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6.:Layout 1 10/4/10 7:30 PM Page 54 Galpão de Arte Feira de Santana, Bahia Sonho de bailarina Dayane Santos Ferreira é filha de uma família pobre do interior da Bahia e foi criada pelo avô. Além dela, ele cuidava de mais cinco crianças em Feira de Santana. Não havia nenhum luxo e ainda enfrentavam alguma dificuldade. Dayane passou a adolescência adiando o sonho de ser bailarina. Hoje, aos 35 anos, tem consciência de que seu desejo de menina foi perdido. Misturou-se à realidade das crianças que passam a infância como adultos, brincando apenas nas horas vagas. Acontece que Dayane teve sua segunda chance, digamos assim. Ela é mãe de uma linda menina de 6 anos, Samara, cheia de sonhos e energia. “Quando ela está quieta demais, é porque ficou doente!”, comenta Dayane ao descrevê-la. É por meio de Samara que a mãe realiza seu sonho perdido. “Nunca tive condições financeiras ou qualquer incentivo para fazer balé. Quando vejo minha filha dançando, é como se eu mesma estivesse lá no palco”, conta. “Tenho tantas obrigações: roupa para lavar, comida para preparar... Ela dança por mim!”, orgulha-se. A pequena Samara não parece dançar por obrigação. Longe disso. Ela corresponde ao olhar amoroso da mãe com uma postura elegante de bailarina-mirim e a alegria do sorriso banguela sempre aberto. “Adoro balé, mas quero mesmo é ser modelo”, confidencia a menina. Aos 3 anos, perguntava quase diariamente a Dayane quando começariam as aulas de dança. A insistência levou a mãe a buscar o Galpão de Arte antes mesmo de a menina completar 4 anos, que já seria um a menos do que a idade mínima para começar a dançar. Nessa idade, Samara já calçava sapatilhas, vestia tutu e fazia pose diante do espelho. 6anos Samara Santos Ferreira 6.:Layout 1 10/4/10 7:30 PM Page 55 6.:Layout 1 10/4/10 7:30 PM Page 56 Paixão pela dança Dizer “não” para uma menina tão decidida apenas porque ainda não havia completado 5 anos iria contra a história do próprio Galpão. A ONG foi criada em dezembro de 2002 por Ana Lúcia Bahia Paixão, bailarina clássica formada pela Royal Academy, de Londres. Depois de trabalhar em academias, como professora, resolveu ter a própria, mas a iniciativa privada não a completou. “Era uma angústia não poder incluir quem não podia pagar. Naquela época, muitas vezes destinei meu salário para patrocinar crianças em academias, mas isso foi indo além do meu limite. Vi crianças talentosas que não tiveram como seguir adiante”, recorda Ana. Durante três anos, Ana buscou caminhos. “Eu saía chorando de órgãos públicos, cansei de ouvir não, não, não”. Obstinada, viu o casamento chegar ao fim. Os amigos mais próximos diziam que estava louca, mas assim nasceu o Galpão de Arte. O depósito de uma fábrica de cigarros, com dois mil metros quadrados, foi desativado. O chão era de cimento – péssimo para aulas de balé –, não havia banheiro, era tudo misturado num só ambiente. O proprietário do imóvel liberou dois meses de aluguel e, em dois dias, Ana conseguiu inscrever 300 crianças no projeto e recebeu o apoio de vizinhos, comerciantes, amigos. “Coloquei papelão no chão, para não machucar os pés das crianças. Um voluntário se ofereceu para dar aulas de violão, outro de capoeira, e mais um de teatro”, recorda. Para um professor não atrapalhar o outro no ambiente coletivo sem divisórias, as aulas de dança eram dadas sem música. A força das parcerias Certa vez, Ana teve a ideia de pôr uma urna para que as crianças dissessem o que esperavam do futuro. A mensagem que mais chamou sua atenção foi a de uma menina de 5 anos, a idade de Samara, com um desenho. Um boneco, uma casa com as janelas abertas, uma pipa no céu, o sol, tudo muito vivo. Como não sabia escrever, pediu que um adulto acrescentasse a legenda: “Meu sonho é ser feliz”. “Desabei ao ver isso, e me senti incapaz de decifrar o que seria a felicidade para aquela criança”, lembra Ana. Aos poucos, com trabalho árduo, as parcerias foram-se consolidando. Uma multinacional abraçou o projeto, em troca de incentivos fiscais. Com o apoio do Criança Esperança, o Galpão profissionalizou as oficinas de dança e teatro. “As portas se abriram”, diz Ana. O programa também financiou viagens do grupo de dança para fora do país e oficializou a música no projeto, com salas e instrumentos preparados para isso. No terceiro ano, uma nova sala com máquinas de costura foi inaugurada, para a confecção dos 56 6.:Layout 1 10/4/10 7:30 PM Page 57 figurinos da turma e cursos profissionalizantes de mães de alunos, que tinham aulas enquanto aguardavam seus filhos; e, este ano, uma cozinha semi-industrial será inaugurada, para suplementar a alimentação. “Aqui tivemos alunos que chegaram a desmaiar de fome”, conta Ana. No Galpão, os 800 alunos vivem em famílias com renda média mensal de até três salários mínimos e precisam estar matriculados na escola”. Quanto mais altos os obstáculos, maiores têm sido as conquistas. Atualmente, três alunos estão dançando no Canadá, com bolsas de estudo, e o diretor da escola de Vancouver planeja uma visita ao interior baiano para colher novos talentos. “A ideia é a profissionalização”, vislumbra Ana. “O trabalho é árduo, mas não impossível. Ver o resultado, as transformações, tudo isso é fantástico. Meninas que não tinham nenhum objetivo na vida hoje estão fazendo faculdade. E não tivemos nenhum caso de gravidez precoce até hoje”, constata dona Mercedes, mãe de Ana e assistente da filha na direção do Galpão. Talvez Samara, que lembra a personagem do filme “Pequena Miss Sunshine”, nossa estrela deste capítulo, mude de ideia no futuro e não queira mais ser modelo. Tampouco bailarina. Mas terá aprendido a fazer desenhos que retratem o que é a felicidade. Mais do que isso: aprenderá com a equipe do Galpão a tirá-la do papel e transformá-la em realidade. No Galpão, os 800 alunos vivem em famílias com renda de até três salários mínimos. Pesquisa feita entre eles revelou seu maior sonho: “ser feliz”. 57 CONTEXTO 6.:Layout 1 10/4/10 7:30 PM Page 58 1991 Militantes mobilizam-se para tirar o ECA do papel e efetivar os direitos da infância e juventude Renato Aragão escala o Cristo Redentor para agradecer o apoio dos brasileiros à causa da infância; personalidades vão ao show e declaram seu apoio a crianças e adolescentes em situação de risco Uma imagem está marcada na memória de todos os que assistiram ao especial Criança Esperança em 1991: a de Renato Aragão beijando a mão direita do Cristo Redentor. O humorista tinha muito que agradecer. Naquele ano – o quinto à frente do especial –, ele comemorava o 25o aniversário de Os Trapalhões e assumia a função de Representante Especial do UNICEF para as Crianças Brasileiras. Emocionado, jogou pétalas de flores do alto do maior símbolo do Rio de Janeiro: “Que essas rosas caiam no coração das pessoas para que amparem mais as crianças”. Naquele ano, o principal objetivo dos militantes em prol da infância era tirar o Estatuto da Criança e do Adolescente do papel – efetivar os direitos da infância, torná-los reais, para que o ECA não se tornasse uma dessas “leis que não pegam”. Foram criados o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), o Pacto pela Infância e o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan, o Cedeca – BA, que inspirou a rede nacional dos centros de defesa e recebeu apoio do Criança Esperança. Previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e criado pela Lei nº 8.242/1991, o Conanda tornou-se o principal órgão de garantia de direitos. Em seu âmbito, governo e sociedade civil definem as diretrizes para a Política Nacional de Promoção, Pro- teção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. São também atribuições do Conanda, entre outras, fiscalizar as ações executadas pelo poder público no que diz respeito ao atendimento da população infanto juvenil e gerir o Fundo Nacional da Criança e do Adolescente (FNCA). Um dos maiores movimentos realizados até então em prol dos direitos das crianças e dos adolescentes, o Pacto pela Infância – iniciativa inspirada pela Cúpula Mundial – contou com a adesão de mais de 100 representantes da sociedade civil organizada e de instituições públicas. Os brasileiros, coordenados por UNICEF, CNBB, OAB, Ministério Público e pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, comemoraram o efeito prático da mobilização: foi realizada a primeira Reunião de Governadores de Estado. No evento, os representantes de cada unidade federativa e do governo federal traçaram planos de ação e definiram parceiros para alcançar seus objetivos – foi quando os agentes de saúde se tornaram “combatentes” contra a mortalidade infantil. Enquanto isso, a Comissão Parlamentar de Inquérito, aberta no ano anterior para investigar o extermínio de meninos que viviam nas ruas, estava em curso no Congresso Nacional. Em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, uma chacina ganhou destaque na mídia: na favela Nova Jerusalém, cinco ado58 lescentes foram assassinados. Baleada na cabeça, uma sobrevivente de 16 anos, dada como morta por seus algozes, sobreviveu e denunciou-os. A jovem contou com apoio de personalidades, inclusive da apresentadora Xuxa, um dos ícones da campanha Criança Esperança, e tornou-se um símbolo da resistência à violência. Reação organizada Em Salvador, 31 entidades criaram o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan (Cedeca – BA), organização não governamental que se propõe defender juridicamente crianças e adolescentes vítimas de violência. Naquele ano, a Bahia ocupava o terceiro lugar em número de extermínios de pessoas nessa faixa etária. No especial Criança Esperança de 1991, estiveram atletas consagrados. Roberto Pupo Moreno, Maurício Gugelmin e Nelson Piquet doaram seus macacões; Ayrton Senna, seu capacete. As relíquias foram objeto de leilão e a renda, destinada à causa. Ao longo do show, a saúde foi o tema-chave, com destaque para a vacinação, o soro caseiro, a desidratação e os cuidados essenciais durante a gravidez. As mensagens do show estavam em sintonia com o que diziam milhares de agentes de saúde espalhados Brasil afora. Reinaldo Bulgarelli Fundador e Coordenador adjunto do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua de 1985 a 1991 “O Criança Esperança surgiu no momento de redemocratização do país. Na época, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, do qual fui um dos fundadores, foi procurado para realizar uma parceria na realização de um programa que mobilizasse a sociedade para a doação de recursos. Víamos ali a oportunidade para também sensibilizar a população para uma nova visão sobre a infância e a adolescência. O programa foi fundamental para conquistarmos avanços na legislação brasileira, para a divulgação de práticas inovadoras e para o fortalecimento do compromisso com os direitos humanos. As empresas também foram se engajando e participando da construção de um futuro melhor para o nosso país. O Criança Esperança passou e passa a mensagem de que é possível se reinventar, de que uma chance pode fazer a diferença na vida de uma pessoa e de que, afinal de contas, todos nós transformamos ao longo desses anos, ao nos juntarmos em torno desse programa. Um país melhor precisa do Criança Esperança.” 59 Foto: Piti Reali 6.:Layout 1 10/4/10 7:30 PM Page 59
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