O PATERNALISMO DO ESTADO E OS CRIMES

Transcrição

O PATERNALISMO DO ESTADO E OS CRIMES
O
PATERNALISMO
DO
ESTADO
E
OS
CRIMES
RELATIVOS
À
PROSTITUIÇÃO
FERNANDA MENEGOTTO SIRONI1
RESUMO
O estudo do tema apresentado neste trabalho tem por objetivo analisar os
delitos relativos à prostituição do Capítulo V do Título VI do Código Penal, para extrair
a motivação da tutela penal destes delitos. Trata-se de paternalismo jurídico ou legítima
proteção penal de bem jurídico? Para isso, partimos da análise da prostituição e de seus
sistemas legais, bem como seu conceito e o conceito de exploração sexual, bem como as
mudanças trazidas pela Lei 12.015/2009. Para responder a indagação proposta será
analisado o bem jurídico tutelado pelos delitos relativos à prostituição, e o paternalismo
jurídico, as razões para a criminalização das condutas por parte do Estado, impondo
restrição de liberdade aos indivíduos.
PALAVRAS-CHAVE: prostituição, exploração sexual, bem jurídico, paternalismo
ABSTRACT
The study of the issue presented in this paper aims to examine the crimes
related to prostitution in Chapter V of Title VI of the Criminal Code, to extract the
motivation of the penal protection of these crimes. This is paternalism legal or
legitimate protection of a criminal and legal? To do so, it proceeds to an analysis of
prostitution and about their legal systems, as well as its concept and the concept of
sexual exploitation, as well as changes introduced by Law 12.015/2009. To answer the
question proposal will be considered the legal interest for offenses relating to
prostitution, and legal paternalism, the reasons for the criminalization of conduct by the
state, imposing restriction of liberty to individuals.
KEYWORDS: prostitution, sexual exploitation, legal asset, paternalism
1
Advogada e atuante em Maringá-PR, especialista em Direito Público pelo Centro Universitário
Maringá-PR (CESUMAR), especialista em Ciência Penais pela Universidade Estadual de Maringá-PR
(UEM) e mestranda em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário Maringá-PR (CESUMAR).
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS. 1.1 Prostituição e
exploração sexual. 1.2 Sistemas legais. 1.2.1 O proibicionismo. 1.2.2 O
regulamentarismo clássico. 1.2.3 O abolicionismo. 2 O PATERNALISMO ESTATAL.
2.1 Conceito de Paternalismo. 2.2 Espécies de Paternalismo. 3 O BEM JURÍDICO E
POSSÍVEIS JUSTIFICAÇÕES DE SUA PROTEÇÃO PELO ESTADO. 3.1 Bem
jurídico. 3.2 Possíveis justificações. 4 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O
PATERNALISMO NOS CRIMES LIGADOS À PROSTITUIÇÃO. 5 CONCLUSÕES
FINAIS. 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
Partindo da premissa de que a prostituição não é crime no Brasil, os
comportamentos descritos no Título VI do Capítulo V do Código Penal brasileiro, que
trata do lenocínio e do tráfico de pessoas para fim de prostituição ou outra forma de
exploração sexual, serão analisados a luz do paternalismo jurídico com o fim de extrair
a verdadeira motivação do legislador ao incriminar estas condutas.
Deixaremos de analisar o tráfico interno e externo de pessoas para fins
sexuais, pois demandaria uma extensa abordagem a respeito da regulamentação
internacional, com base em tratados e convenções. E, ainda, nas condutas de tráfico de
pessoas o bem jurídico tutelado é diverso dos demais tipos penais desse Título, qual seja
a integridade moral.
Já nos delitos de lenocínio o bem jurídico protegido é a liberdade sexual, o
que coloca o Estado em condição diversa quanto à possibilidade ou mesmo, a obrigação
de intervenção na esfera dos indivíduos que estão sob sua tutelar.
A análise do bem jurídico tutelado e do paternalismo, bem como seu
conceito e suas espécies, faz com que se compreenda como cada conduta se relaciona
com a idéia de imposição de comportamento ou restrição de liberdade, que o Estado
pode vir a exercer a seus cidadãos.
Assim, o paternalismo, deve sim alcançar as condutas que atingem os
vulneráveis ou ainda quando há vícios de consentimento, contudo, será que Estado,
pode, na aba do paternalismo, tipificar condutas de terceiros que auxiliam a prostituição,
quando se tratar de pessoas maiores e capazes de consentir?
O ponto chave é a compreensão do alcance do paternalismo, dentro da
dicotomia apresentada nos tipos penais de punir de forma praticamente indistinta
condutas nas quais não há qualquer vício no consentimento e condutas eivadas de
violência, fraude, ou ainda quando se trata de vítima vulnerável.
A intenção aqui é exatamente esta, descobrir até onde o Estado pode se
utilizar do paternalismo para tipificar as condutas relativas à prostituição, já que o
Direito Penal é a ultima ratio. E ainda, qual é a justificativa para a criminalização das
condutas, da forma como se apresentam no Código Penal Brasileiro.
1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A prostituição “é uma fatalidade da vida social, sendo conhecida desde os
mais remotos tempos e nem por isso deixa de ser preocupante, sendo causa de grande
inquietação”.2
Alguns penalistas clássicos, como Nelson Hungria3, afirmavam que a
prostituição é uma "atividade puramente parasitária", que "representa uma grave lesão à
disciplina social. Uma conduta subversiva da organização da vida sexual e incompatível
com a própria ordem econômica". Para este autor o bem jurídico protegido, atinge os
costumes, conferindo a lesão uma esfera coletiva e social, acreditando que o indivíduo,
de forma individual era atingido apenas subsidiariamente.
Atualmente, a prostituição passa por uma nova roupagem seguindo as
mudanças sociais. A prostituição de rua que era dominante no passado, hoje cede lugar
a novas formas que vão desde informes em jornais com a oferta de serviços de
acompanhantes, até o turismo sexual.
1.1 Prostituição e exploração sexual
Dentro do sistema abolicionista, adotado no Brasil, a prostituição não é
considerada crime. Contudo, tanto a prostituição como a exploração sexual são
elementos normativos dos tipos relativos à prostituição, e, portanto, a definição desses
conceitos é necessária para a compreensão do assunto e a análise dos tipos penais.
2
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal, 3° volume: parte especial: dos crimes contra a
propriedade imaterial a dos crimes contra a paz pública. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 187.
3
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal: arts. 250 a 361. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1959. p. 115.
A legislação não apresenta conceitos legais de prostituição e exploração
sexual, sendo necessário recorrer a doutrina para sua conceituação. Assim, a
prostituição para Nucci é “o comércio habitual de atividade sexual”.4 Ou seja, para
configurar a conduta do agente se faz necessária a habitualidade da conduta da vítima.
Para Regis Prado5 a prostituição pode ser conceituada como a habitualidade
de contratos carnais prestados por uma pessoa a indeterminado número de indivíduos.
Assim, o autor acrescenta à habitualidade da prática de atos libidinosos e a característica
da indeterminação do número de pessoas para quem os serviços são prestados.
As principais características da prostituição são a habitualidade e a
prestação de serviços a um número indeterminado de pessoas. Existe ainda uma terceira
característica: a venalidade.
É patente que o lucro é o que promove e facilita a prostituição, contudo,
existe uma divergência doutrinária a respeito do assunto. A prostituição geralmente é
exercida com a finalidade venal, mas não é este um requisito imprescindível como a
habitualidade e o número indeterminado de pessoas. Na prática, porém, a prostituição é
exercida com objetivo de lucro o que torna a discussão meramente acadêmica.6
A prostituição é entendida como uma forma de exploração sexual7, contudo,
a exploração sexual tem um sentido mais amplo, englobando outras condutas.
Para Nucci8 a “exploração sexual é gênero do qual se extrai a prostituição”.
Ainda esclarece o autor que exploração sexual é expressão ligada a tirar proveito de
alguém, em detrimento desta pessoa, valendo-se, primordialmente de fraude ou ardil.
Para María Luisa Maqueda Abreu9, a exploração sexual é uma prática,
graças a qual, uma pessoa obtém ou prazer sexual ou benefícios financeiros ou
benefícios de outro tipo mediante a utilização abusiva de uma pessoa.
4
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 10ª. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010, p. 944.
5
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro - volume 02: parte especial. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010, p. 699.
6
ESTRELLA, Oscar Alberto. De los delitos sexuales. Buenos Aires: Hammurabi, 2005, p. 179/180.
7
O legislador havia optado por definir o termo exploração sexual no vetado artigo 234-C: “Para os fins
deste título, ocorre exploração sexual sempre que alguém for vitimam dos crimes nele tipificados”. Caso
não tivesse sido vetado, tal artigo não se limitaria aos crimes relativos à prostituição, mas ganharia
alcance, sendo aplicável a qualquer infração penal sexual. Para Guilherme Nucci “criava-se um conceito
delimitado, mas que esvaziaria o elemento normativo do tipo de certos crimes, como por exemplo, do art.
229”.
8
NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit., p. 946.
9
ABREU, María Luisa Maqueda. Prositución, feminismos y Derecho Penal. Granada: Cotnares. 2009, p.
115.
A exploração se impõe aquele que é mais fraco e dificilmente ousa buscar
novas possibilidades, pois porque não há alternativas próximas diferentes daquelas às
quais estão submetidos.
1.2 Sistemas legais
A prostituição embora seja conduta atípica, tem sido alvo de tentativas de
controle e regulamentação. Baseando-se em três sistemas legais, diversos arranjos legais
têm sido colocados em prática. São eles: o proibicionismo, o regulamentarismo clássico
e o abolicionismo.
Por meio desses sistemas podemos situar a prostituição e conhecer qual é o
tratamento que ela pode receber.
1.2.1
O proibicionismo
A legislação dos países que adotam o sistema proibicionista considera ilegal
o ato de se prostituir. Para Regis Prado10 este sistema considera a prostituição um crime,
proibindo seu exercício. Assim, todas as pessoas que participam do trabalho da
prostituta, como clientes, agenciadores e a própria prostituta, além de outros, estão
cometendo ato ilícito, proibido pela legislação.
Gisele Mendes de Carvalho11 explica que o proibicionismo criminaliza “a
prostituição em si mesma, proibindo essa prática inclusive entre adultos”.
A crítica que se faz a este sistema é que, segundo Regis Prado 12 “sua
adoção, por alguns países, não surtiu o efeito almejado pela legislação penal, já que a
prostituição é motivada por fatores complexos, muitas vezes por graves problemas
sociais, não constituindo causa obstativa da sua prática o simples fato de ser
considerada delito”.
10
PRADO, Luiz Regis. Op. Cit., p. 699.
CARVALHO, Gisele Mendes. Delitos relativos a prostituição no Código Penal Brasileiro: Proteção da
dignidade humana ou paternalismo jurídico?, Ciências Penais, Vol. 12, jan-jun. 2010, p. 195.
12
PRADO, Luiz Regis. Op. Cit., p. 699.
11
O proibicionismo é o mais radical dos sistemas e por essa razão é adotado
por pouquíssimos países atualmente13, talvez pela dificuldade de fiscalização e de
aplicação de punição devido à clandestinidade.
Ressalta-se que tanto a prostituta quanto o dono de casa de prostituição e até
o cliente é punível pela lei dentre deste sistema, pois é ilegal prostituir-se, ou seja, o
Estado decide o que a pessoa pode ou não fazer com seu corpo.
1.2.2
O regulamentarismo clássico
Alguns países possuem uma legislação que reconhece e disciplina o trabalho
das prostitutas. Nesses países o sistema adotado é o regulamentarista. Por este sistema,
o trabalho das profissionais do sexo é plenamente reconhecido bem como os contratos
de trabalho que assumem. Os contratos geram todos os efeitos inerentes aos contratos
de trabalho convencionais de prestação de serviços profissionais. Esse modelo é adotado
em sociedades como a Alemanha e Holanda.14
Explica Regis Prado15 que “o sistema da regulamentação tem por escopo
objetivos higiênicos, a fim de prevenir a disseminação de doenças venéreas e também a
ordem e a moral públicas. Por esse sistema a prostituição fica restrita a certas áreas da
cidade, geralmente distantes do centro, onde as mulheres sujeitam-se a um conjunto de
obrigações como a de submeterem-se periodicamente a exames médicos”.
Para
as
profissionais,
há
vantagens
e
desvantagens.
Algumas
regulamentações são muito conservadoras, trazendo exigências descabidas, como a de
que a mulher se submeta a exames periódicos ou a de só exerça a atividade em locais
determinados. Tais limitações não são exigência para outras profissões. Entre as
vantagens, percebemos a possibilidade de efetuar um contrato de trabalho, participar
dos programas de seguridade social, inclusive aposentadoria, gozar de garantias legais,
entre outros.
1.2.3
13
O abolicionismo
CARVALHO, Gisele Mendes. Op. Cit., p. 195. Segundo Gisele Manedes de Carvalho este é o modelo
adotado em alguns estados Norte-americanos e na Suécia.
14
O Brasil já foi regulamentarista. As prostitutas eram fichadas nas delegacias.
15
PRADO, Luiz Regis. Op. Cit., p. 698.
No abolicionismo, a prostituta é considerada uma vítima. Ela pratica a
atividade por conta da coação de um terceiro. A legislação fundada no modelo
abolicionista pune somente o terceiro, agenciador ou explorador, que obtém lucros
explorando a atividade sexual das prostitutas.
Para Regis Prado16 “o sistema abolicionista apregoa que, por ser a
prostituição uma atividade não criminosa, não deve o Estado interferir no seu
exercício”.
No Brasil, desde 1942, quando entrou em vigor Código Penal, até hoje,
vigora o abolicionismo. Segundo Regis Prado17 o legislador preferiu punir o proxeneta,
o rufião e o traficante de mulheres, mas não a prostituição propriamente dita.
No sistema do abolicionismo não há qualquer proibição quanto à
negociação do sexo, contudo, o empresário ou terceiro que profissionaliza o trabalho da
prostituta e dele se favorece é quem está na ilegalidade.
2
O PATERNALISMO ESTATAL
A premissa básica para a compreensão do assunto é o fato de que a
prostituição em si não é crime, sendo que, somente as condutas de terceiros que
participam da prostituição voluntária de alguém tem suas condutas descritas como
crime.
Os comportamentos descritos no Título VI do Capítulo V do Código Penal
brasileiro18, que trata do lenocínio e do tráfico de pessoas para fins de prostituição ou
outra forma de exploração sexual, são todos comportamentos de terceiros que de
alguma forma induzem, auxiliam, facilitam, ou promovem a prostituição alheia.
A não criminalização da prostituição, mas a opção de criminalizar condutas
de terceiros que dela participam merece atenção e estudo, para que se compreenda qual
é a verdadeira intenção do legislador ao tipificar e incriminar essas condutas.
16
PRADO, Luiz Regis. Op. Cit., p. 699.
PRADO, Luiz Regis. Op. Cit., p. 699.
18
Este trabalho não abarcará as condutas de tráfico interno e externo de pessoas para fins sexuais, pois
demandaria uma extensa abordagem a respeito da regulamentação internacional, com base em tratados e
convenções, sem falar que nas condutas de tráfico de pessoas o bem jurídico tutelado é diverso dos
demais tipos penais desse Título, qual seja a integridade moral.
17
Ao criminalizar as condutas de “mediação para servir a lascívia de outrem”
(art. 227, do CP), “favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual”
(art. 228, do CP), “casa de prostituição” (art. 229, do CP) e “rufianismo” (art. 230, do
CP), o legislador acaba impondo uma restrição à liberdade sexual do cidadão, para
proteger ele próprio das consequências de suas atitudes. Na verdade ao tipificar essas
condutas, o legislador tenta impedir a prostituição através da tipificação da conduta de
quem auxilia a prostituta ou ainda, impedindo que ela tenha um local para exercer sua
atividade.
A escolha do Estado de exercer determinadas restrições a liberdade de seus
cidadãos para protegê-los deles mesmos é uma forma de expressar o paternalismo.
O paternalismo é conceito complexo com várias classificações que precisa
ser compreendido, ainda que de forma não aprofundada, para que se consiga
compreender e até mesmo criticar a opção do Estado em criminalizar ou impor
determinadas condutas aos indivíduos.
Conforme a teoria clássica de Gerald Dworkin, citado por Gisele Mendes de
Carvalho19, um comportamento paternalista, em sentido amplo, é a interferência na
liberdade de ação de uma pessoa, justificada por razões que se referem exclusivamente
ao bem estar, à felicidade, às necessidades, aos interesses ou aos valores da pessoa
coagida.
Assim, o Estado promove restrições aos seus para assegurar o seu próprio
bem, ou para proteger determinado bem jurídico.
2.1 Conceito de Paternalismo
O conceito de paternalismo já foi apresentado e está diretamente
relacionado a idéia de que a interferência na liberdade de ação de uma pessoa é
justificada por razões de bem estar, felicidade, necessidade, interesse ou valores da
pessoa coagida, conforme já citado.
O entendimento de Feinberg pode sugerir que o Estado esteja para os
cidadãos assim como um pai está para seus filhos, e que adultos capazes possam
licitamente ser tratados como se fossem crianças. Já para Gerald Dworkin paternalismo
19
CARVALHO, Gisele Mendes de. Op. Cit., p. 179/180.
é "la interferencia en la libertad de acción de una persona justificada por razones que
se refieren exclusivamente al bienestar, al bien, a la felicidad, a las necesidades, a los
intereses o a los valores de la persona coaccionada.
E, finalmente, segundo Miguel A. Ramiro Avilés: el paternalismo jurídico
se desarolla a través de normas jurídicas y políticas públicas que prohíben, hacen
obrigatorio, promueven o aconsejan la realización u omisión de un comportamiento,
que no daña a terceras personas, por el bien o para evitar el daño de la persona cuya
libertad se interfiere”.20
Segundo Gisele Mendes de Carvalho21, "de modo geral, portanto, é possível
afirmar que o paternalismo aparece sempre que se adote uma medida de limitação da
autonomia pessoal de alguém com o fim de protegê-lo de um mal, isto é, de algo que o
sujeito paternalista considera prejudicial ao sujeito cuja liberdade é limitada, de acordo
com o seu próprio ponto de vista”.22
Como características do paternalismo, extraídas do próprio conceito,
podemos apontar: “(1) a intervenção na liberdade de seleção de alguém; (2) quem
interfere quer o bem da pessoa que sofreu a interferência; (3) aquele que interfere age
contra a vontade do suposto beneficiado”.23
Assim, duas são as partes da relação paternalista. A primeira é aquela que
age paternalisticamente e a segunda é aquela que tem sua liberdade restringida pela ação
paternalista. O que age de forma paternalística assim o faz porque deseja
exclusivamente o bem daquele que tem sua liberdade limitada, o que se busca é garantir
a obtenção de um benefício ou a evitação de um prejuízo.24
Já o paternalismo penal, consiste na coerção penal do indivíduo objetivando
a sua própria proteção. “O paternalismo por meio de normas penais implica em coerção,
mas nem todos os comportamentos paternalistas são coercitivos. No famoso exemplo do
marido que, ao conhecer a tendência suicida da esposa, esconde suas pílulas de dormir
20
RODRIGUES, Thaís de Camargo. Paternalismo legal e crimes contra os costumes. Disponível em:
http://www.saraivajur.net/menuEsquerdo/doutrinaArtigosDetalhe.aspx?Doutrina=1012, acessado em 20
de maio de 2011.
21
CARVALHO, Gisele Mendes de. Op. Cit., p. 180.
22
CARVALHO, Gisele Mendes de. Op. Cit., p. 180. Do ponto de vista da Filosofia moral, o termo,
'paternalismo' é empregado especialmente com o fim de aludir a uma atuação que opera uma restrição da
autonomia dos indivíduos. Contudo, essa limitação da liberdade individual não acontece de forma
injustificada, mas se fundamenta precisamente na promoção do bem do sujeito cuja autonomia é
restringida.
23
MARTINELLI, João Paulo Orsini. Op. Cit., 02.
24
ARCHARD, David. Paternalism defined. in Analysis, vol. 50, n° 01, Janeiro de 1990. p. 37.
para que ela não as encontre, temos uma situação em que houve restrição de liberdade
sem coerção”.25
O paternalismo acontece quando a liberdade de alguém é restringida para o
próprio bem da pessoa que teve a sua liberdade limitada. Resta saber quais são suas
espécies para poder classificar e entender a atitude do Estado que elege e tipifica as
condutas de quem de alguma forma ajuda à prostituta.
2.2 Espécies de Paternalismo
Várias são as classificações do paternalismo. Contudo, algumas são as mais
importantes dentro da compreensão do paternalismo sob a ótica jurídica e para analisar
os crimes relativos à prostituição.26
Inicialmente, o paternalismo pode ser classificado como positivo ou
negativo. O paternalismo positivo, segundo Gisele Mendes de Carvalho 27 é “quando a
intervenção beneficente busca promover o bem do sujeito protegido”. Já o paternalismo
negativo se manifesta “quando o objetivo da medida paternalista não é promover o bem,
mas apenas impedir a causação de um dano”.
Existem também outras classificações das normas paternalísticas.
O paternalismo será débil ou leve quando a proteção se direcionar a pessoas
mais vulneráveis. Heloisa Estellita28 explica que o paternalismo leve é o mesmo que o
não censurável e “consiste em defender pessoas relativamente impotentes ou
25
MARTINELLI, João Paulo Orsini. Paternalismo na lei de drogas. Revista das Liberdades. IBCCRIM.
Disponível
em
http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=15,
acessado
em 20 de maio de 2011, p. 02.
26
RODRIGUES, Thaís de Camargo. Paternalismo legal e crimes contra os costumes. Disponível em:
http://www.saraivajur.net/menuEsquerdo/doutrinaArtigosDetalhe.aspx?Doutrina=1012, acessado em 20
de maio de 2011. Feinberg faz a seguinte divisão quando analisa o paternalismo: 1) Paternalismo
presumivelmente censurável: Consiste em tratar adultos como se fossem crianças, ou crianças mais
velhas como se fossem mais novas, forçando-os a agir de determinada maneira ou a abster-se de certa
conduta. Este tipo de paternalismo pode apresentar-se da seguinte forma: a) Paternalismo benevolente: É
aquele para o próprio bem da pessoa, não importando sua opinião ou vontade. (o paternalismo estudado
por Feinberg no livro Harm to Self, e o escopo do capítulo Legal Paternalism é analisar se esse tipo de
paternalismo deve ou não ser censurável). b) Paternalismo não benevolente: É aquele que visa o benefício
de terceiros, independente da vontade dos destinatários da medida paternalista. (Esse tipo de paternalismo
geralmente é censurável). 2) Paternalismo presumivelmente não censurável: Consiste em defender
pessoas desamparadas ou vulneráveis de perigo externo, incluindo danos provocados por terceiros quando
o protegido não consentiu voluntariamente ao risco.
27
CARVALHO, Gisele Mendes de. Op. Cit., p. 180/181.
28
ESTELLlTA, Heloisa. Paternalismo, Moralismo e Direito Penal: Alguns crimes suspeitos em nosso
Direito Positivo, Boletim IBCCRIM, out/2007, p.17.
desamparadas ou vulneráveis de perigos externos, incluindo danos provenientes de
outras pessoas quando as partes protegidas não consentiram voluntariamente com o
risco, e fazendo-o de maneira análoga, em motivação e vigilância, àquilo que os pais
fazem para proteger seus filhos”.
O paternalismo leve ou débil é perfeitamente aceitável, pois protege os
vulneráveis, já que seu consentimento está viciado e não é genuíno. Aqui o estado
presta a proteção exatamente aos que necessitam da sua proteção.
Nesses casos o sujeito não possui condições suficientes para agir por si,
necessitando de amparo do Estado para fazer escolhas melhores, que não tragam
prejuízo ou que possam lhe proporcionar benefícios.
A vulnerabilidade pode manifestar-se de diversas formas. A lei deve prever
medidas que busquem o equilíbrio nas relações que envolvam vulneráveis.
Não restam dúvidas quanto à legitimidade da tutela penal adotada pelo
Estado no tocante aos delitos relativos à prostituição no caso de pessoas vulneráveis,
sejam elas menores de 18 anos ou indivíduos que não estejam em pleno gozo das suas
faculdades mentais. São exemplos de paternalismo débil ou leve e justificável por parte
do Estado as condutas típicas descritas no artigo 227, § 1º e artigo 230, §1º, ambos do
Código Penal.
Ainda, há legitimidade estatal em assumir comportamentos paternalistas que
tipificam condutas relativas à prostituição quando os crimes são cometidos contra
vítimas maiores de 18 anos e no pleno gozo de suas faculdades mentais, mas mediante
emprego de violência, grave ameaça ou fraude. Nesses casos, ou não há consentimento,
ou o consentimento está viciado, como nos tipos penais existentes no artigo 227, § 2º;
artigo 228, § 2º; e artigo 230, § 2º, do Código Penal.
No caso dos artigos 227, § 1º e § 2º; artigo 228, § 2º e artigo 230, §1º e § 2º,
do Código Penal, o Estado está cumprindo o seu papel de proteção em relação a estas
pessoas por meio da tutela penal, protegendo pessoas cujo consentimento é irrelevante,
tendo em vista ter uma validade relativa em razão de sua vulnerabilidade.
Nesses casos não há sequer discussão sobre a necessidade do Estado atuar
com paternalismo. Para melhorar a tutela dos vulneráveis, editou-se a Lei
12.015/200929, que aumentou a proteção estatal criminalizando condutas praticadas
contra os vulneráveis.
29
CARVALHO, Gisele Mendes de. Op. Cit., p. 189. "Entre as principais alterações introduzidas pela Lei
12.015/2009, está a inserção de um Capítulo dedicado aos crimes sexuais contra os vulneráveis (Capítulo
Ainda, dentro da espécie intensidade o paternalismo pode ser duro ou forte
(ou paternalismo presumivelmente censurável, dentro da divisão elaborada por Joel
Feinberg, citado por Heloisa Estellita30) que é aquele que “consiste em tratar adultos
como se fossem crianças, ou crianças mais velhas como se fossem mais novas,
forçando-os a agir ou deixar de agir de certas maneiras, seja: a) paternalismo
benevolente - para seu próprio bem, não importando seus próprios desejos na matéria
(...) ou b) paternalismo não benevolente – para o bem de outras partes, não importando
seus próprios desejos na matéria (...)”.
O paternalismo duro ou forte, para Gisele Mendes de Carvalho31,
“pressupõe que as medidas com o fim de beneficiar ou de evitar o dano que uma pessoa
possa causar-se a si mesma se justifiquem inclusive quando as decisões ou ações
arriscadas ou danosas praticadas por ela sejam perfeitamente informadas, voluntárias e
autônomas. Assim, o paternalismo forte não depende de considerações acerca da
maioridade, saúde mental ou autonomia do sujeito para consentir validamente: desde
esta perspectiva, uma medida com o propósito de proteger o indivíduo legitima-se
independentemente de tais considerações, e mesmo que para isso seja necessário aplicála contra a sua vontade. Diferentemente do paternalismo leve, essa espécie de
paternalismo é exercida sobre sujeitos capazes e autônomos, embora a danosidade dos
atos a serem evitados só atinjam de forma significativa a essas próprias pessoas”.
É exatamente aqui que reside a questão desse trabalho. Saber se o
paternalismo duro ou forte deve ser censurável ou não por impor restrições e limitações
à liberdade de pessoas que estejam no pleno gozo de suas faculdades mentais e sejam
maiores de idade, não submetidas a qualquer forma de constrangimento, violência,
grave ameaça ou fraude, que consintam livremente na participação de terceiros.
Outra classificação do paternalismo é puro ou direto e impuro ou indireto.
Dworkin classifica o paternalismo em puro e impuro. O paternalismo puro pode ser
11 do Título VI), acabando assim o legislador com a antiga presunção de violência, que constava do
revogado art. 224, CP. De acordo com a nova configuração dos tipos, o estupro (art. 217-A) , a corrupção
(arts. 218 e 218-A) e o favorecimento da prostituição (art. 218-B) de sujeitos menores de 14 anos (ou de
18 anos, no caso do art. 218-B), bem como de indivíduos que, em razão de enfermidade ou doença
mental, não tenham o necessário discernimento para prática do ato sexual, configuram delitos bem mais
graves do que os similares praticados contra vítima maiores de idade e no pleno gozo de suas faculdades
mentais. As alterações legislativas buscam, portanto, cumprir a importante missão de reprimir a pedofilia
e outras práticas relacionadas à exploração sexual de menores e incapazes no Brasil, na mesma linha já
seguida pela Lei 11.829/2008, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), com o
fim de combater a pornografia infanto-juvenil”.
30
ESTELLlTA, Heloisa. Op. Cit., p.17.
31
CARVALHO, Gisele Mendes de. Op. Cit., p. 189.
definido como a restrição da liberdade de um grupo de pessoas que coincide com o
mesmo grupo de beneficiados, ou seja, é quando a limitação da liberdade de alguém é
exercida sobre ele mesmo. Já o paternalismo impuro é a falta de coincidência entre os
grupos de pessoas atingidas pela restrição e de pessoas para quem se busca um bem, ou
seja, nesse caso a sanção será aplicada ao terceiro visando o bem-estar do indivíduo que
motiva a intervenção paternalista.
Assim podemos elencar os seguintes exemplos: “proibir a fabricação de
cigarros, para proteger a saúde dos fumantes, é caso de paternalismo impuro, pois os
fabricantes teriam sua atividade restringida para ajudar os consumidores do tabaco;
obrigar o uso de cinto de segurança é exemplo de paternalismo puro, pois essa restrição
de liberdade tem por fim o bem das próprias pessoas obrigadas a cumprirem a
determinação”.32
Dentro das espécies de paternalismo podemos classificar as demais condutas
relativas à prostituição como “paternalismo negativo (ao impedir a prostituta de causar
um dano moral a si mesma), forte (pois, trata-se de sujeitos plenamente capazes e
cientes de sua decisão) e indireto (vez que a prostituição, em si mesma, não é delito,
punindo-se tão somente o comportamento do terceiro que promove ou facilita)”.33
Assim resta saber qual é a justificação apresentada para a tipificação dos
crimes relativos à prostituição quando o consentimento é livre e exercido por pessoas
maiores e capazes.
3
O BEM JURÍDICO E AS POSSÍVEIS JUSTIFICAÇÕES DE SUA
PROTEÇÃO PELO ESTADO
A premissa básica, então, consiste no fato de que prostituição não é crime,
pois o Brasil adota o abolicionismo. É claro que a escolha do sistema que rege a
prostituição dentro das fronteiras de determinado país é uma decisão que deriva da
política criminal.
32
33
MARTINELLI, João Paulo Orsini. Op. Cit., p.02.
CARVALHO, Gisele Mendes de. Op. Cit., p. 189.
É por motivo de política criminal que os bens ou direitos são eleitos para ser
tutelados jurídica e penalmente, bem como os caminhos para efetivar tal tutela, o que
implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos.34
Assim, é por questão de Política Criminal que a prostituição é livre em
nosso país, sendo a sua prática permitida. Partindo dessa idéia, por certo deveria existir
algum lugar onde ela pudesse ser praticada sem obstáculos.
Para Nucci35 a prostituição não é punida e se dissemina na sociedade,
contudo, ainda subsiste o tipo penal voltado a punir o indivíduo que contribui com a
prostituição alheia.
A prostituição é livre no nosso país, tanto que hoje ela aparece de forma,
muitas vezes até escachada, demonstrando que a própria sociedade vê a sua prática de
forma diversa do que acontecia antigamente.36
Embora a prostituição seja autorizada no Brasil, o legislador entendeu, pelos
mesmos critérios de política criminal, punir quem de alguma forma a favorece, criando
tipos específicos para punir essas condutas.
Para compreender esses tipos penais importa então, saber qual é o bem
jurídico realmente protegido pelos crimes relativos à prostituição para compreender se o
paternalismo do Estado, ao eleger essas condutas como delituosas, é justificável ou não.
3.1 Bem jurídico
Conforma já salientado os crimes relacionados à prostituição estão
elencados nos artigos 227 a 23l-A do Código Penal, dentro do Capítulo V, do Título VI,
sob o nome de crimes contra a dignidade sexual.
A rubrica dos delitos, crimes contra a dignidade sexual, foi dada pela
alteração promovida pela Lei 12.015/2009. Antes dessa alteração estes crimes eram
34
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte
Geral. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 132.
35
NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit., p. 944.
36
Trecho de acórdão do Tribunal de Justiça de Goiás, cuidando do tema: “Ademais, vejo nisso tudo um
exagero descomunal, quando se lê nos jornais de circulação diária as ofertas das chamadas
„acompanhantes‟ e até mesmo „garotos de programa‟. Nas recheadas páginas jornalísticas deparamo-nos
com a descarada mercancia do corpo humano, com a oferta se fazendo com o aceite de pagamento com
cheque pré-datado, cartão de crédito e, ironicamente, até em troca de vale refeição. E tudo isso com
endereço e telefone dos prostituídos, sem que o aparelho policial mova uma palha sequer para conter tais
abusos, ou apologias” (HC 21580-0/217, 1ª C. rel. Paulo Teles. 04.09.2003, empate na votação, RDPPP
25/04, p.101).
intitulados como crimes contra os costumes, demonstrando o ranço característico de um
código datado de 1940.
Embora possa parecer que a mudança foi apenas uma adaptação de
nomenclatura, por trás dela existe a problemática que envolve o bem jurídico tutelado
por essas condutas. Antes se protegia a moralidade sexual e o pudor público, ao passo
que, agora a proteção recai em outros bens jurídicos como a liberdade sexual e a
integridade psíquica e física da vítima.37
Com a alteração legislativa, ficou evidente que o bem jurídico protegido
pelo legislador nos crimes de lenocínio é a dignidade sexual da prostituta, tanto que o
legislador incrimina condutas tendentes a favorecer o ingresso ou a permanência desta
na prostituição.
Para Nucci38, a “dignidade fornece a noção de decência, compostura,
respeitabilidade, enfim, algo vinculado à honra. A sua associação ao termo sexual
insere-a no contexto dos atos tendentes à satisfação da sensualidade ou da volúpia.
Considerando-se o direito à intimidade, à vida privada e à honra, constitucionalmente
assegurados, além do que a atividade sexual é, não somente um prazer material, mas
uma necessidade fisiológica para muitos, possui pertinência a tu tela penal da dignidade
sexual. Em outros termos, busca-se proteger a respeitabilidade do ser humano em
matéria sexual, garantindo-lhe a liberdade de escolha e opção nesse cenário, sem
qualquer forma de exploração, especialmente quando envolver formas de violência. Do
mesmo modo, volta-se particular atenção ao desenvolvimento sexual do menor de 18
anos e, com maior zelo ainda, do menor de 14 anos. A dignidade da pessoa humana
envolve, por óbvio, a dignidade sexual”.
Segundo a doutrina espanhola e a jurisprudência há algum tempo criou-se
um consenso no sentido de que o bem jurídico protegido nos delitos relativos à
prostituição é a liberdade sexual39. Para María Luisa Maqueda Abreu trata-se de
proteger a liberdade sexual e com ela a dignidade pessoal.40
Sendo o bem jurídico tutelado a dignidade sexual, por certo é a própria
pessoa quem possui condições para julgar aquilo que é digno à sua vida, levando em
conta a definição de exploração.
37
CARVALHO, Gisele Mendes de. Op. Cit., p. 189.
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei 12.015, de 7 de
agosto de 2009. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 14.
39
ABREU, María Luisa Maqueda. El tráfico sexual de personas. Valencia: Tirant lo blanch, 2001, p.34.
40
ABREU, María Luisa Maqueda. Op. Cit., p. 34.
38
Alguns entendem que a proteção vai além da dignidade sexual, sendo o bem
jurídico protegido nos crimes relativos à prostituição, a dignidade da pessoa humana,
direito constitucionalmente garantido e indisponível.
A dignidade é um valor inerente a todo e qualquer ser humano, e portanto
deve ter seus valores respeitados por todos. Explica Rizzatto Nunes41 que a “pessoa
humana, pela condição natural de ser, com sua inteligência e possibilidade de exercício
de sua liberdade, se destaca na natureza e se diferencia do ser irracional. Essas
características expressam um valor e fazem do homem não mais um mero existir, pois
este domínio sobre a própria vida, sua superação, é a raiz da dignidade humana”.
Conceituar dignidade humana não é tarefa fácil, mas esse princípio
fundamental está diretamente vinculado a idéia de liberdade. Assim, somente a
liberdade pode garantir a dignidade. A dignidade humana deve analisada de maneira
abrangente, abarcando a noção de todas as liberdades públicas asseguradas pelo
ordenamento jurídico, incluindo a liberdade sexual, pois todos os direitos ditos
fundamentais encontram seu alicerce na noção de dignidade humana.
Para Capez42, “a tutela da dignidade sexual, portanto, deflue do princípio da
dignidade humana, que se irradia sobre todo o sistema jurídico e possui inúmeros
significados e incidências. Isto porque o valor à vida humana, como pedra angular do
ordenamento jurídico, deve nortear a atuação do intérprete e aplicador do direito,
qualquer que seja o ramo da ciência onde se deva possibilitar a concretização desse
ideal no processo judicial. Na realidade, o princípio da dignidade humana como valor
moral e espiritual inerente à pessoa, não foi criado nem construído pela ciência,
constituindo “um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de
modo que somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos
direitos fundamentais”.
Para alguns autores, como a dignidade sexual faz parte da dignidade
humana e que como nos crimes acessórios a prostituição o que está em jogo não é a
liberdade sexual e sim a dignidade humana, pois vender sua escolha sexual, torna o ser
humano mera coisa, objeto de mercancia. Assim o bem jurídico tutelado não é a
41
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo: Saraiva, 2002,
p.
49/50.
Disponível
em
http://capez.taisei.com.br/capezfinal/index.php?secao=27&subsecao=0&con_id=5647, acessado em 20 de
maio de 2011.
42
CAPEZ, Fernado. Op. Cit. p, 01.
liberdade sexual e sim a integridade moral do indivíduo que se prostitui.43
Contudo, mesmo para quem considera o bem jurídico protegido, a
integridade moral, leva em conta que nenhum direito é absoluto, e que se tratando de
direitos fundamentais sempre deve existir a ponderação entre os bens jurídicos em
conflito de acordo com a proporcionalidade. Para Gisele Mendes de Carvalho44 a “tutela
deve admitir diferentes matizes ou graduações de acordo com a constatação, no caso
concreto, do maior ou do menor alcance do exercício da autonomia individual por parte
do indivíduo que figura como vítima desses delitos.”
Assim me parece que independente do bem jurídico, seja ele a integridade
moral ou ainda a liberdade sexual, a ponderação deve existir. Nesse caso temos que
ponderar o direito à dignidade humana e o direito a liberdade sexual, sendo que a
liberdade sexual também está incluída na dignidade humana.
Para Capez, a “tutela da dignidade sexual, no caso, esta diretamente ligada à
liberdade de autodeterminação sexual da vítima, à sua preservação no aspecto
psicológico, moral e físico, de forma a manter íntegra a sua personalidade. Portanto, é a
sua liberdade sexual, sua integridade física, sua vida ou sua honra que estão sendo
ofendidas”.45
Contudo, existindo o consentimento livre, de pessoa maior e capaz, a
liberdade sexual ser levada em consideração, pois o bem jurídico protegido pelo
legislador nos crimes de lenocínio é a dignidade sexual, em sentido amplo, englobando
a integridade e a autonomia sexual, que só pode ser exercida e verificada tendo em vista
a liberdade.
3.2 Possíveis justificações
O paternalismo, como intervenção no Estado na liberdade de seus membros
é difícil de ser justificado quando o consentimento é livre e exercido por pessoas
maiores, capazes.
Observa-se que John Stuart Mill, no século XIX, entendia que a invasão da
liberdade individual não se justificava mesmo no caso de prevenir algum dano físico ou
43
CARVALHO, Gisele Mendes de. Op. Cit., p 205.
CARVALHO, Gisele Mendes de. Op. Cit., p 202.
45
CAPEZ, Fernado. Op. Cit. p, 01.
44
moral. Para o liberal a intervenção do estado seria admissível apenas quando atingisse
terceira pessoa. Para Mill a única finalidade que justifica, de pleno direito, o exercício
de limitações a liberdade sobre um membro de uma comunidade civilizada, contra sua
vontade é evitar que se prejudiquem terceiros. Seu próprio bem físico ou moral, não é
justificação suficiente. Ninguém pode ser obrigado a realizar determinados atos somente
porque é melhor para ele, ou porque na opinião dos outros é o mais acertado.46
Porém, autores contemporâneos como Feinberg, Dworkin ou Avilés,
embora com reservas, admitem o uso moderado do paternalismo. E outros estudiosos da
atualidade, entretanto, tecem severas críticas às normas paternalistas, como veremos a
seguir.
A aplicação de medidas paternalistas a maiores capazes é muito difícil de
ser justificada, e, portanto, duramente criticada. Para seus opositores, há flagrante
violação da autonomia da vontade. Contudo, quando o destinatário é um vulnerável, a
medida torna-se aceitável.47
Inicialmente, cumpre ressaltar que nos casos que envolvam vulneráveis, não
restam dúvidas quanto à legitimidade da tutela penal adotada pelo Estado no tocante aos
delitos relativos à prostituição. Assim, seja para os menores de 18 anos ou indivíduos
que não estejam em pleno gozo das suas faculdades mentais, ou ainda, quando os
crimes são cometidos contra vítimas maiores de 18 anos e no pleno gozo de suas
faculdades mentais, mas mediante emprego de violência, grave ameaça ou fraude, o
paternalismo é classificado como débil ou leve e é justificável por parte do Estado.
Segundo Avilés48, a aplicação de normas jurídicas ou políticas públicas
paternalistas justifica-se na incapacidade da pessoa no momento de tomar suas decisões.
Todavia, embora seja uma condição necessária, o juízo de incapacidade não é
suficiente. De outra forma, todas as pessoas que se comportassem de maneira irracional,
desinformada ou emotiva poderiam estar sujeitas a uma medida paternalista.
46
RODRIGUES, Thaís de Camargo. Op. Cit., p. 01. “la única finalidad por la cual el poder puede, com
pleno derecho, ser ejercido sobre un miembro de una comunidad civilizada contra su voluntad, es evitar
que perjudique a los demás. Su proprio bien, físico o moral, no es justificación suficiente. Nadie puede
ser obligado justificadamente a realizar o no realizar determinados actos, porque eso fuera mejor para
él, porque le haría feliz, porque, en opinión de los demás, hacerlo sería más acertado o más justo”.
47
RODRIGUES, Thaís de Camargo. Op. Cit., p. 01.
48
RODRIGUES, Thaís de Camargo. Op. Cit., p. 01. Para o autor "El respeto de la libertad de las
personas y de su autonomía supone que todas tengan reconocido el derecho a escoger libremente entre las
distintas alternativas que se le ofrecen y supone, además, que quepa la posibilidad de errar, de equivocarse en su elección, de adoptar modos de vida diferentes de los normales".
A criminalização das condutas relativas à prostituição, nos casos de maiores
de 18 anos, capazes e com consentimento livre com base no paternalismo jurídico, vem
sendo discutida, encontrando opiniões divergentes.
Em primeira análise, impor o paternalismo tipificando as condutas relativas
à prostituição, parece injustificável dentro de um Estado de Direito que tenha por base a
democracia.
Nos crimes relativos à prostituição, elencados nos artigos 227 a 230 do
Código Penal, se o tipo penal não exige violência ou grave ameaça contra a vítima, sua
vulnerabilidade é a única explicação para a tutela da dignidade sexual. Nesses casos, a
norma penal quer impedir a exploração da vulnerabilidade mesmo que haja
consentimento no exercício da prostituição.
A questão que se apresenta, então é, se não há vício de consentimento e no
caso de pessoas maiores e capazes, a vulnerabilidade só pode derivar da imposição da
prática da prostituição pelas condições nas quais a prostituta se encontra. Assim, a
vulnerabilidade nos casos de maiores de 18 anos e capazes e livres no consentimento só
pode estar ligada a situações de anormalidade ou fragilidade.
Na verdade, a norma paternalista vai de encontro à vontade em estado de
vulnerabilidade para impor a vontade real do ofendido caso estivesse em situação de
escolher em condições normais. Por exemplo, se uma prostituta tivesse boas condições
econômicas, provavelmente não estaria vendendo o próprio corpo e isso justificaria a
punição de quem a explorasse.49
O ponto chave está na definição do limite entre vontade consciente e
vontade induzida pela vulnerabilidade que a situação social impõe à prostituta. O núcleo
de uma escolha livre é a autonomia, que inexiste nas situações em que o indivíduo está
sob coação ou engano, apresenta problemas ligados ao desenvolvimento intelectual ou
se encontra vulnerável.
Contudo, é arriscado compreender que mesmo dentro do estado liberal,
uma pessoa livre age contra sua vontade real. Não há garantias de que sua vontade real
seja diferente daquilo que ela está praticando. Maior ainda o risco de utilizar o direito
49
MARTINELLI, João Paulo Orsini. MARTINELLI, João Paulo Orsini. Paternalismo jurídico-penal.
2010. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2010,
p. 231.
penal para suprir a suposta falta de consentimento sempre que alguém se apresentar
como vulnerável.50
Por certo o que importa aqui é a exploração ou não da prostituta por conta
da situação de vulnerabilidade em que ela se encontra por precisar prostituir-se. Essa é a
justificativa do Estado para resguardar o bem jurídico dignidade sexual e criminalizar as
condutas de quem favorece o ingresso ou a permanência da prostituta na prostituição.
Os delitos relativos à prostituição pressupõem que a prostituta, por sua
vulnerabilidade está sendo explorada por quem favorece o seu ingresso ou a sua
permanência na prostituição. Diante dessa situação, o Estado interfere e tenta impedir a
exploração, pois entende que o “ser humano não pode converter-se, de forma alguma
em objeto de comércio”.51
Acontece que “quando um adulto é capaz, não ocorrer a presunção absoluta
que está agindo contra sua vontade real, somente porque suas condições sociais não são
adequadas. Por isso não pode o direito penal utilizar critérios meramente subjetivos para
apontar a vulnerabilidade do ofendido. É preciso que se estipulem exigências de ordem
objetiva ou, se forem apenas subjetivas, que estejam evidentes e longe de qualquer
dúvida. Quer dizer, somente é viável presumir a vulnerabilidade de uma pessoa quando
existir certeza verificável sobre a precariedade e a contrariedade à vontade real. Daí
dizer que o Estado não pode se servir do direito penal em primeiro plano para suprir a
vulnerabilidade não verificável objetivamente”,52 no caso concreto.
O consentimento não pode ser presumível, ou seja, não há como presumir,
de forma abstrata que todas as prostitutas estão se prostituindo por causa de suas
condições financeiras ou sociais e que isso justifica, de forma abstrata a intervenção do
Estado.
Como o pretenso bem jurídico tutelado, no exemplo da prostituição,
segundo o Código Penal, é a dignidade sexual, ninguém melhor que o próprio ofendido
para afirmar se há ou não exploração. Não se pode permitir a total permissão ao Estado
de decidir pelas pessoas o que seja melhor para suas vidas. Pode-se abrir as portas para
uma verdadeira imposição de critérios meramente morais.53
50
MARTINELLI, João Paulo Orsini. Op. Cit., p. 231.
VILLALBA, Francisco Javier de León. Proposta de reforma frente a La trata de seres humanos.
Bilbao, 2009, p.139.
52
MARTINELLI, João Paulo Orsini. Op. Cit., p. 232.
53
MARTINELLI, João Paulo Orsini. Op. Cit., p. 232.
51
O Direito Penal é a ultima ratio e deve ser utilizado apenas quando não
existir outra forma de conter as condutas.
Para Nucci54, “doutrinariamente, o princípio da intervenção mínima é
incentivado e enaltecido, como elemento propulsor das reformas legislativas no campo
criminal, porém ainda está distante de ser efetivamente acolhido pelo Poder Legislativo
no Brasil. Alguns passos têm sido dados na direção correta. Outros ainda estão por vir.
É preciso evoluir e abandonar o foco paternalista do Direito Penal, buscando tipificar
toda e qualquer conduta lesiva a direito de outrem; não é meta da lei penal punir
banalidades ou infrações menores, que outros ramos do direito podem cuidar e tutelar”.
No caso dos crimes relacionados à prostituição, o Estado não criminaliza a
conduta de prostituir-se, permitindo que a liberdade e a dignidade sexual sejam
respeitadas, sem qualquer intervenção estatal. Contudo, tenta de outras formas
desestimular a prostituição, criminalizando os terceiros que contribuem para ela.
Acontece que o Estado falha ao não proporcionar a seus cidadãos condições
de vida digna e para suprir sua própria falha criminaliza condutas de terceiros que
auxiliam a prostituta para desestimular própria prostituição, utilizando o Direito Penal
como forma de contornar problemas sociais.
4
BREVES
CONSIDERAÇÕES
SOBRE
O
PATERNALISMO
NOS
CRIMES LIGADOS À PROSTITUIÇÃO
A prostituição em si não atinge nenhum bem jurídico elencado pelo
legislador e elevado a categoria de crime. Contudo, embora a prostituição não seja
crime, o legislador, por uma questão de Política Criminal impõe penalidades aqueles
que contribuem para ela.
Os crimes relacionados à prostituição estão elencados nos artigos 227 a 231A do Código Penal, dentro do capítulo V, dos Crimes contra a Dignidade Sexual. Tais
delitos são denominados como lenocínio e tráfico de mulheres.
Como já exarado anteriormente, os delitos de tráfico interno e externo de
pessoas para fins sexuais, não serão abordados, pois demandaria uma extensa
54
NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit.,, p. 12.
abordagem a respeito da regulamentação internacional, com base em tratados e
convenções. E, ainda, nas condutas de tráfico de pessoas o bem jurídico tutelado é
diverso dos demais tipos penais desse Título, qual seja a integridade moral.
Assim, analisando os crimes previstos nos artigos 227 a 230 do Código
Penal, temos conforme explica Damásio de Jesus55 que, “o lenocínio é o fato de prestar
assistência à libidinagem de outrem ou dela tirar proveito. A diferença entre o lenocínio
e os outros crimes sexuais é que no lenocínio o agente não quer satisfazer a própria
lascívia, mas a alheia, por meio da prática sexual inter alios. O lenocínio possui duas
formas: a) lenocínio principal: quando o sujeito toma a iniciativa da corrupção. Exs.:
arts. 227 (mediação para servia a lascívia de outrem) e 228, primeira parte
(favorecimento a prostituição). b) lenocínio acessório: quando o sujeito acede a um
preexistente estado de imoralidade, favorecendo, provendo a sua continuidade. Caso dos
arts. 228, segunda parte, 229 e 230.”
Nos delitos constantes do Capítulo V do Título VI do Código Penal são
delitos que lesionam não apenas a dignidade sexual da vítima, como também sua
liberdade sexual, autonomia pessoal e integridade corporal.
Nos crimes contra a dignidade sexual encontramos normas que alguns
autores podem entender que são baseadas no paternalismo, já outros entenderão que o
fundamento é puramente moral.
O que diferencia os casos em que podemos considerar a presença de
paternalismo ou moralismo são suas características. Enquanto o paternalismo protege
os indivíduos incapazes ou vulneráveis de ações de dano a si, visando proteger o
interesse das pessoas destinatárias das medidas paternalistas, o moralismo interfere na
vida de um indivíduo mesmo quando nenhum fator que afeta a capacidade está presente,
visa o interesse geral, independente do interesse da pessoa destinatária da norma, proíbe
as ações simplesmente porque são contrárias à moral, independente de qualquer dano.56
Com respeito ao delito do art. 227, caput57, sendo a vítima maior de 18 anos,
cabe refletir sobre a sua manutenção nó ordenamento penal vigente em nosso país.
Neste delito, o agente não induz o sujeito passivo ao exercício da prostituição, em que a
venalidade e a habitualidade são elementos essenciais, mas apenas induz alguém a
satisfazer a lascívia de terceiro de forma gratuita, naquele momento. O fim de lucro está
55
JESUS, Dámasio Evangelista de. Op. Cit., p. 187.
RODRIGUES, Thaís de Camargo. Op. Cit., p. 01.
57
Art. 227 - Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
56
tipificado no artigo 227, § 3.° do Código Penal.58
Este tipo penal (art. 227, caput) é um exemplo de moralismo, no qual o
Estado desvirtua a função do Direito Penal proteção de bens jurídicos relevantes de
lesão ou ameaça de lesão. Assim deve tal dispositivo ser suprimido do ordenamento
jurídico
Segundo Heloisa Estelitta “no crime de manter "casa de prostituição" (artigo
229 do Código Penal59), muito embora seja claro o aspecto moralista, está contido
também um componente paternalista, porque nega indiretamente à prostituta um lugar
para exercer sua profissão baseado, num raciocínio que pode ser assim expressado:
"como ser prostituta é ruim, proibindo alguém de lhe dar auxílio (tendo uma casa de
prostituição), as pessoas podem ser demovidas da idéia de se tomarem prostitutas".60
O tipo dos delitos dos artigos 22861 e 23062 não contém qualquer referência
ao uso de violência, grave ameaça ou fraude para a obtenção da anuência da vítima.
Donde se conclui que, sendo o sujeito passivo maior de 18 anos, a incriminação de tais
comportamentos poderia ser também, como no caso do delito anterior, um reflexo do
moralismo ou paternalismo forte injustificado por parte do Estado.63
Especificamente no crime de rufianismo, artigo 230, Código Penal, o que
parece dar suporte ao crime são duas fundamentações. A primeira é moralista e afirma
que a prostituição é ruim e a segunda, contudo, é paternalista, porque a proibição,
embora sendo dirigida àqueles que vivem dos proveitos da prostituição alheia, é
estabelecida para proteger a prostituta de ter o que ela deseja, sob o fundamento de que
o Estado sabe melhor o que é bom para ela, ou seja, "não ser uma prostituta".64
Nesses casos, do artigo 228, 229 e 230 do Código Penal a tipificação das
condutas é uma forma de impedir que alguém se torne uma prostituta, para o seu
próprio bem, sendo uma demonstração clara de paternalismo. Aqui, o consentimento
válido da prostituta que é maior e capaz deve afastar a tipicidade penal das condutas.
58
CARVALHO, Gisele Mendes de. Op. Cit., p. 206.
Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual,
haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: Pena - reclusão, de 2 (dois) a
5 (cinco) anos, e multa.
60
ESTELLITA, Heloisa. Op. Cit., p.18.
61
Art. 228. Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la,
impedir ou dificultar que alguém a abandone: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
62
Art. 230 - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se
sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa
63
CARVALHO, Gisele Mendes de. Op. Cit., p. 207.
64
ESTELLlTA, Heloisa. Op. Cit., p.18.
59
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O paternalismo como forma de restrição a liberdade dos indivíduos deve ser
analisado sob determinados prismas. Assim, a primeira conclusão que se obtém é que o
paternalismo débil é aceitável quando se tratar de vulneráveis. Assim, nos casos que
envolvam vulneráveis, não restam dúvidas quanto à legitimidade da tutela penal adotada
pelo Estado no tocante aos delitos relativos à prostituição. Assim, sejam para os
menores de 18 anos ou indivíduos que não estejam em pleno gozo das suas faculdades
mentais, ou ainda, quando os crimes são cometidos contra vítimas maiores de 18 anos e
no pleno gozo de suas faculdades mentais, mas mediante emprego de violência, grave
ameaça ou fraude.
O paternalismo leve ou débil é perfeitamente aceitável, pois protege os
vulneráveis, já que seu consentimento está viciado e não é genuíno. Aqui o estado
presta a proteção exatamente às pessoas que ele tem por dever proteger.
Nos crimes relativos à prostituição, elencados nos artigos 227 a 230 do
Código Penal, se o tipo penal não exige violência ou grave ameaça contra a vítima, sua
vulnerabilidade é a única explicação para a tutela de sua dignidade sexual. Nesses casos,
a norma penal quer impedir a exploração da vulnerabilidade mesmo que haja
consentimento no exercício da prostituição, pois o bem jurídico tutelado vai além da
liberdade ou dignidade sexual, atingindo também a dignidade humana.
Contudo, é arriscado compreender que mesmo dentro do estado liberal, uma
pessoa livre age contra sua vontade real. Não há garantias de que sua vontade real seja
diferente daquilo que está praticando. Maior ainda o risco de utilizar o direito penal para
suprir a suposta falta de consentimento sempre que alguém se apresentar como
vulnerável.
O consentimento não pode ser presumível, ou seja, não há como presumir,
de forma abstrata que todas as prostitutas estão se prostituindo por causa de suas
condições e que isso justifica, a intervenção do Estado.
O Direito Penal é a ultima ratio e deve ser utilizado apenas quando não
existir outra forma de conter as condutas. No caso dos crimes relacionados à
prostituição, o Estado não criminaliza a conduta de prostituir-se, permitindo que a
liberdade e a dignidade sexual sejam respeitadas. Contudo, tenta de outras formas
desestimular a prostituição, criminalizando os terceiros que contribuem para a
prostituição.
O Estado falha ao não proporcionar para seus cidadãos condições de vida
digna e para suprir sua própria falha criminaliza condutas para desestimular a
prostituição.
É claro que o bem jurídico protegido vai além dignidade sexual, atingindo a
dignidade da pessoa humana, que pode ser considerado como bens indisponíveis.
Contudo, nenhum direito é absoluto. Portanto, deve a liberdade sexual ser levada em
consideração, pois o bem jurídico protegido pelo legislador nos crimes de lenocínio é a
dignidade sexual, que só pode ser exercida e verificada tendo em vista a liberdade.
Assim, analisando os tipos penais tem-se que o constante no art. 227 do
Código Penal deveria ser excluído do sistema penal pátrio, pois se trata de conduta não
habitual e sem venalidade, o que retira qualquer característica de prostituição do tipo. Já
nos casos dos artigos 228, 229 e 230 do Código Penal a tipificação das condutas é uma
forma de impedir que alguém se torne uma prostituta, para o seu próprio bem, sendo
uma demonstração clara de paternalismo. Aqui, o consentimento valido da prostituta
que é maior e capaz deve afastar a tipicidade penal das condutas.
6
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
ABREU, María Luisa Maqueda. Prositución, feminismos Y Derecho Penal. Granada:
Cotnares. 2009.
ARCHARD, David. Paternalism defined. in Analysis, vol. 50, n° 01, Janeiro de 1990.
CAPEZ, Fernado. A objetividade jurídica nos crimes contra a dignidade sexual.
Disponível
em
http://capez.taisei.com.br/capezfinal/index.php?secao=27&subsecao=0&con_id=5647,
acessado em 20 de maio de 2011.
CARVALHO, Gisele Mendes. Delitos relativos a prostituição no Código Penal
Brasileiro: Proteção da dignidade humana ou paternalismo jurídico?, Ciências Penais,
Vol. 12, jan-jun. 2010.
DIAS Maria Berenice. Liberdade sexual e direitos humanos.
Disponível
http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=24, acessado em 20 de maio de 2011.
em
ESTELLITA, Heloisa. Paternalismo, Moralismo e Direito Penal: Alguns crimes
suspeitos em nosso Direito Positivo, Boletim IBCCRIM, out/2007.
ESTRELLA, Oscar Alberto. De los delitos sexuales. Buenos Aires: Hammurabi, 2005.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal: arts. 250 a 361. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1959.
JESUS, Dámasio Evangelista de. Direito penal, 3° volume: parte especial: dos crimes
contra a propriedade imaterial a dos crimes contra a paz pública. São Paulo: Saraiva,
2010.
MARTINELLI, João Paulo Orsini. Paternalismo jurídico-penal. 2010. Tese (Doutorado
em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2010.
MARTINELLI, João Paulo Orsini. Paternalismo na lei de drogas. Revista das
Liberdades.
IBCCRIM.
Disponível
em
http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_i
d=15, acessado em 20 de maio de 2011.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 10ª. ed. rev., atual e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei
12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. São
Paulo: Saraiva, 2002.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro - volume 02: parte especial.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
VILLALBA, Francisco Javier de León. Proposta de reforma frente a La trata de seres
humanos. Bilbao, 2009.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal
Brasileiro: Parte Geral. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.