Há uma cidade piscatória no fundo do mar algarvio, agora revelada
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Há uma cidade piscatória no fundo do mar algarvio, agora revelada
ID: 65587548 06-08-2016 Tiragem: 32680 Pág: 26 País: Portugal Cores: Cor Period.: Diária Área: 25,70 x 30,46 cm² Âmbito: Informação Geral Corte: 1 de 1 Há uma cidade piscatória no fundo do mar algarvio, agora revelada em mapa Uma comissão de oito sábios, pescadores, validou o trabalho dos cientistas, produzido durante um ano. No fundo do mar, há meio milhar de sítios que são “aldeamentos” onde o peixe se esconde DR Toponímica Idálio Revez Nem todos os caminhos vão ter aos resorts onde o peixe cresce e se multiplica, como manda a natureza. A partir de agora, as ruas e avenidas do mar passam a ter nomes, acessíveis a qualquer um, desde que saiba navegar. O Centro de Ciências do Mar (CCMar), da Universidade do Algarve, elaborou o Primeiro Mapa da Toponímica dos Mares Algarvios, apresentado ontem, para mais facilmente se chegar aos bancos de pesca. Uma parte dos segredos do mar foram desvendados mas, dizem os entendidos, para se ser pescador é preciso “arte” e mais qualquer coisa. Na cidade que se ergue no fundo do mar, ao longo de uma faixa de 220 quilómetros — de Vila Real de St.º António a Odeceixe — há um mundo novo a (re)descobrir através da toponímica. Durante um ano, uma equipa de cinco investigadores do CCMAR, em colaboração com os pescadores, fez o levantamento de mais de 7 mil nomes de lugares “secretos” da costa algarvia. No final, porque a designação de alguns sítios se repetia de zona para zona, a carta ficou reduzida a cerca de 500 lugares. O mapa, explicou Jorge Gonçalves, o cientista da Ualg que coordenou o projecto, “tinha de ter leitura fácil, por isso foram assinalados só os sítios mais significativos”. Quem validou o trabalho foi uma Comissão de Sábios constituída por oito elementos. “Todos pescadores”, sublinha Jorge Gonçalves, destacando os “agradecimentos” à comunidade piscatória, que identificou os lugares e colaborou com os académicos. Júlio Alhinho, de Quarteira, fez parte da equipa de “sábios” escolhidos para “pôr o visto” neste mapa toponímico, que sintetiza o conhecimento de algumas gerações de marinheiros. “Aqui em frente, [Quarteira] encontramos a ‘pedra Joaquim Tomás’, nome de um antigo marinheiro”. A rocha, explica, é a porta de entrada por para o “aldeamento” onde os cardumes construíram os seus habitats para se defenderem dos predadores. “Se o peixe não fosse esperto, já a gente o tinha matado todo”, comenta. Neste jogo entre quem lança a rede e quem “cai nas malhas”, elogia o pescador de polvo, O Centro de Ciências do Mar (CCMar), da Universidade do Algarve, elaborou o Primeiro Mapa da Toponímica dos Mares Algarvios Durante um ano, uma equipa de cinco investigadores do CCMAR, em colaboração com os pescadores, fez o levantamento de mais de 7 mil nomes de lugares “secretos” da costa algarvia. No final, porque havia repetições de zona para zona, a carta ficou reduzida a cerca de 500 José Agostinho, “Júlio Alhinho é um dos que mais sabe” pois “conhece como poucos” a costa algarvia. “Bom trabalho” Em Portimão, Jorge Vairinhos, dirigente da cooperativa de armadores de pesca do Barlavento, sublinha a importância do mapa que identifica os principais bancos de pesca. “Bom trabalho”, diz, destacando a importância do suporte científico na sistematização da informação dispersa. “As novas tecnologias vieram permitir desvendar os segredos sobre os melhores locais para a pesca mas há sempre qualquer coisa que os aparelhos não revelam”, observa. Por seu lado, Alhinho acrescenta: “Para ser pescador não basta conhecer os bons sítios”. A arte e o “trabalho, muito trabalho” podem fazer a diferença. Na base da elaboração do mapa estão duas centenas de entrevistas a pescadores nos principais portos do Algarve. A princípio, conta a investigadora Esmeralda Costa, encontrou algumas reservas, vindas da ancestral separação entre a Universidade e o mundo exterior. “Para que querem saber os nossos segredos?” Esta foi a pergunta, não directamente dirigida, que viu suspensa nas muitas conversas que teve com os marinheiros. No final, confidencia, o resultado superou as expectativas. “Posso dizer que, inclusive, fiz algumas amizades”. Desde há dezenas de anos a trabalhar nesta área, considera que trabalho realizado foi “uma homenagem a todos eles [pescadores]”. Da parte que lhe diz respeito, lamenta não ter conseguido bolsa de investigação para dar seguimento ao trabalho. A apresentação do primeiro Mapa da Toponímica dos Mares Algarvios esteve a cargo dos académicos Jorge Gonçalves e do pescador Júlio Alhinho. “Não tenho jeito para falar em público”, desculpou-se, quando lhe foi formulado o convite. Mas, por fim, lá aceitou partilhar as muitas histórias que conhece. Porque é que as rochas, no mar, têm nomes como se fossem monumentos? “São pontos de referência”, explicou, quando entrevistado pelo PÚBLICO. Mas a costa algarvia não tem só rochas. Na pesca do cerco (sardinha), observa Jorge Vairinhos “trabalha-se em chão limpo [areia]”. A existência de grandes ou pequenas capturas, diz Júlio Alhinho, não depende da capacidade do pescador. “A natureza é quem manda nisto tudo, é como em terra — umas vezes o ano é bom, outras mau”. Quando se olha para o mar e se vê um horizonte azul aparentemente homogéneo, é puro engano: “Lá no fundo, há vales e montanhas, como na terra”, observa Jorge Gonçalves. Alguns desses elementos geográficos, os mais significativos, já se encontravam registados na carta náutica, do Instituto Hidrográfico. O novo mapa do CCMar conferiu-lhe precisão. “A carta [naútica] estava muito vazia”, diz Jorge Alhinho, começando a enumerar nomes de sítios de referência para a pesca. “Em frente a Vale do Lobo temos as Barrocas”, exemplifica. Os nomes dos lugares estão, em muitos casos, associados ao apelido dos pescadores que os descobriram. “Pode ser que um dia haja a pedra Alhinho”, graceja.