Presos políticos

Transcrição

Presos políticos
Presos políticos
GOLPE E REPRESSÃO NO BRASIL, NA ARGENTINA E NO CHILE
Stuart Angel Jones, o filho
desaparecido de Zuzu Angel
O filme "Zuzu Angel", de Sérgio Resende, que tem Patrícia Pillar como personagemtítulo, trata de um das centenas de episódios trágicos de torturas e mortes ocorridos
durante o regime militar brasileiro, implantado através de um golpe de Estado, em 31
de março de 1964: a prisão e o desparecimentode Stuart Angel Jones, filho da estilista
e militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), no que se
convencionou chamar de "os porões da ditadura" - com o que se designa a atuação
violenta e clandestina do regime na repressão a seus opositores.
Do mesmo modo, o filme aborda também a morte da própria Zuzu Angel num
acidente em circunstâncias não esclarecidas, que pôs fim a sua cruzada para denunciar
a repressão política no Brasil e recuperar o corpo do filho.
Distanciamento histórico
Ainda não decorreu tempo suficiente para que se possa fazer uma avaliação
efetivamente objetiva desse período do regime militar. Não há dúvida nenhuma de
que se pode dizer que o regime foi ditatorial, especialmente depois do Ato
Institucional nº5, de 1968. Também é inquestionável que a ditadura torturou, matou e
escondeu cadáveres, o que é exatamente o tema de "Zuzu Angel".
Outras questões, porém, permanecem abertas e vale a pena levantá-las. Elas ainda
vão motivar e instigar os historiadores do país por muitos anos. Quais seriam essas
questões? Em primeiro lugar, o próprio nome que se dá à implantação do regime
militar brasileiro. Os militares, que o implantaram, sempre fizeram questão de chamálo de Revolução. Ao contrário, seus opositores nunca deixaram de insistir que se
tratou de um golpe de Estado.
Golpe ou revolução?
De fato, a deposição do presidente eleito João Goulart por forças políticas e militares
caracteriza um golpe de Estado. No entanto, esses golpes, em geral, são o que
marcam o início de qualquer revolução. Por exemplo, foi um golpe de Estado em
novembro de 1922 (outubro pelo calendário russo), com a deposição do premiê
Kerensky, que marcou o início da Revolução russa. A revolução propriamente dita se
estende até o início do governo de Josef Stálin.
O que caracteriza uma revolução não é o modo pelo qual ela começa. É o seu
desenvolvimento, com a introdução de uma nova ordem social, política e econômica
no lugar onde ela ocorreu. Isso o golpe de março de 1964 não fez no Brasil. Pelo
contrário, ele aconteceu para conservar a velha ordem, que se encontrava ameaçada
pelo avanço dos grupos políticos de esquerda no governo João Goulart, fossem esses
grupos comunistas, populistas ou simplesmente antiamericanistas (vale lembrar que
se estava no contexto da Guerra Fria).
Em outras palavras, o movimento político-militar de direita que se impôs ao Brasil em
1964 pode bem ser considerado uma contra-revolução, uma vez que veio para deter a
instauração de uma nova ordem, socialista, no país, que era para onde as esquerdas
procuravam empurrar o governo de Jango. Já existem historiadores que pensam dessa
forma, mas é impossível dizer, por enquanto, se essa interpretação vai prevalecer no
futuro.
Contabilidade macabra de mortos e desaparecidos
Outra questão que não deve ser esquecida foi levantada pelo cientista político
Anthony Pereira, da Universidade de Tulane (Nova Orleans), estudioso da história
recente da América do Sul. Ele se perguntou por que ocorreu uma diferença muito
grande na quantidade de presos políticos, mortos e/ou desaparecidos, e exilados nas
ditaduras do Brasil, da Argentina e do Chile. Vale a pena mencionar os números, antes
de apresentar a resposta de Pereira.
No Brasil, em 21 anos de regime militar, houve 300 mortos e/ou desaparecidos, 25 mil
presos políticos e 10 mil exilados. Na Argentina, em sete anos de ditadura (1976-1983),
os mortos e/ou desaparecidos foram 30 mil, assim como os presos políticos, e os
exilados 500 mil. Finalmente, no Chile, em 17 anos da ditadura Pinochet, morreram ou
desapareceram 5 mil pessoas, houve 60 mil presos políticos e 40 mil exilados.
Pois bem, segundo Pereira, o que torna a contabilidade mais branda e menos trágica
para a ditadura brasileira é o fato de ela ter feito do Poder Judiciário um braço da
repressão, ao aplicar a Lei de Segurança Nacional contra os "inimigos do Estado". Isso
não aconteceu nos tribunais militares "de guerra" do Chile e muito menos na
repressão argentina, que ocorreu clandestina e extrajudicialmente.
O papel do Judiciário
O fato de o Poder Judiciário não ter sido simplesmente posto de lado pelo regime
militar brasileiro garantiu que parte significativa dos presos políticos tivessem seu
paradeiro rastreado e algum espaço para a defesa, ainda que limitada. De qualquer
forma, isso garantiu a sobrevivência de cerca de 7.400 presos que sofreram processos
políticos no Brasil.
Além disso, a esquerda armada no Brasil nunca foi muito forte, nem contou com apoio
popular significativo, de modo que o regime militar brasileiro nunca a considerou uma
grande ameaça a seus interesses, ao contrário do que ocorreu nos outros dois países
sul-americanos.
Com esses dados, nem Anthony Pereira, nem este artigo querem exercer o papel de
advogado do diabo e diminuir as atrocidades cometidas pela ditadura brasileira.
Apenas vale lembrar que a história é sempre mais complexa do que uma luta de
mocinhos e bandidos. E também que casos como os de Stuat Angel Jones, Vladimir
Herzog e Manuel Santos Filho, por mais terríveis que sejam, felizmente foram
exceções e não a regra durante o regime autoritário de 1964-1985.
Em tempo: os dados da tese de Anthony Pereira foram extraídos de entrevista por ele
concedida à "Folha de S. Paulo", em 5 de abril de 2004.
*Antonio Carlos Olivieri é escritor, jornalista e diretor.

Documentos relacionados