentido leste-nordeste e desemboca no Golfo das Honduras, costa
do Caribe; o segundo compreende o rio Usumacinta, formado por
três afluentes principais: o Pasión, Chixoy ou Salinas e o Lacantún,
desembocando no Golfo do México através de vários braços. O
Usumacinta e seus tributários formam a via fluvial de maior
importância na área maia. Os centros de povoamento nas terras
altas concentram-se em vales que se elevam a mil metros acima do
nível do mar. Esta região apresenta dois lagos, o Amatitlán, próximo
da cidade da Guatemala e o lago Atitlán, no Departamento de Sololá.
Esta zona meridional, apesar da fertilidade, dos recursos naturais e
do papel determinante que desempenhou durante as fases
formativas da civilização maia, apresentou um número de centros de
povoamento bem inferior ao das Terras Baixas.
As Terras Baixas situam-se na maior parte abaixo de 600 metros de
altitude, raramente ultrapassando os 100 ou 200 metros. Dividem-se
em duas partes: as terras Baixas do Sul, ou Área Central, cobertas
quase que exclusivamente por uma floresta tropical mais ou menos
densa e muito úmida, que se prolonga desde a planície costeira de
Tabasco, no Golfo do México, até Belize e Honduras, no litoral do
Mar do Caribe e passando pelo Petén, no norte da Guatemala. Já as
Terras Baixas do Norte, ou Área Setentrional, englobando
praticamente toda a península do Iucatã, caracterizam-se por uma
grande formação calcária e são quase que exclusivamente
desprovidas de cursos d´água superficiais; em direção noroeste, o
clima torna-se progressivamente árido.” (NAVARRO, 2008)
Essas subdivisões da região maia são oriundas de fronteiras naturais e analíticas
significativas para se pensar as populações maias. Não é possível, neste curto
espaço, problematizar estas fronteiras. Para o propósito aqui delineado, faz-se mais
38
Figura 2: Mapa da área maia com as divisões entre terras baixas (lowlands) e terras altas
(highlands).
Fonte: Sítio da internet.
39
Figura 3: Mapa da zona maia subdividida em áreas setentrional, central e meridional.
Fonte: Sítio da internet.30
30
As figuras 2 e 3 foram obtidas no sítio www.latinamericanstudies.org.
40
necessário atentar para a existência de uma diversidade linguística – e
consequentemente cultural – maia. Assim, desnaturaliza-se a ideia de uma “unidade
cultural maia”, bastante recorrente no senso comum.
Os problemas começam a partir da compreensão de que a identidade maia tal
qual compreendida hoje trata-se de uma severa generalização, e portanto um
esforço trabalhoso é necessário para distinguir xs maias entre si. Além de situar xs
maias na Mesoamérica, então, é importante saber – mais ainda em trabalhos
etnográficos – de que maias se fala com a maior especificidade possível, para não
generalizá-lxs.
Uma “história da identidade maia”, ou a origem para o sentido que ela tem hoje
enquanto uma espécie de “identidade pan-maia”, é bem clara. Se a história da
invasão europeia ou do desenvolvimento acadêmico tivessem sido diferentes,
cabalmente xs maias seriam chamadxs por outro nome. Isso se deve ao fato de que
a etnia que ainda hoje habita a região que serviu como entrada espanhola ao atual
continente americano autoidentifica-se como “Maya”.
Mas há pelo menos outras três dezenas de línguas que compõem o tronco
linguístico maia, para além daquela língua maia. Como as outras línguas têm uma
origem em comum com ela, passou a se assumir que a raiz do tronco linguístico era
“proto”-“maia”, e a língua Maya passou a ser chamada com o gentílico do Yucatán:
“maia Yukateka”.
Quando se fala em “maias” hoje, geralmente se está referindo a uma identidade
pan-maia, que abrange muitas línguas distintas, e não a maias Yukatekxs. De
acordo com o tronco linguístico da figura 4, são 34 línguas maias; 31 destacadas num
triângulo estão as comunidades linguísticas que usaram a escrita em hieróglifos.
Apenas oito línguas maias foram praticantes da “escrita antiga maia”, a mesma
que fascinou o mundo; e em pelo menos 16 dessas comunidades linguísticas maias
31
É preciso destacar que para muitxs linguistas, incluindo Nikolai Grube, existem 31 línguas maias
distintas. As outras 3 aqui reconhecidas como línguas (Tusantek, Chalchitek e Achi) podem ser
consideradas muito próximas, praticamente idêntica a outras línguas (respectivamente,
Motosintlek, Awakatek e K’iche’). São aqui tratadas como línguas autônomas pois politicamente
constituem e reivindicam-se uma comunidade linguística e portanto gozam de identidade étnica
própria. Este é um momento em que a “ciência com política” se mostra na prática, pois não é
possível ignorar a autoidentificação étnica e política dessxs nativxs maias. Compreendendo a
diversidade cultural mesoamericana, e independente da discussão categórica que se apresenta, é
possível concluir que a grande árvore linguística maia agrupa outros dialetos locais (ou mesmo
línguas) no passado que permanecem desconhecidxs, e comunidades em situação similar às três
comunidades linguísticas mencionadas, mas que não reivindicam autonomia.
41
Figura 4: Tronco linguístico maia.
Fonte: Elaboração própria (original), a partir de GRUBE, 2001 e TREE, 2009.
42
Figura 5: Mapa linguístico da área maia (destacada em azul).
Fonte: FAMSI.
há evidência para línguas de sinais ou Meemul Tziij (TREE, 2009).32 Assim, é
possível começar a vislumbrar a complexidade do “complexo maia”, o que fica mais
interessante a partir da contextualização propiciada pelos mapas mostrados nas
figuras 5 e 6.
32
Línguas para pessoas surdas e mudas, mas que também são úteis na mediação entre nativxs
maias falantes de línguas distantes.
Figura 6: Mapa das línguas nativas da Mesoamérica.
Fonte: FAMSI.
44
Dessa maneira, entende-se definitivamente que falar em “maias” num sentido
genérico implica em englobar uma larga diversidade cultural e linguística. Escutei e
nunca esqueci, do amigo Oscar Ajkaj, um jovem ajq’ij33 e ajtij34 K’iche’ de Nawalja’,
Guatemala, que uma pessoa maia não consegue se comunicar com outrxs maias,
dependendo das línguas envolvidas. Isto demonstra como é dificultosa qualquer
tentativa de generalizar xs maias.
2.5
Extintxs?
Ao contrário do que muitas pessoas, mesmo na academia, ainda imaginam, xs
maias não foram extintxs. É comum a ideia de que isto tenha ocorrido, em diferentes
termos. Há quem me aborde supondo que isto ocorreu mesmo antes da invasão
europeia, fazendo provável referência ao declínio de um sistema político que
representou o “auge” da aristocracia maia do período clássico. Também existe a
versão de que foram extintxs na época daquela mesma invasão.
Xs maias não foram extintxs em nenhuma das ocasiões, e vivem até hoje,
especialmente na Guatemala. Praticamente todas as línguas maias historicamente
conhecidas continuam a ser faladas atualmente, e também escritas com uso do
alfabeto latino, além de existir um incipiente resgate da antiga escrita maia (que traz
consigo novos usos); mesmo alguns de seus calendários seguem em uso, em
especial os ciclos de 260 e 365 dias.
Apenas na Guatemala, existem 22 comunidades linguísticas maias distintas, e o
direito à educação nestas línguas tem sido incorporado pelo Estado. A figura 7
mostra um mapa linguístico da Guatemala elaborado a partir do regulamento (do
final de 2011) da Ley de Idiomas Nacionales da Guatemala, que inclui as línguas
Xinka e Garífuna e regula por municípios a educação oficial em línguas indígenas. 35
Sim, é possível escutar o que dizem xs maias – e falar com elxs – pois estão
vivxs. Assim como vivas estas suas línguas e seus calendários (MILES, 1967). Isto
33
34
35
Título relativo às autoridades nativas do calendário maia, em língua maia K’iche’.
“Professor” em língua maia K’iche’.
Para consulta ao texto completo da lei propriamente dita, do ano de 2003, ver
http://www.unicef.org.gt/1_recursos_unicefgua/publicaciones/leyes_convenciones/LeyIdiomasNaci
onales.pdf. Para acesso ao regulamento, tal qual publicado em diário oficial em 11 de Outubro de
2011, ver http://calendariosagrado.org/blog/wp-content/uploads/2011/10/Reglamento-de-IdiomasNacionales.pdf.
45
Figura 7: Mapa linguístico da Guatemala.
Fonte: Elaboração própria (original).
46
Figura 8: Mapa da comunidade linguística maia Mam, que transcende fronteiras nacionais.
Fonte: Academia de Lenguas Mayas de Guatemala (ALMG).
47
só aumenta o desafio dx “etnográfx”. Quando lidamos com um complexo cultural de
mais de dois mil anos de história, a etnografia tem alcance limitado; por outro lado, a
continuidade cultural é latente entre xs maias, e com auxílio da etnografia podemos
constatá-la (FREIDEL, SCHELE & PARKER, 1993).
Sendo assim, a escrita etnográfica é bastante relevante politicamente, e aqui
aparece ainda mais a necessidade de uma “ciência com política” consequente.
Afinal, a autoridade dx antropólogx continua sendo muito “útil” para legitimar políticas
de Estado e de capital privado e definir quem tem direito à “continuidade cultural”.
Não por acaso, é principalmente a língua que serve para legitimar a identidade
maia entre xs indígenas que vivem hoje na Guatemala, por exemplo; e xs maias
Yukatekxs também estão bem vivxs no México, gracias. O empoderamento políticoidentitário pan-maia contemporâneo se deu principalmente como arma de coesão no
contexto da luta coletiva contra a ditadura guatemalteca, mas tem plena justificativa
científica para a defesa da continuidade cultural – pela via linguística, calendárica,
agrária... – para desespero de boa parte da gente kaxlan (“não-maia”).
Um dos maiores equívocos, portanto, é o de entender que xs maias constituem
uma forte unidade cultural ou linguística, o que só ocorreu no passado mítico (e de
oralidade primária) da língua “proto-maia” – bem antes do período clássico e sua
“escrita antiga maia”. É preciso ressaltar, também, que não existiu “império” ou
unidade política maia no período clássico; as primeiras divisões entre xs maias são
de fato situadas muitas dezenas de séculos atrás.
Infelizmente, a generalização cultural e linguística dxs maias surge no senso
comum e inclusive entre antropólogxs brasileirxs. Eduardo Viveiros de Castro, em
seu mais recente livro, ignora a diversidade maia ao referir-se a maias como falantes
de língua singular, afirmando que em “(...) diversos estados nacionais (México,
Guatemala, Belize, Honduras e El Salvador), os Maya continuam a existir, sua
população aumenta, sua língua floresce (...)” (DANOWSKI & CASTRO, 2014, p.
141).36 Isto ilustra como a “antropologia brasileira” ainda hoje, mesmo num livro que
propõe tratar de “fim do mundo”, aparenta pouca familiaridade com xs maias.
Ainda que o propósito desta seção seja o de uma introdução limitada no que se
refere à questão “quem são xs maias?”, acredito que esta iniciativa sirva como uma
semente para a familiarização do público lusófono às questões pertinentes aos
36
Grifo meu.
48
estudos maianistas. Ainda que numa rápida menção à diversidade linguística, é
possível ao menos perceber o quanto ainda se ignora acerca dxs maias.
A seguir, o texto entrará efetivamente em seu objetivo principal, a introdução aos
calendários
maias.
Para
tal,
será
necessário
compreender
as
estruturas
matemáticas e o funcionamento das contas envolvidas, concernentes ao sistema
calendárico mesoamericano em geral.
Figura 9: Caricatura da reação à continuidade cultural pan-maia por parte de alguns setores
conservadores da sociedade guatemalteca contemporânea.
Fonte: Sítio da internet.37
37
Ver http://popol-mayab.org/2014/05/05/la-otra-historia/.
49
3
TUN, K’ATUN, TUN – CALENDÁRIO MAIA
Em outras oportunidades, pude fazer uma abordagem muito mais dedicada aos
calendários maias (CAVALCANTI, 2012), e por isso a utilizo de maneira recorrente
neste capítulo. Nesta monografia, entretanto, por conta das limitações já
mencionadas, darei atenção especial apenas aos ciclos pertinentes à chamada
Série Inicial.38
Quando falo sobre “calendário maia” no singular, ultimamente tenho empregado
aspas irônicas para refirir-me, na verdade, ao complexo sistema calendárico
mesoamericano. Mais do que uma curiosidade da “nova era”, a compreensão acerca
dessa forma de organizar o tempo pode nos ajudar a entender melhor a própria
sociabilidade mesoamericana, que está em boa parte pautada no compartilhamento
do calendário ritual de 260 dias, chamado Tzolk’in en língua maia Yukateka e
Cholq’ij em língua maia K’iche’.39
Como demonstrou Durkheim (1989), categorias relacionadas a tempo e espaço
estão entre as categorias fundantes do social. No caso da Mesoamérica, não seria
exagero dizer que essas categorias geralmente estão relacionadas ao ciclo de 260
dias, ou pelo menos aos ciclos de 13 e 20 dias, que o precedem e o formam.
Além do calendário de 260 dias, é preciso destacar pelo menos o calendário civil,
Ja’ab’ (em maia Yukateko) ou simplesmente Ab’ (em maia K’iche’), cuja duração é
de 365 dias.40 Completando o capítulo e a Série Inicial, o Choltun – assim
geralmente conhecido hoje na Guatemala (CAVALCANTI, 2012) –, também
38
39
40
A série inicial, num registro calendárico maia do período clássico, trata-se, como antes observado,
de “um grupo de hieróglifos que trazem informações sobre aqueles que são considerados os três
principais ou fundamentais calendários maias: o Choltun, o Tzolk’in e o Ja’ab’. Os dois últimos
juntos formam, ainda, um outro ciclo, o Junab’ ou roda calendárica de 52 anos.” (CAVALCANTI,
2012)
Neste capítulo e nesta monografia, preferi usar os nomes dos dias em língua maia Yukateka.
De acordo com Tedlock (1992), xs K’iche’ também chamam esse ciclo de macewal k’ij (grafia dela)
ou “dias comuns” (tradução minha). Como masewal é um termo geralmente utilizado para
referência a maias ou indígenas em geral, é por vezes considerado até depreciativo como o uso
do termo “índix” em português – mas que não necessariamente terá sempre um sentido valorativo.
Refere-se à gente “comum” campesina (STANLEY, 2005), para além das elites e das autoridades.
Este dado reafirma a importância do calendário de 365 dias para as atividades agrícolas e
consequentemente para vida e a produção cotidiana da sociedade. Então masewal q’ij pode ser
lido como “dias da gente comum”, ou mesmo dias da gente campesina, eventualmente “calendário
da semeadura”, etc. Isto também o sentido do ciclo “civil”, pois se este foi e é o calendário da
gente comum logo seu conhecimento esteve mais imbricado na própria construção da cidadania
local ou regional, especialmente nos meios rurais, que diferenciou grupos interna e externamente
à sociedade. Sobre marcadores da diferença, que ajudaram a engendrar as próprias cidadanias
calendáricas, ver capitulo 4.
50
chamado em círculos acadêmicos de “conta longa” (long count). Trata-se de um
caso particularmente interessante e que representa a maior prova da grandiosidade
que a horologia mesoamericana parece ter alcançado.
De fato, a conta longa é um desdobramento da própria escrita “etno”matemática
maia, possivelmente herdada dxs olmecas, que são consideradxs criadorxs da conta
longa. Por tal razão, ela não apenas merece destaque como ajuda a colocar em
pauta aquele que, na minha experiência, deve ser o primeiro passo para a didática
dos calendários mesoamericanos: as práticas matemáticas envolvidas.
Como observei anteriormente (Ibidem), a existência de uma cultura matemática é
uma condição sine qua non para a concepção dos calendários. As culturas
mesoamericanas são também herdeiras de uma cultura matemática vigesimal,
composta por vinte dígitos. O número vinte é costumeiramente associado aos vinte
dedos do corpo humano (STUART, 2011).
Considerando que as escritas são técnicas de concretização do pensamento ou
da palavra (CAUTY, 2009), é possível especular que a tradição matemática e
calendárica mesoamericana possui raízes muito anteriores aos registros escritos
mais antigos conhecidos. A própria base vigesimal, ao ser relacionada aos 20
dedos, sugere a existência de sociedades que independem da escrita para contar. A
matemática também está, de alguma maneira, inscrita no corpo.
É inegável, observando por outro ângulo, que o trabalho matemático,
especialmente considerando o caso da instituição dos calendários na Mesoamérica,
e principalmente da conta longa, depende de uma comunidade de especialistas, de
tempo e de suporte da escrita (Ibidem) para sua manutenção e desenvolvimento.
André Cauty (apud CAVALCANTI, 2012) situa a singularidade da Mesoamérica na
história americana:
“Na América antiga, somente os mesoamericanos desenvolveram tradições
matemáticas escritas. Os primeiros rastros foram deixados pelos olmecas; e
o desenvolvimento mais bem-sucedido da escritura e do cômputo é
indubitavelmente o Clássico maia (séculos III-X). Os escribas maias foram
os grandes mestres do cômputo e da escrita logossilábica. Melhor do que a
escrita hoje extinta, a tradição do cômputo sobreviveu à implosão da
civilização maia além do ano mil, especialmente nos astecas. Mais tarde,
depois da Conquista, essa tradição foi combatida pelas autoridades
coloniais espanholas que impuseram uma nova religião, uma nova justiça,
uma nova administração, uma cultura de comércio e uma civilização
escravagista. Para nosso propósito, ela extinguiu as numerações vigesimais
e impôs a numeração decimal em algarismos arábicos assim como a
51
escritura alfabética. As respostas indígenas foram múltiplas e dependem
interativamente das épocas e situações. No início da colonização, alguns
mesoamericanos adotaram o alfabeto. O que permitiu, por exemplo, aos
astecas (ou à rainha Mathilde) inserir comentários (em nahuatl, espanhol,
latim, etc) em obras pintadas/escritas retiradas da pictografia.”
Torna-se clara a importância da tradição escrita mesoamericana no que se refere
à manutenção do conhecimento matemático.41 Por conta das formas de escrita
desenvolvidas na região, contamos com milhares de documentos históricos da
Mesoamérica, desde as primeiras estelas aos códices, passando pelas cerâmicas e
outros materiais. Tais documentos vão além da história a eles contemporânea,
registrando números e datas dos calendários, cujos registros podem com frequência
remeter a origens mitológicas, situando ciclos em que xs primeirxs ancestrais
deixaram suas pegadas; não por acaso, essxs ancestrais foram reivindicadxs como
criadorxs da tradição calendárica.
No que se refere à tradição matemática maia, é possível falar na existência de um
cálculo ou cômputo “comercial”, utilizado na maioria das ocasiões, e um cálculo
“temporal”, adaptação do primeiro com fins de contagem de tempo. A seguir, será
possível compreender o funcionamento básico desses cômputos e suas diferenças
pontuais.
3.1
Matemática e conta longa – entre cálculo comercial e cálculo temporal
O sistema matemático maia é composto por 20 dígitos, de 0 a 19. Por isso, é de
base vigesimal, diferente da matemática ocidental e acadêmica, de base decimal,
com dígitos de 0 a 9. De acordo com Nikolai Grube (comunicação pessoal), todos os
grupos maias utilizaram e utilizam os dígitos de 0 a 19, diferente da maioria dos
outros grupos mesoamericanos, que contavam de 1 a 20.
Os dígitos maias são representados a partir de um sistema de ponto e barra, em
que um ponto representa uma unidade, e uma barra significa cinco unidades. Assim,
o número 3 é representado por três pontos (3×1), enquanto o número 16 é
representado por três barras e um ponto (3×5 + 1).
O caso do zero é especial (CAVALCANTI, 2012): geralmente, ele é representado
por uma concha e simboliza ausência de valor numérico. Sua função de “ocupação
41
Para além da Mesoamérica, entretanto, vale considerar o sistema inca dos quipus, que
aparentemente foi utilizado para registrar mensagens e também números a partir de cordas e nós.
52
dos lugares” possibilita o registro de números de “ordem superior” na contagem maia
(MONTGOMERY, 2003), isto é, numerais maiores que dezenove. Na figura 10,
abaixo, é possível ver a representação de cada um dos 20 dígitos maias,
acompanhados pelos seus nomes em língua maia Yukateka.
Figura 10: Representação dos 20 dígitos maias.
Fonte: Elaboração própria (2012) a partir de ilustrações de John Mongomery (© FAMSI).
No que se refere à representação de números maiores que 19, observei
(CAVALCANTI, 2012) que
“Havendo apenas a possibilidade dos vinte dígitos, de zero a
dezenove, concluímos que o valor máximo em cada ordem ou nível é
dezenove. A representação do número vinte inaugura o sistema de
ordens de conversão, nos quais as unidades, que na base tem seu
valor original, passam a ter seu valor padrão modificado de acordo
com o seu posicionamento. Na passagem do dezenove para o vinte
cria-se um nível superior ou uma ordem de conversão em que um
ponto, em vez de equivaler ao número um, deve ser multiplicado por
vinte. Dessa maneira, vinte na aritmética maia equivale ao que
representaríamos como (1×20) + (0×1). Na primeira ordem de
conversão, dois pontos equivalem a 40 e três barras equivalem a
300.
Da mesma maneira, quanto maior for um número, mais ordens ou
níveis ele terá de preencher, na medida em que cada ordem possui
valor de partida vinte vezes superior ao anterior: se na base cada
dígito representará seu valor unitário, acima dela representará seu
valor multiplicado por vinte, na próxima representará seu valor
multiplicado por 400 (20×20) e assim por diante.”
53
Na figura 11, é possível verificar alguns exemplos de numerais maiores que
dezenove sendo representados ao modo maia. Mais especificamente, são escritos
os números 260, 2.011 e 72.079.
Figura 11: Exemplos de construção aritmética e representação de numerais grandes.
Fonte: Elaboração própria (2012) a partir de ilustrações de John Mongomery (© FAMSI).
Nos exemplos da figura 11,
“vemos ilustrada a representação maia dos números 260, 2.011 e
72.079, com comentários sobre sua construção aritmética. O número
260 é representado com apenas duas posições, com o 13 numa
posição acima do zero, ou seja, o número 260 é aritmeticamente
considerado como (13×20) + (0×1). O número 2.011 é representado
como (5×400) + (0×20) + (11×1), e o número 72.079 como (9×8.000)
+ (0×400) + (3×20) + (19×1). Dessa maneira, podemos representar
qualquer número.
Considerando que cada ordem ou nível superior representa um valor
vinte vezes maior que o anterior, acima da ordem de valor 8.000
surgirá a ordem de valor 160.000, e depois dela as ordens de
3.200.000, 64.000.000 e assim por diante, numa progressão infinita,
onde o topo é ocupado pela maior ordem e a base é sempre
representada pelo dígito que estiver posicionado na parte mais
inferior de um registro matemático.” (Ibidem)
Esta seria uma breve introdução à lógica matemática maia, ao cômputo
convencional. Agora, é preciso passar ao cálculo temporal, isto é, ao calendário de
conta longa.
É empiricamente observável a relação entre os dois cômputos, cuja estrutura na
prática é a mesma. Pode-se afirmar que há um vínculo bastante próximo entre eles
54
a partir do momento em que passamos a uma análise da estruturação dos ciclos da
conta longa:
“Observamos isto graças a alguns aspectos aqui descritos, mas
especialmente partir do momento em que percebemos que a
estruturação de seus ciclos é, assim como no sistema matemático,
igualmente dividida em ordens de conversão regidas pela base
vigesimal. A adaptação à contagem de tempo, entretanto, ocorre logo
na primeira ordem de conversão, onde cada unidade tem valor de 20:
em vez de termos os dígitos de zero a dezenove, como no sistema
matemático, temos apenas os dígitos de zero a dezessete, o que faz
com que a ordem de conversão seguinte, que seria de valor 400,
passe a ter um valor de 360 (18×20), o múltiplo de 20 mais próximo à
duração do ano, que em número real equivale a 365 dias. O fato de
essa adaptação ocorrer apenas na primeira ordem de conversão nos
mostra que tratou-se de uma intervenção que serviu para adaptar o
sistema matemático à contagem de tempo.
Ainda que nas outras ordens de conversão o padrão de vinte dígitos
seja reestabelecido, todas as conversões partem deste valor
modificado, o que significa que, em vez de 8.000 (400×20), temos
7.200 (360×20), em vez de 160.000 (8.000×20) temos 144.000
(7.200×20) e assim por diante, sempre com a ordem de conversão
equivalendo a vinte vezes o valor da anterior, mas sem escapar à
adaptação ocorrida na primeira ordem de conversão, que marca sua
influência em todas as que vêm em seguida.” (Ibidem)
Portanto, o que chamamos de conta longa é, na verdade, uma adaptação da
aritmética maia para fins de contagem de tempo. A mudança estratégica, que se dá
na ordem de conversão de valor 400, transforma-a em um ciclo de 360 dias,
evidenciando uma preocupação ancestral com o acompanhamento do ano solar,
que veio a existir antes mesmo do ciclo de 365 dias. Tal modificação acarreta, como
mencionado, em uma diferenciação entre o cálculo comercial e o cálculo temporal, já
que tais cômputos só são idênticos para representar valores até 359.
Os ciclos da conta longa têm nomes próprios, inclusive na escrita hieroglífica. Os
cinco principais42 são os seguintes:
- K’in – 1 dia
- Winal – 20 dias
- Tun – 360 dias
- K’atun – 7.200 dias
- Pik (B’aktun) – 144.000 dias
42
Na verdade, os cinco menores e portanto mais próximos e relevantes para a vida cotidiana.
55
Figura 12: Série Inicial e Série Complementar ilustradas na Estela 10 de Piedras Negras.
Fonte: Elaboração própria (2012) a partir de ilustrações de John Mongomery (© FAMSI).
56
No contexto maia clássico, a Série Inicial é composta por um glifo introdutório que
significa “conta dos anos” e inclui o patrono do mês corrente no Ja’ab’, servindo na
prática como uma indicação prévia do mês que compõe a data que se segue
(MONTGOMERY, 2003). O calendário que costumeiramente surge primeiro,
contudo, é a própria conta longa.
Como é possível observar na figura 12, há um exemplo de estela que contém a
Série Inicial e também a Série Complementar. 43 Nela, vemos a representação da
conta longa44 com a data 9.15.10.0.0, 45 isto é, 9 pik, 15 k’atun, 10 tun, 0 winal e 0
k’in. Cada um dos ciclos da conta longa têm um hieróglifo correspondente
acompanhado por um coeficiente numérico que propicia a leitura de uma data
específica.
É importante destacar o processo exigido para o possível cálculo referente ao
número de dias escrito em um registro da conta longa, tomando como exemplo a
data mencionada. Assim, entende-se a quantos dias transcorridos um registro de
conta longa refere-se.
“Para obtermos uma conta linear dos dias, podemos decompor a
data do Choltun de modo a conhecer a quantidade de dias que tal
data representa. Utilizando o exemplo utilizado, teríamos:
9×144.000 = 1.296.000
15×7.200 = 108.000
10×360 = 3.600
0×20 = 0
0×1 = 0
1.296.000 + 108.000 + 3.600 + 0 + 0 = 1.407.600
Logo, 9.15.10.0.0 equivale a 1.407.600 dias transcorridos desde o
marco inicial do Choltun, que (...) é também o marco inicial para o
ciclo de '2012', que consiste, matematicamente falando, em um
grande ciclo composto por 13 ciclos pik, ou seja, 1.872.000 dias.”
(CAVALCANTI, 2012)46
43
44
45
46
A Série Complementar é composta por outros quatro ciclos, sendo os mais comuns (e mostrados
na imagem) o dos “Senhores da Noite” (ciclo noturno, de 9 noites) e a Série Lunar (que intercalava
ciclos de 29 e 30 dias); além dos ciclos mais raros de 7 e de 819 dias (CAVALCANTI, 2012).
Na leitura dos hieróglifos maias, e especialmente no caso do registro calendárico aqui ilustrado,
procede-se lendo os hieróglifos em pares, da esquerda para a direita e de cima pra baixo.
Esta é a maneira de referir-se a datas da conta longa usando números arábicos; o primeiro
número é referente ao maior ciclo, e por sua vez os ciclos são separado por pontos, espaços ou
traços. Logo, o último número é sempre referente ao ciclo k’in.
Sobre o marco inicial da conta longa, ao qual a maioria das datas registradas no período clássico
está ancorada como “marco zero”, é preciso lembrar que trata-se da “data de 4 Ajaw 8 Kumk’u,
que na correlação mais aceita (…) equivale a 11/08/3114 AEC marcando o reinício da conta longa.
A conta recomeça do zero e volta a coincidir com o pik e o dia 4 Ajaw em 21/12/2012 EC”. Há,
57
Ainda que lidando com valores distintos, em que a quinta ordem de conversão da
conta convencional difere irremediavelmente do quinto ciclo computado na conta
longa, ambos os sistemas partilham da infinitude propiciada pelos conhecimentos
matemáticos mais sofisticados. Isto significa dizer que no cômputo comercial
existem infinitas ordens de conversão, e que o mesmo vale para a conta longa, que
possui portanto infinitos ciclos. Afinal, os números são infinitos. Para efeito de
ilustração, listarei a seguir (Ibidem) os cinco ciclos que, sendo maiores que o pik,
são suficientemente grandes para serem considerados ciclos que transbordam o
próprio espectro temporal da história social maia e remetem ainda mais aos tempos
míticos e de criação:
- Piktun – 2.880.000 dias
- Kalab’tun – 57.600.000 dias
- K’inchiltun – 1.152.000.000 dias
- Alawtun – 23.040.000.000 dias
- Hablatun – 460.800.000.000 dias
É por tal razão que o famoso “ciclo de 2012” jamais pode ser compreendido como
“fim do mundo”, pois ele sequer representa um “fim do calendário maia”. A partir de
uma análise, ainda que superficial, da conta longa, é possível constatar que este
sistema de cômputo do tempo é, efetivamente, infinito, tal qual é a matemática
propriamente dita.
Já em 2012, eu também falava dos ciclos maiores e da infinitude da conta longa,
que tem num registro calendárico específico (ver figura 13) um belo exemplo de
contagem de tempo de extensão fantástica:
“As datas acima do pik, diga-se de passagem, costumam ser usadas
em contextos míticos, que marcam um tempo imemorial, de fundação
das linhagens espirituais, ou de um futuro distante em que as
tradições serão lembradas. O principal exemplo disto é a estela 1 de
Cobá,
que
marca
na
conta
longa
a
data:
13.13.13.13.13.13.13.13.13.13.13.13.13.13.13.13.13.13.13.13.0.0.0.0
(...)” (Ibidem).
entretanto, debates em aberto acerca da correlação dos calendários maias, em especial no que
concerne à conta longa (CAVALCANTI, 2012).
58
Figura 13: Detalhe da estela 1 de Cobá com o grandioso registro da conta longa.
Fonte: FAMSI.
59
Antes de seguir para os outros calendários da Série Inicial, e retornando ao
próprio pensamento matemático maia, é interessante pontuar que existe uma outra
forma de representar os vinte dígitos, que outrora (Ibidem) chamei de “deusesdígitos”. Hoje, entretanto, me parece mais pertinente entender tais representações
como “alteridades”, “entidades” ou “divindades”. Penso mais sobre os “rostos dos
números”, suas identidades, já que cada dígito tem sua própria “face”.
“Os vinte dígitos possuem também representações antropomorfas,
associadas a divindades. Essas divindades eram basicamente
alguns dos principais deuses, facilmente reconhecidos nos códices e
que quando simbolizavam os números eram geralmente
representados apenas pelas suas cabeças.” (Ibidem)
Assim, a própria matemática e os calendários são vistos como influenciados ou
influenciáveis por entidades específicas, de acordo com o número e os dias em
questão. Cada um dos 20 dígitos têm sua própria face, seu rosto, uma identidade
própria que não deve ser arbitrariamente separada da matemática propriamente dita.
Representações ainda mais raras mostram não apenas as cabeças que são
personificações dos números mas também as próprias entidades em corpo inteiro.
Isto nos aponta para um desafio da “etno”ciência. Não é prudente neste contexto
fazer da matemática maia algo que se possa separar entre “ciência pura” e “cultura
(impura)”. Para uma real compreensão acerca da matemática em outros contextos
culturais, faz-se necessário um esforço muito maior no sentido de compreender as
dimensões linguísticas e simbólicas relacionadas à matemática, bem como situá-la
em seu saber local. Tampouco é possível, então, separar a matemática de seus
usos práticos.
Consequentemente, um estudo sobre matemática maia que desconsidere os seus
usos dificilmente poderá ser considerado um estudo que busca o ponto de vista
nativo. Por fim, não é possível (ou não parece prudente) falar de matemática
ignorando os calendários; e a recíproca é verdadeira.
Segundo John Ellis Montgomery (2003), 47 leituras epigráficas apropriadas para as
“cabeças” ou cefalomorfos que representam os números são as seguintes:
47
A descrição dos 20 dígitos cefalomorfos foi adaptada de uma tradução original oriunda de
CAVALCANTI, 2012.
60
Figura 14: Representações antropomorfas dos 20 dígitos.
Fonte: Elaboração prória (2012) a partir de ilustrações de John Mongomery (© FAMSI).
61
0 – Uma divindade que traz o “olho da morte” frente à sua sobrancelha, com uma
mão humana sobre o maxilar inferior, gesto que representa “morte” ou “expiração”;
possivelmente era associada a sacrifícios rituais em que se arrancava o maxilar
inferior das pessoas.
1 – Representa uma jovem divindade feminina, provavelmente deusa da Lua. Sua
característica principal é a de ter uma única mecha de cabelo que flanqueia sua
face, aparecendo à frente de sua orelha e ondulando na altura de seu queixo.
2 – Cabeça de um homem de idade indefinida que tem uma mão sobre sua cabeça.
3 – Um homem jovem com um ornamento de cabeça específico e que pode trazer
um disco à sua frente. A fita com a qual amarra sua cabeça faz lembrar o glifo para
“telhado de palha”, e o jovem também pode trazer o infixo do sinal “vento” em sua
bochecha ou num ornamento de orelha.
4 – A divindade-Sol, ou Jun Ajaw, é identificada por seu contorno quadrado no olho
e uma pupila quadrada; normalmente traz também o símbolo da “flor” k’in de quatro
pétalas na testa ou na parte de trás da cabeça. A figura pode incluir eventualmente
um dente frontal em formato de “T” invertido, além de uma barbatana na lateral da
boca. Esta barbatana pode referir-se às entidades heroínas gêmeas do Popol Wuj,
Junajpu e Xbalamke, que renasceram como bagres após serem derrotadxs pelxs
deusxs da morte.
5 – Uma divindade masculina e velha que veste o glifo tun, o sinal maia para “ano”,
sobre sua cabeça.
6 – Entidade identificada por um contorno abaixo dos olhos e um machado infixado
no lugar da pupila. Geralmente pode incluir um laço ou cacho na cabeça e também
um dente frontal em formato de “T” invertido.
7 – Uma representação “humanizada” ou antropomórfica da força dx jaguar do
submundo. Tem um contorno sob seu olho que eventualmente se enrola narinas
62
adentro para formar uma “rosca”. Ademais, pode trazer um gancho dentro do olho e
o dente frontal em forma de “T”.
8 – Universalmente reconhecidx como divindade do milho, arquétipo do senhor maia
jovem. O cacho que cai de sua testa representa o broto de milho. A parte de trás de
sua cabeça por vezes se transforma com elementos folhados decorando sua
bochecha.
9 – Representa uma pessoa bastante barbuda, algo incomum entre nativxs
americanxs. Geralmente traz em seu corpo e sua bochecha pintas de jaguar
acompanhadas do símbolo yax, que significa “primeiro”, “azul” ou “azul esverdeado”,
na frente da testa.
10 – A caveira da divindade da morte, identificada por uma proeminente mandíbula
descarnada.
11 – A cabeça da deusa da terra infixada com o sinal kab’an.48
12 – Uma divindade jovem que ostenta o glifo “céu” em sua cabeça e em sua face.
13 a 19 – Todos os números de treze em diante combinam as representações de 3 a
9 com a caveira ou a mandíbula descarnada do deus da morte, do número 10 (3 +
10 = 13; 4 + 10 = 14, e assim por diante). Na verdade, linguisticamente observamos
como a partir do número 11 o nome que se dá pode seguir a mesma lógica: B’uluk
(11) também é chamado Junlajun (Jun, 1 + 10, Lajun), o 12 é Kalajun (Ka, 2 + 10,
Lajun), etc. Portanto, ainda que a base seja vigesimal, existe paralelamente um
pensamento matemático decimal que se materializa pela via linguística, das
tradições matemáticas orais.
Cada uma dessas descrições dos dígitos evoca simbolismos para se pensar
inúmeras relações entre as cosmovisões maias e mesmo mesoamericanas. Isto é
48
Contorno que faz lembrar um sinal de interrogação, similar ao dia do Tzolk’in de mesmo nome;
ambos (o sinal isoladamente, e o dia do calendário) estão intimamente relacionados à terra na
epigrafia maianista.
63
válido tanto no que se refere a estudos comparativos imersos no passado quanto
para as análises referentes à continuidade cultural maia. Por exemplo, o número 9 é
atribuído pelxs mexicas a Quetzalcoatl, a “Serpente-Quetzal”, que também é
geralmente associada a um ser barbado.
“Fica claro que, no contexto maia, é impossível separar a matemática
da religião, uma vez que os números confundem-se com as
divindades e estão de alguma forma relacionados aos seus ritos. É
particularmente interessante notar que é a partir do número 13 que
as representações começam a se repetir (adaptadas, é bem
verdade), tendo em vista que tal número é definitivamente
fundamental no sistema calendárico maia, como observaremos (...)”
(CAVALCANTI, 2012)
A identidade do número 12 (o 13º número, se contarmos a partir do zero) é a de
uma força do “céu”, que aqui pode ser entendido como uma metáfora matemática
para topo ou limite. Daí também advém a confusão acerca do número 13, que em
alguma medida pode ser tão ambíguo quanto o número zero. Teoricamente, é
possível pensar que zero é o “começo” e 13 (além de 12, 19, ou mesmo 20), de
alguma forma, o “fim” ou um “novo começo”. Entretanto, esses números
(particularmente zero, 13 e 20) parecem ser utilizados – e isto deve ocorrer ainda
mais especialmente nos calendários – como sinal de completude e para além dos
binarismo de “começo” e “fim”.
Talvez por isso mesmo sejam números tão importantes para a matemática do
tempo do período maia clássico. Os três números podem representar o “cheio” e o
“vazio”; significar um número de valor real e/ou valor simbólico, quiçá mesmo mais
“performático” em cálculos específicos.
64
3.2
Calendário ritual de 260 dias
Figura 15: Glifos dos 20 dias do Tzolk’in.
Fonte: Elaboração própria (2012) a partir de ilustrações de John Mongomery (© FAMSI).
É importante começar a falar do calendário de 260 dias com a figura 15, uma vez
recorrido o percurso “clássico” de introdução à matemática e sua aplicação
calendárica mais objetiva, a conta longa. A ilustração de que números também são
pessoas (sejam humanas ou não-humanas) para xs maias é fundamental para
65
compreender a própria matemática do tempo maia e mesoamericana, seja – por
exemplo – aquela dxs maias clássicxs, dxs mexicas ou dxs maias de hoje.
O calendário de 260 dias deve ser entendido como oriundo de permutações ou
intersecções entre dois ciclos distintos: precisamente os de 13 e de 20 dias. Há
pouco, viu-se que estes (mais o zero) têm centralidade na cosmovisão maia, e é
exatamente no Tzolk’in que isto se demonstra com maior força.
“Como diz o título de um livro publicado na Guatemala, El Tzolk’in...
Es más que un calendario. Isto não apenas é verdade como também
algo que se torna evidente em qualquer investigação sobre o ciclo de
260 dias, ainda que pouco aprofundada.
Mais do que qualquer outro calendário na Mesoamérica (quiçá no
mundo), o Tzolk’in condensa, em cada um de seus 260 dias,
aspectos cotidianos, religiosos e, principalmente, identitários.”
(Ibidem)
Diga-se que os 20 glifos aqui expostos são também vinte faces, rostos,
identidades dos dias. E que cada um dos 260 dias têm uma identidade específica
que, por sua vez, combina um dos 13 números com um dos 20 glifos. Como 260 é o
mínimo múltiplo comum (doravante MMC) entre os dois ciclos, esta é uma razão
matemática para sua duração.
Sendo assim, cada um dos 260 dias é também um “encontro de alteridades”, isto
é, de duas identidades distintas, a do número e a do glifo. Ou mesmo um encontro
de complementaridades. Se analisarmos cuidadosamente, perceberemos que as
forças que regem um dos 260 dias podem ser as mesmas ou pelo menos bastante
familiares entre si. Por exemplo: epigraficamente, a face do número 11 e do 17º glifo
tem o mesmo elemento central (ver nota 48). Este é apenas um exemplo pontual, e
tratarei também destes “encontros” com mais tempo em algum momento no futuro.
Pois bem, é preciso entender que isto vale virtualmente para qualquer etnia que
tenha utilizado os calendários, e mais ainda o de 260 dias. Afinal, independente de
qualquer coisa, é sempre um encontro entre um ciclo de 13 dias e outro de 20 dias.
E da mesma maneira cada grupo que utiliza o Tzolk’in pode dar um nome específico
para cada número e um nome específico para cada glifo, além das imagens,
representações e histórias orais (etc) envolvidas.
Pronto, assim talvez seja possível começar a vislumbrar a grande diversidade e
riqueza simbólica do complexo calendárico mesoamericano, que abordarei de
66
maneira um pouco mais pragmática no próximo capítulo. O que interessa agora é o
calendário ritual, com seus ciclos de 13 dias e 20 dias.
3.2.1 Ciclo de 20 dias
Os 20 glifos que compõem o calendário ritual de 260 dias estão costumeiramente
em destaque, inclusive hoje na Guatemala. É comum encontrar quem saiba qual é o
seu glifo, mas não lembre do seu número. Acredito que uma maior valoração dos
glifos deva-se também ao fato de que na grande maioria das vezes os números são
representados pelo uso mais corriqueiro dos pontos e barras e falta informação a
seu respeito. Temos muito mais representações dos 20 dias do que dos 13 números
em glifos (no caso dos treze, suas versões cefalomorfas). É certo afirmar que, no
período clássico,
“Os vinte dias (...) têm representações específicas, que geralmente
aparecem dentro de uma espécie de moldura ou suporte com duas
bases volutas. Por conta da duração, este ciclo possui uma relação
fixa com o ciclo k’in que compõe o Choltun, de maneira que
observando o coeficiente do ciclo k’in podemos inferir qual dos vinte
dias do Tzolk’in acompanha aquela data.” (Ibidem)
De acordo com seu coeficiente e tradução/significado básica(o), os 20 glifos são
os seguintes, em língua maia Yukateka (CAVALCANTI, 2012; MONTGOMERY,
2003; STUART, 2011):
0 – Ajaw (Senhor)
1 – Imix (Serpente aquática)
2 – Ik’ (Vento)
3 – Akb’al (Escuridão)
4 – K’an (Grão de milho)
5 – Chikchan (Serpente)
6 – Kimi (Morte)
7 – Manik’ (Veado)
8 – Lamat (Vênus)
9 – Muluk (Jade)
10 – Ok (Cachorro)
67
11 – Chuwen (Macaco)
12 – Eb’ (Caveira)
13 – B’en (Junco)
14 – Ix (Jaguar)
15 – Men (Pássaro)
16 – Kib’ (Ancestrais)
17 – Kab’an (Terra)
18 – Etz’nab’ (Faca de obsidiana)
19 – Kawak (Raio)
Sempre que uma data da conta longa apontar o coeficiente 8 para o ciclo k’in, por
exemplo, este será necessariamente um dia Lamat. Como temos um coeficiente
zero, nada melhor do que comentá-lo. Novamente, é justo afirmar para o contexto da
conta longa e do período clássico que
“O dia Ajaw, por equivaler ao coeficiente zero, é considerado um dia
que marca o início e/ou o fim de todos os ciclos, tendo em vista que
os coeficientes dos ciclos acima do ciclo k’in são modificados apenas
nessa ocasião. Entretanto, no que se refere ao Tzolk’in, Ajaw é
geralmente considerado o vigésimo dos vinte dias, e, como vimos
(...) o número vinte está intimamente relacionado ao zero, por ser o
número que inaugura as ordens de conversão.” (CAVALCANTI,
2012)
Como a citação aponta, Imix é geralmente considerado o primeiro dos vinte glifos.
Mais especificamente, 1 Imix é visto como primeiro dos 260 dias. 49
“Sendo assim, com Imix como o primeiro dia, podemos exemplificar
como se dá a sequência dos dias no Tzolk’in: 1 Imix, 2 Ik’, 3 Akb’al, 4
K’an, 5 Chikchan, 6 Kimi, 7 Manik’, 8 Lamat, 9 Muluk, 10 Ok, 11
Chuwen, 12 Eb’, 13 B’en, 1 Ix, 2 Men, 3 Kib’, 4 Kab’an, 5 Etz’nab’, 6
Kawak, 7 Ajaw, 8 Imix... Quando um dos ciclos (de 13 ou 20 dias)
termina, sua contagem é reiniciada, não importando a posição em
que o outro ciclo se encontra, (…) ambos correm concomitantemente
e combinando-se até o dia 13 Ajaw, o último dos 260 dias e que
precede o retorno a 1 Imix.” (Ibidem)
49
É preciso destacar que não há consenso acerca da existência de um “primeiro dia” universalmente
reconhecido para o Tzolk’in. Ver, por exemplo, TEDLOCK, 1992.
68
A tabela 2 mostra a sequência dos 260 dias do Tzolk’in, quando contada com o
início em 1 Imix. É justo reafirmar que virtualmente todos os 260 dias podem ter sido
eventualmente considerados “primeiro dia” para alguma etnia ao longo da história
mesoamericana.
Tabela 2: Os 260 dias do Tzolk’in.
Dia 1
1 Imix
Dia 2
2 Ik’
Dia 3
3 Akb’al
Dia 4
4 K’an
Dia 5
5 Chikchan
Dia 6
6 Kimi
Dia 7
7 Manik’
Dia 8
8 Lamat
Dia 9
9 Muluk
Dia 10
10 Ok
Dia 11
11 Chuwen
Dia 12
12 Eb’
Dia 13
13 B’en
Dia 14
1 Ix
Dia 15
2 Men
Dia 16
3 Kib’
Dia 17
4 Kab’an
Dia 18
5 Etz’nab’
Dia 19
6 Kawak
Dia 20
7 Ajaw
Dia 21
8 Imix
Dia 22
9 Ik’
Dia 23
10 Akb’al
Dia 24
11 K’an
Dia 25
12 Chikchan
Dia 26
13 Kimi
Dia 27
1 Manik’
Dia 28
2 Lamat
Dia 29
3 Muluk
Dia 30
4 Ok
Dia 31
5 Chuwen
Dia 32
6 Eb’
Dia 33
7 B’en
Dia 34
8 Ix
Dia 35
9 Men
Dia 36
10 Kib’
Dia 37
11 Kab’an
Dia 38
12 Etz’nab’
Dia 39
13 Kawak
Dia 40
1 Ajaw
Dia 41
2 Imix
Dia 42
3 Ik’
Dia 43
4 Akb’al
Dia 44
5 K’an
Dia 45
6 Chikchan
Dia 46
7 Kimi
Dia 47
8 Manik’
Dia 48
9 Lamat
Dia 49
10 Muluk
Dia 50
11 Ok
Dia 51
12 Chuwen
Dia 52
13 Eb’
Dia 53
1 B’en
Dia 54
2 Ix
Dia 55
3 Men
Dia 56
4 Kib’
Dia 57
5 Kab’an
Dia 58
6 Etz’nab’
Dia 59
7 Kawak
Dia 60
8 Ajaw
Dia 61
9 Imix
Dia 62
10 Ik’
Dia 63
11 Akb’al
Dia 64
12 K’an
Dia 65
13 Chikchan
Dia 66
1 Kimi
Dia 67
2 Manik’
Dia 68
3 Lamat
Dia 69
4 Muluk
Dia 70
5 Ok
Dia 71
6 Chuwen
Dia 72
7 Eb’
Dia 73
8 B’en
Dia 74
9 Ix
Dia 75
10 Men
Dia 76
11 Kib’
Dia 77
12 Kab’an
Dia 78
13 Etz’nab’
Dia 79
1 Kawak
Dia 80
2 Ajaw
Dia 81
3 Imix
Dia 82
4 Ik’
Dia 83
5 Akb’al
Dia 84
6 K’an
Dia 85
7 Chikchan
Dia 86
8 Kimi
Dia 87
9 Manik’
Dia 88
10 Lamat
Dia 89
11 Muluk
Dia 90
12 Ok
Dia 91
13 Chuwen
Dia 92
1 Eb’
Dia 93
2 B’en
Dia 94
3 Ix
Dia 95
4 Men
Dia 96
5 Kib’
Dia 97
6 Kab’an
Dia 98
7 Etz’nab’
Dia 99
8 Kawak
Dia 100
9 Ajaw
Dia 101
10 Imix
Dia 102
11 Ik’
Dia 103
12 Akb’al
Dia 104
13 K’an
Dia 105
1 Chikchan
Dia 106
2 Kimi
Dia 107
3 Manik’
Dia 108
4 Lamat
Dia 109
5 Muluk
Dia 110
6 Ok
Dia 111
7 Chuwen
Dia 112
8 Eb’
Dia 113
9 B’en
Dia 114
10 Ix
Dia 115
11 Men
Dia 116
12 Kib’
Dia 117
13 Kab’an
Dia 118
1 Etz’nab’
Dia 119
2 Kawak
Dia 120
3 Ajaw
Dia 121
4 Imix
Dia 122
5 Ik’
Dia 123
6 Akb’al
Dia 124
7 K’an
Dia 125
8 Chikchan
Dia 126
9 Kimi
Dia 127
10 Manik’
Dia 128
11 Lamat
Dia 129
12 Muluk
Dia 130
13 Ok
Dia 131
1 Chuwen
Dia 132
2 Eb’
Dia 133
3 B’en
Dia 134
4 Ix
Dia 135
5 Men
Dia 136
6 Kib’
Dia 137
7 Kab’an
Dia 138
8 Etz’nab’
Dia 139
9 Kawak
Dia 140
10 Ajaw
Dia 141
11 Imix
Dia 142
12 Ik’
Dia 143
13 Akb’al
Dia 144
1 K’an
Dia 145
2 Chikchan
Dia 146
3 Kimi
Dia 147
4 Manik’
Dia 148
5 Lamat
Dia 149
6 Muluk
Dia 150
7 Ok
Dia 151
8 Chuwen
Dia 152
9 Eb’
Dia 153
10 B’en
Dia 154
11 Ix
Dia 155
12 Men
Dia 156
13 Kib’
Dia 157
1 Kab’an
Dia 158
2 Etz’nab’
Dia 159
3 Kawak
Dia 160
4 Ajaw
Dia 161
5 Imix
Dia 162
6 Ik’
Dia 163
7 Akb’al
Dia 164
8 K’an
Dia 165
9 Chikchan
Dia 166
10 Kimi
Dia 167
11 Manik’
Dia 168
12 Lamat
Dia 169
13 Muluk
Dia 170
1 Ok
Dia 171
2 Chuwen
Dia 172
3 Eb’
Dia 173
4 B’en
Dia 174
5 Ix
Dia 175
6 Men
Dia 176
7 Kib’
Dia 177
8 Kab’an
Dia 178
9 Etz’nab’
Dia 179
10 Kawak
Dia 180
11 Ajaw
Dia 181
12 Imix
Dia 182
13 Ik’
Fonte: Elaboração própria (2012).
Dia 183
1 Akb’al
Dia 184
2 K’an
Dia 185
3 Chikchan
Dia 186
4 Kimi
Dia 187
5 Manik’
Dia 188
6 Lamat
Dia 189
7 Muluk
Dia 190
8 Ok
Dia 191
9 Chuwen
Dia 192
10 Eb’
Dia 193
11 B’en
Dia 194
12 Ix
Dia 195
13 Men
Dia 196
1 Kib’
Dia 197
2 Kab’an
Dia 198
3 Etz’nab’
Dia 199
4 Kawak
Dia 200
5 Ajaw
Dia 201
6 Imix
Dia 202
7 Ik’
Dia 203
8 Akb’al
Dia 204
9 K’an
Dia 205
10 Chikchan
Dia 206
11 Kimi
Dia 207
12 Manik’
Dia 208
13 Lamat
Dia 209
1 Muluk
Dia 210
2 Ok
Dia 211
3 Chuwen
Dia 212
4 Eb’
Dia 213
5 B’en
Dia 214
6 Ix
Dia 215
7 Men
Dia 216
8 Kib’
Dia 217
9 Kab’an
Dia 218
10 Etz’nab’
Dia 219
11 Kawak
Dia 220
12 Ajaw
Dia 221
13 Imix
Dia 222
1 Ik’
Dia 223
2 Akb’al
Dia 224
3 K’an
Dia 225
4 Chikchan
Dia 226
5 Kimi
Dia 227
6 Manik’
Dia 228
7 Lamat
Dia 229
8 Muluk
Dia 230
9 Ok
Dia 231
10 Chuwen
Dia 232
11 Eb’
Dia 233
12 B’en
Dia 234
13 Ix
Dia 235
1 Men
Dia 236
2 Kib’
Dia 237
3 Kab’an
Dia 238
4 Etz’nab’
Dia 239
5 Kawak
Dia 240
6 Ajaw
Dia 241
7 Imix
Dia 242
8 Ik’
Dia 243
9 Akb’al
Dia 244
10 K’an
Dia 245
11 Chikchan
Dia 246
12 Kimi
Dia 247
13 Manik’
Dia 248
1 Lamat
Dia 249
2 Muluk
Dia 250
3 Ok
Dia 251
4 Chuwen
Dia 252
5 Eb’
Dia 253
6 B’en
Dia 254
7 Ix
Dia 255
8 Men
Dia 256
9 Kib’
Dia 257
10 Kab’an
Dia 258
11 Etz’nab’
Dia 259
12 Kawak
Dia 260
13 Ajaw
69
Independente do debate acerca do início do ciclo de 260 dias, a sequência será
sempre essa – ou seja, para todos os efeitos 13 Ajaw precede 1 Imix, e após 1 Ok
vem 2 Chuwen, por exemplo.
3.2.2 Oxlajun ti k’u
Gostaria de trazer agora algumas reflexões básicas acerca dos 13 números. É
bem verdade que esta seção pode beneficiar-se de antemão do que já foi dito
acerca das identidades e personificações dos números, bastante marcantes para o
pensamento matemático maia do período clássico. Porém, vale a pena destacar
algumas questões que ainda não foram abordadas, bem como apresentar agora
informações etnográficas.
É senso comum entre xs maianistas e mesoamericanistas a ideia de que há uma
cosmovisão mais geral em que o número 13 refere-se também aos treze “céus” ou
moradas acima da terra (THOMPSON, 1950; SCHELE & FREIDEL, 1990;
MONTGOMERY, 2003). Assim, os treze números do Tzolk’in podem representar
estes 13 “níveis” diferenciados; é possível, a partir daí, especular que os treze
números trazem influências mais “cósmicas”, menos palpáveis que aquelas dos
vinte glifos, que representam forças que se apresentam na natureza imediata,
materialmente acessível. O encontro entre “o 13 e o 20” no calendário de 260 dias,
então, pode ter essa implicação de um encontro entre o imaterial e o material.
Muito menos se sabe sobre os simbolismos potencialmente relacionados a cada
um dos 13 números, em comparação ao que se sabe acerca dos 20 glifos. Por isso,
faz-se necessário divulgar os dados etnográficos dos quais partilho graças aos
amigos Iván Canek Estrada Peña e Fabían Frías Santillán (Ajq’ij Apab’yan Tew),
publicados como apêndice do meu livro (CAVALCANTI, 2012) mas apenas agora
traduzidas ao português. Peña, premiado na Mesa de Palenque de 2011, publicou
pela a impressão de interlocutorxs maias K’iche’ acerca dos 13 números no contexto
do Cholq’ij (ESTRADA PEÑA, 2011). A nomenclatura dos numerais na referida
língua, junto com a interpretação delxs é a seguinte:
70
Jun (1): O significado deste número no contexto calendárico está englobado no
conceito de majb’al re, ou seja, o início ou começo, o primeiro passo, algo que brota.
Keb’ (2): Os conceitos que englobam este numeral são os de yanalik, tanalik: o que
vai em retrocesso, o que está temporariamente em suspenso.
Oxib’ (3): Kak’iyarik uwach; o que se multiplica, o que se ramifica, a divergência.
Kajib’ (4): Chakalik; algo que está parado sob quatro pilares, o que está firme, fixo,
estável, ou que também pode representar falta de dinâmica.
Job’ (5): Ya Xnimarik; o que se faz grande ao ponto de transbordar; também remete
à ideia de rudeza.
Waqib’ (6): Pajab’al, algo que se coloca em uma balança; le nima’, le chuti’; o
grande, o pequeno; u k’ux: coração de algo; wa’lij saxij, levantar, erigir.
Wuqub’ (7): ya xmiq’ik; algo que se esquentou ao ponto de ferver. Efervescência. O
latente de “algo”.
Wajxaqib’ (8): ya xpe’ chik; o que retorna, algo que chega de volta por conta própria.
B’elejeb’ (9): ya Xtewarik, ri tewal, tyojlab’em; algo que se esfria, ou que perde seu
ânimo momentâneamente… Ou ainda que se silencia ao gestar.
Lajuj (10): K’ulik, K’ulb’al; juntar, encontrar-se, unir-se, o ponto em que as coisas
convergem.
Julajuj (11): Jarem, joronem: disolver-se, diluir-se, dispersão.
Kab’lajuj (12): sipanik: presente, dádiva, adição, equilíbrio oculto das coisas.
Oxlajuj (13): le nima’q taq: o maior, o mais acumulado.
71
De acordo com o ajq’ij Apab’yan Tew (comunicação pessoal), a linhagem de
Nawalja’ (Guatemala) também pensa os números como sequências de interação de
forças, com o número sete como diferença. Ou seja, o número um interage com o
número oito, o dois interage com o nove, e assim por diante, com o número sete
sendo o único “sem par”. Estas interações, tal qual caminho de serpente, se dão da
seguinte maneira:
1 – Jun: início, manancial, reinício
8 – Wajxaqib’: reinício, retorno
2 – Keb’: retração, cálculo
9 – B’elejeb’: esfriamento, gestação
3 – Oxib’: divergência, abrir caminho
10 – Lajuj: convergência, enfoque
4 – Kajib’: estável, firme
11 – Julajuj: dispersão, propagação
5 – Job’: transbordamento, rudeza
12 – Kab’lajuj: dádiva, equilíbrio oculto
6 – Waqib’: coração, balança
13 – Oxlajuj: grande ou acumulado,
como os anos da experiência.
7 – Wuqub’: efervescente, que ferveu, latente, manifesto…
O pouco que se sabe dá conta de que há muito por saber acerca dos 13 números
no contexto calendárico ritual mesoamericano. Entre as culturas de língua Náhuatl,
por exemplo, temos documentos nativos com listas mais precisas de divindades
regentes associadas aos 13 números do Tonalpohualli (o mesmo ciclo de 260 dias),
que incluem voláteis, aves companheiras e mensageiras dos números. 50
50
Ver (por exemplo) SANTOS, 2011.
72
O calendário ritual mesoamericano cada vez mais vai se revelando como um meio
de reflexão e vivência socioambiental, em que diversas alteridades estão envolvidas,
humanas e não-humanas, animadas a inanimadas. E se existem alteridades
envolvidas,
existem
fronteiras,
existem
identidades
diferentes
e
caminhos
diferentes.51
Essas treze divindades no contexto maia não são conhecidas, mas elas têm um
nome coletivo conhecido: Oxlajun ti k’u ou “treze divindades” (GONZALEZ TORRES,
1991). Outos ciclos que são atrelados a coletivos de divindades que se alternam
diariamente são os de 7 dias, referente a Wuk ti k’u, “sete divindades”, e B’olon ti k’u
(“nove divindades”). Este último, aqui negligenciado, é importante para se pensar
uma oposição simbólica entre o ciclo de 9 noites (período de escuridão) e o ciclo de
13 dias como um ciclo principalmente relacionado ao períodos diurnos do k’in, sob a
luz do Sol.
Finalmente, se não há tanta informação sobre os números em contexto
calendárico (mais ainda no âmbito do Cholq’ij), posso ao menos pontuar uma
interpretação difundida aparentemente com grande alcance na Guatemala
contemporânea. Diversos grupos maias dizem que o número 8 é “o mais alto
masculino”, enquanto que o 9 é “o mais alto número feminino”.
Assim, é comum encontrar hoje cerimônias maias realizadas “para homens” e
“para
mulheres”
em
dias
do
calendário
ritual
marcados
pelos
números
correspondentes; a grosso modo, de 1 a 9 os números ímpares são “femininos” e os
pares, “masculinos”, e temos a possibilidade de pensar o ciclo de 13 dias como um
caminho da serpente, que alterna a cada dia entre um “lado” ímpar/feminino e outro
“lado” par/masculino. Certamente essa espécie de “binarismo” e ao mesmo tempo
alternância ritual de gênero tem outras aplicações interessantíssimas, que espero
abordar com mais atenção em algum momento futuro.
Matthew Looper (2001) atenta especialmente para um “terceiro gênero” acionado
pela via ritual por governantes maias (tanto mulheres quanto homens); de alguma
maneira, é desejável que a governante mulher personifique ritualmente um homem e
51
No que se refere aos caminhos, para além das magníficas reflexões a que podemos chegar a
partir de uma análise detida do 12º dos 20 glifo, é interessante mencionar que há, no candomblé,
uma intersecção entre orixás que resulta nos 256 odus, número suficientemente próximo de 260.
Cada um dos 260 dias, para mim, pode ser pensado também nos termos de um caminho
específico, ou mesmo uma encruzilhada; sempre uma intersecção. Acredito que audaciosos
estudos comparativos poderiam apontar caminhos interessantes para se pensar os estudos
possibilidades de interseccionalidade ritual e oracular entre os odus e os 260 nawales.
73
vice-versa. Esta performance é também de complementaridade entre os gêneros, o
que dá ares de plenitude, de um ser integral ou mesmo superior, que supera as
fronteiras imposta a humanxs comuns.
Princípio similar de autoridade se mostra presente entre maias até os dias de
hoje, como por exemplo no título K’iche’ de chuchqajaw, “mãe-pai” ou “avó-avô”,
concedido às autoridades reconhecidas como grandes anciãs nas comunidades
maias contemporâneas. É curioso notar que, do ponto de vista ocidental, pode ser
tentador pensar o binarismo ímpar/par como análogo a feminino/masculino, mas o
que se nota é antes o sentido de complementaridade e alternância ritual, como na
linhagem de Nawalja’, em que o “par” do ímpar é número par e vice-versa. De
acordo com o local, essas atribuições variam, e o que pra outrxs maias é “par” vira
“ímpar”, “feminino” vira “masculino”, etc. Mas o zero, o treze e o vinte continuam lá.
3.3
Ja’ab’
O último dos três principais ciclos aqui apresentados é o calendário solar, civil ou
agrário, conhecido como Ja’ab’, cujo significado é “ano” (MONTGOMERY, 2003). É
um ciclo com duração de 365 dias, divididos em 18 meses de 20 dias. Isto resulta
em 360 dias, respeitando a base matemática vigesimal; os 5 dias restantes servem
como um último “mês” de transição entre os anos, chamado Wayeb’.
Entre todas comunidades maias, os vinte dias de cada mês foram contados de 0
a 19 (ou de 0 a 4, no caso do período final), sendo o primeiro dia de cada mês
acompanhado pelo número zero. O primeiro dia do ano no calendário mais utilizado
no período clássico é hoje conhecido como “0 Pop”. Na conta dos 365 dias, procedese então assim: 0 Pop, 1 Pop, 2 Pop, 3 Pop, 4 Pop... 19 Pop, 0 Wo, 1 Wo (…) 19
Wo, (…) 19 Kumk’u, 0 Wayeb’, 1 Wayeb’, 2 Wayeb’, 3 Wayeb’, 4 Wayeb’ (365º e
último do ano), retornando no dia seguinte ao primeiro dia (e a mais um ano) em 0
Pop.
Montgomery (2003) deu suas interpretações sobre cada um dos hieróglifos dos
meses, já traduzidas para o português (CAVALCANTI, 2012) e aqui mais livremente
atualizadas, sugerindo leituras para os hieróglifos do período clássico, ao lado dos
nomes mais utilizados nos estudos maianistas, oriundos da língua maia Yukateka.
Os glifos dos 19 “meses” do Ja’ab’ podem ser observados na figura 16.
74
Figura 16: Glifos dos meses do Ja’ab’.
Fonte: Elaboração própria (2012) a partir de ilustrações de John Mongomery (© FAMSI).
Pop (K’ANJALAB’) – seu signo principal tem dois segmentos entrelaçados que
representam uma esteira (pop) feita de folhas de palmeira trançadas, sobreposta por
uma cruz k’an que simboliza o amarelo.
Wo (EK’ K’AT) – Wo e Sip têm signos principais idênticos, com duas faixas em forma
de cruz que podem ter o valor K’AT, que corresponde a parte do nome desse mês
na língua maia Ch’ol. Os elementos que distinguem Wo e Sip são os glifos das
cores. A cor de Wo é preta ou EK, e como a palavra para o mês Wo em Ch’ol é Ik’
75
K’at ou “cruz preta”, parece provável que Wo tivesse esta leitura durante o período
clássico: Ek’ K’at.
Sip (CHAK K’AT) – Tem o mesmo sinal de faixas cruzadas de Wo, mas é associada
a uma cor diferente, CHAK (vermelha). Possivelmente lê-se Chak K’at ou “cruz
vermelha”. Também como Wo, o hieróglifo algumas vezes inclui o sufixo –ta,
possivelmente dando o som final de “t” à palavra.
Sotz’ (SOTZ’) – A cabeça de um morcego com folha nasal.
Sek (KATSEW) – A leitura fonética do hieróglifo é ka-se-wa, mas o significado do
termo permanece desconhecido.
Xul (TZ’IK’IN) – Representa um cachorro. O complemento fonético da base, similar a
uma cauda e decifrado como –ni, propicia o som final de “n” ao nome Ch’ol, Tz’ik’in.
Yaxk’in (YAX K’IN) – Linguisticamente emparelhado com o signo do mês K’ank’in,
tem como seu glifo principal a flor solar k’in, símbolo da divindade solar, e o prefixo
decifrado como YAX, que significa “primeiro”, “azul” ou “azul esverdeado”.
Consequentemente, Yaxk’in possivelmente significa “primeiro Sol”. O elemento que
se lê –ni, funciona como o complemento fonético que propicia a consonante final “n”
em k’in.
Mol (MOL) – Círculos concêntricos com o glifo Muluk sobreposto em posição
vertical. Inclui o que é possivelmente o símbolo abstrato para jade.
Ch’en (EK JA’AB’) – Primeiro da série de quatro meses que têm Kawak como seu
glifo principal (o “cacho de uvas”, que possivelmente representa um céu chuvoso e o
dia Kawak) e são associados a cores. No caso de Ch’en, a cor é Ek’, preta. Como o
hieróglifo traz o prefixo com o valor ji-, e por faltar o sinal fonético –ni, o símbolo
Kawak se lê ja’ab’, “ano”, e Ek’ Ja’ab’ é lido como “ano preto”. Uma versão
personificada desse glifo, oriunda de Tikal, tem o tracejado que representa “preto”
sobreposto sobre a metade da frente de uma face.
76
Yax (YAX JA’AB’) – O segundo mês “Kawak” traz o prefixo Yax, que significa
“primeiro”, “azul” ou “azul esverdeado”. Portanto, Yax Ja’ab’ – o nome hieroglífico do
mês – significa “primeiro ano”, “ano azul” ou “ano azul esverdeado”.
Sak (SAK JA’AB’) – O terceiro mês “Kawak” relaciona-se a Sak, “branco”. O bloco de
glifos é possivelmente lido como “ano branco”.
Kej (CHAK JA’AB’) – O quarto mês “Kawak” é associado a Chak, vermelho, e
portanto significaria “ano vermelho”.
Mak (MAK) – O signo principal de Mak pode ser uma variante de Imix com uma
variação de Ajaw inserida, que se lê foneticamente como ma-. Na maioria das vezes
se lê Mak, como em ma-ja-ka e ma-ka-[ka]. Numa versão alternativa, o glifo principal
é substituído por um casco de tartaruga, que tem o valor fonético AK, lendo-se maAK.
K’ank’in (UNEW) – A forma simbólica representa o que parece uma árvore ladeada
por uma área tracejada, onde o complemento fonético –wa é referente à versão
Ch’ol do nome: unew. Variantes personificadas representam um animal similar a um
canino, que ainda não foi propriamente identificado.
Muwan (MUWAN) – Assim como em outros exemplos que terminam com “n”, o
hieróglifo Muwan recebe o complemento fonético –ni. Conhecido apenas em sua
forma encefálica, a criatura retratada neste glifo representa o pássaro mitológico
Muwan, uma coruja combinada com alguma outra forma aviária.
Pax (PAX) – Incorpora o glifo tun com um elemento bifurcado que brota de seu topo.
Na forma personificada, o mesmo elemento brota da cabeça de uma criatura
zoomorfa sáuria, com dentes chanfrados, talvez um sapo ou iguana combinadx com
atributos de jaguar.
77
K’ayab’ (K’ANASI) – A cabeça de um papagaio ou arara com a cruz K’an inserida em
seu olho, posicionada sobre a sequência fonética si-ya. Esse arranjo resulta em
K’AN-aj-si-ya ou k’anasi, grafando de maneira clara a versão Ch’ol do nome.
Kumk’u (KUMK’U) – Combina o glifo do dia K’an com um glifo de significado
desconhecido. Parece resultar em algo diferente de Kumk’u, o nome pós-clássico
associado ao mês pelo sacerdote espanhol Diego de Landa. A versão de Landa
fornece os prefixos ku- and k’u como complementos fonéticos, uma indicação de que
a versão clássica usada nas inscrições tinha um significado diferente da sua forma
Yukateka.
Wayeb’ (WAYEB’) – O período final de 5 dias ou “mês curto”. É composto pelo glifo
tun que está sobreposto pelo glifo cuja tradução é “buraco” – que se pensa significar
o “buraco negro” no centro do céu escuro do entardecer da criação. O termo way
tem as conotações de “visão”, “espírito” e “sonho”, associadas ao verbo “dormir”. O
Wayeb’ pode ser entendido como um “período adormecido” do ano, antes de o ciclo
recomeçar.
Os meses também são importantes pois mantêm uma contagem paralela de
ciclos de 20 dias dentro do calendário mais próximo ao ano solar. A interação entre
esses ciclos de 20 dias, as datas locais e regionais de ano novo e os 260 dias do
Tzolk’in constituem-se provavelmente no principal marcador histórico da diferença
amparado nos usos dos sistemas calendáricos mesoamericanos.
No que se refere aos questionamentos acerca da existência de “correções
bissextas”, normalmente feitos por pessoas acostumadas com o calendário
gregoriano, responde-se que
“Não há nenhum indício no sentido de que os maias do período
clássico tenham elaborarado algum tipo de correção similar ao ano
bissexto para manter o Ja’ab’ sincronizado ao ano solar real ou ano
tropical, cuja duração aproximada é de 365,2422 dias. Por outro lado,
há indícios, a partir de registros calendáricos de Palenque, de um
ciclo de 1.508 Ja’ab’, bastante popular entre os acadêmicos e que
equivale a 29 ciclos do Junab’ (que veremos a seguir) ou 1.507 anos
tropicais.
78
Trata-se de uma questão muito interessante, pois aponta uma outra
possibilidade para os maias do período clássico, a de uma
“sincronização natural”, por assim dizer, uma “correção” feita pelo
próprio tempo, que, sem a adição de dias, é muito mais precisa a
longo prazo do que o sistema empregado pelo calendário gregoriano,
utilizado no mundo globalizado.
1.508 × 365 = 550.420 dias
550.420 ÷ 1.507 = 365,242203 dias por ano tropical
Como observou Luís “Alektryon” Gonçalves, colaborador do Projeto
CMAIA, o resultado de 365,242203 dias por ano tropical
representaria um erro anual de apenas 37 centésimos de segundo
em relação à duração do ano tropical, enquanto o calendário
gregoriano apresenta um erro anual de aproximadamente 26
segundos e, portanto, este sistema maia, que na verdade não é um
sistema de correção, mas sim de observação, seria 70 vezes mais
preciso que o sistema de correção instituído pelo calendário
gregoriano, que por sua vez é uma versão aprimorada do sistema
empregado anteriormente pelo calendário juliano, do qual é
herdeiro.” (CAVALCANTI, 2012)
É preciso lembrar que este tipo de conta, se esteve efetivamente em pauta
nesses termos (de um ciclo de “equiparação” quase perfeita ao ano solar real)
durante o período clássico, parece ter sido algo realmente muito localizado. O saber
elitizado das contas calendáricas pode ter realizado essas e outras proezas, mas
não devemos reproduzir acriticamente o discurso esotérico que generaliza e exalta o
“calendário maia” como “a nona maravilha do mundo”.
Xs maias de ontem e de hoje não parecem tão incomodadxs para fazer do seu
calendário de 365 dias uma eterna “perseguição” ao “ano solar real”. A prática da
conta de anos bissextos não é necessariamente “mais correta” ou “mais científica”,
mas antes uma arbitrariedade própria ao Vaticano e às bases da cultura ocidental.
3.4
Junab’
Como viu-se, a chamada Série Inicial é composta por três calendários. O Choltun
é usado – a grosso modo – para registro ao mesmo tempo do transcorrer cíclico e
linear dos dias. O Tzolk’in é o ciclo ritual por excelência, apesar de todos os
calendários terem implicações rituais; e o Ja’ab’ é um calendário que parece mais
relacionado à organização social, quiçá fundamental para a própria divisão do
trabalho, principalmente na observação das tarefas referentes à agricultura.
79
“Uma outra ocasião ritual fundamental no contexto maia e também
mesoamericano está relacionada a um ciclo em que a combinação
(…) [de dois] calendários que compõem a série inicial se torna
fundamental: o Junab’, mais conhecido como a roda calendárica de
52 anos. Ela consiste em 18.980 dias e sua origem se dá através da
combinação entre Tzolk’in e Ja’ab’, de maneira similar ao que
observamos entre os ciclos de 13 e 20 dias na composição do
calendário de 260 dias.” (Ibidem)
É preciso observar, aqui, uma dinâmica da matemática mesoamericana do tempo:
todos os ciclos sempre estão correndo paralelamente. Dito de outra forma, o dia de
hoje não é apenas um dia no Tzolk’in, mas também um dia no Ja’ab’, na conta longa
e em todas as outras contas calendáricas. Por conseguinte, também todos os ciclos
“encontram-se” em alguma altura, o que é constatado mais sistematicamente a partir
da marcação de pontos de partida específicos (e aqui se dá uma forma de marcação
da diferença a partir do calendário).
No caso do Junab’, isto significa dizer que sua duração, 18.980 dias, é na verdade
o MMC entre 260 e 365. Constatei, anteriormente, que a própria razão matemática
para o Tzolk’in ter 260 dias está no fato de que ele é efetivamente o MMC entre 13 e
20. Assim, posso concluir que a observação do MMC entre dois ciclos é uma prática
antiga que remonta aos tempos de oralidade primária e que contribuiu para a
posterior construção do registro infinito – e escrito – do tempo. Cada novo ciclo
engendrado a partir da combinação de ciclos menores gera um ciclo maior, e este
ciclo maior por sua vez é sempre passível de ser combinado com outros ciclos
(sejam previamente oriundos ou não do MMC entre dois ou mais ciclos), tornando
impossível definir o “maior ciclo mesoamericano”.
O ciclo de 52 anos faz coincidir os calendários de 260 e 365 dias a partir da
marcação de uma data específica, composta pelo encontro entre um determinado
dia entre os 260 e outro dia oriundo dos 365. Entretanto, é preciso compreender de
que maneira isto ocorre e qual é o significado do Junab’. Por isso, vou adentrar
aspectos da relação entre os dois calendários. Para efeito de ilustração, a interação
entre o Tzolk’in e o Ja’ab’ é mostrada a partir de rodas dentadas na figura 17.
Assim, entende-se ainda melhor que o primeiro dia de cada ano no Ja’ab’ sempre
equivalerá a um dos 260 dias do Tzolk’in, uma vez que os ciclos correm
paralelamente. No contexto das sociedades mesoamericanas que combinaram o
80
uso dos calendários de 260 e 365 dias, o dia da conta ritual torna-se algo além de
um dia que apenas acompanha e compõe a data, tornando-se um dia que
simbolicamente pode influenciar todo o ano de 365 dias em questão, ou parte dele.
Figura 17: Roda calendárica mostrando a interação entre o Tzolk’in (com as duas rodas
menores, uma dos 20 glifos e a interna de 13 números) e o Ja’ab’. O dia aqui ilustrado é 1 K’an
2 Pop, terceiro dia de um ano 12 Ik’.
Fonte: Elaboração própria (original), adaptado de sítio da internet. 52
É o dia do Tzolk’in correspondente ao dia 0 Pop no Ja’ab’ que literalmente rege o
ano, lhe dando nome e fornecendo suas características, tendências e prognósticos.
Os dias que marcam o início do Ja’ab’ são conhecidos como marcadores ou
portadores dos anos53. Na Guatemala contemporânea, são também conhecidos
entre xs maias – no caso de Tedlock (1992), K’iche’ –, como Mam, termo que tanto
na escrita hieroglífica quanto nas línguas atuais significa “ancestral” ou “avô”
(MONTGOMERY, 2002; SITLER, 2010), o que ilustra a importância dos dias que
servem como marcadores de ano.
“Porém, não são todos os dias do Tzolk’in que coincidem com 0 Pop.
Isto se explica graças à diferença entre 260 e 365, de 105 dias, que
no sistema matemático maia equivale a cinco ciclos de 20 dias com
52
53
Ver http://www2.palomar.edu/users/ddozier/course_notes/concepts/time/calendars_of_mexico.htm.
A imagem original traz a ordem dos dias e a direção de giro equivocadas nas rodas.
Year bearers em inglês e cargadores del año em espanhol.
81
mais 5 dias. São exatamente esses 5 dias restantes que fazem com
que o grupo de marcadores de ano seja restrito a quatro dos vinte
glifos do Tzolk’in, tendo em vista que 5 é a quarta parte de 20.”
(CAVALCANTI, 2012)
Entre xs maias do período clássico, o grupo de marcadores de ano era composto
pelos glifos Ik’, Manik’, Eb’ e Kab’an (TEDLOCK, 1992; MONTGOMERY, 2003). Há
uma distância de cinco dias entre cada glifo, retornando a um ano Ik’ após um ano
Kab’an. A diferença de 105 dias entre Tzolk’in e Ja’ab’ faz com que o número que
acompanha o glifo do Tzolk’in avance de um em um, enquanto o glifo avança de
cinco em cinco, contando uma mesma data do Ja’ab’ um ano depois.
Assim, considerando um ano 2 Manik’, os anos subsequentes a ele serão serão 3
Eb’, 4 Kab’an, 5 Ik’, 6 Manik’, 7 Eb’, 8 Kab’an, 9 Ik’, 10 Manik’, 11 Eb’, 12 Kab’an, 13
Ik’, 1 Manik’, etc. Após 52 anos desde o ponto de partida, o ano volta a ser marcado
por 2 Manik’. Conclui-se, então, que o grupo de marcadores é formado por 4 glifos
que se sucedem em combinação com um dos 13 números que compõem o Tzolk’in.
Isto resulta na conta 4×13 = 52, o que significa que 52 dos 260 dias são marcadores
de ano. Este é um sentido matemático para a roda calendárica de 52 anos.
Relembrando, para que o ciclo se complete, “passam-se 52 ciclos do Ja’ab’ ou 73
ciclos do Tzolk’in, totalizando 18.980 dias, o mínimo múltiplo comum aos ciclos de
365 e 260 dias, ou seja, existem 18.980 combinações únicas entre os dois ciclos”
(CAVALCANTI, 2012). O marco inicial da roda calendárica entre xs maias clássicxs
parece ter sido 1 Kab’an 0 Pop (EDMONSON, 1988),54 isto é, o principal marcador
de ano, que indicava o início de um novo ciclo de 52 anos, era 1 Kab’an.
“A relação do Choltun com a roda calendárica, para além da já
comentada função do coeficiente zero do ciclo k’in associado ao glifo
Ajaw do Tzolk’in, é importante no sentido de especificar a roda
calendárica, posicionando-a em um tempo único. Uma data como 1
Kab’an 0 Pop, por exemplo, é demasiado vaga, pois tal data se
repete a cada 52 anos, entretanto uma data como 9.16.13.16.17 1
Kab’an 0 Pop55 é uma data única, pois posiciona uma roda
calendárica dentro de uma cronologia histórica, uma conta linear,
sem margem para dúvidas acerca do marco temporal do qual se fala.
54
55
Na leitura de uma data calendárica, especialmente quando a situamos no Junab’, a lemos tal qual
aparece aqui, em 1 Kab’an 0 Pop, com as datas no Tzolk’in e no Ja’ab’ sequenciadas, formando
um registro composto. Essa é uma das 18.980 combinações possíveis para xs maias clássicxs.
Esta é uma forma corriqueira de escrever uma data composta por todos os calendários da Série
Inicial, em que a data na conta longa precede aquelas oriundas do Tzolk’in e do Ja’ab’,
respectivamente.
82
Não sabemos tanto quanto gostaríamos a respeito de como os maias
celebravam esse ciclo mas, por tratar-se de um ciclo grande o
suficiente para ocorrer apenas uma vez na vida da maioria absoluta
das pessoas, era visto como um evento de renovação, muito
celebrado, e as celebrações incluíam a consagração de templos
novos ou reformados e o acendimento de novo fogo, algo que
possivelmente compartilha aspectos com a mais documentada
cerimônia Xiuhmolpilli, também conhecida como 'cerimônia do Fogo
Novo', que era a celebração mexica do ciclo de 52 anos.”
(CAVALCANTI, 2012)
Sabe-se que o uso dos ciclos de 260 e 365 dias foi mantido entre xs maias
contemporânexs, o que também é verdade em alguns casos para a roda calendárica
de 52 anos:
“Na Guatemala contemporânea, completar 52 anos de vida significa,
para o cidadão maia, estar credenciado a fazer parte do conselho de
anciãos. Justamente pelo significado do ciclo, acredito tratar-se do
rito de passagem mais importante em vida, no qual o ser vivente se
aproxima ainda mais de seus ancestrais ou seus avós, como diriam
os maias; se torna um ancestral.” (Ibidem)
No próximo capítulo, mostrarei de que maneira esse ciclo também pode ser usado
para marcar a diferença entre grupos distintos que usam as mesmas estruturas de
contagem de tempo.
83
4
UWACH Q’IJ – MARCANDO A DIFERENÇA NAS FACES DOS DIAS
Barbara Tedlock (1992), em sua célebre etnografia, atenta logo de início para a
categoria uwach q’ij (uwäch uk’ij) na língua, no pensamento e na cosmovisão maia
K’iche’. A noção daí advinda, a meu ver, é fundamental para que se possa pensar xs
maias e sua relação com os calendários e com o tempo.
“A palavra para 'dia' é a mais próxima que as línguas maias têm de
um termo para o 'tempo' propriamente dito, mas é mais do que isso.
Um dia, cada dia, tem sua 'própria face', sua identidade, seu caráter,
que influenciam seus eventos (…); a sorte de uma pessoa no
momento, ou mesmo seu destino em geral, chama-se 'a face do seu
dia' (uwäch uk’ij em K’iche’)” (TEDLOCK, 1992)
A partir desta breve observação da etnógrafa, que refere-se mais aos dias do
Cholq’ij, é possível entender que cada dia tem sua própria identidade, e que uwach
q’ij significa “o rosto [ou a face] do dia”. Como visto, é também verdade que, pelo
menos entre xs maias clássicxs, se atribuía identidades aos próprios números, o que
parece valer para os tempos atuais de acordo com colegas maias.
Pois bem, se cada dia tem o seu próprio rosto, é possível dizer que tem não
apenas rosto como corpo. Aqui, lembro novamente dos números no período
clássico, que na maioria das vezes eram representados por cabeças (“rostos”) mas
que em casos mais especiais poderiam aparecer como figuras de corpo inteiro.
Se cada dia tem seu próprio rosto, e isto vale tanto para os 20 dias representados
por glifos quanto para os 13 dias que compõem o Cholq’ij, então é possível entender
que cada um dos 260 dias tem também sua própria face. Essa face pode ser
entendida tanto como uma mera combinação entre uma das 13 com uma das 20,
mas também pode ser entendida como uma “nova” face, que não é nem uma, nem
outra, e ao mesmo tempo as duas, dando forma a uma nova identidade que só
existe a partir de um encontro específico entre os ciclos.
Agora, é preciso voltar por um momento para pensar a diversidade
mesoamericana. Ora, se cada dia tem sua própria identidade, sua própria face, terá
sido essa identidade a mesma para todos os grupos da Mesoamérica? Para mim,
está claro que não.
84
Figura 18: Glifos antropomorfos completos para a data 9.15.5.0.0 (Estela D de Copán).
Fonte: FAMSI.
85
Sendo assim, se para uma comunidade maia K’iche’ um dia específico tem um
rosto específico, para xs maias Kaqchikel – ou mesmo para outros grupos e
comunidades de língua K’iche’ – a perspectiva e representação nativa deste mesmo
dia poderá ser diferente. Consequentemente, se 520 comunidades utilizarem os
calendários maias hoje, isso significa que existem virtualmente 520 usos distintos
deles, incluindo aí os aspectos simbólicos do Cholq’ij. E ainda assim eu não estaria
considerando, aqui, as variações internas às próprias comunidades e grupos, que
certamente existem.
De acordo com Roberto Cardoso de Oliveira (2003), “a noção de identidade
contém duas dimensões: a pessoal (ou individual) e a social (ou coletiva)”. A relação
dos povos mesoamericanos com os calendários certamente abarca essas duas
dimensões. Isto é, eles servem para marcar tanto as diferenças pessoais e
psicológicas, que se dão no plano da individualidade, quanto as diferenças
consideradas coletivamente e até constitutivas das diferenças étnicas. Melatti (2011)
percebeu, por exemplo, a importância que o calendário de 260 dias possuía – e
ainda possui – para conferir nome a indivíduxs. Isto serve para ilustrar seu caráter
demarcador das identidades, e consequentemente também das alteridades, das
diferenças.
4.1
Observações teóricas sobre a diferenciação dxs sujeitxs calendáricxs
Considerarei rapidamente a dimensão da diferenciação individual a partir dos
calendários. Para isso, prosseguirei fornecendo exemplos de situações que, apesar
de teóricas, certamente se aplicam à análise da história social mesoamericana, ou
são mesmo pertinentes à etnologia e à história do tempo presente.
Por exemplo, duas pessoas de etnias distintas, nascidas no mesmo dia do
calendário ritual, não devem ser consideradas a priori pessoas que possuem
exatamente o mesmo uwach q’ij. Como observei há pouco, as etnias tendem a
interpretar de maneira ligeiramente – e em alguns casos, radicalmente – diferentes
umas das outras. Os próprios nomes dos dias, havendo diferença linguística,
também serão variáveis a se considerar.
Assim, ainda que duas pessoas de diferentes etnias nasçam – do ponto de vista
matemático – no mesmo dia, o “rosto do seu dia” não será o mesmo. Essas pessoas
86
são capazes de perceber que, estruturalmente, partilham de uma mesma identidade
calendárica, mas isto mostra como, do ponto de vista simbólico, os mesmos dias são
também potencialmente diferentes sempre que existir algum tipo de fronteira.
Agora, pensarei sobre duas pessoas não apenas de uma mesma etnia, mas de
uma mesma comunidade, que vivem na mesma aldeia e dela partilham com
irmandade. Será que elas, uma vez nascidas no mesmo dia, partilham não apenas
da comunidade mas também da identidade calendárica? De um ponto de vista mais
simplificado, sim – e potencialmente partilham muito mais entre si do que em relação
a outras comunidades, mas não devemos naturalizar e generalizar isto.
Ainda neste caso, a interpretação dos dias (e da identidade calendárica dessas
pessoas) também depende de outros fatores, como por exemplo x ajq’ij; cada ajq’ij
pode e espera-se que tenha uma leitura própria dos dias. Ademais, a casa e a
família em que nasceram também podem trazer elementos diferenciadores que
contribuirão para a construção dessas identidades calendáricas. Por exemplo, se o
dia em questão tiver sido o mesmo de antepassadxs ou ainda de parentes vivxs –
sejam próximxs ou distantes – já haverá aí um elemento diferenciador entre 2
indivíduxs nascidxs num mesmo dia e numa mesma comunidade.
Mesmo a identidade calendárica das mães e pais poderá ser evocada como
diferenciadora. Por exemplo, uma criança que é filha de mãe nascida em Kab’an e
pai nascido em Etz’nab’ é diferente de uma criança que nasceu de mãe e pai que
nasceram em dias cuja face é Kab’an.
Ainda que consideremos um exemplo em que duas pessoas tenham nascido
rigorosamente no mesmo dia (isto é, num mesmo “dia, mês e ano”, possuindo a
mesma idade), é possível pensar diferenciações entre indivíduxs que ainda estarão
dentro do campo de análise e reflexão sobre aspectos calendáricos. Em última
instância, isto será possível mesmo com gêmexs que vivem na mesma família.
Como Tedlock observou, há uma dimensão individual do uwach q’ij: ele traz a
“sorte” de indivíduxs e, se aspectos psicológicos estão envolvidos, então é preciso
considerar as subjetividades em questão e sua própria relação com os dias do
calendário. Afinal, mesmo pessoas com tantas semelhanças não compartilham
necessariamente de igual sorte; suas vidas não são iguais, e nem haverá de ser
igual a compreensão de suas identidades calendáricas. Finalmente, as “últimas”
87
fronteiras acabam sendo as subjetivas, pautadas na própria diferenciação das
experiências individuais.
4.2
Calendários mesoamericanos como marcadores da diferença
No caso da história social mesoamericana, e mais ainda da história dos
calendários mesoamericanos, fica clara a existência de uma grande diversidade
cultural. Não é exagero dizer, como foi dito de início, que “365 dias representam 365
possibilidades de ano novo”. Isto ilustra um fato importante: o caráter mais local e
regional que o calendário de 365 dias pode ter, objetivamente falando, no que se
refere à conta. Enquanto a contagem de 260 dias é, neste sentido, considerada
universal, o calendário anual parece ter sido muito mais maleável.
Dito de outra maneira, um dia 1 Ajaw para xs maias Yukatekxs continua sendo o
mesmo para os outros grupos maias e mesoamericanos, apesar das diferenças
linguísticas, mas o ano novo dxs maias Yukatekxs pode ser distinto em relação a
vizinhxs. Para complicar ainda mais, é possível encontrar datas de ano novo
diferentes dentro de uma mesma comunidade linguística maia.
Minha hipótese aqui é de que a variação na conta dos calendários tem servido
historicamente, e serve até hoje, como instrumento para a construção de novas
fronteiras que, se não são étnicas, pelo menos distinguem comunidades, aldeias e
grupos políticos. É plausível afirmar que há milênios existam disputas por influência
política que se materializam também a partir dos calendários; tal parece ser a
conjuntura atual na Guatemala.
Esta reflexão, aqui veiculada, se deve ao fato de que é possível pensar diferentes
maneiras para aplicar a conta do ciclo de 365 dias e, consequentemente, administrar
e manejar a sua relação com o calendário ritual de 260 dias. Seria ingenuidade
pensar que tamanha diversidade não tenha implicações políticas, seja no passado
ou no presente.
Principalmente, é bom destacar que se está diante de um sistema calendárico em
que a fauna, a flora e as estruturas sociais integram as próprias construções
dialéticas entre sociedade e indivíduo, culturas e calendários. É por conta dessa
constante construção dialética que localmente o calendário ritual consegue agregar
88
muito mais sentido e eficácia simbólica, proporcionando a interpretação da vida
cotidiana desde uma perspectiva bastante específica.
A diferença nesse caso é marcada a partir do momento em que compreendemos
os calendários como adaptáveis à vida cotidiana da aldeia, ou mesmo da casa; isto
significa dizer que na Mesoamérica há uma espécie de dialética entre o saber
estrutural dos ciclos e o saber local – ou mesmo o saber subjetivo –, ao mesmo
tempo em que os ciclos são vividos sempre desde perspectivas etno-históricas
específicas vinculadas a perspectivas tanto macro quanto micro-históricas.
Aqui entrariam, por exemplo, xs ancestrais. Hoje, na Guatemala, xs ajq’ijab’ das
comunidades, e mesmo os mais tradicionalistas, certamente lembrarão dos dias que
marcaram o caminho de antepassadxs de quem elxs são herdeirxs da própria “vara”,
isto é, do próprio símbolo da própria autoridade de especialistas nativxs dos
calendários. Isto significa que, dependendo de quem é a pessoa que se tornou a sua
mestra, você será uma autoridade do calendário formada dentro de uma perspectiva
sui generis que, ainda que não seja rígida, vai fazer com que algumas pessoas
observem alguns dias (como o dia de 1 antepassadx falecidx) de maneiras
diferentes em relação a outras, e como dito isto pode acontecer dentro de uma
mesma comunidade.
Os números e glifos do ciclo ritual, assim como cada um de seus 260 dias, têm
diferentes significados que ao mesmo tempo constroem xs sujeitxs e são
construídos por elxs a partir da própria experiência humana e de sua interação com
o meio; isto significa dizer que o uso do calendário ritual é por si um ritual de eterna
criação que se dá coletiva e também individualmente. O calendário ritual (também
através de seu uso interseccional com o calendário de 365 dias) se tornou – em
tempos imemoriais – uma ferramenta social para marcação da diferença tanto
individual, subjetiva, quanto social, coletiva.
Consequentemente, seria imprudência não observar que os calendários também
serviram para distinção de grupos sociais no passado, demarcando fronteiras entre
as elites intelectuais ou mesmo econômicas e as demais pessoas. E, se foi assim no
passado, o que levaria a crer que seja diferente no presente, em meio à apropriação
capitalista do “calendário maia”? As pessoas que seguem versões “nova era” do
“calendário maia” pelo mundo, por exemplo, não usam isto como um fator de
diferenciação, quiçá na afirmação de que são mais “conscientes” que as outras?
89
Meu propósito aqui não é defender arduamente uma hipótese, mas antes fornecer
uma introdução consequente às formas históricas – e mesmo científicas – de
diferenciação a partir do uso do calendário. Acredito que seja necessário deixar
claras algumas formas de contar os ciclos, isto é, implicações matemáticas que não
são propriamente subjetivas mas sim parte das possibilidades do pensamento
estrutural do calendário.
Para que isto seja mais proveitoso, procederei a uma breve listagem de algumas
formas de diferenciação calendárica presentes na história do uso dos calendários
mesoamericanos. Comecemos por aquela que é, talvez, a mais evidente para xs
leitorxs atentxs: o uso do zero.
4.3
O zero como marcador da diferença
Se é bem verdade que xs maias são bastante conhecidxs pelo uso do zero, não
foram xs únicxs na Mesoamérica. Ainda que a grande maioria das etnias
mesoamericanas aparentemente não o utilizasse, xs maias teriam precurssorxs pelo
menos entre xs olmecas no que se refere à utilização do zero.
A questão do zero está colocada na variação das contas calendáricas a partir do
momento em que xs maias, por exemplo, contam os vinte dias dos meses de zero a
dezenove, enquanto na maioria dos outros calendários mesoamericanos esta conta
é de um a vinte. É uma forma de diferenciação bastante compreensível, e se
entende que é um primeiro passo para que se comece a entender o que é um
“calendário maia” (ou um uso maia das estruturas cíclicas mesoamericanas) com
menos generalismos.
O uso do zero, considerado isoladamente, já diferencia xs maias, então, em
relação a quase todos os outros povos que usam ou usaram os calendários
mesoamericanos, entre eles o mexica. Mas isso não impediria um grupo maia de ter
um calendário com características mais comum a mexicas, por exemplo, portanto as
relações interétnicas devem ser compreendidas e consideradas para além das
fronteiras maias, uma vez que muitas interações sociais (de implicações linguísticas,
inclusive) tiveram e têm lugar.
90
4.4
Referências espaciais e cromáticas
Os vinte glifos do calendário ritual também estão associados às quatro direções
cardeais: “norte, sul, leste e oeste”. No contexto do período clássico, a direção leste
está associada aos glifos Imix, Chikchan, Muluk, B’en e Kab’an; a norte, aos glifos
Ik’, Kimi, Ok, Ix e Etz’nab’; ao oeste relacionam-se os glifos Akb’al, Manik’, Chuwen,
Men e Kawak; finalmente, estão atrelados à direção sul os glifos K’an, Lamat, Eb’,
Kib’ e Ajaw.
Como temos quatro direções, elas voltam a se repetir a cada quatro dias. Por
isso, é possível contar ciclos com esta duração, em que cada dia será
correspondente a uma direção. Isto traz também uma divisão possível dos glifos em
quatro grupos de cinco cada, à maneira que listei acima. Independente das direções
atreladas aos agrupamentos, eles mantêm-se fixos, pois trata-se antes de uma
relação matemática do que uma pré-determinação direcional ou espacial.
Por sua vez, as direções também são identificadas a cores específicas – o que
repercute, por tabela, nos glifos. No mesmo período clássico, considera-se que a cor
do leste era vermelha; a cor branca era associada ao norte; a direção oeste era
representada pela cor preta; e a cor vinculada ao sul era a amarela
(MONTGOMERY, 2003; SCHELE & FREIDEL, 1990).
Pois bem, ainda que seja perigoso generalizar o próprio período clássico, estas
parecem ter sido as direções e cores atreladas aos glifos maias àquela época, ao
menos entre xs que utilizaram a escrita hieroglífica. Porém, esta associação entre as
quatro direções e os vinte glifos do calendário ritual não é universal, sendo um ponto
em que existem diferenças entre xs próprixs maias hoje.
Se, entre xs maias clássicos, considera-se que a sequência das direções
(partindo de Imix), é leste, norte, oeste e sul, pelo menos entre alguns grupos maias
K’iche’ a ordem é leste, oeste, norte e sul, partindo de B’atz’ (equivalente a Chuwen).
Assim, nesta outra tradição maia os grupos acima listados mudam de direção: o
grupo leste torna-se norte, o grupo norte vira sul; o agrupamento oeste passa a ser o
leste e a seleção de glifos do sul passa a ser relacionada à direção oeste. As cores
relacionadas às direções são as mesmas mas, uma vez que a relação entre glifos e
direções é mudada, as cores atreladas aos glifos nesse caso são modificadas.
91
Note-se que há aqui pelo menos três aspectos da diferenciação calendárica em
cena: (1) a sequência das quatro direções; (2) as cores associadas às direções e (3)
a quais direções os grupo de glifos estão relacionados. No que se trata de
referências espaciais e cromáticas, então, existe um campo de diversificação
bastante rico e a ser explorado.
4.5
Data de “ano novo”
Possivelmente a forma de diferenciação calendárica mais recorrente na
Mesoamérica. Já abordada de antemão devido à sua importância para se pensar o
uso dos calendários como marcadores da diferença, a definição da data de ano novo
parece ter sido (e continuar sendo) mesmo a principal prerrogativa na construção de
novas tradições calendáricas.
É realmente muito simples de entender, e repete-se mais uma vez: se existem
365 dias num ano, então existem também 365 possibilidades de ano novo. De fato,
é bem provável que este ciclo tenha se tornado mais maleável desde antes do
surgimento ou do desenvolvimento da escrita.
Para pontuar um exemplo, posso lembrar do caso mais conhecido na Guatemala
contemporânea. O calendário K’iche’ – ou pelo menos a tradição K’iche’ mais
conhecida – tem sua data de ano novo atualmente coincidindo com o dia 21 de
fevereiro. Exatamente 40 dias depois é a data de uma tradição Kaqchikel,56 que por
sua vez é o mesmo dia de ano novo usado no período clássico. 57
A grande variedade de anos novos na Mesoamérica é um tema bastante
pertinente, e deverá ser melhor explorado no futuro. Certamente é de meu interesse
contribuir para um levantamento ostensivo das diferentes versões do ciclo de 365
dias usadas no passado e/ou nos dias de hoje.
4.6
Grupo de marcadores
Esta forma de diferenciação, bem como as que serão abordadas a seguir,
evidenciam como a escolha do ano novo pode se complexificar, já que ela está
56
57
A diferença de 40 dias é fixa, mas não sua relação com o calendário gregoriano. Uma vez que
ambas as contas não fazem uso de correções bissextas, essas datas retrocedem em um dia a
cada quatro anos, sempre após a ocorrência de um dia 29 de fevereiro.
Na correlação mais aceita. Ver nota 46.
92
diretamente relacionada ao calendário ritual. É o que fica mais evidente a partir das
preferências por determinados glifos marcadores de ano.
Como dito no capítulo 3, estes grupos são organizados a partir da diferença
matemática entre os ciclos de 260 e 365 dias, que é de 105 dias; no que se refere à
base vigesimal, temos portanto um resto de 5 dias. Assim, cada grupo é composto
por quatro glifos específicos. A partir do exposto neste capítulo, afirmo que o
agrupamento de marcadores de ano reúne quatro glifos diferentes, sendo cada um
dos glifos referente a uma das quatro direções. Dessa maneira, entre os 52
marcadores únicos existem 13 vinculados a cada direção. Estes grupos são os
seguintes:
GRUPO 0 (ou 5) – Ajaw, Chikchan, Ok e Men
GRUPO 1 – Imix, Kimi, Chuwen e Kib’
GRUPO 2 – Ik’, Manik’, Eb’ e Kab’an
GRUPO 3 – Akb’al, Lamat, B’en e Etz’nab’
GRUPO 4 – K’an, Muluk, Ix e Kawak
Todos estes grupos estiveram em uso em algum momento da história
mesoamericana, ou mesmo no contexto mais restrito da história maia. Mais do que
isso, é possível afirmar a partir de dados etnográficos que todos eles ainda são
utilizados por maias contemporânexs. 58
Assim, percebe-se que existem, de antemão, cinco possibilidades no que se
refere à escolha pelo grupo marcador de ano. Em algumas circunstâncias, grupos
étnicos próximos podem posicionar suas datas de ano novo com um ou dois dias de
distância entre elas, o que acarreta também no uso de grupos diferentes de
marcadores de ano. Porém, isto ainda não esgota as possibilidades de diferenciação
neste ponto.
Em 2012, durante visita à Oxlajuj Ajpop, pude constatar que esta organização
maia, situada na capital guatemalteca, propaga uma contagem sui generis do ano.
Para elxs, o ano novo é fixado a uma data do calendário gregoriano: 21 de
Dezembro. De acordo com um amigo ajq’ij, esta tradição seria oriunda de
58
Estes dados serão tabulados e publicados numa futura versão expandida deste documento.
93
Chichicastenango, contudo não pude encontrar nenhuma outra informação a este
respeito.
Como o ano é fixo em relação ao calendário gregoriano, mas a ordem do ciclo de
260 dias é igual à dos outros grupos maias, gera-se uma situação realmente
incomum. O calendário da Oxlajuj Ajpop não tem um grupo de marcadores de ano,
já que a distância entre os anos novos contados por ela não é fixa em 5 dias e nem
há qualquer tipo de interrupção no Cholq’ij.
O resultado é que, a cada ano bissexto no calendário gregoriano, o grupo de
marcadores muda, passando a ser o seguinte. Se 21 de Dezembro de 2014 coincide
com 6 Ok, do grupo de marcadores 0 ou 5, o dia 21 de Dezembro de 2016 (um ano
bissexto) coincidirá com 9 Imix, do grupo 1. Em 2020, passará ao grupo 2, em 2024
ao grupo 3, em 2028 ao grupo 4, retornando em seguida ao grupo 5 e assim por
diante.
Consequentemente, é possível afirmar que esta tradição não elegeu um grupo
específico de marcadores. Virtualmente todos os 260 dias do calendário ritual
podem servir como marcadores de ano, ainda que eles não apareçam dentro de
uma ordem convencional à estrutura comum ao cômputo mesoamericano do tempo.
Finalmente, conclui-se que é possível marcar a diferença calendárica neste
aspecto tanto a partir da preferência por um grupo específico de marcadores de ano
quanto pela ausência deste tipo de escolha. É preciso ainda aprofundar as
compreensões não apenas sobre as tradições que elegeram um grupo de
marcadores, mas ainda mais sobre outras tradições que encontram-se à margem
dessa divisão em grupos de glifos.
4.7
Marcador inicial ou terminal
Aqui adentra-se um campo em que calendários com a mesma data de ano novo
também podem diferenciar-se entre si. Se para xs maias clássicos, o ano iniciava
em 0 Pop, e o dia do Tzolk’in correspondente a este dia era, por si, o próprio
marcador do ano, isto não é universal.
No âmbito das contas do México central, como a mexica, encontra-se uma outra
maneira de determinar os marcadores de ano. Se entre xs maias há um tipo de
94
marcação inicial, em outros calendários existirá uma forma de marcação que é
considerada “terminal”, isto é, está ancorada ao término e não ao início de um ano.
Neste caso, o marcador não é o primeiro, mas sim o 360º dia do ano, o último
antes dos 5 dias que sobram na matemática de lógica vigesimal. Assim, um ano
efetivamente iniciado sob o glifo Ik’, por exemplo, teria como marcador de fato o glifo
Imix, que teria lugar no 100º e no 360º dias do ano.
Concluindo, uma outra maneira de diferenciação é a definição do marcador de
ano a partir do início ou do fim do ano. Então, é possível que dois calendários
distintos tenham a mesma data de ano novo, mas marcadores de ano que são
bastante diferenciados.
4.8
Principal marcador de ano
Se dois calendários distintos possuem, por exemplo, (1) a mesma data de ano
novo, (2) marcador de tipo inicial e, consequentemente, (3) o mesmo grupo de
marcadores de ano, isto ainda não faz deles calendários iguais. Considerando os
calendários que fazem uso de grupos de marcadores específicos, mantendo ciclos
de 52 anos regulares, é preciso ainda saber qual é o principal marcador de ano entre
os 52 possíveis.
É este dia do calendário ritual que marca o início de um novo ciclo de 52 anos.
Entre xs maias clássicos, como dito anteriormente, o principal marcador parece ter
sido 1 Kab’an. Já numa tradição K’iche’ contemporânea, em que a data de ano novo
é outra porém se usa o mesmo grupo de marcadores, o marcador principal é
correspondente ao dia 1 Manik’ (TEDLOCK, 1992).
4.9
Ponto de início do ciclo de 52 anos
Uma última forma de diferenciação calendárica aqui abordada, espécie de
desdobramento da anterior, refere-se ao marco de início do ciclo de 52 anos. Ela se
aplica a tradições que elegeram um mesmo dia como principal marcador de ano, isto
é, um mesmo dia (entre os 260) como marco inicial do ciclo de 52 anos.
Quando essas tradições convergem no que se refere ao grupo de marcadores e
até na escolha de um marcador principal, elas serão distintas se o ano novo não for
95
rigorosamente o mesmo. Se, por exemplo, a tradição K’iche’ que inicia o ano 40 dias
antes em relação ao calendário maia clássico tivesse escolhido o mesmo dia 1
Kab’an como seu marcador principal, este dia seria marcador em anos diferentes.
Consequentemente, a conta de 52 anos seria, também, consideravelmente
diferente.
96
5
CONCLUSÃO
Desde o início da minha trajetória acadêmica, pensei por diversas vezes como
fazer uma introdução adequada aos calendários maias. Acredito que, no
cumprimento do objetivo principal, este seja o melhor possível para o momento e a
conjuntura. Entretanto, esta monografia não substitui o meu primeiro livro, publicado
em 2012, que dedicou-se de maneira mais exaustiva a diversas questões que eu
não tive como abordar aqui.
O trabalho traz novas reflexões, além de um cuidado muito apropriado no que se
refere à diversidade linguística maia. Acredito que o capítulo 2 tenha sido uma
grande nova contribuição, como uma boa introdução aos estudos maianistas,
especialmente para “linguistas” sem formação como eu mesmo sou.
No capítulo 3, a introdução propriamente dita é bastante significativa no sentido
matemático e da transmissão do conhecimento científico (sem “etno”!) que, mais do
que nunca, precisa ser reconhecido como tão ou mais científico que a (re)produção
acadêmica. Na versão mais longa desta monografia, os aspectos simbólicos dos
próprios glifos dos dias terão um lugar maior a partir de perspectivas epigráficas e
etnográficas.
Finalmente, no capítulo 4 esforcei-me para sistematizar algum conhecimento
acerca das formas de diferenciação que possuem algum tipo de implicação
matemática na interpretação dos ciclos. Está claro, para mim, que os calendários
mesoamericanos foram e continuam sendo ferramentas usadas como marcadores
da diferença. É também de alguma maneira socializando esse tipo de conhecimento
que eu marco a minha própria diferença em um meio acadêmico muito pouco
interessado nisto.
A compreensão de como podem ser construídas as identidades calendáricas da
Mesoamérica apontam um campo inesgotável e evidenciam como os calendários
estão vinculados às sociedades que os utilizaram de tal forma que eles são, sim,
fatos sociais totais. Seja qual for o corte analisado (de “classe”, de gênero ou de
etnia, por exemplo) nos estudos mesoamericanos, os calendários ali estarão para
dizer algo e contribuir para uma visão mais holista da Mesoamérica, nem que seja
para situar historicamente os acontecimentos investigados.
97
Numa escrita transdisciplinar, os capítulos 2 e 4, que supostamente seriam
objetivos secundários, revelaram-se aportes fundamentais para a sustentação e
nutrição das sementes aqui lançadas, vertendo-se elas próprias em frutas maduras
que podem e devem ofuscar o capítulo 3. 59 De qualquer maneira, os ciclos vindouros
de semeadura já têm de onde extrair parte de sua matéria-prima.
Ainda que esta seja uma mera monografia, almejo desde já prosseguir com
investigações consequentes que de fato me levem a uma aproximação maior às
“etno”epistemologias das comunidades guardiãs dos calendários na Guatemala,
ambição muito além das possibilidades de uma graduação. Acredito efetivamente
que o estudo destes calendários da Mesoamérica trata-se de um campo de
investigação muito interessante e vasto, que constitui uma área estratégica para os
estudos mesoamericanos, já que o uso do calendário de 260 dias (e seu uso
conjunto com a conta dos anos) é, assim entendo, o traço cultural mais marcante –
e, por sua vez, mais diferenciador – da Mesoamérica.
Sem algum aprofundamento no que se refere às próprias estruturas dos
calendários mesoamericanos, é impossível adentrar as muitas cosmologias que
empregaram alguma destas contas. Assim como, quando se fala em “maias”,
costumeiramente se está negligenciando a diversidade étnica, também falar em
“calendário maia” pode ser uma generalização, um esquecimento da infinitude de
sua dimensão matemática e da “fábrica mesoamericana” de múltiplos calendários e
usos do tempo.
Generalizar é também silenciar a própria história social do complexo cultural da
Mesoamérica, e é isto que de alguma maneira fazem movimentos de “nova era”
quando “horoscopizam” o “calendário maia” com o argumento de que o estão
“atualizando” para a “realidade do mundo moderno e globalizado”. Adapta-se o
“calendário maia” para a vida (e o calendário gregoriano) dxs apropriadorxs kaxlan
(“não-maias”) e da pequena burguesia sedenta pelo acúmulo de “capital espiritual” 60
e o uso e abuso de seus “sincretismos pós-modernos” no pior sentido. Tudo isto se
dá em detrimento dos conhecimentos nativos dos calendários ainda nos dias de
hoje.
59
60
Especialmente por seu espaço diminuto, se comparado com o meu livro de 2012.
A “nova era” é também um novo nicho de mercado que se apropria do “calendário maia” e o
transforma em um produto lucrativo e fonte de idolatria. “O movimento da Nova Era é parte de um
contexto mais amplo da cultura consumista. Vários teóricos sociais propuseram que,
crescentemente, estilos de vida, identidade, significados culturais e até espirituais tornaram-se
commodities para compra” (ALDRED, 2000, tradução minha). Ver também CAVALCANTI, 2012.
98
É também por isto que minha escrita cá esteve num papel. A descolonização é
um processo árduo, e é necessário fomentar o uso da escrita para o propósito da
horizontalização das trocas de conhecimento. No meu caso, interessa-me que o uso
e a transmissão dos conhecimentos calendáricos não sejam a marcação de
diferença elitista, estruturalmente opressora.
O
movimento
zapatista,
muito
sabiamente,
continua
preservando
os
ensinamentos milenares dxs maias e da Mesoamérica: tempo é espiral, é “caracol”;
ou seja, não tem início e nem fim (LIMA, 2014). É certamente possível pensar
ciência com política no âmbito da Mesoamérica, e mais ainda estas ciências
calendáricas!
Barbara Tedlock (1992) evidencia de maneira pertinente como os calendários de
260 e 365 dias sempre foram e continuam sendo independentes
da escrita. A
oralidade se apresenta a partir das mnemônicas 61 evocadas pelos nomes dos dias.
Além disso, ela também atenta para a relação entre dias específicos e localidades
específicas, ressaltando vínculos diretos entre tempo e espaço. Essas são duas
frentes de análise que deverão no futuro guiar também alguns de meus interesses.
Nesta monografia, o aspecto espacial mostrou-se muito mais presente na
introdução à diversidade pan-maia por meio de dados geográficos e geolinguísticos
como os mapas. De uma maneira geral, espero que esta seja uma excelente
contribuição para as gerações vindouras, ao fornecer uma coerente introdução à
diversidade maia, ao funcionamento dos principais calendários maias e aos seus
usos sociais que marcam diferenças.62
Afinal, a estrada da transdisciplinaridade é longa e eu agradeço por prosseguir
nela, trilhando-a através da Mesoamérica e do mundo.
Sem fim, como o tempo.
...63
61
62
63
A mnemônica serve como auxiliar da memória, especialmente na oralidade; neste caso, os nomes
dos dias despertam outras memórias, outros significados.
¡Gracias!
Versão final dos dias 10 e 11 de dezembro de 2014, cujos rostos (uwach q’ij) são 8 Kawak
(Yukateka) e 9 Junajpu (K’iche’).
99
6
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