cadernos Nietzsche 14

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cadernos Nietzsche 14
cadernos
Nietzsche
São Paulo – 2003
No 14
ISSN 1413-7755
Os artigos publicados nos
cadernos
Nietzsche
são indexados por
The Philosopher’s Index e Clase
cadernos
Nietzsche
no 14 – São Paulo – 2003
ISSN 1413-7755
Editor / Publisher: GEN – Grupo de Estudos Nietzsche
Editor Responsável / Editor-in-Chief
Scarlett Marton
Editor Adjunto / Associated Editor
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Conselho Editorial / Editorial Advisors
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cadernos Nietzsche
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Foto da capa / Front Cover: C. D. Friedrich – Der Wanderer über dem Nebelmeer, 1818
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Fundado em 1996, o GEN – Grupo de Estudos
Nietzsche – persegue o objetivo, há muito acalentado, de reunir os estudiosos brasileiros do pensamento de Nietzsche e, portanto, promover a discussão acerca de questões que dele emergem.
As atividades do GEN organizam-se em torno dos
Cadernos Nietzsche e dos Encontros Nietzsche, que têm
lugar em maio e setembro sempre em parceria com
diferentes departamentos de filosofia do país.
Procurando imprimir seriedade aos estudos nietzschianos no Brasil, o GEN acolhe quem tiver interesse, por
razões profissionais ou não, pela filosofia de Nietzsche.
Não exige taxa para a participação.
Scarlett Marton
GEN – Grupo de Estudos Nietzsche – was founded in
1996. Its aim is to gather Brazilian researchers on
Nietzsche’s thinking, and therefore to promote the discussion about questions which arise from his thought.
GEN’s activities are organized around its journal and
its meetings, which occurr every May and September
in different Brazilian departments of philosophy.
GEN welcomes everyone with an interest in Nietzsche,
whether professional or private. No fee for membership is required.
Scarlett Marton
Em homenagem
a Gerd Bornheim (1929-2002)
Sumário
Nietzsche e Wagner:
O sentido de uma ruptura
11
Solidão e verbo:
a palavra intempestiva
e o tempo poético
27
Filosofar em abismo: “cada filosofia
esconde também uma filosofia”
57
A Linguagem em Nietzsche:
as Palavras e os Pensamentos
71
Nos limites da linguagem:
Nietzsche e a expressão vital da dança
83
Gerd Bornheim
Tereza Cristina B. Calomeni
Priscila Rossinetti Rufinoni
Paula Braga
Luis Enrique de Santiago Guervós
Nietzsche e Wagner: O sentido de uma ruptura
Nietzsche e Wagner:
O sentido de uma ruptura*
Gerd Bornheim
Resumo: Nesta conferência, o autor mostra como a ruptura da relação
entre Nietzsche e Wagner resulta de uma discussão sobre as origens da
cultura ocidental.
Palavras-chave: Wagner – estética – origem – cultura ocidental
Eu quero expressar minha satisfação de proferir esta conferência, embora, no fundo, me sinta um pouco contrariado. Sabe por
quê? Porque eu não sou um especialista em Nietzsche. Mas hoje
todo mundo é especialista em Nietzsche. Esse é o problema.
Gostaria, também, de fazer menção ao espetáculo de Gerald
Thomas, Nietzsche contra Wagner. É imperdível, embora ele tenha
uma solução, uma resposta, muito violenta à crise dos dois. Por isso,
gostaria de fazer uma pequena observação: diz respeito ao sentido
de certas amizades.
Eu me recordo de que, quando estive pela primeira vez em
Paris, como bolsista do governo francês, no inverno de 1953 e 1954,
foi lá realizado um festival de título pomposo: Primeiro Festival In-
*
Conferência proferida no III Simpósio Internacional de Filosofia “Assim falou
Nietzsche”, no Auditório da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ),
em 23/08/2000. Transcrição e edição: comissão editorial dos Cadernos Nietzsche.
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ternacional de Teatro. Nele tive a felicidade de ver um espetáculo
que arrebatou, simplesmente, todos os prêmios disponíveis. Era Mãe
Coragem, de Bertolt Brecht, com Helene Weigel no papel principal.
Na mesma época, antes ou depois, vi um outro espetáculo, dirigido, se estou bem lembrado, pelo próprio autor do texto, num pequeno teatro de Montparnasse; o texto era Esperando Godot, e o
autor, Samuel Beckett.
Um tempo depois, soube que Brecht tinha ido ver o espetáculo
do Beckett. Ele ficou tão impressionado que pensou num projeto,
infelizmente nunca posto em prática, de escrever um texto
dramatúrgico em resposta a Beckett.
Diante disso, fiquei pensando: ora, há grandes diálogos. Por
exemplo, o diálogo entre Einstein e Heisenberg sobre o sentido último
da estrutura da matéria, se é determinado ou indeterminado. Einstein perdeu, Heisenberg ganhou, mas foi um embate maravilhoso.
Se Brecht tivesse escrito esse texto “de resposta” a Beckett, teríamos talvez o maior diálogo do século. Pois esses grandes pensadores – eles são grandes pensadores – discutem o sentido da realidade.
Eles põem a garra, digamos assim, naquilo que importa de fato ser
pensado, meditado. O século passado também teve esse tipo de experiência. Um diálogo que lamento profundamente não ter sido realizado, mas por outra razão, já de ordem cronológica, foi o diálogo
impossível entre Hegel e Marx. A distância que há entre os dois já
existia na época de Hegel: era a revolução industrial, à qual Hegel
nunca fez, tanto quanto vejo, a menor referência. Contudo, a revolução industrial é toda a diferença que há, no fundo, entre Hegel e
Marx.
Imagine a grandeza de um diálogo entre os dois. Não sei se esse
seria o maior, ou se o maior não seria esse outro, que é o próprio
título da peça de Gerald Thomas, Nietzsche contra Wagner. Essa
outra grande amizade... Foi uma amizade? Até que ponto foi? Foi
um diálogo... Foi um diálogo? Eu acho que Nietzsche, cerca de 30
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Nietzsche e Wagner: O sentido de uma ruptura
anos mais moço do que Wagner, era um entusiasta. Apaixonou-se
por Wagner, de saída, na juventude, dedicando a ele O Nascimento
da tragédia. E como Wagner respondia, na sua arrogância, no seu
orgulho? Wagner, um homem sempre sequioso de ser homenageado, ser admirado, respondia até que ponto? Parece que ele era um
pouco silencioso demais. Mas ele tinha o hábito – ou pelo menos
uma vez ele fez isso, com Parsifal – de mandar a partitura para
Nietzsche. Pois, na época, não era tão fácil uma encenação de ópera.
Mandou a partitura. Nietzsche a leu, imaginou o espetáculo, a
música e tudo o mais. Fez notas à margem da partitura e a devolveu
para Wagner. Ora, justamente o Parsifal, se estou certo, o momento da grande ruptura... Até então, Nietzsche tinha tido uma espécie
de entusiasmo dionisíaco, grego, se quiserem, de fato fantástico, por
Wagner. Assim ele leu o Lohengrin, Tannhäuser e, sobretudo, Tristão
e Isolda. Em especial, Nietzsche tinha grande entusiasmo pelo terceiro ato de Tristão e Isolda, chegando a falar num sinfonismo puro,
sem imagem, sem letra, no qual estaria a parte mais dionisíaca que
ele vê na música de Wagner. Até que chegou o Parsifal, e aí
Nietzsche como que caiu em si.
Sabemos a história: Wagner passa a ser literalmente um charlatão. Porque ele é cristão. Como pode esse pobre coitado, esse idiota, esse pobre idiota – diz Nietzsche sobre Parsifal – ocupar a grandeza de um Wagner? Está tudo errado... Nesse ponto, começa a
cisão entre os dois, de modo acelerado inclusive, e, conseqüentemente, a ruptura dessa amizade. Mas é interessante tecer algumas
considerações sobre essa amizade. No fundo dela, o que existe é
uma discussão sobre o próprio sentido do mundo ocidental – e isso
é o mais importante. Eles estão brigando, chegaram a brigar, não
chegaram nunca a se entender... Acho que toda essa amizade, no
fundo, foi um tremendo equívoco. Nietzsche e Wagner jamais poderiam ter sido amigos, por uma razão material simplíssima: a Grécia
nunca passou pela cabeça de Wagner. Se passou, foi literariamen-
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te, intelectualmente, por causa do Nietzsche ou não, não sei. Mas
nenhuma ópera de Wagner tem inspiração grega.
Então, como é que Nietzsche, que apostava tudo na Grécia,
chega a ponto de afirmar que Wagner era o princípio da renascença grega em solo alemão? Ele disse isso literalmente: a renascença
(die Wiedergeburt) grega em solo alemão, dentro da cultura alemã.
Dessa afirmação surgem problemas fantásticos, já que a relação entre
a cultura alemã e a Grécia era um problema. Como se explica essa
relação entre dois mundos tão diferentes, tão, de certa maneira, não
digo opostos, mas estranhos um ao outro?
Humboldt falou de uma affectio originalis entre os gregos e a
Alemanha. É claro que Nietzsche estava na esteira dessa affectio,
dessa afeição originalis entre as duas culturas. Existiria um parentesco profundo entre elas. Mas como é que se pensaria essa affectio
originalis, uma expressão que Goethe, por exemplo, aceitava tão
bem? Como poderia haver uma proximidade de berço tão grande
entre a velha Grécia e a moderna Alemanha? Como justificar essa
idéia? Goethe nunca a justificou, pelo que eu sei. Então, como isso
se explicaria? Como é esse contato de raiz entre essas duas culturas
tão díspares, uma nórdica e outra mediterrânea? Fato, aliás, que já
diz tudo, pois o mediterrâneo sempre foi objeto, por parte dos nórdicos, de uma ferrenha nostalgia: era um mundo inalcançável. Assim, como essa nostalgia brutal se concilia numa affectio originalis
entre as duas culturas?
Uma primeira razão seria o fato de que pertence mais ou menos
ao patrimônio da humanidade aquilo que os medievais chamavam
de conaturalidade, conaturalitas; para os orientais, alguma palavra
que se assemelha à simpatia. Haveria, portanto, uma simpatia entre
tudo e todos. De tal modo que se acabaria formando uma espécie
de grande família.
Essa conaturalidade possibilitaria a comunicação; muito mais,
possibilitaria a própria possibilidade da comunicação. Com isso, que-
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Nietzsche e Wagner: O sentido de uma ruptura
ro dizer que, em todo o passado, nunca houve, propriamente, o problema da comunicação. As pessoas estavam na comunicação. O
problema da comunicação é o inferno contemporâneo. No passado,
ele não existia.
De todo modo, essa affectio originalis justificaria, de certa maneira, esse parentesco profundo entre os antigos e os modernos,
presente na querela dos antigos e modernos, temática rica em toda
a história moderna. Todavia, o fato é que a cultura grega não é a
cultura alemã e vice-versa; na verdade, são, inclusive, culturas
abissalmente distintas. Salvo num ponto, que justifica Nietzsche e O
nascimento da tragédia: a cultura grega é literalmente uma invenção alemã. Ela começou nitidamente com Winckelmann, que criou
uma idéia da cultura grega ainda hoje popular e distanciou o grego
de qualquer contaminação, digamos assim, romana.
Essa idéia da Grécia, essa concepção do mundo grego, da arte
grega, de modo especial, foi uma elaboração de fato da Alemanha.
Idéia essa presente no classicismo alemão, e no idealismo alemão –
em Hegel, sobretudo – penetra em Marx, que era profunda e totalmente um neoclássico, conhece uma grande transformação com
Burckhardt e finalmente com Nietzsche.
Assim, Winckelmann elabora sua idéia e consegue formar um
pequeno grupo de entusiastas, entre eles Humboldt, Schiller, Goethe
e mais alguns, que fazem uma revista. E inventam o classicismo
alemão, baseados na idéia grega winckelmanniana. Goethe escreve
Ifigênia, Hermann e Dorotéia, Torquato Tasso e mais alguns textos,
alguns poemas, mas não muita coisa. De repente, ele pára e
redescobre, por insistência um tanto ingênua, eu diria, de Schiller,
o tema do Fausto, que evidentemente não é grego; redescobre também um gênio bárbaro, como já era chamado na época por Voltaire: Shakespeare. A partir daí, o diálogo de Goethe com a idéia
wilckelmanniana de Grécia é extremamente complicado, pois se
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confunde com a redescoberta do Fausto e a redescoberta de
Shakespeare. É, de certa maneira, uma desformalização da arte.
Mas o que tudo isso mostra? Que o classicismo na Alemanha,
com toda sua idéia da Grécia, é um fenômeno escasso, transitório,
parcial, de um pequeno grupo e que jamais poderia ter na Alemanha o esplendor que teve o classicismo, por exemplo, romano, da
França de Versalhes. Logo em seguida vem o pensamento alemão,
vem a idéia da Auflösung, da dissolução, essa dissolução da arte na
estética de Hegel, que se faz pela comédia, depois de um grande
elogio da arte, da relação da arte com a verdade. De tal modo que o
círculo parece estar todo mais ou menos encerrado. O fundamental, contudo, é que essa idéia winckelmanniana subsiste e, popularmente, permanece até hoje. Lembro apenas o mote fundamental de
Wilckelmann: nobre grandeza e calma simplicidade.
Nietzsche está totalmente preso a essa idéia. Só que ele acrescenta a essa idéia uma segunda frase que diz: a superfície (Oberfläche)
calma do lago esconde o terrível. Aí começa a se verificar a transformação da idéia ou da interpretação do mundo grego nos tempos
modernos. E logo depois veio Marx que, repito, era um neoclássico
de ponta a ponta. Aliás, ele não soube nem como explicar muito
bem a presença dos gregos, mas ele chega a dizer, no prefácio dos
Grundrisse, que os gregos ainda são tão importantes para os alemães
que a arte grega ainda serve de modelo, de norma para tudo o que
é feito. Contudo, ao tentar justificar a perenidade dos gregos, toda
dialética marxista entra em crise, por uma razão muito simples: é
que a infra-estrutura se modifica, surge o capitalismo moderno, mas
algo permanece. É essa perenidade da normatividade da arte grega
que transcende aquela infra-estrutura. Então, toda a relação entre
infra-estrutura e superestrutura em Marx começa, de certa forma, a
entrar em crise. Embora Marx nunca tenha tratado explicitamente
do tema, encontramos indicações sobre isso justamente em passagens de O capital.
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Nietzsche e Wagner: O sentido de uma ruptura
Para justificar essa perenidade dos gregos, Marx tem uma explicação que é, digamos assim, quase pré-romântica, talvez nem
tanto, mas certamente romântica: os gregos eram crianças normais.
A partir dessa normalidade, dizia ele, estava a perenidade da
normatividade da arte grega. Ora, esse ponto de vista dispensa comentários, mas é interessante porque é um sonho que tende a permanecer vivo dentro da cultura alemã.
Depois vem Burckhardt, mestre e amigo de Nietzsche, que, na
sua História da cultura grega, discorda da interpretação clássica alemã. Para Wincklemann, o sentimento fundamental do grego diante
da vida seria a alegria, idéia adotada pelo jovem Hegel, que esclarece: não que os gregos não conhecessem a dor, mas o sentimento
fundamental era o da alegria, o sim à vida, digamos. É nesse ponto
que Burckhardt retoma na sua interpretação da cultura, talvez baseado no texto de Aristóteles sobre a melancolia, no qual a melancolia é posta na base do poeta, do filósofo e do político. Burckhardt
escreve que o sentimento fundamental grego não era a alegria, mas
a melancolia. No fundo, é o sentimento da totalidade, o sentido fundamental das coisas, que está na base da grande poesia, do grande
pensamento e da grande ação política. Assim, tudo tem que ser
reelaborado a partir dessa sensibilidade da totalidade das coisas.
Tem-se de ver a pólis, mas não dentro dela, como fazia Sócrates, e
sim como Platão, que repensou a república a partir de sua raiz, a
pólis grega.
Ora, repensar a própria possibilidade de refletir sobre a república fornece a base para pensar o sentimento de melancolia, ou
seja, um afastamento, uma certa distância altamente criativa, porque reinventa o todo. Esse foi o caminho trilhado por Burckhardt.
O que Nietzsche faz não é mais que radicalizar a tese de Burckhardt,
descobrindo assim o caos. Aquele caos que está na origem da mitologia grega, a intuição fundamental expressa por Hesíodo e por
Sófocles, segundo a qual a existência humana não tem sentido al-
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Bornheim, G.
gum. É um sentido que deve ser construído, para extrair de Nietzsche
uma fórmula, uma postura fundamental. Mas o fato é que, a partir
do sem-sentido radical, do caos, da presença do caos, é que se entenderia toda a origem da tragédia, toda a cultura grega, a passagem
do dionisíaco ao apolíneo e toda história e interpretação que, como
conseqüência, Nietzsche faz da presença do sonho grego. Isso quer
dizer que a interpretação da Grécia na Alemanha sofre toda uma
transformação, uma transformação muito profunda. Mas cabe dizer
que Nietzsche, de certa maneira, é essencialmente winckelmanniano.
A modificação introduzida por ele é transformar a visão que Winckelmann tinha do grego em uma visão crítica. Ela passa – hegelianamente, se quiserem – através da experiência negativa para se tornar adulta, para poder assumir uma postura apolínea de fato crítica
e maior. No fundo, Nietzsche confirma Winckelmann, mas o arranca de seu fundo de ingenuidade, pois, de fato, a posição que ele
defende é profundamente ingênua ou mesmo fantasiosa. Em última
análise, o que Nietzsche parece fazer é justificar Winckelmann.
Nietzsche diz: só o caos constrói. Ele faz, pela primeira vez, um
grande elogio ao caos. Sabemos, por outro lado, como a palavra
“caos”, na segunda metade do século XX, teve um sucesso surpreendente, a começar pela ciência, e não só a física. Heisenberg nunca usou a palavra “caos”, ele usava o indeterminado, novas simetrias, mas a coisa do caos está mais ou menos implícita nesse
indeterminismo fundamental que é base de toda a realidade. Indeterminismo esse, aliás, que entusiasmou, por exemplo, o grande
biólogo francês, Jacques Monod. Ele usa, em Le hasard et la nécessité
(O acaso e a necessidade), livro que revolucionou a biologia, a palavra “caos”. Ou então Freud, que, em uma das conferências de introdução à psicanálise, tentando pensar o inconsciente, e não sabendo como pensá-lo diretamente, faz todo um inventário, dizendo
que o inconsciente não conhece, por exemplo, a afirmação e a negação, o bem e o mal, a contradição etc. No fim, ele acaba dizendo:
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o inconsciente é caos. Essa palavra, “caos”, é uma espécie de palavra definitiva. Por isso, cabe pensar qual é o destino do pensamento nietzschiano dentro de toda essa perspectiva, que reinventa a idéia
winckelmanniana da Grécia, estabelecendo uma postura crítica e
construtiva, com a afirmação de que só o caos constrói. Caos esse
que possui uma história fantástica, que vem dos gregos antigos.
Cabe também tecer, dentro desse esquema, uns comentários
em relação Wagner, já que ele, muito curiosamente, como disse
antes, não tinha nada a ver com a Grécia, não tinha sensibilidade
com o mundo grego. Considero realmente um equívoco de Nietzsche
surpreender-se daquela maneira com a música wagneriana, vendo
ali a possibilidade de um dionisismo instaurador de uma nova cultura. Mas o fato é que, a certa altura, o próprio Nietzsche se deu
conta disso. Ele se deu conta de que tudo que está na base da
tetralogia de Wagner não passa de uma comédia. Nietzsche passa a
ser altamente crítico em relação a Wagner e crítico em relação a
outro problema fundamental, que é o da discussão das origens.
A cultura ocidental – e todo diálogo de Nietzsche e Wagner está
aí – repousa sobre uma série de origens (origens e suborigens, inclusive). Toda cultura oriental, seja ela japonesa, chinesa ou árabe,
tem um tronco único e seguro. Os orientais não precisam falar, por
exemplo, de renascimento. Eles não têm renascimento. É sempre a
mesma continuidade cultural que se prolonga indefinidamente, a
linguagem do mesmo, sem grandes modificações, as transformações
que ocorrem são mínimas e por aí afora. No mundo ocidental, ao
contrário, essa questão é muito complicada, porque nós temos, no
mínimo, quatro origens: somos todos judeus, somos todos cristãos,
somos todos gregos e somos todos romanos. Não há escolha, é assim. Possuímos uma série de origens. Por isso, a cultura ocidental
pode ser entendida como uma seqüência de renascimentos. Não é
só um renascimento italiano em relação à Idade Média e Roma,
mas é toda uma seqüência que já começa na antiguidade, na rela-
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Bornheim, G.
ção de Roma com a Grécia, já que os gregos foram os grandes educadores dos romanos. Essa diversidade, portanto, não é só uma
seqüência de auto-superações progressivas através da cultura. Nessa diversidade toda, nessas renascenças todas, o que se esconde e
está presente é uma discussão reiterada sobre a origem da cultura
ocidental.
Winckelmann considera que toda nossa origem está na Grécia,
e, de certa maneira, pensando no mundo greco-romano, ele tem
razão. Para Wagner, contudo, a origem não é essa. Para ele, a origem é cristã, porque está na Idade Média. Wagner apenas prolonga
uma transformação, que é a redescoberta da Idade Média através
do romantismo alemão e do norte da França. Mas a origem estaria
lá, e ele acrescenta uma outra origem, que é a linha germânica, de
onde surge a tetralogia dos Nibelungos. Ora, essas duas origens não
têm nada de grego. Introduz-se aí uma outra origem, a germânica,
que se acasala, de certa forma, com a medieval, cristã. De tal modo
que, sem essas duas origens, não se pode compreender a obra de
Wagner. Ou seja, a discordância entre Wagner e Nietzsche é uma
discordância de raiz. O que eles discutem, de fato, é onde está a
origem. Trata-se de uma discussão sobre essa origem. É uma decisão, uma opção sobre a origem. Nietzsche prefere a origem grega,
que, após conhecer uma série de percalços, está em crise ainda hoje,
ao passo que Wagner prefere a outra origem. A pedagogia toda de
Wagner não é grega; a Paidéia wagneriana é muito mais germânica,
e também cristã, no sentido dos mitos medievais, a começar justamente por sua última grade obra: Parsifal. No fundo, Nietzsche luta
a favor de uma espécie de autenticidade da origem que tem de ser
preservada, e a superação se faz de modo grego, através do caos,
para estabelecer um tipo de cultura pós-niilista.
Poderíamos, no entanto, perguntar: até que ponto Wagner se
dava conta disso tudo? O projeto final de Wagner, muito curiosamente, é escrever uma ópera – projeto que ele, felizmente, na mi-
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Nietzsche e Wagner: O sentido de uma ruptura
nha opinião, abandonou – sobre Buda. Mas como Buda? Isso certamente vem de Schopenhauer, que era, para Wagner, e para
Nietzsche também, na juventude ao menos, um grande pensador.
O fato é que, com Buda, surge um problema fundamental para entender essa questão da origem: Buda não é ocidental. Ele cai fora
do mundo ocidental. De tal modo que toda essa questão torna-se
meio anedótica.
Contudo, tanto quanto eu vejo, há um precursor dessa idéia de
buscar a origem fora do ocidente: Humboldt. Porque ele, como sabemos, é o fundador da lingüística moderna (numa certa direção,
depois corrigida ou complementada por Saussure). A criação de
Humboldt é que a língua deveria ser conhecida numa perspectiva
diacrônica, ou seja, histórica, etimológica. A partir disso, ele chegou à conclusão, amplamente comprovada ainda hoje, de que o
berço de todas as línguas indo-germânicas – ou indo-européias, como
se prefere dizer atualmente – se encontra na Índia, numa língua
anterior ao sânscrito. Uma língua perdida, quase totalmente perdida, mas que gerou o sânscrito. Heidegger cita, por exemplo, em
alguns dos seus textos, determinados étimos – a palavra ser e coisas
assim – que vêm daquela língua pré-sânscrito. Enfim, as línguas
indo-germânicas, ou seja, todo o mundo ocidental – com exceção
de um cantão na Suíça, das línguas escandinavas e outros poucos
exemplos – teve sua origem nas margens do Gânges. É assim que
se começa a introduzir a idéia de que o mundo ocidental é um tanto
vulnerável.
A questão é: até que ponto Wagner e Nietzsche se davam conta
disso? Porque, logo em seguida, Gaugin, por exemplo, que era muito
esperto, disse a Vincent Van Gogh, que era seu amigo: “Vincent,
nós precisamos assassinar os gregos”. Então ele arrumou as malas,
tomou um barco e foi ao Taiti, para as ilhas dos mares do sul, onde
inventou, digamos assim, uma estética taitiana, com aqueles quadros maravilhosos, cujo principal é “De onde viemos, o que somos
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Bornheim, G.
e para onde vamos”, ou seja, o sentido total de todas as coisas. Lá
ele quis fazer uma pintura puramente não-ocidental. Introduziu uma
idéia do Bachhofen, um grande antropólogo suíço do final do século passado, que era do conhecimento de Nietzsche, aliás: o
matriarcado. Contra o ocidente, onde deus sempre é um homem,
na Grécia e no antigo testamento, ele faz uma pintura só com mulheres, só com a natureza, a grande Physis, por assim dizer.
Desse modo, a verdade, o métron, a medida, está nas ilhas dos
mares do sul, e nós precisamos assassinar os gregos. Gaugin anuncia isso tudo, que vai terminar na filosofia de livros como A Decadência do Ocidente, de Sprengler, por exemplo, ou então no livro
de 1937 de Husserl, A crise das ciências européias, no qual ele pergunta: afinal de contas, o que temos no ocidente? Apenas um humanismo empírico, à maneira da Índia ou da China? Ou nós temos
a verdade? Isso significa dizer: nós podemos ou não desrespeitar a
origem, em última análise, o fundamento da ciência ocidental, que
é a Grécia? E já aí se coloca todo esse problema da origem.
A amizade de Nietzsche e Wagner já é, parece-me, indício dessa crise; já é, de certa maneira, a crise do fundamento. Porque a
Grécia começa a ser problematizada pelo próprio Nietzsche. Wagner,
por sua vez, inventa essa piada de fazer uma ópera sobre Buda,
que não é ocidental, que não tem nada a ver com a tradição ocidental. Ou seja, onde é que fica nisso tudo o humanismo ocidental? O
curioso é que Nietzsche se deu conta disso: de que havia uma espécie de dissolução no ar, cuja causa ele vê justamente em Wagner.
Só que Nietzsche vê isso de modo contraditório, pois, em O Nascimento da tragédia, ele fala em ouvir Wagner esquecendo a imagem
e a palavra, concentrando-se apenas no sinfonismo puro, passagem
que se encontra no momento em que ele faz elogio ao livro de
Wagner sobre Beethoven (elogio que se refere, evidentemente, sobretudo ao quarto movimento da nona sinfonia, onde Beethoven
introduz o canto coral e o solo). Nisso estaria, de fato, a possibilida-
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Nietzsche e Wagner: O sentido de uma ruptura
de, o caminho aberto por Wagner para chegar a uma superação do
passado. Já na obra póstuma Nietzsche fala de uma coisa muito interessante. Ele diz, em um fragmento, algo mais ou menos assim:
Não é possível perceber Wagner! Ou se vê o espetáculo, aquelas
valquírias voando, com aquela exuberância de cenário fantástica
(Wagner era um ator, fundamentalmente, como pensava Nietzsche,
aliás). Ou se vê Wagner, percebe toda aquela grandeza, ou então se
ouve Wagner, com toda a fartura da orquestra. Mas as duas coisas,
conjuntamente, diz Nietzsche, é impossível, vai além das possibilidades humanas. Wagner, assim, exerceria uma espécie de ruptura.
Recordo-me que, um dia, eu estava na casa de um amigo escultor, quando ele fez uma observação muito perspicaz. Ele falou de
um pintor pós-renascentista que fazia cenas maravilhosas de guerra. Nas suas palavras, ele fazia na tela o conceito de guerra. Vê-se a
guerra, a guerra como um todo, na tela pintada. Havia a perspectiva renascentista e meu olho dava conta da inteireza da tela. Havia
uma espécie de conaturalidade tal, de comunicação integral com a
tela, que eu recebia, compreendia inteiramente a tela. Por outro
lado, dizia ele, há o filme “Ran”, de Kurosawa. Em uma cena fantástica, um exército surge de dentro de um deserto. Pode-se dizer
que, atrás do deserto, começa a dominar a tela, branca evidentemente. Esse deserto começa a crescer, mas não se vê todo o deserto e nem a tela mostra todo o deserto, Kurosawa não quer mostrar
todo o deserto, ele quer fazer exatamente o contrário, pois o deserto é quase o infinito. Ou seja, estabelece-se uma ruptura no ato da
percepção. Aquilo que eu estou vendo na imensidão tela já não é
perceptível pelo homem. Essa ruptura é a falta de comunicação. E
Nietzsche, tanto quanto eu vejo, foi o primeiro a perceber esse fenômeno. Não podemos perceber a totalidade; ou percebemos uma
coisa ou percebemos outra coisa.
O mais curioso, o mais anedótico, contudo, é que a evolução
tecnológica dá razão a Nietzsche, porque ver Wagner em Bayreuth,
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Bornheim, G.
no final das contas, é dificílimo, é caríssimo. É muito difícil chegar
lá. Hoje em dia há o vídeo-laser e outros aparelhos que facilitam as
coisas, mas antes só se podia ouvir Wagner, como eu o ouvia, através de um disco de 78 rotações. Ouvia-se muito mal, é claro, mas,
para a época, era uma maravilha. Era essa maravilha da música a
que Nietzsche se referia. Ele, de certa forma, dispensava o Wagner
ator, o Wagner cenógrafo. Ele pensava justamente nisso, na obra
de arte total, a grande totalidade na qual o homem sempre esteve
inserido.
Nisso Nietzsche e Wagner coincidem, porque o ponto de partida da vivência da arte é a arte total, é a dança, é aquela ânfora que
mostra Homero com a lira dançando. Ele recita Homero, canta
Homero, dança Homero; e mousiké, como sabemos, quer dizer outra coisa, é linguagem, é uma linguagem que compreende a língua,
compreende o ritmo, que é marcado pelos pés, compreende conseqüentemente a dança, compreende o canto, compreende todas as
artes humanas. A arte nasce por aí, ela se torna abstrata ou separada subseqüentemente, mas a arte é sempre esse impulso totalitário,
total, a absoluta integração de todas as artes, e no fundo essa era a
intuição originária de Nietzsche e era também a intuição originária
de Wagner, evidentemente. Wagner queria recompor isso através
de um certo artifício, e nisso ele encontra seu limite, sua decadência. Porque tudo era feito de modo tão artificioso que essa totalidade nunca conseguiu de fato ser alcançada. Ou só era alcançada intelectualmente ou de um modo digamos composto, compósito, que
ia se compondo aos poucos, mas que fugia da possibilidade de uma
visão instantânea, imediata. E foi justamente isso que Nietzsche
percebeu.
Mas a idéia fundamental é essa visão absoluta, totalitária, presente em Nietzsche e Wagner. A divergência entre os dois, a impossibilidade do diálogo entre os dois está no modo de experimentar
essa totalidade, que são opostos e não podem de fato ser compatibi-
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Nietzsche e Wagner: O sentido de uma ruptura
lizados. Não há como compatibilizar as experiências wagnerianas
com as exigências nietzschianas. Há aí de fato uma ruptura, de tal
modo que a amizade entre os dois só poderia, de fato, resultar em
uma frustração.
Abstract: In this lecture the author shows how the rupture of the
relationship between Nietzsche and Wagner can be derived from a
controversy over the origins of Western culture.
Keywords: Wagner – aesthetics – origin – Western culture
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Bornheim, G.
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Solidão e verbo: a palavra intempestiva e o tempo poético
Solidão e verbo:
a palavra intempestiva
e o tempo poético
Tereza Cristina B. Calomeni *
Resumo: Tendo em vista que a intempestividade constitui a chave de
abertura a uma compreensão legítima daquilo que se expõe sob o signo da
atualidade, o texto conta estabelecer a relação entre o caráter experimental da filosofia e da linguagem de Nietzsche e a crítica nietzschiana da
Cultura Ocidental.
Palavras-chave: filosofia – intempestividade – solidão – linguagem –
experimentalismo
I
“Quem sabe respirar o ar de meus escritos sabe que é um
ar das alturas, um ar forte. É preciso ser feito para ele, senão
há o perigo nada pequeno de se resfriar. O gelo está perto, a
solidão é monstruosa – mas quão tranqüilas banham-se as
coisas na luz! Com que liberdade se respira! Quantas coisas
sente-se abaixo de si! – filosofia, tal como até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária no gelo e nos cumes – a busca
de tudo o que é estranho e questionável no existir, de tudo o
que a moral até agora baniu.” (EH/EH, Prólogo, § 3)
*
Professora de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Faculdade de Direito de Campos (FDC).
cadernos Nietzsche 14, 2003
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Calomeni, T.C.B.
Pensar contra seu tempo, contra a corrente que conduz sua época e seus contemporâneos é, aos olhos de Nietzsche, condição de
possibilidade de uma filosofia autêntica. Filosofar é, antes e além
de tudo, ofício para espíritos inatuais e intempestivos e, por isso
mesmo, fortes, nobres, raros e geniais. Espíritos que, em razão de
sua inatualidade e intempestividade, acercam-se, freqüente e fatalmente, da solidão e do isolamento, diante dos quais, entretanto, não
se deixam sucumbir ou desanimar. Filosofar é tarefa, árdua quase
sempre, para quem suporta o peso da solidão e afirma constantemente, sem negar o seu destino, a dor de estar sozinho, ainda que à
espreita e à espera de companheiros de irreverência, de andança,
de procura e criação. É missão para “espíritos livres” e criadores
que, não raro, ultrapassam o tempo presente, olhos postos num futuro ainda por vir. É ocupação dos que, ousados e corajosos, escalam montanhas e experimentam, sem transigir, o perigo das alturas
e o “gelo da solidão” inquestionável. É no efetivo exercício e no
cumprimento desse ofício que se pode expressar a dimensão crítica
de uma Filosofia e de um olhar sobre uma Cultura. Não é de outro
modo que Nietzsche configura sua crítica da Filosofia Ocidental e
da Cultura Moderna – em especial, a Cultura alemã – e define suas
tarefas filosóficas mais radicais. Inatual e intempestivo (Unzeitgemäss)
é o psicólogo diante de uma Cultura medíocre e hipócrita, inconsciente de suas intenções e interesses mais profundos; é o médico de
uma Cultura doente, orientada por forças e valores decadentes e
negativos; é o genealogista que se interroga acerca da origem e do
valor dos valores historicamente dominantes no Ocidente, a fim de
arrancar o homem moderno da forma mais infame de niilismo e
decadência; o “espírito livre” interessado em livrar a Cultura da
escravidão a determinadas ilusões que devem ser desmascaradas a
duros “golpes de martelo”; o filósofo trágico que tem por desejo
não apenas afastar a Cultura do excesso de “sentido histórico” que
conforma a visão de mundo do homem moderno, mas ainda propor
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Solidão e verbo: a palavra intempestiva e o tempo poético
uma nova concepção de tempo – o eterno retorno – capaz de promover a reconciliação entre o homem e a existência; é, enfim, o
crítico da Cultura que, em favor de si mesma, deve desfazer-se de
seus modelos e de suas fantasmagorias e superar-se a si própria,
através da “transvaloração” de todos os seus valores e da observação dos ensinamentos da arte.
É, portanto, no exercício efetivo e no cumprimento desse ofício
que o filósofo pode, contra seu tempo, seus contemporâneos, sua
Cultura e os valores que lhe são próprios, favorecer a irrupção de
uma nova Cultura, forte, viva, vigorosa, plena de estilo – a
intempestividade é a chave privilegiada de abertura a uma compreensão mais pertinente e mais fecunda do que se expõe sob o signo
da atualidade.
Distante e descrente de uma filosofia contemplativa, abstrata,
fria e supostamente desinteressada como a Filosofia Ocidental,
Nietzsche decide conduzir-se por uma filosofia que, do alto, mas
com olhos novos, múltiplos e interessados, vislumbra o horizonte
infinito a que é possível – e necessário – conferir múltiplas interpretações. Não prefere alhear-se de seu tempo, mas sim olhar sua
Cultura de uma certa distância – seu destino é o das alturas – para
impedir-se, definitivamente, a adesão, total e irrestrita, ao que deve
ser ultrapassado.
Estar à frente de seu tempo e, neste caso, contrariar o habitual
são, para Nietzsche, condições essenciais de sua crítica filosófica.
São ainda sinais de uma certa estranheza, freqüentemente acolhida
como inerente a seu pensamento, e pressupostos da incompreensão
que, desde cedo, freqüenta não apenas seus textos filosóficos, mas
inclusive sua vida pessoal.
Diversos são os escritos nietzschianos em que ora se percebe
um apreço pela vida solitária – a vida em gelo, nas ermas altitudes
–, ora um indisfarçável desencanto, uma certa amargura, um leve
ressentimento em face do isolamento a que se obriga ele mesmo e a
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Calomeni, T.C.B.
que é submetido por muitos de seus contemporâneos que, em sua
opinião, não tendo compreendido nem sua “missão” nem a grandeza de sua tarefa, reservam-lhe o destino de “homem póstumo”. (EH/
EH, Por que escrevo tão bons livros, §1).
Em Nietzsche, dois sentimentos habitual e francamente se misturam: a vontade de ter companheiros com quem possa compartilhar a pesada tarefa de filosofar e avaliar os produtos culturais da
era moderna em benefício da criação de uma nova Cultura e, por
outro lado, o desejo de permanecer solitário e incompreendido, ao
menos pela massa dos “homens iguais”, pela maioria dos “animais
de rebanho”, pelos homens “fracos e escravizados” e por uma nação sem paixão, por uma época e por uma Cultura sem estilo.
Solitário, às vezes, estranha a dor da solidão; incompreendido,
insurge-se, outras tantas, contra a incompreensão, sobretudo dos
alemães. “Dez anos: e ninguém na Alemanha tomou como dever de
consciência defender meu nome contra o absurdo silêncio sob o
qual ele jazia soterrado (...)” (EH/EH, O caso Wagner, § 4). Ao
mesmo tempo, exalta-as – a solidão e a incompreensão – como condições de determinação e distinção de quem ele é, especialmente por
não querer ser confundido por aqueles que em nada lhe interessam
e não podem ser seus interlocutores. “Ouçam-me! Pois eu sou tal e
tal. Sobretudo não me confundam!” (EH/EH, Prólogo, § 1).
Muito cedo, Nietzsche reclama da solidão e do silêncio que constrangem sua atividade filosófica. Em 1886, quando elabora, a título
de “Autocrítica”, um novo prefácio para seu primeiro grande texto,
não deixa de observar que, desde a época de O Nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo (Die Geburt der Tragödie oder
Griechentum und Pessimismus), escrito em 1871, já não eram ouvidas suas indagações1. Mais tarde, em Ecce homo: como alguém se
torna o que é (Ecce homo: wie man wird, was man ist), autobiografia
escrita entre outubro e novembro de 1888, quando então revê e
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Solidão e verbo: a palavra intempestiva e o tempo poético
reexamina a maior parte de seus livros anteriores, ratifica a antiga
impressão de isolamento e incompreensão.
A intempestividade e a crítica impiedosa a seu tempo surgem,
àquela época, de fato como um obstáculo à compreensão de seus
interesses e anseios mais íntimos. Desde os primeiros escritos,
Nietzsche talvez não pudesse ser compreendido por seus contemporâneos, que, aos seus olhos, não eram intempestivos, geniais ou
criadores, dado o hábito de pensar através da ótica dos valores
modernos e não avaliar a Modernidade senão a partir de valores já
consagrados. Seus contemporâneos têm um julgamento limitado e
inferior, pobre e enfraquecido, porque incapaz de ir à raiz das crenças de sua época e dos valores deixados pela Aufklärung. Mergulhados no niilismo de uma Cultura sem estilo e sem paixão, distanciados do olhar artístico indispensável à crítica “farejadora”, só
podem aludir ao que, na verdade, é pequeno, medíocre e efêmero,
em detrimento do grandioso e fundamental. “Como poderia eu, com
tal sentimento de distância, sequer desejar ser lido pelos ‘modernos’ que conheço!” (EH/EH, Por que escrevo tão bons livros, §1)
Os modernos, em sua grande maioria, não são intempestivos; ao
contrário, presos a seu tempo, acolhem ainda algumas das crenças
fundamentais da Metafísica e da Religião Cristã, são homens de
memória, imersos na Cultura e na História, quando, para Nietzsche,
são necessários a intempestividade e o esquecimento para o
favorecimento da constituição de novas formas de vida. Enquanto a
memória é paralisante e em nada criativa, esquecer é condição de
intempestividade: sair do atual e da idéia de continuidade histórica
é condição de criação2.
A valorização excessiva do “sentido histórico” e o extravio da
perspectiva estética aborrecem Nietzsche. O excesso de “sentido
histórico” é, em sua opinião, um dos responsáveis por levar o homem moderno ao niilismo e à decadência, porque nada faz senão
tornar doente e pessimista a Cultura Moderna. A obsessão pelo “sen-
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Calomeni, T.C.B.
tido histórico”, a exaltação irrefreada do passado, a vontade deliberada de fidelidade aos fatos e à sua suposta continuidade, a submissão às idéias de causalidade, finalidade, evolução e progresso, a
inserção irrefletida e extática na “atualidade” enfraquecem a Educação Alemã e impedem a instituição de uma Cultura superior –
criadora de seus próprios valores – e de novos sentidos para a História, a temporalidade e a existência. Procedimentos estéreis, sob
nenhuma hipótese, concederiam ao homem a felicidade e a oportunidade da criação. São sintomas irrecusáveis da influência – nociva
– exercida pelo ideal metafísico de conquista da verdade sobre a
Modernidade e sinais de que o homem não compreende o significado do mais importante e significativo acontecimento moderno, a
“morte de Deus”.
Ausentar-se dos limites da História continuísta exaltada pela
Modernidade como expediente de explicação dos fatos históricos é,
para Nietzsche, condição de crítica da atividade filosófica. Não é
gratuita a Consideração Extemporânea acerca da História (Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen und Nachteil der
Historie für das Leben). Em 1874, Nietzsche entende que a crítica
da Cultura pressupõe, necessariamente, a crítica do culto ao passado que tanto caracteriza as historiografias da Alemanha de seu tempo. Igualmente, não será gratuita a posterior proposta do eterno retorno como subversão da concepção linear de tempo e da relação,
estabelecida pelo Ocidente, entre o homem e o tempo. Pensar fora
da idéia de tempo evolutivo e da acepção finalista e escatológica é
sintoma de recusa da concepção metafísico-religiosa de tempo. A
intempestividade de Nietzsche, observada justamente em meio à
herança do hegelianismo e do historicismo alia-se, pois, no chamado primeiro período de sua obra (1871-1878), à sua crítica da História e do papel a ela atribuído pela Modernidade; no curso da obra,
é sintoma de suspeição do moralismo da Cultura Moderna, suspeição
que acaba por desembocar na proposta do eterno retorno, na inves-
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Solidão e verbo: a palavra intempestiva e o tempo poético
tigação genealógica e no projeto da “transvaloração” dos valores
ocidentais.
A singularidade da intempestividade de Nietzsche contrapõese, enfaticamente, ao tempo do culto à História e à volta ao passado
como formas de constituição da Cultura. A Cultura Alemã organiza,
à época de Nietzsche, o discurso legitimador do apego à História.
Intempestivo, Nietzsche critica cruel e severamente a Cultura Alemã e a Educação por ela proposta aos jovens estudantes. Desde o
texto de 1873, “Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino” (Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten) e, sobretudo com
as quatro Considerações Extemporâneas, escritas entre 1874 e 1876,
Nietzsche se desencanta e se retira do terreno de uma proposta de
Educação voltada para a “formação histórica”, em nada competente para o ensinamento do que verdadeiramente importa à composição de uma Cultura autêntica: o “cultivo de si”. Para o jovem intempestivo, o excesso de valorização da História e do passado
enfraquece os jovens e sua singularidade e desmobiliza sua força
criativa. A História e a volta ao passado são necessárias enquanto
tenham valor para a vida, para a nutrição e exaltação da força, do
vigor e da vitalidade como instrumentos de expressão de uma “superabundância de vida”. Àquela época, Nietzsche pondera que
empurrar os jovens para o estudo exagerado e desmedido da História e do passado cria uma insondável distância entre vida e Cultura
porque induz a Cultura a formas doentias de vida. Desde então,
recomenda prudência ao recurso à História: para a promoção de
uma verdadeira Cultura, é necessário temperar e medir a importância concedida à História.
As denúncias então dirigidas à Educação e aos estabelecimentos de ensino revelam o desejo por um novo tipo de Cultura – para
que é imprescindível novo tipo de Educação – como alheio à sua
época. Intempestividade precoce diante do que, muitas vezes, precisa pagar um preço tão alto quanto inevitável. Incompreendido,
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Calomeni, T.C.B.
Nietzsche, no entanto, parece ter ciência da solidão imponderável
decorrente de sua originalidade: todo filósofo corajoso que se pronuncia contra sua época e sua Cultura está – como o artista – sujeito à incompreensão e ao isolamento. Impossível ao filósofo crítico
da Cultura sentir-se inteiramente à vontade em seu tempo; o crítico
da Cultura transita, necessariamente, contra a corrente e se recusa
a se apresentar, tranqüilo, como um “fantasma da opinião pública”. Não por acaso, Nietzsche concede-se o qualificativo de “dinamite”: “Não sou um homem, sou uma dinamite”. Parece justo: desde a juventude, Nietzsche não quer ser um “filisteu da cultura”, um
“funcionário da filosofia” ou um “cometa” a passar impunemente
pelo céu de sua época. Iconoclasta, seu objetivo é assaz diverso:
“Eu não construo novos ídolos; os velhos que aprendam o que significa ter pés de barro. Derrubar ídolos (minha palavra para ‘ideais’)
– isto sim é meu ofício.” (EH/EH, Prólogo, § 2)
II
A intempestividade e o olhar extremamente crítico para uma
Cultura empobrecida e encarcerada em valores, há muito tempo,
enraizados, mas também a forma freqüentemente fragmentária de
sua escrita, a escolha do aforismo como uma das formas privilegiadas de expressão, o estilo singular de seus textos, as constantes
reavaliações a que submete seu pensamento e, por conseguinte, a
falta de sistematicidade e linearidade acusada como própria de sua
obra constituem-se, ainda hoje, cem anos após sua morte, como
razões diante das quais se reafirma a dificuldade da leitura e da
compreensão da obra de Nietzsche.
O pensamento e a linguagem nietzschianos – tortuosos, transeuntes, errantes, andarilhos, por vezes, enigmáticos, que se retiram, propositalmente, do tradicionalismo de um estilo unitário e
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homogêneo para a suspensão da forma tradicional de pensamento e
de expressão, pensamento e linguagem que não concebem a habitual identidade entre Filosofia e sistema – de fato, à primeira vista,
parecem escapar a quaisquer tentativas de compreensão intelectual.
Em conseqüência, expõem leitores e comentadores a indisfarçáveis
embaraços. Reservam-lhes, não raro, a perplexidade e a alguns mais
despreparados e inadvertidos sugerem a observação do problema
da inteligibilidade dos textos nietzschianos, em virtude de sua forma freqüentemente aforismática, metafórica e poética.
O fragmento – forma de expressão inaugurada em Humano,
demasiado humano (Menschliches Allzumenschliches, volume I e
Menschliches Allzumenschliches: Vermischte Meinungen und Sprüche,
volume II) – remete à própria concepção nietzschiana de linguagem e de conhecimento. Antes de comprometer propriamente a inteligibilidade dos textos, o bom leitor há de supor que a linguagem
fragmentária evidencia a associação, estabelecida por Nietzsche,
entre a crítica da Metafísica e a crítica da linguagem3. A crítica da
linguagem é, em Nietzsche, um dos elementos fundamentais de sua
crítica da tradição metafísica. Empenhado em recusar a idéia de
conhecimento como representação da realidade e de verdade como
adequação, muitas vezes Nietzsche atribui à linguagem a responsabilidade de criação e manutenção de determinadas ilusões epistemológicas que, sustentadas por noções tradicionais como identidade,
unidade, substância, causalidade, sujeito, consciência, induzem o
homem à crença na possibilidade de constituição do conhecimento
e de conquista da verdade. Para a crítica da Metafísica, a crítica da
linguagem é sempre convocada a desempenhar um papel determinado diante da rejeição da idéia de verdade como bem absoluto ou
adequação à realidade e do repúdio das idéias de “eu” e de sujeito.
Desde “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral” (Über
Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne) (1873) – ensaio
inacabado e publicado postumamente – pressente-se, em Nietzsche,
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Calomeni, T.C.B.
a intenção de refletir sobre a relação entre Filosofia e linguagem,
reflexão que, a partir da configuração de algumas noções e críticas
de períodos subseqüentes, acaba por conduzir à admissão do caráter
perspectivístico do conhecimento e à necessidade de atenção ao
problema da interpretação.
No texto de juventude, a crítica da linguagem aparecera como
recurso metodológico para a compreensão do fenômeno do conhecimento e do processo de instituição da verdade. O “jovem
Nietzsche”, ainda sob a inspiração kantiana, sobretudo no que se
refere à interpretação da distinção entre “fenômeno” (Erscheinung)
e “coisa em si” (Ding an sich) presente na filosofia de Schopenhauer,
percebe que no âmbito da linguagem se inscreve a crença na possibilidade de apreensão do “em si” das coisas. Nesse momento, o
“em si” parece-lhe inacessível. Na palavra, não se guarda a voz do
“em si” da realidade; na palavra, pronunciam-se metáforas das coisas, porque palavra é tão-somente uma “figuração de um estímulo
nervoso em sons” (WL/VM § 1). A linguagem corresponde a um
determinado tipo de relação constituída entre o homem e as coisas
e não às coisas mesmas. Já no texto juvenil, há indícios de que a
idéia de verdade como adequação deve ceder lugar à de convencionalismo lingüístico, já que a linguagem configura um mundo simbólico. É ofício da linguagem promover o engano quando suscita a
crença na possibilidade de captura da identidade do Ser e na autoridade do conceito, porque não passa de suposição pensar que a
palavra tem poder suficiente para o encontro do “em si”. A tradicional distinção entre o verdadeiro e o falso verifica-se por intermédio da linguagem com o objetivo muito particular de constituição e
manutenção da possibilidade da comunicação e, por conseguinte,
da gregariedade. Somente por oposição convencional entre verdade e mentira pode o homem garantir o convívio social.
Reconhecendo o caráter arbitrário da linguagem, Nietzsche pondera sobre o caráter ilusório do conhecimento. O homem não pos-
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Solidão e verbo: a palavra intempestiva e o tempo poético
sui a verdade, mas “metáforas das coisas” que, em absoluto,
correspondem às próprias coisas. A linguagem não expressa a relação natural entre as palavras e as coisas; ao contrário, exprime a
capacidade humana de criar metáforas porque em sua origem aloja-se o poder artístico da criação, o poder estético.
Em “Verdade e mentira no sentido extra-moral”, ao conhecimento é conferido o estatuto de “fábula” (WL/VM § 1). Conhecimento é invenção e não atualização de um impulso natural. Conhecimento é convenção lingüística e não agenciamento de um princípio
singular, peculiar ao gênero humano. Não há no homem um princípio motor para o conhecimento, postula Nietzsche, contrário, não
só a Aristóteles – que no Livro I da Metafísica reconhece a existência de um impulso natural para o conhecimento –, como também à
boa parte da tradição da Metafísica Moderna, que assegura a evidência da existência do “sujeito cognitivo”.4 Conhecimento é criação, postulado que, mais tarde, leva Nietzsche a admitir que o impulso dirigido ao conhecimento é apenas um entre os vários instintos,
afetos e pulsões que configuram o domínio do humano5.
Sugerindo a necessidade de desconfiança frente à linguagem
como expressão da realidade, Nietzsche reconhece que o homem
se esquece de que a palavra é metafórica e passa a crer na competência do processo – empobrecedor – de classificação e categorização. O homem não se lembra do estabelecimento do convencional e
acredita que, conquistando o aspecto essencial do que examina,
possui, conseqüentemente, a verdade. Ao tomar as metáforas pelas
coisas, o homem se esquece de que o “impulso à verdade” sustenta
a vida em grupo – a coletividade – e acaba por promover a consolidação das disjunções verdade e erro, verdade e mentira, essência
e aparência e, por conseguinte, bem e mal. Tal procedimento é
próprio do homem desde a origem da linguagem, quando, pelo desejo de instituição de uma vida gregária, ele mesmo fixa o sentido
do que passa a ser reconhecido como verdadeiro: “a legislação da
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linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui
pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira” (WL/VM §
1). No momento em que os indivíduos resolvem viver coletivamente, decidem, também, estabelecer uma designação uniforme para
as coisas, o que faz com que se acredite na natureza essencialmente fixa e unívoca da palavra. Por intermédio da palavra, o homem
configura o que vem a ser considerado verdadeiro ou falso e garante a oportunidade do convívio social. O valor atribuído à verdade
deve-se, pois, à natureza gregária do homem: a verdade é um valor
auxiliar à manutenção da vida em coletividade e à sobrevivência
humana.
A necessidade do convívio exige um acordo – um “contrato social” – de natureza conciliatória e, então, a verdade passa a ser o
ideal obrigatório para o qual se devem orientar todos os homens,
invariavelmente. Ser “verdadeiro” equivale a submeter-se ao jogo
do convívio social, ao uso de “metáforas usuais” (WL/VM § 1); por
outro lado, ser “mentiroso” significa violar o acordo e escapar às
regras convencionais estabelecidas pelo grupo. A distinção entre
verdade e mentira compõe-se, neste caso, com o estabelecimento,
pela linguagem, de convenções lingüísticas satisfatórias ao imperativo de comunicação e convivência; regras obrigatórias – e, de todo
modo, arbitrárias – de designação das coisas são instituídas coletivamente. O “impulso em direção à verdade” é, neste momento,
entendido como expressão de uma obrigação social, já que a sociedade, para sua composição, supõe a obrigatoriedade do discurso
verdadeiro. As condições do surgimento da verdade não são a certeza, a precisão ou a evidência; ao contrário, configuram-se com o
esquecimento. A verdade é uma espécie de mentira aceita pública
e coletivamente, porque, ao instituir-se, institui, arbitrariamente, um
certo conjunto de metáforas. O homem nomeia a realidade com
objetivos muito precisos: conservar-se e exercer franco domínio sobre o real.
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Desde então, ao invés de associar o intelecto – o mestre do disfarce (WL/VM § 1) – a uma faculdade cognitiva, Nietzsche o aproxima do instinto humano de conservação e não menos da atividade
artística da criação. Através deste instrumento de conservação os
homens firmam entre si uma espécie de “acordo de paz” que garante o “existir socialmente e em rebanho”. (WL/VM § 1) Pelo processo de conhecimento, o homem inventa, cria, descreve, ao invés
de descobrir ou explicar algo presente à realidade.
Coletivamente é mais vantajoso e mais seguro aceder à urgência da verdade; a mentira – espécie de recusa da univocidade da
palavra e do sentido do real – pode acarretar o isolamento e o
banimento do mentiroso. Para o indivíduo que vive gregariamente,
é preferível dizer a verdade, porque a mentira, pressupondo a capacidade humana de invenção, pode acarretar a perda da própria
vida em grupo. Convencionalmente estabelecida, todos os membros
da coletividade vêem-se obrigados a aceitar a verdade. Para
Nietzsche, o homem “deseja as conseqüências da verdade que são
agradáveis e conservam a vida” (WL/VM, § 1); aspira a algumas
verdades úteis à preservação da espécie; espera as conseqüências
originadas da crença na verdade, porque precisa responder
satisfatoriamente às suas necessidades de ordem prática. Do terreno da moral, portanto, surge a idéia de verdade: através da linguagem, o homem cria e consolida os valores morais que devem orientar a vida particular e a vida coletiva. Esta é uma postulação que,
apesar de sofrer diferentes inflexões ao longo da obra, acompanha
Nietzsche do primeiro ao terceiro período e, finalmente, exige a
composição de uma genealogia da moral.
Com o objetivo de instituição e manutenção da possibilidade da
comunicação, da gregariedade e do convívio social, o homem estabelece, pela linguagem, o que passa a valer, coletivamente, como
verdadeiro e como falso: as regras convencionais e obrigatórias são
signos ou convenções lingüísticas inventadas e consagradas pelo
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coletivo. A preferência pelo verdadeiro não assegura a conquista da
verdade, mas a crença de que a verdade é conquistada. A história
da verdade é a história de um erro, uma ilusão, uma ficção. No
limite, todo o pensamento de ordem metafísico-moral constrói uma
história de ficções, a fim de conferir à existência humana um sentido mais sublime: a Metafísica é “a ciência que trata dos erros fundamentais do homem como se estes fossem verdades fundamentais”, dirá Nietzsche, mais tarde, em Humano, demasiado humano.
Nietzsche encontra razões suficientes para, especialmente no terceiro período, associar a idéia de verdade a uma investigação
genealógica dos valores predominantes no Ocidente: a investigação
da verdade associa-se à investigação da moral. Assim como não há
verdade absoluta, não há valores morais universais e definitivos: o
homem institui a verdade conforme uma convenção lingüística.
Outro estilo, outra forma de expressão: Nietzsche quer restituir
à linguagem sua dimensão metafórica e arrancá-la do âmbito da
moral. Em Nietzsche, a precisão da palavra – não só em razão do
aforismo – dilui-se e esvanece-se: a palavra deixa de ser o lugar
privilegiado de abrigo de uma verdade única e absoluta. A linguagem nietzschiana – polissêmica e que freqüentemente escapa a leitores mais apressados – não permite alívio ou segurança; não é um
expediente de transmutação do estranho em familiar, como a linguagem conceitual da metafísica e da ciência; não é uma linguagem
constrangedora e redutora como a linguagem da filosofia tradicional que, com a ajuda da lógica, reduz o múltiplo e o diverso, o “estranho” e o “questionável” próprios da existência a fim de torná-los
previsíveis e controláveis.
Ao criticar a linguagem, Nietzsche quer atingir o pensamento
metafísico-moral, a interpretação moral da existência, e denunciar
a artificialidade do conceito que, em face da exigência de ser conveniente à diversidade de fenômenos singulares, acaba, com a ajuda da lógica, por simplificar, abreviar, unificar, ignorar a diferença.
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Sob a proteção da lógica, o homem confere às coisas a identidade,
nivela o novo, agrupa a novidade, reordena o diferente e acredita
que tais procedimentos são constitutivos do conhecimento verdadeiro. O classificado, o ordenado, o categorizado não constituem “a
verdade”, diz Nietzsche. Confundindo aquilo de que se apodera –
ou aquilo que cria – com a própria verdade, o homem ocidental dá
início a uma “história da verdade”, “história de uma ilusão sem a
qual não suportaria viver”. Os princípios da lógica exigem a negação
do falso, tornam a verdade preferível e consumam o que deve adquirir o estatuto de verdadeiro. Os princípios lógicos, eles mesmos,
não anunciam nenhuma verdade em si, apenas manifestam o ideal
de verdade e sugerem a necessidade, insuperável, de sua conquista.
Justifica-se a formação de conceitos: nascidos por “igualação
do não-igual” (WL/VM § 1), surgem sob a condição de ignorar o
individual, o diverso, o inusitado. O conceito é fruto de um expediente de fuga das “impressões súbitas”, das intuições e das contingências, fuga requerida e explicada pela necessidade de crença no
universal e no necessário. Conceituar é negar a diferença, fazer do
diferente o semelhante, abolir a estranheza em favor da oportunidade de controlar o real e prever seu futuro. Neste passo, a linguagem
opera simplificações, abreviações e falsificações; longe de ser expressão adequada, é expressão “grosseira” da realidade. O fim da
linguagem é suscitar a crença na existência de um modelo ideal,
um protótipo de todas as coisas, colocado num suposto mundo inteligível, protegido das alterações do mundo sensível, em permanente
movimento e transformação. A linguagem petrifica o real e aprisiona as transformações próprias da existência. Conhecer é falsear:
ignorando o vir-a-ser, a incompetência do intelecto – da razão –
falsifica o real, certamente, “estranho” e “questionável”. O intelecto não pode, como pretende, compreender o vir-a-ser e o movimento.
São estas algumas das hipóteses que acabam por sustentar a
crítica do conhecimento, da ciência e do sujeito no período da
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anunciação do pensamento do eterno retorno. A partir da elaboração dos conceitos de “força” (Kraft) e de “vontade de potência”
(Wille zur Macht), Nietzsche poderá, no terceiro período, ratificar a
idéia de que as categorias lógicas do pensamento procuram organizar e esquematizar o movimento ininterrupto da realidade, a fim de
tornar o mundo mais previsível, através das idéias de unidade, permanência e identidade. Ao abandonar a distinção kantiana entre
“fenômeno” e “coisa em si”,6 confirma a idéia de que a lógica ilude
o homem: na verdade, nada há a descobrir-se propriamente, se o
mundo, puro e inocente vir-a-ser sem finalidades, é “força”, “vontade de potência” e “eterno retorno”.
A “vontade de verdade” (Wille zur Wahrheit) – vontade que
anima o pensamento do Ocidente – acaba por estabelecer uma relação nociva entre o homem e a existência, porque diante da exigência de uniformidade e categorização, ignora o “estranho” e o
“questionável” do “existir”, em princípio, incontroláveis pelo conceito. Neste sentido, se filosofia e ciência parecem desejar uma verdade desprovida do perigo e do risco representados pelos instintos,
interessadas na segurança, querem, em realidade, submeter o mundo a categorias lógicas de pensamento – identidade, substância,
causalidade, finalidade – e desprezar o acaso. Sob a proteção da
lógica, o homem admite o “instinto de conhecimento” como o mais
fundamental e nobre de seus impulsos: ao conceder ao homem os
esquemas de nivelamento, a lógica legitima a “inclinação natural
para o conhecimento” e a crença na conquista da verdade.
Ora, livrar-se da tirania da univocidade do sentido da palavra e
eximir a linguagem do peso de estar a serviço da moral significam
romper com uma interpretação moral da existência e penetrar no
terreno da arte e do pensamento trágico. Se o intelecto escapa do
conceito, se foge à exigência de conquista da verdade e da identidade, fica livre para criar: surgem imagens e símbolos múltiplos, pensamento e palavra tornam-se obra-de-arte. Ao mesmo tempo, a exis-
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tência é liberada da suposta necessidade – moral – de ver-se
corrigida em suas manifestações mais infames e cruéis, fugidias e
ambíguas. Distante da racionalidade do conceito e da imposição de
adequar as palavras às coisas, a linguagem já não se cristaliza quando reconhecida como arte, invenção, livre do fardo do moralismo.
Assim, pode inclusive manifestar a preferência pelo incerto, pelo
duvidoso, pelo precário e até pelo falso, o que ratifica sua despedida da esfera moral, já que a crença na verdade é decorrente do
esquecimento do caráter metafórico e convencional da linguagem.
No período da “transvaloração”, Nietzsche pergunta: “Certo, queremos a verdade: mas por que não, de preferência, a inverdade?
Ou a incerteza? Ou mesmo a insciência? – O problema do valor da
verdade apresentou-se à nossa frente – ou fomos nós a nos apresentar diante dele? Quem é Édipo, no caso? Quem é a Esfinge?”
(JGB/BM § 1)7.
Se a palavra é metafórica e a verdade é lingüística, a linguagem
é, até certo ponto, impotente meio de expressão do pensamento. Se
aliada à reflexão, então, com maior justiça, vê aumentadas sua impotência e sua falibilidade. Como uma espécie de tentativa de diminuir a impotência e a precariedade da linguagem, importa pegar o
pensamento como ele vem e, portanto, em movimento, quase sem o
trabalho redutor da racionalidade. “Prefiro meus pensamentos em
suspenso àqueles que foram redigidos”, diz Nietzsche em um de
seus “Fragmentos Póstumos”. Esta é precisamente uma das tarefas
do aforismo e da linguagem poética presentes em Nietzsche: tentar
superar ou minimizar a insuficiência da linguagem da tradição filosófica ocidental e, mais que isto, demonstrar a impertinência e a incompetência da interpretação metafísico-moral e científica da existência.
O aforismo – o fragmento – não é o pensamento acabado que
tem a certeza de si, mas a expressão do pensamento vivo que limita
e, ao mesmo tempo, alarga suas fronteiras e impõe suas medidas.
De algum modo, como obra de arte, é algo que, quase inteiramen-
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te, basta-se a si mesmo. Há uma relação entre um aforismo e outro,
mas trata-se de uma relação diversa da que se propõem o pensamento lógico-racional e as histórias continuístas: o aforismo, que,
muitas vezes, dá à arquitetura da obra de Nietzsche a forma do
mosaico e exige do leitor destreza na tarefa do garimpo e da “ruminação”, pressupõe o movimento do pensamento. Mais uma vez afastado da linguagem e dos ideais moralistas da metafísica e dos homens modernos, Nietzsche quer experienciar a mobilidade do
pensamento e das palavras e aproximar sua filosofia de uma espécie de experimentalismo.
O aforismo – sobre o que recai, freqüentemente, a responsabilidade da dificuldade de leitura e de compreensão dos textos nietzschianos – é parte das concepções epistemológicas que Nietzsche
sustenta quando recoloca, sob novas bases, as questões mais clássicas da filosofia e opera um deslocamento em relação à tradição da
Filosofia Ocidental. O aforismo é sintoma de um procedimento fundamental e necessário à efetiva concretização de um outro tipo de
filosofia que, diverso da Filosofia Ocidental, não mais se determina
às tarefas de descobrir a verdade e decifrar o sentido e a finalidade
da existência através da expressão da Idéia ou do conceito. O
aforismo é sinal inconteste do desejo nietzschiano, tantas vezes manifesto, de capturar o pensamento vivo – o pensamento súbito, que
emerge, que salta, pula, o pensamento que dança, que voa – sem a
ele opor qualquer resistência ou dirigir qualquer censura, porque a
forma aforismática quer refletir o movimento do próprio pensamento. O aforismo, mais que simples escolha estilística, é tributário da
determinação de fazer experiências com o pensamento, experiências
em que se devem incluir os desvãos, as digressões, as lacunas, as
rupturas, as descontinuidades e tudo o que não pode, efetivamente,
permitir o jugo da vontade e da intenção de um suposto “sujeito”
de cognição e expressão. Em Nietzsche, o experimentalismo é, ao
lado da eleição do aforismo, uma opção filosófica.
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A decisão – metodológica – de fazer experiências com o pensamento, de preferir o pensamento vivo, o pensamento que quase pode
ser “visto e ouvido” como algo que vem de fora e não de um “eu”
entendido como pura interioridade,8 exige a escolha de um outro
tipo de linguagem. O aforismo – quase sempre breve – permite a
Nietzsche a aproximação de idéias breves, fugidias, um tanto selvagens e ariscas, porque involuntárias como um “relâmpago”. Por isso
mesmo, é uma espécie de jogo capaz de conduzir a uma “gaia ciência” e não a um saber aborrecido como o saber tradicional. A forma aforismática e poética da linguagem não faz senão testemunhar
a favor da desconfiança nietzschiana da linguagem tradicional: um
texto pronuncia uma experiência – uma perspectiva – e não uma
verdade. A crítica nietzschiana da tradição filosófica é, pois, também a crítica da linguagem. Nietzsche confirma seu descrédito e
sua suspeita: a um só tempo, afasta-se da noção metafísico-científica de conhecimento e de verdade e da noção moderna de “sujeito”
e propõe uma espécie de conquista rápida e imediata de “verdades” múltiplas e experimentais9. Em face da escolha do aforismo,
desaparecem as absurdas noções de verdade, objetividade e sujeito: soberana, surge a escritura. “Considerando o gênero de problemas com os quais me ocupo, sou forçado a ser muito rápido para
que me entendam ainda mais rapidamente. (...) Existem verdades
tão particularmente selvagens e ariscas que só as podemos capturar
de surpresa; é surpreendê-las ou largá-las” (FW/GC § 374).
A eleição do aforismo e da palavra poética é, sem dúvida, estratégia seletiva. Com eles, Nietzsche distingue e escolhe o tipo de leitor que lhe é conveniente e oportuno, porque, se com a forma
aforismática configuram-se não só outra concepção de linguagem e
outra concepção de pensamento, mas também outra maneira de
compreender a relação que entre elas se estabelece, é, então, imperioso que o leitor suporte os perigos e as inconveniências da leitura
de um texto retalhado, recusando-se a permanecer no hábito da
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continuidade discursiva. Entre um aforismo e outro, há o provocativo
e instigante silêncio de difícil compreensão para o leitor. Nietzsche
quer o leitor capaz de suportar o peso desse silêncio e, mais que
isto, capaz de transformá-lo em oportunidade de experimentação e
criação. O silêncio que permeia os aforismos deve provocar um efeito
determinado: o leitor, distante agora da precisão da palavra a que
está habituado, pode perceber a arbitrariedade da linguagem e o
convencionalismo do sentido se capturar as “intuições” de sua própria “ruminação”.
Seletiva, a linguagem nietzschiana instala o leitor diante da árdua tarefa de interpretar o silêncio, as lacunas que se deixam entrever, a originalidade da coerência de uma filosofia que anda, viaja,
dança e não nega o pensamento súbito, repentino e inusitado. Com
freqüência, Nietzsche parece convicto de que, sendo raro, diferente
e especial, deve ser lido apenas pelos raros, diferentes e especiais,
possíveis cúmplices de suas “inspirações” e de seu modo de compreender a existência e a tarefa da filosofia: “alguns leitores que
consideramos muito e, se não, nenhum leitor: eis o que desejo realmente”.10 “Tomar nas mãos um livro meu parece-me uma das mais
raras distinções que alguém se pode conceder (...)” (EH/EH, Por
que escrevo tão bons livros, § 1).
Não bastassem a intempestividade de sua crítica, o tom inusitado da linguagem e a singularidade de seu estilo, outra dificuldade
constantemente se apresenta no caminho do leitor de Nietzsche: num
movimento de distinção de sua filosofia, Nietzsche procede a
freqüentes revisões de seus escritos. Aos leitores, mais uma imposição: necessário abrir-se ao permanente exercício de reinterpretação.
Não são raros os termos e as expressões que, no curso da obra,
sofrem profundas alterações que mais parecem contradição e efetiva
negação de si mesmas. É comum a observação de que, em Nietzsche,
um mesmo termo pode adquirir, em outro tempo e, portanto, em
outros textos, um significado inteiramente diverso do anterior. Ao
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longo da obra, perfilam-se diversas perspectivas, porque múltiplas
são as formas de abordagem de uma única questão. Entre um período e outro, até mesmo entre uma e outra obra, muitas vezes
Nietzsche expõe novas idéias e introduz novos elementos de análise. Há questões, de algum modo, abandonadas, em função do privilégio concedido a problemas outros, há as que são permanentemente retomadas e revistas e ainda as que se concebem quase
sempre sob a inspiração de perspectivas anteriores, o que não deixa
de apontar para o risco e a fragilidade do trabalho com periodizações da obra de Nietzsche: encerrar o pensamento nietzschiano em
períodos, como se houvesse a possibilidade de estancar seus pontos
de vista em delimitações temporais, é extremamente arriscado porque pode servir apenas para escamotear alterações e descontinuidades. Convém, portanto, reconhecer a periodização tão-somente
como um recurso didático, embora frágil e, muitas vezes, inoperante.
Em vista da constância do procedimento de revisão dos próprios textos, emerge, entre os intérpretes, uma série de considerações e comentários acerca da coerência da filosofia de Nietzsche.
Seria Nietzsche um pensador predestinado à contradição se seus
pontos de vista se multiplicam e se distinguem e sugerem, em razão
disto, a presença de contradições? Há razões, facilmente caucionadas por depoimentos do próprio Nietzsche, para o pressentimento
de que as supostas contradições são, na realidade, mais uma expressão do experimentalismo e também do perspectivismo que, de
algum modo, Nietzsche anuncia desde a Segunda consideração
extemporânea como estratégia de fuga da concepção filosófica afeita
à possibilidade de constituição do conhecimento e de conquista da
verdade. Se uma das proposições fundamentais da obra nietzschiana
é a de que “a verdade” não existe, a ele não caberia um comportamento idêntico ao do filósofo tradicional. Nietzsche não compreende a contradição tal como a filosofia tradicional. Contradizer-se, para
uma filosofia como a de Nietzsche, é necessário; é mesmo condição
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de sua crítica e dos experimentos, ensaios e aventuras a que submete seu pensamento. Contradizer-se é jogo, estratégia de linguagem e modo de filosofar.
As “contradições” representam, na realidade, um momento
decisivo de sua crítica, porquanto a multiplicidade de pontos de vista
é precisamente o que não se encontra no tipo de pensamento e de
linguagem que Nietzsche quer contestar – o pensamento e a linguagem tradicionais, lógico-racionais, predominantes na Filosofia Ocidental desde a instituição da Metafísica. Sob o interesse do olhar
nietzschiano, há uma coerência outra, diferente daquela promovida
pelo discurso da racionalidade exclusiva.
Nietzsche subverte a noção filosófica de verdade para ultrapassar o discurso puramente racional. Não por acaso, “caminhante solitário e das alturas”, prefere olhar “do alto”: “do alto”, os olhos
não aceitam a pura contemplação; antes, adquirem o frescor e a
vitalidade necessários à compreensão de que a riqueza do que percebem exige a multiplicidade de interpretações e a destruição da
unidade de um “eu” contemplativo. O “livre-pensador”, o “verdadeiro filósofo”, aquele que cria valores, tem que “cruzar todo o
âmbito dos valores e sentimentos de valor humanos e poder observálo com muitos olhos e consciências, desde a altura até a distância,
da profundeza à altura, de um canto qualquer à amplidão” (JGB/
BM § 211). “Ver assim diferente, querer ver assim diferente, é uma
grande disciplina e preparação do intelecto para a sua futura
‘objetividade’ – a qual não é entendida como ‘observação desinteressada’ (um absurdo sem sentido), mas como faculdade de ter seu
pró e seu contra sob controle e deles poder dispor: de modo a saber
utilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas e
interpretações afetivas.” (GM/GM III § 12)
A objetividade do olhar ou da palavra não reside na contemplação na linearidade ou na continuidade discursivas. Por isto, as análises nietzschianas, intempestivas, não são lineares ou demonstrati-
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vas. A linearidade é fadada ao fracasso, sobretudo porque não pode
compreender a dimensão trágica do mundo. “Existe apenas uma
visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo; e quanto mais
afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela, nossa ‘objetividade’. Mas eliminar a
vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? – não seria castrar o intelecto?...” (GM/GM III § 12)
Ao lado da assunção dos riscos provocados por seu estilo e seu
destino de intempestivo, solitário e incompreendido, um insondável
ressentimento acompanha Nietzsche. Em alusão a seus possíveis
leitores, a metáfora do anzol é recorrente em alguns textos posteriores a 1885 e serve ora para lamentar ora para afirmar sua solidão.
“A partir de então”, diz ele em Ecce homo, “todos os meus escritos
são anzóis (...). Se nada mordeu, não foi minha a culpa. Faltavam
os peixes” (EH/EH, Para além de bem e mal, § 1).
Ecce homo, com a autoridade de um texto autobiográfico, é, no
conjunto da obra nietzschiana, uma das mais claras expressões da
guerra que, internamente, é travada em Nietzsche: de um lado, a
preocupação com a incompreensão do “destino” que concedera a
si mesmo e de sua missão de “dinamite”; de outro, a confissão da
intempestividade e a estranha vontade de permanecer incompreendido. Especialmente nesta época – 1888 –, Nietzsche está preocupado – e, mais que isto, magoado – com o silêncio que, sobretudo na Alemanha, gira em torno de suas obras. Mas apesar do tom
de mágoa evidente, Nietzsche resiste: “tenho necessidade de solidão, quer dizer, recuperação, retorno a mim, respiração de ar livre,
leve, alegre...” (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 8). E resiste
porque tem ciência de que sua intempestividade e sua linguagem
são o traço ou o artifício de distinção de sua filosofia, do modo como
entende o filosofar e a tarefa do filósofo. Nietzsche é intempestivo,
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solitário e incompreendido porque entende a Filosofia – a atividade
do filósofo – de outro modo, diferente daquele peculiar à Filosofia
Ocidental. Supostamente acata a incompreensão a que se subjuga
sua obra porque não quer ser confundido com o filósofo da Metafísica – o idealista, o “decadént par excellence”; não quer ser cooptado
pelo pensamento habitual, corriqueiro, próprio da Cultura Ocidental desde Sócrates e Platão e próprio ainda da Modernidade, por
influência, não só da Metafísica como também da Religião Cristã11.
A escolha nietzschiana de outro tipo de linguagem é, pois, sintoma da oposição que Nietzsche pretende configurar entre dois tipos de Filosofia: a filosofia idealista e a trágico-dionisíaca. Enquanto a primeira dissimula a existência mediante a postulação de
categorias como unidade, permanência e identidade para aprisionála numa cadeia conceitual, o pensamento trágico considera o vir-aser, o movimento, as transformações, a contingência e o acaso para
afirmar a existência até em seus aspectos mais dolorosos e infames.
O trágico prescinde do conceitual, do lógico e da verdade: a existência não se permite aprisionar definitivamente pelo conceito e não
merece interdição, negação ou correção.
A intempestividade, a solidão e a linguagem poética e
aforismática definem a filosofia de Nietzsche: filosofar não é ausentar-se da existência e esconder-se no pensamento abstrato, frio e
supostamente desinteressado; é ocupar-se, inclusive, do “estranho”
e “questionável” do “existir” e de tudo aquilo que é “banido pela
moral”.
Abstract: Having in mind that untimeliness constitutes the key to an
authentic comprehension of the present time, the text aims at establishing
the relationships between Nietzsche’s experimental language and
philosophy and the Nietzschean criticism of the Western culture.
Keywords: philosophy – untimeliness – solitude – language –
experimentalism
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Notas
1
O Nascimento da tragédia não é bem recebido pelo meio
acadêmico de que Nietzsche participa à época de redação
do texto. Muito ao contrário: cria-se uma atmosfera hostil
em relação às suas postulações sobre os gregos. As ponderações acerca da Arte e da Grécia e o tom excessivamente
wagneriano de seu discurso, por algum tempo, afastam
Nietzsche e sua carreira universitária do sucesso acadêmico. Depois da publicação de O Nascimento da tragédia,
seus cursos regulares de 1872-1873 têm cada vez menos
alunos. Nem mesmo um artigo de Rohde em defesa do
texto e de Nietzsche tem permissão para ser publicado em
“Literarische Zentralblatt”, revista para a qual Nietzsche já
escrevera.
Em maio de 1872, Willamowitz-Möllendorf pronunciase publicamente contra o livro e acusa Nietzsche de
incompreensão e afastamento da filologia. Nietzsche lamenta
a repercussão de sua obra e as conseqüências para a Escola em que leciona, mas, de todo modo, mantém, em algumas cartas, a certeza da importância de sua primeira grande obra, mais tarde por ele criticada.
Cf. Carta de 28 de Janeiro de 1872, a Ritschl e de 04 de
Fevereiro de 1872, a Gersdorff e de 22 de Dezembro de
1888 a Peter Gast. Cf. também o Prefácio, escrito em 1886,
e o Capítulo de Ecce homo, ambos destinados a O Nascimento da tragédia. De Ecce homo, extrai-se da p. 61: “Tomado com alguma neutralidade, O Nascimento da tragédia
parece bem extemporâneo (...)”.
Na verdade, desde a época de estudante, Nietzsche percebe a diferença entre suas aspirações, as de alguns de
seus professores e, sobretudo, as de seu tempo. À guisa de
exemplo, poder-se-ia lembrar o encantamento sobre ele
exercido por um poeta até então quase desconhecido. Objeto
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de uma dissertação de escola, elaborada na década de 60,
Hölderlin – por quem será fortemente influenciado – é
apontado como seu “poeta preferido”. Ao longo da obra,
não faltam exemplos capazes de atestar a percepção de
Nietzsche de sua própria intempestividade.
Sobre a intempestividade de Nietzsche, cf. ainda: Assim
falava Zaratustra (“Do país da cultura”, “A volta ao lar”,
“Do espírito de peso”); Ecce homo (“Por que escrevo tão
bons livros” e capítulos sobre Extemporâneas, Humano, demasiado humano, Assim falava Zaratustra e O caso Wagner).
2
Sobre a relação esquecimento / memória, cf. especialmente
“Verdade e mentira no sentido extramoral” e a Segunda
consideração extemporânea.
3
Não é gratuito o fato de que a recepção do pensamento de
Nietzsche tenha sido, no início do século XX, orientada
por um interesse literário. Em Les mots et le choses (As palavras e as coisas), Foucault afirma: “A linguagem só entrou diretamente e por si própria no campo do pensamento
no fim do século XIX. Poder-se-ia mesmo dizer no século
XX, se Nietzsche, o filólogo – e nisso também ele era tão
erudito, a esse respeito sabia tanto e escrevia tão bons livros –, não tivesse sido o primeiro a aproximar a tarefa
filosófica de uma reflexão radical sobre a linguagem.”
4
Com a instauração do procedimento genealógico – em que
se subverte a tradicional pergunta pela verdade, também
através da crítica da linguagem –, Nietzsche pode continuar a crítica a que já havia submetido a Metafísica e, mais
ainda, proceder a um questionamento mais severo da Religião Cristã. Em especial, pode rejeitar a noção moderna
de sujeito como substrato do conhecimento e da ação. A
noção de valor, adotada a partir daí como critério privilegiado de análise, associada às noções de força e de vontade
de potência, leva Nietzsche a estabelecer uma espécie de
“tipologia de vontades” e, sobretudo, a substituição da idéia
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de sujeito pela idéia de força, o que acaba por convergir
para a confirmação do “perspectivismo” como alternativa
à idéia de conhecimento absoluto.
5
A partir do segundo período, em especial de Aurora e A
Gaia ciência, recusando, desde então, as disjunções corpo/alma e matéria/espírito, Nietzsche há de referir-se à
multiplicidade de afetos e pulsões como componentes do
humano a fim de definir o que, neste momento, entende
por vida. Tais afirmações serão de significativa importância para a formulação das idéias de força, vontade de potência e eterno retorno.
6
A partir de Humano, demasiado humano, Nietzsche se afasta
de Schopenhauer e, por esta via, também de Kant e da
célebre distinção kantiana entre fenômeno e coisa em si.
Aos olhos de Nietzsche, Kant não poderia mais estabelecer
a disjunção entre fenômeno e coisa em si, porque já havia
dito que não é possível deduzir o fenômeno de uma causa
dos fenômenos e o acusa de incoerência, frente à afirmação da “coisa em si” e à sugestão de impossibilidade de
seu conhecimento.
A legitimação do mundo inteligível é o bastante para que
Nietzsche se oponha a Kant. Contrário à rigidez da separação entre mundo sensível e mundo inteligível, fenômeno e
“coisa em si”, e avesso às conseqüências daí decorrentes,
desde Humano, demasiado humano, Nietzsche pondera que
a instauração do mundo inteligível deve-se a uma intenção
de ordem moral. Tornar o mundo inteligível irrefutável é,
pois, suficiente para o ataque severo à filosofia de Kant:
Nietzsche concebe-a como uma “filosofia de porta dos fundos”, porque o exame das idéias de Deus, imortalidade da
alma e liberdade deve ser realizado, em sua opinião, por
uma “história das origens do pensamento”. (Cf.
CALOMENI, Tereza Cristina B. A suspensão do ideal: a
análise nietzschiana da verdade e do conhecimento no con-
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texto de Para além de bem e mal e Genealogia da moral;
Dissertação de Mestrado em Filosofia apresentada à
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 19931994, pp. 37-39.)
Na verdade, a crítica a Kant aparece na filosofia nietzschiana a partir das Considerações extemporâneas, quando
Nietzsche acusa a relação de Kant com o Estado. (Cf. Terceira consideração extemporânea §7 e §8). No entanto, é
no segundo período que a crítica torna-se mais contundente ao se dirigir tanto ao problema do conhecimento quanto
à doutrina moral kantiana. (Cf. Humano, demasiado humano §19 e §25; O Andarilho e sua sombra §27 e § 216;
Aurora §3, §197 e §339; A Gaia ciência §335 e §357).
Quanto às críticas desenvolvidas no terceiro período, cf.
Para além de bem e mal §5, §11, §54, §187, §210 e
§228; Genealogia da moral III, §6, §12, §25; Crepúsculo
dos ídolos, Incursões de um extemporâneo, §16, §29 e
§49; Ecce homo, Considerações extemporâneas, §3 e O
Anticristo §3, §10, §11, §12 e §55.
7
Cf.: “A falsidade de um juízo não chega a constituir, para
nós, uma objeção contra ele; é talvez nesse ponto que a
nossa nova linguagem soa mais estranha. A questão é em
que medida ele promove ou conserva a vida, conserva ou
até mesmo cultiva a espécie; e a nossa inclinação básica é
afirmar que os juízos mais falsos (entre os quais os juízos
sintéticos a priori) nos são os mais indispensáveis, que, sem
permitir a vigência das ficções lógicas, sem medir a realidade com o mundo puramente inventado do absoluto, do
igual a si mesmo, o homem não poderia viver – que renunciar aos juízos falsos equivale a renunciar à vida, negar a
vida. Reconhecer a inverdade como condição de vida: isto
significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os
habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além do bem e do
mal.” (JGB/BM § 4).
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Especialmente no terceiro período, Nietzsche se afasta da
filosofia cartesiana, da metafísica da subjetividade e, portanto, das idéias de “eu”, “unidade” e identidade. Para
um tal afastamento, concorrem as críticas do segundo período e, em especial, a idéia de “pulsão”. Confirmando a
crítica da “vontade psicológica”, o “eu”, em Nietzsche,
não é supremacia da interioridade.
9
Cf. A gaia ciência § 371.
10
Sobre a relação Nietzsche/leitor cf. especialmente Ecce homo
(Por que escrevo tão bons livros) e Genealogia da moral
(Prólogo).
11
Os títulos atribuídos aos capítulos constituintes de Ecce
homo são um bom exemplo do quanto Nietzsche se esquiva
de uma possível identificação ou confusão com o idealista.
O tom exagerado e, aparentemente, arrogante dos títulos
deve ser compreendido como mais uma de suas estratégias
de afastamento das virtudes e qualidades cristãs, muito
embora seja comum a interpretação de que a “falta de
modéstia” de Nietzsche já seja sintoma da “loucura”
iminente.
8
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Calomeni, T.C.B.
Referências bibliográficas
1. CALOMENI, Tereza Cristina B. A suspensão do ideal. Dissertação de Mestrado em Filosofia apresentada à
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em
Fevereiro de 1994.
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3. _______. As Palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
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São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
5. _______. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das
Letras, 1995.
6. _______. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução
de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras,
1998.
7. _______. Obras incompletas. In: “Os Pensadores”. São
Paulo: Abril Cultural, 1983.
8. _______. Oeuvres Philosophiques Complètes. Paris:
Gallimard, 1977.
9. _______. SämtlicheWerke. Kritische Studienausgabe. Edição de Colli e Montinari. Berlim, Walter de Gruyter,
1980.
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Filosofar em abismo: “cada filosofia esconde também uma filosofia”
Filosofar em abismo:
“cada filosofia esconde
também uma filosofia”
Priscila Rossinetti Rufinoni*
Resumo: Partindo da análise das críticas de Nietzsche endereçadas a Kant
em A gaia ciência e Para além de bem e mal, evidenciaremos o caráter
dogmático de alguns aspectos artísticos, filosóficos e científicos da
modernidade. Seguindo esse caminho, pretendemos mostrar como essa
crítica ao mundo moderno (e kantiano) está relacionada ao estabelecimento da nova perspectiva filosófica de Nietzsche.
Palavras-chave: Kant – modernidade – máscara – perspectiva
No prólogo de Para além de bem e mal, Nietzsche caracteriza a
verdade como uma mulher. Assim também a Gramática – “a ‘razão’ na linguagem: oh! que velha e enganadora personagem feminina! Temo que não nos desvencilhamos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática!” (GD/CI, A “razão” na filosofia, § 5) – e a
“fada Romantismo”1. E não é a mulher, pelo menos desde o século
XVI, o símbolo máximo da maquiagem, da máscara? Não é uma
mulher a figura da Fortuna? Não são femininos os atributos da
inconstância, da fraqueza, mas também da dissimulação, da sedução, do entorpecimento? Em busca da conquista dessas senhoras,
os filósofos não foram antes enganados, seduzidos?
*
Pós-graduanda do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.
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Rufinoni, P.R.
Herdeiro do Iluminismo, o mundo moderno quis afastar-se do
que era obscuro, enganador: a arte e a política do século XVIII pautavam-se por um ideário estóico de “espontaneidade”. Lugar-comum
do racionalismo, pensava-se, assim, poder iluminar todos os cantos
escondidos, desmascarar todas as superstições, em prol de uma razão totalizadora. O século XIX pode ser visto como o ápice deste
projeto “racional”; mas, opaca contradição nessa época transparente, a tópica do “elogio da maquiagem” de Baudelaire demarca a
estética moderna; a dissimulação, a máscara, o artifício fazem parte
também do aparato da modernidade: “Paralisia da vontade: onde
hoje não se encontra sentado esse aleijado! Há as mais belas vestes
de pompa e mentira para essa doença; por exemplo, a maioria daquilo que hoje, como ‘objetividade’, ‘cientificidade’, ‘l’art pour l’art’,
‘puro conhecer isento de vontade’, se põe nas vitrinas, é somente
skepsis e paralisia de vontade enfeitadas” (JGB/BM § 208). Maquiagem, belas vestes oferecidas à sedução nas vitrinas – a ciência
objetiva, a arte desinteressada, ou seja, o positivismo e o romantismo extremado nas poéticas simbolistas –, todo esse universo da dissimulação feminina, análogo ao da dissimulação metafísica, não
passa de máscaras, de skepsis, de paralisia ante uma investigação
mais profunda, mais perigosa.
Cada uma das perspectivas da “modernidade” vai receber, em
vários momentos, críticas de Nietzsche: já em 1873/74, o autor escrevera as Considerações Extemporâneas. Nessas primeiras impressões da História, Nietzsche responde a um período crítico, no qual
desenvolvimento e crises cíclicas engendram a decadência política
e cultural da burguesia, “com o resultado de transformar o intelectual em funcionário capital do Estado (sobretudo na Alemanha de
Bismarck)”.2
O plano histórico, o político e o filosófico são indissociáveis nessas críticas da década de 70. A contestação nietzschiana da era de
Bismarck, encarnada em suas diversas facetas – as “fachadas”
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econômica, cultural, política –, tem inicialmente no hegelianismo o
centro teórico: a dialética “planta” na história uma “teologia camuflada”, “uma auto-revelação”, perspectiva bastante funcional para
a construção da modernidade (cf. HL/Co.Ext. II). Na década seguinte, em Crepúsculos dos ídolos, outras “incursões extemporâneas”
retornam às críticas das fachadas do moderno, agora sob o ponto
de vista do pensamento maduro do filósofo, numa perspectiva menos antropomórfica e mais cosmológica; encadeiam-se, baralhamse nessas considerações “anti-darwinismo”, crítica a Schopenhauer,
ao art pour l’art, à moral “democrática”, à liberdade como entendida pelos modernos. Nessas segundas críticas extemporâneas, o “funcionário”, isto é, o “operário do saber” a serviço do Estado, aquele
que não experimenta, não vivencia o pensamento, identifica-se com
Kant:
“— ‘Qual filosofia dá a melhor definição do funcionário?’
— ‘A de Kant; o funcionário como coisa em si constituído juiz do
fenômeno.’” (GD/CI, Incursões de um extemporâneo, § 29).3
Mas, se tudo são fachadas, são “paralisias da vontade enfeitadas”, ou seja, “funcionarismo do saber”, qual é o estatuto dessa
crítica radical de sua contemporaneidade? De onde fala esse filósofo “extemporâneo”? A perspectiva crítica de Nietzsche pode ser
rastreada em outros livros da década de 80, obras que circundam a
vinda de Zaratustra – A Gaia Ciência e Para além de bem e mal.
Sobre A Gaia Ciência, sabemos que é a gestação de Zaratustra e do
eterno retorno; portanto, é a obra na qual a crítica extemporânea se
transforma em instrumento para a criação de uma nova perspectiva: ao afirmar ter voltado pela última vez a Schopenhauer e Wagner
(o que não ocorreu), Nietzsche tencionava, pois, conservar o que
neles (nas suas respectivas facetas da “modernidade”) era grande e
indicador do futuro e ir além de seus erros e faltas.4
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Rufinoni, P.R.
Em Para além de bem e mal, Nietzsche busca definir a “máscara” filosófica dos tempos modernos; os filósofos partiram para “descobertas”, pensavam ingenuamente encontrar “fundamentos”: “o
que não se achou naquele tempo inocente, rico, ainda juvenil do
espírito alemão, em que o romantismo, essa fada malvada, tocava e
cantava por todos os lados, naquele tempo quando ainda não se
sabia evitar confundir ‘achar’ e ‘inventar’!” (JGB/BM § 11). Confundiu-se “texto” com “interpretação”, “achar” com “inventar”. Ou
seja, se toda a filosofia kantiana (e devemos, adverte Nietzsche, “pensar ainda no descomunal efeito que a ‘filosofia alemã’ – entende-se,
ao que espero, seu direito às aspas – exerceu na Europa inteira”
(JGB/BM § 11) ) aspira à crítica radical da modorra dogmática em
que dormíamos até a alvorada dos “novos tempos”, ela pára antes
desse intento de pesquisa até o fundo, pára em um “fundamento”
arbitrariamente definido, “achado”. Ora, Kant diz ter “descoberto”
a faculdade para os juízos sintéticos a priori; diz ter “achado” uma
faculdade que possibilita juízos de experiência através de sua forma apriorística, transcendental. Mas descobre, segundo Nietzsche,
uma faculdade que permite tais juízos porque tem a faculdade para
tais juízos? Descobre uma tautologia? Ou seja, a mesma “resposta
de comédia” do médico de O Doente imaginário de Molière: o ópio
faz dormir porque tem virtus dormitiva?
“A pergunta kantiana ‘como são possíveis juízos sintéticos a
priori?’” precisa ser substituída por uma outra: “‘por que é preciso
a crença em tais juízos?’”. Trata-se de “crença”, já que a “faculdade para juízos sintéticos” é um “fundamento” inventado. Então, por
que precisamos ainda desse novo sono dogmático, dessa virtus
dormitiva, quando o criticismo se propunha à mais radical investigação da própria razão humana? Ora, porque assim, por essa virtude recém “descoberta”, afastamos o sensualismo, não ficamos sem
a possibilidade de descer ou subir à outra realidade que não a dos
impulsos que os sensualistas quase descobriram. Consolidamos uma
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perspectiva de onde podemos interpretar o mundo, a da “ótica perspectiva da vida”, uma fachada moderna fundada pelo entorpecimento “romântico”. Uma fachada fixada sobre o abismo, “sobre
um sem-fundo [que] se esconde em cada fundo”, e não sobre o chão
firme do “fundamento” – tarefa a que se propunha Kant: “tornar
plano e sólido o chão para esses majestáticos edifícios éticos”5; uma
perspectiva apenas, e não a análise filológica do “texto”. A filosofia
kantiana é, então, uma espécie de novo sono dogmático, que repõe
em termos ainda mais “sólidos”, pois adequados ao pensamento
moderno, o edifício da moral (e por que não poderíamos descobrir
uma “faculdade moral”, se precisamos dela?): metafísica,
contrabandeada “pela porta dos fundos”.
Nietzsche parece não levar em conta as sutilezas da filosofia
kantiana, não perceber que Kant não duplica as faculdades, mas
distingue prática e teoria, pensar e conhecer, sensível e inteligível;
que as faculdades não são senão “virtualidades” que tornam possível a “leitura”: “as categorias, os conceitos puros do entendimento,
são juízos sintéticos que operam como condições de virtualidade da
experiência (não de sua atualidade): mas nada pode ser atual sem
antes (isto é, a priori) ‘ter sido’ virtual. (...) Aqui está portanto a
tautologia: é virtual aquilo que virtualiza, possível por ser condição
de possibilidade (...) Ou, não há objeto da experiência antes da experiência, e é no mesmo ato que experiência e objeto se tornam
possíveis”6. Mas Kant (assim como Platão e Sócrates) pode ser pensado em Nietzsche como um “tipo”, outra personagem da cadeia
tipológica em que figuram o cristão e o judeu. Quando Nietzsche
vai apresentar o “espírito livre”, este não é o que refuta “as tábuas
das categorias”; não é o que destrói a perspectiva kantiana, mas
aquele que desconfia (“não refuto os ideais, apenas calço luvas diante deles...”) (EH/EH, Prefácio, § 3). Calçar luvas, ter a finura de
desconfiar, porque os “vícios e excessos” de uma filosofia são sempre aceitos primeiramente e “transformados em coisa de fé”7:
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kantismo, socratismo. Assim, Nietzsche enfatiza que a sua filosofia
é uma filosofia da solidão, uma filosofia sem discípulos, sem “crentes”. E, se o kantismo é o entorpecimento moderno, base da nova
“crença”, da perspectiva do crítico da modernidade, Kant é, talvez,
o inverso de Nietzsche, seu antípoda.8
Da crítica a Kant, Nietzsche deriva sua crítica à perspectiva moderna: é a herança do kantismo, a “filosofia moderna” subjetivista
extremada na revolução copernicana, que possibilita a cisão entre o
sujeito que conhece e o objeto conhecido, esse sujeito amplificado
que olha de fora o “livro do mundo”, o “texto” objetivamente dado,
ponto de vista dos mais “científicos” dentre os adotados pela
modernidade. Se, antes da década de 80, Nietzsche havia se identificado com essa perspectiva aparentemente isenta dos “preconceitos dos filósofos”, com essa profissão de “desconfiança” de
“anticonvicção” das ciências, em A Gaia Ciência o filósofo se reconhece ainda “um crente”.
Aparentemente, “na ciência as convicções não têm nenhum direito à cidadania, assim se diz com bom fundamento: somente quando elas se resolvem a rebaixar-se à modéstia de uma hipótese, de
um ponto de vista provisório de ensaio, de uma ficção regulativa,
pode ser-lhe concedida a entrada e até mesmo um certo valor dentro do reino do conhecimento - sempre com restrição de permanecerem sob vigilância policial, sob a polícia da desconfiança” (FW/
GC § 344); mas, para a ciência poder começar já não é preciso
uma “convicção”, um “pressuposto”, e o pressuposto da ciência
moderna não é a perspectiva do “não-querer-se-deixar-enganar”?
Escavando além dessa “convicção”, o filósofo pergunta: por que
desconfiar é melhor que confiar e a verdade é melhor que o engano? “O que sabeis de antemão do caráter da existência, para poder
decidir se a maior vantagem está do lado do desconfiado incondicional ou do confiante incondicional?”, ou “que a verdade é mais
importante que qualquer outra coisa?” A verdade não é um entor-
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pecimento moral? Não é ela uma mulher sedutora, e por isso digna
de desconfiança? Não seriam o engano, a mentira e o erro caminhos tão profícuos quanto a “verdade”? Ser confiante ou desconfiado “incondicional” já não é por demais dogmático? Mesmo que por
desconfiança, por “pesquisa” em busca da verdade, quem destrói
os demais pontos de vista em favor de um único também parte de
uma convicção e, dessa forma, “se situa no terreno da moral”. Assim como na filosofia, exemplificada na paralisia de Kant frente à
“descoberta das faculdades”, a fixação de uma perspectiva para a
ciência é sempre arbitrária, não há razões “científicas” para a convicção, por mais que acreditemos nelas, mas apenas escolha moral.
Ao assumir a ciência como perspectiva de crítica, Nietzsche reconhece, em um profundo desconfiar de si mesmo, que “nosso fogo,
nós o tiramos ainda da fogueira que uma crença milenar acendeu,
aquela crença cristã, que era também a de Platão, de que Deus é a
verdade, de que a verdade é divina...” (FW/GC §344).
Em Para além de bem e mal, kantismo e ciência moderna podem ser lidos como “fachadas” da mesma convicção: “Perdoem este
velho filólogo, que não pode resistir à maldade de pôr o dedo sobre
artes-da-interpretação ruins: mas aquela ‘legalidade da natureza’,
de que vós físicos falais com tanto orgulho, como se... – só subsiste
graças a vossa interpretação e ‘filologia’ ruim – não é nenhum estado de coisa, nenhum ‘texto’, mas somente um arranjo ingenuamente
humanitário e uma distorção de sentido, com que dais plena satisfação aos instintos democráticos da alma moderna” (JGB/BM § 22).
Nesse aforismo, Nietzsche devolve à física sua herança “filosófica” e antropomórfica. A “legalidade da natureza” não é a transcrição de uma causa final, teleológica, para a linguagem científica?
Não é substituir Deus por uma Natureza “moral”? E não é, também, outro sono dogmático, outro “inventar” ao invés de “achar”
esse “fundamento” arbitrário de “leis naturais”? Esse artifício do
“como se...” busca ler no “livro do mundo” uma “técnica”, “arte”
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daquele juízo kantiano aplicado à natureza para que essa coincida
com nossas idéias de causalidade final: juízo antropomórfico, produto daquela mesma “faculdade” capaz de produzir juízos sintéticos a priori. Em outro aforismo, Nietzsche marca claramente a ilusão “gramática” que permite esse olhar objetivo sobre o mundo:
“rimos quando encontramos ‘homem e mundo’ colocados lado a
lado, separados pela sublime pretensão da palavrinha ‘e’!” (FW/
GC § 346).
Assim como o darwinismo, esse físico moderno tira da singularidade a força dando-a à “Natureza”. 9Essa generalização é
niveladora: “por toda parte igualdade diante da lei – nisso a natureza não está de outro modo do que nós” – maneiroso pensamento,
diz Nietzsche, pensamento de virtuose, digno do “romantismo”.
Assim, até mesmo a natureza cumpre seu papel “democrático”,
passando da “legalidade” à “moralidade” moderna (e kantiana).
Podemos perguntar, duvidando novamente como em A Gaia
Ciência § 344, por que a “legalidade”, por que essa convicção é
melhor que seu inverso? E se tomássemos como experimento uma
perspectiva contrária? Nietzsche propõe, então, não a “filologia” do
“texto”, não a busca do “estado de coisa”; propõe, a partir do mesmo “livro do mundo”, uma “leitura” inversa, mas igualmente possível: “poderia vir alguém que, com a intenção e a arte da interpretação oposta, soubesse, na mesma natureza e tendo em vista os
mesmos fenômenos, decifrar precisamente a imposição tiranicamente irreverente e inexorável de reivindicação de potência”. E se esse
intérprete levasse sua interpretação até onde as palavras já não servissem senão como metáforas atenuadas, demasiado humanas? E
se, apesar dessa perspectiva inversa, o intérprete constatasse a mesma disposição desse mundo, que ele é “necessário e calculável”,
mas não pela “legalidade”, e sim porque lhe faltam leis? Apenas
outra perspectiva? Para Nietzsche, se o “físico moderno” chegasse
a essa pergunta – seria ele bastante zeloso para fazer essa observa-
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ção? – “tanto melhor!” (JGB/BM § 22). A convicção de ter chegado
ao “texto” foi desfeita por essa suma desconfiança. É uma desconfiança corrosiva: à perspectiva antropomórfica do “homem moderno”, Nietzsche contrapõe outra igualmente “desconfiável” (note-se
que todo o texto está na condicional, “poderia...soubesse”), mas uma
perspectiva que olha mais longe, além das fachadas humanas; uma
perspectiva cosmológica que aceita ir às últimas conseqüências de
sua hipótese, que não pára em nenhum “fundamento”, que não se
apega à gramática, pois as palavras já são “metáforas atenuadas”,
demasiado humanas.
Se existem duas perspectivas para a ciência esboçadas na seção
22 de Para além de bem e mal, Nietzsche faz corresponder a elas os
dois tipos de filósofos descritos no capítulo “O espírito livre”, do
mesmo livro. Um deles é o filósofo “moderno”, caracterizado como
um rapaz desajeitado, loquaz, “democrático”, daqueles que gostariam de buscar com todas as suas forças “a universal felicidade de
rebanho em pasto verde, com segurança, ausência de periculosidade, comodidade, facilitamento de vida para todos; suas duas cantadas se chamam ‘igualdade de direito’ e ‘simpatia por tudo o que
sofre’” (JGB/BM § 44). E mesmo esse sofrimento tão importante
para esses rapazes é visto como demais, algo perigoso “que é preciso abolir”. Esse medo, essa busca de “repouso, quietude, mar liso,
redenção de si mesmo pela arte e pelo conhecimento, ou então a
embriaguez, o espasmo, o ensurdecimento, o delírio”, é típica do
sofredor romântico descrito em A Gaia Ciência, aqueles que não
sofrem por “abundância de vida” (FW/GC § 370). Assim, a filosofia da ciência “objetiva” converge para seu aparente “oposto”, a
arte “subjetiva”, encarnada em outra personagem típica, Wagner.
É como um gesticulador fragmentário, um eloqüente delirante e pictórico (pitoresco) que Nietzsche descreve o compositor10.
À excessiva loquacidade, à gesticulação do virtuose, do “homem
pitoresco” (cf. EH/EH, Por que sou tão inteligente, § 10), do “ho-
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mem sem solidão”, Nietzsche contrapõe o “espírito livre”, e depois,
ao final de um texto, o ermitão, como seus antípodas, seus inversos:
“Nós, os seus inversos, que abrimos um olho e uma consciência
para a pergunta: onde e como até agora a planta ‘homem’ cresceu
mais vigorosamente em altura, pensamos que isso aconteceu, toda
vez, sob as condições inversas, que, para isso, a periculosidade de
sua situação tinha antes de crescer até o descomunal, sua força de
invenção e de disfarce (seu espírito...) (...), nós pensamos que dureza, violência, escravidão, perigo na rua e no coração, ocultamento,
estoicismo, artimanha, diabolismo de toda espécie, que tudo que
há de mau, terrível, tirânico, tudo que há de animal de rapina e de
serpente no homem serve tão bem à elevação da espécie ‘homem’
quanto seu oposto.”(JGB/BM § 44). Em oposição às palavras “legalidade”, “igualdade”, “rebanho”, Nietzsche usa “tirania”, “escravidão”, “animal de rapina”. Novamente é uma perspectiva inversa,
mesmo que a partir de constatações idênticas no “livro do mundo”.
Nesse momento, em Para além de bem e mal, Nietzsche começa a investigar o campo moral, e faz da crítica radical, da desconfiança, da voz solitária dos abismos da suspeita, componentes de uma
outra perspectiva: uma perspectiva que se sabe interpretação, mas
interpretação desperta do sono dogmático, suspensa sobre o semfundo que se esconde em cada fundo, incrustada em uma caverna
provisória, pois, “por trás de cada caverna, não jaz, não tem que
jazer uma caverna ainda mais profunda?” (JGB/BM § 289). Esse é
um primeiro sim aos abismos. O ermitão ouve o duelo/diálogo das
perspectivas, vive desse jogo, desconfia das “últimas opiniões” que
pretendem silenciar as justas, dos “fundamentos” sempre arbitrários, sempre suspensos sobre os abismos movediços das palavras, das
filosofias. “Há algo de arbitrário se aqui ele se deteve, olhou para
trás, olhou em torno de si, se aqui ele não cavou mais fundo e pôs
de lado a enxada –há algo de desconfiado nisso”(JGB/BM § 289):
parar aqui é fazer-se surdo para outras vozes, é querer abaixar a
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enxada e deixar o campo, deixar o jogo, fugir, embriagar-se, entorpecer-se. E não precisamos da virtus dormitiva como um entorpecimento contra o sensualismo? Não precisamos de um “alvo”, uma
“meta” teleológica para a Natureza, não precisamos de um “fundamento”, um aqui onde parar (e um além aonde chegar) como “pressuposto” para a ciência?
Não há onde descansar, não há mar liso, apenas “forças
tempestuando e ondulando em si próprias, eternamente mudando,
eternamente recorrentes”11 (XI, 38 [12]), diz Nietzsche em um póstumos contemporâneo à redação de Para além de bem e mal. Não
há uma “essência” a se desmascarar. Não existem “últimas palavras”, somente interpretações, vir-a-ser: “cada filosofia esconde também uma filosofia; cada opinião é também um esconderijo, cada
palavra também uma máscara” (JGB/BM § 289).
Abstract: Starting from the analysis of the critic which Nietzsche addresses
to Kant in his The Gay Science and Beyond Good and Evil, we will examine
the dogmatism of some artistic, philosophical and scientific aspects of
modernity. Second, we will show relationship between the Nietzsche’s
criticism of modern (and Kantian) world and the basis of his new
philosophical perspective.
Keywords: Kant – modernity – mask - perspective
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Notas
Segundo comentário de Rubens Rodrigues Torres Filho:
“die Romantik; em alemão o gênero é feminino. Isso explica o apelido ‘fada’. Sabe-se, de resto, a conotação que
tem, em Nietzsche, o gênero feminino das entidades
abstratas (a metafísica, a verdade)”. Torres Filho 7, p. 32,
nota 13.
2
Martelli 2, p. 15.
3
Apud: Marton 3, p. 104.
4
Sobre A Gaia Ciência, cf: Salaquarda 6, pp 75-94.
5
Apud: Marton 3, p.106.
6
Torres Filho 7, p. 40.
7
Apud: Salaquarda 6, p. 90.
8
Marton 3, p. 117.
9
“O projeto darwinista é a exaltação de uma natureza que
esmaga a força da singularidade”. Kossovitch 1, p. 24.
10
Como nos diz Müller-Lauter: as obras de Wagner “são no
fundo gestos musicados, atitudes reforçadas pela música,
a partir dos quais se compõe a selvagem multiplicidade
(WA/CW § 7), uma grandiosa massa que confunde os sentidos (10 [37] da primavera de 1888). De acordo com
Nietzsche, Wagner está, enquanto músico, entre os pintores (cf: JGB/BM § 256)” .Muller-Lauter 4, p. 14.
11
Usamos a tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho.
“Sobre o niilismo e o eterno retorno”, § 1067, In: Nietzsche
5, p. 397.
1
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Filosofar em abismo: “cada filosofia esconde também uma filosofia”
Referências Bibliográficas
1. KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. São
Paulo: Ática, 1979.
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Edizione Quattro Venti, 1988.
3. MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
2000.
4. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. “Décadence artística enquanto décadence fisiológica. A propósito da crítica
tardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wagner”.
Tradução de Scarlett Marton. In: Cadernos Nietzsche
(6). São Paulo: Departamento de Filosofia/USP, 1999.
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Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
6. SALAQUARDA, Jörg. “A última fase de surgimento de A
Gaia Ciência”.Tradução de Barbara Salaquarda e
Oswaldo Giacoia Junior. In: Cadernos Nietzsche (6).
São Paulo: Departamento de Filosofia/USP, 1999.
7. TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. “A virtus dormitiva
de Kant”. In: Ensaios de Filosofia Ilustrada. São Paulo: Brasiliense, 1987.
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A Linguagem em Nietzsche: as Palavras e os Pensamentos
A Linguagem em Nietzsche:
as Palavras e os Pensamentos
Paula Braga*
Resumo: Este artigo apresenta algumas idéias de Nietzsche sobre a linguagem e enfatiza o uso que o filósofo faz da metáfora para desestabilizar
conceitos. A linguagem metafórica revela a natureza do conhecimento como
mais próxima da interpretação do que da explicação. A linguagem é tratada por Nietzsche não mais como ferramenta para um projeto de alcance
da verdade, mas como evidência da impossibilidade de tal tarefa.
Palavras-chave: linguagem – metáfora – interpretação – consciência
No projeto de transvaloração dos valores, Nietzsche ataca a pretensão da linguagem de ser veículo para cristalização da verdade. O
filósofo questiona a origem dessa necessidade de verdade, e demonstra quão inapta é a ferramenta linguagem para a tarefa de expressar
pensamentos. Concomitantemente, desenvolve tal projeto através de
escritos sedutores que envolvem o leitor em imagens metafóricas.
Se a linguagem é uma tecnologia inadequada para apreensão de
pensamentos, o que estamos lendo ao mergulharmos nos textos de
Nietzsche? A valorização da metáfora em seus textos pode fornecer
uma resposta a essa questão. Transportando palavras de uma esfera de significação a outra totalmente distinta, o uso da metáfora pode
*
Mestre em História da Arte pela University of Illinois at Urbana-Champaign.
cadernos Nietzsche 14, 2003
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Braga, P.
bem ser uma estratégia do filósofo para contornar as limitações da
escrita. Metáfora como metáfora da transvaloração, o projeto de
mudar de lugar conceitos e reconstruir (e destruir) nossos edifícios
de idéias. Seguindo esta suposição, estaríamos lendo nas metáforas
do filósofo não apenas exercícios artísticos, mas seu esforço de, através da forma, demonstrar a impossibilidade de se tocar pensamentos mais raros e, por ouro lado, indicar a possibilidade de
reformulação de nossa matriz de pensamentos através da capacidade humana de redefinição de conceitos.
Em “Sobre verdade e mentira no sentido extramoral”, Nietzsche
pergunta: “O que é uma palavra? A figuração de um estímulo nervoso em sons. (...) Um estímulo nervoso primeiramente transposto
em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em som! Segunda metáfora. (...) Acreditamos saber algo das
coisas mesmas, quando falamos de árvores, cores, neve e flores, e
no entanto não possuímos nada mais do que metáforas das coisas,
que de nenhum modo correspondem às entidades de origem (...)”
(WL/VM § 1).
Conclui Nietzsche que o material de trabalho do filósofo, a linguagem, não poderia provir da essência das coisas. É, sim, mera
invenção, e portanto a verdade, suposto resultado da investigação
filosófica, não pode ser nada além de “um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações
humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas,
canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força
sensível (...)” (WL/VM § 1).
A palavra é, assim, gerada a partir de uma série de transportes,
processo que se inicia no estímulo nervoso (a entidade de origem),
e portanto no nível fisiológico, até diluir-se no âmbito das relações
humanas, quando então já não guardam relação com o corpo, o sen-
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A Linguagem em Nietzsche: as Palavras e os Pensamentos
sível. Tal transporte e mudança de estágios são o cerne do processo, nato no ser humano, de formação de metáforas. Mas serão todas as metáforas gastas e sem força sensível, meras pedras do grande edifício dos conceitos? O mesmo texto parece indicar que não,
e, com efeito, aponta para a possibilidade da metáfora-andaime1
criadora, que, ao invés de virar conceito, revira os conceitos: “Esse
impulso à formação de metáforas (...) procura um novo território
para sua atuação e um outro leito de rio, e o encontra no mito e em
geral na arte. (...) Aquele descomunal arcabouço e travejamento de
conceitos, ao qual o homem indigente se agarra, salvando-se assim
ao longo da vida, é para o intelecto que se tornou livre somente um
andaime e um joguete em seus mais audazes artifícios: e quando
ele o desmantela, entrecruza, recompõe ironicamente, emparelhando o mais alheio e separando o mais próximo, ele revela que não
precisa daquela tábua de salvação da indigência e que agora não é
guiado por conceitos mas por intuições. Dessas intuições nenhum
caminho regular leva à terra dos esquemas fantasmagóricos, das abstrações: para elas não foi feita a palavra, o homem emudece quando as vê, ou fala puramente em metáforas proibidas e em arranjos
inéditos de conceitos, para pelo menos através da demolição e
escarnecimento dos antigos limites conceituais corresponder criadoramente à impressão de poderosa intuição presente” (WL/VM § 2).
O artista, criador de metáforas-construtoras (em oposição a
metáforas liquefeitas em conceitos), não visa a autoconservação, mas,
ao contrário, busca o florescimento de sua força criadora: “uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida
é vontade de potência –: a autoconservação é apenas uma das
indiretas, mais freqüentes conseqüências disto.”(JGB/BM § 13) O
texto ainda esclarece que, se a palavra não pode aproximar-se dos
pensamentos mais raros (intuições) pode, ao menos, embaralhar o
sólido mundo dos conceitos. Ao empregar a metáfora, portanto,
Nietzsche está dispondo da linguagem no que ela tem de mais no-
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bre e melhor a oferecer: a capacidade de ao menos apontar para
novas alternativas, dar vazão à força criadora, fornecendo-nos andaimes para construções mais abstratas e valorização das intuições.
A “intuição” citada no texto de 1873 já indica a importância
que fenômenos fisiológicos e o corpo terão nos futuros escritos de
Nietzsche e no projeto de transvaloração dos valores. Em A Gaia
Ciência, de 1881, Nietzsche investiga a relação corpo-pensamento
através do questionamento do conceito de consciência, e daí parte
para o ataque à subjetividade, à superstição do “eu”. Novamente a
arte é vista como o oposto da função autoconservadora, que exige a
linguagem das metáforas enfraquecidas em conceitos para a
autopreservação: “(...) onde a necessidade, a indigência coagiram
longamente os homens a se comunicarem, a se entenderem mutuamente com rapidez e finura, acaba por haver um excedente desta
força e arte da comunicação, como que uma fortuna que pouco a
pouco se acumulou e agora espera por um herdeiro que a gaste
perdulariamente ( – os assim chamados artistas são esses herdeiros, do mesmo modo que os oradores, pregadores, escritores: todos
os homens que sempre vêm no final de uma longa série, sempre
‘nascidos tarde’, no melhor sentido da palavra e, como foi dito, por
essência perdulários).” (FW/GC § 354)
Da necessidade de autopreservação e de comunicação eficiente
nasceu a linguagem banalizada. Para suprir suas necessidades, o
homem teve de se comunicar com outros homens e, antes disso,
identificar suas necessidades, criar respostas ao “eu quero”, e assim gerou-se o pensamento consciente. A “consciência” longe de
ser um “órgão” ou parte de nosso sistema fisiológico, não passa de
uma necessidade e invenção social. Nossas intuições e impulsos
ocorrem em níveis muito mais profundos do que a superficial consciência, que transmite ao exterior apenas a parte mais vulgar do
pensar, que é posta em palavras: “(...) o homem como toda criatura
viva pensa continuamente, mas não sabe disso; o pensamento que
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A Linguagem em Nietzsche: as Palavras e os Pensamentos
se torna consciente é apenas a mínima parte dele, e nós dizemos: a
parte mais superficial, a parte pior: – pois somente esse pensamento consciente ocorre em palavras, isto é em signos de comunicação
(...) a consciência não faz parte propriamente da existência individual do homem, mas antes daquilo que nele é da natureza de comunidade e de rebanho” (FW/GC § 354).
Disso se segue que o que tomamos pelo “eu” ou por nossa “consciência” é uma construção social banalizadora, pois é feito de palavras, que, conforme enfatizado em Para além de bem e mal (JGB/
BM § 268) homogenizam experiências, com o intuito utilitário de
facilitar a comunicação. A própria tentativa de se falar de um sujeito destrói este sujeito e suas experiências mais individuais: “Não
nos estimamos mais o bastante, quando nos comunicamos. Nossas
vivências mais próprias não são nada tagarelas. Não poderiam comunicar-se, se quisessem. É que lhes falta a palavra. Quando temos palavras para algo, também já o ultrapassamos” (GD/CI, Incursões de um extemporâneo, § 26).
Nada é mais distante dos pensamentos individuais do que este
“eu” feito de palavras-conceitos: “(...) conseqüentemente cada um
de nós, com a melhor vontade de entender a si mesmo tão individualmente quanto possível, de “conhecer a si mesmo”, sempre trará a consciência, precisamente, apenas o não-individual em si. Nossas ações são, no fundo, todas elas, pessoais de uma maneira
incomparável, únicas, ilimitadamente individuais, sem dúvida nenhuma; mas tão logo as traduzimos na consicência, elas não parecem mais sê-lo... Isto é propriamente o fenomenalismo e perspectivismo como eu o entendo: a natureza da consciência animal
acarreta que o mundo, de que podemos tomar consciência, é apenas um mundo de superfícies e de signos, um mundo generalizado,
vulgarizado – que tudo que se torna consciente justamente com isso
se torna raso, ralo, relativamente estúpido, geral, signo, marca de
rebanho (...)” (FW/GC § 354)
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A consciência, assim, adquire, nos textos do filósofo, contornos
de membrana entre uma profundeza indizível e individual, e o mundo dos signos. Ela não é, no entanto, parte de nosso sistema fisiológico e sim construção social: “(...) não temos nenhum órgão para
conhecer, para a “verdade”; “sabemos” (ou acreditamos ou imaginamos) precisamente o tanto que, no interesse do rebanho humano, da espécie, pode ser útil (...)” (FW/GC § 354)
Conforme sumarizado por Pierre Klossowski, nossa consciência
seria apenas “a capacidade de troca com a exterioridade do código
dos signos cotidianos, e essa capacidade consiste apenas em receber o mais possível para dar o menos possível”. O inconsciente, por
outro lado seria “esse nada, ou esse fundo, ou esse Caos, ou qualquer coisa inominável, que Nietzsche não ousava pronunciar”
(Klossowski 2, p. 60). Caverna, labirinto, mina de ouro, abismo,
este inconsciente ou Caos individual aparece nos textos de Nietzsche
em palavras que expressam o inatingível e o perigoso. O filósofo,
porém, não deixa o inconsciente tomar forma de uma entidade
abstrata que correria o risco de ser confundida com o conceito vulgar de alma e espírito: o Caos individual está para Nietzsche totalmente preso ao mundo físico por estar atrelado ao corpo. O inconsciente é a batalha entre os impulsos de diversos seres microscópicos
que compõem o corpo, “estrutura social de muitas almas”(JGB/BM
§ 19). Esta luta entre impulsos de diversas almas “garante a permanência da mudança: nada é senão vir-a-ser. (...) é com processos
de dominação que a vida se confunde; diríamos mais: é com vontade de potência que ela se identifica” (Marton 3, p. 138).
Embora a linguagem tenha instituído o hábito gramatical do
sujeito, que Nietzsche chama de “a superstição do sujeito e do ‘Eu’”
(JGB/BM Prefácio), a ferramenta de trabalho do filósofo provê na
metáfora construtora de interpretações inesgotáveis um antídoto para
a fixação de conceitos. A manipulação proposital da linguagem
metafórica ao menos desestabiliza conceitos e revela a natureza do
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A Linguagem em Nietzsche: as Palavras e os Pensamentos
conhecimento como mais próxima da interpretação do que da
explicação.
Tal abordagem da linguagem é crucial no projeto de Nietzsche
de questionamento da vontade de verdade. Em Para além de bem e
mal ele se pergunta: “Quem, realmente, nos coloca questões? O que,
em nós, aspira realmente ‘à verdade’”? (JGB/BM § 1). E progride
para a questão que inverte a relação Édipo-Esfinge: se a vontade de
verdade diz decifra-me, Nietzsche responde: para que quereria eu
decifrar-te? Por que não buscar, no lugar da verdade, seu oposto, a
inverdade, a incerteza, a insciência? E pergunta “Qual o valor dessa vontade de verdade?” Assim, a linguagem, ferramenta usual da
busca pela verdade, passa a ser o caminho para a crítica da verdade e do conhecimento e material de trabalho do psicólogo que investigará a procedência dos valores morais, dentre os quais está a
verdade. Aqui, o próprio termo “psicólogo” usado por Nietzsche
desterritorializa o sentido usual da palavra. Se Nietzsche não admite o sujeito, certamente sua psicologia não focará no “Eu”, mas na
formação da superstição desse “Eu”.
Numa das raras passagens em que define explicitamente um
dos termos que utiliza em seus escritos, Nietzsche informa que por
moral entende “a teoria das relações de dominação sob as quais se
origina o fenômeno ‘vida’” (JGB/BM § 19). Vida é esta constante
luta entre impulsos que buscam dominar, e o impulso gramatical é
apenas um deles: “onde há parentesco linguístico é inevitável que,
graças à comum filosofia da gramática – quero dizer graças ao domínio e direção inconsciente das mesmas funções gramaticais –,
tudo esteja predisposto para uma evolução e uma seqüência similares dos sistemas filosóficos: do mesmo modo que o caminho parece
interditado a certas possibilidades outras de interpretação do mundo” (JGB/BM § 20).
O termo “filosofia da gramática” remete a outra sessão do mesmo
texto: “todo impulso ambiciona dominar, e portanto procura filoso-
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Braga, P.
far.” (JGB/BM § 6) Hábitos gramaticais são, assim, impulsos dominadores que, gregários, determinam a formação de filosofias similares, que não escapam a certas limitações da ferramenta linguagem.
A filosofia, assim, está longe de revelar o pensamento mais profundo do filósofo; revela apenas seu pensamento consciente, e algo de
seus valores morais, de seus impulsos dominantes: “(...) a maior
parte do pensamento consciente deve ser incluída entre as atividades
instintivas, até mesmo o pensamento filosófico (...) em sua maior
parte o pensamento consciente de um filósofo é secretamente guiado e colocado em certas trilhas pelos seus instintos. Por trás de toda
lógica e de sua aparente soberania de movimentos existem
valorações, ou, falando mais claramente, exigências fisiológicas para
a preservação de uma determinada espécie de vida” (JGB/BM § 3).
Essa espécie de vida onde o homem é a medida de todas as
coisas é a vida que se agarra a conceitos fixos em benefício da
autoconservação, e não a vida criadora de interpretações que quer
dar vazão a sua força criadora. A inverdade, a ilusão da linguagem,
tomada como fixadora de conceitos, é condição para essa espécie
de vida onde predomina o impulso da autoconservação.
Esse impulso que toma a palavra em prol da autopreservação
através dos escritos de um filósofo transforma toda filosofia em “confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias
e inadvertidas” (JGB/BM § 6). A obra de cada filósofo é o espelho
de quem ele é, e aqui esta imagem espelhada, este quem, não é um
sujeito, mas a revelação de certos impulsos dominadores. Cada filosofia é uma obra autobiográfica, memórias do filósofo, que revelam
a moral à qual ele quer chegar, uma tese que existe de antemão,
impulsiva, e não alcançada pela reflexão. E frequentemente é esta
uma tese que torna a vida mais amena, como, por exemplo, a tese
da alma imortal ou do “eu”.
Então, se os escritos de um filósofo são uma história de seus
impulsos dominadores, como atingir o pensamento genuíno? Qual
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A Linguagem em Nietzsche: as Palavras e os Pensamentos
o intuito de Nietzsche ao rever sua obra no autobiográfico Ecce
Homo? Zarathustra, quando conversa com sua alma, com seus pensamentos mais recônditos, o faz em palavras?
Pierre Klossowski discute a dificuldade de conhecermos o pensamento inconsciente quando afirma que “somos capturados, abandonados, retomados e surpreendidos: ora pelo sistema de designação
pulsional, ora pelo sistema dos signos cotidianos (...) Por dentro,
ninguém sabe, nem poderíamos saber o que é que se designa em
nós: pois, mesmo quando estamos sozinhos – silenciosos – falando
a nós mesmos, no nosso interior, é sempre nosso exterior que nos
fala – graças a esses signos do exterior que nos ocupam e cujo rumor cobre totalmente nossa vida pulsional: até mesmo a intimidade, até mesmo a pretensa vida interior, tudo isso ainda é o resíduo
dos signos instituídos no exterior(...)” (Klossowski 4, p. 59).
Assim, para Klossowski, nossas conversas silenciosas, que falam apenas a nós mesmos, ainda não escapam do âmbito da consciência. Mas essa máscara, membrana, filtro de signos tão impróprio
para acesso ao mais autêntico é ao menos um meio de se aproximar
do fundo, e o grande erro da humanidade foi tê-la tomado como
fim: “Se quiséssemos estabelecer um objetivo bem distante para a
vida, este não deveria coincidir com nenhuma categoria consciente:
deveria, sim, explicar cada uma delas como meio de chegar a ele
mesmo...”(XII, 10[137])2.
A linguagem, portanto, categoria do âmbito consciente de nossas vidas, deveria ser considerada um meio,um transporte, metáfora
da vida autêntica. “Nos escritos de um eremita se ouve também um
quê do eco do deserto, um quê do sussurro e do tímido olhar em
torno que é próprio da solidão; (...) Um eremita não crê que um
filósofo – supondo que todo filósofo tenha sido antes um eremita –
alguma vez tenha expresso num livro suas opiniões genuínas e últimas: não se escrevem livros para esconder precisamente o que se
traz dentro de si? – ele duvida inclusive que um filósofo possa ter
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opiniões “verdadeiras e últimas”, e que nele não haja, não tenha de
haver, uma caverna ainda mais profunda por trás de cada caverna
(...) (JGB/BM § 289).
Há portanto, um tipo de filosofia, de uso da linguagem, de manipulação e interpretação de signos, que se reconhece como interpretação, que não pretende atingir o “verdadeiro e último”, mas
que gera um eco vindo de cavernas mais profundas e não adentradas. É uma linguagem de êxtase e inspiração, que Nietzsche chama
de linguagem do ditirambo, dionisíaca, em Ecce Homo: “Alguém,
no final do século XIX, tem nítida noção daquilo que os poetas de
épocas fortes chamavam inspiração? (...) Havendo o menor resquício de superstição dentro de si, dificilmente se saberia afastar a idéia
de ser mera encarnação, mero porta-voz, mero medium de forças
poderosíssimas (...) Ouve-se, não se procura; toma-se, não se pergunta quem dá; um pensamento reluz como relâmpago, com necessidade, sem hesitação na forma (...) Parece realmente, para lembrar uma palavra de Zarathustra, como se as coisas mesmas se
acercassem e se oferecessem como símbolos ( – ‘aqui todas as coisas vêm afagantes ao encontro da tua palavra, e te lisonjeiam: pois
querem cavalgar no teu dorso. Em cada símbolo cavalgas aqui até a
verdade. Aqui se abrem para ti as palavras e arcas de palavras de
todo ser; todo ser quer vir a ser palavra, todo vir-a-ser quer contigo
aprender a falar” – ) (EH/EH, Assim Falou Zaratustra, § 3).
Em Ecce Homo, Nietzsche ironiza a própria linguagem. Não é
possível se autobiografar com palavras, não é possível um livro que
fale de nada além de um sujeito fictício, construído por escritos passados, um “Eu” que se superou: “Meus escritos falam somente de
minhas superações: “eu” estou neles com tudo que me foi hostil
(...)”(VM/OS Prefácio §1)
Esta superação do “eu” vem em palavras que, em sua inadequação para atingir pensamentos, revelam a inadequação de conceitos como verdade e conhecimento, que até então haviam sido
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A Linguagem em Nietzsche: as Palavras e os Pensamentos
alicerces de filosofias, entre as quais o Cristianismo, que construíram as bases morais da humanidade.
Revelar os aspectos ficcionais e ilusórios dessas certezas, dinamitar seus alicerces milenares, é um projeto que passa pela revisão
da linguagem como ferramenta de conhecimento e gera, como subprodutos, o desaparecimento do sujeito, a valorização das instabilidades, da eterna interpretação do mundo. E se tal projeto deve ser
conduzido através da linguagem, que empregue, então, a faceta da
linguagem que mais se aproxima da eterna construção e re-interpretação: a linguagem metafórica.
Abstract: This paper presents some of Nietzsche’s ideas on language and
emphasizes his use of the metaphor to destabilize concepts. The
metaphorical language reveals that the nature of knowledge is closer to
interpretation than to explanation. Language is seen by Nietzsche no longer
as a tool well-aimed to the achievement of truth but rather as the evidence
of the very impossibility of such task.
Keywords: language – metaphor – interpretation – knowledge –
consciousness
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Notas
Em palestra proferida no IV Simpósio Internacional “Assim Falou Nietzsche” (dezembro/2001), Maria Cristina
Franco Ferraz (UFF) lê o texto em questão perseguindo os
aspectos arquitetônicos de suas metáforas. A idéia da função de andaime de certas metáforas, que exploro e desenvolvo neste texto, deve muito àquela palestra.
2
Apud: Klossowski 2.
1
Referências Bibliográficas
1. FERRAZ, Maria Cristina Franco. “Da valoração da Metáfora em Nietzsche”. Palestra proferida no IV Simpósio
Internacional “Assim Falou Nietzsche”. Rio de Janeiro, Dezembro/2001.
2. KLOSSOWSKI, Pierre. Nietzsche e o Círculo Vicioso. Rio
de Janeiro, Pazulin, 2000.
3. MARTON, Scarlett. “Nietzsche: Consciência e inconsciente” in: Extravagâncias: Ensaios sobre a Filosofia de
Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial, 2000.
4. NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. Col. “Os Pensadores”. São Paulo:
Abril Cultural, 3a. Edição, 1983.
5. _______. Além do Bem e do Mal. Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2a. Edição,
1992.
6. _______. Ecce Homo. Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2a. Edição,1995.
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Nos limites da linguagem: Nietzsche e a expressão vital da dança
Nos limites da linguagem:
Nietzsche e a expressão vital
da dança*
Luis Enrique de Santiago Guervós**
Resumo: O autor procura distinguir em Nietzsche uma série de níveis
em torno dos quais se articula o sentido estético da dança e seu valor
transformador. Em um primeiro nível, a dança forma, junto com a música
e a poesia, a tríade fundamental de expressão da estética dionisíaca. Em
um segundo nível, mais alegórico e metafórico, é estabelecida a relação
entre dança, pensamento e linguagem. Em um terceiro nível, a dança constitui o modo de expressão por excelência de Zaratustra e sua doutrina
fundamental.
Palavras-chave: arte – dança – linguagem – estilo
Desde seus primeiros escritos, Nietzsche se serviu da manifestação artística da dança como um recurso estético para descrever,
em um primeiro momento, o espírito dionisíaco, e, posteriormente,
as conotações do espírito de leveza que se perfilavam de uma maneira paradigmática na música do sul1. Na realidade, essa insistência
em utilizar o simbolismo da dança em seus escritos é outra maneira
de exaltar e reivindicar o valor do corpo. Além disso, seria difícil
entender as figuras de Dioniso, o coro, o sátiro, o espírito livre ou
*
**
Tradução: Alexandre Filordi de Carvalho.
Professor da Universidade de Málaga, Espanha.
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Santiago Guervós, L.E. de
Zaratustra sem fazer referência ao seu modo de expressão mais peculiar: a dança. Também podemos observar como em sua última
fase Nietzsche já não busca uma arte que não seja expressão da
vida, nem palavras que não cantem, nem música que não sirva para
dançar, pois somente o espírito dançarino e leve pode abrir o caminho que conduz ao além-do-homem. Por isso, somente “uma arte
dançarina” (FW/GC § 107)2, com sua leveza e agilidade, pode conduzir o homem ao cimo mais alto. E Nietzsche crê que essa arte, a
qual deseja, é necessária, fundamentalmente, para poder desfrutar
da “liberdade sobre as coisas”, já que a arte que se propõe como
alternativa é uma “arte leve”, ascendente, que se libertou das determinações asfixiantes do espírito de peso, que impede o homem
de ser livre. Diante da moral e seus rígidos preceitos, não se tem
somente de superá-los, mas também dançar, “julgar e valorar” sobre a própria moral (idem).
Não seria temerário afirmar que Nietzsche parece utilizar a dança
como critério estético para avaliar as formas culturais e artística autênticas. Wagner, por exemplo, é um músico que não sabe dançar, só sabe “nadar”; os alemães, os moralistas tampouco dançam,
porque foram picados pela tarântula, permaneceram paralisados com
o veneno da igualdade e da vingança. Todos eles estão possuídos
pelo “espírito de peso”, que os arrasta às profundezas e os impede
de elevar-se e transcender sobre si mesmos, porque estão submetidos ao imperativo do “tu deves” e ao abismo vertiginoso do niilismo. “Meu alfa e ômega é que tudo o que é pesado e grave se torne
leve; tudo o que é corpo, dança; tudo o que é espírito, pássaro”
(Za/ZA III “Os sete selos”). O solene e o pesado têm de ser superados pela leveza da dança; por isso, no instante de estabelecer
critérios de valor, Nietzsche assinala que “nossa primeira questão
sobre o valor de um livro, de um ser humano ou de uma composição musical é: eles podem andar? Incluindo ainda: eles podem
dançar?” (FW/GC § 366).
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Nos limites da linguagem: Nietzsche e a expressão vital da dança
Por sua vez, é para Nietzsche dançarino aquele que sabe auscultar seu corpo, o que sabe ser, ao mesmo tempo, da terra e do
céu, o que conhece a embriaguez e o êxtase, o que sabe se converter num extemporâneo, o que transfigura sua força e poder em graça. Afinal, quem é aquele que expressa melhor a alegria e a “grande saúde”, quem é o que melhor sabe rir e o que melhor festeja a
vida, a não ser o dançarino? Longe de ser uma arte pouco rigorosa
e evanescente, a dança necessita das leis mais elementares da física, da fisiologia e da anatomia do corpo humano. Como disciplina,
é uma das mais exigentes e rigorosas, já que se dança sempre
“acorrentado” (WS/AS § 140), mas, ao mesmo tempo, representa
de um modo mais excelente que as outras artes o livre jogo de seus
elementos, compassado com esforços dos quais não é possível evadir-se. Essa série de movimentos e gestos, cada um dos quais não
pode ser isolado, formam juntos uma expressão contínua, muito
maior que a soma de suas partes. Na dança, os símbolos não somente se representam, como acontece na arte plástica, espacialmente, harmoniosamente, a não ser que o espacial e o temporal (ritmo)
se integrem.
Sendo assim, pode-se distinguir em Nietzsche uma série de níveis em torno dos quais se articula o sentido estético da dança e seu
valor transformador. Em um primeiro nível, e seguindo as linhas de
sua primeira estética, a dança forma, junto com a música e a poesia, a tríade fundamental de expressão da estética dionisíaca; no
fundo, é o corpo que se eleva com a dança a um lugar privilegiado.
Um segundo nível tem um perfil mais alegórico e metafórico, ao
estabelecer a dança em relação com o pensamento e a linguagem.
E por último podemos assinalar um terceiro nível, no qual a dança
constitui o modo de expressão por excelência de Zaratustra e essa
forma artística remete à sua doutrina fundamental3.
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Santiago Guervós, L.E. de
1. Música e dança: expressão estética da alegria dionisíaca.
No marco da estética da música, Nietzsche tratou de estabelecer, em todo momento, um equilíbrio entre o canto, a poesia e a
dança: a santa trindade, o “simbolismo total”, algo que encontrava
o seu exemplo maior na tragédia grega. Em primeiro lugar a música, e imediatamente as palavras, todas elas manifestadas na dança,
na dança da vida, o grande sim: “Cantando e dançando manifestase o ser humano como membro de uma comunidade superior:
desaprendeu a andar e falar e está a caminho de romper em vôo
pelos ares dançando. Por seus gestos fala a transformação mágica
(...) ele se sente deus, ele mesmo caminha agora tão estático e erguido como via em sonho os deuses caminharem. O ser humano
não é mais um artista, se converteu em uma obra de arte” (GT/NT
§ 1). Assim, os gregos haviam compreendido a transformação que
imprimia o espírito dionisíaco aportados nas três artes indissociáveis:
a dança, a música e a poesia. Tanto no poeta como no dançarino,
ou no comediante, a expressão artística conduz aos poucos a uma
“alienação de sua própria pessoa”. Libertado das tensões do real, o
artista recria a “bela imagem do homem”, como em outras vezes os
gregos recriavam as imagens dos deuses. O dançarino, através da
força de seus gestos e movimentos, torna presente o mundo que
está além dos fenômenos. A bela aparência de seus gestos desvela
o profundo. E no profundo o deus Dioniso se move como um deus
dançarino, um artista que manifesta sua força e poder criativo, que
é o de transgredir, transcender e transformar. Esse deus de pés ligeiros, de olhos risonhos e dançarino, expressa sua mensagem pela
dança, já que não há outra linguagem que possa expressar melhor a
consciência dionisíaca. A dança é sua linguagem e nela se unem o
tom, a música, o ritmo e a harmonia. E como deus das transformações, cuja suprema metamorfose é a morte e a ressurreição, fundamenta a estética dionisíaca. Nietzsche quer exemplificar deste modo
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Nos limites da linguagem: Nietzsche e a expressão vital da dança
a transvaloração dos valores e a superação do homem, que se transcende a si mesmo mediante os impulsos vitais que o elevam acima
das alturas imprevisíveis.
É um fato que o homem, ao longo de sua história, sempre dançou para celebrar suas mudanças e transformações. A dança esteve
associada primeiro a ritos sagrados; era um meio de comunicação
entre o homem e seus deuses, uma forma de veneração destinada a
invocar a manifestação de poderes sobrenaturais, mas também esteve vinculada aos ritos de fertilidade, nos quais se exaltava a exuberância da vida. Uma vez dessacralizada, se converteu em meio
de expressão do espírito do povo. Os grandes acontecimentos da
vida cotidiana ainda se celebram com a dança, como manifestação
da alegria e da vida. Nietzsche fixou seu olhar na cultura grega e,
sobretudo, na origem de sua obra de arte, por antonomásia: a tragédia. Nela queriam ver expressa a força da natureza, e a vêem sob
a transformação do sátiro. O entusiasta dionisíaco se transforma em
sátiro, e é como sátiro que vê o seu deus (GT/NT §8), ou seja, em
sua transformação, se vê numa visão fora de si. Para ele, o sátiro
martela a terra com os pés, e assim alcança o céu, quer dizer, celebrando sua ligação com a natureza alcança a essência da vida. Este
era para Nietzsche o homem dionisíaco, que, transportado a outro
mundo por sua dança, se transforma e transcende para além de si
mesmo. Mas estar fora de si não significa deixar este mundo ou perder o sentido da terra; ao contrário, significa unir-se a ele em sua
essência. O dançarino metamorfoseado adquire todos os poderes.
Ao perder a sua identidade se une à natureza, ao Uno primordial e
entra em outro mundo, onde as contradições da existência se resolvem. Somente agora celebra a vida, dança em honra a Dioniso e é o
mediador de um deus. Transformou o peso em leveza, a embriaguez em êxtase, converteu-se na mesma imagem de Dioniso.
Lembremo-nos daquela passagem tétrica de “Da visão e enigma”,
em Assim falou Zaratustra, quando o pastor mordeu e cuspiu a ca-
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Santiago Guervós, L.E. de
beça da serpente que havia rastejado para dentro de sua garganta,
podendo por fim “rir” e falar; levantou-se de um salto e “começou
a dançar” como a máxima expressão da afirmação da vida.
Os gregos sabiam que a música deve falar ao corpo, que lhe
responde dançando, dando asas ao pensamento e ao espírito, como
dá asas ao dançarino e o prepara em seus movimentos. É, ao mesmo tempo, estimulante e libertação, permitindo ao filósofo fecundo
se converter em um dançarino inspirado. Nascida do pathos, deve
abraçar as paixões. Em uma palavra, a música, como a dança, deve
ser a expressão da vida, da fidelidade à terra tão querida de
Zaratustra, porque é o “retorno à natureza, à santidade, à alegria,
ao jovial, à verdadeira virtude”(WA/CW §3). Desse modo, a dança
utiliza todo o corpo como veículo de expressão e devolve ao conceito de música sua dimensão corporal, seu âmbito mais originário.
Essa espécie de linguagem meta-semântica compreende toda a
“simbologia do corpo”, a “mímica total da dança que move ritmicamente todos os membros”, que faz todas as forças simbólicas se
desencadearem: “Agora a essência da natureza deve expressar-se
simbolicamente; é necessário um novo mundo de símbolos, permitir o simbolismo corporal inteiro, não somente o simbolismo da boca,
do rosto, da palavra, mas o gesto pleno da dança, que move ritmicamente todos os membros” (GT/NT §2). Por isso, o grego não vê
na dança um simples gesto, mas, acima de tudo, a forma mais expressiva de dizer “sim” à vida. Por acaso é possível compreender
melhor a vida, a não ser dançando?
Essa vinculação da dança e o bailar com a vida está demasiadamente presente desde o princípio em Nietzsche, já que não são mais
que outra forma de anunciar a vida. Através da dança é que a vida
penetra no corpo, provocando um estado de exaltação no qual o
sujeito já não é mais artista, senão uma obra de arte; por isso a
melhor maneira de compreender e experimentar a vida é dançando, escutando os modos de falar do corpo. Na tragédia ática, “o
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coro ditirâmbico”, diz Nietzsche, “é um coro de transformados, os
quais permaneceram esquecidos de todo seu passado civil, sua posição social (...) O que está diante de nós é uma comunidade de
atores inconscientes, que se vêm uns aos outros como transformados” (GT/NT §8). Sendo assim, dançar e bailar levam consigo um
transfigurar-se; entrar em outro corpo sem mudar de pele é descobrir em si um outro eu, um eu que já não obedece à razão, mas
somente à vida, um eu que se confunde com as árvores da montanha ou com as estrelas do céu. Dançar é suceder o movimento e
participar na dança cósmica dos astros que se movem no universo,
e por isso é ação, ato sagrado, por ele é que o homem transpassa o
real. A dança diferencia-se da música, que pode arrebatar aquele
que a escuta e transportá-lo para um mundo ideal; arrebata aquele
que a executa, e é o êxtase supremo, já que nela participa todo o
corpo, e não apenas nossos sentidos. Aquele que não dança, que
não sente os ritmos compassados de seu corpo, não se sente vivo.
Isto explica por que para Nietzsche toda arte deve nascer do amor à
vida, da alegria, da “superabundância”, não deve nascer da “fome”,
nem do desejo de vingança. Tudo o que ascende para o alto, como
o dançarino, é para encontrar a alegria. Mas a alegria, fundamentalmente, é a alegria de viver, e dançar é viver sua alegria. “O canto
de dança” de Zaratustra é, por isso mesmo, um novo hino à vida,
um canto contra o espírito de peso que é o “senhor do mundo”.
Como uma serpente, a vida corre entre os dedos e é preciso a agilidade de um dançarino para segui-la por seus caminhos tortuosos. O
pé aprende antes que o espírito. Sendo assim, a dança repete a óptica dionisíaca da vida, que destrói suas criações no jogo incessante
das metamorfoses. Dioniso é o deus que sobe e desce, o deus errante. “Agora sou ligeiro”, disse Zaratustra, “agora, vôo, agora me
vejo a mim mesmo por debaixo de mim, agora um deus dança através de mim” (Za/ZA I “Do ler e escrever”), pois no “dionisíaco” se
expressa “uma superação da pessoa, do cotidiano, da sociedade,
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da realidade, como um abismo do esquecimento, algo que se inflama dolorosamente, passionalmente,(...) um sim extasiado (...), uma
grande simpatia panteísta na alegria e na dor” (XIII, 14[14]).
2. Como aprender a transcender-se dançando.
Assim Falou Zaratustra foi considerado “uma revolução na arte
da comunicação humana” (Mooney 7, p.38). E, entre esses novos
elementos novos de comunicação que introduz, a dança ocupa um
lugar de destaque. Podemos dizer que o tema da dança atinge seu
ponto mais elevado quando Nietzsche trata de nos revelar a mensagem de Zaratustra. Este, antes de tudo, ensina a glorificação do
corpo e da aparência, como sintoma da preeminência de uma filosofia da arte sobre o pensamento metafísico. Seu lema é que todo
corpo seja dançarino e que todo espírito se converta em “pássaro”.
O corpo possui sua linguagem, nos fala, e, enquanto tal, o homem
deve estar “atento” ao que lhe diz e insinua. Mas o que fala o corpo? O que o corpo fala é o “sentido da terra”. O dançarino não tem
o ouvido nas orelhas. Seus músculos ouvem o sentir do mundo mediante melodias que fazem contrair e distender suas articulações
mediante gestos. Todo seu corpo está atento ao despregar-se do
mélos para articulá-lo em ritmos que falam outra linguagem. “Meus
calcanhares se ergueram”, disse Zaratustra, “os dedos de meus pés
escutavam para compreender-te. Leva, com efeito, quem dança seus
ouvidos — nos dedos de teus pés!” (Za/ZA III “O outro canto de
dança”).
Por meio da dança, a grande razão que é o corpo “cria” o eu;
não é, portanto, o eu que constitui a realidade. Por de trás do pensamento, das palavras e dos sentimentos está a sabedoria do corpo,
o “si-mesmo” (Selbst), que é a força incessante que obedece a uma
razão oculta. Mas o que realmente quer o corpo é “criar além de si”
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e o faz dançando, e o que não é capaz disso se enfada e se rebela
contra a vida e o sentido da terra. A arte da dança nos ensina também a suspender a “pequena razão” do ego para seguir os movimentos do corpo, a “grande razão” do eu que conduz, finalmente, a
uma relação intuitiva e mística com o mundo da vontade de potência. Em outras palavras, mover-se ao ritmo da dança conduz à mais
alta possibilidade de mover-se em harmonia com a vontade de potência, que se compreende como a energia rítmica que subjaz a todo
movimento e ao eterno retorno que também está figurado na imagem da dança4. Zaratustra assim expressa claramente: “somente na
dança eu sei dizer o símbolo das coisas supremas” (Za/ZA II “O
canto do túmulo”), “sem a dança”, acrescenta, “não há para mim
nem alívio nem felicidade” (XII, 2[101]).
Uma das conotações mais sugestivas que Nietzsche encontra na
simbologia da dança é a possibilidade do homem de transcender-se
ou de superar-se. A profundidade de Zaratustra está no “lançar-se”
às alturas do céu (Za/ZA III “Antes do nascer do sol”), porque o
dançarino quer estar “sobre cada coisa como seu céu próprio, como
seu teto redondo, sua campânula azul”, quer estar ali onde dançam
os “acasos divinos”, no “céu Acaso”, ali de onde já não há nenhuma servidão à finalidade. Ele ensina a ver a sabedoria que existe
nas coisas, essa pequena sabedoria e segurança que não é outra
coisa que a de “dançar sobre os pés do acaso” (Idem), subir acima
das próprias cabeças e acima do coração, porque é necessário distinguir o olhar de si a fim de ver outras coisas. Ele mesmo, num ato
de ousadia suprema, quis ver “o fundo e o transfundo de todas as
coisas”, e para tanto teve de elevar-se para além de si mesmo: “suba,
cada vez mais alto, inclusive até que as estrelas sejam vistas debaixo de ti” (Idem). Pois é no alto, onde nada mais é pesado, onde os
pensamentos são puros, que todo vir-a-ser não é mais que dança.
Esse transcender-se ou superar-se a si mesmo, que Nietzsche explica por essa metáfora da dança, também não esquece a realidade do
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profundo. Contemplar o terror do profundo, a dureza da existência,
para logo estender sobre ela a ilusão que cria a arte, é como “dançar acorrentado”, isto é, “fazer-se pesado e então estender em cima
a ilusão da leveza — essa é a obra de arte que nos querem mostrar”. (WS/AS § 140)5.
A dança, para Zaratustra, como expressão artística, simboliza
também a mediação entre duas esferas que se contrapõem. Depois
de ter deixado o país dos sábios, afirmava: “somente na dança sei
dizer os símbolos das coisas supremas”, pois a dança atua como
mediação entre o visível e o invisível, é o que reconcilia as forças
animais e as forças espirituais (Za/ZA II “O canto do túmulo”). O
peculiar da dança é o equilíbrio entre a terra e o céu, o profundo e
a altura, sempre ameaçado e sempre reconquistado, que também é
o peculiar da vida. “Caminhar sobre toda corda, dançar sobre toda
possibilidade: ter seu gênio nos pés” (XIII, 15[117]). Sendo assim,
a dança reconcilia o céu e a terra, reconcilia todos os mundos: o
dançarino, ligeiro como o vento, é livre, está para além de bem e
mal, para além de verdade e mentira, voeja acima de todas as coisas.
Essa imagem do dançarino, que se eleva sobre a terra, reconcilia igualmente o filósofo e o poeta, o sábio e o artista, simbolizando
simplesmente o vivente, pois não podemos esquecer que para
Nietzsche a dança reconhece a realidade com a “ponta de seu pé”,
ao mesmo tempo em que dialoga com a terra que a sustenta e com
o céu que a atrai, expressando com seu corpo e seus movimentos
toda uma homenagem à vida. Por acaso poderia Zaratustra ser outra coisa senão um dançarino? E isso é o que deseja Zaratustra,
ensinar aos “homens superiores” a transcender-se, que “se sirvam
de suas pernas” para que possam dançar, e que assim a terra lhes
seja mais leve. Até que o homem não saiba dançar e rir, não poderá
superar-se a si mesmo, nem poderá religar-se com o cosmos, nem
poderá voar, nem surgirá o além-do-homem. Pois, para voar, antes
terá de aprender a dançar. Quem quiser aprender em algum mo-
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mento a voar tem de aprender a “manter-se em pé e a caminhar e a
correr e a saltar e a subir e a dançar por sobre todas as coisas” (Za/
ZA III “Do espírito de peso”). Este é o ensinamento de Zaratustra
ao dançarino, ao leve, ao que ama os saltos e as piruetas, para todos aqueles homens superiores que têm ainda “pés e corações pesados” (Za/ZA IV “Do homem superior”).
3. “Meu estilo é uma dança”: como dançar com as palavras
Nietzsche teria desejado que suas frases cantassem como se fossem música, e que suas palavras se movessem como uma dança.
Contudo, podem as frases dançar? Pode o poeta dizer tanto com
suas rimas e sua música? Sim, se elas cantam a vida. Assim pensava Nietzsche quando termina A Gaia Ciência com uma canção de
dança, dançando e cantando acerca dos pensamentos escritos:
“Estamos acostumados a pensar ao ar livre, caminhando, saltando,
subindo, dançando e acima de tudo nas solitárias montanhas ou na
orla do mar, onde estão incluídos os caminhos que se fazem pensativos” (FW/GC § 366). Para além de bem e mal também termina da
mesma maneira, expressando os limites da linguagem para captar a
experiência. Em Ecce Homo, falando da época em que escrevia
Zaratustra, enquanto passeava pelos arredores de Nice, escreve:
“Aos poucos as pessoas podiam ver-me dançando; sem noção sequer de cansaço eu podia então caminha sete, oito horas pelos montes. Dormia bem, ria muito —” (EH/EH, Assim falou Zaratustra,
§4). Mas é sobretudo Zaratustra o que inaugura uma nova forma
alegórica de pensar e falar, “pois não tem de haver coisas sobre as
quais e mais ainda das quais se possa dançar? Não tem de haver,
para que existam os ligeiros, os mais ligeiros de todos?” (Za/ZA III
“Das velhas e novas tábuas”).
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Dançar é um jogo com toda a gravidade e ilusão da seriedade,
porque um pensamento que dança é um pensamento que despreza
o sistema e as estruturas estáveis dos valores; é uma outra forma de
pensar, outra racionalidade distinta, um novo caminho mediante o
qual se coloca ordem no caos, mas não de uma forma fixa e estável,
mas sim de uma maneira “alegre” e “ligeira”, de tal modo que sempre restam abertas novas possibilidades e outras formas de pensar6.
Por isso Nietzsche insistiu, quase desde o princípio, que a única
forma de superar a linguagem conceitual que inaugurou a metafísica como linguagem científica, e não artística, é que “aprendamos a
pensar” e que façamos que os conceitos dancem e que provoquem
assim figuras artísticas e belas como as metáforas, que constituem
os novos caminhos do pensar. Estas são as recomendações de
Nietzsche: “Aprenda a pensar (...) — que o pensamento tem de ser
aprendido como tem de ser aprendido o dançar, como uma espécie
de dança... Quem já conhece por experiência, entre os alemães,
esse sutil estremecimento que os pés leves no espiritual transfundem
a todos os músculos! (...) Não se pode desconsiderar, com efeito, da
educação aristocrática, o dançar em todas as suas formas, o saber
dançar com os pés, com os conceitos, com as palavras; ainda tenho
de dizer que também é preciso saber dançar com a pena, — que é
preciso aprender a escrever?” (GD/CI, O que falta aos alemães, §7).
Esta é também a condição de uma boa educação aristocrática: “dançar em todas as suas formas: o saber dançar com os pés, com os
conceitos, com as palavras” (Idem).
Falar do pensamento como dança implica, portanto, em assumir a transitoriedade e o risco do pensamento perante a segurança
que oferece uma visão sistemática do mundo ao estilo do
racionalismo moderno. O dançarino sobre cordas, o funâmbulo, faz
do perigo a sua profissão. A dança representa a “estabilidade na
instabilidade”(Mansini 6, p.273); é esse equilíbrio mutante que se
modela ritmicamente a si mesmo em seu vir-a-ser e que cria cons-
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tantemente com o corpo e seus gestos diferentes figuras, mas sempre retorna para buscar o impulso na terra, onde realmente encontra o seu sentido. É imprescindível ter a força para tentar continuamente, de buscar soluções provisórias, com a constante ameaça de
perder o equilíbrio e equivocar-se, de permanecer na contínua tensão que significa a dialética da imanência e transcendência, o salvar o sentido da terra e o anelo pelas alturas. Se Nietzsche se eleva
acima do alto, acima da montanha, é porque os cumes são o reino
da luz, e é na luz que nasce o pensamento. De igual modo o faz
para cantar as palavras que celebram a vida: rir, dançar, alegria,
leveza, altura. Esta é a nova terminologia, a nova linguagem de
Zaratustra e de Nietzsche, a alternativa a uma forma de pensar afligida pela “seriedade” e pelo espírito de peso. Nietzsche não é dos
que atingem os pensamentos “a golpes de livros”, mas sim “caminhando, saltando, subindo e dançando” (FW/GC § 366). Diante de
uma obra de arte, de um livro sábio, de um homem, o critério
valorativo e estético não é outro a não ser este: “sabe dançar?”. E a
resposta não se encontra em palavra, está no corpo que dança, na
alegria do ser vivente. Essa é para Nietzsche e Zaratustra a verdadeira linguagem: “Uma bela tolice é o falar. Mas ao falar o homem
dança sobre todas as coisas” (Za/ZA III “O Convalescente”).
E esta linguagem é para Nietzsche a linguagem essencial, porque: 1) transcende o sentido esclerosado e fossilizado que têm as
palavras cunhadas por toda uma tradição metafísica; 2) ao livrar-se
dos grilhões da linguagem, dá asas à capacidade criativa do pensamento, que pensa artisticamente; 3) olhar as coisas das alturas é
contemplá-las em sua profundidade. Somente o que tem asas para
voar cada vez mais alto é capaz de ver o profundo da superfície,
chegar até o fundo. É por isso que o homem deu às coisas nomes e
sons para reconfortar-se nelas. “Com sons dança nosso amor sobre
multicores arco-íris”, diz Zaratustra; os animais o respondem: “todas as mesmas coisas dançam para aqueles que pensam como nós,
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vêm e têm-se à mão, e riem, e fogem, e retornam” (Idem). E isto é
assim porque as palavras estão feitas para os espíritos pesados. Para
aqueles que são ligeiros, as palavras mentem (Za/ZA III “Os sete
selos”), disse Zaratustra, porque realmente as palavras são sempre
um freio para a paixão do poeta ou a intuição do pensador. Nunca a
palavra poderá transmitir o resplendor de um pensamento, nem a
força de um sentimento ou a paixão de uma emoção. Seus limites e
seus contornos estão tão bem definidos que não há espaço para a
improvisação, para o simultâneo. Por acaso as palavras não congelam o sentido das coisas e perenizam as idéias, que tenderiam a ser
fugazes e inquietas? Zaratustra dizia a seus pares que havia de pôr
para dançar as palavras e as frases, para que as imagens ocultas
por detrás delas revelassem, assim, o sentido originário. “Somente
na dança eu sei dizer o símbolo das coisas supremas” (Za/ZA II “O
canto do túmulo”), já que muitos aspectos da experiência humana
não são dados a conhecer pela linguagem. A razão de nosso conhecimento está na utilidade, pois quando se subordinam os aspectos
da experiência, que não únicos e individuais, e se passa a categorias convencionais, gerais, as palavras violam o caráter imediato de
nossa experiência humana. A palavra faz referência somente àqueles aspectos da experiência que se tornaram conscientes: “todo vir
a ser consciente envolve uma grande e completa corrupção, redução” (FW/GC § 354)7. Por isso Zaratustra disse que alguém faria
melhor em dizer que é inexprimível e sem nome aquele que constitui o tormento e a doçura de minha alma, inclusive a fome de minhas entranhas. Então é melhor “balbuciar”, porque Dioniso é o
deus que dança sob as palavras, sob a bela aparência da superfície.
A vida se engendra na obscuridade e nas profundezas da terra, onde
a semente morre e se destrói, para posteriormente eclodir com uma
força alegre sobre a terra. E é precisamente esta força, ou esse impulso o que lhe dá asas a seu pensamento: “Quero”, confessava
Nietzsche a Marie Baumgartner, “que a minha vida seja tão pesada
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Nos limites da linguagem: Nietzsche e a expressão vital da dança
como a de qualquer homem, somente debaixo desta pressão é que
adquiro a boa consciência de gozar de algo que poucos homens têm
e tiveram: asas para falar em parábolas (Gleichnisse)”.8
Nietzsche tampouco hesita em identificar o espírito livre com o
espírito dançarino, o qual manifesta sua liberdade na maneira em
que maneja as coisas (ou se relaciona com as coisas), quando seu
olhar se especializa em uma perspectividade plural, que entende o
mundo como material de uma formação artística que nunca se limita à fixação de um “em si”. “A dança é, pois, seu ideal, também
sua arte, e finalmente sua única piedade, seu ‘culto divino’” (FW/
GC § 381). O que o filósofo necessita é, sobretudo, “flexibilidade”
e força para poder se desprender e saltar por cima das coisas. O
mundo das perspectivas é, por tanto, uma conseqüência do “pensamento dançarino”, já que fazer dançar os conceitos supõe introduzir neles a perspectiva, introduzir a crença de que nenhum deles é
algo estanque, mas o oposto, é algo convencional que vale para hoje,
pois talvez seja amanhã outra coisa diferente9. A alegria é a liberdade bailarina do pensamento, a qual, em seu olhar indagador, compreende o mundo numa cena móvel de possibilidades cambiantes,
como multiplicidade de pontos de vista ou de perspectivas. Mas para
Nietzsche também o espírito livre é um artista, um artista da sabedoria dançarina. O artista e o espírito livre quase não se distinguem:
o mesmo que o artista põe no mundo segundo sua força e vontade,
também põe o espírito livre filosófico. “Para mim a aparência é o
que atua e o que vive, que vai tão longe em seu autodesprezo, de
fazer-me sentir que aqui não existe mais que aparência, fogo-fátuo
e dança do espírito — que abaixo de todos estes sonhadores também eu, o ‘que conhece’, danço minha dança, que o que conhece é
um meio, para prolongar a dança terrena” (FW/GC § 54).
Com a introdução do espírito livre como artista, a teoria da arte
de Nietzsche alcançava um novo matiz. O espírito livre é “poeta de
sua vida”, o artista é “poeta do mundo”, mas o espírito livre é tam-
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bém um “virtuoso dançarino”. E somente o pensamento dançarino,
enquanto arte ligeira, é antes de tudo uma arte para artista, apenas
para artista. Por quê? Porque todas as coisas dançam “sobre os pés
do acaso” (Za/ZA III “Antes do nascer do sol”). As coisas dançam,
se abrem em seu significado para perspectivas sempre novas desde
seu vir-a-ser casual; desdobram seu significado de mil maneiras
numa mobilidade contínua. Para Nietzsche, não há sentido em dizer que as coisas são o que são, quando seu modo de ser é a mobilidade. Por isso Zaratustra não escreve, será sempre um dançarino,
porque a dança, em sua fugacidade, poderá captar o efêmero milagre do nascimento de um pensamento. Na tragédia grega mataram
as palavras, na ópera também asfixiaram as palavras; e morre a tragédia quando já não há mais danças, quando Eurípedes deixa de
pensar na música. O único paradoxal consolo é que só restam a
Nietzsche as palavras para manifestar sua vida. Assim, Zaratustra
segue ensinando com a linguagem da dança para dizer alegoricamente as coisas mais sublimes: “Somente na dança eu sei dizer o
símbolo das coisas supremas”, disse Zaratustra, “e agora meu símbolo supremo me permaneceu inexprimível em meus membros!”
(Za/ZA II “O canto do túmulo”). Ele pode representar as coisas mais
altas, as mais estranhas à representação verbal ou conceitual, por
certos movimentos de seu corpo que formam uma dança. E esta
maneira de dizer é uma metáfora, uma parábola, um símbolo. Assim, por exemplo, é na dança e no seu ritmo onde melhor está
refletida a imagem do retorno, como a de um fluido domínio do
movimento que encadeia o vir-a-ser sem destruí-lo. A dança, como
harmonia sensível, se converte em Nietzsche na prefiguração de uma
existência divinizada.
Sendo assim, a linguagem de Zaratustra tem o ritmo da dança,
e reflete suas modulações, variações, arquitetura e mímica. Por ventura haverá encontrado Nietzsche aqui uma alternativa à linguagem
conceitual da metafísica? Será uma outra forma de dizer o não dito
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Nos limites da linguagem: Nietzsche e a expressão vital da dança
pelo pensamento? “O filósofo agrilhoado nas redes da linguagem”
busca uma libertação impossível mediante o ritmo frenético do estilo que dança sobre as palavras. Para falar das coisas supremas e
inomináveis, para dizer o pensamento mais profundo, Zaratustra crê
que o meio de expressão mais adequado é a dança, enquanto
atividade circular que afirma alegremente o retorno das coisas. É
uma linguagem muda, porque a verdadeira linguagem não deve ter
a pretensão categorial de cingir o sentido das coisas, mas sim deve
falar às coisas, ao mesmo tempo em que deixa que elas se manifestem por si mesmas. A linguagem muda da dança é a única linguagem adequada, e suas figurações, que se desenvolvem em inumeráveis ondas de significado, e harmoniosamente refletem as seduções
e os encantamentos de uma vida divinamente ambígua. Zaratustra
crê que o mais íntimo, aquilo que é mais individual, é distorcido
quando intenta ser transmitido através do meio social da linguagem.10
Entretanto, não somente o pensamento e as palavras são uma
dança, para Nietzsche, também o é o estilo: “Meu estilo é uma dança, um jogo de simetrias de toda espécie, é um saltar mais além e
um burlar essas simetrias. Isto passa até pela escolha das vogais”.11
Nietzsche sabe que são seus pés os que ditam as palavras. É isto o
que tem de fazer dançar. Ele traduzirá em melodia a emoção diante
do pensamento. Debaixo de sua pena, cada sílaba se converte em
uma nota musical: — se trata de encontrar a cadência, o ritmo, o
estilo sobre o qual Zaratustra pode dançar. E a dança dos conceitos
significa também o “estilo” do artista. Nietzsche afirmava que “o
que verdadeiramente importa é a vida: o estilo deve viver” (X,
1[109]). Como Zaratustra, Nietzsche queria converter-se num apóstolo da vida, mas para tanto devia ser um bom bailarino; inclusive
as palavras, se querem ter qualquer tipo de comoção, devem refletir a vida não importando como são os gestos. O estilo joga com as
simetrias como o dançarino joga com os ritmos. Hölderlin havia escrito que todas as coisas são “ritmo”, o destino inteiro do universo é
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um ritmo celeste; toda obra de arte é um ritmo único. É que o sentido de todo estilo se define em: “Comunicar um estado, uma tensão intensa de pathos, por meio de signos, incluindo o tempo [ritmo]
desses signos” (EH/EH, Por que escrevo livros tão bons, § 4), já
que o estilo não é unicamente “pensado” mas, sobretudo, “sentido”, enquanto a riqueza mímica da vida toma forma sobre um rigoroso e fluido equilíbrio de leis rítmico-expressivas, tal qual na dança. “Na dança”, disse Masini, “se resolve a ‘verdade’ do estilo como
metáfora plástica e rítmica do pensamento. A relação íntima presente na dança entre plasticidade e ritmo, entre linha e ritmo, entre
figuração pantomímica e alegoria musical, se encontra na fluida
arquitetura da linguagem poética de Zaratustra, no que o elemento
lúdico-agonístico da mímesis plástica transpassa continuamente a
embriaguez rítmica” (Mansini 6, p.293). Por isso, não é estranho
que Nietzsche insista em que é preciso “saber dançar com a pena”
(GD/CI, O que falta aos alemães, § 7), o mesmo que com o texto,
mas ao ritmo de sua fragmentação, golpeando o solo com o pé ligeiro, “como escritura gestual do corpo”(Pautrat 10, p.304).12 Essa é
a maneira na qual o próprio Nietzsche confessa que pode “livrarse” de seus pensamentos (FW/GC § 93), como uma necessidade de
artista que transborda seus próprios sentimentos vitais. O homem
não cria, não dança, não canta mais se não brotar nele esse “excedente de força”, pois, na arte, a ação do embelezamento “não é
mais que uma conseqüência da força acrescida” (XIII, 14[117]).
Nietzsche, portanto, depositou todas as suas esperanças naquele que saberá dizer sim à vida dançando, naquele que fará cantar as
palavras, naquele que viverá em meio ao ar puro das alturas, renascendo a cada dia ao sol, naquele que definitivamente saiba rir e ser
alegre. Todavia, Zaratustra também sabe que o “homem superior”,
se deseja aprender a dançar, antes de tudo deve aprender a rir. É
possível que ria, mas não ri como tem de rir, pois a sabedoria do
riso é o que transfigura o homem em outra coisa, porque dissolve o
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Nos limites da linguagem: Nietzsche e a expressão vital da dança
espírito de peso nos movimentos leves da embriaguez criadora. Esta
mensagem fica já prefigurada no quinto livro de A Gaia Ciência,
um livro que incita a dançar e a rir, uma obra que termina ao som
de gaitas com “melodias mais agradáveis e mais alegres” que abrirão o caminho até o “verdadeiro reino da dança” (FW/GC 383).
Abstract: The author aims at distinguishing in Nietzsche’s thought a series
of levels around which the aesthetic meaning of dance and its transforming
value are articulated. In a first level, dance forms together with music and
poetry the fundamental triad pertaining to the aesthetics of Dionysus. In a
more allegoric and metaphorical level, the relation between dance, thought
and language is established. In a third level, dance constitutes the very
mode of expression of Zarathustra as well as his most important doctrine.
Keywords: art – dance – language – style
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Notas
Sobre a estética da música do Sul verificar o trabalho do
autor: “Nietzsche y los ideales estéticos del Sur: la necesidad
de mediterraneizar la música” In: Analecta Malacitana,
nº 23/1, 2000, pp.131-148.
2
Sobre o sentido da dança na obra de Nietzsche, remeto-me
ao excelente trabalho de Béatrice Commengé, La danse de
Nietzsche. Paris: Gallimard, 1988. Essa obra descreve a
vida e o pensamento de Nietzsche, tendo por base o signo
da dança.
3
Claudia Crawford também assinala um sentido cósmico na
dança, estabelecendo uma comparação com a dança de
Shiva. “Nietzsche’s Dionysian arts: dance, song and silence”
in: Salim Kemal (org.), Nietzsche, philosophy and the arts.
Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p.315.
4
Cf. Crawford, op. cit., p. 312s.
5
Sobre este tema, remeto-me ao interessante estudo de Joshua
Foa Dienstag, “Dancing in Chains”. Narrative and memory
in political theory. Stanford: Stanford University Press,
1997, p.91s.
6
Cf. M. Cragnollini, “De la risa disolvente a la risa constructiva: uma indagación nietzscheana” in: M. Cragnolini y
Gregório Kaminsky (org), Nietzsche actual e inactual.
Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 1996, p.116.
7
Cf. também S. K. Higging, “Nietzsche on music”, in Journal
of the History of Ideas, 1986, pp. 663-672.
8
Carta a Marie Baumgartner, 28-05-1883, KSB, VI, p. 381.
O termo que Nietzsche utiliza, “Gleichniss”, foi traduzido
por alguns como “metáfora”. Na realidade, Zaratustra utiliza as “parábolas” (Gleichnisse) para ensinar, imitando o
modo de ensinamento de Jesus Cristo a seus discípulos.
1
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Nos limites da linguagem: Nietzsche e a expressão vital da dança
Cf. Cragnolini, op. cit. , p. 116.
Cf: Dienstag, op. cit., p.109.
11
Carta a Rohde, 22-02-1884, KSB, VI, p. 479.
12
Bernard Pautrat, Version du soleil. Figures et système de
Nietzsche. Paris: Seuil, 1971, p.304.
9
10
Referências bibliográficas
1. COMMENGÉ, Béatrice. La danse de Nietzsche. Paris:
Gallimard, 1988.
2. CRAGNOLLINI, Mónica. “De la risa disolvente a la risa
constructiva: uma indagación nietzscheana”. In: M.
Cragnolini y Gregório Kaminsky (org), Nietzsche actual e inactual. Buenos Aires: Universidad de Buenos
Aires, 1996.
3. CRAWFORD, Claudia. “Nietzsche’s Dionysian arts: dance,
song and silence”. In: Kemal, Salim (org.), Nietzsche,
philosophy and the arts. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
4. DIENSTAG, Joshua Foa. “Dancing in Chains”. Narrative
and memory in political theory. Stanford: Stanford
University Press, 1997.
5. HIGGING, S. K. “Nietzsche on music”. In: Journal of the
History of Ideas, 1986.
6. MANSINI, Lo scriba del caos. Interpretatione di Nietzsche.
Bolonha: Il Mulino, 1978.
7. MOONEY, Edward F. “Nietzsche and the Dance”. In:
Philosophy Today, 14 (1970).
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Santiago Guervós, L.E. de
8. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Editores: G. Colli e M. Montinari.
Berlim/Munique: Walter de Gruyter/DTV, 1980.
9. _______. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe (KSB).
Editores: G. Colli e M. Montinari. Berlim/Munique:
Walter de Gruyter/DTV, 1986.
10. PAUTRAT, Bernard. Version du soleil. Figures et système
de Nietzsche. Paris: Seuil, 1971.
11. SANTIAGO GUERVÓS, Luis Enrique de. “Nietzsche y
los ideales estéticos del Sur: la necesidad de mediterraneizar la música”. In: Analecta Malacitana, no 23/
1, 2000.
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
Convenção para a citação
das obras de Nietzsche
Os cadernos Nietzsche adotam a convenção proposta pela edição
Colli/Montinari das Obras Completas do filósofo. Siglas em português acompanham, porém, as siglas alemãs, no intuito de facilitar o trabalho de leitores pouco familiarizados com os textos originais.
I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche:
I.1. Textos editados pelo próprio Nietzsche:
GT/NT – Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia)
DS/Co. Ext. I – Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss:
Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I:
David Strauss, o devoto e o escritor)
HL/Co. Ext. II – Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen
und Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneas
II: Da utilidade e desvantagem da história para a vida)
SE/Co. Ext. III – Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopenhauer
als Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauer como educador)
WB/Co. Ext. IV – Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: Richard
Wagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagner
em Bayreuth)
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
MAI/HHI – Menschliches Allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado
humano (vol. 1))
VM/OS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen
(Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sentenças)
WS/AS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein
Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra)
M/A – Morgenröte (Aurora)
IM/IM – Idyllen aus Messina (Idílios de Messina)
FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência)
Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra)
JGB/BM – Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal)
GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia da moral)
WA/CW – Der Fall Wagner (O caso Wagner)
GD/CI – Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos ídolos)
NW/NW – Nietzsche contra Wagner
I.2. Textos preparados por Nietzsche para edição:
AC/AC – Der Antichrist (O anticristo)
EH/EH – Ecce homo
DD/DD – Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso)
II. Siglas dos escritos inéditos inacabados:
GMD/DM – Das griechische Musikdrama (O drama musical grego)
ST/ST – Socrates und die Tragödie (Sócrates e a tragédia)
DW/VD – Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo)
GG/NP – Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensamento trágico)
BA/EE – Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de
nossos estabelecimentos de ensino)
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
CV/CP – Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern (Cinco prefácios
a cinco livros não escritos)
PHG/FT – Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia
na época trágica dos gregos)
WL/VM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral)
Edições:
Salvo indicação contrária, as edições utilizadas serão as organizadas
por Giorgio Colli e Mazzino Montinari: Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe em 15 volumes, Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./
DTV, 1980 e Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe em 8 volumes,
Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./DTV, 1986.
Forma de citação:
Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arábico indicará
o aforismo; no caso de GM/GM, o algarismo romano anterior ao arábico
remeterá à parte do livro; no caso de Za/ZA, o algarismo romano remeterá à parte do livro e a ele se seguirá o título do discurso; no caso de GD/
CI e de EH/EH, o algarismo arábico, que se seguirá ao título do capítulo,
indicará o aforismo.
Para os escritos inéditos inacabados, o algarismo arábico ou romano,
conforme o caso, indicará a parte do texto.
Para os fragmentos póstumos, o algarismo romano indicará o volume
e os arábicos que a ele se seguem, o fragmento póstumo.
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
Contents
Nietzsche and Wagner:
the meaning of a rupture
11
Verb and solitude:
the untimely word and the poetical time
27
Philosophy over the abyss:
“Each philosophy hides a philosophy too”
57
Nietzsche on language: words and thoughts
71
Within language boundaries:
Nietzsche and dance’s vital expression
83
Gerd Bornheim
Tereza Cristina B. Calomeni
Priscila Rossinetti Rufinoni
Paula Braga
Luis Enrique de Santiago Guervós
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
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cadernos Nietzsche 14, 2003
Convenção para a citação das obras de Nietzsche
INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES
1. Os trabalhos enviados para
publicação devem ser inéditos,
conter no máximo 55.000
caracteres (incluindo espaços) e
obedecer às normas técnicas da
ABNT (NB 61 e NB 65) adaptadas para textos filosóficos.
2. Os artigos devem ser acompanhados de resumo de até 100
palavras, em português e inglês
(abstract), palavras-chave em
português e inglês e referências
bibliográficas, de que devem
constar apenas as obras citadas.
Os títulos dessas obras devem
ser ordenados alfabeticamente
pelo sobrenome do autor e
numerados em ordem crescente, obedecendo às normas
de referência bibliográfica da
ABNT (NBR 6023).
3. Reserva-se o direito de aceitar,
recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de
mudanças. Os relatores de parecer permanecerão em sigilo.
Só serão considerados para apreciação os artigos que seguirem
a convenção da citação das obras
de Nietzsche aqui adotada.
NOTES TO CONTRIBUTORS
1. Articles are considered on the
assumption that they have not
been published wholly or in part
else-where. Contributions
should not normally exceed
55.000 characters (including
spaces).
2. A summary abstract of up to 100
words should be attached to the
article. A bibliographical list of
cited references beginning with
the author’s last name, initials,
followed by the year of publication in parentheses, should be
headed ‘References’ and placed
on a separate sheet in alphabetical order.
3. All articles will be strictly refereed, but only those with strictily
followed the convention rules
here adopted for the Nietzsche’s
works.
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
Os cadernos Nietzsche visam a constituir um forum de debates em
torno das múltiplas questões colocadas acerca e a partir da reflexão
nietzschiana.
Nos cem anos que nos separam do momento em que o filósofo interrompeu a produção intelectual, as mais variadas imagens colaram-se à
sua figura, as leituras mais diversas juntaram-se ao seu legado. Conhecido sobretudo por filosofar a golpes de martelo, desafiar normas e destruir
ídolos, Nietzsche, um dos pensadores mais controvertidos de nosso tempo, deixou uma obra polêmica que continua no centro da discussão filosófica. Daí, a oportunidade destes cadernos.
Espaço aberto para o confronto de interpretações, os cadernos
Nietzsche pretendem veicular artigos que se dedicam a explorar as idéias do filósofo ou desvendar a trama dos seus conceitos, escritos que se
consagram à influência por ele exercida ou à repercussão de sua obra,
estudos que comparam o tratamento por ele dado a alguns temas com os
de outros autores, textos que se detêm na análise de problemas específicos ou no exame de questões precisas, trabalhos que se empenham em
avaliar enquanto um todo a atualidade do pensamento nietzschiano.
Ligados ao GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, que atua junto
ao Departamento de Filosofia da USP, os cadernos Nietzsche contam
difundir ensaios de especialistas brasileiros e traduções de trabalhos de
autores estrangeiros, artigos de pesquisadores experientes e textos de doutorandos e mestrandos ou mesmo graduandos.
Publicação que se dispõe a acolher abordagens plurais, os cadernos
Nietzsche querem levar a sério este filósofo tão singular.
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
Founded in 1996, cadernos Nietzsche is published twice yearly every May and September. Its purpose is to provide a much needed forum in a professional Brazilian context for contemporay readings of
Nietzsche. In particular, the journal is actively committed to publishing
translations of contemporary European and American scholarship, original articles of Brazilian researchers, and contributions of postgraduated
students on Nietzsche’s philosophy.
Cadernos Nietzsche is edited by Scarlett Marton with an internationally recognized board of editorial advisors. Fully refereed, the journal
has already made its mark as a forum for innovative work by both new
and established scholars. Contributors to the journal have included
Wolfgang Müller-Lauter, Jörg Salaquarda, Mazzino Montinari, Michel
Haar, and Richard Rorty.
Attached to GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, which takes place
at the Department of Philosophy of the University of São Paulo, cadernos
Nietzsche aims at the highest analytical level of interpretation. It has a
current circulation of about 1000 copies and is actively engaged in expanding its base, especially to university libraries. And it has been sent
free of charge to the Brazilian departments of philosophy, foreigner libraries
and research instituts, in order to promote the discussion on philosophical
subjects and particularly on Nietzsche’s thought.
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