para entender a saúde no brasil 4
Transcrição
para entender a saúde no brasil 4
1 PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 2 3 Maria Cristina Sanches Amorim (organizadores) PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 São Paulo 2011 LCTE Editora PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Eduardo Bueno da Fonseca Perillo PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 4 © 2011 Eduardo Bueno da Fonseca Perillo Maria Cristina Sanches Amorim Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil). Para entender a saúde no Brasil, 4 / Eduardo Bueno da Fonseca Perillo, Maria Cristina Sanches Amorim (organizadores) -- São Paulo : LCTE Editora, 2011. Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-85-7942-047-4 1. Cuidados médicos - Brasil 2. Instituições de saúde Brasil 3. Política médica - Brasil 4. Serviços de saúde - Administração - Brasil 5. Sistemas de saúde - Agências - Brasil 6. Economia - saúde - Brasil. I. Perillo, Eduardo Bueno da Fonseca. II. Amorim, Maria Cristina Sanches. 11-04685 CDD-362.10981 Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil: Saúde: Administração: Bem-estar social 362.10981 2. Brasil: Saúde: Planejamento: Bem-estar social 362.10981 Reservados todos os direitos de publicação à LCTE Editora LCTE Editora Rua Venâncio Aires, 346 – São Paulo – SP CEP 05024-030 – Tel: (11) 3673-6648 Fax: (11) 3872-8852 www.lcte.com.br [email protected] 5 Entender o setor de saúde no Brasil continua uma tarefa interdisciplinar e complexa — há várias causas para os erros e acertos. A presente coletânea resulta das atividades do Núcleo de Pesquisa Regulamentação Econômica e Estratégias Empresariais, no Programa de Estudos Pós-graduados em Administração da PUC-SP, iniciado em 2002. Para capturar os fenômenos, assumimos como obrigatórias as contribuições das várias áreas do conhecimento imediatamente afins ao tema — gestão de organizações, economia, direito e política. Os autores compartilham com os leitores suas experiências na indústria, nas organizações prestadoras de serviços, nas fontes pagadoras, nas instituições regulamentadoras, na administração pública e nas atividades de pesquisa nas universidades. Quatro grandes debates foram destacados: financiamento do SUS, instrumentos de gestão de serviços, acesso à saúde suplementar e regulamentação. Desde o primeiro volume da coletânea, em 2007, apresentamos textos com diferentes interpretações, estratégia para não isolar a compreensão do setor nos aspectos organizacionais, ou econômicos, ou políticos, ou jurídico-institucionais. O financiamento do SUS é debatido desde, no mínimo, a Constituição de 1988. Da insuficiência de recursos às falhas de gestão, como entender a persistência do problema? Na perspectiva da economia, pelas políticas econômicas do período 1988-2008, voltadas para o controle da inflação às custas da redução dos gastos governamentais; na jurídica, pela instabilidade do direito à saúde; na política, pelo recuo da bancada federal, em 1996, quanto ao financiamento do setor e da estrutura fiscal brasileira, o chamado pacto federativo. Pressionadas por vários fatores — da organização social à necessidade de ampliar lucros no setor privado —, as organizações de saúde recorrem PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 APRESENTAÇÃO PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 6 ao saber e experiência acumulados no campo da administração. O desenvolvimento e barateamento da tecnologia da informação abrem muitas possibilidades de aumento da produtividade do trabalho e da eficácia organizacional, porém, também encerram potencial desperdício e uso acrítico de indicadores e remuneração por desempenho. Novamente, a superação do histórico insulamento das organizações de saúde relativamente aos demais setores ajudaria a evitar erros conhecidos e, por isso mesmo, evitáveis. No campo da regulamentação econômica, saúde suplementar e instâncias de controle governamental travam importante debate sobre interesses em pauta, acesso aos serviços privados de saúde e defesa dos direitos do cidadão. De um lado, a regulamentação, ao impor regras, promoveu a concentração do segmento (menor número de empresas), de outro, depara-se agora, justamente com os problemas da redução da concorrência e homogeneidade de serviços em uma sociedade heterogênea. Isolar um problema em uma única causa (econômica, ou administrativa, ou política, entre outras) pode simplificar a tarefa intelectiva, mas não altera a natureza complexa da realidade, por isso mesmo, resulta em ações insuficientes ou equivocadas. Convidamos o leitor para abandonar, ao menos temporariamente, o conforto da compreensão simples e ampliar o foco de análise sobre o setor da saúde no Brasil. Maria Cristina Sanches Amorim - [email protected] Eduardo Bueno da Fonseca Perillo - [email protected] 7 OPINIÃO: APRIMORAR A SAÚDE José Carlos Abrahão 9 ESTE JOGO NÃO PODE SER 1X1: A TRAJETÓRIA POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL Eduardo Jorge M. Alves Sobrinho e Maria Fátima Sousa 11 O GRANDE PLANO DE SAÚDE DO POVO BRASILEIRO Gilberto Natalini 27 A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 29 E OS DUELOS ORÇAMENTÁRIOS DA SAÚDE: SEMPRE COM O MESMO PERDEDOR Leonardo Trevisan 37 AVANÇOS DE SUSTENTABILIDADE EM SAÚDE NO BRASIL Paola Zucchi e Lutufyo Witson Mwamakamba 49 OS DESAFIOS DO BRASIL: O SETOR SAÚDE Nelson Mussolini 65 O FINANCIAMENTO DA SAÚDE NO BRASIL Marcelo Ernesto Liebhardt 71 A GESTÃO DA ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA NA REDE DE INFORMAÇÕES: UMA PROPOSTA PARA O SISTEMA DE SAÚDE Marcos Inocencio e Bruna De Vivo 87 O PROFISSIONAL DE VENDAS NA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA Leonardo Trevisan, Cinira Marcondes e Carlos Pappini Jr. 111 NOVO DESAFIO PARA O MERCADO DE SAÚDE SUPLEMENTAR – PLANOS ACESSÍVEIS PARA ENFRENTAR O CRESCIMENTO DOS CUSTOS José Cechin e Marcos Novais 129 PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 CONTEÚDO PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 8 SAÚDE SUPLEMENTAR EM BUSCA DA EFICIÊNCIA Sandro Leal Alves 143 COMO OTIMIZAR E PROMOVER MELHORES RESULTADOS PARA O SISTEMA SUPLEMENTAR DE SAÚDE Roberto Cury 153 A SAÚDE SUPLEMENTAR À LUZ DA PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NO BRASIL Maria Stella Gregori 159 A INSTABILIDADE DO ARRANJO PROTETIVO DO DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: LIÇÕES DA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO E O IMPASSE QUANTO À REINSTITUIÇÃO DA CPMF Élida Graziane Pinto 169 DESAFIOS DA ANÁLISE DO CADE NO SETOR DE PLANOS DE SAÚDE Carlos Emannuel Joppert Ragazzo e Kenys Menezes Machado 203 ANÁLISE DE IMPACTO REGULATÓRIO – HÁ INTERESSE? Rodrigo Alberto Correia da Silva 235 REGISTROS ELETRÔNICOS DE SAÚDE: UMA FERRAMENTA A FAVOR DA UNIVERSALIZAÇÃO E DA TRANSPARÊNCIA André C. Medici 245 USO DA TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NA SAÚDE SUBUTILIZAÇÃO NAS INSTITUIÇÕES HOSPITALARES Ronaldo Frederico 261 EVIDÊNCIA FÍSICA NO CONTEXTO HOSPITALAR COMO FATOR DE QUALIDADE DO SERVIÇO Luzeni Pereira Borges e Alexandre Luzzi Las Casas 273 PAGAMENTO POR DESEMPENHO: EXPERIÊNCIAS E REFLEXÕES Eduardo Bueno da Fonseca Perillo e Maria Cristina Sanches Amorim 293 9 José Carlos Abrahão - Médico, presidente da Confederação Nacional de Saúde (CNS) e da Federação Internacional de Hospitais (IHF). A experiência acumulada pela área de saúde privada no Brasil, notadamente na última década, tem que ser vivenciada amplamente por toda a sociedade brasileira. No campo das pesquisas, no desenvolvimento de produtos, equipamentos e serviços e, fundamentalmente, na própria prestação de assistência à população, o setor privado teve uma expansão qualitativa e quantitativa que o coloca em posição de destaque na área de atenção à saúde. Isso sem falar na melhoria da eficiência e eficácia dos serviços pelo constante aprimoramento da gestão. De uma maneira geral, os números do complexo da saúde impressionam: o sistema representa 8,4% do PIB brasileiro, mantém 2,7 milhões de postos de trabalho diretos e 5 milhões indiretos, e os dados do Caged apresentam, mensalmente, contínuo saldo positivo. No governo que se inicia, é urgente pensarmos na fixação da Política Nacional de Saúde. É preciso permitir que a notável experiência do setor privado tenha também participação efetiva na formulação dessa política, compatível com sua importância na prestação de serviços à população. Integrar, de forma expressiva, fóruns de discussão, formulação e definição de políticas e programas de saúde — comissões, grupos de trabalho, conselhos deliberativos e consultivos do Ministério da Saúde e suas agências ANS e Anvisa — é condição primordial para que os superiores interesses do povo brasileiro sejam atendidos na plenitude. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 OPINIÃO: APRIMORAR A SAÚDE PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 10 Representando oito federações e 90 sindicatos em atividade no País, a Confederação Nacional de Saúde (CNS) acredita em caminhos como o fortalecimento das parcerias público-privadas, regime tributário próprio para o setor saúde, linhas de financiamento (e de recursos) para o SUS e a criação do Sistema S da Saúde. É necessário, ainda, estimular a acreditação dos serviços de saúde, com o objetivo de dar mais confiabilidade, transparência e qualidade ao atendimento que a população está recebendo. O investimento em ensino e pesquisa é também um grande serviço à população, já que dissemina uma informação correta e validada. O segmento de saúde quer colaborar com a construção das políticas do programa para a área do próximo governo. Isso, para aprimorarmos o sistema de saúde brasileiro que atende 190 milhões de cidadãos, sem excluir ninguém. E continuar a ser referência para vários países de todo o mundo, sempre focado nos princípios da igualdade, universalidade e integralidade. Isso para que a população receba um atendimento digno e de qualidade. 11 “Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história”. Hannah Arendt Eduardo Jorge M. Alves Sobrinho - Médico sanitarista, secretário municipal do Verde e Meio Ambiente de São Paulo, ex-secretário municipal de Saúde de São Paulo, coautor e autor da legislação constitucional sobre saúde e da ECM 29/2000. Maria Fátima Sousa - Enfermeira, mestre em ciências sociais (UFPB), doutora em ciências da saúde (UnB), professora adjunta e coordenadora do Núcleo de Estudos em Saúde Pública da Universidade de Brasília. RESUMO Este artigo tem como objetivo expor aspectos da trajetória da política de saúde no Brasil sob o ponto de vista de sujeitos que estavam e estão na militância do Sistema Único de Saúde e do Programa de Saúde da Família nos últimos 30 e 16 anos, respectivamente. A exposição tem como bases vivências e leituras de realidades, em especial nos momentos de elaboração da PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 ESTE JOGO NÃO PODE SER 1X1: A TRAJETÓRIA POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 12 Constituição Federativa do Brasil. O artigo pretende ainda demonstrar que as estratégias adotadas no início da década de 90 com o Programa de Agentes Comunitários de Saúde e Programa de Saúde da Família, ao longo de 20 e 16 anos, respectivamente, vêm contribuindo com a efetividade dos princípios orientadores do SUS, entre eles a descentralização das ações e serviços de saúde. Ainda, o artigo é dedicado a descrever de forma analítica as conquistas e desafios que o SUS apresenta pós-Constituição de 88, rumo aos novos tempos de um sistema de saúde universal, integral, equânime e, sobretudo, humanizado, com as feições dos indivíduos, famílias e comunidades brasileiras, dos lugares onde vivem, moram e sonham com uma vida e saúde digna dos seus direitos de cidadania plena. PALAVRAS-CHAVE: Sistema Único de Saúde; financiamento do SUS; promoção da saúde; intersetorialidade; atenção básica; saúde da família. UM BREVE HISTÓRICO O episódio da 2ª Guerra Mundial foi o resultado mais expressivo do predomínio da cultura da violência na relação entre pessoas, classes sociais e nações no século 20. O surgimento da Organização das Nações Unidas (ONU) é um sinal de esperança. É sim, possível, a emergência de uma hegemonia da cultura de paz e de uma estrutura de governabilidade mundial que seja um vetor de democracia e justiça social. Foi exatamente na saúde que a ONU iniciou seu protagonismo nos campos de políticas públicas. Em 1978, na cidade de Alma–Ata, na ex-União Soviética, um encontro de pessoas de várias nações filiadas propõe uma estrutura de universalização e reforma dos sistemas nacionais da saúde, tendo como eixo articulador uma atenção básica de qualidade. Na década de 70, de vários pontos do Brasil despontavam sinais que uma reforma desse tipo poderia progredir no país. Em governos municipais, estaduais e mesmo no governo federal autoritário, surgiam iniciativas, embora fragmentadas e desarticuladas. Também na universidade, entre os profissio- 13 Tudo isso conflui para o movimento de redemocratização e, nas vésperas da Assembleia Nacional Constituinte, uma Conferência Nacional de Saúde sintetizou uma proposta a ser levada aos parlamentares que votariam nossa Constituição. A área da saúde foi a que ofereceu aos partidos políticos presentes no Congresso uma política pública mais bem elaborada e abrangente, levando em conta a realidade e necessidades nacionais, porém também ponderava as várias reformas de outros países nesse campo. Outras políticas públicas não aproveitaram, como poderiam, aquele momento importante de nossa vida política e limitaram-se a propostas corporativistas em áreas decisivas como previdência, educação, assistência social, entre outras. Em 1988 o Brasil superava de forma pacífica o período de ditadura e aprovava uma Constituição Democrática (BRASIL, 1988). Entre 1990 e 1992, o Congresso elaborou as regras infraconstitucionais que impulsionariam a reforma de estado chamada Sistema Único de Saúde-SUS (BRASIL, 1990a-b). VALORES E PRINCÍPIOS ORIENTADORES DO SUS A proposta do SUS, levada pela Conferência Nacional de Saúde para o Congresso Constituinte, era marcadamente moldada pelo pensamento tradicional de esquerda. Tanto era verdade, uma das maiores disputas naquela Conferência foi a opção entre “estatização total já” versus “estatização total progressiva”. Nem uma coisa nem outra. Os constituintes preferiram um SUS público e não puramente estatal, e não erraram... E isso não foi pouca coisa! Em um Brasil campeão mundial de desigualdade, dizer que um rico empresário tem tanto direito à assistência à saúde quanto Dona Maria, camponesa no Maranhão, é de verdade uma reforma quase revolucionária. A universalidade é o princípio número um. Parece algo óbvio na Suécia, no Canadá, mas no Brasil é um grande passo na democracia. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 nais de saúde e em movimentos populares, cresciam as experiências, práticas e ideias sobre uma reforma sanitária. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 14 Em seguida, a integralidade nos serviços oferecidos: promoção, prevenção, recuperação e reabilitação. Superação de uma separação desagregadora de quatro aspectos que precisam jogar de forma combinada. Descentralização. O SUS foi a primeira política pública com coragem de romper com a vocação centralizadora do Estado brasileiro. Viu que nossa diversidade é riqueza. Uma atuação unificada e articulada entre governo federal, estaduais e municipais, tendo porém como protagonista principal, o município. É ele que, pela proximidade com o cidadão e com a realidade ambiental, econômica e social das localidades, tem melhores condições de adaptar o SUS a essas especificidades. Essa experiência, nos últimos vinte anos, na verdade construiu aparelho de estado onde muitas vezes ele inexistia, é base para a expansão de outras políticas públicas. É comum hoje você ver técnicos preparados nas mais remotas cidades do País trabalhando em uma área complexa como a saúde. Participação. O SUS também foi um precursor na prática de democracia participativa. Além de eleger executivo e legislativo, também podemos/devemos interferir no dia a dia dos serviços públicos. Os conselhos de saúde eleitos pelos usuários/cidadãos podem/devem ajudar a gestão, criticar, apontar novos caminhos, enfim, serem sujeitos na criação e recriação das políticas. O financiamento deve ser basicamente público, a prestação dos serviços também deve ser pública. Importante: público e não necessariamente estatal. Pode ser estatal, privado lucrativo ou não lucrativo, filantrópico ou não, desde que os princípios do SUS previstos na Constituição sejam plenamente respeitados. NOSSAS CONQUISTAS Por que, passados vinte anos da Constituinte, qualquer enquete com o povo no Brasil continua colocando saúde, junto com desemprego e violência, como os três maiores problemas para a família brasileira? Porque é verdade. A mãe tem razão de reclamar se está numa fila com a criança chorando 15 tos. Também é verdade que o Brasil andou na estrada do SUS, e andou muito. Vejam a expansão do Programa Saúde da Família-PSF. Hoje contamos com 236.399 agentes comunitários de saúde-ACS, cuidando de 115.922.534 pessoas, cobrindo 61,1% da população, distribuída em 5.354 municípios, ou seja, 96,2% dos municípios do País. Esses ACS fazem parte das 30.782 equipes de Saúde da Família, espalhadas nos 5.268 municípios, representando 94,6% do total das cidades brasileiras. As equipes acompanham 97.352.949 pessoas, e vêm contribuindo, entre outras conquistas nesses 16 anos, com redução da mortalidade materna e infantil, com taxas registradas nos dias atuais, respectivamente, de 74,7/100.000 nascidos vivos e 21,1/1000 nascidos vivos. Podemos mencionar ainda, como conquista, a amplitude de nossos programas de imunização, a modernização das vigilâncias epidemiológica e sanitária e, na outra ponta do sistema, a capacidade de bloquear uma epidemia complexa como a AIDS e ter um programa de transplantes bem organizado e amplo como o nosso. Enfim, estamos no rumo certo. Precisamos persistir e evitar as tentações de falsos atalhos. VELHOS E NOVOS DESAFIOS Por que uma proposta reconhecida como tão generosa e que vem dando certo em muitos outros países, encontra tantas dificuldades para atingir plenamente seu potencial aqui no Brasil? Muitos podem pensar que o problema é de orçamento ou gestão. E eles são reais. Falaremos deles. No entanto existe algo anterior e mais grave. A Constituição, acertadamente, admitiu ao lado do SUS que a assistência à saúde fosse uma atividade econômica privada, ofertada livremente para quem desejasse pagar por esses serviços. Quando falamos que a Constituição está certa nesse ponto é porque essa opção evita os sistemas totais que podem vir a ser totalitários e opressores. É bom ter uma visão independente e crítica concorrendo consigo. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 e a vez dela não chega. Ainda falta muita coisa a ser feita! Mas vamos ser jus- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 16 O que deu errado então? Uma elite, relativamente ampla, formada pelos setores empresariais, classe média, trabalhadores especializados e grande parte dos funcionários públicos, exercendo um direito seu, manteve seus próprios sistemas privados e corporativos fechados como um serviço suplementar ou complementar ao SUS. São cerca de 50 milhões de pessoas numa população de quase 200 milhões, portanto cerca de 25% da população brasileira. A lei prevê esse direito. No entanto, usando sua posição privilegiada em todos os níveis da economia, da política e dos meios de comunicação, eles conseguem obter mais e mais subsídios públicos para manutenção dos seus sistemas privados e corporativos suplementares. Além disso, usam, pois têm pleno direito também, o que eventualmente lhes interessar para ter acesso ao SUS: dos programas de imunização, dos procedimentos de alta complexidade muito caros, passando pelas atividades de vigilância em saúde, entre outros, que assistem, obrigatoriamente, a 100% da população. Porém, o pior de tudo, ao se fecharem nos seus serviços-cidadelas, eles não apóiam, como deveriam/poderiam, os novos passos que o SUS precisa dar para cumprir suas promessas de universalidade, integralidade... Conto um episódio que é muito ilustrativo dessa realidade social e política. Em 1996, a bancada federal do PT estava diante de uma decisão crucial. Seus votos poderiam significar a diferença de aprovar ou rejeitar a criação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), como um recurso extraordinário e provisório que socorresse um SUS combalido e bloqueado pela forte retração no seu orçamento federal, decorrente da prioridade que havia sido dada para outras políticas públicas. O Diretório Nacional do PT, reunido, debatia o assunto como ponto principal a ser votado naquele dia pelas 60 principais lideranças do partido. Encaminhei parecer favorável à CPMF. Senti que havia tocado alguns corações e por um momento pensei que venceria. Nesse instante, o presidente do partido pediu para ele mesmo substituir a pessoa que iria me contradizer e propor a recusa da CPMF. 17 De cima do palco, contando os votos, vi com clareza o que hoje sei perfeitamente. O diretório daquele partido socialista, que se dizia revolucionário, no caso da saúde tinha 95% dos seus membros fazendo parte daquela elite de 25% de brasileiros que mantinha, com subsídios públicos, seus sistemas privados e coorporativos suplementares. Apenas três trabalhadores rurais entre nós eram realmente 100% SUS! Lembro bem a frase final do então presidente do PT, atual ex-presidente do Brasil: “O Antônio Ermírio não quer dar este dinheiro para o SUS, mas eu também não quero dar”. Aqui temos dois problemas. Primeiro, falta de apoio político para avançar. Segundo, desvio de recursos públicos importantes para serviços de saúde que não são universais. São isenções tributárias para pessoas físicas e jurídicas. São aplicações diretas em serviços fechados de atenção à saúde coorporativa de trabalhadores em empresas estatais e servidores públicos. Calcula-se que cerca de 20% do faturamento dos seguros privados de saúde são provenientes desses subsídios. Segundo o anterior ministro da saúde, só a renúncia fiscal com o abatimento autorizado de despesas médicas chegaria a 10 bilhões de reais por ano. A Constituição garante a oferta de serviços privados, porém não é justo, não é correto, não é democrático que esses recursos via subsídios faltem no sistema universal que serve a todos os brasileiros. A outra grande dificuldade do SUS, a mais óbvia e mais comentada por todos, é a insuficiência de orçamento. Vejam, por exemplo: os países com sistema de bem estar como a Suécia, Inglaterra, Espanha, destinam 8% do PIB para os serviços de saúde. Têm 100% de cobertura com 80% de gastos públicos e 20% de gastos privados, gastando cerca de 2.000 dólares/pessoa/ano. Já os EUA, seguindo outro modelo, destinam 16% do PIB, mas deixam 1/6 da população descoberta e gastam 8.000 dólares/pessoa/ano. O Brasil, para um serviço que se pretende universal, tem 45% de gastos públicos e 55% de gastos privados. Gasta 300 dólares/pessoa/ano, menos que grande parte dos outros países sul-americanos. Desde 1990, a vida orçamentária do SUS tem sido penosa e torturada (MARQUES; MENDES, 2002). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Bem, já se sabe o resultado. Perdi. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 18 Movimentos vigorosos conseguiram, em dois momentos cruciais, socorrer o sistema nacional, porém, na verdade, as vitórias têm sido sempre parciais e inconclusivas. A primeira foi a CPMF, e depois, muito mais abrangente e importante, a Emenda Constitucional nº 29/2000. Essa vinculação orçamentária mínima obrigatória garantiu um mínimo de estabilidade orçamentária, porém tem sido alvo de boicotes maliciosos, principalmente no governo federal. Os boicotes passaram a exigir uma regulamentação infraconstitucional, a rigor desnecessária se houvesse boa fé dos nossos executivos federais e alguns estaduais. A maioria parlamentar no Congresso, de braços dados com esses executivos, manobra para não votar uma regulamentação mais explícita e rigorosa para impedir as fraudes orçamentárias que se arrastam por uma década. A instância municipal, como esperado por sua proximidade com a vida do povo, é a que mais cumpre e até ultrapassa o orçamento mínimo obrigatório constitucionalizado no ano 2000. Vejam a seguinte tabela: TABELA 1 - Arrecadação e financiamento por instância governamental Executivo federal Executivos estaduais Executivos municipais TOTAL Arrecadação geral Financiamento da área social Financiamento SUS** 64% 59,6% 49,9% 23% 23,7% 23,1% 13% 16,7% 27% 100% 100% 100% Fonte: IPEA; *Siafe/Sidor, IBGE/Decna; **SIOPS. Finalmente, há a dificuldade nas formas de gestão do SUS. Sem dúvida ainda não se encontrou o ponto da combinação da execução pública (estatal, privada lucrativa, privada não lucrativa) previsto no modelo SUS. Alguns setores corporativistas, por exemplo, pretendem bloquear a experiência das organizações sociais, que combinada com as outras fórmulas tradicionais, pode e deve ser utilizada como uma forma válida de gestão do SUS. 19 Pois é disso que se trata. Com os recursos que o Brasil oferece, o SUS opera o milagre da multiplicação de pães e peixes todos os dias. É só visitar os números consolidados a cada ano pelo Ministério da Saúde, do trabalho feito pelos 27 estados e 5.564 municípios. Três bilhões de atendimentos ambulatoriais, 230 milhões de vacinações, 10 milhões de internações, 400 milhões de exames, 23 milhões de ações em vigilância, 12 mil transplantes, etc. (SOUSA, 2007), demonstrando um esforço de criatividade e compromisso que só um sistema altamente descentralizado pode oferecer como resposta às demandas do povo em todo o território nacional. O SUS é hoje, com todas suas deficiências, um ponto de apoio básico da unidade nacional da nossa federação. NOVOS RUMOS PARA O SUS Contribuindo para o debate, tendo em vista a eleição de um novo Congresso e de uma nova presidente, vamos ao que mais interessa, que são as propostas para os próximos quatro anos. É melhor nos concentrarmos nas questões-chaves, para não nos perdermos na imensa floresta de dívidas e insuficiências setoriais do sistema. 1. PROMOÇÃO DA SAÚDE/INTERSETORIALIDADE O setor saúde não se salvará sozinho e não atenderá às necessidades do povo fechado em suas corporações e orçamentos. Sem ingenuidade para não admitir os contrabandos orçamentários dos vários condicionantes sociais que moldam os nossos problemas de saúde, dos quais uma boa regulamentação da EC 29/2000 dará conta, é preciso que a política de saúde faça uma decisiva opção pela promoção da saúde e pelo trabalho intersetorial. A promoção da saúde não pode ser aquele item da integralidade que se passa com ligeireza para se chegar à prevenção, recuperação e reabilitação. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Porém, o mais admirável é que nessa indefinição e jogo de falsos antagonismos se consiga fazer tanto! PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 20 Segundo dados do IBGE (PNAD, 2008), os três mais frequentes problemas de saúde dos brasileiros são: a hipertensão, a diabetes e os “problemas e dores de coluna”. Ora, são exatamente eventos onde mudanças de hábitos, educação, nutrição adequada etc., mais impacto positivo podem trazer para a qualidade e vida e mesmo para uma convivência menos sofrida com a doença instalada. A intersetorialidade é a ação da saúde nas políticas de transporte, educação, meio ambiente, previdência, agricultura, entre outras e, vice versa, nossa abertura para com eles atuar de forma coordenada. É tradição no Brasil a postura corporativa e isolacionista de cada política pública, altamente nociva do ponto de vista orçamentário e funcional no trabalho dos governos. Como se explica que até hoje educação e saúde não se falem, desde a formação de recursos humanos até a integração que nossas agentes comunitárias poderiam fazer entre escola e comunidade? Não é possível pensar/equacionar problemas gravíssimos de saúde e meio ambiente sem um estreito trabalho conjunto, e não só no controle de agravos, mas inclusive na produção econômica dos insumos e serviços de saúde que não podem seguir seu roteiro economicista dos séculos 19 e 20, no qual o meio ambiente é considerado fonte infinita de recursos à nossa disposição. Nossas indústrias da saúde e equipamentos devem e precisam chegar ao século 21 do equilíbrio entre econômico/social/ambiente. 2. ATENÇÃO BÁSICA NO COMANDO Esta é a reforma dentro da reforma que estamos devendo. O SUS não pode continuar refém de corporações profissionais e serviços instalados com lógica antiga da hegemonia do superespecialista e do hospital. Ela não se sustenta nem do ponto de vista técnico nem do ponto de vista orçamentário. É preciso aprender com a experiência internacional que levou a sério a proposta da OMS/ONU de Alma-Ata e comparar resultados. Comparar, por exemplo, os resultados epidemiológicos e orçamentários de uma Inglaterra com os dos Estados Unidos. Não é possível que os dirigentes políticos e sanitários brasileiros con- 21 comando do sistema. É preciso tomar as decisões orçamentárias e traçar um plano de cerca de dez anos para essa travessia, que implica em mudança radical no nosso aparelho formador de trabalhadores da saúde, no apoio técnico e social aos trabalhadores da atenção básica, para que eles tenham os conhecimentos, segurança e prestígio social para exercer seu papel de liderança e articulação da assistência do cidadão também nos outros níveis do sistema nacional de saúde. O PSF foi uma adaptação brilhante do SUS à estratégia de Alma-Ata para as realidades sociais e geográficas do Brasil. Agora é preciso o passo decisivo e colocá-lo no comando do SUS, universalizar sua oferta para todas as classes sociais, garantir a qualidade de suas intervenções para dar conta de cerca de 80% das nossas demandas e garantir que ele seja o avalista da humanização do SUS. Essa humanização passa pelo local onde trabalhadores da saúde e cidadãos que buscam nossa ajuda se conhecem pelo nome e não pelo número de prontuário. Local onde a alma do povo está preservada pela presença deste que é o mais importante trabalhador da saúde do SUS, o Agente Comunitário da Saúde. Segundo Sousa (2001), trata-se de um novo sujeito, um cuidador da saúde que entrou em cena para ser mais do que um funcionário público comum, com e ao lado dos indivíduos, famílias e comunidades, na permanente busca da qualidade de vida e saúde em cada microterritório de suas atuações. 3. RECURSOS Primeiro, chovendo em terra encharcada, regulamentar imediatamente a EC 29/2000 no Congresso Nacional. Segundo, em um plano de dez anos, planejar o desembarque dos subsídios públicos de todo tipo para os seguros privados de saúde e para os sistemas coorporativos fechados para trabalhadores de estatais e serviços públicos. Esses subsídios recuperados não devem se dissolver, é claro, no caldeirão comum dos orçamentos federais, estaduais e municipais. Devem mi- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 tinuem acovardados diante da necessidade de colocar a atenção básica no PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 22 grar para um fundo específico vinculado, com um aporte adicional, para expansão em qualidade e quantidade do PSF e da garantia de um bom serviço de urgência e emergência que possa receber os segmentos que estão perdendo os subsídios e precisam ser acolhidos pelo SUS. Em terceiro lugar, dando uma vez na vida alguma razão aos economistas, encarar que promoção da saúde, intersetorialidade e comando do sistema pela atenção básica têm, além dos significados funcionais e humanizadores, uma tarefa de racionalização orçamentária. É da natureza da política de saúde ter uma demanda infinita de orçamento para uma demanda infinita de necessidades de atendimento. Essa ação racionalizadora é necessária aqui no Brasil, na Suécia ou em Moçambique. Finalmente, é preciso um planejamento nacional, pois estamos falando de grandes monopólios, que discipline tanto a utilização quanto estimule uma produção adequada à nossa realidade de medicamentos e outros insumos produzidos pela “indústria da saúde”. 4. A SEGURIDADE SOCIAL O quarto ponto estratégico. Uma reforma da nossa seguridade social para aproximá-la dos princípios democráticos e universalistas do Sistema Único de Saúde. A Constituição democrática, a despeito de alguns avanços importantes como a equiparação de trabalhadores urbanos e rurais, ficou no início do trabalho em relação à construção de uma previdência democrática, universalista e estável financeiramente. Muito pior do que as distorções da assistência à saúde suplementar são as aberrações relacionadas às previdências coorporativas fechadas por categorias sociais, como trabalhadores estatais e não estatais de grandes empresas e funcionários públicos brasileiros. Não é democrática nem sustentável do ponto de vista orçamentário a manutenção conservadora desse estado de coisas pré-constituinte. É necessário que também com uma transição razoável se crie uma previdência básica igualitária em direitos e deveres para todos os tipos de profissionais brasileiros, homens e mulheres. Acima dessa previdência básica, 23 regulada e controlada, porém sustentada com recursos privados do próprio profissional. É essa reforma que dará estabilidade orçamentária ao complexo da seguridade social composta por previdência, saúde e assistência social. Caso contrário, o item previdência continuará esmagando cada vez mais os seus dois irmãos de trabalho, a saúde e a assistência social. O ideal é que se evolua para um orçamento da seguridade social unificado, gerido por um forte sistema nacional de seguridade social, com seus três segmentos atuando de forma federada em um Ministério da Seguridade Social. É o que se pode dizer um verdadeiro Ministério da Defesa Popular, capaz de dialogar em igualdade de condições com qualquer outra força econômica dentro e fora dos nossos governos. Felizmente, o SUS é hoje uma unanimidade nos programas de governo dos principais candidatos e partidos. Porém, para que essa unanimidade não se torne burra, insensível às justas críticas populares, é preciso saber quais são as decisões difíceis e necessárias que devem ser tomadas nos próximos anos para que ele continue avançando e protegendo nosso povo. As nossas ideias são essas. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 quem quiser pode e deve ter acesso a uma previdência complementar bem PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 24 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, H. A condição humana. 10ª ed. Trad.: Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Senado Federal. Brasília, 1988. __________ Lei n. 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 24 set. 1990a. __________ Lei n. 8.142, de 28 de Dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 28 dez. 1990b. __________ Sistema de Informação da Atenção Básica – SIAB. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2008). Disponível em: <http://www.ibge.gov. br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2008/default.shtm>. Acesso em [2010]. __________ Suplemento de Saúde da PNAD 2008. Disponível em: <http://www. ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/panorama_saude_brasil_2003_2008/ default.shtm>. Acesso em [2010]. MARQUES, R. M.; MENDES, A. A dimensão do financiamento da atenção básica e do PSF no contexto da saúde. In: Os sinais vermelhos do PSF. SOUSA, M. F. (Org.) São Paulo: Hucitec, 2002. OMS. Relatório Mundial de Saúde 2008 – Atenção primária em saúde. Agora mais do que nunca. Trad.: Maria Cristina Moniz Pereira. Brasil: Ministério da Saúde/OPS, 2010. OMS/UNICEF. Cuidados primários de saúde. Relatório da Conferência Internacional sobre cuidados primários de saúde, Alma-Ata, Rússia, 1978. 25 torial: agenda de promoção da saúde em grandes centros urbanos. Brasília. Tempus Actas em Saúde Coletiva, v. 1, p. 1-16, 2008. __________; __________; NEVES, H. Projeto ambientes verdes e saudáveis: integrando políticas públicas na cidade de São Paulo. São Paulo. Divulgação em Saúde para Debate, v. 39, p. 59-67, 2007. SOUSA, M. F. Programa de saúde da família: estratégia de superação das desigualdades na saúde? Tese [Doutorado] Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde. Universidade de Brasília. Brasília: 2007. __________ Agentes Comunitários de Saúde: choque de povo. São Paulo: Ed. Hucitec, 2001. STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco/Ministério da Saúde, 2002. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 PARREIRA, C.; SOUSA, M. F. Agentes comunitários de saúde e ação interse- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 26 27 Gilberto Natalini - Médico e vereador em São Paulo, foi presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) entre 1999 e 2001. O SUS é o grande plano de saúde do povo brasileiro. Seu maior objetivo é garantir acesso integral, universal e gratuito para toda a população do País. Seu projeto contempla todos os setores da saúde, desde o atendimento ambulatorial até especialidades como transplantes. A importância do SUS, que completará 23 anos em 2011, é inquestionável. Haveria um genocídio no Brasil se, de repente, o sistema deixasse de atender as 150 milhões de pessoas que dele dependem. Há muito que avançar, construir, aprimorar; porém é inegável o papel histórico desse sistema, que já desempenhou um imenso papel no acolhimento de milhões de pessoas. O SUS foi criado junto à Constituição de 1988. Está definido em seu artigo 198, que rege: Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 O GRANDE PLANO DE SAÚDE DO POVO BRASILEIRO PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 28 III - participação da comunidade. § 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. § 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: I - no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no § 3º; II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º. § 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá: I - os percentuais de que trata o § 2º; II - os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais; III - as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal; IV - as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União. 29 admitir agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias por meio de processo seletivo público, de acordo com a natureza e complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua atuação. § 5º Lei federal disporá sobre o regime jurídico, o piso salarial profissional nacional, as diretrizes para os Planos de Carreira e a regulamentação das atividades de agente comunitário de saúde e agente de combate às endemias, competindo à União, nos termos da lei, prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, para o cumprimento do referido piso salarial. § 6º Além das hipóteses previstas no § 1º do art. 41 e no § 4º do art. 169 da Constituição Federal, o servidor que exerça funções equivalentes às de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias poderá perder o cargo em caso de descumprimento dos requisitos específicos, fixados em lei, para o seu exercício. As lutas da classe médica ao longo da ditadura militar, contando com a mobilização popular, culminaram no grande debate sobre a seguridade social, em particular a saúde, na Assembleia Nacional Constituinte. Venceu a tese de que “Saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado”, o que motivou a criação do SUS. O financiamento do SUS já passou por altos e baixos. Enquanto atualmente o gasto per capita médio com saúde no Brasil é de 252 dólares norteamericanos, no início da década de 90 esse valor era inferior a 100 dólares. Apesar de ainda estar longe do ideal, várias ações foram tomadas para elevar essa quantia. Em 2000 foi aprovada a Emenda Constitucional 29, que fixa os percentuais mínimos a serem investidos anualmente em saúde pela União, estados e municípios. Foi um marco histórico, quase tão importante quanto o movimento da fundação do SUS, embora dos três entes federativos, nem todos tenham feito a lição de casa: alguns estados, e o próprio Governo Federal ainda não regulamentaram as leis garantindo na integralidade os pressupostos da PEC. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 § 4º Os gestores locais do sistema único de saúde poderão PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 30 A descentralização do SUS foi um processo importantíssimo para garantir seu funcionamento e atender uma diretriz estabelecida no artigo 198 da Constituição. Em âmbito nacional, foi o período da publicação da Norma Operacional Básica de 1996 (NOB/96). A NOB/96 formulava um conjunto de responsabilidades e regras para os municípios habilitarem-se nas diferentes condições de gestão, estabelecendo parâmetros de repasse de recursos “fundo a fundo”. Lê-se na introdução da NOB: “Ao tempo em que aperfeiçoa a gestão do SUS, esta NOB aponta para uma reordenação do modelo de atenção à saúde, na medida em que redefine: a) os papéis de cada esfera de governo e, em especial, no tocante à direção única; b) os instrumentos gerenciais para que municípios e estados superem o papel exclusivo de prestadores de serviços e assumam seus respectivos papéis de gestores do SUS; c) os mecanismos e fluxos de financiamento, reduzindo progressiva e continuamente a remuneração por produção de serviços e ampliando as transferências de caráter global, fundo a fundo, com base em programações ascendentes, pactuadas e integradas; d) a prática do acompanhamento, controle e avaliação no SUS, superando os mecanismos tradicionais, centrados no faturamento de serviços produzidos, e valorizando os resultados advindos de programações com critérios epidemiológicos e desempenho com qualidade; e) os vínculos dos serviços com os seus usuários, privilegiando os núcleos familiares e comunitários, criando, assim, condições para uma efetiva participação e controle social.” A efervescência da construção da rede municipal de saúde, com a habilitação na NOB/96 de milhares de municípios brasileiros, dava um impulso enorme na consolidação do SUS. Apesar de não ser obrigatório, mais de 99% dos municípios brasileiros aderiram ao sistema de gestão descentralizada. No 31 tração estadual dos recursos do SUS, entre as quais a capital, que contava na época com o Plano de Atendimento à Saúde (PAS). Em 2001, após o PAS mostrar-se extremamente ineficiente, a cidade de São Paulo habilitou-se no SUS. A NOB/96 permitiu ao município habilitar-se em dois tipos básicos de gestão: gestão plena de atenção básica ou gestão plena do sistema municipal. Para se habilitar nos tipos de gestão, o município tinha de atender a certos requisitos e assumir certas responsabilidades. De acordo com o documento, as responsabilidades de cada habilitação são: GESTÃO PLENA DA ATENÇÃO BÁSICA Responsabilidades a) Elaboração de programação municipal dos serviços básicos, inclusive domiciliares e comunitários, e da proposta de referência ambulatorial especializada e hospitalar para seus munícipes, com incorporação negociada à programação estadual. b) Gerência de unidades ambulatoriais próprias. c) Gerência de unidades ambulatoriais do estado ou da União, salvo se a CIB [Comissão Intergestores Bipartite] ou a CIT [Comissão Intergestores Tripartite] definir outra divisão de responsabilidades. d) Reorganização das unidades sob gestão pública (estatais, conveniadas e contratadas), introduzindo a prática do cadastramento nacional dos usuários do SUS, com vistas à vinculação de clientela e à sistematização da oferta dos serviços. e) Prestação dos serviços relacionados aos procedimentos cobertos pelo PAB [Piso Assistencial Básico] e acompanhamento, no caso de referência interna ou externa ao município, dos demais serviços prestados aos seus munícipes, conforme a PPI, mediado pela relação gestor-gestor com a SES e as demais SMS. f) Contratação, controle, auditoria e pagamento aos prestadores dos serviços contidos no PAB. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 estado de São Paulo, apenas três cidades continuaram submetidas à adminis- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 32 g) Operação do SIA/SUS quanto a serviços cobertos pelo PAB, conforme normas do MS, e alimentação, junto à SES, dos bancos de dados de interesse nacional. h) Autorização, desde que não haja definição em contrário da CIB, das internações hospitalares e dos procedimentos ambulatoriais especializados, realizados no município, que continuam sendo pagos por produção de serviços. i) Manutenção do cadastro atualizado das unidades assistenciais sob sua gestão, segundo normas do MS. j) Avaliação permanente do impacto das ações do Sistema sobre as condições de saúde dos seus munícipes e sobre o seu meio ambiente. k) Execução das ações básicas de vigilância sanitária, incluídas no PBVS. l) Execução das ações básicas de epidemiologia, de controle de doenças e de ocorrências mórbidas, decorrentes de causas externas, como acidentes, violências e outras, incluídas no TFECD. m) Elaboração do relatório anual de gestão e aprovação pelo CMS. GESTÃO PLENA DO SISTEMA MUNICIPAL Responsabilidades a) Elaboração de toda a programação municipal, contendo, inclusive, a referência ambulatorial especializada e hospitalar, com incorporação negociada à programação estadual. b) Gerência de unidades próprias, ambulatoriais e hospitalares, inclusive as de referência. c) Gerência de unidades ambulatoriais e hospitalares do estado e da União, salvo se a CIB ou a CIT definir outra divisão de responsabilidades. d) Reorganização das unidades sob gestão pública (estatais, conveniadas e contratadas), introduzindo a prática do cadas- 33 culação da clientela e sistematização da oferta dos serviços. e) Garantia da prestação de serviços em seu território, inclusive os serviços de referência aos não-residentes, no caso de referência interna ou externa ao município, dos demais serviços prestados aos seus munícipes, conforme a PPI, mediado pela relação gestor-gestor com a SES e as demais SMS. f) Normalização e operação de centrais de controle de procedimentos ambulatoriais e hospitalares relativos à assistência aos seus munícipes e à referência intermunicipal. g) Contratação, controle, auditoria e pagamento aos prestadores de serviços ambulatoriais e hospitalares, cobertos pelo TFGM. h) Administração da oferta de procedimentos ambulatoriais de alto custo e procedimentos hospitalares de alta complexidade conforme a PPI e segundo normas federais e estaduais. i) Operação do SIH e do SIA/SUS, conforme normas do MS, e alimentação, junto às SES, dos bancos de dados de interesse nacional. j) Manutenção do cadastro atualizado de unidades assistenciais sob sua gestão, segundo normas do MS. k) Avaliação permanente do impacto das ações do Sistema sobre as condições de saúde dos seus munícipes e sobre o meio ambiente. l) Execução das ações básicas, de média e alta complexidade em vigilância sanitária, bem como, opcionalmente, as ações do PDAVS. m) Execução de ações de epidemiologia, de controle de doenças e de ocorrências mórbidas, decorrentes de causas externas, como acidentes, violências e outras incluídas no TFECD. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 tramento nacional dos usuários do SUS, com vistas à e vin- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 34 A habilitação em um desses tipos de gestão proporcionava ao município o gozo de certas prerrogativas, dentre as quais destaca-se a assunção da gestão da saúde no seu território e a transferência automática de recursos financeiros oriundos do Fundo Nacional de Saúde ao Fundo Municipal. Um estudo recente realizado pela Organização Mundial da Saúde apontou a eficiência do sistema descentralizado de gestão: 98% dos municípios atingem o piso de gastos em saúde, equivalente a 15% do orçamento. O mesmo não ocorre em nível estadual: pouco mais da metade dos estados cumprem o piso de 12% do orçamento para a área de saúde. O SUS foi extremamente valorizado durante a gestão no Ministério da Saúde de 1998 a 2002. Em quatro anos, o repasse do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Municipais de Saúde passou de R$ 1,5 bilhão para quase R$ 7 bilhões. O período também contou com a ampliação do Programa Saúde da Família, uma estratégia de reorientação do modelo assistencial, operacionalizada mediante a implantação de equipes multiprofissionais em unidades básicas de saúde. Estas equipes são responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de famílias, localizadas em uma área geográfica delimitada. O programa, muito elogiado em um documento publicado pela Organização Mundial da Saúde, aumentou em mais de 1000% o número de equipes atuantes. O mesmo documento trouxe números interessantes sobre o Sistema de Saúde Único. Em 20 anos de programa, a taxa de mortalidade infantil caiu de 0,46% para 0,18%. Essa redução levará o Brasil a alcançar, em 2012, a quarta Meta dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, três anos antes da data limite fixada pela ONU. A carta aponta que 75% dos brasileiros dependem exclusivamente do SUS. O crescimento e eficácia do SUS precisam ser acompanhados de perto pela população. A Emenda Constitucional 29, por exemplo, ainda precisa ser regulamentada, e o processo já leva mais de seis anos. Por enquanto, vários estados não a seguem, apenas maquiam seus orçamentos para fingir que dedicam no mínimo 15% de seu faturamento para a Saúde. Há exceções, contudo, como São Paulo, que dedica mais de 20% da arrecadação. O SUS é uma das maiores conquistas que os brasileiros conseguiram 35 bilhões de procedimentos e 4 milhões de partos. O Brasil tem um dos melhores programas de vacinação do mundo. É um exército de pessoas, de caráter multiprofissional, a serviço de um sistema público que avança no País. Colocando na balança da história, analisando os prós e contras, podese dizer sem medo errar: “Valeu a pena, SUS!” PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 no último quarto de século. Anualmente, são 350 milhões de consultas, 3,5 PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 36 37 Leonardo Trevisan - Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Administração da PUC-SP. A Emenda Constitucional nº 29 completou exatos dez anos de vigência em 13 de setembro de 2010. Não há motivos de comemoração porque, enfim, a regulamentação da emenda, que fixa os percentuais mínimos a serem investidos anualmente em saúde pela União, por estados e municípios, continua sem ser votada pelo Congresso Nacional. O impacto da não decisão dos parlamentares atinge o processo de financiamento de toda a saúde pública brasileira. Apesar de o Artigo 198 da Constituição Federal de 1988 determinar, em seu parágrafo 3º, a obrigatoriedade de criação da Lei Complementar, a ser reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecendo percentuais, normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas Federal, Estadual, Municipal e no Distrito Federal, o texto constitucional não contempla as fontes de recursos federais e a base de cálculo de forma adequada, exigindo, portanto, a competente regulamentação para que a Emenda Constitucional possa ter efeito. Observe-se que a aprovação da Emenda PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 29 E OS DUELOS ORÇAMENTÁRIOS DA SAÚDE: SEMPRE COM O MESMO PERDEDOR PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 38 Constitucional nº 29, em 2000, estabeleceu a vinculação de recursos das três esferas de governo para gerar estabilidade operacional do Sistema Único de Saúde, reforçando o papel do controle e fiscalização dos Conselhos de Saúde e prevendo sanções para o caso de descumprimento dos limites mínimos de aplicação em saúde (BRASIL, EMC 29/2000). A rigor, no entanto, sem a Lei Complementar todas as funções normativas da Emenda Constitucional nº 29, tanto no fluxo financeiro, como no controle das decisões orçamentárias dos três entes federativos, não ganhou maior eficácia. A emenda obrigou a União a investir em saúde, já em 2000, 5% a mais do que havia investido no ano anterior e determinou que, nos anos seguintes, esse valor fosse corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). Os estados ficaram obrigados a aplicar 12% da arrecadação de impostos, e os municípios, 15%. É essencial observar que não está definido o percentual da União, absolutamente flexível conectado à variação do PIB. A compreensão do risco embutido nessa decisão pode ser avaliada pelo fato de, em 2009, o PIB ter sofrido uma retração de 0,2% (BRASIL, IBGE/2010), embora a inflação anual atingisse 4,31%, conforme dados do Relatório de Inflação do Banco Central de março de 2010 (BRASIL, Banco Central/2010). O Poder Legislativo, por cumplicidade ou submissão em relação ao Executivo, ou então, por contumaz omissão de responsabilidade, não votou a regulamentação da Emenda Constitucional nº 29, gerando o que Graziane Pinto (2010) descreveu como “níveis cumulativos de esvaziamento do dever constitucional de custeio federativo do SUS”. O primeiro aspecto dessa acumulação perversa de distanciamento com o sustento da saúde pública no Brasil aparece na contínua regressão de valor real na fatia orçamentária destinada à saúde. Na última década, ancorada legalmente no esvaziamento da Emenda Constitucional nº 29 pela falta de regulamentação, a União cumpre apenas a variação do PIB, pouco importando o aumento real da arrecadação federal. É essencial lembrar que a situação é bem diferente para estados e municípios, obrigados pelo preceito constitucional a gastar com saúde pública porcentagem determinada da receita fiscal ou das transferências legais entre entes federados. Só a União não está obrigada a gastar percentual fixo da receita com saúde. Vinculada à variação do PIB, a União está dispensada de conciliar os gastos de saúde com o avanço da 39 nacional e muito menos com resultados inflacionários de cada ano. Tal procedimento de gestão da peça orçamentária da saúde pela União gerou, na última década, problemas de receita efetiva para os gastos de saúde no País. A ausência de regulamentação da Emenda Constitucional nº 29 provocou também, no perfil orçamentário da área da saúde, outro prejuízo ainda mais grave do que a frágil atualização financeira da receita. Sem a competente regulamentação, diferentes despesas, sequer formalmente relacionadas com o atendimento de saúde, terminam incluídas na rubrica orçamentária das despesas mínimas com saúde, nos percentuais determinados pela Constituição. Embora todos os 27 estados da Federação tenham afirmado o cumprimento total dos gastos mínimos em saúde em 2008, apenas 14 atenderam os critérios do Conselho Nacional de Saúde determinados pela Resolução Nº 322/2003 (BRASIL, CNS 322/2003). Em outras palavras, 13 estados incluíram gastos e ações governamentais completamente diversos ou não atinentes à política de saúde pública como gastos do setor, descumprindo os termos da Resolução CNS Nº 322/2003. Na prática, como a União se considera desobrigada a cumprir qualquer percentual de receita para a saúde, e metade dos estados brasileiros embute no percentual constitucional gastos não vinculados à área, fica para os municípios a tarefa de justificar a demanda não atendida por serviços de saúde pública. Obviamente, salvo exceções de algumas capitais ou grandes cidades, os municípios não contam com recursos próprios suficientes para atender a demanda por saúde, e tampouco recebem o aporte financeiro necessário para sustentar todas as atividades inerentes ao atendimento universal implícito na estrutura do SUS. Na outra ponta dessa complexa estrutura orçamentária, a União assegura cumprir as determinações constitucionais e atender a todas as necessidades orçamentárias da saúde. E o Poder Executivo o faz do ponto de vista estritamente legal, do atendimento das disposições orçamentárias legais. O orçamento mínimo para o setor de saúde, como estabelecido pela própria Emenda Constitucional 29, determina que o orçamento anual é o mesmo do ano anterior mais a variação do PIB. Em 2010, o orçamento do Ministério da Saúde alcançou R$ 65,1 bilhões. Os técnicos do ministério garantem que, se PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 receita, o qual não é rigorosamente coincidente com a expansão do produto PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 40 cumprida estritamente os termos da Emenda 29, o piso estaria em apenas R$ 60,9 bilhões. No entanto, o orçamento global do Ministério da Saúde, incluídos os créditos adicionais já aprovados no Congresso, foi R$ 4,2 bilhões maior que o piso determinado pela Constituição (BRASIL, Orçamento, Ministério da Saúde/2010). No entanto, é curioso acompanhar a execução desta peça orçamentária que ultrapassa o piso definido por preceito constitucional. A partir de dados do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal, SIAFI, dos R$ 65,1 bilhões do orçamento anual do Ministério da Saúde, até a primeira semana de agosto de 2010 haviam sido efetivamente gastos R$ 31,04 bilhões (JUNGBLUT, 2010). Ou seja, nos primeiros sete meses do ano, os dispêndios orçamentários do ministério atingiram 48% do total previsto. Como 2010 é ano eleitoral, e portanto nos seis meses anteriores à eleição há fortes restrições para gastos do governo, é bastante possível afirmar que o orçamento não será inteiramente executado no setor de saúde. Por outro lado, o acompanhamento da execução financeira da peça orçamentária na saúde inibe as críticas relativas à solução de continuidade dada pelo Senado à Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF). Da alíquota de 0,38% arrecadada pela contribuição, apenas 0,20% destinava-se de fato ao setor de saúde, representando apenas 42% do volume total arrecadado. Em 2010, a estimativa de receita oriunda da CPMF para o setor de saúde não ultrapassaria R$ 16 bilhões. Como a execução orçamentária do setor, a partir do piso mínimo imposto pela Constituição, não será sequer integralizada ao final de 2010 (como não o foi nos anos anteriores), é complexo aceitar a falta dos recursos oriundos da CPMF como o motivo da enorme carência de verbas enfrentado pelo setor. A carência de recursos — e todos os problemas daí decorrentes no setor de saúde — tem origem em outras distorções e não propriamente na questão orçamentária. A maior dessas distorções é que recursos orçamentários destinados ao setor de saúde não são gastos efetivamente na atividade fim do setor. É por essa razão que a regulamentação da Emenda Constitucional nº 29 não é votada, pois o principal aspecto dessa regulamentação é a definição formal do que significa gasto com saúde, o que inviabilizaria o pagamento de 41 sos orçamentários destinados ao setor. Esse problema não atinge apenas a União, atinge também os estados, e exatamente por essa razão — a não regulamentação da Emenda 29 — que 13 dos 27 estados da Federação brasileira não cumpriram os critérios do Conselho Nacional de Saúde como mostra o teor da Nota Técnica Siops/Desd/SeMSnº19/2010 (GRAZIANE PINTO, 2010). Além dessa grave distorção, de que os recursos da Saúde não são utilizados na sua atividade fim, não há reciprocidade operacional dos gastos indiretamente vinculados às políticas públicas de saúde. O melhor exemplo dessa falta de reciprocidade está no setor de saneamento básico. Apesar do ritmo de investimentos no setor de saneamento básico, alta de 19% em 2009 em relação a 2008 (MAIA, 2010), o número de internações por doenças de veiculação hídrica aumentou 12,5% no primeiro quadrimestre de 2010 em relação ao mesmo período de 2009, conforme os dados do Sistema Único de Saúde (BRASIL, SUS, 2010): foram 332 internações por essa razão nos primeiros quatro meses de 2009, e 2.581 nos mesmos meses do ano seguinte. O quadro é mais preocupante relativamente às crianças com até nove aos de idade: no primeiro quadrimestre de 2010 foram internadas 1.025 crianças com graves doenças oriundas da falta de saneamento básico, ante 933 no mesmo período de 2009 (BRASIL, SUS, 2010). O Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, a partir dos dados mais recentes disponíveis, confirma que o País conta com apenas 43,2% dos domicílios atendidos por coleta de efluentes (BRASIL, SNIS, 2010). O Instituto Trata Brasil, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), calcula que o acesso à rede de esgoto tem potencial para reduzir em até 50% as internações por doenças de veiculação hídrica; indicadores confirmam que uma cidade de 100 mil habitantes sem rede de esgoto enfrenta, em média, 440 internações/ano por doenças gástricas infecciosas. Estudo divulgado pelo Instituto Trata Brasil1 em maio de 2009 revelou a destinação do esgoto em 79 cidades brasileiras com mais de 300 mil habitantes, bem como a importância dada ao serviço de saneamento pelos gestores municipais entre 2003 e 2007. 1 http://www.tratabrasil.org.br/novo_site/cms/files/trata_fgv.pdf. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 várias ações governamentais alheias à política pública de saúde com os recur- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 42 O estudo, realizado com o apoio da Fundação Getulio Vargas (FGV), mostrou avanço de 14% no atendimento de esgoto e de 5% no tratamento nas 79 grandes cidades avaliadas entre 2003 e 2007. Não obstante, são despejados todos os dias no meio ambiente 5,4 bilhões de litros de esgoto sem tratamento, gerados nessas cidades, contaminando solo, rios, mananciais e praias do País, com impactos diretos na saúde da população. Entre as dez cidades brasileiras com os melhores indicadores, ou entre as dez piores, estão operadores municipais, estaduais e privados; assim, não é o modelo de gestão que determina a prestação eficiente, pois existem bons e maus operadores nas três situações observadas. O que faz a diferença, segundo o estudo, é a prioridade política e a importância que tanto os gestores públicos quanto a própria população dedica ao saneamento (INSTITUTO TRATA BRASIL, 2009). A tabela a seguir mostra que, entre as melhores cidades, estão três com operações estaduais, seis com operações municipais e uma com operação privada. TABELA 1 - Cidades melhor classificadas quanto ao saneamento básico (2003-2007) Colocação Cidade Estado 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Franca Uberlândia Sorocaba Santos Jundiaí Niterói Maringá Santo André Mogi das Cruzes Piracicaba SP MG SP SP SP RJ PR SP SP SP Habitantes (x1000) 319 608 559 418 342 474 325 667 362 358 Operação Estadual Municipal Municipal Estadual Municipal Privada Estadual Municipal Municipal Municipal Fonte: Instituto Trata Brasil. Todas as cidades ocupantes dos primeiros lugares nesse ranking do instituto realizaram investimentos contínuos nos serviços de coleta e tratamento de esgoto, no período avaliado. A cidade de Uberlândia é bom exemplo: 43 adotar política contínua de investimentos anuais da ordem de 50% do caixa gerado pela operação do sistema. Franca é outro exemplo, pois ocupava a 25ª posição em 2003, e investiu 203% no primeiro ano da série, mantendo regularidade de investimentos da ordem de 115% em 2004, 335% em 2005, 334% em 2006 e 290% em 2007. Estão entre as piores cidades na questão do saneamento básico estão Macapá (AP), população de 344 mil habitantes, Canoas (RS), 326 mil habitantes e apenas 13% com coleta de esgoto, São João do Meriti (RJ), 0% de cobertura de esgoto e população de 464 mil pessoas, Jaboatão do Guararapes (PE) com 14% de atendimento de esgoto a 665 mil pessoas, Belém (PA) com 1 milhão de habitantes e 6% de atendimento com serviço de esgoto, Cariacica (ES), 356 mil habitantes e 14% com esgoto, Porto Velho (RO) com 0% de esgoto tratado para 369 mil habitantes, o mesmo quadro de Nova Iguaçu (RJ) sem serviço de esgoto, assim como Duque de Caxias e São Gonçalo, também no Estado do Rio de Janeiro que ocupam a última posição. É fato, portanto, que o modelo de gestão — estadual, municipal ou privado — não é garantia de eficiência e qualidade na prestação dos serviços, uma vez que as dez últimas cidades classificadas em 2007 são operadas por concessionárias estaduais de saneamento, como mostra o estudo do Trata Brasil. Do total das cidades observadas, 56 concentram operações estaduais, 18 municipais e cinco privadas (INSTITUTO TRATA BRASIL, 2009). É possível retirar muitas lições da área de saneamento básico para a boa (ou má) gestão e execução de políticas públicas de saúde; a questão de recursos destinados ao saneamento é também bastante séria. A Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústria de Base (Abdib) elaborou estudo mostrando que o investimento anual em saneamento deveria ser de R$ 13,5 bilhões para que o País acelerasse a recuperação do que não foi feito nas três últimas décadas (Abdib, 2010). No entanto, vale notar que em 2009, apesar de todos os alertas, de todos os avisos sobre os vínculos entre doenças de veiculação hídrica e saneamento, o setor recebeu investimentos de apenas R$ 6,5 bilhões, menos da metade do necessário. Por outro lado, a análise do interesse em aportes em saneamento em cada município é revelador do grau de maturidade administrativa na fixação de prioridades orçamentárias. Se nos PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 em 2003 foi a 51ª colocada, avançando para o segundo lugar em 2007, por PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 44 municípios maiores, com mais de 300 mil habitantes, é possível encontrar a difícil realidade exibida pelo estudo do Instituto Trata Brasil, também é possível imaginar o grau de dificuldade ao fixar bem as prioridades orçamentárias em municípios menores em que os quadros técnicos compreensivelmente são menos preparados. A política pública de saúde, portanto, sofre de duas graves fontes de pressão; a primeira, de ordem constitucional, marcada pela absoluta indefinição do que é exatamente o gasto com saúde. A segunda, diz respeito ao que o administrador público entende como prioridade orçamentária. É na realidade municipal, no entanto, que mais ocorre a pressão efetiva da demanda por saúde. É no município que o drama da ineficácia no atendimento de saúde ganha contornos muito graves. Toda a sequência de decisões adiadas, de gestões ineficientes e de repasses orçamentários que não foram feitos, assume a dimensão municipal do “mau atendimento”, atingindo o doente e sua família. Mas comete-se uma incompreensão sistêmica ao responsabilizar apenas a esfera municipal — ou absolvê-la por inteiro de sua obrigação — quando se constata esse mau atendimento. No entanto, é na esfera municipal que a péssima gestão de prioridades orçamentárias faz o seu maior dano, tanto nas políticas públicas de saúde como na instalação e manutenção de saneamento básico. A Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) elaborou o Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM), um retrato bem fundamentado dos problemas de emprego, renda, educação e saúde dos 5.564 municípios brasileiros. Em especial, dos 2.503 municípios em que não há água tratada, não há atendimento médico básico, os empregos são insuficientes e, em sua maior parte, informais e temporários. Nesses municípios especialmente carentes vivem 40 milhões de brasileiros. Como mostra o estudo da Firjan, há primeiro uma óbvia concentração de desenvolvimento regional que se reflete em melhor ou pior atendimento de saúde. Por exemplo, dos 15 municípios mais desenvolvidos em termos de atendimento médico, 14 situam-se no estado de São Paulo; em educação, das 100 melhores cidades, 92 também são paulistas. No ranking municipal do IFDM/Firjan, em 2007, em primeiro lugar está Araraquara (SP), com 0,9349 pontos, enquanto o menor índice cabe a Marajá do Sena (MA), com 0,3394 pontos. Apenas três capitais figuraram entre os 100 primeiros colocados do ranking em 2007, indicando continuidade do 45 contra quatro em 2006. Belo Horizonte deixou a lista, atesta o estudo da Firjan, concluído em 2010. O IFDM varia numa escala de 0 (pior) a 1(melhor) para classificar o desenvolvimento humano, de acordo com dados oficiais relativos a emprego e renda, educação e saúde. Os critérios de análise estabelecem quatro categorias: baixo (de 0 a 0,4), regular (0,4001 a 0,6), moderado (de 0,6001 a 0,8) e alto (0,8001 a 1) desenvolvimento humano. Entre as capitais brasileiras, a liderança do ranking do IFDM 2007 não variou em relação a 2006, com algumas trocas entre as primeiras posições: Curitiba (0,8687) passou a ocupar o 1º lugar, que era de Vitória, agora em segundo com 0,8669. São Paulo (0,8469) continua na 3ª posição. Campo Grande (0,8351) deu um salto da 7ª para a 4ª posição, e Goiânia (0,8239), da 10ª para a 7ª. Entre os 100 primeiros municípios, entre 2006 e 2007, ocorreram algumas alterações na presença dos estados. São Paulo manteve 81 municípios entre os 100 primeiros, Santa Catarina teve cinco, o Rio de Janeiro passou de dois para quatro, e Minas Gerais aparece com três. Espírito Santo, Mato Grosso e Rio Grande do Sul têm um cada. No ranking dos estados, São Paulo e Paraná são os únicos com alto nível de desenvolvimento. No entanto, 23 das 27 unidades da Federação (incluindo o DF) melhoraram ou mantiveram seus índices. Por regiões, o CentroOeste se destacou aumentando a presença entre os 500 melhores índices, principalmente graças a Goiás. Já entre os 500 menores IFDMs 96,2% vêm do Norte e do Nordeste. A Bahia continua com o maior número de representantes com menor IFDM, seguida do Maranhão, Pará e Piauí. O País também conseguiu reduzir o número de cidades de baixo desenvolvimento em até 0,4 pontos, para apenas 0,6% em 2007, quando atingia 18,25% em 2000, primeiro ano de mensuração do índice. Por outro lado, aumentou o processo de concentração de municípios com índices entre 0,6 e 0,8 pontos, vindos de faixas inferiores, construindo uma tendência de redução da desigualdade entre os níveis de desenvolvimento das cidades. A média brasileira do IFDM foi de 0,7478, resultado 1,4% superior aos 0,7376 de 2006. Em 2000, primeiro ano do IFDM, a média nacional era de 0,5954 pontos. Em 2000, apenas 30,1% dos municípios brasileiros apresentavam índices na faixa de 0,6 a 0,8 pontos. Em 2006, o percentual saltou para 46,4%, passando em PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 processo de interiorização do desenvolvimento: Curitiba, Vitória e São Paulo, PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 46 2007 para 51,3%. Apenas 19 municípios apresentavam alto desenvolvimento em 2000. Agora, esse número é de 226 (IFDM/Firjan, 2010). Esse aspecto destacado pelo índice IFDM/Firjan merece toda atenção: na esfera municipal o País melhorou suas formas de gestão, com resultados bem visíveis. Porém, há uma concentração de mau atendimento, incluindo serviços de saúde, em bolsões de péssima gestão, bastante conhecidos. Esse é o ponto: o ritmo de melhoria na eficácia das políticas públicas de educação, saúde e geração de renda não são lineares, e em enormes áreas essa evolução obedece a um ritmo de expansão especialmente lento. É exatamente nesse aspecto que a não regulamentação da Emenda Constitucional 29 se transforma em obstáculo intransponível para a melhoria dos serviços de saúde no Brasil, permitindo um legado absurdo de omissão dos responsáveis municipais pela execução das políticas públicas de saúde. É exatamente por esta razão, a falta de regulamentação da EMC 29, que o presidente da Federação das Santas Casas e Hospitais Beneficentes do Estado de São Paulo, José Reinaldo Nogueira de Oliveira Junior, pondera que a solução para a difícil situação orçamentária do sistema de saúde não está apenas no aumento dos números, porquanto existem “questões estruturais” a serem resolvidas para garantir a “boa aplicação do dinheiro e a principal delas é a regulamentação da EMC nº 29”. Sem essa regulamentação, afirma o presidente da Federação das Santas Casas, “pouco importa a quantidade de recursos destinados à saúde”. O motivo dessa observação, Oliveira Junior também explica: “simplesmente porque, atualmente, não existem regras para definir o que são procedimentos de saúde, o dinheiro para hospitais e pacientes pode ser usado apara uma variedade interminável de ações governamentais”, o que inclui todo tipo de apoio a ações sociais (OLIVEIRA JUNIOR, 2010). De pouco adianta para o sistema de saúde pública que o Orçamento da União destine a sua maior fatia para o item “saúde”, porque sem a regulamentação da Emenda Constitucional nº 29, continuará embutida nessa rubrica quantidade infinita de ações não ligadas diretamente à política pública de saúde. É bem simples: sem a regulamentação da EMC nº 29, o dinheiro destinado à saúde não significará que esse recurso realmente seja investido em atendimento médico para a população. É curioso, mas por longos dez anos, não interessou nem à situação, nem à oposição, a regulamentação da EMC nº 47 PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 29. Nas duas bancadas é possível identificar poderosos lobbies que não estão interessados em perder a capa protetora dos “recursos para a saúde” escondendo o real destino do dinheiro público. O grave é que tampouco a mídia está interessada em destacar essa longa espera para que o dinheiro público da saúde chegue realmente até o doente que dele mais precisa. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 48 REFERÊNCIAs BIBLIOGRÁFICAS ABDIB, Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústria de Base 2010. Dados citados disponíveis em: <http://www.abdib.org.br/index/abdib_midia_detalhes.cfm?id_noticia=4450&tipo=1>. BRASIL, Banco Central/2010. Dados citados disponíveis em: <http://www.bcb. gov.br/Pec/metas/TabelaMetaseResultados.pdf> BRASIL, EMC 29/2000. Íntegra da Emenda Constitucional número 29/2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/ emc/emc29.htm> BRASIL, IBGE/2010. Dados citados disponíveis em: <http://www.ibge.gov.br/ home/> BRASIL, CNS: 322/2003. Resolução do Conselho Nacional de Saúde. Disponível em: <http://www.planejamento.rj.gov.br/orcamentorj/Atos_legais_elaboracao/Resolucao_322.pdf>. BRASIL, Orçamento, Ministério da Saúde/2010. Disponível em: <http://portal. saude.gov.br/portal/saudesaúde/gestor/default.cfm>. BRASIL, SNIS, 2010. Dados citados disponíveis em: <http://www.pmss.gov.br/ snis/index.php>. BRASIL, SUS/2010. Dados citados sobre o Sistema Único de Saúde disponíveis em: <http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php>. GRAZIANE PINTO, Elida. Dez anos da Emenda n. 29. In: O Estado de S. Paulo, edição de 6 de outubro de 2010, pág. A2. INSTITUTO TRATA BRASIL, 2010. Dados disponíveis em: <http://www.tratabrasil.org.br/novo_site/?id=6771>. JUNGBLUT, Cristiane. Falta de verba, o falso dilema na saúde. In: O Globo, edição de 06 de agosto de 2010, p. 13. MAIA, Samantha. Alta de gastos em saneamento ainda reflete pouco na saúde. In: Valor Econômico, edição de 26 de agosto de 2010, p. A4. OLIVEIRA JUNIOR, José Reinaldo Nogueira de. O colapso anunciado do sistema de saúde. In: O Estado de S. Paulo, edição de 23 de dezembro de 2009, p. A2. 49 “Quando agredida, a natureza não se defende: apenas se vinga.” Albert Einstein Paola Zucchi - Médica, doutora em medicina, professora doutora e vice-coordenadora do Centro Paulista de Economia da Saúde - CPES/Unifesp. Lutufyo Witson Mwamakamba - Médico neonatologista, pós-graduando no mestrado em economia da saúde, CPES/Unifesp. Em 2010, a Organização Mundial de Saúde, em seu boletim mundial, elogiou os avanços do SUS, (WHO, 2010); um longo percurso desde as práticas limitadas a recursos naturais empíricos, passando por diversas reformas e culminando com sua criação em 1988 (IYDA, 1994). O SUS baseia-se no atendimento integral, universal e igualitário, e conquistou importantes avanços em mais de 20 anos de existência, desde a atenção medica, cobertura e tecnologia, atendendo 190 milhões de brasileiros, 80% dos quais dele dependem exclusivamente (BRASIL, 2010). Para melhorar a saúde da população, conta com rede diversificada de serviços,como ilustrado na Tabela 1. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 AVANÇOS DE SUSTENTABILIDADE EM SAÚDE NO BRASIL 50 PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Tabela 1 - Evolução da rede diversificada do SUS - 1994 a 2008. Rede 1994 1998 2002 2006 2008 Hospitais (públicos) 6.347 (1.879) 6.150 (2.136) 6.750 (2.252) 6.780 (2.550) 6.489 (2.668) Equipes PSF (atendimentos/milhões) 300 (1) 3100 (10) 16.700 (43) 26.000 (78) 34.000 (94) R$ 1,533 bilhões (13,50%) R$ 2,1 bilhões (14%) Vendas medicamentos genéricos - R$ (% mercado) - - R$ 765 milhões (19,17%) SAMU* atendimentos/ milhões - - [48] 94 130 Credenciados [-] Rede própria (219) Credenciados (2955) Rede própria (504) Credenciados (6459) Farmácia Popular** (preços até 90% <s) Rede própria [27] *2003 - dados entre colchetes referem-se a 2003. **criado em 2004 - dados entre colchetes referem-se a 2004. Fonte: Ministério da Saúde – Datasus/IBGE/Anvisa-Nurem/MS – Farmácia Popular. A rede contabiliza programas compreendendo imunizações, atenção básica de saúde, prevenção, pesquisas, inovação tecnológica, etc, com um fluxo de recursos de diversos segmentos da cadeia produtiva do SUS alcançando um valor bruto de R$ 340 bilhões, ou 13% do PIB brasileiro em 2007, de R$ 2,558 trilhões (BRASIL, 2007a). Esse mercado muito dinâmico em todos os segmentos, nos faz pensar na sua sustentabilidade, composta por características econômicas, ambientais e sociais, com finalidade de manter uma vida saudável, ou seja, a sustentabilidade da saúde. O propósito deste capítulo é focar nos avanços do SUS sob a ótica da sustentabilidade dos serviços de saúde. Já que os conceitos de saúde e susten- 51 vista como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças (OMS, 2010). A sustentabilidade é definida como um pensamento sistêmico com um equilíbrio entre os fatores econômicos, sociais, culturais e ambientais da nossa sociedade. Esse ambiente dinâmico tem como o seu principal objetivo estimular o melhor nos indivíduos e no meio ambiente para o presente momento e um futuro desconhecido. Em outras palavras, “Suprir as necessidades de gerações presentes sem afetar a habilidade das gerações futuras de suprir as suas” (RELATÓRIO BRUNTLAND, 1987). Para entender o Brasil do ponto vista da sustentabilidade, é importante recapitular seus aspectos geodemográficos: um país continental, com 26 estados federados, divididos em 5.565 municípios, e um Distrito Federal (BRASIL, 2009), com área de 8.514.876,599 Km², equivalente a 47% do território sulamericano, quinta maior área territorial do planeta, 190 milhões de habitantes, cultural e etnicamente diversificado, o quinto maior contingente populacional do mundo (BRASIL, 2009; CIA, 2008). É importante observar que a expressão “desenvolvimento sustentável” é nova não somente no Brasil, mas globalmente; até recentemente, inexistiam métodos para medir, avaliar e acompanhar esse conceito de vida, tudo ficava na historia. E como D. N. Marinotis, o pensador grego, disse certa vez “Quando falamos de história, temos o costume de nos refugiar no passado. É nele que se pensa encontrar o seu começo e o seu fim. Na realidade, é o inverso: a história começa hoje e continua amanhã”. Esse pensamento relaciona-se com a sustentabilidade, pois no tempo há um arquivo de vários erros e conquistas da humanidade, sendo importante recapitulá-los para traçar um caminho ou direção. Esses fatores arquivado no tempo, na sustentabilidade são conhecido como indicadores. Indicadores de sustentabilidade funcionam como um termômetro para medir e avaliar certos fenômenos, são pedaços de informação, sinais procurando simplificar informações sobre fenômenos complexos, suas interações, visando avaliar e antecipar condições e tendências, para prover informações e advertências (Van bellen, 2004; Soskolne; Bertollini, 1998), assim antecipando processos de planejamento, tomadas de decisões, para prevenir acontecimentos catastróficos dentro do ambiente de sustentabilidade. No Brasil, em referência ao setor de saúde, há uma longa experiência PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 tabilidade estão intimamente relacionados, desde a definição, na qual a saúde é PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 52 de coleta de dados, sistematização e construção de indicadores, como visto no Departamento de Informática do SUS (Datasus), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), etc. Esses indicadores de saúde, em conjunto com outros indicadores, têm sido úteis para avaliar os avanços do Brasil em termos de sustentabilidade, como mostrado na Figura 1 e elaborado nas paginas seguintes (OPAS, 2002). Figura 1 - Panorama dos indicadores relacionados com sustentabilidade Fonte: United Nations Department of Economic and Social Affairs. Division for Sustainable Development: Indicators of Sustainable Development; Guidelines and Methodologies. 2001/2006. 1. Sustentabilidade em saúde: ambiental A sustentabilidade ambiental é definida como “a capacidade que o ambiente natural tem de manter as condições e a qualidade de vida para as pessoas e para outras espécies, tendo em conta a habitabilidade, a beleza do ambiente e a sua função como fonte de energias renováveis” (AUSTRALIA, 2010; SUTTON, 2010). Segundo indicadores de meio ambiente (manutenção do ecossistema, utilização da energia e manuseio do resíduo), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — Indicadores de Desenvolvimento Sustentável (IDS 2010; BRASIL, 2010), fica evidente que: 53 2009. • As áreas de agropecuária reduziram-se de 5,6% de 1996 a 2006, uma redução de 19,9 milhões de hectares • Redução do desmatamento na Amazônia de 29.059 km² para 7.008 km² de 1995 a 2009 (-76%). • Aumento de fontes renováveis de energia de 39 a 47% de 2001 a 2009. Os dados acima são intimamente ligados à agropecuária. Além das atividades diárias que resultam em poluição ambiental, associadas a grande variedade de doenças, especialmente respiratórias, comprometendo especialmente crianças e pessoas idosas, geralmente com outras patologias associados, como doenças cardiovasculares (RIBEIRO; ASSUNÇÃO, 2002). Esse fenômeno de poluição ambiental em associação com os fatores acima, tem sido muito evidente nos áreas de grandes queimadas, como constados pela Secretaria de Saúde do Acre, um aumento de 30% nos casos de internação por infecção respiratória em Rio Branco, originada pelas queimadas de florestas e pastagens na região (SS ACRE, 2010). E com avanços positivos nos indicadores ambientais como mostrado acima, espera-se a melhoria na morbidade associada a fatores de poluição ambiental. Outro fator importante referente ao meio ambiente é a infraestrutura, tema que abrange amplos aspectos, mas neste capítulo nos limitaremos a um aspecto relacionado diretamente com saúde pública, o saneamento básico. Uma atividade economicamente monopolística à mercê do poder do Estado, com alto custo e retorno no longo prazo, incorporando atividades desde o abastecimento de água potável, controle de água pluvial, coleta e tratamento de esgoto, além de limpeza urbana, o manejo dos resíduos sólidos e, finalmente, o controle de diversos agentes patogênicos, com finalidade de promover a saúde das comunidades. Uma relação simbiótica e íntima com o meio ambiente, diretamente relacionada à sustentabilidade, como mostrado na Tabela 2, evidenciando a percentagem dos serviços presentes em 4.400 municípios brasileiros em 1989, e 5.500 municípios de 2000 a 2008. Apesar de poucos avanços em certas áreas, está claro que, em geral, há uma melhoria significativa nos últimos anos. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 • Os incêndios florestais e queimadas diminuíram em 63% de 2007 a PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 54 Tabela 2 - Evolução do saneamento básico em municípios brasileiros 1989-2008 Indicador Serviço de abastecimento de água i (água totalmente tratada) ii (água parcialmente tratada) iii (água sem tratamento) Esgotamento sanitário por rede coletora Ampliação do sistema de esgotamento nos municípios Tratamento de esgoto em volume total Domicílios com acesso a rede geral de esgoto Serviço de drenagem urbana Resíduos sólidos - coleta de lixo (i céu aberto) (ii aterro controlado) (iii terro sanitário) * Coleta seletiva de lixo sólido 1989 2000 2008 97,9% I (69,8%) II (10 %) III (18,1%) 99,4% I (87,2%) II (6,2%) III (6,6%) 47,3% 52,2% 55,2% - 58% 79,9% 19,9%% 35,3% 68,8% - 33,5% 44% - 78,6% 94,5% 95,6% 97,2% 99,4% 99,7% I (88,2%) I (72,3%) I (50,8%) II (9,6%) II (22,3%) II (22,5%) III (1,1%)* III (17,3%) III (27,7%) 0,012% * 0,082% * 0,18% Fonte: IBGE-PNSB – Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 1989/2000/2008. Essa melhoria no saneamento básico, apesar de parecer insignificante em alguns índices, resultou em ganho significativo quando se fala em saúde, especialmente no tocante às doenças relacionadas ao saneamento ambiental, classificados em cinco categorias segundo o Código Internacional de Doenças (CID): • Transmitidas por contato com a água (esquistossomose e leptospirose). • Relacionadas com a higiene (tracoma, conjuntivites e micoses superficiais). • Transmissão feco-oral (diarreias, febres entéricas e hepatite A). • Geo-helmintos e tênias (helmintíases e teníases). 55 malaria, doença de Chagas e filariose linfática). No período de 1993 a 2008, segundo dados do MS, podem ser observados avanços significativos no combate a essas doenças, com queda de 730 internações por 100 mil habitantes para 308,8 em 2008, como ilustrado na Figura 2. Figura 2 - Internações hospitalares por doenças relacionadas à falta de saneamento (por 100 mil habitantes) Fonte: Ministério da Saúde. Datasus. Autorização de internação hospitalar/IBGE. 2. Sustentabilidade em saúde: econômica Sustentabilidade econômica é a capacidade de produção, distribuição e utilização equitativa das riquezas produzidas pelo homem. Relaciona-se com os demais conceitos que definem desenvolvimento sustentável como sustentabilidade ambiental, social e política. Tem a finalidade de criar oportunidades de melhorar todos os outros setores sociais e ambientais. Durante os últimos 25 anos tanto no Brasil e no mundo, ocorreram numerosas mudanças na compreensão das relações entre o crescimento eco- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 • Transmitidas por inseto vetor (dengue, febre amarela, leishmanioses, PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 56 nômico, o desenvolvimento social e a conservação dos recursos naturais. No Brasil, nos últimos anos, tem havido uma tendência de recuperação na distribuição da renda e, com isso, diminui a exposição histórica de injustiça social para a maior parte de sua população. Avaliando esse trajeto utilizando os indicadores (renda, emprego, dimensão da economia - PIB); notamos que o Brasil mantém o ritmo de crescimento econômico sustentável e evolui nos principais indicadores com ganho na saúde, como mostrado na Figura 3 e Tabela 3. Tabela 3 - Crescimento econômico brasileiro 1998 2000 2002 2004 2006 2008 PIB nominal (R$ trilhões) 0,979 1,179 1,475 1,941 2,322 2,920 PIB per capita nominal (R$) 5.934 6.886 8.378 10.691 12.436 15.240 % do PIB investido no SUS 3,0 3,15 3,48 3,70 3,90 3,60 Despesa da União com saúde per capita (R$) 241 266 307 358 450 520 Salário médio dos ocupados (R$) 845 Salário mínimo (R$) 130 Custo médio cesta básica (R$) (% salário mínimo) 870 151 200 92,41 91,52 118 (77,32%) (65,88%) (64,26%) 990 260 152 (58%) 350 415 152,64 196,40 (43%) (47%) Leitos SUS por 1.000 habitantes 3,05 2,88 2,65 2,40 2,20 2,10 Internações SUS (milhões) 11,70 11,91 11,69 11,47 11,31 10,69 SUS - Média de permanência hospitalar (dias) 6,4 6,1 6,2 6,0 5,8 5,6 SUS - Valor de procedimentos ambulatoriais (R$ bilhões) 1,6 1,58 1,75 1,88 2,40 2,85 Cobertura (%) de imunizações em todas as categorias 70 76 76 74 81 80,12 Fontes: Banco Central do Brasil/IBGE/Ministério da Saúde – Datasus/IPEA/Dieese. 57 Fonte: IBGE Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Contas Nacionais e Coordenação de População e Indicadores Socias - PNAD 1990-2008. 3. Sustentabilidade em saúde: social A sustentabilidade sócio-política centra-se no equilíbrio social, quer na sua vertente de desenvolvimento social, como sócio-econômica, é um veiculo de humanização da economia, e ao mesmo tempo, pretende desenvolver o tecido social, nos seus componentes humanos e culturais (IPRS, 2010; ACSELRAD, 2003). No mundo contemporâneo, a sociedade passa por intensas modificações sociais intimamente relacionadas aos recursos naturais, resultando em uma exploração acelerada e contínua dos recursos e, ao mesmo tempo, o descuido com o espaço geográfico. Nesse ambiente, no qual o ser humano é um ser natural e ao mesmo tempo social, é injusto separar seu relacionamento com o meio ambiente. De uma forma mais elaborada, sustentabilidade social é entender que a existência humana e a ação pensada sobre ela são fatores primordiais para garantia de nossas necessidades básicas: preservação da saúde, higiene, alimentação e preservação do espaço geográfico, habitat natural do homem — controle e manutenção da natureza como garantia de uma vida saudável. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Figura 3 - Impacto do crescimento econômico e a vida da população brasileira PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 58 Ao longo do tempo ocorreu explosão da população mundial, de 1,5 bilhão em 1900 para 6 bilhões em 2005 (COHEN, 2005), tendência seguida pelo Brasil, como mostra a Figura 4. Figura 4 - Evolução demográfica do Brasil entre 1550 e 2003 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Demografia_do_Brasil. Apesar do aumento populacional, o Brasil tem melhorado significativamente a saúde da sua população, como mostrado nos indicadores sociais (saúde da população, aquisição de bens e auto crescimento) • De 1998 a 2008 houve uma queda da mortalidade infantil de 38,2 para 19,8 mortes por mil nascimentos; ao mesmo tempo, a esperança de vida ao nascer aumentou de 68 anos em 1994 para 73 anos em 2009, e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), subiu de 0,72 em 1994 para 0,807 em 2008 (BRASIL, 2010). • A fecundidade está abaixo do nível de reposição de 2,89% em 1960 para 1,64% em 2000, ou seja, uma queda de 43% (BRASIL, 2010). • Quanto ao atendimento médico: de 1994 a 2010, os leitos da UTI aumentaram de 9.193 para 17.608, transplantes de 4093 para 20.250, tratamentos de pacientes com AIDS subiram de 35.900 para 197.000 (BRASIL, 2010). 59 Figura 5 - Evolução das moradias inadequadas no Brasil Fonte: IBGE ∕ PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios 1992 a 2008. Tabela 4 - Evolução educacional e consumo no Brasil Indicador (%) Taxa de analfabetismo entre 15 anos ou mais Domicilios com energia elétrica Residências com servicos da telefonia Pobreza Domicílios com geladera Domicílios com TV 1994 2002 2009 17,2 11,9 9,6 90 96 99 19 62 85 32 73 78 26 85 90 15,5 93% 96% Fonte: PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios - 1994 a 2009. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Com melhoria na saúde e emprego, visualizado com a queda do índice de Gini de 0.602 em 1994 para 0,549 em 2008, e taxa de pobreza caiu de 31% para 15% (FGV, 2010). No mesmo ritmo, ocorreram outros ganhos sociais, como mostrado na Figura 5 e Tabelas 4 e 5. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 60 Tabela 5 - Orçamento familiar brasileiro mensal Indicador Gasto médio mensal da família brasileira 2003 – 2004 2008 – 2009 R$ 1.778,03 R$ 2.626,31 85,3% das famílias com 68,4% das famílias com menos rendimentos menos rendimentos gastam mais do que gastam mais do que recebiam mensalmente. recebiam mensalmente. Gastos cotidianos (des93,3% (despesas de 92,1% (despesas de pesas correntes) consumo 82,4%) consumo 81,3%) - alimentação, habi- alimentação, habitatação e transporte ção e transporte 61,3%; Distribuição de gastos 61,5%; assistência à assistência à saúde das famílias saúde 5,35%; educação 5,9%; educação 2,5%; 3,37%; outros outros Consumo entre as classes sócias com mais diferença média da diferença média da e menos rendimendespesa per capita 10,1 despesa per capita 9,6 tos: (R$ 296,35 x R$ vezes vezes 2.844,55 – 2008/2009) Escolaridade e padrão de consumo: com medespesa média despesa média nos um ano estudo x (diferença 400%) (diferença 207%) mais 11 anos estudos Percepção subjetiva 64,5% têm alimentos 53% têm alimentos em sobre rendimentos e em quantidade suficienquantidade suficiente alimentação te Relação entre as despesas e o rendimento das famílias. Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - Pesquisa de Orçamento Famílias Brasileiros 2002/2003 e 2008/2009. 61 Na ultima década, a sustentabilidade tem sido uma tema utilizado em todos os aspectos da vida, iniciando com abordagem ecológica debatendo a exploração do planeta, seguindo-se aspectos da poluição visual e energias renováveis e, finalmente, o debate econômico, objetivando gastar menos para um futuro melhor. Mas o que é saúde sustentável? Neste capitulo, o tema é tratado no âmbito da saúde publica brasileira, representada pelo SUS, considerado um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Um sistema que, apesar de desafios e obstáculos, atende uma população de 190 milhões de habitantes, diversificada demográfica, social e economicamente; além das renovações tecnológicas diárias com custos elevados e exigências infinitas, tem adquirido inúmeras conquistas, mudado assim o destino de grande parte da população brasileira. Iniciado em 1988, caminhou paralelamente com avanços econômicas, sociais e ambientais para manter sua própria sustentabilidade e assim garantir o bem-estar da saúde da população. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 CONCLUSÃO PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 62 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUSTRALIAN GOVERNMENT. Commissioner for Environmental Sustainability. What is environmental sustainability. Disponível em: <www.ces.vic.gov.au>. Consulta em 20 de setembro de 2010. ACSELRAD, H.; LEROY, J. Novas premissas da sustentabilidade democrática. In: Série Cadernos de Debate Brasil Sustentável e Democrático, n. 1, Rio de Janeiro: FASE, 1999. __________ Sustentabilidade e desenvolvimento: modelos, processos e relações. In: Série Cadernos de Debate Brasil Sustentável e Democrático, n. 4, Rio de Janeiro: FASE, 2003. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estudos e Pesquisas Informações Geográficas. Indicadores de Desenvolvimento Sustentável Brasil 2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/recursosnaturais/ids/ids2010.pdf>. Consulta em 10 de novembro de 2010. __________ IBGE divulga Indicadores Demográficos e de Saúde. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_impressao. php?id_noticia=1445>. Consulta em 2 de novembro de 2010. __________ Perfil dos Municípios Brasileiros - 2009. Disponível em: <http:// www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/2009/munic2009. pdf>. Consulta em 10 de outubro de 2010. __________ Ministério da Saúde. Disponível em: <www.brasil.gov.br/sobre/ saude>. Consulta em 10 de outubro de 2010. __________ Ministério da Saúde. Datasus. Estatísticas vitais, Informações de Saúde. Disponível em: <www.datasus.gov.br>. Consulta em 3 de outubro de 2010. __________ Ministério da Saúde; Datasus. Sistema de Informações Hospitalares – SUS; internações hospitalares – valor de internações. 2007a; __________ Ministério da Saúde; Datasus. Sistema de Informações Ambulatoriais – SUS; procedimentos ambulatoriais. 2007b. CAMPOS E. F. et al. Desenvolver a saúde, Federação das UNIMEDS de Minas Gerais, 2008. 63 CA. Geography of Brazil. The World Factbook (2008). https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/br.html. Página visitada em 14 de outubro de 2010. CENTRO DE POLÍTICAS SOCIAIS FGV. Pobreza e desigualdade. Disponível em: <http://cps.fgv.br/renda-bem-estar/pobreza-desigualdade>. Consulta em 14 de novembro de 2010. COHEN, J. A maturidade da população. São Paulo, Scientific American Brasil, out. 2005, n. 41, p. 40-7. IPRS - Instituto Percepções de Responsabilidade Social. Disponível em: <http://www.percepcoes.org.br/artigos.asp?idartigo=261>. Consulta em 10 de novembro de 2010. IYDA, Massako. Cem anos de saúde pública: a cidadania negada. São Paulo, Editora da UNESP, 1994. LUZ, Madel Therezinha. Notas sobre as políticas de saúde no Brasil de “transição democrática” - anos 80. PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva, São Paulo, 1(1). 1991. OPAS - Organização Pan-Americana da Saúde, Rede Interagencial de Informações para a Saúde. Indicadores básicos para a saúde no Brasil - conceitos e aplicações. Brasília; 2002. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Disponível em: <http://www.who.int/ es/> Página visitada em 22 de setembro de 2010. RIBEIRO, Helena; ASSUNÇÃO, João Vicente de. Efeitos das queimadas na saúde humana. São Paulo. Estudos Avançados 16(44) jan./abr. 2002 SECRETARIA DE SAÚDE DO ACRE Internações infecção respiratória. Disponível em: <http://www.ac.gov.br>. Consulta em 29 de novembro de 2010. SILVA, Kleber Pinto. A cidade, uma região, o sistema de saúde: para uma história da saúde e da urbanização em Campinas - SP. Campinas: Área de Publicações CMU/UNICAMP, 1996. (Coleção Campiniana). SOSKOLNE, C. L.; BERTOLLINI, R. Global ecological integrity and sustainable development: cornerstones of public health. Rome: European Centre for Environment and Health, World Health Organization; 1998. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY OF THE UNITED STATES OF AMERI- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 64 SUTTON, Philip. A perspective on environmental sustainability? Victorian Commissioner for Environmental Sustainability. Disponível em: <http://www.ces.vic. gov.au/CA256F310024B628/0/FE9C3A0DE353A819CA2571E6001BFA30/$F ile/A+Perspective+on+Environmental+Sustainability.pdf>. Consulta em 20 de setembro de 2010. VAN BELLEN, Hans Michael. Desenvolvimento sustentável: uma descrição das principais ferramentas de avaliação. Campinas. Ambiente & Sociedade, VII (1): 67-88, jan./jun. 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/asoc/ v7n1/23537.pdf>. Consulta em: 20 de setembro de 2010. UNITED NATIONS. World Commission on Environment and Development. Our common future - “Brundtland Report”. Oxford University Press, 1987. WHO - World Health Organization. Advances in public health care in Brazil. www.who.int. Página visitada em 12 de novembro de 2010. 65 Nelson Mussolini - Advogado, vice-presidente executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos no Estado de São Paulo (Sindusfarma). Um dado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2009 ilustra os desafios do Brasil na área da saúde: o porcentual de residências ligadas à rede de esgoto ou de fossa séptica (59,1%) era menor que o de casas com aparelhos de DVD (72%). Segundo a PNAD, 23,9 milhões de residências brasileiras (40,9% do total) não tinham acesso a saneamento básico. E a realidade não mudou desde então. A nação que encanta a comunidade internacional com o vigor de sua economia, as riquezas naturais e o potencial de consumo, ostenta alguns indicadores de país subdesenvolvido. Sabe-se: o Brasil ainda é um país de contrastes. Nas duas últimas décadas, milhões de brasileiros melhoraram de vida e ascenderam na escala socioeconômica. Há mais crianças nas escolas; mais jovens nas universidades; mais profissionais formalmente empregados. A riqueza nacional aumentou e está melhor distribuída. Mas a saúde continua em primeiro lugar no ranking dos problemas que mais afligem e preocupam a população. O PNAD fornece indícios sobre suas possíveis causas e explicita uma questão fundamental, que este artigo se propõe a analisar: a falta de uma estratégia de desenvolvimento e o peso de decisões pouco acertadas do poder público. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 OS DESAFIOS DO BRASIL: O SETOR SAÚDE PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 66 No caso do saneamento básico, a falha é flagrante, com altos custos ambientais e sanitários. Estudo recente da Fundação Getúlio Vargas (FGV) realizado para o Instituto Trata Brasil 2, ONG que atua na área do saneamento, mostra o impacto do planejamento público deficiente: por ano, 217 mil trabalhadores precisam se afastar de suas atividades para tratar de problemas gastrointestinais. A pesquisa calcula que a universalização do acesso à rede de esgoto traria uma economia de R$ 745 milhões anuais em internações, apenas ao Sistema Único de Saúde (SUS). O estudo da FGV mostra a ponta do iceberg, pois as doenças provocadas pela falta de saneamento não atingem somente trabalhadores, nem suas consequências ficam restritas às internações. Outro aspecto importante diz respeito à qualidade do gasto público. Há os erros de avaliação de sucessivos governos, que prejudicaram e prejudicam o planejamento e a definição de investimentos e verbas de custeio, como se vê no saneamento básico. Mas há também o notório problema de gestão, que emperra a máquina pública e suga recursos sempre escassos em face das necessidades. Carga tributária Se fosse avaliado apenas por sua carga tributária, o Brasil poderia ser considerado um país de primeiro mundo. Sua massa de tributos – 36% do Produto Interno Bruto - PIB - equivale às do Reino Unido (35,9%), Alemanha (36,2%), Espanha (35,6%) e Suíça (31,3%), e está próxima às da França (44,2%), Itália (41,1%) e Áustria (44,1%). A qualidade do serviço público deveria ser equivalente à desses países. mas não é. Seja em saúde, educação, previdência ou segurança pública. É sabido que a taxação afeta principalmente as famílias mais pobres e é iníqua. E o campeão da iniquidade é o medicamento: na média, os impostos respondem por 33,9% do preço de um remédio, fato que confere ao Brasil o título mundial dos medicamentos mais taxados. No Reino Unido ou no Japão, por exemplo, a tributação é zero. A média mundial, sem o Brasil, é de 6,3%. 2 http://www.tratabrasil.org.br/novo_site/cms/files/trata_fgv.pdf 67 Nem existe racionalidade econômica. De um grupo de 14 países selecionados4, o Brasil é o único que gasta menos do que arrecada com impostos sobre medicamentos. De fato, para os cerca de R$ 10 bilhões em tributos recolhidos sobre a atividade da indústria farmacêutica em 2009, o governo federal reservou uma verba de R$ 5,9 bilhões para a assistência farmacêutica. Autoridades e técnicos da saúde argumentam que elevar impostos é o preço a pagar por um atendimento de bom nível e universal. Não é bem assim. Se fosse, num país com a carga tributária brasileira, o SUS deveria ostentar um padrão próximo ao do Reino Unido, onde o sistema, apesar de ter suas falhas, é grande, moderno, acolhe todo mundo e, o que é fundamental, não cobra nada. No entanto, todos sabem que o Brasil ainda está longe desse estágio. Aliás, o sistema público de saúde brasileiro não atende toda a população. Dentre os 190 milhões de habitantes do país, ao menos 45 milhões recorrem aos planos de saúde privados e são atendidos na rede particular, a qual, por definição, deveria ser suplementar. E não é. Por força dessa situação, 60% dos gastos com saúde no Brasil são bancados pelo setor privado (famílias e empresas). Em países desenvolvidos, a relação é inversa: o Estado paga 70% das contas da saúde. Além de afetar a qualidade do sistema, a histórica tendência no Brasil de desviar recursos para outras áreas faz com que o país gaste menos na saúde: entre 7,5% e 8% do PIB, ante a média mundial de 8,7%. O que acontece, afinal? Estudo que mediu o Índice de Qualidade do Gasto Público dos 27 Estados da Federação em cinco áreas — a saúde entre elas — ilustra a questão. O estudo5 realizado por técnicos da Secretaria de Planejamento e Gestão do Rio Grande do Sul comparou as despesas totais 3 Estudo sobre o verdadeiro custo da tributação brasileira, Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), 2008; Radiografia da tributação sobre medicamentos - carga tributária incidente no setor farmacêutico, IBPT, Estudos Febrafarma, 2006. 4 Grécia, Espanha, Alemanha, Japão, França, Reino Unido, Portugal, Holanda, Itália, Canadá, Argentina, Estados Unidos, México, Brasil. Fonte: OECD Health, Grupo de Conhecimento do Boston Consulting Group (BCG). 5 Citado em artigo da jornalista Claudia Safatle publicado no jornal Valor Econômico. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Cobrar imposto de um bem considerado essencial é no mínimo contraditório, ainda mais quando se compara sua taxação com a de outros produtos básicos3, como leite (12,6%); arroz e feijão (15,3%); ou farinha de trigo (14%). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 68 com o retorno obtido na forma de bem-estar social e concluiu: “De forma geral, na função saúde, a qualidade da despesa é melhor quando o insumo (gasto) é menor, devido ao fato de que o seu aumento reflete em poucas melhorias nos indicadores de resultados selecionados”. Portanto, como demonstram a experiência internacional e criteriosos estudos nacionais recentes, o Brasil arrecada muito e gasta mal. É preciso mudar o paradigma, enfrentar o inchaço da máquina pública, a má gestão, as práticas que transformam impostos em benefícios indevidos de alguns detentores do poder, para que o dinheiro cobrado da sociedade eleve de fato o nível dos serviços públicos no país. Sem novos impostos. Ponto fraco O destaque dado ao Brasil pelo fato de ser a principal economia da América do Sul e uma das primeiras do mundo, e de pertencer ao cada vez mais influente grupo dos BRIC, encobre uma fragilidade importante. No campo da pesquisa, desenvolvimento e inovação, o País está muito atrás de Rússia, Índia e China. Enquanto Índia e China investem pesadamente na valorização da ciência e da tecnologia, o Brasil parece se contentar em ser um grande produtor e exportador de commodities. O agronegócio e a atividade extrativa mineral têm e terão importância estratégica para o País, mas a economia do futuro será — já é — impulsionada pela pesquisa científica aplicada. É preciso, portanto, fortalecer as cadeias produtivas baseadas em tecnologias de ponta. Antes de tudo, o Brasil tem de superar algumas idiossincrasias e falsas questões, como a que opõe os papéis do Estado e da iniciativa privada e a que condena, sem uma análise detida e abrangente, o déficit comercial dos produtos de saúde. 69 A rápida mudança no perfil demográfico do Brasil terá implicações importantes na área da saúde. A população brasileira está envelhecendo num ritmo mais acelerado do que se deu na Europa, por exemplo, como revelam os dados preliminares do Censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Daqui a três décadas, o Brasil deixará de ser um país de maioria jovem. Se a prevenção de doenças já é um objetivo prioritário hoje, que dirá num futuro próximo. Para enfrentar as profundas transformações etárias, nas rotinas de vida, nos hábitos alimentares etc., e as limitações orçamentárias dos governos, a economia da saúde terá de ser repensada e remodelada em todo o mundo, notadamente os sistemas de assistência médica — públicos e privados. Tome-se o avanço das doenças crônicas e da epidemia de obesidade (que já afeta 1 bilhão de pessoas no mundo) para se ter ideia da dimensão desse desafio. Projeções de consultorias internacionais indicam que os gastos com saúde no Brasil poderão atingir US$ 200 bilhões até 2015. É neste ponto que a ação coordenada entre governos e empresas do complexo da saúde se impõe, no sentido de reforçar a prevenção e conceber parcerias que favoreçam o desenvolvimento de produtos de alto conteúdo tecnológico. Essa cooperação é fundamental para viabilizar pesquisas científicas de ponta em campos promissores como biotecnologia e nanotecnologia, entre outros, que consigam retardar o envelhecimento e inibir ou controlar doenças crônicas ou degenerativas, como diabetes, mal de Alzheimer e doenças cardíacas. Alguns pré-requisitos para desencadear esse processo já existem. O Brasil é reconhecido com um centro de excelência na área médica. Tanto assim que 180 mil pacientes estrangeiros estiveram no país para tratamentos de alta complexidade (em oncologia, neurologia, cirurgia cardíaca, DST-Aids etc.) entre 2007 e 2009. O crescimento do chamado turismo da saúde se deve aos mesmos fatores — profissionais altamente capacitados e hospitais de ponta — que PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Fator demográfico PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 70 ajudaram a alavancar as pesquisas clínicas de medicamentos no Brasil, transformando-o num centro de referência também nesse campo. Um sucesso que só se concretizou por causa dos vultosos investimentos no aprimoramento profissional e tecnológico contínuo que os principais hospitais do País fizeram nas duas últimas décadas. O mesmo aconteceu nas indústrias farmacêutica e de equipamentos médico-hospitalares. Fábricas de última geração e modernos processos produtivos e de gestão levaram os laboratórios farmacêuticos instalados no Brasil a oferecer medicamentos de qualidade comparável aos melhores do mundo. Felizmente, o Poder Público começa a despertar para a importância estratégica da inovação em saúde. Iniciativas como o Profarma do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes), as parcerias público-privadas do Ministério da Saúde e os encontros coordenados pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) são bons exemplos. Embora ainda limitados, indicam os caminhos que devem ser percorridos para estimular e consolidar o ciclo de pesquisa e desenvolvimento na indústria farmacêutica, bem como em toda a cadeia produtiva da saúde. No entanto, é preciso investir muito mais para inserir o Brasil na nova era, na 3ª Revolução Industrial, como a define o economista Carlos Lessa, professor emérito da UFRJ e ex-presidente do Bndes. Uma revolução baseada na sustentabilidade, numa economia de baixa emissão de carbono, que vai alterar substancialmente as atuais bases produtivas. Nela, o Brasil - celeiro do mundo, grande produtor de alimentos, petróleo e outras commodities — terá de fortalecer também sua indústria de ponta, se quiser enfrentar com sucesso o desafio de gerar empregos e renda de qualidade, conciliando-o com sua vocação de potência econômica emergente. Em outras palavras, se quiser encontrar a fórmula, que alie crescimento econômico e desenvolvimento humano. E a indústria farmacêutica, por seu perfil inovador e foco na promoção da qualidade de vida, reúne as credenciais e os pré-requisitos para estar na linha de frente desse projeto estratégico para o País. 71 Marcelo Ernesto Liebhardt - Engenheiro agrônomo (UBA), doutor em economia (University of London), gerente da área econômica da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa - Interfarma. A Constituição de 1988: universalidade, integralidade e equidade no acesso à saúde. A criação do Sistema Único de Saúde - SUS, em 1988, representou um dos avanços mais significativos no processo de construção da cidadania da população brasileira. Em clima de alívio após a redemocratização do País, impregnado do idealismo de construir uma nova sociedade mais justa, a legislação do bem-estar teve apoio multipartidário na Assembleia Nacional Constituinte. Nesse espírito, a Constituição Federal de 1988 reconheceu para toda a população a universalidade, integralidade e equidade no acesso à saúde. Foi um clima cívico, comparável talvez ao que impregnou a Grã-Bretanha após a Segunda Guerra Mundial para compensar o sacrifício dos “meninos de volta do fronte”. O arquiteto de grande parte da reforma da assistência social na Grã Bretanha foi Sir William Beveridge, que no relatório “Segurança Social e Serviços Afins”, definiu um plano para pôr termo ao que chamou dos “cinco gigantes”: pobreza, doença, ignorância, miséria e ociosidade (desemprego). Beveridge teve uma visão de reconstrução e de progresso social, indicando as áreas nas quais devem ser reunidos recursos para resolver de forma integrada as necessidades da população. As políticas sociais no Brasil não têm ainda conseguido completar essa integralidade virtuosa, não obstante os esforços realizados no ambiente eco- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 O FINANCIAMENTO DA SAÚDE NO BRASIL PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 72 nômico interno favorável dos últimos anos. Apesar desses avanços, existe grande apreensão pelas ameaças ao financiamento dos direitos sociais garantidos pela Constituição de 1988, particularmente sobre a Seguridade Social, aí compreendido o conjunto de ações dos poderes públicos e da sociedade para assegurar o direito à saúde, à previdência e à assistência social. No que toca à saúde, especificamente ao financiamento do Sistema Único de Saúde - SUS, as discussões em torno da reforma tributária, que ocuparam boa parte da agenda legislativa dos últimos anos, nada fizeram para apaziguar as dúvidas e temores da cidadania quanto ao futuro desse financiamento. As propostas destinadas a mudar um modelo tributário que padece de crônico processo de deterioração, contendo um conjunto de normas sem consistência lógica e destituídas de funcionalidade, procuraram atender apenas as questões inerentes às receitas tributárias. Temas como a simplicidade, a generalidade, a uniformidade e a equidade, requisitos essenciais de um bom sistema tributário, foram deslocados pelas disputas entre os interesses dos diversos entes federativos e de setores da economia. Nesse contexto, não é de surpreender a grande preocupação em torno do futuro do financiamento da saúde, ainda mais considerando que, no projeto de Reforma Tributária, várias fontes exclusivas que dão suporte às políticas da Seguridade Social passaram a constituir tributos federais sem destinação exclusiva (IVA Federal e IR). Além disso, o projeto mantém o instituto da Desvinculação de Receitas da União – DRU, que contribuiu significativamente para o sub-financiamento da saúde desde sua implementação. A saúde nunca contou com fontes próprias exclusivas, estáveis e ajustadas às suas necessidades. Em meados dos anos 70, mais de 68% da receita tributária disponível era da União, restando aos estados e municípios, 23,3% e 8,6%, respectivamente. A Constituição de 1988 reverteu a centralização imposta pelo governo militar, estabelecendo uma nova partilha tributária que favoreceu estados e municípios, principalmente estes últimos, em detrimento da União. Em 1993, ao fim da execução gradual do processo de descentralização, os percentuais eram de 57,8 % (União), 26,4% (estados) e 15,8% (municípios) (CONASS, 2007). Assim, enquanto a participação relativa da União caiu dez 73 disponível da ordem de 13,3% e 83,7 %, respectivamente. As “perdas” da União, entretanto, ficaram limitadas ao âmbito do Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos Industrializados, componentes do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), permanecendo intacta, sob inteiro controle federal, a receita, tão ou mais substancial, procedente das Contribuições Sociais criadas pela Constituição de 1988. Tabela 1 - Carga tributária bruta total, componentes e principais tributos 1995-2008 (%PIB) Ano 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Carga tributária bruta total 26,5 27,4 28,4 30,4 31,9 32,4 31,9 32,8 33,8 34,1 34,7 35,2 Impostos sobre produtos 11,6 11,4 12,6 13,7 14,3 13,9 13,5 14,2 14,3 14,2 14,1 15,0 Cofins 1,9 1,8 2,9 3,3 3,5 3,5 3,4 4,0 4,0 3,8 3,8 3,9 Demais 9,6 9,7 9,7 10,5 10,9 10,5 10,2 10,3 10,3 10,4 10,3 11,1 Outros impostos ligados à produção 1,2 1,3 1,1 1,0 1,2 1,2 1,3 1,3 1,3 1,3 1,4 1,5 Contribuição do salário educação 0,3 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,3 0,3 0,3 0,3 Contribuição para SESI, SESC, SENAI, e SENAC (Sistema S) 0,3 0,3 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,3 0,3 Impostos sobre renda, propriedade e capital 6,1 6,8 6,7 7,6 8,1 9,0 8,8 8,7 9,6 9,5 9,8 9,1 Impostos sobre renda (IR) 3,6 4,2 4,3 4,1 4,5 5,1 4,9 4,7 5,3 5,2 5,4 5,8 Contribuição provisória sobre movimentação financeira (CPMF) 0,7 0,8 0,7 1,2 1,3 1,4 1,4 1,4 1,4 1,3 1,4 0,0 Contribuição social sobre lucro de pessoa jurídica 0,8 0,7 0,6 0,7 0,7 0,8 0,9 1,0 1,2 1,1 1,3 1,4 Contribuições Previdenciárias 7,6 7,9 8,0 8,0 8,3 8,3 8,3 8,6 8,7 9,2 9,4 9,6 Contribuições aos institutos oficiais de previdência, FGTS e PIS/PASEP 7,3 7,6 7,6 7,1 7,3 7,2 7,3 7,5 7,7 7,9 7,8 8,1 Contribuições Previdenciárias do funcionalismo Público 0,4 0,4 0,4 0,9 1,0 1,1 1,0 1,1 1,0 1,3 1,6 1,5 Demais 1,2 1,4 1,4 1,7 1,8 2,0 2,0 2,1 2,1 2,2 2,2 1,2 Fonte: RIBEIRO, 2010. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 pontos percentuais, a de estados e municípios teve um acréscimo na receita PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 74 Comparadas a outros tributos, as contribuições sociais constituem uma fonte de receita privilegiada para a União. Os motivos: 1. Correspondem a mais da metade da receita tributária federal; 2. Não estão sujeitas ao princípio da anualidade (Constituição Federal Art. 150, III b) podendo ser recolhidas noventa dias depois de sua criação ou alteração (Constituição Federal Art.195, § 6º); 3. Por destinarem-se a uma causa social, são melhor aceitas pela sociedade do que aumentos da carga tributária sem destinação específica; 4. Por terem base de arrecadação mais abrangente, tendem a crescer mais do que os outros tributos6. Uma explicação para o maior crescimento relativo da carga tributária bruta na comparação com as Transferências de Assistência e Previdência Social e Subsídios (TAPS) está no aumento que as receitas das contribuições sociais (Cofins, CPMF, CSLL, etc.) tiveram em relação às despesas com assistência e previdência. Esse aumento de receita propiciou a implementação do mecanismo de desvinculação orçamentária, criado em 1994, logo após a implantação do Plano Real, inicialmente pelo Fundo Social de Emergência (FSE) e posteriormente com a denominada Desvinculação de Receitas da União (DRU). A DRU estabeleceu que 20% das receitas arrecadadas com aquelas contribuições são livres e, portanto, não devem ser obrigatoriamente alocadas nas áreas de previdência, saúde ou assistência social. As justificativas para a implantação da DRU foram: • A “excessiva” rigidez orçamentária derivada de receitas livres equivalentes apenas a 15% do orçamento, o que limitava a possibilidade do governo programar novas políticas públicas; • Evitar que algumas despesas fiquem com excesso de recursos vinculados, enquanto outras apresentem carência de recursos; • Permitir o financiamento de despesas incompressíveis sem endividamento adicional de União; e, principalmente; • Viabilizar a obtenção de superávits primários para atender as metas fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO. 6 A receita de impostos e taxas, integrante do orçamento fiscal, manteve-se no patamar de 7 a 8% do Produto Interno Bruto (PIB); já a receita de contribuições sociais e econômicas, em sua maior parte integrante do orçamento da seguridade social, passou de 8,9% do PIB, em 1994, para 15,4% em 2006. DIAS, F.A.C. Desvinculação de receitas da União, gastos sociais e ajuste fiscal. Textos Para Discussão 38, Senado Federal, Brasília, fevereiro / 2008, p.10. 75 tores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP, 2009), a DRU desviou, entre 2005 e 2008, mais de R$ 145 bilhões das receitas do orçamento da seguridade social para outras finalidades. Como o texto da Constituição de 1988 não assegurou uma vinculação específica de recursos para a saúde, o destino de suas finanças ficou ao sabor das oscilações da economia. Apenas no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, determinou-se no Artigo 55: “Até que seja aprovada a Lei de Diretrizes Orçamentárias, trinta por cento, no mínimo, do orçamento da Seguridade Social, excluído o seguro-desemprego, serão destinados ao Setor Saúde”. As Leis de Diretrizes Orçamentárias – LDOs, de 1990 até 1993, reproduziram o disposto no Artigo 55 do ADCT, mas as Leis Orçamentárias Anuais não cumpriram o disposto na LDO respectiva, culminando com a crise de financiamento da saúde de 1992, somente superada com um empréstimo junto ao Fundo de Amparo ao Trabalhador- FAT, em 1993 e 1994. A necessidade imperativa de recursos complementares para permitir que a saúde superasse a crise motivou a criação da Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira - CPMF. No começo, o artigo 18 da Lei nº 9.311, de outubro de 1996, estipulava que a totalidade da arrecadação seria destinada exclusivamente ao Fundo Nacional de Saúde, mas, a partir de 1999, com a Emenda Constitucional 21, a CPMF passou a destinar parte de seus recursos à previdência social e à erradicação da pobreza. Ainda, nesse ultimo caso, a DRU não se aplicava à parcela destinada ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza (0,08%), mas incidia sobre a parcela restante de 0,30% destinada às áreas de saúde e previdência. Assim, a destinação da CPMF foi sendo gradativamente desvirtuada do seu desígnio original. A retirada da CPMF, em 2008, provocou uma perda imediata de aproximadamente R$ 16 bilhões, que necessitou ser suprida por receitas livres do orçamento (Gráfico 1). A título ilustrativo, a execução do Ministério da Saúde em 2008 foi de R$ 54,1 bilhões, apenas metade do correspondente se aplicado o valor de 30% do Orçamento da Seguridade Social estabelecido no Artigo 55 do ADCT e da LDO de 1990. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Segundo estimativas apresentadas pela Associação Nacional dos Audi- 76 PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Gráfico 1 A DRU atualmente em vigor consta da EC nº 56, de 2007. Sua prorrogação até 2011 foi proposta por meio da PEC 89/07, juntamente com a extensão da vigência da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). Os líderes partidários, porém, concordaram em votar os dois itens em separado, de modo que a prorrogação da CPMF foi rejeitada, mas a da DRU acabou aprovada em primeiro turno. A mais recente batalha em torno dos recursos para a saúde, ainda inconclusa, ocorreu em fins de 2009 em torno da regulamentação da Emenda 29, promulgada pelo Congresso em 2000, obrigando estados e municípios a aplicar, respectivamente, 12 e 15 por cento da arrecadação de impostos em ações e serviços de saúde. De acordo com a Emenda 29, a União deveria investir o mesmo valor de 1999, acrescido de, no mínimo, 5 por cento, com correção pela variação nominal do PIB a partir dessa data. A regulamentação desses percentuais, no entanto, ainda depende da aprovação de um projeto de lei complementar, que começou a ser votado no Plenário da Câmara em 2008. Entretanto, a votação ficou emperrada por conta da polêmica em torno da criação da CSS, a Contribuição Social para a Saúde, para substituir a extinta CPMF. Considerando apenas as propostas já apre- 77 futuramente, as mesmas não representam uma solução concludente para o dilema do financiamento à saúde no Brasil. Na comparativa internacional o Brasil deixa ainda a desejar no atendimento à saúde da população. A análise das Estatísticas Mundiais em Saúde 2009, publicadas pela OMS e contendo os dados de 193 países para o ano de 2006, permite algumas observações bastante relevantes para contextualizar o compromisso de cada sociedade com a saúde de sua população. Na maioria dos indicadores de gasto, o Brasil (74ª posição no Produto Interno Bruto-PIB per capita) ocupa apenas posições intermediárias. Na participação do gasto total em saúde no PIB, o Brasil ocupa a 57ª posição, enquanto no quesito gasto público em saúde no PIB (3,6%), ocupa apenas a 89ª posição. O grande destaque, infelizmente negativo, ocorre por conta de o Brasil ocupar a 151ª posição na participação do gasto do governo com saúde nos gastos totais do governo (7,2%). Assim sendo, o gasto privado no gasto total em saúde é bastante elevado, e aí sim o país ocupa a 28ª posição. Gráfico 2 PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 sentadas na Câmara e no Senado, mesmo que alguma venha a ser aprovada PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 78 Os dados confirmam as críticas de agentes, tanto públicos quanto privados, que o gasto público com saúde é ainda insuficiente, penalizando especialmente os segmentos mais carentes da população, que devem enfrentar a doença com recursos próprios em face da marcante desigualdade na distribuição da renda e da regressividade da carga tributária, como veremos a seguir. No Brasil, o gasto total com saúde está próximo de 7,5% do PIB, mas a participação do gasto publico é de apenas 3,6% do PIB, onerando desproporcionalmente a população carente, vista a desigual concentração de renda e a regressividade da carga tributária apontadas acima. Nos países com predominância do sistema público universal de saúde, os gastos públicos ficam acima de 6,5% do PIB. Nesse patamar mínimo, para um PIB de R$ 3,143 trilhões em 2009, os gastos públicos em saúde deveriam ter alcançado R$ 204 bilhões, ou aproximadamente o dobro do gasto total efetivo dos três níveis de governo, remetendo a um gasto per capita de R$ 1.074, equivalentes a USD 596. Tabela 2 - Estimativa de gastos com saúde - Brasil, 2008 Público (48,0 %) 3,6 % do PIB Privado (52,0%) (Inclui $ público de renúncia fiscal) 3,9% do PIB Público + privado 7,5% DO PIB Instância % R$ Bilhões Federal Estadual Municipal Total público 47% (1,7% PIB) 26% (0,93% PIB) 27% (0,96% PIB) 100% 48,7 26,8 27,8 103,3 Planos e seguros Desembolso direto Medicamentos Total privado 51% 21% 56,9 24,1 28% 100% 31,4 112,4 Total Brasil 100% 215,7 Fonte: CARVALHO, G. Financiamento da saúde no Brasil, Abrasco, 2009. 79 do PIB, está abaixo da média mundial (9,7 % do PIB), mas o que mais chama a atenção é a baixa participação pública no gasto total. O gasto público no financiamento da saúde (48% do total) equivale a 3,6 por cento do PIB, o que não é compatível com um sistema de saúde que pretende ser universal e de atendimento integral. Nessas condições, o gasto privado é obrigado a complementar os 52 % restantes do gasto total, ou seja, 3,9% do PIB com recursos próprios. Dada a desigual distribuição da renda e a regressividade da carga tributária, a menor participação do governo penaliza fortemente as classes menos favorecidas. Paradoxalmente, e guardadas as devidas proporções de renda, as participações relativas do gasto público e privado são próximas às observadas nos Estados Unidos, país considerado o paradigma do mercado privado de saúde. A iniquidade combinada de uma péssima distribuição de renda com um sistema tributário regressivo dificultam o acesso à saúde dos mais necessitados. O Brasil tem feito alguns progressos, mas ainda mantém uma elevada concentração de renda quando comparado às outras economias da região e, particularmente, com economias mais desenvolvidas (Tabela 3). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Na comparação internacional, o gasto total do Brasil com saúde, de 7,5% PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 80 Tabela 3 - Indicadores sócio-econômicos: população e Índice de Gini 1999-2005 Países População(f) (em mil) PIB per capita(e) (USD PPP) GINI Brasil 186.405 8.140 58(d) Argentina 38.747 13.331 52,8(d)(g) Chile 16.295 12.505 57(b) Colômbia 45.600 7.319 58,6(d) México 107.029 10.158 49,5(c)(h) Venezuela 26.749 6.104 44,1(b) Média AL 46.884 9.883 51,7(i) Alemanha 82.689 28.075 28,3(b) Canadá 32.268 31.389 32,6(b) Holanda 16.299 31.143 30,9(a) Reino Unido 59.668 31.308 36(A) Estados Unidos 298.213 39.901 40,8(B) Média OECD 47.731 30.479 37,2(I) Fontes: World Health Statistics 2006; The World Health Report 2006; World Bank 2006 (World Development Indicators). Nota: (a) 1999; (b) 2000; © 2002; (d) 2003; (e) 2004; (f) 2005; (g) setor urbano; (h) gasto per capita; (i) média ponderada. Elaboração: IPEA/Dimac. No Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas de 2009, em uma lista de 182 países, o Brasil apresentou um índice de concentração de renda melhor apenas do que o de nove países, sendo quatro das Américas (Haiti, Bolívia, Honduras e Colômbia) e cinco da África (Botswana, Namíbia, Comoros, Angola e África do Sul). Apesar de ter ocorrido alguma redução recente da desigualdade, essa melhoria na distribuição iníqua da renda no Brasil adveio principalmente das políticas sociais de transferência de renda. Sem questionar o inegável mérito dessas transferências em amenizar o impacto imediato da pobreza, perpetuase com isso a “ilusão fiscal” das classes menos favorecidas que acreditam pagar pouco ou nenhum imposto, ilusão resultante da elevada e complexa carga tributária indireta que torna pouco transparente o verdadeiro ônus dos tributos nos produtos consumidos pela população7. Assim, por conta da carga 7 Na Inglaterra, bem como nos outros países desenvolvidos, o efeito líquido da tributação é neutro, como aponta GLENNERSTER (2006, p. 25): (...) “indirect taxes have had a growing part to play in counteracting 81 Tabela 4 - Brasil - Distribuição da carga tributária bruta segundo faixa salarial Renda mensal familiar - (SM) Carga tributária bruta 2004 Carga tributária bruta 2008 Dias destinados ao pagamento de tributos até 2 48,8 53,9 197 2a3 38,0 41,9 153 3a5 33,9 37,4 137 5a6 32,0 35,3 129 6a8 31,7 35,0 128 8 a 10 31,7 35,0 128 10 a 15 30,5 33,7 123 15 a 20 28,4 31,3 115 20 a 30 28,7 31,7 116 Mais de 30 SM 26,3 29,0 106 Carga tributária bruta 32,8 36,2 132 (CFP/Dimac) Fontes: Carga tributária por faixas de renda, 2004: ZOCKUN et al. (2007). Carga tributária bruta 2004 e 2008: CPF/Dimac/IPEA; Carga tributária por faixas de renda 2008, 2008 e dias destinados ao pagamento de tributos, elaboração própria. As Transferências de Assistência e Previdência Social e Subsídios (TAPS) alcançaram 15,4 % para uma Carga Tributária Bruta (CTB) de 34,7 % do PIB em 2007. De acordo com a Tabela 4, o Brasil apresenta uma Carga Tributária Bruta e TAPS muito próximas das registradas por Portugal e Polônia; a diferença surpreendente fica por conta da elevadíssima conta de juros líquithe equalizing effect direct taxation since they fall most heavily on the poor”. Cabe às políticas sociais – o welfare-state – o papel redistributivo. No caso brasileiro, como se verá, além dos ganhos distributivos das políticas sociais – melhor, dizendo, das transferências monetárias governamentais – serem bem mais modestos, esses são neutralizados pelo resultado regressivo da tributação. Resultado que, como dito, se deve principalmente à composição da tributação no que se refere aos impostos diretos e indiretos, e não à progressividade ou regressividade deles. SILVEIRA, F. G., Tributação previdência e assistência sociais: impactos distributivos, tese de doutorado, UNICAMP, Campinas SP: [s.n], 2008, p. 125. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 tributária indireta, a população com renda familiar de até dois salários mínimos é onerada com uma carga tributária bruta 24,9 pontos percentuais maior do que a das famílias com renda superior a 30 salários mínimos. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 82 dos pagos pelo Brasil. O pagamento dos juros corresponde a mais de 30% da Carga Tributária Líquida. Para uma dívida liquida do setor público próxima de 43% do Produto Interno Bruto, o Brasil pagou 6,2 % do PIB de juros. Esse percentual representa um valor 138% superior à média dos juros líquidos pagos na zona do Euro e 229% superior à média da OCDE para um mesmo patamar de dívida liquida8. Se por um lado as áreas econômicas dos governos costumam argumentar que uma Carga Tributária Líquida — Juros de 13,1% — não deixa muita margem de manobra para a alocação de recursos suplementares à saúde, visto o leque de outras políticas públicas que precisam ser implementadas, é também evidente o potencial de recursos adicionais que podem ser liberados melhorando, por exemplo, a administração e o custo da dívida pública. 8 Segundo Silveira, “cabe sublinhar que a dívida publica e seu financiamento é uma das principais causas da elevação da carga tributária, podendo-se afirmar que é mecanismo de transferências regressiva de renda, logo de reforço dos nossos padrões de desigualdade.” SILVEIRA, F. G., op. cit. p. 125. 83 CTL=CTB- Juros líqui- TABS dos 18,1% 21,1% 2,4% 18,7% 34,7% 15,4% 19,3% 6,2% 13,1% Países CTB TAPS Alemanha 39,2% Brasil CTL-juros Canadá 33,1% 10,9% 23,2% 0,7% 22,5% Coréia do Sul 26,8% 3,6% 23,2% -1,5% 24,7% Espanha 32,7% 13,4% 19,3% 1,2% 18,1% Estados Unidos 28,4% 12,6% 15,8% 2,1% 13,7% França 42,3% 18,9% 23,4% 2,5% 20,9% Grécia 31,6% 18,5% 13,1% 0,1% 13,0% Hungria 39,9% 16,9% 23,0% 5,0% 23,5% Irlanda 30,8% 10,3% 20,5% -4,6% 25,1% Itália 42,5% 18,6% 23,9% 4,5% 19,4% Japão 28,1% 12,1% 16,6% 0,7% 15,9% Noruega 42,0% 13,5% 28,5% -13,3% 41,8% 36,5% 10,5% 26,0% -0,9% 26,9% Polônia 34,1% 14,9% 19,3% 1,6% 17,7% Portugal 36,5% 16,8% 19,7% 2,9% 16,8% Nova Zelândia Reino Unido 36,5% 13,8% 22,7% 1,8% 20,9% Suécia 46,8% 16,5% 30,3% 2,6% 27,7% Fonte: IPEA - Carga tributária líquida e efetiva capacidade do gasto público no Brasil, Comunicado da Presidência n° 23, Brasília, Julho de 2009. Outras estatísticas mostram que mais de 80% do consumo de medicamentos no País é pago com recursos próprios dos consumidores. O gasto público com medicamentos no Brasil representa apenas 0,33% do Produto Interno Bruto, enquanto o valor médio do gasto público em países da OCDE é de 0,92 % do PIB. Por conta dessa baixa participação, mais de 30% dos gastos com assistência a saúde do grupo das famílias 40% mais pobres (POF 2003) é gasto com medicamentos. Se o governo não decide pela ampliação significativa de programas do tipo co-pagamento para suprir essa lacuna de acesso, poderia pelo menos desonerar de tributos incidentes sobre os medicamentos. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Tabela 5 - Carga Tributária Bruta (CBT) e Líquida (CLT), Transferências de Assistência e Previdência Social e Subsídios (TAPS) e pagamento líquido de juros no Brasil e em países selecionados em 2007 PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 84 Os tributos sobre o valor agregado dos medicamentos no Brasil chegam a 27,5 %, um verdadeiro recorde internacional. O governo federal tem se empenhado nos últimos anos em desonerar de PIS e Cofins uma parcela expressiva do mercado, mas resta ainda que os estados contribuam decisivamente na redução ou isenção do ICMS para os medicamentos. O disposto no inciso X, da Lei nº 10.742, de 6 de outubro de 2003, permite que a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos CMED assegure o efetivo repasse aos preços dos medicamentos de qualquer alteração da carga tributária. No caso de uma desoneração do ICMS para os medicamentos há, portanto, uma garantia de que essa redução da carga tributária será transferida ao consumidor. O Brasil precisa de um comprometimento ainda maior do Estado com o gasto público em saúde. Apesar da melhoria ocorrida nos últimos anos, os indicadores de saúde do nosso país são ainda ruins quando comparados, por exemplo, com os países da OCDE e mesmo com alguns países da América Latina como Argentina, Chile e Costa Rica. Com um nível de gasto per capita ainda muito baixo (em torno de U$S 630 anuais), existe, sem dúvida, bastante espaço para maiores investimentos na melhoria do sistema de saúde brasileiro. Para alcançar a média internacional de gasto com saúde (9,7%), seria necessário um investimento público adicional de 2,2 % do Produto Interno Bruto. Esse acréscimo também permitiria atingir a média internacional de 60% de gasto público e 40% de gasto privado. Alguns estudos indicam que esse maior investimento poderia ter retornos mais elevados do que os estimados para países desenvolvidos, considerando que, a partir de certo nível, os retornos marginais para o gasto per capita em saúde podem se tornar decrescentes. Assim, países com gastos menores e com piores indicadores de saúde podem esperar benefícios adicionais maiores para cada unidade monetária adicional gasta em saúde do que países que gastam muito e apresentam melhores indicadores (MARINHO et al., 2009). O Brasil ainda está longe de atingir uma estagio no qual se possa sequer argumentar a existência de um nível suficiente de gastos, a existência de uma adequada infraestrutura ou de um desempenho satisfatório do seu sis- 85 A natureza pró-cíclica das despesas primárias no Brasil, juntamente com sua tendência natural de continuado aumento como proporção do PIB, leva a que despesas primárias, idealizadas como temporárias, transformem-se posteriormente em permanentes. Na concessão de transferências adicionais para as áreas sociais, devem estar claramente definidos mecanismos de saída que permitam aos beneficiários integrarem-se o mais rapidamente possível ao mercado de trabalho. São precisamente maiores investimentos em saúde e educação que permitirão esse processo. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 tema de saúde. À insuficiência de recursos públicos agrega-se também uma ineficiência no gasto com saúde, reconhecida por analistas fora e dentro do Sistema Único de Saúde. Mas procurar de forma persistente e permanente o aumento da eficiência não pressupõe aceitar a argumentação que geralmente ocorre quando da disputa pelos recursos orçamentários, que a saúde deva sempre “fazer mais com os recursos já disponíveis.” Não pode ser desconsiderada a simultaneidade do problema: que seja necessário gastar mais, pelo menos inicialmente (por exemplo, investir na qualificação dos gestores nos três níveis, protocolizar procedimentos e rotinizar ações, aprimorar os sistemas de informações em saúde e a interoperabilidade dos mesmos, corrigir as distorções de preços relativos dentro do sistema, remunerar de forma justa os recursos humanos e tornar o SUS atrativo para a entrada de profissionais de outras áreas), para poder assim gastar de forma mais eficiente. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 86 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANFIP - Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil. Análise da Seguridade Social 2009. Brasília, ANFIP, 2009. CONASS - CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS DE SAÚDE. O financiamento da saúde. Brasília, 2007. Disponível em: <http://www.saude.mt.gov. br/adminpublicacao/arquivo/livro3_O_Financiamento_da_Saude.pdf>. Con- sulta em: 15 de setembro de 2010. DIAS, F.A.C. Desvinculação de receitas da União, gastos sociais e ajuste fiscal. Textos Para Discussão 38, Senado Federal, Brasília, fev. 2008. GLENNERSTER, H. British social policy: 1945 to the present (3rd edition). Blackwell, Oxford, UK 2006. MARINHO, A.; CARDOSO, S.; ALMEIDA, V. Brasil e OCDE: avaliação da eficiência em sistemas de saúde, IPEA, Rio de Janeiro, janeiro de 2009. RIBEIRO, M. B. Uma análise da carga tributária bruta e das transferências de assistência e previdência no Brasil, no período 1995-2009: Evolução, composição e suas relações com a regressividade e a distribuição de renda. IPEA texto para discussão n. 1.464, jan. 2010. SILVEIRA, F. G. Tributação previdência e assistência sociais: impactos distributivos, tese de doutorado, UNICAMP, Campinas SP: [s.n], 2008. 87 Marcos Inocencio - Administrador, mestre em administração pela PUC-SP. Bruna De Vivo - Administradora, especialista em economia e gestão da saúde pela PUC-SP. INTRODUÇÃO Em razão de pressões de custo, qualidade e acesso, os sistemas de saúde caracterizam-se atualmente por uma crise mundial: os consumidores exigem serviços de saúde em maior quantidade e de melhor qualidade, mas, em quase todos os países do mundo, a demanda por serviços de saúde cresce bem mais rapidamente do que a disposição e a capacidade de pagar por esses serviços. Entres os fatores que levaram os sistemas de saúde à situação em que se encontram, estão as pressões financeiras, a demanda por serviços da população que envelhece, as mudanças demográficas, o consumismo, as novas e caras tecnologias de tratamentos e a maior incidência de doenças crônicas e PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 A GESTÃO DA ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA NA REDE DE INFORMAÇÕES: UMA PROPOSTA PARA O SISTEMA DE SAÚDE PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 88 infecciosas. Atualmente, as doenças crônicas são responsáveis por 60% das 58 milhões de mortes no mundo a cada ano (ONU, 2005). Trata-se de uma fatia que chega a 75% dos recursos destinados à saúde (CDCP, 2003). Os Estados Unidos são um bom exemplo de um sistema de saúde fora de controle: somam gastos em saúde per capita mais do que qualquer outro membro da OCDE, 2,4 vezes maior que a média (OECD, 2006). Entretanto, tal gasto não tem produzido uma melhoria equivalente na qualidade do sistema de saúde. Globalmente, em 2008, os gastos médios com saúde foram de 8,7% do PIB. Somente nos Estados Unidos, o gasto foi em torno de 16% do PIB em 2008 (13,2% em 2000), o que equivale a US$7.538 per capita, contra US$4.570 em 2000 (OECD, 2010). Para ilustrar melhor o que isso significa, em 2008, apenas cinco outros países possuíam PIBs tão grandes ou maiores do que os gastos dos Estados Unidos com seus sistemas de saúde. Os resultados do sistema de saúde no Brasil acompanham os demais países quando comparados aos índices globais. Como o Brasil não tem um sistema de contas locais em saúde, não há dados seguros disponíveis sobre o gasto total em saúde dentro de critérios internacionalmente comparáveis. Não obstante, em 2008, o gasto total em saúde correspondia a 8,4% do PIB (7,2% em 2000), enquanto o gasto privado correspondia a 52,1% do gasto total. Esses valores montam um gasto per capita de US$ 606 contra US$ 506 em 2000 (THE WORLD BANK, 2011). O sistema privado de planos e seguros de saúde oferece cobertura a 25,9% da população enquanto ao setor público de saúde, de acesso universal, compete a cobertura exclusiva com serviços assistências dos demais 74,1% (PNAD, 2008). Nesse sentido, cabe comentar a divisão desigual dos recursos destinados à saúde no Brasil, posto que os gastos privados correspondem a 52,1% para atender a apenas 24,5% da população. Na verdade, os planos de saúde atuam no sistema brasileiro introduzindo um elemento de geração de desigualdade social no acesso e na utilização dos serviços de saúde. De forma consistente com os demais problemas de saúde no Brasil, há milhões de pessoas sem acesso aos medicamentos, componente essencial de inclusão social e de busca da equidade e fortalecimento do sistema de saúde. 89 lado da existência de uma rede de serviços de saúde. O Brasil tem consumo per capita de medicamentos de US$ 41,36/ano; ademais, 48% dos medicamentos vendidos são adquiridos por 15% da população, com renda acima de 10 salários mínimos. Os que ganham menos de quatro salários mínimos, 51% da população, consomem apenas 16% dos medicamentos, representando um gasto médio de US$ 19/habitante/ano (PNAD, 2008). Podemos afirmar que os sistemas de saúde têm se caracterizado pela superposição de problemas recorrentes e persistentes, os quais unidos aos desafios emergentes, levam a um cenário de problemas que continuam sem solução. Vive-se um ambiente no qual os agentes patrocinadores da saúde buscam o controle de seus desembolsos por meio da redução de serviços, em vez de buscar agregar valor aos serviços dispensados aos pacientes. Embora a maioria dos pagadores no ambiente de saúde ainda foque a redução de seus custos com restrições aos pacientes, os custos ainda se mantêm altos e crescentes, e tais acréscimos não podem ser explicados por melhorias na qualidade dos serviços de saúde (PORTER; TEISBERG, 2004). Se a evolução dos gastos não reflete ganhos de qualidade nos serviços dispensados, e as restrições aos pacientes estão cada vez maiores na busca de redução de custos, então o problema requer muito mais atenção do que a dispensada pelos gestores da saúde, que parecem não enxergar o ambiente como uma rede interrelacionada, gerando informações comuns e funcionando de maneira sistêmica. Muitos estudos têm usado a saúde como foco de suas análises, assim como a avaliação da organização em rede e suas informações geradas, porém ainda há poucos trabalhos que unem os dois temas para analisar a saúde em rede. O atual sistema de saúde trata o seu ambiente com uma abordagem reducionista, com gestões isoladas de cada agente desse sistema. Tal fato tem como consequência uma fragmentação exagerada das informações, que, se integradas, poderiam compor um valioso banco de dados, a fim de contribuir de forma bastante positiva na busca de soluções destinadas a esse conturbado ambiente. Construir vantagens com o fim da fragmentação das informações em PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Salienta-se, ainda, que o acesso aos medicamentos não pode estar desvincu- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 90 saúde, por meio se sua integração, poderia ser uma solução para esse ambiente. Desse modo, seria possível a obtenção de informações qualificadas, suficientes e competentes para contribuir com o conhecimento dos agentes inseridos nesse contexto. A união em rede desses agentes com o objetivo comum da saúde pública, com foco nas relações construídas entre eles e na importância do fluxo das informações, proporcionaria a todos uma integração estratégica, a qual, por meio da constituição de um banco de informações comuns, poderia gerar um conhecimento sistêmico sem precedentes e transformar-se no ponto de partida para as mudanças requeridas no sistema de saúde. Sem informações e objetivos comuns, torna-se difícil a construção de um ambiente sinérgico e sincronizado para prover as soluções necessárias ao fim da crise em que a saúde está inserida. Nesse sentido, a informação passa a ser insumo essencial ao sucesso do sistema de saúde. No cenário de integração dos agentes da saúde e de geração de informações comuns, a contribuição das empresas de gestão de assistência farmacêutica (PBMs) para o sistema de saúde pode vir a ter um papel bastante significativo. 1. A REDE DE INFORMAÇÕES E O CONTEXTO GERAL DA SAÚDE 1.1 A rede de Informações O modelo de empresa que opta por competir no mercado isoladamente, no lugar de constituir uma forma interrelacionada, está perdendo espaço, por possuir menores possibilidades de êxito. A complexidade na qual as empresas estão inseridas, somadas às incertezas cada vez maiores no mercado atual, traz a exigência de parcerias consolidadas estrategicamente constituídas. Assim, a formação de parcerias, por meio de redes, torna-se necessária para alcançar objetivos estratégicos de longo prazo, que as empresas não podem alcançar de forma isolada. 91 as empresas a obter vantagens competitivas em um mercado de concorrência cada vez mais acirrada, caracterizando-se como uma condição estratégia essencial ao sucesso. A cooperação permite o acesso às capacidades e aos recursos de outras empresas, com vistas a fortalecer as suas estratégias. Na verdade, as estruturas de rede devem ocorrer quando trabalhar isoladamente já não é suficiente o bastante para solucionar um problema ou questão política. Assim, uma estrutura de rede se forma quando as organizações percebem que são apenas uma pequena parte do quadro completo. Conforme Inojosa (1998), rede é parceria voluntária para a realização de um propósito comum. Implica, nesse sentido, a existência de entes autônomos que, movidos por uma ideia coletiva, livre e mantenedora de sua própria identidade, articulam-se para realizar objetivos comuns. Desse modo, salienta que “as redes se tecem através (sic) do compartilhamento de interpretações e sentidos e da realização de ações articuladas pelos parceiros”. As redes, como apontam Fleury e Ouverney (2007), mais do que um arranjo temporário para solucionar problemas organizacionais, podem constituir uma resposta estratégica na elevação da capacidade de eficiência e de inovação das empresas. Os membros de uma rede são beneficiados pela diversidade nela presente, propícia à inovação, a partir de propostas ou ideias individuais. Outro potencial estratégico das redes de cooperação interempresariais se revela no desenvolvimento de recursos intangíveis, em especial das capacitações organizacionais. Os fluxos intangíveis são de difícil qualificação, por se basearem em troca de informações e conhecimentos. Consequentemente, as organizações podem ser vistas como redes sociais formadas por indivíduos interconectados, interpretando, criando, compartilhando e agindo em torno de informações e conhecimento. Para Dowbor (2002), a informação racionalmente organizada ilumina, de maneira privilegiada, os eixos de ação, e não em gerar uma infinidade de informação sobre tudo, afogando os elementos significativos. Aliás, ao falar de conhecimento para enfrentar os problemas da sociedade, não cabe somente constituir um banco de dados rico em informações, mas sim um ambiente que permeia o conjunto das atividades descentralizadas. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Essas parcerias, constituindo uma união de competências, capacitam PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 92 É bastante comum o conceito de que as informações devem ser destinadas aos tomadores de decisões; porém, para o referido autor, é necessária “a compreensão de que a informação é essencial para todo o universo que participa do processo, devendo constituir um ambiente que permeia o conjunto de interações, pois o atraso neste plano tem uma consequência simples: sem informação não há participação”. É possível dizer que a sociedade ainda está na era da escuridão, cuja principal característica é a limitação do suprimento de informações a todos os participantes do mercado. Assim, Lessig (2002) afirma que “mesmo em um mercado de perfeita concorrência, o alto custo da informação restringe o escopo do mercado”. Uma revolução na tecnologia da informação, caracterizada pela aplicação dos conhecimentos e da informação para a geração de novos conhecimentos, em um ciclo de realimentação cumulativa entre a inovação e seu uso, passou a remodelar o ambiente em ritmo acelerado. Assim, quanto mais próxima a relação entre os locais de inovação, produção e utilização das novas tecnologias, mais rápida será a transformação das organizações, e maior o retorno positivo para favorecer futuras inovações. Não obstante a revolução em curso, os caminhos trilhados pelas organizações são ainda lentos e de interação descompassada, mas, no novo paradigma, com a transferência de uma tecnologia baseada em insumos de energia para outra, baseada em insumos de informação derivados de avanço da tecnologia, as organizações devem considerar que a informação transformou-se em matéria-prima. No novo paradigma tecnológico, organizado em torno de tecnologias da informação flexíveis e poderosas, a informação é o produto do processo produtivo, enquanto o produto da nova organização é o próprio processamento das informações. No contexto, surgem organizações informacionais nas quais a produtividade e a conectividade dos agentes dependem basicamente de sua capacidade de gerar, processar e aplicar de forma eficiente a informação baseada em conhecimento, evoluindo rumo à abertura do sistema, como uma rede de acessos múltiplos. Vive-se um momento no qual é clara a queda da produtividade, relata Castells (2007), e talvez uma proporção significativa dessa desaceleração re- 93 desse novo cenário. As redes configuram-se como componentes fundamentais das organizações, capazes de formar-se e expandir-se em todos os sentidos no ambiente econômico, pois contam com o poder da informação propiciado pelo novo paradigma tecnológico. Para Fleury e Ouverney (2007), algumas características da tecnologia informacional permitem a formação de redes de políticas e apontam para um modelo sociocibernético de governança, como a inteligência distribuída (derrubada dos monopólios de conhecimento e distribuição, com acesso à informação para todos os agentes), a estrutura horizontalizada (substituição das hierarquias pela conectividade) e a possibilidade de ação simultânea dos participantes. Nesse sentido, afirma Castells (2007), as informações oriundas de um momento e espaço específico são o fator crucial. A tecnologia da informação possibilita a recuperação descentralizada das informações e sua integração simultânea em um sistema flexível de elaboração de estratégias. Tal estrutura permite a união de todos os seus agentes, formando redes capazes de inovação e adaptação constantes. 1.2 O ambiente de saúde 1.2.1 As dimensões da saúde Analisar o sistema de saúde em números leva a conclusões preocupantes e a perspectivas muito além do que permitem os recursos disponíveis. O ponto chave da questão reside em compreender o modelo atual e as mudanças necessárias, antes do estabelecimento do caos anunciado. Percebe-se, no modelo em curso, a falta de convergência, interrelação e interdependência, essenciais para os agentes da saúde, e a ênfase nas relações isoladas, sem perspectiva sistêmica. O ambiente não é percebido em termos de relações e integração dinâmicas, como fenômeno multidimensional envolvendo aspectos econômicos, sociais e clínicos, interdependentes e mutuamente impactantes. A representação do ambiente da saúde, na figura a seguir, permite identificar a ausência de ações integradas com objetivos comuns. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 sulte da crescente inadequação da interpretação dos dados captados a partir PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 94 Figura 1 - Dimensões da saúde Fonte: Elaboração dos autores. 1.2.1.1 A dimensão econômica O aumento populacional afeta os recursos e o meio ambiente de várias maneiras significativas, inclusive intensificando a demanda por serviços de saúde; claramente, o crescimento econômico global está em colisão com tendências populacionais (HENDERSON, 1996). Os recursos disponíveis para a saúde são limitados relativamente às necessidades da população, que demanda muito mais serviços de saúde do que o sistema pode oferecer (FUCHS, 2006). Para o autor, um modelo que poderia trazer resultados positivos seria a busca de melhoria na condição de saúde da população, visando reduzir o uso dos recursos disponíveis. Nesse sentido, a crise atual do setor seria também uma crise financeira, e a introdução de novas tecnologias é um dos principais fatores contribuintes para a crise. 95 O conflito entre os agentes é tão acentuado na esfera econômica que, na opinião clínica, o uso abusivo de drogas é relacionado aos efeitos negativos na saúde, enquanto na opinião econômica, o uso abusivo ocorre quando o benefício gerado não condiz com o dispêndio realizado. Na verdade, os já destacados avanços populacionais e tecnológicos são muito maiores do que a capacidade de gestão e de organização social, traduzidas na incompetência de se transformar tais avanços em qualidade de vida. O ponto chave é que esse ambiente deveria tratar a economia como meio e não como fim, com os agentes respondendo às necessidades. Nesse sentido, Dowbor (2002) relata que “o capitalismo responde à capacidade de compra, não às necessidades”. No segmento de saúde, não basta o avanço, é essencial saber-se para onde ir, o crescimento não implica necessariamente em progresso social, clínico ou econômico. O PIB e o crescimento não medem o bem-estar, seus parâmetros de constituição não são adequados para tanto. Conforme Gadrey e Jany-Catrice (2006), “a contribuição dos serviços de saúde para o crescimento é mensurado pelo volume de consultas, de internações nos hospitais, de tratamentos, e não pela contribuição desses serviços para a melhoria da saúde e das condições de vida”. 1.2.1.2 A dimensão social Para Sem (2007), o ponto central situa-se no fato da utilização dos recursos de saúde ser voluntária; assim, a disponibilidade dos serviços não garante sua utilização. As pessoas têm o direito de usá-los, mas não a obrigação, ou ainda a consciência suficiente. A informação não é racionalmente organizada para iluminar as ações da população, e o esclarecimento não configura isoladamente o incentivo e a ação necessários. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Atualmente, as decisões impostas pelos agentes patrocinadores da saúde concentram-se em comparar o benefício marginal com o custo marginal, com grande tendência em fazer prevalecer a questão econômica, sob o argumento do recurso finito. Dessa forma, pode-se afirmar tratar-se do produto de uma sociedade de gestores buscando racionalizar todas as esferas da vida social. De acordo com Chanlat (2000), “o social subordina-se à eficácia”. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 96 No contexto, a informação necessária não traz ao ambiente uma consciência saudável para que as questões econômicas possam ser administradas e a população passe a ter participação ativa na rede de parcerias, mesmo porque ela não se estrutura nesse ambiente. O objetivo central do desenvolvimento no campo da saúde não tem sido a população, pois a economia é tratada como um fim; fatores sociais dos serviços elementares de saúde são importantes não apenas por si mesmos, mas pelo papel que podem desempenhar ao dar oportunidades às pessoas (SEM, 2007). “O atual modelo de atenção à saúde do Brasil tem suas origens no modelo biomédico flexneriano, idealizado e implantado nos Estados Unidos por meio da ação combinada do corporativismo médico local e do grande capital” (PERILLO, 2008). Os agentes do sistema de saúde consideram que o problema está na falta de acesso dos pacientes aos recursos de saúde, quando a questão está também nos custos indiretos e na falta de produtividade dessa população, que dedica tempo demasiado quando o assunto é acesso aos recursos de saúde, privando-a da produção. A informação é essencial para construir o referencial de saúde da população a ser assistida, gerando uma demanda participativa e uma inclusão dos desinformados, trazendo também mais responsabilidade às pessoas enquanto sujeitos no sistema de saúde. 1.2.1.3 A dimensão clínica Idealmente, o ambiente da saúde deveria resultar de um processo envolvendo todos os agentes do sistema: o paciente, os profissionais de saúde, a estrutura e os financiadores, trabalhando juntos, com confiança mútua, formando uma rede de parceria e cooperação. No entanto, pressões econômicas trazem ao ambiente de saúde um clima de conflito de interesses, tornando inoperantes as tentativas de formação de uma rede de parceria contributiva. Há um dilema entre médicos, pacientes e estruturas de saúde relativamente aos processos de cura e tratamento: diagnosticar o quanto esses processos são essenciais ao desenvolvimento do ambiente integrado. Na visão de Sem (2007), o conhecimento médico para distinguir os 97 é essencial na mudança do modelo atual, contribuindo para o bem-estar do paciente e melhor desempenho financeiro. A certeza do paciente quanto ao seu bem estar deveria assegurar-se por meio de sua própria consciência, obtida via um fluxo de informações objetivando ampliar seu papel, não só de paciente, mas também de sujeito responsável. Para o mesmo autor, as tentativas em diminuir a liberdade participativa dos agentes envolvidos no ambiente de saúde, como pretexto para defender valores econômicos, em nada contribuem para seu desenvolvimento sustentável e integrado. Habilitar um modelo de baixo para cima, com os fornecedores de serviços de saúde unidos aos pacientes, poderia ser a via para a criação de um sistema de saúde mais produtivo, partindo-se da premissa de custos mais acessíveis para entregar serviços de saúde mais baratos a todos os envolvidos (HERZLINGER, 2007). 2. A GESTÃO DA ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA - PBM Estudo da PriceWaterhouseCoopers (2007), mostra que 213 milhões de norte-americanos, ou 71% da população, estão sob gestão das PBMs, correspondendo a 82% do gastos privados com medicamentos. Para se conseguir o controle e o gerenciamento da utilização de medicamentos, uma PBM busca a gestão da parceria e da demanda por produtos e serviços de saúde. Segundo Navarro (2009), os principais componentes para que uma PBM exerça as suas atividades incluem: a) Definições das linhas gerais do programa de benefícios; b) Definição dos fornecedores de medicamentos; c) Definição dos prescritores autorizados; d) Credenciamento de uma rede de farmácias conectada eletronicamente; e) Um formulário (lista) de medicamentos; f)Um programa de substituição de medicamentos de referência por genéricos; PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 casos nos quais é necessário intervir daqueles que exigem somente conforto, PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 98 g) Negociação com os fornecedores de medicamentos; h) Um copagamento dos pacientes por prescrição; i) Revisão da utilização de medicamentos; j) Programas de adesão ao tratamento; k) Programas especiais para gestão de pacientes crônicos. No ambiente da saúde, é essencial que os agentes contem com informações precisas em tempo oportuno. As PBMs atuam com sistemas interativos online, em tempo real, mantendo detalhados eletronicamente todos os registros dos participantes envolvidos, podendo assim disponibilizar informações relevantes à gestão da saúde por meio de informações retrospectivas. Hoje, por meio das PBMs, é possível selecionar métodos farmacêuticos baseados em códigos de diagnósticos, histórico do paciente ou ainda em outras especificações clínicas. Os sistemas de prescrições podem avaliar cada paciente em face critérios clínicos específicos, em vez de utilizar guias clínicos voltados a toda uma população. Mediante sistemas de tecnologia, as PBMs estão habilitadas a exercer importantes funções, incluindo a criação de um histórico de dados. Para avaliar a utilização dos medicamentos e determinar se a terapia farmacológica é apropriada, pode-se empregar o método denominado Revisão da Utilização de Medicamentos (DUR – Drug Utilization Review), um estudo da frequência do uso e dos custos dos medicamentos, no qual padrões de prescrições, dispensações e utilizações podem ser determinados. Em princípio, programas de DUR devem ter autonomia para revisar o uso de medicamentos por meio de informações disponíveis, e comparar o resultado a padrões apropriados. A avaliação do uso dos medicamentos pode ser feita utilizando-se estudos de retrospecção, concomitantes ou de prospecção. 3. A ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA NO BRASIL Para constatar a eficácia da assistência farmacêutica e entender a proposta de sua contribuição ao sistema de saúde, foram analisados três casos 99 benefício para seus colaboradores e dependentes. A análise focalizou a capacidade de geração de informações oriunda da assistência farmacêutica, e a utilidade dessas informações na integração dos agentes do sistema de saúde, visando constituir uma rede eficaz e integrada para o sistema de saúde atual, com ganhos em todas as dimensões desse ambiente. Os casos analisados neste estudo foram baseados nas informações fornecidas por uma empresa de assistência farmacêutica que atua no Brasil e classificada como uma PBM. Os dados providos são primários e contemplam os movimentos ou transações de três de seus clientes, não identificados neste estudo, para o período de onze meses compreendido entre 1/1/2009 a 30/11/2009. As análises desenvolvidas compreenderam entender os intervalos das faixas etárias da carteira e seus consumos, compreender os níveis de adesão dos beneficiários à assistência farmacêutica, estudar a natureza dos medicamentos consumidos, analisar as informações gerais de cada benefício e identificar o consumo de medicamentos no período segregado por classe terapêutica, verificando a utilização de medicamentos de uso continuado, ou seja, medicamentos para uso em doenças crônicas. Em relação ao consumo de medicamentos de uso continuado, analisada por meio da utilização pregressa de medicamentos dos beneficiários, observamos a prevalência de sete condições patológicas: hipertensão arterial, diabetes mellitus, DPOC (doença pulmonar obstrutiva crônica), dislipidemia, depressão, epilepsia e insuficiência coronariana. Foram incluídos na análise os pacientes crônicos que aderem à assistência farmacêutica, mas não aderem ao tratamento, arrolados como escape presumido (escape). O escape, para fins do estudo, foi definido como “pacientes que deixaram de adquirir medicamentos de uso continuado por pelo menos um mês”. As empresas estudadas consideram os gastos remanescentes aos subsídios como coparticipação consignada do colaborador, com desconto em folha de pagamento, e não utilizam qualquer forma de controle clínico ou de quantidades máximas por período; o único controle aplicado aos benefícios é o limite financeiro vinculado a um percentual dos rendimentos líquidos dos colaboradores beneficiados. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 reais brasileiros de empresas que utilizam a assistência farmacêutica como PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 100 3.1 Casos 3.1.1 Caso 1 Empresa multinacional atuante no setor de bens de consumo oferece assistência farmacêutica aos seus colaboradores e dependentes (30.869 beneficiários espalhados por todo o território brasileiro), com subsídio de 50% nos gastos com medicamentos. TABELA 1 - Caso 1 - Usuários x beneficiários por faixa etária Faixa Etária Usuários Beneficiários Usuários x beneficiários (%) 1 2.090 8.639 24,19 2 2.570 8.819 29,14 3 2.936 8.364 35,10 4 1.287 3.799 33,88 5 320 1.077 29,71 6 22 171 12,87 Total 9.225 30.869 29,88 Fonte: Elaboração dos autores. TABELA 2- Caso 1 - Utilização de medicamentos de uso continuado Beneficiários elegíveis para Patologia monitoramento clínico (%) HIPERTENSÃO 2.339 34,71 DIABETES MELLITUS 522 7,75 DPOC 2.352 34,90 DISLIPIDEMIA 866 12,85 DEPRESSÃO 660 9,79 EPILEPSIA - 0,00 - 0,00 6.739 100,00 INSUFICIÊNCIA CORONARIANA Total Fonte: Elaboração dos autores. 101 Patologia Escape presumido (%) DEPRESSÃO 65,53 DIABETES MELLITUS 65,82 DISLIPIDEMIA 62,22 DPOC 56,75 EPILEPSIA - HIPERTENSÃO 42,08 INSUFICIÊNCIA CORONARIANA - Fonte: Elaboração dos autores. A predominância de pacientes crônicos, ou o consumo de medicamentos por pacientes portadores de doenças crônicas evidencia-se quando examinamos dados do consumo de medicamentos de uso continuado. Constatou-se que 73%dos usuários ativos são portadores de doenças crônicas, ou seja, daqueles 9.225 usuários que consumiram medicamentos, 6.739 adquiriram medicamentos de uso continuado. Na carteira total, há adesão de 21,83% dos usuários à assistência farmacêutica para medicamentos de uso continuado (6.739 usuários do total de 30.869), de um total de usuários ativos de 29,88% (9.225 usuários do total de 30.869). Essa constatação sugere que os portadores de doenças crônicas sejam os grandes consumidores dos recursos da saúde. A análise ainda nos mostra que o escape presumido é relevante: nos casos de depressão, diabetes mellitus e dislipidemia, os abandonos passam de 60%. 3.1.2 Caso 2 Empresa multinacional atuando no setor de energia, oferece a assistência farmacêutica aos seus colaboradores e dependentes (totalizando 9.804 beneficiários), com subsídios variando entre 50% a 90% dos gastos com medicamentos. Como no Caso 1, predomina o consumo de medicamentos por pacientes portadores de doenças crônicas. Assim, observamos que 76,25% dos usuários ativos são portadores de doenças crônicas, e que 34,76% das adesões PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 TABELA 3 - Caso 1 – Percentual de escape presumido PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 102 à assistência farmacêutica, de um total de 45,58%, são de pacientes crônicos. Novamente, os dados sugerem que os portadores de doenças crônicas sejam os maiores consumidores dos recursos da saúde. Vemos ainda que o escape presumido, isto é, o número de pacientes que descontinuam os seus tratamentos, é bastante elevado: nos casos de DPOC, passa de 60%, correspondendo à quase metade dos beneficiários ativos nos casos de depressão. Tabela 4 - Caso 2 - Usuários x beneficiários por faixa etária Usuários x Faixa etária Usuários Beneficiários 1 904 2.327 38,85 2 693 1.883 36,80 3 707 1.333 53,04 4 887 1.718 51,63 5 665 1.208 55,05 6 613 1.335 45,92 Total 4.469 9.804 45,58 beneficiários (%) Fonte: Elaboração dos autores. Tabela 5 - Caso 2 - Utilização de medicamentos de uso continuado Beneficiários elegíveis para Patologia monitoramento clínico (%) HIPERTENSÃO 1.091 32,01 DIABETES MELLITUS 322 9,45 DPOC 709 20,80 DISLIPIDEMIA 773 22,68 DEPRESSÃO 513 15,05 EPLEPSIA - 0,00 INSUFICIÊNCIA CORONARIANA - 0,00 Total 3.408 100,00 Fonte: Elaboração dos autores. 103 Patologia Escape presumido (%) DEPRESSÃO 48,44% DIABETES MELLITUS 34,36% DISLIPIDEMIA 27,44% DPOC 62,28% EPLEPSIA - HIPERTENSÃO 22,61% INSUFICIÊNCIA CORONARIANA - Fonte: Elaboração dos autores. 3.1.3 Caso 3 Empresa multinacional atuando no setor de usinagem de metais, provendo assistência farmacêutica aos seus colaboradores e dependentes (17.925 beneficiários), com subsídios de 20% para medicamentos de uso agudo e de 40% para medicamentos de uso crônico, sobre o total dos gastos dos medicamentos relacionados. Neste caso, embora haja grande consumo de medicamentos de uso crônico, o consumo de medicamentos para tratamento de doenças agudas é maior. No entanto, analisando os dados de consumo de medicamentos de uso continuado, observamos que 33,91% dos usuários ativos são consumidores de medicamentos para doenças crônicas, e que 16,61% da adesão à assistência farmacêutica, de uma adesão total de 48,98%, é de pacientes crônicos. Da forma consistente com os Casos 1 e 2, os dados apontam para um número relevante de pacientes crônicos não aderentes ao tratamento: nos casos de depressão e dislipidemia, os abandonos passam de 60%, chegando a 73% nos casos de DPOC. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Tabela 6 - Caso 2 – Percentual de escape presumido PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 104 Tabela 7 - Caso 3 – Usuários x beneficiários por faixa etária Usuários x Faixa Etária Usuários Beneficiários 1 2.617 5.771 45,35 2 2.109 4.740 44,49 3 2.202 3.965 55,54 4 1.489 2.673 55,71 5 331 717 46,16 6 32 59 54,24 Total 8.780 17.925 48,98 beneficiários (%) Fonte: Elaboração dos autores. Tabela 8 - Caso 3 - Utilização de medicamentos de uso continuado Beneficiários elegíveis para Patologia monitoramento clínico (%) HIPERTENSÃO 677 22,73 DIABETES MELLITUS 201 6,75 DPOC 1206 40,50 DISLIPIDEMIA 453 15,21 DEPRESSÃO 441 14,81 EPLEPSIA - 0,00 INSUFICIÊNCIA CORONARIANA - 0,00 Total 2.978 100,00 Fonte: Elaboração dos autores. Tabela 9 - Caso 3 – Percentual de escape presumido Patologia Escape presumido (%) DEPRESSÃO 66,07 DIABETES MELLITUS 57,32 DISLIPIDEMIA 65,04 DPOC 73,13 EPLEPSIA - HIPERTENSÃO 56,02 INSUFICIÊNCIA CORONARIANA - Fonte: Elaboração dos autores. 105 Os casos estudados evidenciam que a assistência farmacêutica traz ao ambiente, informações valiosas a todos os agentes do sistema de saúde. Da mesma forma, os benefícios oferecidos pelas empresas analisadas são importantes ferramentas para incentivar o acesso aos medicamentos prescritos. Da população dessas empresas, a adesão à assistência farmacêutica chega a 29,88% no Caso 1, 45,58% no Caso 2 e 48,98% no Caso 3. Considerando-se os números do consumo de medicamentos da população brasileira, a adesão é bastante relevante, fruto da informação adequada e de incentivos — subsídios financeiros e de crédito — possibilitando ampliação do poder de consumo dos pacientes. Constata-se que os gastos mensais dos programas superam os níveis de consumo per capita do brasileiro, de US$51 anuais. Os consumos mensais foram de R$ 125,85 no Caso 1, de R$ 256,01 no Caso 2 e de R$ 102,38 no Caso 3. Nos programas de assistência farmacêutica, o gasto médio mensal dos beneficiários supera o gasto médio anual da população em geral. Primeiramente, a informação de que há consumo de medicamentos acima dos padrões do mercado nos permite presumir que há mais pessoas tratadas, pois os indicadores mostram mais pessoas com adesão aos tratamentos medicamentos relativamente aos padrões normais do mercado brasileiro. E pessoas sob cuidados têm melhora de seu bem estar, há eficácia no tratamento médico e gastos futuros com tratamentos emergências são contidos. Mas há mais benefícios: as informações qualificadas geradas pelas PBMs trazem à tona o mapeamento das carteiras cobertas, ou a estratificação da população, possibilitando identificar padrões de consumo, conforme vemos nas tabelas 1, 3 e 5. Tais informações são muito relevantes, se comparadas àquelas que descrevem o sistema de saúde, pois um dos principais pontos de preocupação entre todos os agentes envolvidos é o envelhecimento da população e as consequentes doenças crônicas, uma das principais causas do aumento dos custos na saúde. Com a introdução de programas de assistência farmacêutica, o ambien- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 3.2 Resultados e discussões PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 106 te de saúde passa a conhecer quem são os portadores de doenças crônicas, antes que sejam tratados como sinistros pelos agentes econômicos da saúde. Ainda por meio de dados da assistência farmacêutica, é possível verificar a existência de um escape, ou seja, uma não adesão dos pacientes crônicos ao tratamento, que o iniciam mas não o mantêm, representando 58,48% no Caso 1, 39,03% no Caso 2 e 63,14% no Caso 3, informação essa não utilizada pelos mesmos agentes que apontam as doenças crônicas como um dos responsáveis pela crise da saúde. E por que essa informação não é utilizada? Talvez porque o ambiente de saúde não seja gerido de forma sistêmica, não constituindo uma rede organizada. Há informações para agregar à rede e beneficiar os agentes envolvidos, mas todos os agentes do sistema de saúde seguem atuando de forma isolada. Nesse sentido, afirma-se que as informações geradas pelas PBMs são cruciais na construção de uma visão sistêmica na saúde. CONSIDERAÇÕES FINAIS Discutir os pontos mais relevantes para as mudanças necessárias no ambiente de saúde significa apontar para objetivos articulados, não para alternativas; na verdade, o avanço de algumas áreas em detrimento de outras constitui um recuo. O desafio está em gerar uma dinâmica permitindo colocar em rede o que já existe, e paulatinamente construir a navegabilidade nesse universo, melhorando os sistemas de elaboração de informação de cada agente do processo. Toffler e Toffler (2007) afirmam que “os custos dos sistemas de saúde estão fugindo ao controle e subindo vertiginosamente, as populações estão envelhecendo depressa demais e os políticos começam a entrar em pânico”, mas explicações fundamentadas e importantes para os novos caminhos continuam fora da pauta de discussões dos agentes da saúde. O caminho trilhado por muitos sistemas de saúde ao redor do mundo pode se tornar insustentável no futuro próximo; enquanto os custos sobem, a qualidade cai, já se encontrando baixa e desigual, além do que o acesso ou as opções de escolha são cada vez mais inadequados. 107 mais exigências, pelas mudanças demográficas, pela maior incidência de doenças crônicas, pelas tecnologias e tratamentos mais avançados e mais caros, já causam transformações profundas nos sistemas de saúde. Mudanças precisam ser feitas e as escolhas restantes aos agentes dos sistemas de saúde são apenas quando e como. Seu desalinhamento e incapacidade de acessar e compartilhar informações críticas e relevantes são alguns dos fatores que inibem e retardam a disposição e a vontade política para mudar os sistemas de saúde. Se não forem revertidos, o resultado será um ambiente de deterioração para todos os envolvidos. Muitas vezes é impossível produzir mudanças por um acréscimo ao que já existe, sendo necessário algo novo, não apenas uma evolução, pois os problemas não podem mais ser resolvidos conforme as regras de seu paradigma, resistindo às soluções inovadoras e resultando em uma crise do setor. Como aponta Chalmers (1983), conviver em um ambiente no qual anomalias começam a surgir e seus pilares passam a ser falsificados, seria afirmar que a sociedade insere-se em um ambiente de irracionalidade, com foco concentrado na experiência. A transformação dos sistemas de saúde e da responsabilidade de seus agentes será fortemente influenciada pela interconectividade e pela tecnologia da informação dos sistemas existentes. Atualmente existem redes de informação integradas na maioria dos sistemas de saúde, ainda que de forma rudimentar. O desafio a ser enfrentado pelos agentes dos sistemas de saúde é bastante complexo, pois as transformações demandarão uma visão comum e um plano abrangente, criados por meio de um processo aberto e inclusivo. O poder dos fluxos de informações, decorrência das novas tecnologias, passa a exercer um papel mais importante do que os próprios fluxos de poder. A situação atual aponta a necessidade da união das competências dos agentes envolvidos para preencher a lacuna estrutural do sistema de saúde, oriunda da falta de convergência e interconectividade entres seus partícipes, focados nas relações isoladas, não nas perspectivas sistêmicas, faltando-lhes a visão do ambiente em termos de relações e integrações dinâmicas, organizado por meio de uma rede de informações. O modelo de assistência farmacêutica gerido pelas PBMs pode ser um PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Os problemas apontados, surgidos em um novo ambiente moldado por PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 108 ponto de mutação do atual sistema de saúde. A gestão da dispensação de medicamentos, gerando informações qualificadas, pode tornar-se um ponto chave nessa mudança, necessária para a organização em rede do ambiente de saúde. A aplicação eficiente das informações de interesse comum aporta novos conhecimentos ao sistema e, consequentemente, surge como nova oportunidade na resolução de problemas persistentes na saúde. 109 BRASIL. Acesso aos medicamentos, compras governamentais e inclusão social. Ministério da Saúde, Brasília, 2003. CASTELLS, M. A Sociedade em rede (10 ed.). São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, 2007. CDCP. The power of prevention: reducing the health and economic burden of chronic disease. Atlanta: Department of Health and Human Services, Centers for Disease Control and Prevention, 2003. CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal? Tradução de R. Fiker. São Paulo: Editora Brasiliense S.A., 1983. CHANLAT, J. F. Ciências sociais e management: reconciliando o econômico e o social. São Paulo: Atlas, 2000. DOWBOR, L. A Reprodução social: descentralização e participação: as novas tendências (v. III). Petrópolis: Vozes, 2002. FLEURY, S., OUVERNEY, A. M. Gestão de redes: a estratégia de regionalização da política de saúde. Rio de Janeiro: FGV, 2007. FUCHS, V. R. Who shall live? Health, Economics end Social Choices. New Jersey: World Scientific, 2006. GADREY, J.; JANY-CATRICE, F. Os novos indicadores de riqueza. São Paulo: SENAC, 2006. HENDERSON, H. Construindo um mundo onde todos ganhem: a vida depois da guerra da economia global. São Paulo: Cultrix, 1996. HERZLINGER, R. Let’s put consumers in charge of health care, Harvard Business Review, abstract. Disponível em: <http://hbr.org/2002/07/lets-put-consumers-in-charge-of-health-care/ar/1>. Acesso em 15 de 02 de 2011. IBGE. PNAD, Suplemento de Saúde (2008). Disponível em Ministério da Saúde – Informações de Saúde: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/panorama_saude_brasil_2003_2008/PNAD_2008_saude.pdf>. Acesso em 15 de 02 de 2011. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 110 INOJOSA, R. M. Redes e redes sociais: versão preliminar. São Paulo: FUNDAP, 1998. LESSIG, L. The future of ideas – the fate of the commons in a connected world. New York: First Vintage Books Edition, 2002. NAVARRO, R. P. Managed care pharmacy practice (2 ed.). Sudbury, Massachusetts: Jones and Bartlett Publishers, 2009. OECD. OECD health data 2010: statistics and indicators for 30 countries. Organisation for Economic Co-operation and Developmente. Paris: OECD Publishing, 2010. ONU. Prevent chronic disease: a vital investment. Organização das Nações Unidas, World Health Organisation, Genebra, 2005. PERILLO, E. Importação e implantação do modelo médico-hospitalar no Brasil. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8137/tde25112008-125024/pt-br.php>. Acesso em 15 de fev. de 2011. PORTER, M. E.; TEISBERG, E. O. Redefining competition in health care. Boston: Harvard Business Review, 2004. PRICEWATERHOUSECOOPERS. Pharmacy benefit management saving in medicare and the commercial marketplace & the cost of proposed PBM legislation, 2008-2017. Pharmaceutical Care Management Association, 2007. Disponível em: <http://www.pwc.com/us/en/national-economic-statistics/publications/pharmacy-benefit-management-and-the-cost-of-legislation.jhtml>. Acesso em 18 de nov. de 2009. SEM, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Schwarcz, 2007. THE WORLD BANK. Health expenditure per capita (current US$). Disponível em: <http://data.worldbank.org/indicator/SH.XPD.PCAP>. Acesso em 15 de fev. de 2011. TOFFLER, A.; TOFFLER, H. A riqueza revolucionária. São Paulo: Futura, 2007. 111 Leonardo Trevisan - Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Administração da PUC-SP. Cinira Marcondes - Farmacêutica, pós-graduada em marketing (ESPM), mestre em administração pela PUC-SP. Carlos Pappini Jr. - Administrador, MBA em economia e gestão da saúde (Unifesp), mestrando em administração pela PUC-SP. Introdução Ao considerarmos a estruturação de pessoal nas empresas, é prática corrente que a organização defina o papel e o perfil desejados para cada função inserida em seu modelo operacional e processos, mas cada pessoa é dona de seu perfil, podendo buscar as oportunidades de aprendizado relacionadas aos objetivos individuais de desenvolvimento de sua carreira. Essas escolhas conscientes influenciam o indivíduo na definição do mercado no qual atuará, na profissão que escolherá e no caminho que espera trilhar. Assim, para situar a escolha do agente de vendas para o segmento de saúde, no caso em uma indústria farmacêutica, faz-se necessário entender aspectos específicos desse mercado e as estruturas das equipes comerciais, para compreender as forças atuantes na rotina diária desse profissional de vendas. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 O PROFISSIONAL DE VENDAS NA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 112 A indústria farmacêutica no Brasil e a busca pela competitividade Segundo os dados do IMS Health, o mercado farmacêutico mundial fechou o ano de 2009 com um faturamento da ordem de US$ 837 bilhões, dos quais o Brasil representou US$ 30,2 bilhões ou seja 3,6% do mercado mundial. Para 2010 a estimativa é que o mercado brasileiro tenha fechado no patamar de US$ 34,8 bilhões, o que representa um avanço aproximado de 15% sobre o ano de 2009. Gráfico 1 - Vendas globais da indústria farmacêutica Fonte: IMS Health (inclui mercados auditados e não auditados pela IMS.) A distribuição da participação de mercado entre as empresas do segmento é bem pulverizada, em virtude da quantidade de indústrias existentes, o que representa uma diferença de percentual relativamente baixa entre o líder e os demais participantes. Dessa forma, qualquer ponto percentual que se altere nesse cenário representa um volume monetário significativo, uma vez que o setor representa uma parcela importante dos gastos totais com saúde. 113 Fonte: IMS Health* Adquirida pela Pfizer em 2009. Nesse cenário extremamente competitivo, a luta pela liderança é permanente, com as empresas lançando mão de diversas estratégias, desde movimentos globais de fusão e aquisição, até investimentos constantes na inovação do portfólio, concentrados principalmente na obtenção de drogas biológicas que prometem maior especificidade para o arsenal terapêutico, segurança e eficácia ao paciente, além de garantir um diferencial competitivo para as indústrias pesquisadoras, não só pela obtenção das patentes, mas também por barreiras de custo e processos de produção. A inovação torna-se então o core business desse segmento, principalmente das empresas de âmbito global, que procuram atuar em toda a cadeia de valor do segmento, ou seja, desde a descoberta de moléculas, sua produção, pesquisa clínica, comercialização, distribuição e política de acesso à população. O investimento em pesquisa e desenvolvimento dessa indústria é significativo e acontece mediante a identificação de oportunidades de desenvolvimento conjunto com universidades, empresas ou mesmo surge em seu próprio laboratório. Estudo da Interfarma mostrou que, em 2009, o consumo per capita PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Tabela 1 - Participação de mercado - maiores laboratórios farmacêuticos do mundo PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 114 médio de medicamentos no Brasil foi inferior ao de 1997, 10,4 unidades por pessoa/ano. A queda acentuou-se a partir de 2000, mas ocorreu recuperação a partir de 2005, chegando hoje a 8,8 unidades por pessoa/ano. As classes A e B gastam por ano uma média de R$ 34,00 por pessoa com remédios, valor cinco vezes maior que o gasto pela classe E e mais que o dobro da classe C como nos mostra o quadro abaixo. Quadro 1 - Gastos com medicamentos de acordo com a classe social Fonte: Interfarma, 2000. Assim, pode-se considerar que a entrada da classe de genéricos não foi o suficiente para impulsionar o mercado de medicamentos a um patamar aceitável, o que obrigará o governo a pensar em novas formas de garantir o acesso da população a medicamentos. Em termos de presença e relevância do Brasil no cenário farmacêutico mundial, as maiores indústrias farmacêuticas do mundo possuem subsidiárias no País, e a grande maioria utiliza forças de vendas próprias para promover e comercializar seus produtos no mercado. Essas equipes exercem cada vez mais um papel fundamental no incremento da produtividade das companhias farmacêuticas, tanto por ser ainda a mídia principal da promoção dos produtos, como por estar à frente de todo o processo, desde a pesquisa científica até as definições estratégicas de cada empresa. 115 As equipes de vendas das indústrias farmacêuticas possuem peculiaridades próprias do segmento que as caracterizam como estruturas mistas entre uma atividade promocional e uma atividade propriamente de vendas. O ambiente aqui adotado é o mercado de produtos categorizados como tarjados, ou seja, a parcela do segmento farmacêutico onde os produtos necessitam de uma receita prescrita pelo profissional médico para serem dispensados aos pacientes. Figura 1 - Atividade comercial da força de vendas da indústria farmacêutica Fonte: Elaboração dos autores. A composição das estruturas varia de indústria a indústria, seja por tamanho, nomenclaturas e quantidade de níveis hierárquicos, mas na essência e conceito, a maioria das empresas adota a divisão da equipe em duas partes, uma para atender as necessidades de geração de demanda e outra para atender as necessidades de geração de vendas. Os membros das equipes destinados a atender a geração de demanda são normalmente chamados de “propagandistas”, enquanto os participantes da geração de venda são os “executivos de contas-chaves”. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 A estrutura das equipes de vendas do segmento farmacêutico PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 116 Essa estrutura tende a ter uma composição hierárquica ampliada em função do volume de vendedores envolvidos. Tradicionalmente, as equipes são compostas por uma gerência nacional, uma gerência intermediária (regional) e uma gerência imediata (distrital). Os executivos de contas podem ou não ter uma gerência exclusiva, em nível intermediário, ou ainda reportarem-se diretamente a uma gerência nacional de vendas. Tabela 2 - Características e perfis dos propagandistas e executivos de contas Executivo de contas A uma gerência A uma gerência intermediária (gede terceiro nível rência regional), ou na estrutura da em alguns casos, força de vendas. diretamente à geTradicionalmenrência de primeira te são gerentes linha (gerência nadistritais. cional) Propagandista A quem se reporta diretamente Cliente Imediato Médico Varejo e atacado farmacêutico, hospitais Principal atividade fim Conquista de Atingir o volume de receituários para vendas projetado os produtos propara os produtos movidos Principal forma de mensuração do desempenho Volume de receiMeta de vendas tas do território e por volume em unipor médico dades e reais Conceito de atuação Territórios com carteira de clientes Fonte: Elaboração dos autores. Conta-chave 117 As indústrias farmacêuticas, por meio de seus profissionais de vendas, compartilham suas inovações com o mercado. Essa atividade profissional recebe críticas oriundas de diversas fontes: a mídia frequentemente refere-se ao papel dessa indústria, desempenhado por intermédio de seus representantes e das ações de marketing, como deturpador da relação médico/paciente, pelo qual os altos investimentos oneram os medicamentos e dificultam o acesso da população. A Anvisa regulamenta a propaganda de medicamentos e busca estabelecer regras para a relação dessa indústria com o mercado. Os profissionais têm por desafio, no dia a dia, fortalecer a crença do valor que agregam à saúde dos pacientes, principalmente com relação à promoção de informações e de atualização científica, objetivando auxiliar os médicos a melhorar a saúde de seus pacientes. A profissão modificou-se ao longo do tempo, sendo frequente no mercado farmacêutico a discussão sobre a necessidade de um novo modelo de negócios, que tem no representante a figura central para a o diálogo com os participantes desse segmento: médicos, hospitais, distribuidores, associações de pacientes, governo, operadoras de saúde e outros. Por meio do contato presencial, o representante visita o cliente, com ou sem dia e hora marcados, e discute aspectos relacionados aos medicamentos com que trabalha. Com o avanço da tecnologia, esses contatos passam, em parte, a acontecer à distância, via internet e/ou telefone, exigindo novas habilidades desses profissionais e diferentes investimentos por parte do segmento. Essa nova forma de trabalho tem permitido às empresas atingir mercados distantes ou nos quais não possuem forças de vendas, embora a dinâmica de contato com os clientes seja distinta da que ocorre presencialmente. A Figura 2 ilustra as áreas de influência ou de mobilização de informação que existem na relação entre a empresa, o mercado e os representantes, contribuindo para a gestão do conhecimento que se constrói ao redor dessa atividade profissional. Esse ator social sofre e produz intensa cobrança interna e externa à empresa ao interagir com os diversos influenciadores mencionados, sendo também fonte de informações para a indústria quanto aos com- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 A atividade do profissional de vendas na indústria farmacêutica PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 118 portamentos e às necessidades dos clientes, as ações dos concorrentes, as tendências de mercado etc. A habilidade desse profissional na integração e gestão desse conhecimento tem impacto na evolução de sua carreira no segmento e nos resultados da empresa, caso contrário a indústria farmacêutica já teria alterado completamente o modelo. Figura 2 - Áreas de influência ou de mobilização de informação do representante Fonte: Elaboração dos autores. A empresa destina parte de seu tempo ao desenvolvimento do conhecimento técnico da força de vendas relativo à especificidade dos produtos que comercializa. Ao ser contratado, um novo representante é envolvido em atividades de ensino à distância e presenciais, tendo por objetivo integrá-lo ao am- 119 como no aprendizado técnico dos produtos. Tais atividades duram em média 120 horas e, em geral duas vezes por ano, a força de vendas é reunida para revisar conceitos e estratégias, consumindo mais cerca de 80 horas desse profissional por ano, com uma intensiva carga de treinamento em conceitos e atividades comportamentais. Ao longo de todo o ano, as áreas de treinamento dessas empresas lançam mão da tecnologia e de diversos recursos para atingir tais profissionais, que recebem informações e revisam conceitos por meio de CD-ROMs, conferências via web e mensagens por celular, com o objetivo de complementar o aprendizado. A comunicação influenciadora por parte da liderança também pode potencializar o desenvolvimento das competências dos profissionais de vendas gerando conhecimento e, consequentemente, impacto no negócio. O gerente direto desse profissional mantém contato frequente e funciona como um canal de comunicação da cultura e dos valores. É responsável por realizar discussões adaptadas às características do mercado da empresa no qual o profissional de vendas atua. A comunicação com os clientes, via profissional de vendas, deve então acontecer de forma transparente e ética, traduzindo os valores da empresa que representa e que estão em harmonia com os seus. Assim, a indústria farmacêutica direciona parcela significativa (e não divulga o quanto) de seu investimento em ações de marketing que incluem a presença dos representantes nos consultórios médicos e nos diversos ambientes do segmento de saúde. São crenças bastante enraizadas e que valorizam a relação humana e social para a construção e obtenção dos resultados de negócios e que, por outro lado, levantam discussões sobre o impacto desses investimentos nos altos custos dos medicamentos. O maior contingente de profissionais que atuam como representantes de vendas trabalha hoje diretamente em consultórios, clínicas ou hospitais e realiza a venda conceitual, devendo conhecer a fundo as características, os benefícios, os riscos e os eventos adversos dos medicamentos com que trabalham para comunicá-los aos médicos (incluindo farmacêuticos e enfermeiros), que são os responsáveis por prescrever o que é melhor para a saúde de cada paciente. Os representantes contam com o apoio de uma estrutura de vendas à parte, formada pelos denominados gerentes de contas, que efetuam PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 biente empresarial, tanto no entendimento de suas políticas e procedimentos PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 120 as vendas diretamente ao distribuidor, o qual se encarrega de comercializar e distribuir os medicamentos para os pontos de vendas (farmácias, drogarias ou hospitais). De certa forma, a empresa hoje concentra suas negociações nos distribuidores, que encarregam-se de vender os produtos na ponta e por vezes participam das concorrências junto ao governo, arcando assim com os riscos paralelos relativos aos pagamentos das faturas. O comissionamento dos representantes de vendas da indústria farmacêutica ocorre por meio do pagamento da parcela variável do salário e mediante o cumprimento de cota ou objetivo de vendas. Pode ser composta por prêmios mensais, trimestrais e anuais estabelecidos de acordo com o potencial de mercado e que são medidos por meio da demanda de seus produtos na região (bairro, cidade, estado) na qual atuam e pelo volume de prescrição dos medicamentos que promove ao grupo de clientes de seu cadastro. A demanda representa a reposição ou o giro do estoque dos produtos nas prateleiras das farmácias e drogarias. As indústrias contratam serviços terceirizados de empresas que auditam a demanda e a prescrição dos produtos nos pontos de vendas e que ainda analisam o mercado total por patologia, conseguindo estabelecer um ranking nacional e mundial do segmento farmacêutico por meio da medida de participação de mercado (%) de suas moléculas, utilizando para tanto o dólar norte-americano como base para a informação. A empresa procura implantar a meritocracia e, com isso, maior foco no resultado. Há uma discussão de qualidade versus quantidade, na qual o segmento busca identificar clientes de alto potencial para os produtos e estabelecer uma meta de visitas, também utilizada como indicador de performance dos representantes de vendas no mercado. A média de visitas ao cliente está em torno de 10 a 12 por dia, dependendo do território de atuação do profissional e do estabelecimento de meta com o gerente direto. É possível que esse aspecto tenha auxiliado na mudança do perfil dos atuais representantes, pois o objetivo da indústria é a qualificação do profissional para uma abordagem mais técnica frente à classe médica e o pessoal administrativo de clínicas e hospitais, procurando entender suas necessidades para entregar o melhor serviço e estabelecer uma relação de confiança e de longo prazo com o cliente. Por outro lado, com a concentração da venda pelo distribuidor, a indústria distanciou-se do ponto de venda, trazendo desafios para o entendimento das 121 as vendas em poucos distribuidores pelo País, o que pode ser uma ameaça potencial aos negócios dessa indústria. São aproximadamente 15 mil propagandistas ou representantes de vendas atuantes no mercado farmacêutico brasileiro. De modo geral, seus direitos trabalhistas são os seguintes: salário mínimo; jornada semanal de 44 horas; irredutibilidade salarial; seguro desemprego; 13º salário; participação nos lucros; horas extras com adicional; férias anuais; licença a gestante; licença paternidade; aviso prévio; aposentadoria; reconhecimento de normas coletivas; seguro acidente de trabalho; fundo de garantia por tempo de serviço; direito a greve e estabilidade provisória de membros de comissões de prevenção de acidentes, empregados vitimados por acidente de trabalho, gestante, etc. Algumas empresas, principalmente as multinacionais, oferecem ainda plano de previdência privada, opção de ações atrelada ao plano de desempenho anual, carro em padrão definido pela empresa, chegando a outros benefícios mais pontuais como auxílio babá e cooperativa aos funcionários por adesão. O profissional de vendas recebe recursos que possibilitam maior agilidade na comunicação com a empresa por meio do celular, banda larga, notebook e impressora, utilizados para desenvolver suas habilidades e explorar serviços para seus clientes via contato à distância se assim desejar. Talvez a denominação propagandista tenha surgido pela especificidade da função em promover informações técnicas e tendo por interlocutor o médico, que é um profissional especializado. O que percebemos hoje é uma tentativa de as empresas adotarem uma mudança conceitual da terminologia propagandista ou representante, pois pode passar a ideia de uma divulgação uniforme de conceitos ou produtos, sem levar em conta as especificidades de cada cliente. A denominação ‘consultor’ tem aparecido em muitas discussões, porém a carteira profissional da categoria considera “propagandista” na determinação da função desse profissional no mercado farmacêutico. A Lei nº 6.224, de 14 de julho de 1975 (publicada no DOU em 15 de julho de 1975), a seguir transcrita parcialmente, regulamentou o exercício da profissão de propagandista e vendedor de produtos farmacêuticos. Naquela década prevalecia o interesse das empresas, hierárquicas e paternalistas, que recebiam em seus quadros funcionários com baixa qualificação: PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 necessidades dos clientes que dispensam os medicamentos, além concentrar PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 122 Art. 1º. Considera-se Propagandista e Vendedor de Produtos Farmacêuticos aquele que exerce função remunerada nos serviços de propaganda e venda de produtos químicofarmacêuticos e biológicos, nos consultórios, empresas, farmácias, drogarias e estabelecimentos de serviços médicos, odontológicos, médico-veterinários e hospitalares, públicos e privados. Parágrafo único. Considera-se, ainda, Propagandista e Vendedor de Produtos Farmacêuticos aquele que, além das atividades previstas neste artigo, realiza promoção de vendas, cobrança ou outras atividades acessórias. Art. 2º. O Propagandista e Vendedor de Produtos Farmacêuticos somente poderá exercer função diferente daquela para a qual for contratado, quando, previamente, e com a sua anuência expressa, proceder-se à respectiva anotação na Carteira Profissional. Parágrafo único. O Propagandista e Vendedor de Produtos Farmacêuticos chamado a ocupar cargo diverso do constante do seu contrato, terá direito à percepção do salário correspondente ao novo cargo, bem como à vantagem do tempo de serviço, para todos os efeitos legais e, ainda, ao retorno à função anterior com as vantagens outorgadas à função que exercia. Art. 3º É vedado o exercício da profissão de Propagandista e Vendedor de Produtos Farmacêuticos ao menor de 18 (dezoito) anos. Art. 4º As infrações à presente Lei, para as quais não esteja prevista penalidade específica, serão punidas de acordo com os critérios fixados, para casos semelhantes, na Consolidação das Leis do Trabalho. A carreira do representante é composta por níveis de experiência com matriz de competências adequadas às suas habilidades. Tais profissionais são contratados como representante júnior e, conforme seu desenvolvimento, en- 123 formance (resultados mensurados, aspectos comportamentais e de liderança na equipe), são promovidos a pleno, sênior e, na sequência, executivo. Ao longo do desenvolvimento de carreira, são remunerados de acordo com cada posição que ocupam, sendo elegíveis a determinados investimentos suportados, em parte, pela empresa, tais como inglês e pós-graduação, além de programas internos de desenvolvimento, permanecendo, porém, os mesmos indicadores de performance, com maior exigência para os aspectos comportamentais. Há variações nas denominações dos cargos entre as empresas, e a regra quanto ao reconhecimento via mérito, remunerações e benefícios são bastante próximos no mercado. Há um movimento nesse segmento para a criação de equipes de vendas especializadas visando responder à necessidade da especificidade em algumas patologias, segmentos de clientes (como o governo) ou tecnologias de produção de fármacos (como os desenvolvidos por biotecnologia e imunobiológicos). Estas equipes de profissionais, denominadas consultores, assessores técnicos ou coordenadores de vendas, assumem uma posição de destaque na força de vendas e para tanto remunerados, com matriz de competências funcionais específicas, mas permanecendo o mesmo conceito da atividade frente à valorização da construção das relações humanas com os clientes. Essas posições antecedem a função gerencial em vendas e permitem o amadurecimento do profissional relativamente às construções das relações internas e externas à empresa. Representantes de vendas: as oportunidades de carreira Hall (2002) define carreira como “a sequência individualmente percebida de atitudes e comportamentos associada com experiências relacionadas ao trabalho e atividades durante a vida de uma pessoa”. Esse autor pontua conotações distintas para carreira, identificadas nos aspectos comportamentais e também na terminologia popular, essa última reconhecendo carreira como um processo progressivo de status, na qual certas ocupações são consideradas PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 trega de resultados e valor para empresa, medidos pelos indicadores de per- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 124 carreiras e outras não, ou de mobilidade vertical de promoções em uma hierarquia organizacional. Essa conotação popular de carreira é facilmente identificada no ambiente de trabalho dos representantes de indústrias farmacêuticas, pois é desafiador estabelecer uma relação com o cliente que diferencie esse profissional e que considere a carreira por eles desenvolvida. Para Hall (2002), não há juízo de valor sobre o tipo de ocupação ou seu nível nos aspectos comportamentais de carreira, e sim a representação de sua história ou a série de posições ocupadas. Assim, todas as pessoas com histórias de trabalho têm carreiras. Inclui-se também a maneira como a pessoa experimenta a sequência de trabalhos e atividades que representam sua história, composta por experiências que consideram as mudanças de aspirações, padrões de satisfação, crenças e outras atitudes da pessoa voltadas para o seu trabalho e para a sua vida. Há, ainda, que se considerar as influências do ambiente, tais como: pressão familiar, tanto motivadora e inspiradora quanto impeditiva; pressão da sociedade, que influencia no julgamento da ocupação que é de prestígio ou sem futuro; e pressão cultural, que é invisível e afeta através dos vários juízos de valor. No contexto dos atores de vendas da indústria farmacêutica, a escolha pela profissão é caracteristicamente influenciada pela rede social e pela família, pois não raro observa-se que ocorre de pai para filho, entre marido e mulher e entre irmãos. São poucas as pessoas que chegam a essa profissão sem saber o que significa. A empresa estabelece políticas internas de conflito de interesse, e o funcionário deve anualmente responder a uma série de questões, comunicando a possível existência de potenciais conflitos e assumindo a responsabilidade por isso. A empresa, por sua vez, designa aos funcionários nessas condições, posições hierárquicas e atuação em mercados de saúde distintos da pessoa de sua relação pessoal, de forma que não beneficiem nem prejudiquem as relações profissionais, e também para proteger a imagem da empresa. Essa atividade profissional apresenta intensa mobilidade entre empresas do mesmo segmento, onde a indicação tem peso relevante no processo seletivo, sobretudo para as multinacionais. Esse movimento é visto com bons olhos pelos contratantes, que recebem as pessoas com histórico profissional construído no mercado e com carteira de clientes e treinamentos técnicos em 125 persistindo o desafio do desenvolvimento das competências organizacionais alinhadas à cultura da nova empresa. Podemos considerar também que essas características podem intensificar o desafio para a adoção da mudança, já que há forte especificidade nas habilidades requeridas e adquiridas na área de vendas da indústria farmacêutica. Invariavelmente estabelece-se um padrão, que se não cuidado, intensifica o desafio na diferenciação frente aos clientes. Percebe-se no mercado o estabelecimento crescente de empresas de recursos humanos focadas em outplacement especializadas na área farmacêutica, o que pode ser decorrente da movimentação de indústrias estrangeiras que chegam ao País e ampliam o mercado. Esse segmento está mais diversificado e se modifica tecnicamente em razão dos medicamentos desenvolvidos por biotecnologia, e também pelo crescimento das empresas nacionais em reflexo aos medicamentos genéricos. Além disso, podemos considerar que há maior mobilidade das pessoas no mercado, maior longevidade profissional e encurtamento das carreiras (DUTRA, 2009), portanto exigência de competências diferentes para atender a essa demanda por profissionais. Essas empresas de RH diversificam suas atividades no segmento por meio da formação de equipes de vendas estruturadas para prestar serviços às indústrias farmacêuticas, sendo algumas delas empresas de representação de organizações estrangeiras. Tais empresas são frequentemente formadas por profissionais que atuam na indústria farmacêutica local nas áreas de recursos humanos, vendas e marketing e estruturam equipes de vendas com profissionais já aposentados na indústria farmacêutica. Podem também transformar-se em porta de entrada para o segmento no caso de profissionais mais jovens e inexperientes, tendo com isso alta rotatividade de profissionais que seguem em busca de estabelecer a sua carreira no segmento. Dessa forma, os profissionais de vendas chegam às multinacionais com seu diploma universitário e em sua maioria por volta dos 25 anos. Existem assim desafios específicos para o constante desenvolvimento, reconhecimento e retenção de talentos, e que precisam ser repensados diante do envelhecimento da população no Brasil, com os seus impactos na sustentabilidade das carreiras e dos negócios da empresa, à medida que a relação com o mercado é feita pelo profissional de vendas da empresa. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 parte já realizados, o que pode facilitar a agilidade na entrega de resultados, PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 126 Área de vendas: porta de entrada no segmento De forma geral, considera-se no mercado que a área de vendas é a porta de entrada mais frequente para o desenvolvimento profissional na indústria farmacêutica no Brasil. Mesmo pessoas que iniciam atividades em outras áreas da empresa e são identificadas como potencial a desenvolver e reter, na maior parte das vezes passam por uma experiência em vendas, de forma a entender a perspectiva do cliente para os negócios do segmento e, também, dentre outros motivos, para fortalecer habilidades de comunicação e negociação, fundamentais para qualquer posição na empresa. A figura seguinte ilustra os cargos e caminhos para o desenvolvimento de carreira na empresa: Figura 3 - Áreas de mobilidade de carreira na indústria farmacêutica Fonte: Elaboração dos autores. 127 ganização das empresas, o olhar para o desenvolvimento de profissionais e o desafio da retenção pode significar a sobrevivência da empresa. Estar atento aos interesses dos talentos-chave e permitir um ambiente favorável para o desenvolvimento de projetos pode auxiliar na retenção. Por outro lado, com um mercado aquecido no Brasil, percebe-se maior desprendimento dos profissionais e oportunidades de escolhas conscientes, que buscam pelo que é melhor para si e para sua família. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 As oportunidades existem e, no cenário de país emergente e com reor- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 128 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DUTRA, J. S. Gestão de pessoas. Modelo, processos, tendências e perspectivas. 1ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2009. GAGLIARD, J. C. Empregador de propagandistas. Revista UP Pharma. Grupemef, n.112. Julho de 2009, p. 38. HALL, D. T. Careers in and out organizations. London: Sage, 2002. MARCONDES, C. A. F. Impacto das competências emocionais na força de vendas: o caso da indústria farmacêutica. Dissertação (Mestrado em Administração). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. LEI Nº 6.224, DE 14 DE JULHO DE 1975. Propagandista e Vendedor de Produtos Farmacêuticos. Disponível em: <http://www.soleis.adv.br/propagandistaevendedorfarmaceutico.htm>. Acesso em 02 de mai. de 2010. VELOSO, Elza Fátima Rosa; DUTRA, Joel Souza. Evolução do conceito de carreira e sua aplicação para a organização e para as pessoas. In: DUTRA, J. S. (Org.). Gestão de carreiras na empresa contemporânea. São Paulo: Atlas, 2010, capítulo 1. VISCONDE JUNIOR, O. Investidor mira mercado farmacêutico. O Estado de S. Paulo, Economia, 10 de maio de 2010. Disponível em: <http://www.estadao. com.br/estadaodehoje/20100510/not_imp549406,0.php>. Acesso em 22 de mai. de 2010. 129 José Cechin - Superintendente Executivo do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar e ex-ministro da Previdência Social. Marcos Novais - Consultor do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar e mestre em economia pela Universidade Federal de Juiz de Fora Apresentação O mercado de saúde enfrenta muitos desafios, a começar pelo equilíbrio entre uma demanda infinita por recursos finitos, prosseguindo pelo surgimento corriqueiro de novas doenças e epidemias, pelo envelhecimento da população e prolongamento da vida. Tais fatores naturalmente implicam novas demandas por serviços de saúde, enquanto surgem novas tecnologias que são desejadas por pacientes e profissionais. Este trabalho discorre sobre dois desafios que entendemos como sen- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 NOVO DESAFIO PARA O MERCADO DE SAÚDE SUPLEMENTAR – PLANOS ACESSÍVEIS PARA ENFRENTAR O CRESCIMENTO DOS CUSTOS PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 130 do os principais. O primeiro deles é o envelhecimento; a população brasileira envelhece de forma acelerada. Em 2009, a razão de dependência de idosos era de 10 pessoas com 65 ou mais anos de idade para cada 100 pessoas em idade ativa (14 a 64 anos); em 2050 essa taxa será de 35 para cada 100 (IBGE, 2009). Como os idosos são consumidores mais intensos de serviços médicos mais complexos, a sociedade brasileira deverá ter maiores gastos com saúde e os sistemas de saúde devem estar preparados para ofertar os serviços demandados. O segundo desafio é a elevação dos custos, afetada pelo envelhecimento, mas não só por este. O elevado custo da assistência à saúde tornou os planos mais caros e proibitivos para uma grande parcela da população. Prova disso é que milhões de brasileiros de baixa renda passaram para faixas de renda mais elevadas e esse movimento não desencadeou aumento proporcional da cobertura de planos de saúde. Essas pessoas, cuja renda não aumentou o suficiente para adquirir um plano de saúde, desejam esses serviços, e por isso crescem no mercado os chamados “cartões de descontos”. Tais cartões não são planos de saúde, não são regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar e oferecem apenas descontos em alguns procedimentos, normalmente consultas e exames simples. Por não serem planos de saúde, não protegem os consumidores dos riscos de gastos catastróficos com o tratamento de doenças mais severas. É, portanto, diante desses desafios que este trabalho propõe novos formatos de planos. 1. Introdução As demandas por serviços médicos são virtualmente ilimitadas, mas os recursos defrontam-se com limites estreitos, devendo ainda ser alocados entre diversos fins. Nos governos, a arrecadação tributária, sempre finita, deve ser destinada ao financiamento de todas as suas obrigações, entre elas a assistência à saúde. Mas o que tem sido alocado à saúde pelo governo brasileiro está longe de ser suficiente para custear os serviços demandados; o racionamento é visível e se manifesta nas demoras para agendamento e atendimento. A limitação de atendimento público, entre outros motivos, tem levado 131 No entanto, o acesso aos planos está ficando mais difícil. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD 2008, o número de planos cresceu 14,2% entre 2003 e 2008, enquanto a renda familiar real cresceu 17,5% e o número de empregos formais 31,1% no mesmo período. Esperavase que o crescimento do número de planos estivesse próximo ao da ocupação e da renda, mas o crescimento da mensalidade média real dos planos, de 23%10, foi bastante superior à variação da renda, justificando o crescimento do mercado de planos em ritmo inferior ao aumento do emprego e da renda. Em suma, o acesso aos planos ficou relativamente mais difícil. Os motores dessa equação são diversos. Em primeiro lugar está o crescimento das despesas médicas; fenômeno observado há décadas no mundo todo, em razão da incorporação tecnológica, do envelhecimento populacional e do próprio crescimento das rendas. Em segundo lugar temos os efeitos da regulação, especialmente a do reajuste das mensalidades. O preço de lançamento dos planos individuais ou familiares não é regulado, mas os reajustes subsequentes são controlados pelo governo. Em período recente, os reajustes autorizados estiveram aquém dos aumentos nas despesas médicas per capita verificadas nas operadoras. Para manter a solvência financeira, as operadoras investem em gestão e, quando não suficiente, ajustam os preços das novas vendas, tornando mais difícil a entrada de novos beneficiários. A regulamentação, que veio com a Lei n° 9.656/98, beneficiou bastante o mercado de planos de saúde. Entretanto, essa legislação tem se mostrado rígida o suficiente para restringir a criatividade do setor, impondo limites ao seu crescimento. Antes da regulamentação, o mercado era caracterizado por instabilidade e ausência de regras claras, prejudicando tanto as operadoras de planos de saúde quanto os consumidores. Segundo Lima (2005), cada contrato tinha suas próprias características em relação à cobertura, seleção de risco, exclusão de usuários, limites para procedimentos ou valor de despesa, 9 A Associação Nacional das Empresas de Previdência Privada encomendou uma pesquisa qualitativa feita pelo instituto InterScience. O desejo por planos de saúde foi uma das respostas mais citadas. 10 Esse valor foi calculado com base nos dados da ANS de receitas das operadoras e número de beneficiários. A mensalidade média paga pelos beneficiários do sistema suplementar era de R$ 95 em 2003 e R$ 117 em 2008 (ambos em R$ de 2008), com a variação de 23% entre esses dois anos. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 muitas pessoas a procurar cobertura por planos e seguros de saúde privados. O desejo das pessoas por planos é cada vez mais intenso, como indicam pesquisas de opinião9. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 132 rompimento unilateral, carências, faixas etárias e reajuste de preços. Cechin (2008) ressalta que o consumidor tinha dificuldades para comparar os diversos produtos ofertados, dado que pequenas diferenças na redação do contrato implicavam em significativas diferenças no produto contratado. A regulamentação padronizou os planos de saúde, tornou obrigatória a assistência para todas as doenças listadas na CID (Classificação Internacional de Doenças), proibiu a seleção de risco, vedou a imposição de limites quantitativos, entre outros. Todos os planos passaram a ter cobertura completa e sem restrições. A Lei determinou a oferta obrigatória do Plano Referência (ambulatorial e hospitalar, em padrão enfermaria) e admitiu planos ambulatoriais ou hospitalares ou ambos, com ou sem obstetrícia, com ou sem odontologia e segmentação conforme abrangência geográfica de cobertura e tipo de acomodação (apartamento ou enfermaria). A medida limitou a diversidade de planos e seguros de saúde que o consumidor encontra à venda no mercado. As operadoras buscaram diferenciar seus produtos via diferenças na rede de atendimento; assim, consumidores dispostos a pagar um valor mais elevado pelo plano podem escolher uma rede de atendimentos com hospitais e profissionais de padrão mais elevado, e os demais podem optar por uma rede credenciada de padrão mais modesto. O que se propõe neste trabalho são alterações nas normas para possibilitar o desenvolvimento de novos produtos e assim proporcionar aos consumidores um leque de escolhas mais amplo. Os novos produtos devem ser desenhados para que auxiliem a enfrentar a tendência de crescimento dos gastos, viabilizem o financiamento nas idades avançadas, alinhem incentivos à adoção de hábitos saudáveis de vida e tenham preços mais acessíveis para os diferentes estratos sociais. Com esses objetivos em mente, propomos alteração da legislação para acomodar planos com franquia e acumulação, planos com médico de família ou ainda planos com incentivos para a adoção de hábitos saudáveis de vida. O propósito é fomentar o debate sobre seus alcances e limitações. 133 Esta seção aborda ideias para novos produtos que poderiam ser acrescidos à cesta de opções disponível para os consumidores. Os novos planos foram pensados diante dos desafios trazidos pelo envelhecimento e pela elevação dos custos em saúde, visando permitir que um maior número de consumidores possa acessá-los: plano com franquia e acumulação; plano com médico da família; e plano que incentive hábitos saudáveis de vida. 2.1 Planos com franquia e acumulação Anualmente o conjunto dos beneficiários de planos e seguros de saúde realizam centenas de milhões de procedimentos, como consultas, terapias, exames e internações. A grande maioria desses procedimentos tem pequeno valor unitário e os procedimentos de alto valor são bem menos frequentes. Parcela considerável das despesas das operadoras destina-se a custear os procedimentos frequentes de baixo valor; arcar com tais despesas com recursos do próprio bolso está ao alcance de muitas pessoas, mas arcar com despesas de internações, salas de terapia intensiva ou procedimentos complexos pode levar a maioria das famílias à ruína financeira. Nos planos com franquia, os beneficiários pagam do bolso a totalidade das despesas com saúde até certo limite e, em contrapartida, as mensalidades são menores do que as de planos sem franquia. Desta forma, o segurado está protegido contra doenças cujo tratamento pode levar a família à ruína financeira. O plano com franquia está previsto na legislação brasileira e muitos contratos empresariais já possuem esse desenho de serviço. Nos contratos individuais, os planos com franquia são menos comuns, porém a franquia permitida pela legislação incide sobre o procedimento, não sobre os gastos totais do beneficiário no ano. Uma franquia sobre internação, por exemplo, estabelece que gastos até o valor da franquia em cada internação por determinada patologia sejam efetuados pelo beneficiário. Já a franquia proposta por este trabalho é anual, ou seja, todos os gastos, até o valor da franquia em determinado ano, serão feitos pelo beneficiário, cabendo à operadora arcar com toda a despesa que exceder a franquia. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 2. Novos produtos para os consumidores de planos de saúde PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 134 O plano com franquia incentiva o indivíduo a melhor gerir sua saúde e suas finanças, pois o uso perdulário de serviços médicos consumiria boa parte ou a totalidade da franquia e, caso contrário, a avareza na utilização com a postergação indevida do recurso aos serviços médicos necessários poderia agravar a doença e levar a maior gasto da franquia no futuro. Assim, o indivíduo assume maior responsabilidade para com sua saúde e tem interesse em evitar desperdícios nos serviços que consome. A franquia permite reduzir a mensalidade do plano, pois os beneficiários passam a pagar com recursos próprios pelos atendimentos até o limite estabelecido pela franquia, e, ao fazê-lo, reduzem as despesas das operadoras, tanto as de assistência médica quanto as administrativas, pois deixam de gerir um conjunto de gastos caracterizados por elevado volume de procedimentos de baixo valor unitário. Essas economias, em um mercado competitivo como o brasileiro, são repassadas às mensalidades dos planos. Nos planos com franquia, os serviços médicos são pagos por duas fontes, beneficiário e operadora. O beneficiário custeia os serviços médicos até o limite da franquia e a operadora, acionada assim que se esgota a franquia, deve arcar, sem limites, com todas as despesas subsequentes. Por ter mensalidade menor, o plano com franquia é mais atrativo, podendo ser escolhido simplesmente por essa razão, sem a ponderação que esse valor, caso o beneficiário venha a necessitar da assistência médica, poderá vir a ser despendido a cada ano. Por isso, o valor da franquia deve ficar indisponível para outros gastos; uma forma, caso não seja gasto com assistência médica no exercício, é determinar seu recolhimento anual a um fundo capitalizado. A franquia depositada todos os anos nesse fundo faz o plano incorporar a função de capitalização; a franquia não utilizada permanece na conta do beneficiário nos anos seguintes ao do depósito. O saldo pertence ao beneficiário, que pode sacá-lo ou deixá-lo acumulando, mas quaisquer das opções não o exime de anualmente depositar na conta capitalizada o valor da franquia. Essa conta, que chamamos de poupança-saúde, deveria contar com os mesmos incentivos fiscais dos planos de previdência, exceto que os recursos estariam isentos de tributação se fossem sacados para custear serviços de assistência médica ou pagar mensalidades do plano. Aliás, a legislação vigente já prevê a isenção do imposto de renda para gastos com saúde. 135 dica e acumulados ano após ano durante décadas, poderão produzir um montante expressivo nas idades avançadas, quando o plano custa caro e a renda, normalmente de aposentadoria, é baixa. É, portanto, um poderoso instrumento para o financiamento dos planos para a idade avançada. O fundo deve ser gerido por administradores devidamente autorizados pelos órgãos competentes, e seus recursos devem ser investidos para gerar retorno ao beneficiário. Como os recursos acumulados no fundo são de propriedade de cada beneficiário, sua existência não muda a exigência de capital mínimo e constituição das provisões técnicas, reservas e garantias que devem ser feitas pelas operadoras, de forma a assegurar a solvência financeira da empresa e a estabilidade do plano do contratante. Os recursos acumulados nos fundos constituem poupanças institucionais de longo prazo, disponíveis para financiar investimentos de longa maturação, uma contribuição importante que esse tipo de plano poderia dar ao crescimento da poupança nacional e ao investimento. O plano com franquia e componente de acumulação estimula o uso eficiente dos recursos da medicina, contribuindo para a redução dos desperdícios e dos custos. Os recursos acumulados auxiliam o pagamento das mensalidades nas idades avançadas, período em que o risco é maior, as mensalidades mais elevadas e a renda menor. Portanto, o plano com franquia e acumulação: • Permite redução do uso desnecessário de recursos médicos, pois os indivíduos passam a procurar serviços com mais consciência, evitando desperdícios (BUNTIN et al., 2006). • Torna os beneficiários mais exigentes quanto aos procedimentos a serem realizados, pois custeiam parte das despesas. Entende-se que os beneficiários pesquisarão preços, participarão mais das decisões de seus médicos e ficarão atentos a fraudes e excessos da indústria (BUNTIN et al., 2006 e WILENSKY, 2006). • Poupa a fração não utilizada da franquia em uma conta financeira e o montante pode ser usado para pagar mensalidades dos planos no desemprego ou na idade avançada. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Os valores da franquia não utilizados com serviços de assistência mé- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 136 • Reduz o gasto com administração das operadoras, que deixam de administrar uma grande quantidade de procedimentos de baixo valor unitário (por exemplo, consultas e exames simples). O menor gasto das operadoras e a economia de despesas administrativas seriam repassados às mensalidades dos beneficiários. Nos planos com franquia, alguns usuários podem preferir adiar a utilização de serviços médicos necessários com o intuito de poupar e acumular o valor da franquia. Em muitos casos, o resultado será a melhor utilização dos recursos médicos, mas em alguns tal atitude pode resultar na piora do seu quadro de saúde, uma situação não desejável, mas a obrigação de empenhar a franquia minimiza seus efeitos. A questão é controversa, pois resultados em Buntin et al. (2006) indicam que o fenômeno não ocorre e o efeito pode ser até oposto, pois indivíduos que adquirem planos com franquia, pagando parte do tratamento, tendem a ser mais responsáveis e cuidadosos com sua saúde. Os planos com franquia existem nos EUA e são chamados de HDHP (High Deductible Health Plan). Os HDHP são planos comuns com franquia. O HSA (Health Saving Accounts) é o plano de franquia com acumulação. Nesse plano, a franquia não utilizada é depositada em uma conta financeira, a fração não gasta permanecendo aplicada na conta vinculada. Quanto menor o gasto (até a franquia), mais rapidamente crescerá o saldo da conta. O número de americanos que possuem planos HSA tem crescido nos EUA, de um milhão de beneficiários em 2005, para mais de 10 milhões em 201011. Os planos de saúde com franquia e componente de acumulação do tipo HSA têm obtido bons resultados. Ehrbeck e Packard (2005), utilizando uma amostra de beneficiários americanos, mostraram que o reajuste da mensalidade foi de 16% nos planos tradicionais e de 2% nos planos HSA. Buntin et al. (2006) compararam os planos tradicionais e planos com franquia e concluíram que a taxa de utilização de internações, consultas e salas de emergência é crescente no plano tradicional e decrescente no HSA. No Brasil, a legislação dificulta a criatividade do mercado no atendimento das demandas dos consumidores. O art. 2° inciso VII da Resolução CONSU nº 8, por exemplo, veda o estabelecimento de coparticipação ou franquia que caracterize pagamento integral de qualquer procedimento por parte do usuário. É pré-requisito também a regulamentação da opção pela acumulação da franquia em uma conta do tipo capitalização. 11 Números disponíveis no HSA Census 2010. 137 A rápida incorporação de novos conhecimentos científicos e tecnológicos no diagnóstico, tratamento e prevenção de doenças tem resultado no aumento vertiginoso de custos em saúde. Além disso, a ênfase dada às especialidades e sub-especialidades médicas resulta no crescente distanciamento entre médicos e pacientes e, às vezes, no uso abusivo de exames diagnósticos e na intervenção excessiva. A relação médico-paciente vem se tornando cada vez mais superficial e intermediada por número crescente de diferentes exames para diagnósticos. Os pacientes, não contando com um profissional de sua confiança e conhecedor em detalhes de seu histórico de saúde e suas necessidades, sentem-se inseguros e desorientados quando necessitam recorrer a um médico. É nesse contexto que os médicos de família podem representar uma importante contribuição para os sistemas de saúde. O médico de família tem um vínculo de longo prazo com seus pacientes e deve ser o primeiro a ser consultado em caso de doença. Esses profissionais precisam ter habilidade de comunicação e vasta experiência na prática médica, qualidades essas que aumentam a capacidade de resolução dos casos. Também é desejável que os pacientes tenham acesso relativamente facilitado e rápido aos seus médicos de família, além da cobertura ser promovida pelo plano de saúde (MARTIN, 2004). Com o médico de família o atendimento é centrado no paciente, reduzindo os custos da assistência médica com o uso mais eficiente dos recursos da medicina. Com custos menores, permitem-se mensalidades dos planos também menores. Espera-se a redução de custos e uso racional medida que: • O médico de família conhece o histórico e acompanha o paciente no tempo, tais informações contribuindo para um diagnóstico mais rápido e preciso (MARTIN, 2004 e MILLER et al., 2001). • A relação médico-paciente é intensificada, permitindo incorporar mais eficazmente a prevenção de doenças e a promoção de saúde. • A eficiência dos atendimentos aumenta, pois se reduz a quantidade de diagnósticos e intervenções desnecessárias. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 2.2 Planos com médico de família PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 138 Esse profissional, com amplo conhecimento do estado de saúde de seus pacientes, os encaminha para especialistas, centros especializados e hospitais, atitude que contribui para o uso racional dos recursos de saúde. Stewart et al. (2000) evidenciaram a redução de custos devida à implantação do médico de família ao analisar dados dos sistemas de saúde da Inglaterra e Canadá. Os autores demonstram, em pacientes com médicos de família, que o número de exames, diagnósticos e intervenções cai pela metade, sem redução da qualidade do atendimento ou dos resultados. As sinergias do estreito relacionamento entre médico e paciente capacitam os planos com médico de família a reduzir custos em saúde. A assistência pautada no médico de família tem sido amplamente utilizada em sistemas públicos de saúde, a exemplo dos sistemas canadense e inglês. O próprio sistema público brasileiro integrou esses profissionais em seu Programa de Saúde da Família (PSF). Todavia, há diferenças entre os usuários do sistema público e privado. Os beneficiários de planos buscam acesso facilitado, conforto e agilidade, características que devem estar presentes nos planos com médico de família, os quais, portanto, devem ser repensados para atender a população beneficiária de planos de saúde. 2.3 Planos que incentivam hábitos saudáveis de vida Algumas doenças poderiam ser evitadas com mudanças nos hábitos de vida. Os números da OMS12 (Organização Mundial da Saúde) mostram que 1,3 milhão de pessoas morreram de câncer de pulmão em 2004, causado por tabagismo em 71% dos casos. A mesma instituição divulgou que 7,5 milhões morreram em função da taxa elevada de glicose no sangue, 3,2 milhões devido à falta de atividade física e 2,8 milhões por conta do excesso de peso e obesidade. Todas essas doenças têm fatores de risco relacionados ao comportamento pessoal ou hábito de vida, portanto, é imperativo estabelecer meios e incentivos que encorajem as pessoas a adotar hábitos saudáveis. Ao menos 1,3 bilhão de adultos e 42 milhões de crianças têm excesso de peso ou estão obesos. As consequências da obesidade são o aumento da prevalência de doenças como diabetes, doenças do coração, osteoartrite e 12 GLOBAL HEALTH RISKS: Mortality and burden of disease attributable to selected major risks. Disponível em: <www.who.int/healthinfo/global_burden_disease/global_health_risks/en/index.html>. 139 sequências econômicas são tão danosas quanto as físicas. A OMS estima que, em países desenvolvidos, a obesidade represente de 2% a 7% de todo o gasto com saúde, somados a outros efeitos como a elevação da taxa de absenteísmo e a redução da produtividade do trabalhador. O excesso de peso e a obesidade têm origem em diversas causas, desde biológicas até comportamentais relacionadas às escolhas individuais (dietas e inatividade física). Portanto, os programas de saúde devem alinhar terapias com aconselhamentos e, especialmente, a adoção de incentivos financeiros para que os indivíduos incorporem esses novos hábitos saudáveis de vida em seus cotidianos (ALGAZY et al., 2010). A diminuição do tabagismo reduz o número de casos de doenças do pulmão, do coração e doenças crônicas respiratórias. A doença isquêmica de coração, por exemplo, está relacionada ao diabete tipo 2, à taxa de colesterol e à pressão sanguínea. A falta de atividade física é também um fator de risco para a piora dos níveis de colesterol e da pressão sanguínea, assim como a ingestão de gordura (Figura 1). Dessa forma, o excesso de peso, a ingestão de álcool e o tabagismo são fatores de risco que aumentam as chances de desenvolvimento de doença isquêmica do coração. O País passa pela transição epidemiológica, período no qual as doenças que afetam a população transitam de infecto-contagiosas para crônicas não transmissíveis (COSTA, 2004). As primeiras são objeto de políticas públicas, particularmente do saneamento básico, e as doenças crônicas têm estreito relacionamento com hábitos de vida e um tratamento contínuo de custo bastante elevado. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 alguns tipos de câncer (esôfago, colorretal, mama, endometrial e rim). As con- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 140 Figura 1 - Cadeia de causalidade para a doença isquêmica do coração Fonte: OMS. Os custos de tratamento das doenças oriundas de hábitos inadequados de vida oneram todos os participantes dos sistemas de saúde. Se o doente é atendido pelo sistema público, os custos recaem sobre toda a sociedade; se for beneficiário de plano de saúde, os custos serão repartidos entre todos os participantes do mútuo. Nos planos, os beneficiários são divididos conforme a faixa etária, praticando-se o mutualismo dentro de cada faixa. A mensalidade dos usuários é definida de acordo com os custos médios do atendimento aos indivíduos reunidos naquele mútuo. Portanto, indivíduos que optam por hábitos ruins sofrem as consequências físicas em seu próprio corpo, mas oneram financeiramente todos os participantes do mútuo. Por isso, é relevante estabelecer mecanismos que os encorajem a ter hábitos saudáveis. Uma proposta é ter planos de saúde que diferenciem a mensalidade conforme tais hábitos, nos quais os beneficiários que se abstenham do uso do fumo, do álcool em excesso e de outras drogas, apresentem comportamentos saudáveis com a prática regular de exercícios, pratiquem a alimentação funcional ou adiram aos programas de saúde de sua operadora, poderiam gozar de benefícios em sua mensalidade. Entendemos que com incentivos adequados será possível mudar hábitos de forma mais rápida e assim conter o ritmo da escalada dos gastos 141 planos seja necessário um amadurecimento do setor e da sociedade. 3. Conclusões As tendências de elevação dos gastos com saúde, com a incorporação de tecnologia e o envelhecimento populacional, e os efeitos não desejados da regulação estão encarecendo as mensalidades dos planos. As dificuldades orçamentárias dos governos, com a deterioração dos serviços públicos de assistência à saúde, estimulam o desejo de possuir um plano privado de saúde. Os preços, aumentando mais rapidamente do que as rendas, estão inviabilizando o acesso dessas pessoas aos planos. São situações que podem ser melhoradas, razão pela qual expusemos neste texto ideias de planos que poderiam auxiliar no enfrentamento dessas questões. O mercado de saúde suplementar tem uma regulação rígida, inibindo a oferta mais diversificada de produtos, encarecendo seus preços e excluindo do mercado parte da população. As preferências dos consumidores alteram-se com o tempo, enquanto os produtos disponíveis não passaram por importantes reformulações. A regulação, que foi necessária para prover estabilidade e transparência ao mercado, não evoluiu para enfrentar o novo cenário sócio-econômico e os desafios que envolvem a escalada de custos da saúde. O envelhecimento da população está deixando de ser uma previsão para se tornar um fato, provocando elevação dos custos da saúde a taxas superiores à elevação da renda e emprego, excluindo milhões de indivíduos do acesso aos planos de saúde. Urge rever a legislação para permitir a introdução de novos produtos, que levem em conta as tendências recentes dos custos e do envelhecimento, adequados às preferências e capacidades financeiras das pessoas. Os planos com franquia e acumulação, com médico de família e com incentivos para hábitos saudáveis de vida auxiliam no enfrentamento das tendências mencionadas e colocariam à disposição dos consumidores mais produtos para o exercício de suas escolhas. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 em saúde. No entanto, a implantação desse tipo de plano requer um sistema avançado de acompanhamento da continuidade da aderência e cumprimento de práticas saudáveis. Essa verificação ou supervisão tem custos administrativos que podem ser bastante altos. É provável que para o lançamento desses PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 142 Referências Bibliográficas ALGAZY, J. et al. Why governments must lead the fight against obesity. Mckinsey Quartely, 2010. Disponível em: <http://www.mckinseyquarterly.com/Health_Care/Strategy_Analysis/Why_governments_must_lead_the_fight_against_ obesity_2687>. Acesso em 2010. AHIP Center for Policy and Research. HSA Census, 2010. Disponível em: <http://www.hsaalliance.org/pdf/HSA2010_Final.pdf>. Acesso em 2010. BUNTIN, M. B. et al. Consumer-directed health care: early evidence about effects on cost and quality. Consumer-Directed Care, 2006. Disponível em: <www.content.healthaffairs.org/cgi/content/abstract/25/6/ w516>. Acesso em 2010. CECHIN, J. A História e os Desafios da Saúde Suplementar: 10 anos de Regulação. São Paulo: Saraiva: Letras e Lucros, 2008. COSTA, M. F. L. Estilos de vida e uso de serviços preventivos de saúde entre adultos filiados ou não a plano privado de saúde (Inquérito de saúde de Belo Horizonte). Revista Ciência & Saúde Coletiva, v. 9, n. 4, pp. 857-864, 2004. EHRBECK, B. T.; PACKARD, K. O. Will consumer-driven health care take off? Expert Voices, n. 8, maio/2005. Disponível em: <www.nihcm.org/pdf/ExpertV8. pdf>. Acesso em 2010. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Suplemento de Saúde da PNAD 2008. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/panorama_saude_brasil_2003_2008/default.shtm>. Acesso em 2010. LIMA, C. R. M. Informação e regulação da assistência suplementar à saúde. Rio de Janeiro: E-Papers Serviços Editoriais, 2005. 1ª edição. MARTIN, J. C. The future of family medicine: a collaborative project of the family medicine community. Annals of Family Medicine, v. 2, 2004. MILLER, W. L. et al. Practice jazz: understanding variation in family practices using complexity science. The Journal Of Family Practice, v. 50, n. 10, 2001. STEWART, M. et al. The impact of patient-centered care on outcomes. The Journal Of Family Practice, v. 49, n. 9, 2000. WILENSKY, G. R. Consumer-driven health plans: early evidences and potential impact on hospitals. consumerism. 2006. Disponível em: <www.content. healthaffairs.org/cgi/content/abstract/25/1/174>. Acesso em 2010. 143 Sandro Leal Alves - Economista, gerente-técnico da Federação Nacional de Saúde Suplementar (Fenasaúde). * Este artigo é de responsabilidade do autor e não expressa a opinião institucional. 1. Introdução Mais do que um mero bordão ou um termo politicamente correto, a eficiência entrou definitivamente na ordem do dia do setor de saúde suplementar, mais precisamente na fórmula em estudo na ANS para reforma da atual metodologia que reajusta anualmente os planos e seguros individuais contratados após a vigência da Lei 9.656 de 1998. Trata-se de uma boa oportunidade para corrigir equívocos na atual metodologia, que reajusta planos individuais baseada na média da variação de preços dos planos coletivos, além de estimular uma melhor alocação dos recursos no setor. Este artigo busca apresentar de forma didática a metodologia em estudo, suas limitações e oportunidades, para que o leitor, ainda que distante das discussões técnicas, possa ter instrumentos para avaliação. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 SAÚDE SUPLEMENTAR EM BUSCA DA EFICIÊNCIA PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 144 2. O Modelo Price-cap A regulação de preços pelo price-cap, ou preço-teto, fixa o preço do produto ou serviço e determina uma fórmula para reajustes periódicos, na qual incorpora a inflação e um termo exprimindo metas plurianuais de ganho de produtividade fixadas pelo regulador (o fator X). Eventualmente tem-se um termo para incorporar choques específicos à indústria, não levados em conta pelo índice de inflação, como câmbio, custo de capital, etc. Em suma, o pricecap adota a seguinte forma geral: Reajuste = IP - X Onde IP é um índice de inflação geral e X é o fator de produtividade. A proposta em estudo na ANS é de se utilizar um modelo do tipo “Value-Cap” R = Is – X + Y, onde R =índice de reajuste dos planos Is = Índice setorial de variação de custos (preços e quantidades) X = fator de produtividade/eficiência Y = fatores exógenos (novo rol, epidemias, pandemias, etc.) Importante ressaltar que o modelo price-cap preconiza o ajustamento da base de remuneração do capital investido a cada revisão tarifária que ocorre ao final do ciclo regulatório, geralmente de quatro em quatro anos. Esse é um conceito similar ao da revisão técnica, a qual, embora prevista na legislação do setor de saúde suplementar, não está sendo utilizada pela ANS. 3. O Fator X: como medir eficiência em operadoras de saúde? A busca por métricas para mensuração de eficiência é uma tendência inexorável do nosso setor. Algumas observações quanto à mensuração da eficiência de planos de saúde merecem ser consideradas, tendo em vista tratarse de um setor bastante peculiar no que tange à definição de seu produto. Abordaremos brevemente algumas dessas questões. 145 Inicialmente, observamos que não há unanimidade teórica nem empírica quanto à fórmula de cálculo do fator X. Na realidade, depende do tipo de serviço que está sendo oferecido e regulado. Uma revisão da literatura revela que existem basicamente duas formas de cálculo: a) uma retrospectiva, baseada no cômputo da produtividade total dos fatores de produção (PTF) e/ou de índices de eficiência técnica (IET) e; b) uma prospectiva, baseada no cálculo do fluxo de caixa descontado (FCD). No Brasil, a Agência Nacional de Telecomunicações utiliza o método da PTF para mensurar o fator X. Já a Agência Nacional de Energia Elétrica utiliza o método de fluxo de caixa descontado, enquanto a Anvisa, por sua vez, utiliza um modelo alternativo no qual a Secretaria de Direito Econômico (SDE) calcula, por meio de regressão econométrica, a produtividade setorial em função do câmbio, juros e renda. Um passo anterior à formulação do indicador propriamente dito consiste na definição ou na intuição do que em economia é comumente denominado de “função de produção” de uma operadora de plano de saúde (OPS). Algumas perguntas devem ser respondidas antes de se avançar no método de cálculo da eficiência: qual o produto oferecido por uma operadora? Será o financiamento dos serviços executados? Será a gestão de risco assistencial? Ou será a produção de saúde? Serão todos eles? Algum prevalecerá? Até que ponto as operadoras tem controle sobre as ações dos médicos? Dada a penetração do setor de operadoras nos segmentos prestadores, a ANS entendeu que responsabilização das operadoras pela gestão da assistência era parte fundamental da política regulatória, o que não necessariamente significa que as operadoras controlem de forma efetiva os seus custos assistenciais. A compreensão exata do que é uma OPS é o passo inicial para que se possa medir a eficiência produtiva a partir do estabelecimento de uma relação PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 3.1 Qual o produto de uma operadora de plano de saúde? PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 146 clara e quantificável entre os insumos utilizados na produção e os produtos finais gerados. Evidentemente, outras medidas de eficiência também podem ser construídas para efeito de incorporação no modelo price-cap. Pode-se, por exemplo, sob o ponto de vista do prestador, entender que a eficiência da operadora é efetuar pagamentos rápidos. Para outro prestador, pode ser que eficiência seja o acolhimento de suas demandas. Cada player desse mercado tem uma percepção diferente do que é eficiência, incluindo as próprias operadoras e os consumidores. Seria um equívoco introduzir no modelo de reajuste price-cap conceitos particulares de eficiência tal como o Índice de Desempenho da Saúde Suplementar, calculado e divulgado pelo próprio órgão regulador. Isso porque, qualquer desses indicadores ad hoc estarão sendo utilizados fora de um contexto de minimização de custos e/ou maximização do produto, os quais são os referenciais relevantes para a eficiência econômica que a literatura sugere. 3.2 Uma vez definido o produto, como calcular eficiência técnica? Alguns poucos trabalhos buscaram calcular índices de eficiência econômica em planos de saúde utilizando metodologias de programação matemática e/ou abordagens econométricas. Embora tais técnicas tenham ampla circulação no meio acadêmico e sejam comumente utilizadas nos setores de seguros, por exemplo, existe pouca literatura a respeito disponível em saúde suplementar. Superada a dificuldade de definição do produto em saúde suplementar, há que se considerar que ele não é um produto homogêneo. Mais do que isso, o serviço não é um fim em si mesmo e a finalidade última deve ser a de indenizar o segurado e/ou melhorar o estado de saúde do beneficiário. Outras perguntas surgem naturalmente: Como medir a contribuição da organização (valor adicionado) na melhora da saúde? Como estabelecer controles para qualidade, para o ambiente e para os fatores de riscos dos indivíduos? Na prática, diversas são as medidas de eficiência utilizadas. Por exemplo, em estudos comparando eficiência do gasto em saúde entre países, geralmente se adota, como medidas de produtos, indicadores como a expectativa de vida ao nascer, a taxa de mortalidade, taxa de mortalidade infantil, dentre outros, e utilizam-se como insumos gastos em saúde, em saneamento etc. 147 Nos estudos hospitalares utilizam-se como medidas de produto o número de internações ou de visitas médicas, dentre outros, e como medidas de insumos o número de médicos, enfermeiros, equipamentos etc. Assim é possível estabelecer-se a fronteira de eficiência do mercado e, a partir dela, os índices de eficiência relativa para cada um dos hospitais. Qualquer medida proposta para plano de saúde deve primeiramente esclarecer o conceito da função de produção. Evidentemente, tal definição estimula a controvérsia em torno do que de fato é um plano de saúde e o que ele deveria ser. Importante ressaltar que uma medida de eficiência técnica é sempre uma medida de eficiência relativa. Outros pontos importantes também devem ser contemplados: Uma operadora é eficiente em relação a quem? Aos seus pares? Seus concorrentes? Como estabelecer tal pareamento? Que critérios utilizar para agrupar operadoras pelo serviço prestado? Devemos separar as seguradoras e as operadoras que trabalham com rede credenciada das operadoras verticalizadas? Temos que ter um índice de verticalização para separar as empresas? Uma ideia bastante recorrente seria estabelecer mercados segmentados e então implementar os cálculos de forma separada. As seguradoras seriam comparadas entre si para efeito do índice de eficiência. Da mesma forma, as medicinas de grupo, as odontologias de grupo e assim por diante. Esse seria um critério, mas outros poderiam ser utilizados, por exemplo a regionalização. As empresas do sudeste seriam comparadas entre si, da mesma forma as empresas do nordeste e assim por diante. Sabemos que os custos crescem de forma diferente dependendo de diversos fatores, entre os quais: a) modalidade da operadora e seu modelo de negócio; b) região geográfica; c) das características específicas dos produtos, tais como abrangência, rede, coberturas, níveis de reembolso e etc. Se incorporarmos tais critérios de análise para efeito de reajuste de preços, precisaríamos trabalhar com um modelo multidimensional, com um custo regulatório muito elevado para o controle de todas as informações, correndo ainda o risco de ignorar outros fatores relevantes. No limite, transformaríamos um modelo potencialmente estimulador de eficiências em um processo infindável de desdobramentos burocráticos. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Dessa forma, é possível fazerem-se comparações entre níveis de eficiência dos países. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 148 Tal preocupação tem sua razão de ser. É possível que os reajustes dos planos individuais nos últimos anos tenham prejudicado algumas operadoras e beneficiado outras. As prejudicadas certamente apresentaram uma evolução de custos superando o reajuste autorizado, o contrário ocorrendo com as beneficiadas. A incorporação tecnológica, geralmente tida como principal motor da evolução dos custos, afeta todos os segmentos de prestadores de serviço, desde hospitais até consultórios, mas de forma desigual. Adicionalmente, há a percepção de que a incorporação tecnológica ocorre apenas nos hospitais de ponta, quando na verdade impacta também os demais hospitais, mesmo que em momento posterior. Isso sugere a existência de uma função de produção instável, na qual a incorporação tecnológica não é definida pelas operadoras, nem integralmente pelo regulador. Logo, modelos muito padronizados podem não captar as distorções interoperadoras, interregiões. Ficção científica ou metodologia econômica? A utilização de técnicas econométricas para cálculo de eficiência ainda está longe do dia-a-dia do setor de saúde suplementar. Enquanto metodologia acadêmica, somente alguns poucos trabalhos valeram-se de tais técnicas para avaliar o desempenho do setor, daí a possível reticência quanto à sua aplicabilidade. Entretanto, têm ampla aplicação no mundo securitário para o ranqueamento de empresas, não mais se constituindo em novidade. Segundo Alves (2009ª), “Existem basicamente duas metodologias alternativas para se estimar a fronteira eficiente de determinada indústria, o método econométrico e o método da pesquisa operacional. A abordagem econométrica requer a especificação das funções de produção, receita ou lucro assim como o termo de erro aleatório, demandando maior investimento na especificação das formas funcionais enquanto a pesquisa operacional é resolvida mediante a programação matemática não paramétrica que desconsidera as formas funcionais, mas não separa os erros aleatórios da ineficiência, por exemplo. Ambas as técnicas possuem vantagens e desvantagens, mas não está clara na literatura a dominância de uma sobre a outra. O formato da fronteira eficiente é obtido diretamente dos dados através de uma simples constatação de que a empresa que utiliza menos insumo para produzir a mesma unidade de produto é mais eficiente.” 149 Portanto, a partir da mensuração das relações entre a eficiência de cada operadora em transformar insumos em produtos, genericamente apresentado na figura a seguir, o que se busca é ranquear essas empresas segundo a distância entre cada uma delas e a fronteira de eficiência. Modelo de produção da OPS Fonte: Elaboração dos autores. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Ainda segundo o autor, “Aquelas observações com maiores taxas insumo-produto são consideradas eficientes e a fronteira de eficiência é construída unindo essas observações no espaço insumo-produto mediante segmentos de reta lineares. Há que se destacar que a fronteira é baseada nas melhores práticas sendo, portanto, uma aproximação do valor verdadeiro, não observado, e as empresas consideradas ineficientes são “envelopadas” pela fronteira eficiente. Dependendo da hipótese sobre causas das diferenças de desempenho das unidades produtivas, a fronteira a ser estimada pode ser classificada como “determinística” ou “estocástica”. O modelo é chamado determinístico quando as diferenças de desempenho das firmas em relação à fronteira são atribuídas inteiramente à ineficiência técnica. Além dos possíveis erros de medida característicos de implementação empírica de modelos relacionando insumos a produto, existem ainda duas outras fontes de variação da produção observada da firma em relação à fronteira: uma que se situa fora do controle da mesma, que são os choques exógenos, e outra que depende dela, classificável genericamente como “capacidade gerencial”. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 150 No Brasil, raros estudos foram realizados para o caso da saúde suplementar. Os trabalhos de Alves (2009ª) e Alves (2009b), por exemplo, implementaram a técnica de cálculo de eficiência para as operadoras de planos de saúde segundo diferentes definições para os produtos e insumos, embora o objetivo não fosse a formulação de um modelo price-cap. Longe de ser ficção científica, estudos dessa natureza são amplamente utilizados no âmbito acadêmico e regulatório, tanto no Brasil como no exterior. Conclusão A discussão sobre eficiência técnica ganha novos contornos com a intenção da ANS em balizar o reajuste dos preços dos planos individuais novos por um modelo do tipo price-cap, valendo-se de parâmetros de eficiência, o famoso fator X. Não resta dúvida que o melhor estímulo à eficiência advém da competição. No entanto, os defensores da regulação argumentam que, na presença de falhas de mercado, a regulação pode — ressalte-se que este não é o entendimento do autor — buscar mimetizar o comportamento de um mercado competitivo introduzindo regras específicas. Um second-best, nesse sentido, poderia advir caso a eficiência seja introduzida na função objetivo das operadoras. Caso o modelo de price-cap venha a ser adotado no futuro próximo para o reajuste dos preços, é importante que se tenha a correta dimensão do fator X de eficiência, suas possibilidades conceituais e empíricas, para que não se banalize o conceito ou, pior, se introduzam indicadores fora do contexto (ad hoc) prevendo-se atingir um objetivo regulatório qualquer. Se o fator X for definido de forma equivocada, cabe o alerta, o resultado poderá ser ruim para a eficiência do setor como um todo, além das próprias operadoras. Daí a ideia de compartilhar um pouco da discussão, ainda em um tom conceitual, para atingir tanto o público especializado na mensuração econométrica de medidas de eficiência, quanto o público especialista na saúde suplementar, na expectativa que dessa interação surja um debate profícuo para a definição do tema. 151 ALVES, Sandro Leal. Regulação, eficiência produtiva e qualidade das operadoras de planos de saúde: uma análise das fronteiras eficientes. In: IV Prêmio de Monografias em Defesa da Concorrência e Regulação Econômica, SEAE/ MF, 2009(a). __________ Eficiência das operadoras de planos de saúde. Revista Brasileira de Risco e Seguro, 4(8): 87-112, out. 2008/mar. 2009(b). COELLI, Timothy et al. An introduction to efficiency and productivity analysis, Springer, 2 ed. 2005. JACOBS, R.; smith, P.; STREET, A. Measuring efficiency in health care – analytic techniques and health policy. Cambridge Ed. 2006. SMITH, P. et al. (eds.) Performance measurement for health system improvement: experiences, challenges and prospects. Cambridge Ed. 2009. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 152 153 Roberto Cury - Médico, gestor do Instituto de Conhecimento, Ensino e Pesquisa do Hospital Samaritano de São Paulo. O sistema de saúde suplementar passou, nas últimas duas décadas, por fatos importantes que promoveram mudanças, particularmente no setor de operadoras de planos de saúde. Um deles ocorreu em 1994 com a implantação do Plano Real, que ao promover a estabilidade econômica e o controle do processo inflacionário, obrigou as operadoras, habituadas a auferir grandes lucros no mercado financeiro, pois vendiam planos com carências longas e pagavam sua rede prestadora de serviços com noventa a cento e vinte dias após o serviço ser prestado, a preocupar-se com a gestão do negócio “plano de saúde”. Outro fato marcante foi a aprovação da Lei 9.656 em 1998, regulamentando um setor no qual as regras eram ditadas pelas próprias operadoras. Esses dois fatos, pela extrema relevância que representaram para o segmento de saúde suplementar, seriam mais do que suficientes para mudar o viés exclusivamente financeiro adotado pelas operadoras no seu modelo de gestão. Infelizmente, isso nunca ocorreu, e esse fato é sem dúvida nenhuma a causa mais importante da crescente elevação de custos do sistema. Hoje a saúde suplementar conta com mais de 43 milhões de beneficiários, aproximadamente 80% dos quais encontram-se vinculados a planos coletivos. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 COMO OTIMIZAR E PROMOVER MELHORES RESULTADOS PARA O SISTEMA SUPLEMENTAR DE SAÚDE PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 154 Saúde sempre foi o benefício mais importante oferecido pelas empresas a seus funcionários e familiares, representando um impacto médio de 10% no custo de suas folhas de pagamento. Pesquisas realizadas junto ao setor empresarial mostram que cerca de 50% das empresas têm na elevação dos custos do plano de saúde sua principal preocupação, buscando como alternativa a troca de operadora e/ou a mudança do plano por outro de menor valor como solução para o problema. Outro caminho tem sido a participação cada vez maior do colaborador no financiamento do benefício. Atualmente é impossível para qualquer empresa não oferecer o plano de saúde como benefício e, mais recentemente, com a nova legislação previdenciária que criou o Nexo Técnico Epidemiológico (NTEP) e o Fator Acidentário de Prevenção (FAP), essas empresas veem os custos com a saúde de seus colaboradores agravados de forma muito significativa. Somente o item SATSeguro Acidente de Trabalho, pode significar um agravo superior a 6% sobre a folha salarial, dependendo da classificação do risco da atividade empresarial. Tal cenário trás para o setor de recursos humanos um enorme desafio na gestão do benefício saúde nas suas organizações. A grande maioria das empresas, ao contratar o plano de saúde a ser disponibilizado aos seus colaboradores, acredita que terá nessa contratação a gestão da saúde de sua população, simplesmente por achar que está contratando empresa especializada em gestão de saúde. Lamentavelmente, essa não é a realidade, visto que o produto oferecido pelas operadoras é o mesmo, independente do ramo de atividade da empresa contratante, seja ela do setor bancário, têxtil, petrolífero ou automotivo. Na contratação, a empresa geralmente conta com a assessoria de uma consultoria especializada e/ou corretora de saúde que a orienta na escolha do melhor perfil de plano, no modelo de financiamento (coparticipação, franquias, mensalidade, etc.) e no segmento de atuação da operadora, se medicina de grupo, cooperativa médica ou seguradora especializada em saúde. Decorrido um ano da contratação, surgem os problemas na renovação do contrato, envolvendo a solicitação de aumento no valor do prêmio, invariavelmente por aumento da sinistralidade do plano. Nessa negociação, ou a empresa faz um aporte financeiro para cobrir o excedente da sinistralidade ou terá o valor do seu premio agravado. 155 mente à sua forma de financiamento e qualidade da rede credenciada, ou ainda a simples troca por outra operadora capaz de oferecer um plano que se enquadre no perfil de necessidade da empresa como forma de compatibilizar o custo do benefício saúde no seu orçamento. Tais mudanças são cada vez mais frequentes, pois os custos crescentes afetam a competitividade das empresas contratantes, as quais não veem alternativa que não a troca de plano ou a troca de operadora. Face ao modelo de gestão exclusivamente financeiro adotado pelas operadoras, os custos do sistema tendem a ser controlados por meio do poder de compra das operadoras dos serviços contratados junto à rede credenciada, e/ou do modelo de prestação de serviços, como no caso das medicinas de grupo e cooperativas médicas com seus modelos verticalizados. Fazendo uma retrospectiva das técnicas de gestão até então implementadas pelas operadoras, desde a criação da auditoria médica, autorização prévia, implantação de centrais de regulação, co-participação nos eventos, gerenciamento de doentes crônicos, home-care, vemos que elas terminam não produzindo os efeitos esperados, simplesmente por atuarem após o usuário ter-se utilizado do sistema, ou seja, ter feito a consulta, a porta de entrada do sistema. Sabemos que uma consulta gera, em media, 3,8 exames complementares. Se os exames forem de baixo custo, o beneficiário dirige-se diretamente ao prestador de serviços para realizar os exames. Até então o processo acontece sem o conhecimento da operadora, a qual somente identificará a utilização ao receber a cobrança do prestador, salvo se o exame solicitado for de alto custo (tomografia, ressonância magnética, etc.), para o qual o beneficiário ou o prestador terá que solicitar autorização à operadora. Lembramos que, de acordo com a Lei 9.656, a operadora não pode negar ao beneficiário o direito de realização dos exames solicitados. Mais relevante é o motivo pelo qual se decidiu pela implantação de tais técnicas gerenciais: redução de custos, ou seja, motivo FINANCEIRO. Como o modelo de gestão até então adotado segue a lógica exclusivamente financeira, sem se preocupar com a gestão da SAÚDE, é mais do que compreensível que na prática tais técnicas não funcionem. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Outro caminho comumente trilhado é o redesenho do plano relativa- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 156 E por que é tão difícil para as operadoras mudar o modelo de gestão financeira para gestão de saúde? Em primeiro lugar, porque as operadoras conseguem repassar os aumentos de custos para as empresas contratantes, compensando inclusive os aumentos mais baixos concedidos pela ANS para os planos individuais. O gráfico a seguir mostra a variação das receitas e despesas das operadoras e deixa muito clara essa condição: Gráfico 1 - Receita de contraprestações e despesa assistencial das operadoras médico-hospitalares (Brasil 2003-2010) Fonte: Pesquisa UNIDAS 2010. Tal resultado só é possível face ao contrato utilizado pelas operadoras de saúde junto a seus contratantes, prevendo dois tipos de reajustes em sua cláusula específica: o reajuste financeiro e o reajuste por sinistralidade. Esse modelo de contratação protege a operadora, deixando o risco por conta da empresa contratante. Chama a atenção o fato de empresas habituadas a contratar outros tipos de serviços especializados junto a grandes prestadores, e a exigir cláusulas de desempenho (SLA - Service Level Agreement) em seus contratos, como forma de garantia do nível de serviço a ser prestado, 157 deveriam adotar o mesmo critério, visto estarem contratando uma operadora especializada em saúde e, portanto, em tese responsável pela gestão da saúde da população coberta pela apólice. No caso, a cláusula de sinistralidade, (em geral 75%, valor acima do qual o contratante é penalizado), deveria ser substituída por uma cláusula de desempenho, visto estar a empresa contratando uma operadora especializada em saúde para assumir a responsabilidade de gestão da saúde dos seus beneficiários, com objetivo de manter a sinistralidade abaixo do valor acordado para o perfil daquela população. Essa é a única maneira de se promover uma mudança efetiva no modelo de gestão das operadoras especializadas em saúde, pois no atual modelo de contratação e de gestão o risco será sempre do contratante. Outro fator apontado como causa de aumento dos custos do sistema é o modelo de remuneração comumente praticado, privilegiando a doença em detrimento da saúde, o pagamento por serviços conhecido como “fee for service”, modelo sabidamente inflacionário. A Agência Nacional de Saúde Suplementar colocou como uma de suas prioridades a mudança desse modelo de remuneração; convocou todos os players para discutir o tema e chegar a um consenso sobre um novo modelo a ser utilizado. A chamada remuneração por desempenho passou a ser o foco dessas discussões. Sem entrar no mérito dos vários modelos de remuneração praticados, entendemos que a mudança pura e simples de modelo em nada irá alterar as relações entre operadoras e prestadores de serviços, visto que as operadoras sempre compraram os serviços negociando apenas o preço, sem se preocupar com a qualidade e o desempenho de seus prestadores. Além do mais, o setor de saúde como um todo não tem a cultura de trabalhar com dados e informações, e aqueles poucos que o fazem, não costumam compartilhar seu conhecimento. Na verdade o grande desafio para o sistema de saúde suplementar está na mudança do modelo de gestão utilizado pelas operadoras, pois o atual PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 não fazerem o mesmo na contratação de planos de saúde. Tais empresas PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 158 não agrega nenhum valor para as empresas — financiadores do sistema — nem para a população de beneficiários. A Agência Nacional de Saúde Suplementar, por meio da implantação do Programa de Qualificação das Operadoras tenta, sem sucesso, induzir as operadoras a adotar o modelo de gestão de saúde. Segundo Porter, o objetivo certo para a assistência à saúde é aumentar o valor para os pacientes, ou seja, a qualidade dos resultados para o paciente em relação aos gastos efetuados. Minimizar custos é simplesmente o objetivo errado e levará a resultados contraproducentes. Na prática esse é o cenário a que temos assistido há décadas. Para as empresas, é estratégica a integração da gestão do benefício assistencial (plano de saúde) com a saúde ocupacional e, para tanto, a gestão das informações passa a ser fundamental. Infelizmente nenhuma operadora está preparada para oferecer esse serviço de maneira integrada, pois nunca tiveram a SAÚDE como foco de seu negócio. A única forma de agregarmos qualidade e valor ao sistema de saúde está no compromisso, a ser assumido por todos, de participar de sistemas de coleta de dados e informações, a serem compartilhados pela sociedade como um todo, gerando dessa maneira uma forma quase compulsória de melhoria de qualidade e desempenho de todos os agentes do sistema. Outro desafio está em prover educação e promoção de saúde aos usuários do sistema, pois está comprovado que, se disponibilizarmos o acesso a informações sobre saúde e autocuidados, além dos aspectos educacionais, estaremos orientando na utilização correta e responsável do sistema, com a redução de eventos desnecessários, com impactos positivos nos indicadores de sistema de saúde e a consequente redução de gastos e melhoria de qualidade de vida dos beneficiários. Mudanças são urgentes e necessárias e só dependem da vontade das pessoas. 159 Maria Stella Gregori - Advogada, mestre em direito das relações sociais pela PUC-SP. Professora assistente mestre de direito do consumidor e direitos humanos da PUC-SP. Ex-diretora da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. O presente artigo tem por escopo comentar, sucintamente, os aspectos que merecem ser repensados e inovados do setor de saúde suplementar no que tange à proteção do consumidor, no sentido de aprimorar o marco regulatório diante dessa nova década que se inicia. Para tanto, revisita-se o tema, mais de dez anos após a edição da Lei nº 9.656, de 03 de junho de 1998, e a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. Cabe, inicialmente, comentar que nossa Constituição Cidadã, promulgada em 05 de outubro de 1988, tanto no campo da proteção do consumidor como no da saúde, foi bastante moderna e arrojada, de largo alcance social. Em relação à proteção ao consumidor, reconhecida como garantia de ordem constitucional, a Constituição de 1988 elevou-a ao patamar dos direitos e garantias fundamentais, impondo-a como dever do Estado e estabelecendoa como princípio informador da ordem econômica. Determinou também, a elaboração do Código de Defesa do Consumidor. No campo da saúde, observa-se o hibridismo que caracteriza o sistema brasileiro, por ser marcante a interação entre os serviços públicos e a oferta privada na conformação da prestação de serviços de assistência à saúde, PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 A SAÚDE SUPLEMENTAR À LUZ DA PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NO BRASIL PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 160 dando origem a dois subsistemas. De um lado, está o subsistema público, que incorpora a rede própria e a conveniada/contratada ao Sistema Único de Saúde – SUS, por meio das Leis nºs 8.080 e 8.142, de 1990 e, de outro, está o subsistema privado que agrupa a rede privada de serviços de assistência à saúde. Este, também, chamado supletivo ou suplementar, engloba a prestação direta dos serviços por profissionais e estabelecimentos de saúde ou pela intermediação dos serviços, mediante a cobertura dos riscos da assistência à saúde pelas operadoras de planos de assistência à saúde. O setor suplementar de saúde, no que tange especificamente à proteção do consumidor, é regido pelo Código de Defesa do Consumidor, normativo com raiz constitucional, geral e princípio lógico, que regula todas as relações jurídicas de consumo. Entretanto, oito anos após a sua vigência é editada a Lei nº 9.656, de 05 de junho de 1998, alterada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 24 de agosto de 200113, que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde, os chamados planos de saúde, incluindo, também, nessa terminologia, os seguros-saúde. Portanto, dá-se a entrada do marco regulatório do sistema de saúde privado. Antes, a normatização desse setor só existia para o seguro-saúde14 e, mesmo assim, apenas nos aspectos econômico-financeiros dessa atividade. A Lei nº 9.656/98 impõe uma disciplina específica para as relações de consumo na saúde suplementar, além de estabelecer normas de controle de ingresso e permanência e saída das operadoras nesse mercado, estabelecer normas relativas à solvência e liquidez dessas operadoras, a fim de preservar sua sustentabilidade e transparência. A assistência à saúde disciplinada pela referida lei, compreende todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde. Para tanto, restou garantida a cobertura assistencial de todos os diagnósticos previstos na Classificação Internacional de Doenças – CID, a partir de uma relação de procedimentos fixada pela ANS, de acordo com a segmentação do plano adotada, isto é, ambulatorial, hospitalar, odontológica e suas combinações. 13 Aguarda-se, até hoje, deliberação do Congresso Nacional. 14 Decreto Lei 73/66 e Resoluções do Conselho Nacional de Seguros Privados 161 Nesse diapasão, no âmbito da proteção do consumidor, a nova ordem instaurada pela Lei 9.656/98 e sua regulamentação trouxe reconhecidos avanços, entre os principais destacam-se: a padronização dos planos oferecidos no mercado; a transparência dos contratos; a eliminação das antigas exclusões e limitações de cobertura a procedimentos médicos, hospitalares e odontológicos; o controle governamental dos reajustes de preço dos planos de saúde individuais; a delimitação dos prazos de carência; a vedação da discriminação de consumidores, o controle do descredenciamento da rede hospitalar; cobertura obrigatória de materiais e medicamentos durante o período de internação; cobertura de próteses e órteses quando ligadas ao ato cirúrgico; proibição de recontagem de carência; inscrição do recém-nascido sem o cumprimento de carência em planos com cobertura obstétrica; inscrição do filho adotivo com aproveitamento de carências; garantia de permanência no plano coletivo após a aposentadoria/demissão imotivada; o compromisso da rede prestadora com a qualidade da assistência; a implementação do instrumento da portabilidade de carências; a criação do programa de qualificação da saúde suplementar; a definição de prazos máximos para a realização de consultas e procedimentos; as regras institucionais e econômico-financeiras estabelecidas para as operadoras. No entanto, ainda verificam-se alguns aspectos pontuais da Lei 9.656/98 e de sua regulamentação que merecem ser repensados, a fim de compatibilizá-los com os princípios que norteiam os comandos do Código de Defesa do Consumidor. Tais como: a possibilidade de rescisão do contrato pela operadora por inadimplência do consumidor, assim como de suspensão ou rescisão durante a internação do dependente; a ausência de obrigatoriedade de entrega das condições gerais do contrato para os consumidores de planos coletivos15; o controle do redimensionamento da rede assistencial restrito 15 A regulamentação, por meio da RN 195, de 14.07.09 instituiu a obrigatoriedade da entrega aos PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 As normas ditadas para a saúde suplementar, ao regular um mercado de consumo delimitado e normatizar a matéria de forma minudenciada, devem obedecer aos ditames do Código de Defesa do Consumidor, sendo, portanto hierarquicamente superior à Lei 9.656/98, que regula as especificidades dos planos de saúde que, por sua vez, é posterior e especial. Isto quer dizer que, os consumidores de planos de saúde têm o direito a ver reconhecidos todos os seus direitos e princípios assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor, tanto na legislação especial, quanto na esfera da regulamentação administrativa. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 162 a entidades hospitalares; a limitação da cobertura de transplantes de córnea, rim e de medula óssea; a limitação da duração dos tratamentos em regime de urgência e emergência e os relativos a transtornos psiquiátricos; a alteração unilateral do contrato por revisão técnica, a limitação de elegibilidade para portabilidade de carências aos planos individuais/familiares16. Muitos conflitos, ainda alvo de reclamações nos órgãos de defesa do consumidor e no Poder Judiciário, referem-se a essas incompatibilidades apontadas pelo marco regulatório, em face do Código de Defesa do Consumidor. Nesse sentido, é inegável a necessidade de diálogo entre a Lei 9.656/98 e o Código de Defesa do Consumidor. Esse debate deve passar tanto pelo Congresso Nacional, como pela ANS, no intuito de aperfeiçoar o sistema, inclusive convertendo-se em lei a Medida Provisória vigente, para justamente alcançar a segurança jurídica. É importante, também, frisar a necessidade da participação da sociedade nas discussões, para que não haja retrocessos prejudiciais aos interessados, especialmente, ao consumidor, concernentes a restrições a direitos já garantidos pela lei originária. Tem-se conhecimento, por meio do site da ANS17, que todos os atores representativos do setor estão participando de várias discussões de temas pertinentes à proteção do consumidor, através de Câmaras Técnicas, Consultas Públicas etc., sendo interessante destacar: o aperfeiçoamento das regras referentes ao aposentado e demitido sem justa causa nos planos coletivos empresariais e a ampliação da portabilidade de carências; a acreditação de operadoras; a incorporação tecnológica; os protocolos e diretrizes clínicas pelos prestadores de serviços de saúde. Portanto, com a ampliação do debate da regulação do mercado de saúde suplementar, espera-se que os pontos positivos sejam reforçados e os negativos, reavaliados. Além desses aspectos comentados, que necessitam de ajustes ou de implementação, alguns pontos, no que tange à proteção do consumidor, merecem reflexão, para se inserirem na pauta de discussão desse setor, o quanto antes. consumidores de planos individuais ou coletivos o Manual de Orientação para a Contratação de Planos de Saúde – MPS e o Guia de Leitura Contratual – GLC, com informações relativas: prazo de carência; vigência contratual; critérios de reajuste; segmentação assistencial e abrangência geográfica. 16 Segundo comentários: GREGORI. Maria Stella. Planos de Saúde: a ótica da proteção do consumidor. 2ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.178 – p.188. 16 www.ans.gov.br 163 O Brasil, mesmo ainda sendo um país muito desigual em questões econômicas e sociais, atualmente, está em rota acelerada de desenvolvimento. Situa-se entre os países mais importantes do planeta, tem apresentado grande crescimento econômico, redução dos índices de desemprego e das diferenças entre classes sociais. Esse aumento da renda do cidadão tem levado ao aumento do consumo de bens e serviços. Como nos países mais desenvolvidos, o Brasil já atravessou sua transição epidemiológica, isto é, as causas de mortalidade por doenças crônicodegenerativas superam as infecto-contagiosas, o que se reflete no aumento da expectativa de vida dos cidadãos e, como consequência, o envelhecimento da população. Tais fatores têm impacto quase que imediato nos custos relacionados à assistência a saúde, os quais, por sua vez, são altos, em especial em função da vertiginosa incorporação tecnológica, a qual, no caso peculiar do setor saúde, incrementa, ao invés de reduzir, os custos de produção. Segundo dados da ANS18, o mercado privado de saúde conta com cerca de 57 milhões de consumidores — ao passo que os 2/3 restantes da população brasileira são atendidos somente pelo SUS — e movimenta recursos em torno de sessenta bilhões de reais. Nesse sentido, pontos a serem considerados relacionam-se à responsabilidade social e ao desenvolvimento sustentável dos fornecedores do setor. No mundo pós-moderno, surge uma preocupação que vai além do Direito, e também transcende à produção dos bens e serviços disponíveis no mercado de consumo: o comportamento social dos fornecedores, como devem adaptar-se às solicitações dos novos tempos, isto é, como devem agir em relação aos problemas sociais e ambientais. Em uma palavra: o papel das 18 Fonte: Sistema de Informações de Beneficiários - ANS/MS - Jun/10, publicado em Set/10 PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Vale lembrar que, a partir do Século XXI, uma nova fase da sociedade de consumo, começa a surgir, tanto consumidores, como fornecedores mais conscientes e seletivos em relação aos seus direitos e deveres. O consumidor está mais exigente em relação aos seus direitos, pouco influenciável, infiel a marcas, mais responsável em relação ao meio ambiente e ao comportamento social das empresas, consciente com seus gastos. A adoção de novas tecnologias digitais, como internet e celular, viabilizou o surgimento de um consumidor digital, multicanal e global. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 164 organizações perante sua função social. A responsabilidade social dos fornecedores surge como uma necessidade de oferecer uma resposta à sociedade. A Responsabilidade Social Empresarial (RSE) aqui é entendida como a “forma de gestão que se define pela relação ética, transparente e solidária da empresa com todos os públicos com os quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais compatíveis com o desenvolvimento sustentável da sociedade, preservando recursos ambientais e culturais para gerações futuras, respeitando a diversidade e promovendo a redução das desigualdades sociais”19. Uma empresa socialmente responsável é aquela que respeita uma série de direitos fundamentais para a vida, as relações sociais e o equilíbrio ambiental. A responsabilidade social é uma postura ética permanente dos fornecedores no mercado de consumo, como também da sociedade, e deve ser a base de toda a atividade empresarial e de consumo. A ética diz respeito a valores internos do ser humano. Portanto, a responsabilidade social é uma via de mão dupla, pois é tanto papel do fornecedor como do consumidor fazer valer a ética, para se alcançar a cidadania plena, a qual, nesse novo mundo, deve ser planetária. Isso exige que todo cidadão tenha clareza de sua responsabilidade, que deve ser compartilhada e engajada entre todos os atores envolvidos: fornecedores, consumidores, governo e sociedade civil. Além do compromisso dos fornecedores com a responsabilidade social, são importantes também projetos de desenvolvimento sustentável. Significa dizer que é necessário conciliar o desenvolvimento econômico com as necessidades sociais e a preservação ambiental. O desenvolvimento sustentável, segundo o Relatório Brundtland20, de 1987, é aquele que “deve atender às necessidades e aspirações do presente sem comprometer a possibilidade de atendê-las no futuro. Prevê a superação da pobreza e o respeito aos limites ecológicos aliados ao aumento do crescimento econômico, como condições para se alcançar um padrão de sustentabilidade em nível mundial”. 19 Instituto Ethos de Empresa e Responsabilidade Social. Guia de elaboração do balanço social 2006. São Paulo: Margraf, 2006, p. 5. Disponível em http://www.uniethos.org.br: _Uniethos/documents/20060821/ guia_balanco_social_2006.pdf>. Acesso em 04.10.2010. 20 Brundtland Relatório, “Our Common Future”, “World Commission on Environmental and Development, Oxford University Press, 1987. 165 mo, produtos e serviços de baixo impacto ambiental, inovadores e promotores de inclusão social. Devem, também, atuar como gestores em saúde, pela via da promoção, prevenção e recuperação da saúde de seus consumidores. No entanto, os consumidores também devem cumprir o seu papel conscientemente, evitando produtos e serviços desnecessários ou que causem grandes impactos ambientais e sociais. E devem desenvolver a consciência sanitária para a prevenção de doenças e promoção da saúde, assumindo o gerenciamento de seu próprio bem-estar, não só pelo estilo de vida com qualidade e consumo consciente e equilibrado, como também acompanhando informações sobre resultados dessas ações. Vale remarcar que a sustentabilidade depende de uma mudança de percepções e comportamentos, de uma nova cultura, com referências sociais e ecologicamente viável. Nesse sentido, a responsabilidade a ser alcançada pelos fornecedores de serviços de assistência à saúde é proativa, na medida em que a responsabilidade social e o desenvolvimento sustentável devem ser traduzidos em ações efetivas de inclusão, melhoria da qualidade dos serviços disponibilizados, respeito à cidadania, tudo sempre em harmonia com o meio ambiente. Outro ponto a ser levado em conta é a importância de se promover maior interação entre os subsistemas privado e público de saúde, com vistas a se reduzir a ‘SUS dependência’ dos consumidores de planos de saúde. Nesse sentido é importante que a regulação avance no sentido de ampliar o rol de procedimentos editados pela ANS, para a cobertura de todas as doenças previstas no CID da OMS e, também, que as informações sejam transparentes e cruzadas para permitir um melhor planejamento das políticas públicas para o setor, e, com isso, garantir a melhoria da qualidade da assistência à saúde. No que se refere especificamente à regulação dos planos de saúde, a ANS poderia incentivar o debate para os seguintes temas: i) criar mecanismos de incentivo ao oferecimento de planos individuais, pois hoje a maioria dos planos de saúde é coletivo; ii) estimular o mercado à adaptação dos contratos antigos à Lei nº 9.656/98, hoje ainda em torno de 20%; iii) regular plano de assistência farmacêutica, como opção ao consumidor, mas de oferecimento facultativo por parte das operadoras. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Os fornecedores no setor saúde devem colocar, no mercado de consu- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 166 Passados mais de dez anos da edição de lei específica para normatizar os planos de assistência à saúde e da criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar, percebe-se que o mercado de saúde suplementar, no que tange à proteção do consumidor, está avançando lentamente e que as incompatibilidades apresentadas à luz do Código de Defesa do Consumidor, até o momento, não foram compatibilizadas aos seus princípios. Para que os desafios propostos sejam alcançados, torna-se imprescindível que esse debate se inicie imediatamente e seja protagonizado por todos os atores envolvidos, com foco especial no consumidor, justamente para a consolidação de um setor de saúde suplementar responsável, transparente, ético e justo, procurando alcançar o equilíbrio econômico e a efetiva dignidade da pessoa humana, como imperativo de justiça social para a atual e as futuras gerações. 167 BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar. http://www.ans.gov.br. GREGORI, Maria Stella. Planos de Saúde: a ótica do consumidor. São Paulo: 2ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: RT, 2010. MARQUES, Claudia Lima; LOPES, José Reinaldo Lima; PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos (coord.). Saúde e responsabilidade 2: a nova assistência privada à saúde. São Paulo: RT, 2008. WORLD COMISSIONON ON ENVIRONMENT AND DEVELOPMENT. Relatório Bruntland: Our Common Future, Oxford University Press, 1987. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Referências bibliográficas PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 168 169 Élida Graziane Pinto - Professora doutora de direito administrativo da UFMG e especialista em políticas públicas e gestão governamental do estado de Minas Gerais. 1. Introdução Este breve estudo cuida de apontar, em linhas basilares, uma comparação necessária entre o estágio de progressividade constitucionalmente conquistada na política pública de educação e a instabilidade de financiamento na saúde. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 A INSTABILIDADE DO ARRANJO PROTETIVO DO DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: LIÇÕES DA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO E O IMPASSE QUANTO À REINSTITUIÇÃO DA CPMF PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 170 O objetivo central que o orienta, portanto, é o de tentar compreender se e como as diferenças de formato no arranjo constitucional dos direitos fundamentais à saúde e à educação poderiam ter, direta ou indiretamente, provocado, de um lado, uma espécie de guerra fiscal de despesa na federação e sua estagnação programática nas ações e serviços públicos em saúde, e produzido, de outro, uma rota de estabilidade relativa de financiamento e progressividade material nas ações de manutenção e desenvolvimento do ensino público. Busca-se, portanto, problematizar a estrutura e a própria força normativa de cada qual dos arranjos protetivos da saúde e da educação, para observar o grau de cumprimento, pelos três níveis da federação, dos valores constitucionais mínimos de gasto público nas políticas públicas que lhes correspondem (definidos, respectivamente, nos arts. 198, § 2º e 212). Para cumprir tal propósito, o estudo foi dividido em cinco capítulos, incluída esta introdução, sendo o segundo capítulo apontador de diretrizes teóricas estruturantes para o tema da efetividade dos direitos fundamentais. Já no terceiro capítulo cuidou-se detidamente da análise comparativa entre os arranjos constitucionais, para, no quarto capítulo, chegar-se a algumas linhas analíticas que apontam a progressividade da política pública de educação quando comparada com a estagnação programática da política pública de saúde, o que, de certo modo, decorre da sua instabilidade de financiamento. Por fim, no quinto capítulo, espera-se discutir os limites da proposta de reinstituição de uma contribuição social específica para o financiamento da saúde, nos mesmos moldes da extinta CPMF (Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira), sem revisitar os impasses anteriormente apontados. A hipótese que se espera confirmar é a de que a saída para o complexo problema do financiamento do SUS no Brasil no pós-Emenda Constitucional nº 29, de 2000, parece passar muito mais pela fixação de forma mais clara e consistente das regras federativas de distribuição dos custos da política pública de saúde, do que pela ampliação da carga tributária em favor apenas da União. 171 Duas importantes teses do constitucionalismo contemporâneo abrem este capítulo: princípios são normas e os direitos fundamentais, por seu turno, têm força normativa de princípios estruturantes do ordenamento constitucional. Mas por que é relevante abrir a tematização sobre princípios constitucionais, em um estudo sobre como se deu, no período de 1988 a 2010, a distribuição dos custos do dever de financiamento dos direitos fundamentais à saúde e à educação? Os direitos fundamentais, além de representarem limites jurídicos que vinculam negativamente a ação do Estado, são verdadeiras “diretivas positivas”, tal como bem assevera Canotilho (1994), razão pela qual indiscutivelmente ganharam a estatura de princípios no paradigma do Estado Democrático de Direito. Segundo essa linha de raciocínio, os princípios constitucionais operam como fundamento material que conforma a adequação constitucional de leis, atos administrativos e decisões judiciais. Os princípios não só significam a fronteira de até onde é possível chegar a ação estatal, como também imprimem sentido a toda essa caminhada. Vale colher a lição de Canotilho (1994), segundo a qual “a vinculação jurídicoconstitucional dos actos de direção política não é apenas uma vinculação através de limites, mas uma verdadeira vinculação material que exige um fundamento constitucional para esses mesmos actos.” São, pois, os princípios constitucionais que efetivam — contundentemente — a vinculação material a que se referiu Canotilho. A força normativa da Constituição advém da sua posição como norma fundamental que apresenta os princípios básicos da convivência política. Desse modo é que o clássico problema da razão de ser do Estado e a distribuição dos poderes, assim como a carta de direitos fundamentais são temas materialmente constitucionais, uma vez que é a Constituição que imprime sentido às ações do Poder Público, por meio da normatização de seu papel (no que se inclui a tutela de direitos fundamentais) e dos meios postos à sua disposição para que cumpra regularmente os seus deveres institucionais. Contemporaneamente, faz-se necessário não só assegurar a força PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 2. FUNDAMENTOS TEÓRICOS PRELIMINARES PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 172 normativa da Constituição como documento que fixa limites à ação estatal, mas principalmente como fundamento material que deveria orientar — positivamente — essa mesma ação. Retomando o foco do objeto deste estudo, tem-se que outro não foi o propósito das normas que inseriram na Constituição de 1988 patamares mínimos de gasto público nas ações e serviços públicos de saúde – ASPS e nas ações de manutenção e desenvolvimento do ensino, senão o de orientar a ação positiva do Estado brasileiro (em qualquer dos três níveis da federação). Mais do que mera orientação, contudo, os arranjos normativos que estabelecem o grau de aquisição normativa na garantia dos direitos fundamentais à saúde e à educação são, em extensão e profundidade, a própria face objetiva21 de tais direitos. E, como tal, serão objeto de tratamento pormenorizado ao longo dos diversos tópicos deste capítulo. Todavia, antes de tal abordagem, é preciso deixar registrado o aviso de que não basta dizer que direitos fundamentais não podem ser preteridos (em seu estágio já adquirido). Esse posicionamento já assentado doutrinária e jurisprudencialmente, por si só, não dá conta da busca por novos e sistêmicos avanços, uma vez que é no desafio de consistentemente progredir que se dá o maior impasse no financiamento de tais direitos. Foi em prol da demanda por um movimento de evolução institucionalizada que alguns dispositivos constitucionais operaram um esforço de distribuição federativa dos custos das ações e serviços públicos em saúde (art. 198) e da manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 212). Porque não são passíveis de terem “solução” de uma única vez e de uma vez por todas, as políticas públicas de natureza prestacional (como o são saúde, educação, assistência social etc.) são tidas como de eficácia constitucional progressiva. Ou seja, elas devem ser empreendidas em um processo de satisfação/emancipação progressiva dos cidadãos, já que, de início, deve-se garantir a subsistência em caráter primordial e sucessivamente (o que não significa dizer cronologicamente) vão sendo promovidas, entre outras, políticas de inclusão cultural, desportiva e laborativa, por exemplo. 21 Trata-se de uma das várias possíveis decorrências do que Ingo Sarlet (2009,p. 148) chama de “dever geral de efetivação atribuído ao Estado”. Ainda segundo o autor, os direitos fundamentais têm passado por um processo de valorização que lhes atribui, além da clássica percepção de direitos subjetivos de defesa, a “condição de normas de direito objetivo”, cujas múltiplas feições apontam para uma “autêntica mutação dos direitos fundamentais”, garantindo uma “liberdade efetiva para todos, e não apenas daqueles que garantiram para si sua independência social e o domínio de seu espaço de vida pessoal.” (2009, p. 151). 173 A ideia de vedação de retrocesso social22 inscreve-se como garantia de que os direitos sociais, econômicos e culturais — uma vez tenham sido assegurados constitucionalmente — não podem ser simplesmente suprimidos ou constrangidos pelo legislador (CANOTILHO, 1994). Nesse sentido, o mínimo de garantia estatal em saúde — contra o qual não pode haver medidas tendentes ao retrocesso — toma como ponto de partida, no Brasil pós-EC nº 29, de 13 de setembro de 2000, as vinculações orçamentárias estabelecidas no art. 198, não cabendo a qualquer dos entes da federação atentar contra esse estágio normativo de proteção. Em igual medida, o mínimo de garantia estatal em educação contemporaneamente toma como ponto de partida o arranjo constitucional desenhado no art. 212 e pelas Emendas Constitucionais nº 14, de 12 de setembro de 1996, nº 53, de 19 de dezembro de 2006, e nº 59, de 11 de novembro de 2009, de forma a configurar um contínuo processo de aquisição evolutiva. É nesse cenário que se mobilizam os fundamentos da (1) interpretação conforme a Constituição, (2) vedação de retrocesso social e (3) inadmissibilidade de restrições a direitos fundamentais que não guardem exata correlação de adequação, necessidade e proporcionalidade estrito senso (elementos da proporcionalidade lato sensu que apenas são inferíveis diante do caso concreto). A finalidade contida no dever de progressividade seria, em suma, a de assegurar a máxima eficácia das normas definidoras de direitos fundamentais. Ora, falar de direitos fundamentais no Brasil é falar da sua especial tutela no 22 Nas palavras de Canotilho, “o número essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado”. (1998, p. 449). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Isso ocorre porque a formulação e a execução de políticas públicas são deveres estatais inseridos na sistemática constitucional de condensação de direitos fundamentais. Assim, por mais que a tutela desses direitos passe por uma via complexa de fixação do “mínimo existencial” (garantidor do fundamento da dignidade da pessoa humana) e de respeito à ideia de “reserva do possível” — em meio às restrições orçamentárias e às prioridades governamentais fixadas intertemporalmente pelo Poder Público —, tais políticas públicas não podem simplesmente ser preteridas. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 174 texto constitucional vigente, mormente se se observar o disposto no art. 5º, §1º da Carta Magna que assegura “aplicabilidade imediata” a esses direitos. Vale contextualizar, contudo, que o caráter “imediato” da aplicabilidade dos direitos fundamentais (não apenas dos direitos sociais) é sempre referido à realidade social e econômica em que eles se inserem. A demanda pela maior eficácia possível dos direitos fundamentais — especialmente daqueles que demandam ação positiva do Estado, dentro das limitações orçamentárias e da definição parlamentar do que deva ser programa de trabalho dos diversos entes da federação — efetivamente deve ser realizada segundo uma hermenêutica constitucional que revisite as bases de fundamentação da Constituição em favor da dignidade da pessoa humana. Para tanto, impõe-se o esforço de questionar a clássica posição da Constituição de mera asseguradora de competências estatais e da separação de poderes para imprimir-lhe o que Clève (2003) chama de dogmática constitucional emancipatória. O autor em comento (2003, p. 18-19) cobra “radicalidade” na interpretação do Constituinte de 1988, vez que, em favor dos direitos sociais, foi inserido na Constituição dispositivo que contempla “esses direitos como verdadeiros direitos fundamentais” e que os introduziu “no título adequado. Não são, pois, meras normas-programa residentes em outro capítulo constitucional.” A radicalidade na defesa dos direitos à saúde e à educação impõe uma interpretação que dê a máxima eficácia aos comandos constitucionais que situam o estágio atual de sua proteção, sendo vedada qualquer tentativa de retrocesso. É em torno dos arranjos constitucionais que vedam retrocesso e fomentam uma consistente rota de progressividade na tutela estatal dos aludidos direitos fundamentais que se estrutura o presente estudo, sendo seus objetivos a delimitação das nuances normativas de cada qual (saúde e educação) e, na sequência, a comparação entre eles. Disso passa a cuidar o próximo capítulo. 175 Uma tese de constatação aparentemente óbvia, mas absolutamente crucial para o objeto deste estudo abre o presente capítulo: há uma maior estabilidade de financiamento da política pública de educação do que o estágio alcançado para a área da saúde. Diversos fatores econômicos, políticos e sociais poderiam ser arrolados para justificá-la, mas interessa, neste momento, dado o foco jurídico abordado no presente capítulo, considerar apenas as dimensões de ordem normativa. Assim, cumpre, desde logo, apontar que a comparação entre os arranjos constitucionais não se restringe apenas à análise dos arts. 198, § 3º e 212, razão pela qual a discussão é sobre o sistema de financiamento em toda a sua matriz de regras e princípios inscritos na Constituição. Foram eleitas, nesse sentido, as seguintes dimensões: 1 - Eficácia e aplicabilidade da norma constitucional — dimensão que questiona, embora se reconheça haver controvérsia conceitual23 sobre o tema, o grau de operacionalidade da norma por si mesma e, por conseguinte, a necessidade de complementação posterior, ou não, para fins de sua aplicação plena; 23 Em suma, três classificações são apresentadas doutrinariamente: 1) normas constitucionais operativas e programáticas, sendo as primeiras dotadas “de eficácia imediata ou, pelo menos, de eficácia não dependente de condições institucionais ou de fato”, enquanto as normas programáticas definiriam “objetivos cuja concretização depende de providências situadas fora ou além do texto constitucional.” (MENDES et al., 2008, p. 28, grifos do autor). 2) normas constitucionais auto-executáveis e não auto-executáveis, de modo que aquelas seriam “as disposições constitucionais bastantes em si, completas e suficientemente precisas na sua hipótese de incidência e na sua disposição, aquelas que ministram os meios pelos quais se possa exercer ou proteger o direito que conferem, ou cumprir o dever e desempenhar o encargo que elas impõem”, enquanto essas últimas seriam as “disposições constitucionais incompletas ou insuficientes, para cuja execução se faz indispensável a mediação do legislador, editando normas infraconstitucionais regulamentadoras.” (MENDES et al., 2008, p. 28, grifos do autor). 3) normas constitucionais de eficácia plena, contida e limitada: as primeiras, como o próprio nome indica, são aquelas que produziriam a plenitude dos seus efeitos, independentemente de complementação por norma infraconstitucional, razão pela qual teriam aplicação de maneira direta, imediata e integral. Já as normas constitucionais de eficácia contida seriam as que produzem a plenitude dos seus efeitos, mas que podem ter o seu alcance restringido por norma posterior. Também têm aplicabilidade direta, imediata e integral, mas o seu alcance pode vir a ser reduzido em razão da existência na própria norma de um fator de contenção do seu sentido. Por fim, as normas de eficácia limitada são incapazes de produzir todos os seus efeitos por si sós, uma vez que dependem de complementação integradora de norma infraconstitucional (lei integradora). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 3. DIFERENÇAS ENTRE OS ARRANJOS NORMATIVOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO E DO DIREITO À SAÚDE PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 176 2 - Estabilidade temporal e institucional — dimensão que permite analisar a longevidade temporal do dispositivo em face da sua institucionalização constitucional (se integra o texto permanente ou transitório da Constituição e se perpassa mais de um texto constitucional); 3 - Conjuntura da edição da norma constitucional e de suas posteriores alterações — trata-se de critério que, embora pressuponha fatores sociais, políticos e econômicos, dá indícios contextuais acerca das opções jurídicolegislativas na edição da norma constitucional (interpretação histórica); 4 - Conteúdo e alcance material da vinculação constitucional de gasto mínimo — dimensão que pretende testar se houve, no texto da Constituição, definição material exaustiva do que é gasto mínimo e de quais ações e serviços nele se incluem, ou não; 5 - Distribuição de competências e responsabilidades por cada ente da federação e entre eles — dimensão interessada em questionar: 5.1 - como o gasto mínimo foi determinado para cada ente federativo, 5.2 - a distribuição de competências e responsabilidades de custeio entre os três níveis da federação (o que cabe a cada ente e se a regra de vinculação é igual para todos os entes?), e 5.3 - se existe regra clara do papel integrador (ainda que supletivo ou complementar) da União, entendida por regra clara aqui a perspectiva de fixação objetiva de patamar de gasto federal, sem necessidade de ulterior regulamentação expedida pela própria União; 6 - Progressividade do arranjo constitucional — dimensão que cuida de observar, diante da leitura dos dispositivos constitucionais relativos a cada qual dos sistemas de financiamento de direitos fundamentais observados (saúde e educação), se o arranjo faz projeção de avanços fiscais e materiais para o futuro, com metas de ação diferidas no tempo. Os indicadores escolhidos de tal progressividade são: 6.1 - expansão da base quantitativa inicialmente conquistada de financiamento (mitigação da DRU, por exemplo), e 6.2 - inclusão de novos patamares qualitativos de ação governamental como garantia obrigatória da política pública. 177 Uma vez descrito o rol de dimensões que conduzirá o presente esforço comparativo entre os arranjos constitucionais de financiamento estatal dos direitos à educação e à saúde, passa-se à sua aplicação. No que diz respeito à eficácia das normas, o arranjo constitucional da educação dispõe claramente, no art. 212, o que cada ente deve gastar, sem condicionar tais percentuais à edição de qualquer norma posterior. Por outro lado, para fins de operacionalização exaustiva do cumprimento do art. 212, o art. 60 do ADCT foi alterado pelas Emendas Constitucionais nº 14, de 1996, e nº 53, de 2006, para definir os percentuais destinados prioritariamente à educação fundamental e à educação básica, respectivamente. As leis reclamadas pela Constituição no arranjo da política pública de educação devem cuidar de outros objetivos24, uma vez que o financiamento se tornou princípio sensível e seu regime jurídico já foi plenamente incorporado ao texto constitucional. 24 Vide os exemplos do art. 206, incisos V, VI e VIII e parágrafo único: “Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: V - valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei; [...] VIII - piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal. Parágrafo único. A lei disporá sobre as categorias de trabalhadores considerados profissionais da educação básica e sobre a fixação de prazo para a elaboração ou adequação de seus planos de carreira, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.” (grifos nossos) Além disso, vale o registro do art. 214 que trata do plano nacional da educação, o qual será definido em lei posterior, até porque o planejamento da educação não poderia ser incorporado ao texto constitucional, sob pena de enrijecimento da função planificadora e de excessiva constitucionalização da ação governamental, o que acabaria por amesquinhar o próprio texto constitucional. “Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a: I - erradicação do analfabetismo; II - universalização do atendimento escolar; III - melhoria da qualidade do ensino; IV - formação para o trabalho; V - promoção humanística, científica e tecnológica do País. VI - estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto.” PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 7 - Sanções pelo descumprimento — dimensão que visa apontar a força normativa do arranjo a partir das sanções decorrentes do inadimplemento parcial ou total do dever de aplicação dos mínimos constitucionais nas políticas públicas de educação e saúde. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 178 Diferentemente da força auto-executória, plenamente eficaz e operativa do sistema constitucional de financiamento mínimo das ações estatais de manutenção e desenvolvimento do ensino, a política pública de saúde claramente está condicionada e contida pela carência de lei complementar regulamentadora. Revela-se aqui como necessária, uma vez mais, a citação do § 3º do art. 198 da Constituição: § 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá: I - os percentuais de que trata o § 2º; II - os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais; III - as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal; IV - as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União. Em torno de tal regulamentação gira o efetivo e pleno funcionamento do sistema de gastos mínimos definidos no art. 198, § 2º, sendo meramente transitória, parcial e precária a norma definida no art. 77 do ADCT como complemento daquele dispositivo permanente. Nesse sentido, conclui-se ser o arranjo protetivo do financiamento mínimo das ações e serviços públicos de saúde dotado de normas apenas parcialmente auto-executórias, na medida em que a sua eficácia e aplicabilidade plenas estão condicionadas pela necessidade de lei regulamentadora posterior. Quanto às segunda e terceira dimensões ora observadas, pode-se dizer que o financiamento da educação é norma já estabilizada não só no texto permanente da Constituição de 1988, mas que remonta um processo evolutivo iniciado desde a Constituição Republicana de 1934 e que perpassou as Constituições de 1946 e 1967/1969, até chegar à atual Carta Constitucional vigente. 179 tituinte Originário que, na verdade, mostrou-se não só como legado das Constituições anteriores, mas também como aquisição evolutiva e institucional da política pública de educação. As ações governamentais de manutenção e desenvolvimento do ensino têm assegurado patamar mínimo de gasto público para sua consecução material e formal (vide as figuras dos Fundef e Fundeb) e já apontam, historicamente, para uma rota ainda mais inclusiva. A respeito da perspectiva de estabilidade temporal e institucional, bem como dos contextos históricos em que se deu a edição e as alterações do arranjo constitucional de financiamento da política pública de educação, deveras pertinente foi a análise do Ministro da Educação quando da promulgação da Emenda Constitucional nº 59, de 2009. Com a devida escusa ao leitor pela longa citação, faz-se o registro integral do artigo de opinião publicado em jornal de grande circulação nacional, por ser paradigmática a análise de Haddad (2009), no sentido de que houve um verdadeiro redesenho progressista do arranjo constitucional da política pública de educação: Educação e Constituição UMA BOA maneira de julgar a atuação de um governante numa área específica é avaliar as mudanças constitucionais avalizadas por sua base de sustentação, sem a qual é impossível aprovar uma emenda constitucional, com ou sem o apoio da oposição. O governo Lula aprovou, com o apoio da oposição, duas emendas constitucionais (nº 53 e nº 59) que alteraram significativamente oito dispositivos da maior relevância para a educação. 1) Obrigatoriedade do ensino dos quatro aos 17 anos. Nesse particular, nossa Constituição está entre as mais avançadas do mundo. Em editorial, esta Folha defendeu a seguinte tese: “Falta uma medida ousada, como estender a obrigatoriedade para todo o ensino básico, até a terceira série do nível médio”. Cinco meses depois, a emenda constitucional promulgada vai além, ao garantir a universalização da pré-escola, PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 O art. 212 da CR/1988, nesse sentido, é norma dada pelo Poder Cons- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 180 sem o que a obrigatoriedade do ensino médio se tornaria pouco factível. 2) Fim da DRU da educação. A Desvinculação de Receitas da União retirava do orçamento do MEC, desde 1995, cerca de R$ 10 bilhões ao ano. Depois da tentativa frustrada de enterrá-la por ocasião da prorrogação da CPMF, em 2007, o Congresso finalmente pôs fim à DRU, valendo-se dos últimos três orçamentos de responsabilidade do governo Lula. 3) Investimento público em educação como proporção do PIB. O atual Plano Nacional de Educação (PNE 2001-2010) previra a “elevação, na década, por meio de esforço conjunto da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, do percentual de gastos públicos em relação ao PIB, aplicados em educação, para atingir o mínimo de 7%”. O dispositivo foi vetado, em 2001, com o seguinte argumento: “Estabelecer, nos termos propostos, uma vinculação entre despesas públicas e PIB, a vigorar durante exercícios subsequentes, contraria o disposto na Lei de Responsabilidade Fiscal”. A saída para o próximo PNE foi aprovar norma de hierarquia superior. Com a emenda constitucional nº 59, torna-se obrigatório o “estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do PIB”. 4) Piso salarial nacional do magistério. O Pacto pela Educação, firmado em 1994 no Palácio do Planalto, previa a fixação de um piso salarial para todos os professores do país. Renegado, o compromisso, enfim, tornou-se realidade. Em 1º de janeiro de 2010, o piso deverá ser totalmente integralizado e observado por todos os Estados e municípios. 5) Fundeb. O Fundo da Educação Básica, que substituiu o Fundef, multiplicou por dez a complementação da União que visa equalizar o investimento por aluno no país, além de incluir as matrículas da educação infantil, do ensino médio e da educação de jovens e adultos, desconsideradas pelo fundo anterior, restrito ao ensino fundamental regular. 181 Os recursos do salário-educação, mais do que duplicados, antes destinados apenas ao ensino fundamental, podem, agora, financiar toda a educação básica, da creche ao ensino médio, e sua repartição passou a ser feita entre Estados e municípios pela matrícula, diretamente aos entes federados. 7) Ensino fundamental de nove anos. As crianças das camadas pobres iniciam agora o ciclo de alfabetização na mesma idade que os filhos da classe média, aos seis anos, garantindo-se o direito de aprender a ler e escrever a todos. 8) Extensão dos programas complementares de livro didático, alimentação, transporte e saúde escolar, antes restritos ao ensino fundamental, para toda a educação básica, da creche ao ensino médio. Pode soar inacreditável, mas, até 2005, os alunos do ensino médio público não faziam jus a nada disso. Mesmo que fosse possível deixar de lado as reformas infraconstitucionais no nível da educação básica, profissional e superior enfeixadas no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), a profundidade dessas mudanças estruturais já justificaria um governo. No tempo certo, as novas gerações se debruçarão, com o distanciamento devido, sobre um evento tão cheio de significado histórico quanto a presidência de Lula, suas semelhanças e colossais diferenças, e hão de notar o sentido progressista em que foi reescrito o capítulo consagrado à educação na nossa lei maior. A partir de tal artigo e sedimentando a análise das dimensões 2 e 3, podese concluir também, no que se refere à observação da dimensão 6, que houve significativas conquistas materiais e fiscais para a política pública de educação. Dito de outro modo, o arranjo constitucional de financiamento público da educação não só se estabilizou institucional e temporalmente, como isso permitiu que o setor passasse a incorporar de forma sistemática (por meio das PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 6) Repartição e abrangência do salário-educação. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 182 Emendas Constitucionais nº 14, de 1996, nº 53, de 2006, e nº 59, de 2009) uma rota consistente de progressividade na consecução da sua política pública. De outro lado, quando se cruzam essas mesmas dimensões (2, 3 e 6) na análise do arranjo constitucional relativo ao financiamento mínimo das ações e serviços públicos de saúde, percebe-se, contudo, que há uma situação de instabilidade financeira e relativa estagnação institucional e do seu estágio evolutivo. Como já visto, é inovação da Carta de 1988 a estatura institucional da saúde como direito fundamental de acesso universal e igualitário, a que corresponde um dever estatal de prestação mediante um sistema único financiado pelo Orçamento da Seguridade Social. Tal inovação rompe com uma larga trajetória25 de conferir direitos sociais quer em uma linha puramente assistencialista, quer em uma relação contratual e contributiva de seguro social (FLEURY, 2003). Nesse sentido, a estabilidade temporal e institucional do arranjo constitucional do direito à saúde ressente-se, em alguma medida, com a necessidade de sedimentar as profundas reformas instauradas nessa política pública pelo Constituinte de 1988. No texto permanente originário da Constituição, nenhuma disposição havia sido prevista para garantir a materialidade financeira das mudanças26 havidas em relação ao marco anterior, sendo que o financiamento do SUS só se tornou motivo de norma constitucional específica com a Emenda Constitucional nº 29, de 2000. 25 Segundo Piola et al. (2009, p. 102-103), “antes da criação do SUS, o sistema de saúde brasileiro poderia ser caracterizado como excludente, segmentado, com forte hegemonia privada na oferta e ênfase nas ações de recuperação da saúde. O sistema público era altamente centralizado no nível federal e caracterizava-se por marcadas segmentações institucional e de clientela, visto que o Ministério da Saúde (MS) e o então Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) tinham funções diferentes e atendiam a públicos distintos. A assistência médico-hospitalar aos trabalhadores vinculados ao mercado formal de trabalho ficava a cargo do MPAS e era financiada pelo sistema de Seguridade Social, para o qual contribuíam empregados, empregadores e o governo federal. Ao MS, às Secretarias Estaduais de Saúde (SES) e às Secretarias Municipais de Saúde (SMS) cabiam, basicamente, as ações típicas da saúde pública, tais como: o controle de doenças transmissíveis e as vigilâncias sanitária e epidemiológica. Parcela reduzida da população, que dispunha de recursos financeiros, pagava pelo serviço de saúde diretamente ao prestador do setor privado lucrativo, em consultórios, clínicas, laboratórios e hospitais particulares A população mais pobre e não vinculada a algum sistema de asseguramento dependia dos restritos serviços assistenciais (gratuitos) do MS, dos estados, dos municípios e das entidades filantrópicas; particularmente estas últimas que eram detentoras, até a década de 1970, de mais da metade dos leitos hospitalares existentes no país, e que gozavam de imunidade tributária para o cumprimento de sua função”. 26 Notadamente o acesso universal e igualitário e o Sistema Único de Saúde. 183 A política pública de saúde emergiu forte e ampliada do processo constituinte, tendo se desdobrado na Carta de 1988 em diversos dispositivos como verdadeira conquista dos movimentos sociais, notadamente o movimento sanitarista27. Quando comparada à política pública de educação, a institucionalidade normativa do direito à saúde parece ainda menina, quase adolescente. Mas, quando comparada às suas próprias origens, a política pública de saúde, em seu arranjo constitucional dado pela CR/1988, revela-se como produto maturado — embora inconcluso, como bem lembra Fleury (2003) — de um longo e construtivo processo de transformação social, com fundas raízes democratizantes. No que toca à dimensão 3, por outro lado, a inserção de dispositivos constitucionais relativos ao financiamento do direito à saúde não se deu em contexto histórico favorável28 à sua densificação jurídico-normativa. 27 De acordo com Piola et al. (2009, p. 107, grifo nosso), “O movimento sanitarista propunha a democratização das relações entre a sociedade e o sistema de saúde, como posição política aglutinadora. Pode-se afirmar, resumidamente, que o movimento sanitarista defendia quatro pontos doutrinários centrais que foram decisivos para a formulação dos artigos referentes à saúde na nova constituição: I) concepção de saúde como direito universal de cidadania; II) a compreensão da determinação da saúde e doença pelas relações econômicas e sociais prevalentes; III) a responsabilidade do Estado na garantia do direito e a necessidade de criar um sistema público unificado de saúde e de livre acesso a toda a população, superando a antiga dicotomia organizacional e de usuários que advinha da existência separada dos serviços de saúde pública e do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS); e IV) a participação e o controle direto, isto é, o controle social deste sistema unificado por representantes da população e das entidades civis da sociedade.” 28 Fleury (2003, p. 102-103), a esse respeito, leciona que “A legislação ordinária promulgada nos anos 90 visa a concretizar o processo de descentralização e cogestão das políticas sociais, em um contexto altamente desfavorável, com a prioridade governamental orientada para a estabilização da moeda, a redução do tamanho do estado e do gasto público e o fechamento das contas externas. Neste contexto observa-se, por um lado, que o governo tende a ver o investimento social como gasto a ser reduzido e, por outro lado, que a preponderância dos valores da sociedade de consumo – o individualismo e a competição – diminuem a importância dos valores solidários e das estratégias de cooperação, base dos pactos societários que deram origem e sustentação às políticas de proteção social. A hegemonia do pensamento liberal impõe uma nova agenda de reformas, em oposição ao padrão constitucional brasileiro, propugnando a intervenção mínima do estado em políticas focalizadas em relação aos grupos mais vulneráveis, com a prestação de serviços sendo atribuída prioritariamente ao setor privado, lucrativo ou não, buscando aumentar os recursos financeiros com a cobrança aos usuários, com a alocação de recursos através da demanda e não da oferta, garantindo assim suposta livre escolha dos consumidores e a competição entre os prestadores de serviços. A política social passa a ser manejada por meio de projetos, com a perda de sua organicidade.” PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Em relação à dimensão 2, portanto, pode-se inferir que a Constituição de 1988 construiu, para o direito à saúde, um arranjo novo em relação aos marcos constitucionais anteriores. Obviamente, a institucionalidade em construção no meio social e jurídico não é tão estável quanto a já sedimentada ao longo de décadas e diferentes textos constitucionais. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 184 Não sendo constante do texto originário da Constituição, o arranjo protetivo do financiamento estatal do SUS foi constrangido juridicamente pelo seu advento em um momento de planos econômicos sucessivos e ajustes fiscais contracionistas, derivados da perda do fenômeno multiplicador de receitas que a inflação gerava. A Emenda Constitucional nº 29, de 2000, foi promulgada no mesmo ano em que foi editada a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000) e um ano após a crise da maxidesvalorização cambial da moeda brasileira em face do dólar. Segundo Mendes (2009, p. 78-79), A partir da estabilização da inflação, em 1994, o financiamento do desequilíbrio fiscal se fez mediante a expansão da dívida pública. Porém, no início de 1999, com a dívida líquida do setor público atingindo 47% e em trajetória de expansão, e com diversas crises internacionais colocando em cheque o regime de câmbio fixo que permitia manter estável a inflação; tornou-se inevitável um ajuste nas contas fiscais do País. [...] A forma disponível para se obter equilíbrio fiscal em um regime de despesa rígida e crescente foi, por um lado, o já analisado contingenciamento de despesas, com forma de frear o ritmo de crescimento do gasto. Por outro lado, buscou-se a expansão da receita fiscal. Em face da crise econômica premente em 1999 e 2000, soou como circunstancialmente justificável a falta de disposição direta no texto permanente da Constituição dos patamares mínimos de gasto público em saúde, na forma do § 2º do art. 198, introduzido pela EC nº 29, de 2000. Problema é que se revelou mera postergação indefinida a solução de remeter para a lei complementar a cobertura dos temas controvertidos. Tal solução, à época da EC nº 29, de 2000, fora proposta e acatada no § 3º do art. 198 da Constituição para processar a tensão entre o financiamento estável da política pública de saúde e o equilíbrio fiscal. Passados dez anos da promulgação dessa Emenda e cinco anos depois de esgotada a fórmula transitória do art. 77 do ADCT, o financiamento 185 Com isso, resta reforçada, uma vez mais, a conclusão primariamente construída há pouco de que a estrutura constitucional de financiamento mínimo da política pública de saúde é menos estável temporal e institucionalmente que a estrutura da política pública de educação. Isso ocorre, entre outras coisas, porque não foi favorável a circunstância histórica de emergência da norma peculiar instituidora desse financiamento. Daí decorreu um arranjo mais programático que operativo e, por isso, mais suscetível à instabilidade da falta de norma regulamentadora. Não é sem razão que, para a política pública de saúde, não tenha havido avanços materiais e fiscais, porque a agenda reformista que seria capaz de demandar novos progressos para o setor está travada, pragmaticamente interditada com o tema primário da regulamentação da Emenda Constitucional nº 29, de 2000. Enquanto não se resolver o impasse criado pela própria Emenda nº 29, a política pública de saúde verá os avanços conquistados pela política pública de educação com um justificável ar de paralisia, uma vez que não conseguirá se mobilizar constitucionalmente para alcançar seus equivalentes normativos para as ações e serviços públicos de saúde. Dois exemplos da política pública de educação demonstram claramente a diferença de perspectiva na aquisição de novos patamares aquisitivos em cada qual das políticas públicas mencionadas, a saber, a mitigação da DRU e o ensino obrigatório dos 4 aos 17 anos de idade. Com a progressiva extinção29 da desvinculação de receitas da União para as ações federais de manutenção e desenvolvimento do ensino, indiscutivelmente o arranjo constitucional protetivo da política pública de educação se beneficiará com a expansão da sua base quantitativa inicialmente conquistada de financiamento estatal. O mesmo não se sucede com a saúde, já que não se discute outro tema no setor além da regulamentação da Emenda nº 29, de 2000, na forma do § 3º do art. 198. 29 Vide o § 3º do art. 76 do ADCT acrescido pela EC nº 59, de 2009. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 estatal das ações e serviços públicos de saúde ainda se ressente da técnica legislativa adotada na circunstância histórico-política da edição da Emenda nº 29, de 2000. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 186 Já a extensão da educação básica, de oferta obrigatória pelo Estado, dos 4 aos 17 anos de idade dá a tônica de uma progressiva rota de universalização da política pública de educação, coerente com a busca de maiores e mais sofisticados padrões de qualidade. Na saúde, contudo, a tematização normativa em prol da inclusão de novos patamares qualitativos de ação governamental (como garantia obrigatória da política pública em si) tem resvalado majoritariamente para discussões judiciais, ao invés de retroalimentar sistemicamente o seu processo de planejamento político-legislativo. Embora não seja o foco deste estudo, vale registrar que a “judicialização” da saúde, como tem sido mais comumente chamada, trata-se de fenômeno, em alguma medida, vinculado à instabilidade de financiamento do SUS. De acordo com Piola et al. (2009), a política pública de saúde tem passado por questionamentos da sua garantia de atendimento, sendo a judicialização apenas a sua “face mais nova”30. A face judicial do problema da garantia de atendimento do SUS suscita debates entrincheirados em duas linhas de sentido31, a saber: 1) a que a en30 Segundo os citados autores (2009, p. 152), “Se não há dúvidas quanto aos avanços obtidos com a implantação do SUS, também não se pode negar que este enfrenta dificuldades para garantir a integralidade do atendimento e o acesso oportuno da população a determinados tipos de atendimentos, particularmente a consultas especializadas e exames. [...] a discussão sobre a garantia de atendimento enfocará uma questão que vem ganhando muito destaque na mídia e nos debates entre os atores da área de saúde e o judiciário: as ações judiciais na área de saúde. Estas, em parte, têm relação com a persistência dos problemas ainda enfrentados pelo SUS na busca do cumprimento dos preceitos constitucionais. Em particular, a busca do cumprimento do preceito de atendimento integral tem feito que muitos usuários do SUS, amparados pelo Art.196 da Constituição, que prevê a saúde como direito de todos e dever do Estado, venham recorrendo ao Poder Judiciário para que lhes seja garantido o acesso a determinados medicamentos ou procedimentos.” 31 Piola et al. (2009, p. 153, grifos nossos), a respeito da divergência interpretativa sobre os efeitos da judicialização da saúde, sedimentam que: “Esse processo tem gerado um intenso debate tanto a respeito do alcance da integralidade do atendimento quanto a do significado da judicialização, culminando em, pelo menos, duas visões distintas em relação a esta última questão. Alguns argumentam que a judicialização é uma forma de garantia de acesso e direito à saúde. No caso dos medicamentos usados no tratamento do HIV/AIDS, por exemplo, a garantia de acesso ao tratamento antirretroviral iniciou-se pela pressão de um grupo pequeno, que, por meio da via judicial, requereu o direito ao tratamento integral. Esta pressão foi importante para que o governo viesse a transformar em lei a garantia de atendimento e implantar uma política pública de acesso ao tratamento integral aos portadores do vírus. Em tal perspectiva, o sistema estaria falhando ao não garantir o acesso e direito de atendimento integral à população, e o Judiciário estaria corrigindo estas falhas assegurando os direitos constitucionais. Essa é a visão majoritária no Judiciário. Fundamentam sua decisão nos preceitos constitucionais, recorrendo frequentemente ao Art.196, mas também citam a Lei nº 8.080/1990. Argumentam, com base nas legislações, em favor do direito do cidadão a receber do Estado todas as ações e os serviços de saúde de que necessitam, incluindo o acesso a medicamentos. Outra visão, fortemente defendida pelos gestores públicos, mas que não discute o cerne da questão é a de que o crescente acesso a medicamentos e outros bens e serviços de saúde pela via judicial gera distorções na alocação de recursos e gestão da política pública. Isto ocorreria pelo fato do Judiciário desconhecer a política de saúde e não reconhecer que os recursos são escassos. Além disso, o gestor teria que deixar de 187 Como dito, não se propõe este estudo a dissecar tais questionamentos, os quais, por si só, merecem uma longa e densa abordagem analítica. A breve tematização episódica desse conflito teve por finalidade apenas demonstrar alguns indícios de instabilidade fiscal e material por que tem passado a política pública de saúde. Testadas, assim, as dimensões 1, 2, 3 e 632, passa-se, enfim, ao estudo comparativo das dimensões 4, 5 e 7 anteriormente arroladas. A dimensão 4, relativa ao conteúdo e alcance material da vinculação constitucional de gasto mínimo, busca indicar se houve, no texto da Constituição de 1988, definição material exaustiva do que é gasto mínimo e de quais ações e serviços nele se incluem, ou não. Em relação à política pública de educação, os patamares de gasto mínimo na manutenção e desenvolvimento do ensino definidos no art. 212 devem ser lidos à luz do art. 208, ambos da Constituição. É neste último artigo que se encontram claramente formulados os níveis materiais de garantia do que significa dever estatal de manutenção e desenvolvimento do ensino público. Do mesmo modo, revela-se objetiva a descrição constitucional das competências de cada ente no art. 211, que promove a distribuição entre eles dos níveis materiais do art. 208, na forma dos patamares de gasto mínimo do art. 212. O arranjo constitucional inscrito no texto permanente da Carta de 1988, nesse sentido, molda a política pública de educação de forma sistêmica e integrada. Por essa razão, o art. 60 do ADCT não é substitutivo, tampouco remédio paliativo para a falta de densidade do texto permanente. O art. 60 do ADCT tem natureza complementar ao art. 212 da Constituição, porque ele apenas dá diretrizes transitórias sobre a prioridade na educação básica para fins de aplicar um recurso programado na política para satisfazer às necessidades de alguns poucos indivíduos, em ações não programadas.” 32 Respectivamente: 1. eficácia e aplicabilidade da norma constitucional (grau de operacionalidade da norma por si mesma e, por conseguinte, a necessidade de complementação posterior, ou não, para fins de sua aplicação plena); 2. estabilidade temporal e institucional (longevidade temporal do dispositivo em face da sua institucionalização constitucional); 3. conjuntura da edição da norma constitucional e de suas posteriores alterações (interpretação histórica); e 6. progressividade do arranjo constitucional (projeção de avanços fiscais e materiais para o futuro, com metas de ação diferidas no tempo). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 tende como meio necessário de controle da inércia dos órgãos administrativos e legislativos, quando causadora de lesão ou ameaça de lesão a direitos fundamentais e, por outro lado, 2) a que defende tratar-se de perigosa ingerência que redefine as próprias prioridades alocativas da política pública de saúde. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 188 cumprimento das metas de universalização e erradicação do analfabetismo, inscritas nos incisos I e II do art. 214 da CR/1988. Diferentemente disso, a política pública de saúde não encontra no texto permanente da Constituição nem o conteúdo dos percentuais de gasto mínimo, nem tampouco o alcance material da vinculação do que é gasto mínimo nas ações e serviços públicos em saúde. Ao invés de indicar diretamente quais patamares e/ou percentuais deveriam ser aplicados como referência de vinculação orçamentária de gasto mínimo, o § 2º do art. 198 da Constituição estabeleceu apenas o dever genérico de tal gasto mínimo. A bem da verdade, no citado dispositivo, foram apontadas apenas as bases de cálculo relativas aos estados, DF e municípios sobre as quais deveriam incidir os programáticos percentuais. Não houve indicação de qualquer critério objetivo para a União, nem de percentuais vinculantes para os demais entes. Tudo isso ficou relegado a tratamento posterior em lei complementar, na forma do § 3º do art. 198 da Constituição. Desse modo, o art. 77 do ADCT passou a ter conteúdo satisfatório e determinante do comando do art. 198, § 2º, pois, enquanto subsistir a falta da lei complementar mencionada pelo § 3º do citado dispositivo, aplicar-se-á a regra transitória que, por seu turno, nada esclarece sobre o que se pode considerar efetivamente gasto em ações e serviços públicos de saúde. É dessa omissão deliberada (na forma do § 3º do art. 198) que se alimenta a instabilidade fiscal da política pública de saúde e a guerra fiscal de despesa que, desde então, tem sido vivenciada no setor entre os três níveis da federação. A propósito, o próximo capítulo cuidará de tal impasse federativo no custeio estatal da efetivação do direito fundamental à saúde. Neste momento, é que se impõe a análise da dimensão 5, relativa precisamente à distribuição de competências e responsabilidades por cada ente da federação e entre eles, tanto no sistema de financiamento estatal da saúde, quanto da educação. Como já dito, essa dimensão visa indicar, primeiramente, como o gasto mínimo foi determinado para cada ente federativo. Em segundo plano, objetiva aferir como se dá a distribuição de competências e responsabilidades de custeio entre os três níveis da federação (o que cabe a cada ente e se a regra 189 mensão 5 se propõe a indicar se existe regra clara do papel integrador (ainda que supletivo ou complementar) da União, entendida por regra clara aqui a perspectiva de fixação objetiva de patamar de gasto federal, sem necessidade de ulterior regulamentação expedida pela própria União. No caso da educação, os percentuais estão claramente indicados no art. 212 do texto permanente da Carta de 1988, sendo 18% para a União e 25% para os demais entes, percentuais esses calculados sobre a receita de impostos e transferências constitucionais. A distribuição das competências e responsabilidades de custeio entre os entes da federação é feita na forma do art. 211 que estabelece em qual nível de ensino cada ente deve primordialmente atuar, sendo claro o teor do seu § 1º ao atribuir à União a competência redistributiva e supletiva de toda a política pública em âmbito nacional. O art. 60 do ADCT, por outro lado, reforça a tendência de uma objetiva e integrada distribuição de competências ao definir claramente como cada qual dos entes integra o financiamento dos Fundos de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb. Com a Emenda Constitucional nº 53, de 2006, a União foi exaustiva e taxativamente implicada, no art. 60 do ADCT, com patamares fixos de complementação dos recursos dos Fundeb’s mantidos em nível estadual, o que revela um cuidado de não lhe deixar qualquer margem de discricionariedade para regular posteriormente qual é o montante da sua participação federativo no custeio de tal sistema. A mudança da redação originária do art. 60 do ADCT denota, assim, uma consistente rota de correção de desvios na política pública de educação, o que, infelizmente, não se presencia em nível constitucional na área da saúde. Já, pois, voltando o olhar sobre a política pública de saúde, a indicação dos patamares de gasto mínimo foi feita provisória e transitoriamente no art. 77 do ADCT, de modo a definir os percentuais de 12% para os estados e de 15% para os municípios e o DF, sendo ambos incidentes sobre a receita de impostos e transferências. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 de vinculação é igual para todos os entes?). Em terceiro e último nível, a di- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 190 De outro lado, a União se beneficiou de uma regra distinta que lhe obriga apenas a manter o seu patamar de gasto em saúde do ano anterior corrigido pela variação nominal do PIB. Como será visto no próximo capítulo, esse é o precário fundamento da progressiva redução proporcional do papel da União no financiamento do SUS no volume total de recursos públicos a ele vertidos. Vale notar, a esse respeito, que todo e qualquer conteúdo sobre qual seria o papel integrador da União restou delegado à edição da lei complementar reclamada pelo § 3º do art. 198 da CR/1988. Assim, o comando do inciso II do aludido § 3º tornou-se mera norma programática. Isso porque a Constituição diz que deve haver “critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais”, mas não lhe dá consecução material, restringindo o alcance objetivo da própria política pública de saúde e do financiamento do SUS. O arranjo constitucional do financiamento da política pública de saúde é impreciso na fixação de competências e na distribuição federativa das responsabilidades, razão pela qual sofre, também por força da dimensão 5, uma instabilidade fiscal inaudita na política pública de educação. Enquanto nesse setor, há uma justa33 desconfiança com a regulamentação posterior pela União, na área da saúde ainda há uma certa ingenuidade normativa em se deixar remeter dispositivos sensíveis para legislação infraconstitucional posterior. O arranjo constitucional da saúde é, no somatório de todos os fatores acima citados, mais frágil que o da educação, por ser mais programático e menos operativo, ou seja, não é plenamente auto-executório do ponto de vista jurídico. Como a União é a entidade competente para legislar as normas regulamentadoras e ela se beneficia da omissão ao dever de editá-las, daí resulta o impasse já decenal em que se envolveu a Emenda Constitucional nº 29, de 2000. Trata-se, em última instância, de um impasse não só constrangedor da eficácia do direito fundamental à saúde, mas também de um sério impasse federativo. 33 Vale lembrar, uma vez mais, a fixação subestimada pela União do valor mínimo de referência de qualidade nacional por aluno. A subestimativa de tal piso nacional era usada como mecanismo de reduzir, até a Emenda Constitucional nº 53, de 2006, os valores de complementação aos, então, Fundef’s que a própria União deveria verter em favor dos estados, DF e municípios. 191 A força normativa do sistema constitucional de financiamento das ações estatais de manutenção e desenvolvimento do ensino passa não apenas pelas possibilidades de intervenção federal sobre os estados e intervenção estadual sobre os municípios, previstas, respectivamente, no art. 34, VII, alínea “e”, e no art. 35, III, até porque essa espécie de sanção institucional não acoberta a União. Em duas importantes passagens, a defesa do arranjo constitucional da política pública de educação prevê a ocorrência de crime de responsabilidade para o gestor que der causa ao seu descumprimento. É importante esclarecer, nesse sentido, que o crime de responsabilidade, a despeito do nome, não se trata de infração penal, mas de ilícito político-administrativo, punível34 com a perda do mandato eletivo (ou função pública administrativa), além da inelegibilidade do gestor. No art. 208, § 2º, diz a forte norma constitucional que “o não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente” (grifo nosso). Do mesmo modo, o art. 60, XI do ADCT, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006, prescreve que “o não cumprimento do disposto nos incisos V e VII do caput deste artigo [relativos ao dever da União de complementação ao Fundeb] importará crime de responsabilidade da autoridade competente”. Ora, tais prescrições punitivas atribuem uma indiscutível força normativa à política pública de educação, porque sua estrutura fundamental tem estatura constitucional, não cabendo ao governante de plantão esquivar-se, sob pena de responsabilidade que pode lhe custar o próprio mandato e a suspensão dos seus direitos políticos. Já, noutro sentido, a política pública de saúde, ainda não se preocupou em declarar taxativamente que o descumprimento do dever estatal de executá-la segundo os moldes constitucionais enseja crime de responsabilidade do gestor. Como em Direito, as sanções devem ser interpretadas restritivamente, 34 Na forma do art. 85 da Constituição de 1988 e da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Chega-se, enfim, à última dimensão deste tópico analítico e conclusivo de todo este longo capítulo. A dimensão 7 da comparação entre os arranjos constitucionais cuida de elucidar a existência de sanções decorrentes do inadimplemento parcial ou total do dever de aplicação dos patamares de gasto mínimo nas políticas públicas de educação e saúde. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 192 não cabendo extensão analógica do seu alcance e sentido, pode-se afirmar que não existe no ordenamento constitucional brasileiro equivalente normativo para a saúde dos comandos previstos no art. 208, § 2º da Constituição e no art. 60, XI do ADCT. Aplicar-se-ia apenas o comando genérico e, por isso, bastante suscetível de questionamento judicial do art. 85, III da CR/1988, segundo o qual é crime de responsabilidade atentar contra a Constituição Federal e contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais. Essa é mais uma das razões da fragilidade relativa da saúde em face da educação, quando comparados os seus respectivos arranjos constitucionais. Com tal elenco de avaliações comparativas, encerra-se o estudo estritamente jurídico-constitucional das políticas públicas de educação e saúde, para, no próximo capítulo, ser apontada e analisada a conformidade constitucional da tendência de maior progressividade da educação e a guerra fiscal federativa de despesa na saúde. 4. A RELATIVA ESTAGNAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE EM FACE DA PROGRESSIVIDADE NA ÁREA DA EDUCAÇÃO Enquanto houve progressividade consistente no arranjo constitucional do financiamento federativo da política pública de educação, que não só apresentou possíveis respostas35 para alguns impasses históricos (como a regressividade da participação federal na manutenção e desenvolvimento do Fundeb e a falta de densidade do valor mínimo nacional por aluno), como também propôs a necessidade de uma nova e importante meta para o planejamento de longo prazo na educação. De outro lado, o arranjo da saúde manteve-se preso ao impasse federativo do seu financiamento. É possível que o arranjo fiscal analisado no capítulo anterior, de verdadeira guerra fiscal, com as consequentes reconcentração tributária federal e progressiva redução do papel da União no financiamento do SUS, guarde alguma relação com a descentralização das ações e serviços 35 Não significa que sejam respostas adequadas, até porque as soluções jurídicas – por mais que tenham pretensões de estabilizar seus efeitos no médio e longo prazos – também são socialmente historicizadas e politicamente pactuadas em um dado contexto. 193 Mas a instabilidade no financiamento da saúde tão evidenciada, por exemplo, durante o processo de aprovação da Emenda Constitucional nº 56/2007 (que não prorrogou a validade da extinta CPMF), quando observada no âmbito federal, denota claramente um processo histórico de vulnerabilidade dos gastos sociais em face da agenda de estabilização macroeconômica que dominou a década de 1990 e que subsiste na década de 2000. A tensão fiscal entre a agenda de estabilização monetária e a efetivação dos direitos fundamentais fica expressa na situação de vulnerabilidade36 desses em face daquela. Para fazer face à vulnerabilidade dos gastos sociais denunciada por CASTRO et. al. (2008), o Judiciário foi demandado, ao longo de todo o período considerado, como se fora um controlador do atendimento varejista de direitos sociais. Mas a solução individual para problemas estruturais na formulação das políticas de saúde, educação, assistência e previdência social, por exemplo, é tecnicamente míope e temporalmente limitada. A instabilidade fiscal deliberadamente37 provocada pela União no sistema de financiamento do SUS no período pós-EC 29, de 2000 rompe a per36 Como pertinentemente suscitam CASTRO et. al. (2008, p. 32-33), de 1999 em diante, “apesar de o GSF [gasto social federal] ter se mantido em patamar não inferior ao do período anterior [1995-1998], predominou uma tendência de oscilações seguindo o ciclo econômico e os ajustes dos gastos fiscais do governo, principalmente com o deslocamento da prioridade do governo para o pagamento de juros e encargos da dívida pública. Isso acarretou grande aumento dos gastos financeiros do governo e forte ampliação da carga tributária, ampliação ironicamente capitaneada por tributos arrecadados em nome da proteção social. [...] Portanto, alguns desafios estão colocados para a efetiva implementação das políticas sociais nos próximos anos. Entre os mais importantes, está o de proteger a política social e, consequentemente, o gasto social diante de conjunturas adversas. Os dados revelam a vulnerabilidade dos gastos sociais durante os anos de crise.” 37 Pertinente, a esse respeito, mostra-se a crítica de Faria (1993, p. 64-65, grifo nosso): “Por meio da ‘aplicação seletiva’ dessa ordem jurídica assimétrica e fragmentária, mediante a instrumentalização de normas numa direção distinta da que foi originariamente formulada e não-regulamentação de certos direitos para bloquear a implementação dos benefícios que eles asseguram, o Estado subsidiário do corporativismo ‘social’ revelar-se-ia capaz de gerar um ‘efeito de distanciamento’ em relação à ordem constitucional em vigor. [...] Em outras palavras, esse efeito permite que a contínua ruptura da legalidade formal do Estado, por causa da ‘aplicação seletiva’ da lei, não seja acompanhada automaticamente pela quebra da legitimidade desse mesmo Estado.” PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 públicos em saúde – ASPS, da União para os estados e, em especial, para os municípios, razão pela qual a participação dos gastos de estados e municípios no volume total de despesas com o SUS subiu de 40,2% em 2000 para 54,1%, em valores aproximados (PIOLA, 2009). A perda de importância relativa dos gastos federais seria, portanto, da ordem de 14% do volume total de gastos com o SUS. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 194 cepção da saúde como direito coletivo e solidário, acirrando competições intersetoriais em toda a seguridade social, como também provoca distorções federativas entre municípios e estados que passam a suportar a sobrecarga de demandas sem correspondente fonte de receitas. A comparação entre os arranjos protetivos dos dois direitos sociais fundamentais que têm regras próprias de vinculação orçamentária permitiu a este estudo apontar claramente algumas das maiores inconsistências no marco normativo da saúde, à luz das conquistas sedimentadas na educação. Com a superação de tais inconsistências, ganharia o sistema constitucional que dá prevalência à dignidade da pessoa humana quando estiver em conflito com eventuais discussões sobre o limite da reserva do possível... 5. À GUISA DE CONSIDERAÇÕES FINAIS: O FINANCIAMENTO DO SUS, A NECESSIDADE DA CPMF E A REGRESSIVIDADE DO GASTO FEDERAL A última pauta da agenda sobre a política pública de saúde no Brasil aponta para um falso dilema. A sociedade está sendo assediada pela ideia de que, para resolver o subfinanciamento do setor, seria imperativa a recriação da CPMF ou de outra congênere. É falso o dilema porque o financiamento do Sistema Único de Saúde – SUS é problema mal concebido e resolvido desde a sua instituição na Constituição de 1988. Não houve, como até o presente momento não há, em bases permanentes, distribuição de responsabilidades federativas, nem tampouco uma clara regra de equilíbrio entre receitas disponíveis e despesas a serem cobertas. A primeira referência do quanto deveria ser empregado para o financiamento do SUS foi feita no art. 55 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, o qual previra a destinação de 30% do Orçamento da Seguridade Social – OSS ao setor da saúde. Embora tal regra transitória não seja mais juridicamente aplicável, vale a pena simular o quanto ela aportaria de recursos para o SUS atualmente. 195 as ações e serviços públicos de saúde cerca de R$ 140 bilhões, ao invés dos aproximadamente R$ 63 bilhões previstos. Os R$ 80 bilhões faltantes na equação acima, em grande medida, foram cooptados pela área da Previdência Social que, sozinha, consumirá R$ 314 bilhões dos R$ 469 bilhões do Orçamento da Seguridade até dezembro deste ano. A assistência social e outras despesas financeiras correm por fora para fechar a conta do OSS. É, precisamente, nesse conflito distributivo que se dá a origem do atual impasse sobre se a saúde deve ter, ou não, uma contribuição social exclusivamente sua... As áreas da saúde e da previdência social, desde meados da década de 90, travam uma relação competitiva feroz por novas fontes de receita, na mesma medida em que são pressionadas por novas demandas de despesa. A despeito do caráter solidário desenhado inicialmente na Constituição de 1988 para o sistema da seguridade social, os gestores das políticas de saúde e previdência social cuidaram de puxar a preciosa sardinha tributária para o seu lado. Paralelamente a isso, a União descentralizava despesas e reconcentrava receitas, em detrimento do pacto federativo e do próprio dever de expandir seu gasto público com o SUS. Para resolver seu lado do conflito, a previdência social conseguiu segregar suas fontes próprias de receita no art. 195 da Constituição, com o advento da Emenda nº 20/1998. Já a saúde implorava politicamente por uma nova sistemática de financiamento que lhe conferisse estabilidade mínima e recursos suficientes para a implantação e expansão do SUS. Assim é que foi instituída, em 1996, a CPMF, a qual — após sucessivas emendas constitucionais — foi prorrogada até 2007, quando, enfim, teve sua última proposta de prorrogação rejeitada pelo Senado. Tal contribuição teria sido uma solução adequada para o problema do subfinanciamento do SUS não fosse a vigência da desvinculação de receitas da União – DRU, que lhe retirava, na fonte, 20% do produto da sua arrecadação, assim como a própria competição de outros setores. Ou seja, a CPMF que foi criada para a saúde tornou-se cobertor curto a ser dividido com a pre- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Em 2010, à luz da Lei Orçamentária vigente, tal proporção verteria para PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 196 vidência social, com o combate e erradicação da pobreza e com a DRU... Na verdade, a política pública de saúde tornou-se refém da perda da CPMF muito antes da rejeição à sua prorrogação em 2007. Por tal conformação de forças políticas, no final da década de 1990, o setor empreendeu uma nova e quixotesca jornada em busca de uma fórmula constitucional de financiamento que dependesse menos de receitas exclusivas (como a CPMF). A solução encontrada tomou como modelo a política pública de educação, que goza de patamar mínimo de gasto público, na forma do art. 212 da CR/1988. Daí é que decorreu a promulgação da Emenda Constitucional nº 29, de 2000, com a promessa de estabilizar o custeio da saúde pública no País. Com a Emenda 29, tal como ficou mais conhecida, os três níveis da federação foram obrigados a cumprir patamares mínimos de gasto, segundo o art. 77 do ADCT. Esse dispositivo determina que os municípios apliquem 15% e que os estados apliquem 12% das suas receitas de impostos e transferências constitucionais, enquanto a União deveria manter o seu patamar de gasto do ano anterior, corrigindo-o apenas pela variação nominal do PIB. Passados dez anos da sua edição, podemos sinceramente avaliar como não cumprida a promessa da Emenda 29 de conferir estabilidade e suporte mínimo de recursos para o SUS. Por essa razão é que ressurge, tal qual Fênix das urnas, digo, cinzas, a promessa de que uma contribuição social exclusiva para a saúde poderia dar conta da pesada tarefa de estabilizar e fazer progredir o SUS. Os 22 anos de vigência da Carta de 1988 e, concomitantemente, do SUS nos fazem suspeitar de que o seu subfinanciamento não será definitivamente resolvido por uma nova contribuição. Isso porque nada nos assegurará que parte dela não será novamente consumida pela DRU ou que a União não vá simplesmente retirar outras fontes de receita para manter o seu patamar de gasto estagnado na faixa de 1,7% do PIB. É preciso rever o modelo definido no art. 77 do ADCT, o qual já deveria ter sido substituído por lei complementar desde 2005. Eis a raiz do problema: há uma omissão inconstitucional na falta de regulamentação da Emenda 29 que torna nebuloso o horizonte e que esconde a mais flagrante verdade não revelada pela União. 197 Enquanto o gasto mínimo federal continuar sendo corrigido apenas pela variação nominal do PIB e a regulamentação da Emenda 29/2000 continuar sendo inconstitucionalmente negligenciada, o SUS sofrerá não é com a falta da CPMF, mas com a regressividade do gasto federal em saúde. Falta dinheiro ao SUS porque falta obrigar a União, do mesmo modo que os estados e municípios estão obrigados: paga mais quem pode mais, na medida da sua disponibilidade de receita, sem vir cobrar a fatura da sociedade com a instituição de novos tributos. Eis o nó górdio da questão. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Faltam recursos ao SUS, a despeito de a arrecadação federal bater recordes sucessivos e vertiginosos de crescimento, porque a União não tem nenhum dever de correlação de gasto mínimo na saúde em face do comportamento da sua receita. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 198 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AFONSO, José Roberto. Finanças, planejamento municipal e lei de responsabilidade fiscal. In: ENCONTRO REGIONAL GESTÃO PÚBLICA E POLÍTICAS SOCIAIS ITV, 3, 2005, Porto Alegre. Trabalhos apresentados. Porto Alegre: [s.n.], 2005. __________ LRF: por que parou?. Rio de Janeiro, 2004. Disponível em: <www. joserobertoafonso.ecn.br>. Acesso em 15 de maio de 2005. ÁVILA, Humberto Bergmann. Sistema constitucional tributário. São Paulo: Saraiva, 2004. BRASIL Congresso Nacional. Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle – SF; Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira – CD. Nota Técnica Conjunta n.º 13, de 2004: considerações acerca dos vetos ao projeto de lei de diretrizes orçamentárias para 2005 (Lei n.º 10.934, de 11 de agosto de 2004). Brasília: COFC/SF: COFF/CD, 2004. Mimeografado. __________ Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Orçamento Federal. Vinculações de receitas dos orçamentos fiscal e da seguridade social e o poder discricionário de alocação dos recursos do governo federal. Brasília: Secretaria de Orçamento Federal – SOF, 2003. v. 1, n. 1. __________ SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 45/ DF. Ementa: “Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da ‘reserva do possível’. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do ‘mínimo existencial’. Viabilidade instrumental da arguição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração)”. Relator Ministro Celso de Mello. Publicação DJU de 04/05/2004, p. 00012. Julgamento em 29/04/2004. 199 Paulo: Saraiva, 2002. CAMPELLI, Magali Geovana Ramlow; CALVO, Maria Cristina Marino. O Cumprimento da Emenda Constitucional n. 29 no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, n. 7, vol. 23, jul-2007. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. A globalização cria governos privados. Jornal do Advogado: Órgão Oficial da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de Minas Gerais e da Caixa de Assistência dos Advogados, Belo Horizonte, v. 24, n. 209, p. 12-13, jun. 2001. __________ Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. __________ Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. CASTRO, Jorge Abrahão de. et al. Gasto social e política macroeconômica: trajetórias e tensões no período 1995-2005. Brasília: IPEA, 2008. (Texto para discussão, 1324). CLÈVE, Clèmerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Revista Crítica Jurídica, Curitiba: UNIBRASIL, n. 22, p. 17-29, jul./dez. 2003. DERZI, Misabel Abreu Machado. Prefácio. In: SPAGNOL, Werther Botelho. As contribuições sociais no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. IX-XIII. FARIA, José Eduardo. A eficácia do direito na consolidação democrática. Lua Nova: Revista de Cultura e Política. São Paulo: CEDEC, n. 30, p. 35-72, ago 1993. FLEURY, Sonia. Políticas sociais e democratização do poder local. In: VERGARA, Sylvia Constant; CORRÊA, Vera Lucia de Almeida (orgs.) Propostas para uma gestão pública municipal efetiva. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 91-115. GIACOMONI, James. Orçamento público. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2002. GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui generis”). São Paulo: Dialética, 2000. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 200 GREGGIANIN, Eugenio. Gestão fiscal e orçamentária e o papel do Congresso Nacional – alterações nas variáveis fiscais: subsídios para a reforma orçamentária. Brasília, 2005. Disponível em: <http://www.inesc.org.br/conteudo/agenda/MNP85g0iMFiERqmd919kwtAP01cDVK3x/gesto%20oramentria%20-%20altera%20 es%20no%20CN%20-%20versao%2016-05.doc>. Acesso em 12 set. 2005. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. HADDAD, Fernando. Educação e Constituição. Folha de S. Paulo, Opinião, p. A3, 22/11/2009. JORGE, Elias Antônio; MESQUITA, Ana Cleusa Serra; PRADO, Corah. A seguridade social e o financiamento do SUS no Brasil. In: IX ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA DA SAÚDE, 9, 2009, Porto Alegre. Trabalhos apresentados. Rio de Janeiro: [s.n.], 2009. MACHADO, Hugo de Brito (Coord.). As contribuições no sistema tributário brasileiro. São Paulo: Dialética: ICET, 2003. __________ Apresentação. In: MACHADO, Hugo de Brito (Coord.). As contribuições no sistema tributário brasileiro. São Paulo: Dialética: ICET, 2003. p. 07-25. MACHADO JR., José Teixeira; REIS, Heraldo da Costa. A Lei 4.320 comentada: com a introdução de comentários à lei de responsabilidade fiscal. 30. ed. Rio de Janeiro: IBAM, 2000/2001. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Contribuições e federalismo. São Paulo: Dialética: 2005. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito; MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. As contribuições no sistema tributário brasileiro. In: MACHADO, Hugo de Brito (Coord). As contribuições no sistema tributário brasileiro. São Paulo: Dialética: ICET, 2003. p.269-307. PIOLA, Sérgio Francisco. Financiamento da Seguridade Social e do SUS: desafios e perspectivas. In: IX ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA DA SAÚDE, 9, 2009, Porto Alegre. Trabalhos apresentados. Rio de Janeiro: [s.n.], 2009. 201 caram para a saúde da população brasileira?. In: IPEA. Políticas Sociais: Acompanhamento e Análise. Brasília: IPEA, 2009, V. 17, nº 3, capítulo 3, p. 95-171. POCHMANN, Marcio. Déficit público nominal zero e custos sociais. Campinas, 2005a. Mimeografado. __________ Evidências recentes na relação entre gasto social e desigualdade de renda no Brasil. Campinas, 2005b. Mimeografado. __________ Gastos sociais, distribuição de renda e cidadania: uma equação política. Econômica: Revista da Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 109-113, jun. 2003. PROCÓPIO, Daniela Maria. Reflexões sobre a aplicação do princípio da solidariedade à figura das contribuições sociais no contexto evolutivo do modelo de estado democrático de direito. 2004. 182f. Dissertação (Mestrado em Direito Tributário) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004. SAMPAIO, Junia Roberta Gouveia. O abuso do poder de legislar na desvinculação das contribuições para seguridade social. 2004. 247f. Dissertação ( Mestrado em Direito Tributário ) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004. SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais. 10.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. __________ Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, n. 10, jan. 2002. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 26 dez. 2005. __________ O estado social de direito, a proibição de retrocesso e a garantia fundamental da propriedade. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. 1, n. 4, jul. 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 26 dez. 2005. SPAGNOL, Werther Botelho. As contribuições sociais no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2002. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 PIOLA, Sérgio Francisco. et al. Vinte anos da Constituição de 1988: o que signifi- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 202 SPAGNOL, Werther Botelho. Curso de direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. STARK, David; BRUSZT, Laszlo. ‘Enabling constraints’: fontes institucionais de coerência nas políticas públicas no pós-socialismo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo: ANPOCS, v. 13, n. 36, fev. 1998. VIANNA, Luiz Werneck. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 15-45, 149-156. VIEIRA, Oscar de Vilhena. A constituição como reserva de Justiça. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 42, p.53-98, set./out.1997. 203 Carlos Emannuel Joppert Ragazzo - Advogado, doutor e mestre em direito, conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e professor adjunto da FGV DIREITO RIO/CPDE. Kenys Menezes Machado - Economista, mestre em administração, gestor governamental em exercício no CADE. Introdução Nos últimos anos houve um significativo aumento nas operações de fusões e aquisições envolvendo o setor de saúde (planos de saúde, hospitais, laboratórios, medicamentos, farmácias, entre outros). As operações envolveram, inter alia, a compra de empresas do mesmo setor (por ex: planos de saúde comprando outras operadoras, o que é uma hipótese de concentração horizontal) e, em menor medida, a aquisição de empresas a montante ou a jusante da cadeia produtiva (por ex: planos de saúde comprando hospitais, o que é uma hipótese de integração vertical). Foram notificadas ao Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência SBDC38, 29 operações envolvendo uma das duas situações entre planos de saúde e hospitais de 2003 a 201039. 38 O SDBC é formado pela Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça, pela Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) do Ministério da Fazenda e pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), autarquia vinculada ao Ministério da Justiça. 39 Até setembro de 2010. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 DESAFIOS DA ANÁLISE DO CADE NO SETOR DE PLANOS DE SAÚDE PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 204 Como o Brasil possui um número relativamente alto de operadoras, um movimento de consolidação era razoavelmente esperado, já que teria o inicial propósito de viabilizar a formação de operadoras mais sólidas financeira e administrativamente. Não é à toa que os dados confirmam a crescente concentração do setor: entre 2003 e 2006, 75% dos municípios do País apresentaram HHI superior a 1800 pontos40 no mercado de planos de saúde, com base no número de beneficiários (ALMEIDA, 2009), percentual suficiente para ensejar alguma preocupação sob o ponto de vista concorrencial. A exemplo das concentrações horizontais (consistentes na aquisição de operadoras de planos de saúde concorrentes), também apresentam preocupações concorrenciais os movimentos de integração vertical, que envolvam a aquisição, por operadoras, de serviços de cuidado com a saúde (hospitais, laboratórios, clínicas, etc.)41. Embora menos óbvios ao olho leigo, as integrações verticais também possuem potenciais efeitos anticompetitivos, merecendo o cuidado das autoridades de defesa da concorrência. O presente artigo, portanto, pretende pontuar as discussões que foram objeto de debate na análise de casos recentes julgados pelo CADE, os quais avaliaram os potenciais competitivos dessas operações de concentração horizontal e de integração vertical, chamando a atenção para a evolução das etapas de análise desses processos. 40 O Herfindahl-Hirschman Index (HHI) é um índice de concentração extensamente empregado na análise antitruste. Ele é calculado com base no somatório do quadrado das participações de mercado de todas as empresas de um dado mercado. O HHI varia de 0 (zero), quando o mercado é totalmente fragmentado, até 10.000, valor no qual uma única empresa detém 100% do mercado. Os dois principais critérios para a análise do HHI são os empregados pelos EUA e pela União Européia. Até o ano passado, nos EUA, o ato de concentração que resultasse em um HHI acima de 1800 (alta concentração) com variação de pelo menos 50 pontos deveria ser analisado, pois apresentaria elevada possibilidade de efeitos sobre a concorrência. Se o HHI ficasse entre 1.000 e 1.800 pontos, mas tivesse variação acima de 100 pontos, também seria investigado. Esses valores foram revisados para cima em 2010 pelas autoridades antitruste americanas; ou seja, HHI de 2500 pontos e variação acima de 100 pontos demandam investigação, o mesmo ocorrendo com HHI entre 1500 e 2500, com variação acima de 100 pontos (U.S. DEPARTMENT OF JUSTICE AND THE FEDERAL TRADE COMMISSION (DoJ and FTC). Horizontal Merger Guidelines. Issued in August 19, 2010. Disponível em: <http://www.ftc.gov/os/2010/08/100819hmg.pdf>). 41 Neste artigo adoto a nomenclatura normalmente empregada pelo SBDC nas suas análises, ou seja: (i) setor de saúde: engloba todos os segmentos deste setor – planos de saúde, hospitais, clínicas, laboratórios, farmácias, empresas farmacêuticas; (ii) planos de saúde: envolve as operadoras de planos de saúde privadas; (Iii) serviços de cuidado com a saúde: empresas de serviço médico-hospitalar (centro médico e hospitais) e de serviço de apoio à medicina diagnóstica (laboratórios). 205 Em 2008, havia 1.120 operadoras ativas de planos de saúde no País, número esse, aliás, elevado mesmo ao se comparar com as 1.257 operadoras em atividade em 199942. Todavia, a análise da evolução das operadoras por classe de beneficiários revela que, apesar do número significativo, fortes modificações vêm ocorrendo na estrutura do mercado de saúde, resultando em aumento da concentração. Conforme se observa na Tabela 1, havia 659 operadoras com até 2.000 beneficiários em 1999, contra 244 em 2008. Já no oposto do quadro, havia apenas 45 operadoras com mais de 50.000 beneficiários em 1999, número que chegou a 152 em 2008. Tabela 1 - Quantidade de operadoras ativas com beneficiários* - Brasil Classe de Beneficiários 1999/12 2001/12 2004/12 2006/12 2008/12 Classe 1 a 100 195 141 58 36 34 Classe 101 a 1.000 297 251 175 137 109 Classe 1.001 a 2.000 164 160 144 111 101 Classe 2.001 a 5.000 246 264 255 223 187 Classe 5.001 a 10.000 146 172 177 192 178 Classe 10.001 a 20.000 84 133 202 191 181 Classe 20.001 a 50.000 80 108 160 175 178 Classe 50.001 a 100.000 22 41 74 72 78 Classe 100.001 a 500.000 20 32 53 56 59 Classe Superior a 5.000.000 3 3 7 11 15 Total 1.257 1.305 1.305 1.204 1.120 Fonte: SEAE (2010). Dados do Cadastro de Operadoras da ANS/MS. * Operadoras ativas com beneficiários, exceto exclusivamente odontológicas e sem beneficiários – com base no critério de residência do beneficiário. 42 BRASIL. Ministério da Fazenda. SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO ECONÔMICO (SEAE). Parecer 06130/2010/RJ. Abril de 2010. Disponível em:<www.seae.fazenda.gov.br>. Acesso em 22 out. 2010. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 2. Características do setor e suas consequências PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 206 A Tabela 2 revela a participação relativa das operadoras ativas por classe de beneficiários entre 1999 e 2008. As operadoras com até 2.000 beneficiários detinham 52,1% dos beneficiários em 1999 e 21,7% em 2008, uma redução de mais de 50%. As operadoras com mais de 50.000 beneficiários detinham apenas 3,6% em 1999, chegando a 13,6% em 2008. Esses valores são importantes, pois possibilitam algumas conclusões: (i) houve forte redução do número de pequenas operadoras e significativo aumento das operadoras de grande porte; (ii) a maior parte dos beneficiários se deslocou das pequenas para as operadoras “médias”; (iii) os dois movimentos revelados nos itens (i) e (ii) acima foram contínuos nos últimos anos, apresentando tendência de crescimento, com destaque para a maior participação das grandes operadoras de planos de saúde43. Tabela 2 - Participação relativa da quantidade de operadoras ativas por classe de beneficiários* - % - Brasil Classe de Beneficiários 1999/12 Classe 1 a 100 15,5 Classe 101 a 1.000 23,6 Classe 1.001 a 2.000 13,0 Classe 2.001 a 5.000 19,6 Classe 5.001 a 10.000 11,6 Classe 10.001 a 6,7 20.000 Classe 20.001 a 6,4 50.000 Classe 50.001 a 1,8 100.000 Classe 100.001 a 1,6 500.000 Classe Superior a 0,2 5000.000 Total 100,0 2001/12 10,8 19,2 12,3 20,2 13,2 2004/12 2006/12 4,4 3,0 13,4 11,4 11.0 9,2 19,5 18,5 13,6 15,9 2008/12 3,0 9,7 9,0 16,7 15,9 10,2 15,5 15,9 16,2 8,3 12,3 14,5 15,9 3,1 5,7 6,0 7,0 2,5 4,1 4,7 5,3 0,2 0,5 0,9 1,3 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: SEAE (2010). Dados do Cadastro de Operadoras da ANS/MS. * Operadoras ativas com beneficiários, exceto exclusivamente odontológicas e sem beneficiários – com base no critério de residência do beneficiário. 43 Os movimentos podem ter sido decorrentes do aumento das aquisições ou quebra de operadoras de plano de saúde. Os dois casos resultam em maior concentração no mercado. 207 E a mesma preocupação ocorre com o processo de verticalização. É cada vez maior o número de operações de aquisição de hospitais por planos de saúde (ou de aquisição de planos de saúde por operadoras concorrentes, sendo ambos já verticalizados). Em alguns mercados geográficos analisados pelo CADE, parte significativa dos hospitais, mesmo em grandes cidades, já pertencia a uma ou poucas operadoras de planos de saúde, como no AC 08012.000229/2008-8246, no qual cerca de 30% dos leitos hospitalares pertenciam a um único grupo econômico. Embora a introdução deste artigo já tenha adiantado que o movimento de concentração horizontal (aquisição de planos de saúde por operadoras concorrentes) provavelmente se dá com o propósito de criar empresas mais sólidas e menos sujeitas a riscos, há razões que explicam esse movimento com maior detalhe. O setor de saúde apresenta uma série de falhas de mercado, o que vem demandando uma reação por parte da Agência Nacional de Saúde – ANS, que vem aumentando a rigidez da regulação. Essa rigidez decorre da preocupação do regulador em amenizar as falhas de mercado específicas desse setor, garantindo ao consumidor um serviço adequado e eficiente. Essa reação provoca incentivos para uma maior concentração no setor. As falhas de mercado que caracterizam o setor de saúde suplementar são as seguintes: (i) externalidades difusas; (ii) assimetria de informação sob a ótica da operadora de plano de saúde; e (iIi) assimetria de informação sob a ótica do beneficiário. A externalidade difusa ocorre quando as escolhas de consumo de um bem ou serviço pela sociedade geram um efeito para o bem estar individual, 44 Como nos ACs n. 08012.002609/2007-71 e 08012.000229/2008-82. (BRASIL. CADE. Ato de Concentração n. 08012.002609/2007-71. Requerentes: Grupo Amesp e outro, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, DF, 22 set. 2010, Diário Oficial da União. Brasília, 30 set. 2010. e __________ CADE. Ato de Concentração n. 08012.000229/2008-82. Requerentes: Life System Serviços Médicos Ambulatoriais e Diagnósticos Ltda e outros, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, DF, 22 set. 2010, Diário Oficial da União. Brasília, 30 set. 2010). 45 Lei 8.884/94, art. 20, § 3º. A Lei permite ao CADE alterar esse valor para setores específicos da economia. 46 AC de interesse das empresas Amico Saúde Ltda., que pertence ao Grupo Amil, e a Life System Assistência Médica Ltda. (BRASIL. CADE. Ato de Concentração n. 08012.000229/2008-82. Requerentes: Life System Serviços Médicos Ambulatoriais e Diagnósticos Ltda e outros, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, DF, 22 set. 2010, Diário Oficial da União. Brasília, 30 set. 2010). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Ao se olhar mercados geográficos específicos44, em vários deles os principais planos de saúde já detêm mais de 20% do segmento, percentual definido pela Lei 8.884/94 como suficiente para se presumir posição dominante45. Com a permanência desse movimento, a tendência é que esses percentuais se elevem em pouco tempo. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 208 seja este efeito positivo ou negativo47. Por exemplo, quanto maior for a parcela da população alvo de uma campanha de vacinação realizada por uma operadora de planos de saúde que a ela aderir, maior a externalidade positiva gerada para todos os indivíduos, independente se fazem parte do plano ou não. A assimetria de informação sob a ótica do plano de saúde decorre da relação entre a operadora de plano de saúde e (I) os prestadores de serviços do setor de saúde (hospitais, clínicas e laboratórios); (II) os beneficiários. As prestadoras de serviços de cuidados com a saúde, que detêm mais informações sobre os pacientes do que as operadoras de planos de saúde, podem ter incentivo a despender recursos de maneira ineficiente, onerando de forma irrazoada as operadoras. Além disso, os próprios beneficiários não possuem conhecimento técnico a respeito dos seus problemas de saúde ou mesmo dos potenciais riscos, o que os leva a estimar as possibilidades de maneira equivocada, possuindo incentivos, inclusive, para sobre-utilizar os serviços de saúde, já que o custo marginal de utilização do serviço é quase zero48, também onerando de maneira ineficiente as operadoras de planos de saúde. Nesse caso, a assimetria de informação se dá entre os beneficiários e os prestadores de serviços médicos, que detêm maior conhecimento sobre as condições de saúde do paciente do que ele próprio (GAYNOR; VOGT, 2000). O marco regulatório do setor de saúde complementar sofreu mudanças nos últimos anos com o objetivo de dar maior segurança ao consumidor em relação aos seus direitos, tornando mais equilibrada a relação consumidoroperadora, aumentando as exigências econômico-financeiras das operadoras de forma a torná-las menos suscetíveis à falência (LEANDRO, 2010). Entre as principais medidas estão: (I) limitações quanto à regra de cálculo do prêmio, (II) preços mínimos de comercialização do plano (medida que evita a admissão de riscos excessivos); (III) a inclusão de uma cobertura obrigatória e limites máximos de carência, (IV) exigência de capital mínimo, (V) provisões de risco, (VI) provisão para eventos ocorridos e não avisados, e (VII) margem de solvência4950 . Apesar de proteger o consumidor, reduzindo falhas de mer47 Ocorre externalidade quando o custo social de um serviço ou produto difere do custo de oportunidade privado. Na externalidade negativa, o custo social é maior do que o custo privado, como no caso do despejo de lixo no rio por uma fábrica. Na externalidade positiva ocorre o contrário: o custo privado é maior que o social, como no exemplo das campanhas de vacinação. 48 Na ausência de co-participação. 49 BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Resolução - RDC n. 77, de 17 de julho de 2001. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 25 jul. 2001. Seção 1, [s.p.]. 50 “Provisão para Eventos Ocorridos e Não-Avisados: a provisão técnica estimada atualmente para o pagamento dos eventos que já tenham ocorrido, mas que ainda não sejam de conhecimento da operadora” 209 O aumento da concentração, em tese, permite ganhos de escala, maior capacidade de financiamento, maior poder de barganha e diluição de riscos inesperados. Já a verticalização possibilitaria melhor gerenciamento dos custos, maior informação dos beneficiários, investimentos na qualidade do serviço prestado51 e alinhamento de incentivos entre o plano e o prestador. Em ambos os casos os resultados alcançados permitiriam, a priori, reduzir os impactos negativos das falhas citadas e os maiores custos decorrentes da regulação. Contudo, uma das consequências foi o aumento do fechamento de pequenas e médias operadoras ou a aquisição das mesmas por aquelas com maior poder financeiro e a redução da entrada de novos agentes. Embora as razões levantadas não tenham como causa, a princípio, motivações anticompetitivas, o seu efeito traz consigo maior poder de mercado e, assim, a possibilidade de a operadora resultante da concentração vir a prejudicar a concorrência. É por conta dessa possibilidade, cada vez maior e premente com o aumento substancial do número das operações, que o SBDC deve aprofundar a análise. 3. A análise pelo SBDC O SBDC emprega, na análise dos atos de concentração, um roteiro analítico que pressupõe etapas de análise a serem ultrapassadas à medida que a operação enseje maiores preocupações concorrenciais. A posição dominante decorrente de uma operação é presumida, de acordo com a Lei 8.884/94, caso uma fusão ou aquisição resulte em participação de mercado igual ou superior a 20%, o que, claro, não demanda uma intervenção per se. Isso porque a capa52 (ANS, 2001). “Margem de Solvência: a reserva suplementar às provisões técnicas que a operadora deverá dispor para suportar oscilações das suas operações” (Ibid.). 51 O plano de saúde não tem incentivo para investir no hospital conveniado, pois os benefícios seriam partilhados pelas operadoras concorrentes, sem que estas arcassem com os custos (externalidades horizontais positivas). No entanto, caso o hospital pertença ao plano de saúde, ou tenha um contrato de exclusividade com este, os benefícios são internalizados pelo investidor, aumentando o incentivo a investir em inovação e qualidade. 52 Guia para análise econômica de atos de concentração horizontal. BRASIL. Ministério da Fazenda. SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO ECONÔMICO (SEAE). Guia para análise econômica de atos de concentração horizontal. Portaria Conjunta SEAE/SDE nº 50, 1º de agosto de 2001. Disponível em:< http:// www.seae.fazenda.gov.br/central_documentos/guias. 2001>. Acesso em 20 out. 2010. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 cado, essas medidas elevaram os custos para as operadoras, com previsíveis impactos, i.e.: (I) maior incentivo para a concentração; e (II) maior dificuldade para a entrada de novas operadoras. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 210 cidade de a empresa exercer essa posição depende de uma série de variáveis refletidas nas etapas de análise. Havendo possibilidade de exercício, avalia-se se essa possibilidade é ou não compensada pela existência de eficiências específicas da operação e que podem ser repartidas com o consumidor. A primeira etapa do roteiro analítico dos atos de concentração é a definição do mercado relevante, que consiste em delimitar quais os produtos ou serviços devem ser considerados concorrentes daquele objeto da operação (ou afetado pela operação). O mercado relevante geográfico delimita a área no qual a venda do produto ou fornecimento do serviço é economicamente viável. Por exemplo, em um processo envolvendo planos de saúde, é necessário analisar inicialmente: (i) se o mercado produto é o próprio serviço de plano de saúde, se é mais restrito – segmentar em plano de saúde individual, coletivo, etc. — ou mais amplo — englobar outros seguros-saúde e (ii) qual o mercado geográfico — município, região metropolitana, estado, nacional. Para a delimitação desses dois mercados, realiza-se o teste do monopolista hipotético, que é definido da seguinte forma pelo guia53: O teste do ‘monopolista hipotético’ consiste em se considerar, para um conjunto de produtos e área específicos, começando com os bens produzidos e vendidos pelas empresas participantes da operação, e com a extensão territorial em que estas empresas atuam, qual seria o resultado final de um ‘pequeno porém significativo e não transitório’ aumento dos preços para um suposto monopolista destes bens nesta área. Se o resultado for tal que o suposto monopolista não considere o aumento de preços rentável, então a SEAE e a SDE acrescentarão à definição original de mercado relevante o produto que for o mais próximo substituto do produto da nova empresa criada e a região de onde provém a produção que for a melhor substituta da produção da empresa em questão. Esse exercício deve ser repetido sucessivamente até que seja identificado um grupo de produtos e um conjunto de localidades para os quais seja economicamente interessante, para um suposto monopolista, impor um ‘pequeno porém significativo e não transitório aumento’ dos preços. O primeiro grupo de produtos e localidades identificado se53 Op. Cit., BRASIL. MINISTÉRIO DA FAZENDA. SEAE, 2001. 211 As primeiras etapas de definição do mercado relevante produto e geográfico são obrigatórias, pois avaliam se há alguma sobreposição e se esta pode trazer alguma preocupação de ordem concorrencial. Caso a operação não resulte em sobreposição, ou esta seja inferior a 20%, não é necessário passar para as demais etapas de análise, pois a concentração resultante não é suficiente para se presumir poder de mercado decorrente da operação. Além disso, outros indicadores são empregados para se avaliar a possibilidade de poder unilateral ou coordenado, como o C454 e o HHI55. É importante abrir, aqui, um parêntesis. O objetivo da definição do mercado relevante consiste, primeiramente, na averiguação do percentual de mercado resultante da operação sob análise, percentual esse que depende não só da participação detida diretamente pela empresa, mas que deve considerar também as participações minoritárias detidas em outras companhias rivais atuantes no mesmo mercado. O CADE vem reiteradamente considerando que participações minoritárias em concorrentes pode ensejar problemas concorrenciais devido à possibilidade de troca de informações e ao interesse econômico que a rival passa a ter na companhia objeto do investimento, o que levou a uma solução, em termos analíticos, consubstanciada na soma das participações das empresas56. Já existem precedentes dessa postura (a soma das participações) em casos no mercado de telecomunicações, cimento e concreto57. 54 O C4 é a soma das participações dos quatro maiores agentes do mercado. Quanto maior o resultado do somatório, maior a probabilidade de poder coordenado. 55 Ver nota 40. 56 Essa soma vai depender da análise do caso específico. 57 Como nos ACs 08012.008415/2009-41, 53500.012487/2007, 08012.008947/2008-05 e 08012.000836/2008-40. (BRASIL. CADE. Ato de Concentração n. 08012.008415/2009-41. Requerentes: Tecnicópias Gráfica e Editora Ltda e outros, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, DF, 10 fev. 2010, Diário Oficial da União. Brasília, 24 fev. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 gundo este procedimento será o menor grupo de produtos e localidades necessário para que um suposto monopolista esteja em condições de impor um ‘pequeno porém significativo e não transitório’ aumento dos preços, sendo este o mercado relevante delimitado. Em outras palavras, ‘o mercado relevante se constituirá do menor espaço econômico no qual seja factível a uma empresa, atuando de forma isolada, ou a um grupo de empresas, agindo de forma coordenada, exercer o poder de mercado. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 212 Havendo possibilidade de exercício de poder de mercado58, a operação passará pelas etapas de exame da probabilidade de exercício de poder de mercado, na qual serão analisadas as importações, a existência de barreiras à entrada59, a efetividade da rivalidade60 e a existência ou não de outros fatores que propiciem a atuação coordenada. Dessa forma, verifica-se se as importações são um remédio efetivo contra o exercício de poder de mercado. Em caso negativo, passa-se à análise das barreiras à entrada (a fim de analisar se são ou não altas o suficiente para impedir a entrada de novos concorrentes em casos de aumentos de preços) e, se necessário, à efetividade da rivalidade. Se todos os elementos anteriormente citados não forem o suficiente para afastar o exercício do poder de mercado, passa-se à etapa de exame das eficiências. Não havendo eficiências específicas decorrentes da operação61, a mesma deve ser reprovada ou aprovada com restrições62. Se existirem eficiências, passa-se para a etapa seguinte de avaliação dos efeitos líquidos do ato de concentração. Sendo as eficiências específicas à operação apresentadas iguais ou superiores aos custos (efeito líquido não-negativo), a operação deverá ser aprovada. Caso contrário, deverá ser reprovada. O resumo dessas etapas está descrito nas figuras 1 e 2. 2010./__________. CADE. Ato de Concentração n. 53500.012487/2007. Requerentes: Mediobanca - Banca di Credito Finanziario S.p.A e outros, Órgão Formalizador: Agência Nacional de Telecomunicações, Relator: Conselheiro Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, DF, 28 abr. 2010, Diário Oficial da União. Brasília, 10 mai. 2010./__________. CADE. Ato de Concentração n. 08012.008947/2008-05. Requerentes: Supermix Concreto S/A e outro, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, DF, 21 jul. 2010, Diário Oficial da União. Brasília, 29 jul. 2010./ __________. CADE. Ato de Concentração n. 08012.000836/2008-40. Requerentes: Polimix Concreto Ltda.e outro, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro César Costa Alves de Mattos, DF, 21 jul. 2010, Diário Oficial da União. Brasília, 29 jul. 2010). 58 “O exercício do poder de mercado consiste no ato de uma empresa unilateralmente, ou de um grupo de empresas coordenadamente, aumentar os preços (ou reduzir quantidades), diminuir a qualidade ou a variedade dos produtos ou serviços, ou ainda, reduzir o ritmo de inovações com relação aos níveis que vigorariam sob condições de concorrência irrestrita, por um período razoável de tempo, com a finalidade de aumentar seus lucros” (Op. Cit., BRASIL. Ministério da Fazenda. SEAE, 2001). 59 São barreiras à entrada: custos irrecuperáveis, economias de escala ou escopo, fidelidade do consumidor à marca, direitos de propriedade, barreiras regulatórias, nível de integração da cadeia produtiva, capacidade e possibilidade de reação dos agentes do mercado (Ibid.). 60 A rivalidade é afetada pelos seguintes fatores: características dos produtos (homogêneo ou diferenciado), capacidade instalada e ociosa das concorrentes, concorrência via preço, qualidade, inovação, entre outros. 61 De acordo com o Guia de Análise, “as eficiências específicas à concentração econômica horizontal podem se dar sob a forma de economias de escala, de escopo, da introdução de uma tecnologia mais produtiva, da apropriação de externalidades positivas ou eliminação de externalidades negativas e da geração de um poder de mercado compensatório” (Op. Cit., BRASIL. Ministério da Fazenda. SEAE, 2001). 62 Uma operação pode ser aprovada, reprovada ou aprovada com restrições. As restrições podem ser estruturais — venda de ativos — ou comportamentais — obrigatoriedade de realizar, ou não realizar, determinada ação ou conduta. 213 Fonte: SEAE (2001). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Figura 1 - Etapas de análise econômica dos atos de concentração horizontal PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 214 Figura 2 - Detalhe da Etapa 3 – Exercício de poder de mercado Fonte: SEAE (2001). 215 O poder coordenado se refere à possibilidade de as empresas atuarem conjuntamente, de forma a manipular preços e quantidades, prejudicando a concorrência e, por consequência, o consumidor. Para tanto, observa-se se o ato de concentração gera condições para o exercício de poder coordenado pelos agentes do mercado sob investigação. Assim, são fatores que propiciam a coordenação: pequeno número de competidores, elevadas barreiras à entrada, empresas com porte semelhante, repetição da interação entre os agentes, produtos homogêneos, demandas estável, baixo poder de compra dos clientes, alta transparência no mercado. O aumento da probabilidade de fechamento de mercado e/ou de exercício de poder coordenado pode resultar em reprovação ou aprovação com restrições de um ato de concentração. Ressalta-se que a elevação da concentração e a verticalização não trazem, obrigatoriamente, danos ao ambiente competitivo. Pelo contrário, podem resultar em aumento da produtividade, qualidade, incentivos à inovação, entre outros resultados que beneficiem a empresa e o consumidor. Por isso, é necessária a análise de cada operação nas suas especificidades. Entretanto, quanto maior o nível de concentração, maior a necessidade de se aprofundar nas demais etapas de análise. Em algumas dessas etapas, o setor de saúde complementar apresenta desafios que devem ser alvo de maior atenção pelos agentes públicos. Esses desafios serão tratados no tópico seguinte. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 No caso de operação envolvendo verticalização, a análise sofre algumas variações, pois o objetivo é verificar se há possibilidade de fechamento de mercado ou, alternativamente, aumento da possibilidade de poder coordenado no mercado. O fechamento de mercado pode ocorrer quando uma empresa detém poder de mercado no mercado downstream ou upstream objeto da operação, sendo possível prejudicar a concorrência por meio do cancelamento de fornecimento de insumos aos concorrentes (do mercado upstream), ou, de forma inversa, recusar a contração ou parar de comprar dos concorrentes no mercado de insumos (mercado downstream). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 216 4. Os desafios para as etapas de análise As complexidades do setor de saúde geraram interessantes desafios nas etapas de análise dos atos de concentração horizontal e de integração vertical. Neste item, portanto, o propósito é demonstrar alguns dos avanços e o status quo a partir desses desafios, mais especificamente com relação à: (I) definição do mercado relevante produto; (II) definição do mercado relevante geográfico, (III) avaliação das barreiras à entrada, (IV) análise da efetividade da rivalidade e (V) ponderação das eficiências. Particularmente importante, este artigo avalia também a possibilidade de fechamento de mercado, etapa de análise típica de atos de integração vertical, a que as etapas anteriores não aproveitam integral ou necessariamente. 4.1 Definição do mercado relevante produto 4.1.1 Operadoras de plano de saúde A RDC nº 39 da ANS, de 27 de outubro de 2000, define que as operadoras de saúde podem atuar sob as seguintes modalidades: (i) administradoras, (ii) cooperativa médica ou odontológica, (iii) autogestão, (iv) medicina de grupo ou odontologia de grupo, (v) filantropia ou (vi) seguradoras especializadas em saúde. Além disso, as operadoras podem ser classificadas de diferentes formas (tipo de contratação, segmentação assistencial, etc.), tanto pela demanda como pela oferta. A partir dessas categorias, o SBDC tem adotado a seguinte classificação individualizada para definição dos mercados relevantes em seus pareceres e votos: (i) plano médico individual/familiar, (ii) plano médico coletivo, (iii) plano exclusivamente odontológico individual/familiar e (iv) plano exclusivamente odontológico coletivo. Nessa categorização, observa-se a separação entre os planos individuais dos coletivos e os planos médicos dos odontológicos. A primeira divisão leva em consideração principalmente os seguintes aspectos: precificação, grau de regulação, assimetria na substituição e diferença nos prêmios (SANTOS, 2008). Quanto à assimetria, embora um beneficiário de plano coletivo possa mudar para um individual, a recíproca não é necessariamente verdadeira. A 217 Já a segmentação entre planos médicos e odontológicos ocorre devido às diferenças de preço, regulamentação e utilização entre os dois (SANTOS, 2008). As duas segmentações adotadas são empregadas em praticamente todos os atos de concentração nos últimos anos, não suscitando grandes controvérsias. 4.1.2 Serviços de cuidado com a saúde A definição do mercado produto para os serviços de cuidado com a saúde também não tem gerado grandes debates. Essa definição segmenta inicialmente esses serviços entre serviços médico-hospitalares (centro médico e hospitais) e serviços de apoio à medicina diagnóstica. A segmentação completa é a seguinte64: (a) Serviço Médico-hospitalar a.1) Centro médico a.1.1) Ambulatório/Emergência a.1.2) Exames de medicina laboratorial a.1.3) Diagnósticos por imagem a.1.4) Diagnósticos por métodos gráficos a.2) Hospitais a.2.1) Hospital-geral a.2.2) Casos graves a.2.3) Especializado a.2.4) Ambulatório/Emergência a.2.5) Exames de medicina laboratorial a.2.6) Diagnósticos por imagem a.2.7) Diagnósticos por métodos gráficos 63 Ressalta-se que no caso dos planos coletivos não está incluída a autogestão como concorrente. 64 AC nº 08012-002609/2007-71.( BRASIL. CADE. Ato de Concentração n. 08012.002609/2007-71. Requerentes: Grupo Amesp e outro, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, DF, 22 set. 2010, Diário Oficial da União. Brasília, 30 set. 2010). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 diferença nos prêmios muitas vezes também é substancial: a dinâmica concorrencial não é a mesma, já que, em muitas vezes, o contratante da operadora é uma pessoa jurídica que arca com parte do custo63. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 218 (b) Serviço de apoio à medicina diagnóstica b.1) Exames de medicina laboratorial b.1.1) Análises clínicas b.1.2) Anatomia patológica e citopatologia b.2) Exames de apoio a outros laboratórios b.2.1) Análises clínicas b.2.2) Anatomia patológica e citopatologia b.3) Exames de diagnósticos por imagem (por tipo de exame65) b.4) Exames de diagnósticos por métodos gráficos (por tipo de exame). Por exemplo, no ato de concentração nº 08012-002609/2007-71, envolvendo a Medial Saúde S/A e o Grupo Amesp, foram definidos os seguintes mercados relevantes sob a ótica do produto: (I) Hospital-geral; (II) Centro médico; (III) Exame de medicina laboratorial — análises clínicas; (IV) Exame de medicina laboratorial — anatomia patológica e citopatologia; (V) Apoio a outros laboratórios — análises clínicas; e (VI) Apoio a outros laboratórios — anatomia patológica e citopatologia. Dentro de cada mercado foi definido a delimitação geográfica e, em seguida, as participações de mercado das requerentes para cada um deles. Apesar de a definição do mercado relevante sob a ótica do produto não gerar maiores questionamentos nos AC analisados pelo sistema, isso não significa que a respectiva conceituação não seja complexa. A experiência norteamericana mostra que existem possíveis variações a partir daquelas definições, como a segmentação do mercado de hospitais gerais — que poderão ser subdivididos, por exemplo, em hospitais de referência e outros comuns — (GAYNOR; HAAS-WILSON, 1999), que podem ser objeto de análise futura pelo SBDC. Mas, atualmente, os maiores questionamentos, no que se refere ao mercado relevante, ocorrem na definição geográfica, como é descrito a seguir. 65 Não há subdivisão para os seguintes exames, que são tratados como um cluster: raio X, ultrassonografia, mamografia e densiometria óssea. 219 O CADE vem definindo o mercado relevante geográfico para planos de saúde como o município. Essa definição é observada em praticamente todos os atos de concentração desde 200466 e tem como fundamentação basicamente dois argumentos: (i) a legislação da ANS impõe como unidade mínima de atuação por um plano de saúde o município67 e (ii) os clientes de planos de saúde tendem a optar por planos que tenham rede de prestador de serviços conveniada no município no qual residem. Em recentes atos de concentração, a SEAE e o CADE optaram por ampliar o mercado geográfico em municípios de menor porte que apresentaram concentrações elevadas, mas se situavam próximos a outras localidades que, em tese, poderiam atender a população do município sob análise. No AC 08102.002609/2007-71, de interesse das empresas Medial Saúde S/A e o Grupo Amesp, essa extensão do mercado ocorreu na análise dos municípios de Osasco e São Bernardo do Campo68. No mercado de Osasco se incluiram os municípios de Carapicuíba, Barueri, Jandira, Taboão da Serra, Itapevi, Santana de Parnaíba, Cotia, Embu, Itapeceria da Serra, São Lourenço, Vargem Grande, Embu-Guaçu e Caieiras. No mercado de São Bernardo do Campo, foram incluídos Santo André, Diadema, São Caetano do Sul e Mauá. Mesmo com essa extensão, a concentração resultante da operação em Osasco e municípios relacionados ficou acima de 20%, demandando o prosseguimento da análise para a etapa seguinte. Tal necessidade não ocorreu para São Bernardo do Campo, cuja concentração restou abaixo do percentual previsto para a constatação de posição dominante. A justificativa para aquela ampliação presente no voto e no parecer da SEAE tem como base pesquisa que aponta a disposição, pelo consumidor, de se deslocar até 20 a 30 km, ou 30 minutos69 a 40 minutos, para ser atendido por um prestador de serviço médico-hospitalar (SANTOS, 2008). Para que o consumidor tenha interesse em optar por um plano de saúde, é necessário 66 Até outubro de 2010. 67 BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Resolução Normativa - RN n. 100, de 03 de junho de 2005. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 06 jun. 2005. Seção 1, p. 34. 68 Houve também ampliação do mercado nos ACs 08102.000229/2008-82, 08012.003389/2010-89 e 08012.008551/2007-79, entre outros. 69 Valor não necessariamente igual para a definição do mercado nos serviços de cuidado com a saúde, como se verá a seguir. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 4.2. Definição do mercado relevante geográfico PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 220 que o mesmo tenha uma rede de prestadores de serviços situados dentro desse perímetro. Assim, essa distância ou período de deslocamento pode incluir prestadores de serviços localizados em municípios distintos, mas relativamente próximos. O tempo, a urgência e a complexidade são fatores que afetam a disposição do consumidor em percorrer essa distância (SANTOS, 2008). Na análise de Osasco, todos os municípios incluídos se localizavam a menos de 22 km. Para São Bernardo do Campo, todos estavam dentro do perímetro de 16 km. Nesse caso, uma avaliação que se limitasse ao próprio município seria conservadora, por isso optou-se pela ampliação apenas onde houvesse concentração elevada. Já as hipóteses de integração vertical apresentam peculiaridades quanto à definição do mercado. Quando a operação envolve a aquisição, pelo plano de saúde, de algum prestador de serviço, a necessidade de definição do mercado geográfico inclui o mercado desse agente, pois o exercício de poder de mercado pode ocorrer à montante ou à jusante. No caso do mercado de serviço médico-hospitalar, tem-se adotado o raio de 10 km, ou 20 minutos, em relação à unidade adquirida70. Para os serviços de apoio à medicina diagnóstica, depende do exame sob análise: para exames de apoio a outros laboratórios, o mercado é nacional; para os demais exames, ele é municipal. No mercado de serviço médico-hospitalar, a definição é mais conservadora em relação à adotada para a expansão do mercado de plano de saúde, que usa, exatamente, o argumento das pesquisas baseadas na propensão do consumidor a se deslocar em busca do atendimento a um prestador de serviço de saúde. A redução do raio é justificada no voto e nos pareceres em pesquisas junto a prestadores de serviço e na jurisprudência dos EUA, que vem reduzindo a extensão da área geográfica definida devido à verificação de exercício de poder de mercado em operações que delimitaram raios excessivamente longos, alguns de mais de 100 km (GAYNOR; HAAS-WILSON, 2009)71. 70 Para casos de alta complexidade, os órgãos de defesa da concorrência destacam que o mercado pode ser expandido para além do município ou Estado. 71 Mesmo nos EUA a delimitação é extremamente controversa. 221 4.3 Barreiras à entrada O mercado de saúde suplementar apresenta elevadas barreiras à entrada, principalmente as referentes às economias de escala (tamanho da carteira), necessidade de construir uma rede de prestadores74 e as exigências regulatórias. A exigência de maiores níveis de capital mínimo, provisões e margens de solvência tornou mais difícil a entrada de novos concorrentes. Os riscos de insolvência se reduzem com tais medidas, mas a possibilidade de aumento da competição via entrada de novos concorrentes se reduz. Os dados mostram tal fenômeno: a entrada de novas operadoras vem caindo nos últimos anos. Foram 31 novas operadoras em 2008, contra 2.825 em 1999 (LEANDRO, 2010). 72 Esses laboratórios são especializados em controle de qualidade, tendo como clientes outros laboratórios, inclusive em vários estados. 73 Existem outras metodologias apresentadas pela literatura para os mercados citados, como a que adota modelos gravitacionais, modelos esses que definem a área de atuação dos agentes por meio da troca de consumo dos serviços prestados, que dependem da oferta dos serviços, demanda potencial e variáveis de atrito. Há estudos sendo realizados sobre o tema, cabendo ao SBDC participar das discussões, o que já vem fazendo em alguns deles. Como exemplo, há a pesquisa “A estrutura de mercado, o relacionamento com o mercado de trabalho e a regulação econômica em saúde suplementar” realizado pelo Grupo de Estudos em Economia da Saúde e Criminalidade (EESC) do Cedeplar/UFMG, com apoio do CNPQ e ANS. O resultado do trabalho no aspecto da definição de mercado relevante geográfico, que teve como base os modelos gravitacionais, encontra-se em ANDRADE, Mônica Viegas et al. Estrutura de mercado do setor de saúde suplementar no Brasil. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2010. Texto para Discussão nº 400. 74 O que eleva os custos de transação. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 No caso dos exames de apoio a outros laboratórios, a definição do mercado relevante parte do pressuposto de atendimento, por esses laboratórios, a clientes de outros estados, o que expandiria o mercado para além do estado onde está localizado o laboratório do exame sob análise72. Já para os demais exames, que incluem exames de medicina laboratorial, exames de diagnóstico por imagem e exames de diagnóstico por métodos gráficos, define-se de forma mais restrita a área geográfica, por conta da pulverização desses serviços nos municípios analisados pelo SBDC. Claro, nos dois casos, o risco é de se estar definindo o mercado geográfico de forma excessivamente ampla. Na primeira situação, atender a outros estados não é a mesma coisa que poder atender a todos os estados; no segundo, a delimitação municipal em municípios grandes, como nas capitais, pode esconder concentrações espaciais para as quais o SBDC está atento em relação aos serviços médico-hospitalar (para o qual adota um raio), podendo passar despercebido no caso de exames73. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 222 Nas análises, o SBDC vem considerando a entrada nesse mercado como difícil pelos motivos expostos acima. Entretanto, nos mercados de serviço médico-hospitalar, e de serviços de apoio à medicina diagnóstica, o mesmo não ocorre. Cada um desses mercados possui especificidades que devem ser analisadas, passando-se pelas avaliações da probabilidade75, tempestividade76 e suficiência77 na entrada de novos agentes. Contudo, com a verticalização dos planos de saúde para setores a jusante, pode ocorrer uma mudança na análise das condições de entrada nos mercados citados acima. Caso a verticalização se apresente com uma alternativa mais eficiente (em função do maior controle dos gastos), pode ser cada vez mais difícil entrar naqueles mercados de forma individualizada, ou seja, sem uma estrutura mais ampla ao redor, seja um plano de saúde ou serviço agregado. Como as barreiras à entrada no mercado de planos de saúde são altas, a entrada no outro mercado (serviços médico-hospitalar, por exemplo), também será alta, caso tenha que ocorrer de forma integrada para se mostrar efetiva. Isso impactaria diretamente a rivalidade, que será analisada a seguir. A possibilidade de tais mudanças estruturais e seu impacto no padrão de entrada nos setores de prestação de serviços de saúde deverá ser alvo de maiores estudos pelo sistema. No ato de concentração nº 08012-002609/2007-71, envolvendo a Medial Saúde S/A e Grupo Amesp, o Conselho considerou que as barreiras são elevadas, pois não se verificou a entrada de novos players no mercado relevante analisado nos últimos cinco anos e a empresa adquirente era verticalizada (o que, como se verá a seguir, pode impactar a rivalidade, o que desestimula a entrada de novos agentes). A redução do número de planos de saúde com menos de 10.000 beneficiários e entrevistas realizadas com operadoras pela SEAE, como consta no parecer do órgão para o AC, revelaram que a escala mínima viável não é baixa, sendo mais um fator que tornava a entrada improvável. A operação foi aprovada devido à existência de rivalidade, etapa de análise discutida a seguir. 75 Uma entrada é provável quando for possível a um novo entrante obter lucro com os preços existentes antes da operação, sendo assegurado que estes preços não serão modificados. 76 Uma entrada é tempestiva se em até dois anos for possível a um nova empresa entrar no mercado. 77 “A entrada será considerada suficiente quando permitir que todas as oportunidades de venda sejam adequadamente exploradas pelos entrantes em potencial” (Op. Cit., BRASIL. Ministério da Fazenda. SEAE, 2001). 223 Como mencionado no ponto referente às barreiras à entrada, a tendência à verticalização pode modificar o padrão de competição no setor de saúde. E isso pode ter impactos profundos na etapa de rivalidade do guia. A necessidade ou não de entrada de forma integrada e os efeitos disso na efetividade da rivalidade pode modificar os parâmetros de análise dessa etapa. Caso haja um aumento no número de planos de saúde que atuem de forma verticalizada, obtendo os ganhos de eficiência que, em tese, tal estrutura permite, não será possível afirmar que os planos de saúde independentes (e, de forma análoga, os hospitais que concorrem com os hospitais verticalizados) serão concorrentes efetivos dos verticalizados, pois não poderão contestá-los78. Essa mudança no padrão de competição já ocorreu em outros mercados. Um exemplo é o mercado de concreto, cuja necessidade de entrada integrada e a rivalidade entre empresas integradas ou não com o cimento já resultaram em votos mais aprofundados e estudos econométricos pelo SBDC para se definir o resultado da operação79. É provável que tais estudos sejam necessários no setor de saúde. Outro aspecto importante a ser aprofundado diz respeito a como o padrão de rivalidade no mercado de saúde complementar afeta ou não a probabilidade de um dano unilateral ou coordenado à competição. O preço cobrado pelas operadoras para os planos individuais é regulado pela ANS, o que limita a possibilidade de aumento excessivo. Contudo, não há regulação de preços para os planos coletivos, que podem ser elevados com o aumento do poder de mercado das operadoras80. Além disso, há que se ponderar os possíveis efeitos da concentração sobre a qualidade dos serviços prestados ao consumidor. 78 Tal argumento foi citado em algumas operações, como no parecer da SEAE 06130/2010/RJ, e no voto do AC nº 08012-002609/2007-71. 79 Como no AC nº 08012.008947/2008-05, de interesse das empresas Supermix Concreto S/A e Cimpor Cimentos do Brasil S/A, e no AC nº 08012.000836/2009-23, referente às empresas Polimix Concreto Ltda. e Camargo Corrêa Cimentos S/A. 80 No AC nº 08012.010968/2008-82, de interesse das empresas Diagnósticos da América S.A. e Maxidiagnósticos Participações Ltda., o Conselheiro relator acolheu o argumento do poder compensatório como uma das justificativas para a aprovação da operação. As operadoras de planos de saúde, por meio de seus clientes, correspondem a aproximadamente 90% da demanda de exames, e por seu tamanho, acabam conseguindo impor o preço a ser pago pelo serviço. Assim, aquisições que resultem em um equilíbrio entre os agentes que se interrelacionam no mercado pode gerar benefícios para o ambiente competitivo. (BRASIL. CADE. Ato de Concentração n. 08012.010968/2008-82. Requerentes: Maxidiagnósticos Participações Ltda. e outros, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro César Costa Alves de Mattos). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 4.4 Rivalidade PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 224 Embora o preço que o consumidor paga pelo plano individual seja regulado, o preço que o plano paga para aos prestadores de serviço não sofre regulação. Assim, quanto maior o poder de mercado dos planos de saúde, maior a possibilidade de este barganhar quanto ao preço do serviço adquirido, o que pode ter impacto sobre a qualidade do serviço prestado por hospitais e afins. No ato de concentração Medial-Amesp, a operação foi aprovada porque não se observou problemas de acesso aos prestadores de serviços de cuidado com a saúde ou de capacidade instalada nos mercados analisados. Além disso, os principais concorrentes possuíam porte semelhante, podendo rivalizar com as requerentes. Contudo, isso pode não ocorrer em outros mercados, nos quais se verifique agentes com contratos de exclusividade, verticalizados ou não, poucos concorrentes e com grande disparidade quanto ao porte e participação de mercado, por exemplo. 4.5. Possibilidade de fechamento de mercado81 A análise da possibilidade de fechamento de mercado aproveita as duas etapas iniciais da concentração horizontal. Ou seja, definem-se os mercados relevantes produto e geográfico e, a partir dessa definição, calcula-se a participação de mercado dos agentes que concorrem nele. Calculados os percentuais, verifica-se se o agente possui poder de mercado, hipótese em que se analisa a possibilidade de a operação resultar em prejuízos à concorrência nos mercados a jusante e/ou a montante. Por fim, caso haja prejuízos, pondera-se esses com os benefícios líquidos da operação (eficiências específicas), para que a mesma seja aprovada, reprovada, ou aprovada com restrições. O risco de fechamento de mercado é decorrente do processo de verticalização. Ao adquirir ou unir as operações com uma empresa da etapa anterior ou posterior a cadeia produtiva, o agente pode ter o incentivo de parar de contratar ou fornecer insumo para o concorrente daquela etapa. Esse risco é maior quanto maior for a sua participação de mercado e mais difícil a substituição, pelo agente prejudicado, do insumo ou serviço anteriormente fornecido ou adquirido. 81 O CADE não vem analisando a probabilidade de poder coordenado nos seus votos para o setor de plano de saúde, se limitando a verificar se há possibilidade de tal poder ser exercido (por meio do C4). Entre os motivos para essa supressão está o fato do mercado de planos individuais ter o preço regulado pela ANS, o que é fator importante, mas talvez não suficiente, para dificultar a coordenação. De qualquer forma, o preço dos planos coletivos não é regulado, o que descarta este argumento para tal mercado. 225 A Figura 3 acima exemplifica o fechamento de mercado resultante de uma verticalização entre o Plano A e o único hospital de um município fictício. Após a realização da operação, o Hospital D pode ter incentivo a recusar a contração dos planos de saúde B e C, que são concorrentes do plano de saúde pertencente ao seu grupo, já que tem poder de mercado no mercado de hospitais desse município (no caso, 100% de participação). Os beneficiários dos planos concorrentes B e C, ao não poderem ser atendidos no hospital da localidade, podem optar por mudar para a operadora credenciada (A). O mesmo efeito (i.e., o fechamento de mercado para planos concorrentes) pode ser alcançado pelo Hospital D a partir de discriminação de preços ou de condições operacionais de venda. Dessa forma, a verticalização impõe à análise alguns riscos anticompetitivos: caso a operadora de plano de saúde seja verticalizada a uma ampla rede de prestadores de serviço de cuidados com a saúde (por ex. hospitais), menor é seu incentivo a aceitar os preços cobrados pelo prestador independente. No limite, existe a possibilidade de price squeeze ou recusa de contratar, impondo-se o fechamento de mercado para outras operadoras de plano de saúde no mercado relevante definido para a operação. Em particular, as possibilidades de fechamento, ao menos a priori, são maiores em municípios pequenos, em que não há escala suficiente para um número grande de hospitais, clínicas ou outros prestadores de serviços de cuidados com a saúde. Aliás, denúncias de recusa de contratar, inclusive por planos verticalizados, já chegaram ao SBDC, mostrando que tal possibilidade é crível. Na Averiguação Preliminar nº 08012.006899/2003-06, o Instituto Radiológico Bento PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Figura 3 - Fechamento de mercado PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 226 Gonçalves acusava a Sociedade Dr. Bartholomeu Tacchini (SDBT) de recusar o credenciamento do Instituto ao plano de saúde Tacchimed. Segundo o representante, a recusa tinha como objetivo fechar o mercado e prejudicar a concorrência, pois a representada era verticalizada com o único hospital privado de Bento Gonçalves (RS) e o plano detinha cerca de 90% dos clientes de plano de saúde daquele município. Em função da complexidade da conduta, a análise da averiguação empregou três etapas: (I) se a representada detinha posição dominante no mercado a montante; (II) se havia razões objetivas para a recusa do credenciamento e; (III) se a conduta tinha condições de prejudicar efetivamente a concorrência no mercado a jusante. A metodologia, que passou a ser empregada em casos posteriores82, revelou que a conduta, dado a conjuntura do mercado, não tinha a possibilidade de eliminar a concorrência. Essa conclusão no sentido do arquivamento teve como fundamento a verificação de diversos fatores, seguindo a metodologia acima descrita: (i) o plano de saúde Tacchimed vinha perdendo participação de mercado (de 90% para 71% em cinco anos); (ii) havia agentes (principalmente a Unimed) em municípios vizinhos que exerciam pressão competitiva (o mercado geográfico foi ampliado, pois havia municípios vizinhos próximos a Bento Gonçalves); e (iii) existia uma massa importante de clientes que a representante poderia atender (70% da população), sem sofrer o risco de fechar as portas (o que afastava a possibilidade de danos concretos ao mercado relevante da conduta). Esse processo é um exemplo da possibilidade de efeitos anticompetitivos decorrentes da verticalização e da alta concentração em pequenos municípios, nos quais é viável a presença de um ou poucos hospitais, e apenas poucas operadoras possuem esforço de venda de seus planos. A necessidade de aprofundamento da análise mostrou que condutas dessa natureza podem prejudicar a concorrência em mercados com essas características. A aquisição do hospital por um plano, ou vice-versa, pode ensejar as condutas exclusionárias citadas acima, prejudicando a concorrência. 82 Como na AP 08012.011463/2007-54, tendo como representante a Prontomed Sociedade Simples, e como representada o Hospital Santa Casa de Arcos. 227 Caso as etapas anteriores não afastem a possibilidade de exercício de poder de mercado, resta avaliar a eventual existência de eficiências e, em caso positivo, o seu patamar diante dos prováveis efeitos deletérios decorrentes da operação. Assim, ao menos a priori, é possível conceber a geração de eficiências econômicas a partir de operações de concentração horizontal entre planos de saúde ou mesmo a partir de integrações verticais, sobretudo envolvendo operadoras e hospitais. Nos atos de concentração horizontal há possíveis ganhos de eficiência econômica que podem ser obtidos como o aumento no número de beneficiários — ganhos de escala, redução de custos administrativos, capacidade de financiamento — mas é necessário, como já dito, que elas sejam específicas da operação, para que sejam consideradas, devendo ser superiores aos efeitos negativos criados, para que possam gerar aprovação de uma operação83. Como coloca o Guia de Análise sob este ponto: São consideradas eficiências econômicas das concentrações os incrementos de bem-estar econômico gerados pelo ato e que não podem ser gerados de outra forma (eficiências específicas da operação). Não serão consideradas eficiências específicas da concentração aquelas que podem ser alcançadas, em um período inferior a 2 (dois) anos, por meio de alternativas factíveis, que envolvem menores riscos para a concorrência. (...) serão consideradas como eficiências específicas da concentração aquelas cuja magnitude e possibilidade de ocorrência possam ser verificadas por meios razoáveis, e para as quais as causas (como) e o momento em que serão obtidas (quando) estejam razoavelmente especificados. As eficiências alegadas não serão consideradas quando forem estabelecidas vagamente, quando forem especulativas ou quando não puderem ser verificadas por meios razoáveis. 83 No AC nº 08012.001383/2007-91, envolvendo as empresas Recofarma Indústria do Amazonas Ltda. e Leão Júnior S.A., foram consideradas eficiências específicas da operação, como redução de custos variáveis provenientes de compras de insumo, negociação com grandes redes e redução do custo de frete das operações das empresas. Contudo, essas eficiências não foram suficientes para suplantar os efeitos negativos decorrentes da concentração. (BRASIL. CADE. Ato de Concentração n. 08012.001383/200791. Requerentes: Leão Júnior S/A e outro, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro Paulo Furquim de Azevedo, DF, 17 jun. 2009, Diário Oficial da União. Brasília, 03 jul. 2009). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 4.4 Eficiências PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 228 Também é possível conceber eficiências a partir de integrações verticais entre planos e hospitais. Aliás, o principal argumento para a verticalização é a possibilidade de redução de custos e, dessa forma, geração de eficiências. Os aumentos de custos enfrentados pelas operadoras e as recentes medidas regulatórias impuseram às empresas as opções de aumento de preço ou redução dos custos. Como há óbvios limites (regulatórios e não regulatórios) para a primeira opção, os planos de saúde tiveram que adotar a redução de custos, seguindo uma estratégia de limitação dos preços cobrados pelos prestadores de serviço (LEANDRO, 2010)84. A verticalização pode se mostrar uma estratégia adequada para atingir esse objetivo, alinhando incentivos entre o plano e o prestador, além de viabilizar um maior monitoramento dos custos e maior previsibilidade dos riscos, ao permitir uma atenção mais próxima dos pacientes de alto-custo. Contudo, não há consenso se a integração vertical traz economias suficientes para amortizar os vultosos investimentos em capital realizados para as aquisições, principalmente se a própria operadora não possui uma boa gestão administrativa. Além disso, em certas circunstâncias, tais como as descritas acima no item 4.5, como efeito da verticalização há o risco de fechamento de mercado, tanto no mercado de planos de saúde como no de prestação de serviços de saúde. Quanto maior o poder de mercado, maior o risco de efeitos negativos sobre a concorrência que não podem ser desprezados sob o argumento de eficiência gerada pela operação (MOTTA, 2004). Em raras oportunidades, as eficiências geradas em uma operação são suficientes para compensar efeitos anticompetitivos decorrentes de uma operação, seja porque as eficiências não são específicas ou mesmo porque são literalmente inexistentes. As operações envolvendo planos de saúde não fogem a esse standard, valendo descrever, a título exemplificativo, o AC 08012.008853/2008-28, que tratava operação de cessão, ao Hospital de Caridade Dr. Astrogildo de Azevedo, dos direitos e obrigações da Unimed Santa Maria – Sociedade Cooperativa de Serviços Médico Ltda. — em relação ao Centro Médico Hospitalar e a transferência dos clientes do plano de saúde 84 De acordo com LEANDRO, “diante da diminuição do teto de remuneração, houve o aumento do incentivo para que os prestadores adotassem um comportamento estratégico relacionado à assimetria da informação” (Op. Cit., LEANDRO, p. 61). Ou seja, os prestadores têm mais incentivos a solicitar procedimentos em maior número e mais complexos, além de outras estratégias que possibilitem compensar o teto imposto pelas operadoras, sem que estas possam avaliar a adequação dos gastos à necessidade do paciente. Ressaltese, no entanto, que isso não significa necessariamente que o prestador ou médico esteja enganando o paciente. A solicitação pode, por exemplo, reforçar, ou dar mais segurança, a um diagnóstico que poderia ser obtido com um exame mais simples, ou em menor número. 229 Como justificativa para aprovar a operação, as partes alegaram a existência de eficiências, não se verificando, no entanto, qualquer redução de custos de transação, ganhos de escala ou mesmo a introdução de nova tecnologia a partir da concentração submetida ao CADE, para julgamento. Na verdade, a eficiência alegada consistiria tão-somente no suposto incremento no número de profissionais de saúde e de leitos hospitalares. Contudo, nenhuma dessas eficiências foi considerada específica da operação, razão por que a mesma acabou rejeitada pelo Plenário do CADE. As operações que chegaram à análise de eficiência e foram aprovadas não tiveram este argumento como principal elemento para a aprovação. Isso ocorreu, por exemplo, nos atos de concentração 08012.006008/2005-75, de interesse das empresas Diagnósticos da América S/A e Laboratório Frishmann Aisengart S.A, e 08012.010968/2008-82, de interesse das empresas Diagnósticos da América S.A. e Maxidiagnósticos Participações Ltda. No primeiro caso, o relator converteu em diligência o julgamento, dando prazo de 45 dias para a comprovação das eficiências. Foi apresentado relatório da KPMG Risk Advisory confirmando a redução de custos e ganhos de escalas85. Entretanto, no seu voto inicial, o relator faz uma análise do poder compensatório gerado pela operação, utilizando-o como importante argumento que, somando às eficiências demonstradas, justificariam a aprovação da operação. A tese do poder de barganha tem como base a existência de equilíbrio entre dois agentes que se interrelacionam no mercado. Segundo a teoria, o excessivo poder de um dos lados da relação pode causar prejuízos ao bemestar, enquanto a existência de um equilíbrio poderia ser uma alternativa ao 85 Segundo o voto, o relatório da KPMG apontou que “a aquisição do LFA pela DASA teria gerado aumento de escala permitindo a racionalização das compras de reagentes e insumos, a melhoria nas condições de negociações pelo aumento do volume adquirido de reagentes, a utilização dos reagentes de forma mais eficiente e com menos desperdício, a otimização logística na entrega e distribuição de reagentes da central de compras da DASA, em São Paulo, para o LFA, em Curitiba”, além de outros ganhos. As quantificações desses ganhos estão na versão confidencial do voto. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Carimed para um plano de saúde administrado pela Unimed/RS. A concentração resultante no mercado de hospital geral era superior a 90%, com dois dos três maiores hospitais privados do município de Santa Maria (RS) funcionando conjuntamente. No mercado de planos médicos individuais, a participação seria de 98,3%, enquanto no de planos médicos coletivos seria de 97,2%. As barreiras à entrada eram elevadas e não havia evidências de que a rivalidade pudesse contestar o poder de mercado resultante. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 230 mercado autorregulado ou a própria regulação estatal. Naquela operação, cujo mercado era o município de Curitiba, as requerentes alegaram que os planos de saúde detinham elevado poder de mercado, como poderia ser comprovado pelo fato de nos últimos oito anos o laboratório não ter conseguido elevar o preço dos exames para as operadoras. Respostas de ofícios dos concorrentes confirmaram o poder de negociação dos planos, argumento que foi considerado pelo relator, mas não como sendo suficiente para a aprovação. Por isso a conversão em diligência e a análise de todos os argumentos, em conjunto, para o resultado do voto. Já no ato de concentração nº 08012.010968/2008-82, o conselheiro concluiu que as eficiências alegadas pelas partes (ganhos de escala da central de processamento e emissão de laudos) não eram específicas da operação, pois poderiam ser obtidas pelas empresas individualmente. Contudo, o relator também acolheu o argumento do poder compensatório como uma das justificativas para a aprovação da operação. As operadoras de planos de saúde, por meio de seus clientes, corresponderiam a aproximadamente 90% da demanda de exames e, por seu tamanho, acabariam conseguindo impor o preço a ser pago pelo serviço. A verticalização dos planos de saúde também conferiria pressão aos laboratórios e hospitais, pois aqueles são capazes de direcionar a realização de exames e outros procedimentos para suas unidades integradas. O mercado geográfico onde ocorreria a operação — São Paulo e Santo André — era constituído por grandes operadoras de planos de saúde e que já apresentava concentração significativa. Assim, a aquisição resultava em um equilíbrio entre os agentes naqueles mercados. Mais uma vez, ressalta-se que este não foi o único argumento para a aprovação, embora tenha sido importante para o resultado. Destaca-se, contudo, que a construção do poder de barganha é prejudicada caso um dos lados adquira participação na outra ponta, pois as empresas fortalecidas passam a ter interesse no resultado da outra (que varia conforme a participação adquirida), aumentando o risco de fechamento de mercado tanto a montante como a jusante. 231 De tempos em tempos, alguns setores da economia apresentam movimentos em direção a uma maior concentração ou mesmo a uma maior integração vertical. Como os processos são avaliados individualmente, é necessário que os órgãos do SBDC avaliem os objetivos do movimento, não só a fim de que as eficiências pretendidas (se for esse o caso) se mantenham, mas também que os potenciais efeitos anticompetitivos sejam afastados. Toda uma lógica de função preventiva do SBDC é calcada nessa premissa. As etapas de análise dos atos de concentração atualmente utilizadas pelo SDBC fornecem um instrumental interessante para atingir o objetivo delineado no parágrafo anterior. O âmbito de competição dos agentes econômicos do setor de saúde complementar é revelado por um critério de substituibilidade a partir das definições do mercado relevante nas dimensões produto e geográfico, assim definindo de fato qual o mercado afetado pela operação. E as etapas de barreiras à entrada e de efetividade da rivalidade permitem incorporar os efeitos decorrentes não só do processo de verticalização, como também das alterações regulatórios que vêm sendo implementadas pela ANS, com o objetivo de reduzir as falhas de mercado do setor. Isso não quer dizer que avanços não são necessários. É momento de avaliar, com cuidado, a mudança do padrão de competição do setor, em especial no que se refere ao eventual aumento da possibilidade de práticas exclusionárias, bem como ao eventual impacto na qualidade dos serviços de cuidado médico por conta dos processos de verticalização (já que o objetivo desse movimento é controlar custos). Mas esses são apenas alguns dos tópicos que merecerão atenção. Outros certamente surgirão, pois o movimento de concentração e integração vertical não parece estar no fim. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 5. Considerações finais PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 232 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, S. F. Poder compensatório e política de defesa da concorrência: referencial geral e aplicação ao mercado de saúde suplementar brasileiro. Tese de doutorado. Escola de Economia de São Paulo. Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2009. Disponível em: <http://virtualbib.fgv.br/dspace/bitstream / handle/10438/6894/TD%20263%20-20S%C3%ADlvia%20Fag%C3%A1%20 de%2Al meida.pdf?sequence=1>. Acesso em de 15 de outubro de 2010. ANDRADE, Mônica Viegas. et al. Estrutura de mercado do setor de saúde suplementar no Brasil. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2010. Texto para Discussão n. 400. BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Resolução - RDC n. 77, de 17 de julho de 2001. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 25 jul. 2001. Seção 1, [s.p.]. __________ Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Resolução Normativa - RN n. 100, de 03 de junho de 2005. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 06 jun. 2005. Seção 1, p. 34. __________ Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Atlas econômico-financeiro da saúde suplementar 2008 – Versão Preliminar, 2009. __________ CADE. Ato de Concentração n. 08012.002609/2007-71. Requerentes: Grupo Amesp e outro, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, DF, 22 set. 2010, Diário Oficial da União. Brasília, 30 set. 2010. __________ CADE. Ato de Concentração n. 08012.000229/2008-82. Requerentes: Life System Serviços Médicos Ambulatoriais e Diagnósticos Ltda e outros, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, DF, 22 set. 2010, Diário Oficial da União. Brasília, 30 set. 2010. __________ CADE. Ato de Concentração n. 08012.010968/2008-82. Requerentes: Maxidiagnósticos Participações Ltda. e outros, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro César Costa Alves de Mattos. __________ CADE. Ato de Concentração n. 08012.001383/2007-91. Requerentes: Leão Júnior S/A e outro, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro Paulo Furquim de Azevedo, DF, 17 jun. 2009, Diário Oficial da União. Brasília, 03 jul. 2009. 233 __________ CADE. Ato de Concentração n. 08012.008853/2008-28. Requerentes: Orion Participações e Administração S.A. e outros, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro Olavo Zago Chinaglia. __________ CADE. Ato de Concentração n. 08012.008415/2009-41. Requerentes: Tecnicópias Gráfica e Editora Ltda e outros, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, DF, 10 fev. 2010, Diário Oficial da União. Brasília, 24 fev. 2010 __________ CADE. Ato de Concentração n. 53500.012487/2007. Requerentes: Mediobanca - Banca di Credito Finanziario S.p.A e outros, Órgão Formalizador: Agência Nacional de Telecomunicações, Relator: Conselheiro Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, DF, 28 abr. 2010, Diário Oficial da União. Brasília, 10 mai. 2010. __________ CADE. Ato de Concentração n. 08012.008947/2008-05. Requerentes: Supermix Concreto S/A e outro, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, DF, 21 jul. 2010, Diário Oficial da União. Brasília, 29 jul. 2010. __________ CADE. Ato de Concentração n. 08012.000836/2008-40. Requerentes: Polimix Concreto Ltda.e outro, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro César Costa Alves de Mattos, DF, 21 jul. 2010, Diário Oficial da União. Brasília, 29 jul. 2010. __________ Ministério da Fazenda. SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO ECONÔMICO (SEAE). Guia para análise econômica de atos de concentração horizontal. Portaria Conjunta SEAE/SDE nº 50, 1º de agosto de 2001. Disponível em: http://www.seae.fazenda.gov.br/central_documentos/guias. 2001>. __________ Ministério da Fazenda. SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO ECONÔMICO (SEAE). Parecer 06130/2010/RJ. Abril de 2010. Disponível em: www.seae.fazenda.gov.br. GAYNOR, Martin; HAAS-WILSON, Debora. Change, consolidation, and competition in health care markets. Journal of Economic Perspectives, v. 13, n. 1, 1999. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 BRASIL. CADE. Ato de Concentração n. 08012.008853/2008-28. Requerentes: UNIMED Santa Maria - Sociedade Cooperativa de Serviços Médicos Ltda e outro, Órgão Formalizador: Secretaria de Direito Econômico, Relator: Conselheiro Fernando de Magalhães Furlan, DF, 22 jul. 2009, Diário Oficial da União. Brasília, 14 ago. 2009. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 234 GAYNOR, Martin; HAAS-WILSON, Debora. VOGT, W. B. Antitrust and competition in health care markets. in handbook of health economics. Amsterdam: North-Holland: Anthony J. Curlyer and Joseph P. Newhouse Editors, 2000. p. 1405–1487. LEANDRO, Tainá. Defesa da concorrência e saúde complementar: a integração vertical entre planos de saúde e hospitais e seus efeitos no mercado. Dissertação de mestrado. Departamento de Economia. Universidade de Brasília, Brasília, 2010. MOTTA, M. Competition policy: theory and practice. UK. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. U.S. DEPARTMENT OF JUSTICE AND THE FEDERAL TRADE COMMISSION (DoJ and FTC). Horizontal merger guidelines. Issued in August 19, 2010. Disponível em: <http://www.ftc.gov/os/2010/08/100819hmg.pdf>. SANTOS, Thompson. Determinação de mercados relevantes em saúde suplementar. Documento de Trabalho nº 46 da Secretaria de Acompanhamento Econômico – SEAE. Março/2008. Disponível em: <www.seae.fazenda.gov.br>. Acesso em 20 out. 2010. SEAE. Parecer 06130/2010/RJ COGCE/SEAE/MF. SIMPSON, John. Geografic markets in hospital mergers. Federal Trade Comission, jan/2006. 235 Rodrigo Alberto Correia da Silva - Advogado, mestre em direito pela PUC-SP, presidente do Comitê de Saúde da AMCHAM-SP e da filial SP da Britcham, autor do livro Regulamentação Econômica da Saúde. Na Constituição de 1988, o Congresso Nacional, representando o povo brasileiro, optou por um sistema de saúde integral e universal proporcionado pelo Estado, financiado por altos impostos que só aumentaram deste então. A Constituição Cidadã acreditou também no empreendedorismo e na economia de mercado, agindo em sinergia com as atividades do Estado social e garantindo livre participação da iniciativa privada como fornecedora de produtos e serviços desse sistema, bem como a participação privada na saúde suplementar, obedecidas as normas para segurança da população. Na época, a regulação da atividade dos fornecedores e serviços já se fazia pela extinta Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde – SVS/MS, enquanto a Superintendência de Seguros Privados – Susep incumbia-se da saúde suplementar. A primeira focalizava a segurança e a eficácia de produtos e serviços oferecidos à população, e a segunda a poupança popular confiada às operadoras de planos e seguradoras de saúde. O movimento de descentralização das atividades regulatórias empreendido pelo governo no período 1995-2002, resultou na transferência dos deveres, competências, servidores e acervo da SVS/MS para a Anvisa e da Susep para a ANS. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 ANÁLISE DE IMPACTO REGULATÓRIO – HÁ INTERESSE? PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 236 Contudo, foram mantidos ainda laços e controles do governo central sobre as autarquias, que deveriam ser independentes e eminentemente técnicas, compreendendo: (I) o contrato de gestão com o Ministério da Saúde, (II) a nomeação de diretores pelo Poder Executivo, independentemente de carreira nas agências e (iii) o repasse de verbas e incumbências do Ministério da Saúde, especialmente para a Anvisa. A aprovação dos diretores das agências pelo Congresso Nacional, este desenhado como freio ao Poder Executivo, é necessária dado o poder normativo infralegal das agências reguladoras como um todo. Porém, tal freio andou mal e se desarranjou, resultando no grande poder de barganha e pressão nas nomeações por parte dos partidos de sustentação do governo no Congresso, os quais o tem usado e abusado a favor do fisiologismo rebatizado de “ocupação de espaços” no Poder Executivo. As demais agências reguladoras federais e estaduais (Aneel, Anatel, etc.), por tratarem de concessões de serviço público regidas por contratos administrativos com o concessionário, têm nos próprios freios de iniciativas de governos potencialmente capazes de desestabilizar as estruturas fundamentais de Estado. Já Anvisa e ANS atuam sem qualquer limitação pela inexistência de contratos com o setor privado, e da compreensão, pelo Poder Judiciário, da extensão de sua discricionariedade. Tornaram-se os legisladores de fato, criando direitos e obrigações que seu foro íntimo, crenças políticas e inclinações doutrinárias entendam mais adequadas para o Brasil. Em algumas normas vê-se o alinhamento com as políticas de governo regentes do Ministério da Saúde, em outras são impostas regras por convicções pessoais, cada vez mais contraditórias com os planos do governo e com a legislação do setor de saúde. Tal situação não deixa de ser paradoxal: as agências concedentes de serviços públicos exclusivos da União ou relativos a bens públicos ou dominicais, sujeitos ativos em contratos que seguem regime protetivo do interesse público, têm limitações, enquanto as que regulam iniciativa constitucionalmente garantida ao setor privado, que deveriam praticar atos absolutamente vinculados, pois decorrentes de mero poder de polícia, agem com os três poderes em conjunto, legislam, julgam e executam como querem. 237 de Processo Penal, capturar quem entender culpado pelos crimes que criou, julgá-los segundo o processo que estabeleceu e trancafiar os “culpados”. Leituras como O Processo, de Kafka, e 1984, de Orwel, dão uma boa noção do que a falta de um sistema de freios e contrapesos pode causar, mas a que mais me remete à situação atual é a o do conto O Alienista, de Machado de Assis. No campo da ANS, podemos exemplificar o descrito acima com as revisões anuais da resolução que trata do rol de procedimentos cobertos pelos planos de saúde em seus planos base. Os aumentos de rol, conjugados com o controle de preços dos planos de saúde individuais e o próprio engessamento instituído pelo plano base, alinham-se com a busca de ampliação de atendimento da população pelo Ministério da Saúde, o qual, não dispondo de recursos, o transfere cada vez mais para os planos de saúde com as mencionadas ampliações de rol e achatamento de reajuste de preços. Ademais, por lei, o sistema público de saúde pode pedir ressarcimento dos custos caso atenda um segurado por plano privado, valendo o citado rol como “vale reembolso”. A saúde suplementar tornou-se, na verdade, substituta do sistema público. No campo da Anvisa, podemos citar as barreiras regulatórias cada vez mais altas para que a população tenha acesso aos produtos de tecnologia mais moderna e os produtos importados. Isso em atenção às iniciativas de contenção de custos do Ministério da Saúde e à política de desenvolvimento da indústria local de medicamentos e produtos médicos a golpes de RDC. Não obstante Anvisa e ANS realizarem consultas públicas antes da edição de novas normas, estas não permitem participação efetiva dos usuários, do setor regulado ou da sociedade como um todo, pois (i) não existe abertura para o debate ou absorção das observações realizadas e (ii) há grande assimetria das informações entre os representantes das agências e os consultados, pois não são disponibilizados estudos que embasaram a edição das consultas e consequentes resoluções. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 É como se o delegado de polícia pudesse escrever o Código Penal e o PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 238 Embora as leis de criação das agências reguladoras lhes tenham conferido competência para exercer a regulação de mercado, isso não significa em hipótese alguma que possam fazê-lo em desrespeito ou até além do que lhes determinam a Constituição Federal e as leis que regulam os respectivos setores. Por essa razão, é fundamental repensar a atividade reguladora exercida pela ANS e Anvisa para, preservando essa atividade, encontrar o ponto de equilíbrio entre pró-atividade, legalidade, eficácia e impacto para o setor regulado e para a população. O Brasil já superou a fase da conquista de território pela regulação em saúde. Vivemos o momento do ajuste fino, do acabamento da construção da regulação sanitária nacional; necessárias, portanto, maturidade e atenção aos detalhes dos agentes reguladores. Não cabe mais que cada nova RDC seja uma bomba atômica, agora precisamos de atiradores de elite que aperfeiçoem as regras vigentes ou criem novas para proteger a população, causando o mínimo de danos colaterais. Para executar suas missões, as agências reguladoras produzem normas infra-legais alterando inevitavelmente o ambiente de negócios e a conduta das empresas reguladas, criando barreiras, incentivando positiva ou negativamente o investimento no setor. O poder coercitivo das agências reguladoras existe com essa finalidade, não se pode supor que seria executado sem qualquer impacto. O grande desafio é encontrar a medida mais eficaz e eficiente considerados o impacto do exercício do poder normativo e os esperados resultados positivos das novas regras. Nada mais do que a aplicação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da finalidade dos atos administrativos ao ato administrativo regulatório. O ato normativo infralegal, ao reagir a uma nova necessidade ou ao buscar prevenir riscos, deve limitar-se à finalidade a que se destina e ser proporcional ao risco ou dano que pretende evitar. Mais ainda, o ato regulatório deve ser eficaz e não violar ou desbordar da legislação que o fundamenta e, ao abarcar atividades privadas (caso da Anvisa e da ANS), não deve impor ônus desnecessário. No caso da saúde, não 239 produtos e serviços de saúde, ou reduzir a competição e o empreendedorismo, eleitos pela Constituição Federal como motores do desenvolvimento Nacional. A ferramenta técnica para que reguladores e sociedade tenham opinião consciente e informada sobre as regulamentações propostas, é a Análise de Impacto Regulatório, viabilizando análise e debate entre os envolvidos de maneira objetiva e transparente, permitindo a análise de legalidade dos atos normativos pelos poderes Legislativo e Judiciário. A Análise de Impacto Regulatório, sustentada em documentos, listas de verificação (checklists) e protocolos (guidelines) peculiares a cada país adotante, é basicamente um processo de gestão e difusão do conhecimento sobre as causas e consequências de uma dada regra. É inicialmente prospectiva e, após sua vigência, retrospectiva, um processo vivo legitimador da atuação do estado regulador. Os quesitos atendidos pela Análise de Impacto Regulatório são: transparência, coerência, responsabilização, eficácia e governança. No contexto mundial, o início dessa tendência deu-se no final dos anos 1970 nos EUA, com as análises de impacto inflacionário da administração Carter, seguidas das análises de custo-benefício da administração Reagan e de sua adoção de forma mais contundente pela União Europeia em 2002. Para a OCDE (Organization for Economic Co-operation and Development): “Análise de Impacto Regulatório (AIR) é uma abordagem sistemática para avaliar criticamente os efeitos positivos e negativos das alternativas regulatórias propostas ou existentes, bem como as alternativas não regulatórias. Como a empregada nos países da OCDE, que engloba uma variedade de métodos. Na sua essência, é um elemento importante de uma abordagem baseada em evidências para formação de políticas. A análise da OCDE mostra que o comportamento da AIR dentro de uma estrutura sistemática adequada pode apoiar a capacidade dos governos para assegurar que os regulamentos sejam eficientes e eficazes em um mundo mutável e complexo”. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 pode inibir a iniciativa privada a ponto de reduzir o acesso da população aos PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 240 A maior parte dos países membros adota essa análise, tendência que pode ser verificada na figura a seguir: Figura 1 - Tendência de adoção da AIR nas jurisdições da OCDE Fonte: OECD (2009), Indicators of Regulatory Management Systems, p. 64, Paris. Os países adotantes da AIR o fazem por duas motivações, (i) experiências negativas de medidas que causaram mais danos do que benefícios e (ii) aprendizado de melhores práticas com outros países. A Inglaterra lidera a aplicação da análise de impacto regulatório em suas novas regulamentações, seguindo as diretrizes do “esforço para uma melhor regulamentação” (Better Regulation Executive – BRE), porém outros países que servem de referência para os reguladores brasileiros, como México e Austrália, também são usuários comprometidos da ferramenta. No Brasil, que possui tradição jurídica formalista alicerçada na hierarquia entre Constituição, Lei, e atos regulamentadores, a AIR torna-se ainda mais necessária para demonstrar o atendimento das normas programáticas contidas na legislação alicerçante do ato administrativo regulador. É a bem conhecida motivação do ato administrativo, elevada a um processo quase científico de investigação preliminar da prática do ato, para garantir não só um maior 241 executivo e controle social, dos atos das diretorias das agências reguladoras. O próprio ex-presidente da Anvisa mencionou a análise de impacto regulatório como um avanço necessário e iminente em seu discurso de posse em 2008. Infelizmente, deixou o cargo sem ter conseguido implantá-la na agência, o que poderia ser um ótimo benchmark para as demais agências reguladoras brasileiras. A tabela a seguir apresenta alguns exemplos positivos e negativos de normas e como seriam avaliadas sob a perspectiva da análise de impacto regulatório — com sugestões de visões e critérios, que, claro, devem evoluir conforme se desenvolva a ferramenta. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 grau de eficiência, mas também de coordenação, entre os órgãos do poder Investimento alto de adaptação importadores já é efetiva Médio Alto 67/2009 Baixo mentos — Fonte: Elaboração dos autores. — — to aperfeiçoando? Há como reduzir impac- — cado. — por solução de merbarras 2D) pela Casa da Moeda alto custo fabricado para substituir selo de Sim Revisar o conteúdo análise científica) dos produtos (demanda e reduzindo o escopo prazo de adaptação Talvez Aumentando o rápida e rigorosamente penais aos infratores normas regulatórias e de risco e aplicando situações excepcionais necessárias apenas em eficientes (código de baratos e até mais de segurança mais preço dos medica- — Sim Setor regulado Improvável certificadores CE) ou organismos ma ISO (ex. China, propôs utilizar siste- Aumenta o custo/ se automedicam pacientes que hoje para atender os médicos suficientes blico deverá possuir Alto O sistema pú- licitações públicas mentar os preços em regulado podem au- impactos no setor propôs instrumentos — para atender não tem recursos nais que a Anvisa peções internacio- Sim Setor Regulado menor impacto? Existem opções de Médio para Alto Indireto ção de concorrentes boas práticas dos Alto vos produtos Redu- pós mercado e 59/2009 IN 11/2010 44/2010. agência.) para registro pela produtos médicos fabricantes de pela Anvisa dos peção internacional Médio para Alto Os públicos Impacto serviços peções pela Anvisa Alto Barreira a no- Baixo Fiscalização Alto Demanda ins- reguladores gulado Sim Tornando as ins- Impacto órgãos Impacto setor re- 25/2009. Benefício (Determina a ins- RDC Tabela 1 - Normas, benefícios e impactos PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 242 243 tia, correta ou equivocada conforme o prisma de análise; contudo, é um início, estabelece critérios, fixa indicadores, permite o debate objetivo sobre as consequências das normas listadas sem questionar a necessidade de sua criação. O debate reduz a assimetria das informações disponíveis aos agentes públicos e privados envolvidos, deixando claras as consequências sistêmicas da criação da norma. A criação de qualquer nova regulação deveria ser precedida de tal análise e rapidamente revisada, tão logo se verificasse o equívoco das premissas decorrentes das previsões teóricas pré-vigência, tanto em conteúdo quanto em ênfase. Deveria portanto já constar das consultas públicas, ser revisada com as sugestões e críticas recebidas e periodicamente atualizada. Até o momento não se viu tal disposição por parte dos reguladores, quer para o amplo debate preliminar sobre as novas normas, para sua atualização quando a aplicação se mostra danosa, ou para a Análise de Impacto Regulatório (AIR) de forma científica. Quando convidado para contribuir para esta publicação, fui instado a sugerir algo para a melhoria do sistema de saúde no Brasil, o que me pareceu uma responsabilidade além do que me seria possível entregar. Passado o susto, revisitei minha crença básica de que o sistema jurídico é a estrutura sobre a qual as pessoas constroem o bem estar social. Sendo assim, uma boa estrutura regulatória, regras claras, razoáveis, válidas e eficazes, será a base para que o Poder Público e a iniciativa privada desenvolvam tais melhoras no sistema de saúde nacional. Dessa forma, minha sugestão é de uma reforma que parece menor no processo de criação das regras regulatórias, mas que acredito poderá ter grande impacto em cada norma criada após sua implantação. Caro leitor, estudioso do setor, formador de opinião, minha sugestão é a adoção do processo de avaliação de impacto regulatório para as resoluções da Anvisa e ANS, mas, não sendo egoísta, por que não para todas as agências reguladoras? Melhor ainda se implementada por Lei, com análise por organismo independente como o IPEA ou outros. Há interesse? Então, mãos a obra!!! PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 A classificação é meramente provocativa, gerando empatia ou antipa- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 244 245 André C. Medici - Economista Senior (Saúde) do Banco Mundial. Introdução Sistemas de saúde tendem naturalmente a ser fragmentados. Essa fragmentação tem sido responsável, em grande medida, pelos altos custos de transação e ineficiências nesses sistemas. A fragmentação também resulta do jogo de interesses dos agentes do setor, que a utilizam como forma de ocultar informações e garantir privilégios financeiros decorrentes da falta de transparência ou da corrupção. A maneira mas natural de tentar reduzir essa fragmentação seria ter bons sistemas de registros e organização de informações, mas isso era praticamente impossível antes do surgimento de registros eletrônicos em saúde. Formas rudimentares de informatização de serviços de saúde começam a aparecer no final dos anos sessenta, porém com muitas dificuldades, dado que se orientavam basicamente a organizar e cruzar informações existentes, sem PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 REGISTROS ELETRÔNICOS DE SAÚDE: UMA FERRAMENTA A FAVOR DA UNIVERSALIZAÇÃO E DA TRANSPARÊNCIA PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 246 o devido foco nos pacientes ou usuários. Essa realidade começa a mudar a partir dos anos oitenta, com o surgimento de novas tecnologias gerenciais em saúde como os grupos relacionados de diagnóstico (DRGs), a digitalização de fichas clínicas e o cruzamento dessas informações com dados cadastrais de usuários dos sistemas de saúde. Os registros eletrônicos em saúde (RES) associados a usuários, em suas diversas formas (cartões magnéticos, cartões inteligentes com chip, códigos de barra, etc.), têm sido utilizados crescentemente nos últimos 25 anos como forma de aumentar a cobertura e agilizar o fluxo de pacientes nos dos sistemas de saúde, podendo evitar duplicações de cobertura e fraudes associadas ao pagamento de serviços não prestados, e materiais e medicamentos não utilizados pelos pacientes. São mais propriamente uma ferramenta aumentando o acesso, a transparência e o controle dos recursos nos serviços de saúde do que um instrumento para melhorar a qualidade direta da prestação dos serviços (I). A utilidade dos RES, portanto, associa-se não só à sua contribuição para a universalização da saúde, ao incrementar o acesso e reduzir o tempo de resposta dos serviços às necessidades dos pacientes, mas também à sua essencialidade como meio de aumentar a transparência e a eficiência no setor. Na medida em que os RES permitem um melhor conhecimento das condições de saúde dos pacientes e dos recursos utilizados na prestação de serviços, contribuem dessa forma para um melhor monitoramento e avaliação e para o combate a fraudes e corrupção no setor. Ainda que sejam caros, e muitas vezes as estratégias utilizadas em sua implementação corram o risco de não serem bem sucedidas, os RES e outros sistemas de tecnologia de informação em saúde propiciam economias de recursos à médio e longo prazos, ao aumentar a eficiência dos serviços, a padronização de procedimentos e o controle e avaliação na aplicação de guias clínicas, e por gerar melhores mecanismos de controle minimizando fraudes em áreas estratégicas de compras de serviços de saúde, insumos básicos, uso de equipamentos e medicamentos. Permitem também controlar adequadamente o uso das instalações de saúde, especialmente nos níveis de atenção primária e secundária, e reduzir os erros na administração de medicamentos (II). Em algumas áreas, como nos serviços de emergência, os sistemas de 247 salvam mais vidas, com um custo incremental operativo pequeno comparado aos benefícios sociais gerados (III). Os países desenvolvidos têm realizado altos investimentos na implementação de RES. Uma análise de seis países da OECD (IV) revela que os investimentos anuais per capita em RES em 2005 foram elevados, especialmente em países com sistemas públicos universais como UK (US$192,79), Canadá (US$31,85); Alemanha (US$21,20) e Noruega (US$11,43). Este grande volume de investimentos se justifica pelas funções que os RES podem desenvolver, como ilustra o diagrama abaixo proposto pelo NHS inglês (V). Gráfico I - Registro eletrônico da saúde Fonte: NHSIA, NHS, 2000 www.nhsia.nhs.uk Como se pode notar, os RES servem a múltiplos propósitos: desde acesso aos registros pelos usuários, reduzindo a assimetria de informação, até atividades assistenciais, como apoio 24 horas a assistência nas ações de agendamento eletrônico dos serviços e no próprio atendimento rotineiro aos pacientes, nos quais os profissionais de saúde (especificamente aqueles que tratam do paciente) passam a ter acesso a informações clínicas (histórico do paciente, exames, anameneses, etc.) que melhoram a qualidade das decisões PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 tecnologia da informação melhoram dramaticamente o tempo de resposta e PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 248 médicas adotadas. Por outro lado, os RES também permitem a produção de agregados de dados desidentificados (anônimos), permitindo melhorar aspectos associados a ações coletivas como o aprimoramento dos programas de saúde, o aumento da eficiência na gestão e controle social sobre os serviços e o avanço de pesquisas epidemiológicas que permitem organizar as prioridades no atendimento dos serviços. Embora países desenvolvidos com sistemas universalizados tenham aumentado esses investimentos em RES, tais investimentos ainda são muito pequenos em países cujos sistemas de saúde voltam-se mais para o mercado de planos privados, como os Estados Unidos (US$0,43). Esse fato talvez possa justificar porque o sistema norte-americano segue sendo um dos mais custosos e com menor acessibilidade dentre o conjunto dos países desenvolvidos. No entanto, experiências pioneiras como a da Kaizer Permanente da Califórnia, mostram que os investimentos em RES podem gerar grandes benefícios, mesmo em países baseados em sistemas de mercado de seguros de saúde como os Estados Unidos. Um breve acompanhamento da imprensa mundial também mostra que nos países nos quais existe maior resistência ao uso de RES ou de sistemas de controle baseados em tecnologia de informação, tende a ocorrer um ambiente de descontrole favorável à corrupção, à falta de regulação no uso de tecnologia médica custosa e desnecessária e ao desestímulo no uso de protocolos e guias clínicas (VI). O objetivo deste artigo é comentar os esforços na implantação de uma estrutura eficiente de RES no Brasil, entre 1999 e 2002 — o Cartão SUS — e de como essa estrutura poderia ter alavancado a universalização do SUS em anos mais recentes, caso não tivesse sido descontinuada a partir de 2003. Mesmo assim, ainda existem possibilidades de reverter o processo e recuperar o tempo perdido nos próximos anos. É o que passaremos a ver. A experiência brasileira do Cartão SUS O médico sanitarista Sylvain Levy, hoje aposentado, é uma das pessoas que durante muito tempo trabalhou incansavelmente com sistemas de 249 junto de população do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), coordenamos conjuntamente alguns esforços para a integração das bases de dados produzidas entre o IBGE (AMS - Pesquisa de Assistência Médico Sanitária) e o Ministério da Saúde (CNES - Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde). Recentemente, o site Domingueira, de Gilson Carvalho, publicou um excelente artigo de Sylvain (VII) sobre a origem e os problemas enfrentados na implantação do Cartão SUS. O artigo constata várias coisas importantes: a) Primeiramente, que a ideia do cartão já estava prevista na Norma Operacional Básica (NOB) de 1996, mostrando a intenção do governo em atacar o problema de coordenação do sistema à semelhança do que fizeram alguns países europeus e o Canadá; b) O então ministro da saúde, inicia em 1998 a diretriz de cumprir a NOB-96 e avançar na implementação do cartão. Entre 1998 e 2002 completase o desenho preliminar das informações e formas de operação do cartão e são realizados estudos piloto para sua implementação em 44 municípios, com um total de 13 milhões de usuários; c) Entre 2003 e 2006 o processo ficou estancado. A partir do primeiro semestre de 2003, a experiência foi desativada pelo governo, com a transferência de dois coordenadores que exerciam papel chave no projeto para outros ministérios e a decisão de interromper o processo para que fosse utilizado software livre ao invés de sistemas proprietários que, por ironia, já haviam sido pagos pelo governo; d) Ao final de 2006, o então ministro da saúde resolve ressuscitar o projeto, retomando a relação entre estados e municípios, com o apoio do Governo Federal, para a continuidade do projeto do Cartão SUS de forma descentralizada. e) No entanto, dois fatores tem feito com que o processo tenha avançado lentamente: o primeiro, a falta de investimentos em informatização dos serviços de saúde na ponta de linha para que o processo se torne efetivo. O segundo, a inexistência de câmaras de compensação financeira pelos serviços prestados entre as distintas esferas de governo (federal, estadual e mu- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 informação no Ministério da Saúde do Brasil. Em 1986, quando fui diretor ad- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 250 nicipal), desincentivando a implantação do cartão como forma de compensar aos serviços municipais ou estaduais de saúde por pacientes oriundos de outros municípios, de outros estados, ou até do setor privado, caso tenham planos de saúde. Para tentar explicar o processo e avançar em propostas para que o cartão SUS retorne e se torne um efetivo fator de universalização e transparência dos serviços no setor, faremos alguns comentários sobre o ocorrido em cada uma dessas fases. A conceitualização do Cartão SUS no Brasil A documentação existente evidencia a intenção governamental, desde os anos sessenta, de criar um sistema estatístico para identificar usuários de saúde e ver como os brasileiros atendiam suas necessidades de saúde. O tema surge desde o governo Janio Quadros e é amplamente discutido na III Conferência Nacional de Saúde, de dezembro de 1963, no governo João Goulart, quando se propõe que o IBGE e o Ministério da Saúde coordenem-se para a criação de um sistema dessa natureza. No entanto, em que pesem as discussões sobre tais temas, não havia tecnologia suficiente para a implantação desse processo, e qualquer sistema estatístico a ser criado naquela época não propiciaria os elementos de acesso e gestão clínica que poderiam ser estabelecidos com a concepção do cartão SUS surgido no final dos anos noventa. A proposta do cartão em 1998 vem a atender às necessidades da NOB 1996 que procurava resolver os problemas de saúde no Brasil nas perspectivas de gestão, assistencial, epidemiológica e sanitária. O início da implementação do cartão A implementação de processos de tecnologia da informação em saúde não é fácil. Sistemas de informação necessitam ser meticulosamente planejados para compatibilizar rotinas, fluxos e processos de obtenção, tratamento e uso dos dados, com a finalidade última que as políticas de saúde se propõem alcançar. Dadas essas dificuldades, é frequente que a implementação 251 perdas de recursos e, muitas vezes, tenham que voltar atrás em algumas decisões (VIII). Os primeiros passos na implementação do Cartão SUS esbarraram em processos licitatórios e organizacionas que foram progressivamente sendo resolvidos. Em 1999 foi feita a primeira licitação para o desenho e implantação do sistema em experiências piloto. A licitação previa a contratação de uma solução de informática global, dividida em três lotes, incluindo o desenvolvimento e instalação de terminais específicos (os terminais de atendimento SUS – TAS), aquisição da infraestrutura de informática e de comunicação, desenvolvimento de aplicativos, emissão dos cartões, capacitação de recursos humanos, manutenção e assistência técnica, dentre outros. A escolha das experiências piloto privilegiou desde pequenas cidades que ofertavam somente serviços de atenção básica, até grandes centros urbanos, com serviços de alta complexidade (ix). O processo de cadastramento proposto pelo cartão baseava-se no cadastro do PIS-Pasep, reconhecido como um dos que menos permite fraudes. Nesse sentido, para aqueles que não tinham PIS-Pasep (todos os que não trabalhavam ou estavam fora do mercado formal de trabalho), os números do Cartão SUS seriam gerados pelos serviços de saúde e validados pela Caixa Econômica Federal (CEF), sendo posteriormente incorporados a uma base de dados que seria compartilhada entre a CEF e o Datasus. O cartão identificaria cada indivíduo vinculando-o a um gestor específico e a um conjunto de serviços de saúde, tal qual estipulado pela NOB-96. De acordo com a documentação pessoal de Sylvain Levy, o cartão envolvia várias áreas, tais como atenção à saúde, planejamento e programação, regionalização da assistência à saúde, vigilância epidemiológica, vigilância sanitária, controle, avaliação e auditoria. O projeto piloto destinou-se basicamente às áreas de identificação e registro do usuário no momento do atendimento, localização do prontuário do usuário, registro dos profissionais e estabelecimentos de saúde, agendamento local e remoto de consultas e exames laboratoriais, notificação compulsória dos agravos à saúde, dispensação de medicamentos, registro da execução de exames laboratoriais, procedimentos coletivos e atualização dos dados cadastrais. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 de sistemas de informação de saúde ultrapassem os prazos previstos, sofram PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 252 Além do mais, o cartão gerava uma série de possibilidades para a organização do sistema, atendendo a distintas necessidades dos usuários (história clínica, imediata identificação, vinculação à uma unidade de saúde, agendamento automático e aglilização no atendimento, ampliação do acesso a medicamentos), dos profissionais de saúde (facilidade no uso de protocolos, meios para avaliação dos trabalhos de equipe e para a melhoria dos serviços prestados, simplificação de rotinas e processos de trabalho, aumento da velocidade na provisão de insumos) e gestores do sistema (integração de distintas bases de informação, organização dos processos de referência e contra-referência, avaliação e monitoramento da rede prestadora, otimização dos processos de aquisição e dispensação de medicamentos, mecanismos de compensação financeira entre as distintas esferas de governo. O Projeto Reforsus, financiado pelo Banco Mundial e pelo BID, foi utilizado como fonte dos recursos para financiar a proposta, sendo a Unesco a entidade gestora dos recursos. A Sociedade Brasileira de Informática em Saúde (SBIS) daria o suporte técnico e conceitual para a idealização do cartão e forneceria consultoria especializada. A gestão do processo ficou a cargo da Secretaria de Investimentos em Saúde, com o apoio dos quadros técnicos da área de informática do Ministério da Saúde. O processo teve algumas complicações associadas à pressa para sua implementação; à natureza dos contratos com as empresas consultoras e aos equipamentos distribuídos entre as secretarias de saúde estaduais e municipais. Mesmo assim, pode-se dizer que, ao final de 2002, já se contavam 13 milhões de pessoas registradas no Cartão SUS em 44 municípios escolhidos como piloto. No que se refere a equipamentos, foram instalados mais de 10 mil TAS para operar o cartão, além de 27 equipamentos servidores estaduais, 44 municipais e dois federais que agregavam os dados recebidos pelos TAS. Foram treinadas mais de 8 mil pessoas nas secretarias de saúde estaduais e municipais para a operação do Cartão SUS. Além do mais, duas portarias abriam a possibilidade de que a experiência piloto fosse replicada em outros estados e municípios: (a) A Portaria GM 017, de 13 de fevereiro de 2001, que expandia a possibilidade para que qualquer estado ou município pudesse registrar sua população e emitir o Cartão SUS e; (b) a Portaria GM 039, de 14 de abril de 2001, que regulamentou a 253 estados e municípios, atribuindo o pagamento para cada cadastro realizado e validado pela CEF. Dadas estas características, o terreno estava pavimentado para que a experiência do Cartão SUS pudesse ser implementada e rapidamente expandida para todo o território nacional. Entre 1998 e 2002 foram gastos recursos equivalentes a R$ 150 milhões, o que não é muito quando se considera a dimensão e complexidade da tarefa envolvida. A paralisação do Cartão SUS (2003-2006) A partir de 2003, o governo se desinteressa em dar continuidade e expandir as experiências piloto para a implementação do Cartão SUS. A equipe de técnicos e consultores que estava a cargo do projeto foi desmobilizada, tendo seus principais coordenadores enviados para outros ministérios. Mais grave, no entanto, foi a descontinuidade do apoio aos estados e municípios na implantação dos softwares desenvolvidos e pagos pelo governo às empresas consultoras, sob a alegação de que se passaria a utilizar uma política de software livre e de que os softwares anteriormente desenvolvidos e implantados teriam que ser convertidos para novos sistemas em base LINUX. Ainda que seja louvável o uso de uma política de software livre, esta não tinha cabimento no caso do Cartão SUS, dado que o ministério já havia pago pelos direitos de propriedade dos respectivos softwares às empresas consultoras que os desenvolveram, sendo portanto o proprietário dos códigos fonte dos programas e podendo, portanto, fornecê-los gratuitamente aos estados e municípios, como aliás já vinha fazendo. Ao longo desses anos, muitos dos TAS existentes, não recebendo apoio ou estímulo do governo federal, e dada a falta de atualização tecnológica, foram desativados pelas secretarias estaduais e municipais de saúde, desmontando a proposta original do Cartão SUS (x). Segundo Sylvain Levy, somente o município de Aracajú, capital de Sergipe, manteve os conceitos originais do Cartão SUS, podendo servir de exemplo do que se poderia alcançar. A verdade é que ainda que implicitamente a proposta do Cartão SUS PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 operacionalização e remuneração do cadastramento de usuários do SUS aos PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 254 continuasse em vigor, as decisões tomadas a partir de 2003 geraram o abandono dos parceiros estaduais e municipais à ideia e a desconfiança dos mesmos em dar continuidade ao processo. Mas, mesmo tendo sido desativada a proposta original, durante esse período manteve-se a possibilidade de que as secretarias estaduais e municipais seguissem cadastrando sua população com a sistemática de validação estabelecida pelo Cartão SUS, gerando uma base cadastral que em 2006 já chegava a 133 millhões de registros, dos quais somente 23 milhões estavam validados pela CEF. A lenta e progressiva retomada do Cartão SUS A partir de fins de 2006, o Ministério da Saúde retoma progressivamente a implementação do Cartão SUS. Entre as medidas tomadas para tal fim se destacam: (a) a disponibilização para os estados e municípios de um aplicativo CAD-SUS, em base web, permitindo-lhes a consulta on line à base de dados da população cadastrada; (b) a geração de interoperalidade entre o Cartão SUS e o SISREG, utilizado como base para a montagem de centrais de regulação nos estados e municípios, permitindo que cada esfera de governo possa dimensionar a população a ser considerada em seus sistemas de regulação e contribuindo para evitar duplicações; (c) atualmente o Ministério considera a possibilidade de iniciar um RES como piloto nos hospitais do Rio de Janeiro, utilizando e ampliando a base cadastral existente no Cartão SUS. Estima-se que em 2009 existiam 171 milhões de registros de pessoas no Cartão SUS, dos quais 93 milhões podem ser considerados definitivos porque ja foram revisados pela CEF. Alguns outros municípios estabeleceram, por iniciativa própria, dar continuidade ao registro de sua população no Cartão SUS, como é o caso de Curitiba (PR), São Paulo (SP), Vitória (ES), Caldas Novas (GO) e Porto Alegre (RS), ainda que com finalidades distintas e com soluções informáticas diferentes da originalmente proposta. A paralisação do processo entre 2003 e 2006 não foi suficiente para reverter uma cultura e uma expectativa que já havia sido criada entre gestores, funcionários e usuários, quando ao uso deste instrumento. 255 Em certa medida, o desinteresse na implantação do Cartão SUS por parte do governo entre 2003 e 2006, esteve em sintonia com os interesses de boa parte dos atores do sistema de saúde no Brasil em evitar o aumento do controle social sobre a prestação de serviços de saúde. Do ponto de vista dos sindicatos profissionais e dos prestadores de serviços, a existência do Cartão SUS estabeleceria novos patamares de controle social, por meio de serviços como a marcação automática de consultas e cirurgias, e a possibilidade de que os usuários tivessem evidência clara para reclamar por agendamentos não cumpridos ou serviços não realizados. No Brasil, no qual o absenteísmo nos sistemas públicos de saúde costuma ser elevado e o pagamento por procedimentos não realizados é ainda uma prática frequente, a implementação do Cartão SUS imporia medidas favoráveis ao cumprimento da jornada de trabalho dos profissionais e maior controle sobre a entrega de serviços dos estabelecimentos públicos e privados ao SUS, aumentando indiretamente os meios para a fiscalização dos gestores públicos e da população sobre os profissionais e prestadores de serviços. No que diz respeito aos fornecedores de equipamentos, insumos e medicamentos, os sistemas associados ao cartão, na medida em que introduziriam maiores controles sociais e de gestão sobre as compras de insumos e utilização de serviços, também reduziriam a possibilidade de fraudes. E todos sabem que, como demonstra a imprensa, o nível de fraudes e desvios de fundos públicos em saúde foi bastante elevado no período 2003-2006 (xi). Como avançar na Implementação do Cartão SUS? Em que pesem todos os problemas enfrentados pelo País, deliberadamente ou não, para implementar RES no Brasil deve-se ter em conta todas as vantagens que poderiam estar associadas a implementação do Cartão SUS, caso a experiência não tivesse sido descontinuada em 2003. Para avançar na implementação efetiva do Cartão SUS, seria necessário adaptá-lo a algumas novas circunstâncias. Abaixo estão alguns dos passos propostos: a) Por um Cartão SUS federativo: a ideia de um sistema centralizado PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 A quem interessava que o Cartão SUS não funcionasse? PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 256 ao nivel federal continua a ser importante, mas deveria ser adaptada de forma a não desmontar as experiências anteriormente implementadas ao nível regional e local. Em um país federativo, seria natural que os estados e municípios que já desenvolveram sistemas de saúde baseados no Cartão SUS possam mantê-los. No entanto, os sistemas existentes deveriam ser capazes de realizar trocas de informações com base em conceitos unificados, permitindo organizar uma base de dados única sob o mesmo conceito, compatível com as necessidades de gestão, assistenciais, epidemiológicas e sanitárias. b) A implantação do sistema nas regiões mais remotas: caberia ao Ministério da Saúde: (I) incentivar os estados e municípios que já desenvolveram seus próprios sistemas a cofinanciar as mudanças necessárias para a implantação de um cartão único do SUS, com um conjunto de informações comuns que permitam operar sobre a base de diferentes sistemas e mantenham a comparabilidade e troca de informações entre distintos níveis de governo. (II) criar uma metodologia simples, rápida e barata de implantar o Cartão SUS nas regiões mais pobres e desprovidas de serviços ou de sistemas dessa natureza, estabelecendo os mecanismos de financiamento e os incentivos técnicos e de capacitação e retenção de pessoal para que esses sistemas funcionem. Com isso, estados e municípios que já avançaram na operacionalização de seus sistemas poderiam mantê-los e adaptá-los às novas características do Cartão SUS, ao mesmo tempo em que aquelas regiões desprovidas de serviços começariam a se beneficiar com a implantação desses sistemas; c) Cartão SUS que tenha como referência redes de saúde: redes de atenção à saúde são arranjos organizativos de unidades funcionais e/ou pontos de atenção de diferentes densidades tecnológicas, que, integrados por meio de sistemas logísticos, de apoio diagnóstico e terapêutico e de gestão, buscam garantir a totalidade do cuidado. A porta de entrada e base para a organização do sistema é a estrutura de atenção primária da saúde. Sendo, por exemplo, territórios que propiciam a integração, referência e contra-referência em todos os níveis de atenção, as redes de saúde, uma vez constituídas, seriam o espaço de referência para a emissão do Cartão SUS para uma dada população que poderia variar entre 200 e 500 mil habitantes. Dessa forma, cada rede de saúde poderia configurar desde um dado espaço em um grande município metropolitano, até a integração de vários pequenos municípios. 257 nanceira entre redes de saúde: cada rede de saúde deve ser o espaço para o atendimento de uma dada população. Isso não significa que as redes de saúde vão negar o atendimento de pessoas que, por circunstâncias diversas, não vivam ou pertençam geograficamente a tal rede. Para que isso ocorra sem constrangimentos, o Cartão SUS pode ser utilizado como mecanismo para acionar compensações financeiras e transferências de recursos entre distintas redes de saúde. Pode também atuar como mecanismo para compensar as transferências de recursos daqueles que detém planos de saúde quando atendidos nos estabelecimentos que pertencem a uma dada rede de saúde. Assim o Cartão SUS permitiria uma maior justiça na distribuição dos ônus e dos incentivos financeiros para que as redes funcionem como espaços de excelência na organização dos serviços de saúde no Brasil. e) Cartão SUS e centrais de regulação: o Cartão SUS poderá ser visto como o principal elo de ligação entre os direitos de proteção à saúde do indivíduo e famílias, as redes de saúde e as centrais de regulação. Para tal, basta que a gestão das bases de dados de cada rede de saúde esteja na central de regulação correspondente a essa rede e que as distintas unidades da rede funcionem como elementos para a constante atualização eletrônica dos cadastros do Cartão SUS, quando apropriado. Nesse novo desenho do sistema, as centrais de regulação serão organizadas por redes de saúde e integradas ao nível dos departamentos de regulação de saúde, a serem criados nos estados. Municípios por demais pequenos para comportar uma central de regulação deverão integrar o consórcio intermunicipal que formará as redes de saúde e a central de regulação da rede que administra esse consórcio. Já os municípios que abrangem uma ou mais redes integradas de saúde contarão também com departamentos de regulação em suas secretarias municipais de saúde que coordenarão o suporte às distintas redes existentes no município e eventuais agendamentos de especialidades de cada rede. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 d) Cartão SUS como base para os mecanismos de compensação fi- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 258 NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (I) LINDER, J. A. et al. Electronic health record use and the quality of ambulatory care in the United States. In Arch. Intern Med. 2007; 167(13): 14001405. Este artigo, baseado em análises do National Ambulatory Medical Care Survey dos Estados Unidos de 2007 a 2004, examinou a relação entre o uso de RES e 17 indicadores de qualidade ambulatorial, concluindo que, em 14 dos 17 indicadores inexistem variações significativas na qualidade dos serviços associadas ao uso de RES pelos centros ambulatoriais. Em dois indicadores, o uso de RES propicia melhor qualidade e, em um, pior qualidade. (II) CHAUDHRY, B. et al. Systematic review: impact of health information technology on quality, efficiency, and costs of medical care. In: Annals of Internal Medicine, 2006; 144(10): E12-E22. Embora esse paper reconheça os avanços propiciados pelo uso de tecnologia da informação em saúde, eles dizem que as avaliações existentes limitam-se a poucas instituições, não havendo evidências conclusivas sobre os impactos positivos na redução de custos. (III) ATHEY, S.; STERN, S. The impact of information technology on emergency care outcomes. In: Rand Journal of Economics, 2002; 33(3):399432. (http://www.jstor.org/stable/3087465, accessed on 02/19/2010). (IV) ANDERSON, J. F. et al. Health care spending and use of information technology in oecd countries. In: Health Affairs, 2006, 25(3):819-831. Esse estudo mostra que, embora inexistam evidências robustas de que os sistemas de tecnologia da informação reduzam custos, os Estados Unidos estão ingressando no uso desses sistemas com um atraso de quase 12 anos em relação a outros países da OECD. (V) Extraído de BANDARRA, E. Estratégias para a informática em saúde no Brasil. Apresentação feita no Seminário Prontuário Eletrônico do Paciente, no Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio Libanês entre 7 e 9 de outubro de 2007. (VI) De acordo com material publicado no Examiner em julho de 2009, as fraudes nos principais programas públicos dos Estados Unidos (Medicare e Medicaid) podem alcançar valores equivalentes a 10% do total dos recursos alocados nesses programas. Fraudes comuns como médicos que cobram por 259 serviços prestados fantasmas, farmácias que cobram por prescrições feitas a pacientes que já morreram, companhias de home-care cobrando por serviços prestados a pacientes que se encontravam nos hospitais, e outros, são claramente problemas associados ao baixo uso de sistemas informatizados de controle que poderiam ser resolvidos caso os Estados Unidos utilizassem mais intensamente os RES nos programas públicos. Ver http://www.examiner.com/ x-2684-Law-Enforcement-Examiner~y2009m7d23-Billions-in-MedicareMedicaid-lost-to-fraud-abuse. (VII) LEVY, S. Cartão Nacional de Saúde – 15 anos de história. In: Domingueira, publicação eletrônica distribuida por email pelo sanitarista Gilson Carvalho, número 514, 2 de maio de 2010. Tenho o texto completo de Sylvain e poderia disponibilizá-lo a quem me solicitar por email. (VIII) Empresas como Kaiser a Permanente, que prestam atenção médica da qualidade a uma parte considerável da população da Califórnia, perderam mais de US$2 bilhões nos investimentos iniciais de seus primeiros RES, mas depois acertaram o rumo e hoje têm um dos melhores sistemas do mundo que, associado ao seu modelo assistencial, pode gerar economias de até 30% relativamente aos custos de outros planos de saúde nos Estados Unidos, comparativamente aos dos seus 8,6 milhões de beneficiários. Sobre os sistemas RES atualmente utilizados por Kaiser Permanente ver http://xnet.kp.org/ newscenter/aboutkp/healthconnect/index.html. (IX) Sobre este ponto ver CUNHA, R. E. Cartão Nacional de Saúde: os desafios da concepção e implantação de um sistema nacional de captura de informações de atendimento em saúde. In: Ciencia e Saúde Coletiva, 7(4) 869878. http://www.scielo.br/pdf/csc/v7n4/14610.pdf (Acessado em 16/05/2010). (X) Segundo reportagem publicada na revista Época de 02/05/2010, intitulada “O cartão que virou cartolina”, a capital de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, foi uma das cidades escolhidas para o projeto piloto. A prefeitura da cidade desenvolvia, desde o início dos anos noventa, um cadastro único dos usuários do SUS, e o governo federal resolveu aproveitar a experiência. Em setembro de 2002, Campo Grande recebeu do Ministério da Saúde uma remessa de 500 mil cartões magnéticos e 200 terminais de atendimento. Passados oito anos, os terminais estão estocados numa sala da secretaria municipal PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 plantões superiores a 24 horas por dia, empresas médicas que cobram por PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 260 de saúde. Não se sabe quantos usuários da cidade ainda mantêm os cartões. Os documentos ainda existentes, embora eletrônicos, têm a mesma função de um cartão de papel, pois não há equipamentos que façam a leitura. (XI) De acordo com a Agência Estado em reportagem de 05/11/2007, intitulada “Fraudes na saúde pública chegam a R$ 613 milhões”, um levantamento da Controladoria Geral da União (CGU) apontava que, entre janeiro de 2003 e julho de 2007, o volume de recursos aplicados irregularmente no SUS alcançou a cifra de R$ 613 milhões e que, dentre todos os setores da administração pública, a saúde apresentou o maior volume de fraudes. 261 Ronaldo Frederico - Mestre em administração, doutorando em ciências sociais e professor da PUC-SP. INTRODUÇÃO Apesar do alcance e utilização das redes em nossa sociedade e economia, conforme detalhado por Castells (1999), os hospitais ainda apresentam-se como ilhas de informação, isoladas pelos muros de cada departamento hospitalar. As informações digitalizadas, passíveis portanto de envio, manipulação e análise por diversos sistemas, são tratadas de maneira individual e independente. A tecnologia da informação e comunicação (TIC) tem avançado rapidamente nas últimas décadas, são inúmeras suas possibilidades de aplicação, desde sistemas de gestão empresarial até os mais variados produtos para uso pessoal, desde intervenções cirúrgicas de alta complexidade até a área administrativa da saúde. A diversidade de opções e possibilidades, aliada à utilização apenas PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 USO DA TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NA SAÚDE - SUBUTILIZAÇÃO NAS INSTITUIÇÕES HOSPITALARES PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 262 parcial das TICs, cria um problema de controle das informações e subutilização dos sistemas baseados em tecnologia da informação. O nível das aplicações existentes varia substancialmente caso a caso; parte dos hospitais públicos brasileiros ainda não possui o chamado prontuário eletrônico do paciente (PEP), no qual todas as informações, incluindo o histórico médico, prescrições realizadas e considerações sobre a saúde estariam disponíveis automaticamente para qualquer consulta que o paciente realizasse no complexo hospitalar. Em hospitais privados podemos encontrar os mais diversos equipamentos médicos de última geração, porém sem comunicação entre si, gerando uma espécie de ilha de informação. Podemos traçar um paralelo com os laptops e notebooks tão difundidos e utilizados atualmente; cada usuário possui arquivos próprios, informações e controles, embora pudesse utilizar a rede para compartilhar e armazenar tais informações, sem a necessidade de arquivamento pessoal. Segundo Vogel (2003), os investimentos em equipamentos médicos superam historicamente os investimentos em tecnologia da informação na área de saúde, pois compara-se o retorno sobre seu investimento (ROI, Return On Investment) da mesma forma como é feito com outros gastos. As TICs são vistas enquanto sistemas de suporte para a área médica, como a administração do hospital e o histórico parcial do paciente, visando, na maioria das vezes, melhor controle para a redução de custos. “Precisamos diferenciar o que é ‘unicamente saúde’ e o que é inerente na própria natureza de TI. Isto faz com que a valoração do investimento seja dificultada” (VOGEL, 2003). Os investimentos em TICs nos hospitais públicos e privados deveriam focar também melhor atendimento aos pacientes, redução dos riscos e maior produtividade, para que mais pessoas pudessem ter acesso às facilidades disponibilizadas. “Investimentos em TI criam um ativo organizacional que é, de alguma forma, fundamentalmente diferente de ativos criados por outros tipos de investimentos” (VOGEL, 2003). No entanto, o que vemos na prática são a subutilização dos sistemas de informação e a super valorização dos equipamentos médicos, produtores de dados que podem e devem ser utilizados por todo o complexo hospitalar, porém tornados apenas informações técnicas retidas nos diversos departamentos, sem integração e utilização da rede de comunicação hoje disponível. 263 Essa forma de utilização da tecnologia da informação gera inúmeras ilhas de informação no interior de uma organização hospitalar. Uma vez divididos em departamentos ou áreas de especialização, os hospitais, na maioria das vezes, atendem os pacientes de forma compartimentada: há o centro cirúrgico, a maternidade, as áreas de cardiologia, pediatria, exames e diagnósticos, terapia intensiva, neurologia, entre outras. Informações são geradas em cada centro de especialização do hospital por intermédio de exames, relatórios médicos, monitoramento intensivo; entretanto, não há integração adequada entre as partes. Um dos principais elementos para a integração das informações é o prontuário eletrônico do paciente – PEP (em inglês, EHR – Electronic Health Record). Segundo Iakovidis, PEP é “uma informação de saúde armazenada digitalmente incluindo toda a vida de um indivíduo com o propósito de oferecer continuidade do suporte à saúde, educação e pesquisa, e assegurar a confidencialidade em qualquer instante” (IAKOVIDIS, 1998). Ainda incipiente na maioria dos países, incluindo a região da Europa e Estados Unidos, o EHR é uma arquitetura que contempla regras de armazenamento, padrões de interface entre diversos sistemas e padrões de comunicação das informações. Seu elemento chave é o banco de dados digitalizado das informações relativas ao paciente, permitindo a assistência médica em lugares, cenários e contextos distintos. Para a utilização e expansão do uso do EHR, faz-se necessária a definição de um conjunto de regras para que os potenciais usuários, como hospitais, laboratórios, médicos e planos de saúde possam compartilhar as informações médicas dos pacientes, receber e realizar pagamentos, etc. Entre tais regras, pode-se incluir o período de tempo no qual a informação estará disponível para o paciente, o grau de confidencialidade e acessibilidade, o padrão das informações do prontuário, todos atualmente temas de amplos debates sobre a implantação do EHR. A ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) estabeleceu um padrão de Troca de Informações em Saúde Suplementar (TISS) para registro e PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 INTEGRAÇÃO DA INFORMAÇÃO PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 264 troca de informações entre os prestadores de serviços de saúde e as operadoras de planos privados, objetivando reduzir os erros, evitar fraudes, diminuir a utilização de papel, o tempo e a burocracia nas autorizações de procedimentos solicitadas, bem como possibilitar uma melhor análise das informações coletadas, permitindo a compatibillização entre os vários sistemas de saúde já em funcionamento. Com a criação da TISS, verificou-se a necessidade de uma terminologia única para os diversos agentes do sistema de saúde, operadoras, médicos, laboratórios e hospitais. Em conjunto com a AMB (Associação Médica Brasileira), a ANS desenvolveu a TUSS (Terminologia Unificada em Saúde Suplementar) visando unificar a terminologia de procedimentos e seus respectivos códigos constantes das inúmeras tabelas existentes e utilizadas pelas operadoras e prestadores de serviços de saúde. Não obstante, desde o estabelecimento do padrão TISS em 2006, permanecem nos dias atuais necessidades de mudanças e desafios: segundo a ANS, aproximadamente 58% do setor segue utilizando formulários em papel para as autorizações, evidenciando o longo caminho ainda a percorrer até a implantação do PEP. É de fundamental importância ressaltar que confidencialidade e privacidade são temas inerentes a quaisquer trocas de informações, notadamente quando sistemas computacionais são utilizados. Quais os limites da disponibilidade das informações do paciente? Há problemas em disponibilizar uma informação de natureza cardiológica para um médico ortopedista? Informações da saúde consideradas de foro íntimo podem ser de acesso restrito, mesmo quando preponderantes e indispensáveis para o diagnóstico? A quem caberá a gestão do EHR? Ao Estado? Ao plano de saúde ao qual pertence o usuário? A alguma instituição hospitalar em especial? Essas e outras questões são de fundamental importância para a definição e implantação de um prontuário eletrônico para todo o sistema, formando uma espécie de “rede de comunidade de saúde”. É conhecida a existência de grande heterogeneidade entre os hospitais do País, não somente na rede pública, mas também na rede privada. Diante da possibilidade de avanço na utilização das TICs no setor hospitalar, nos deparamos com a falta de acesso à tecnologia por conta de barreiras financeiras existentes no sistema de saúde. 265 tornar-se realidade em diversas instituições hospitalares, disponibilizando digitalmente informações dos pacientes e facilitando a comunicação entre as diversas áreas do hospital. Sua implantação pode ser dividida em dois níveis distintos. O primeiro nível, chamado básico, engloba informações primárias do prontuário eletrônico, tais como histórico do paciente, cirurgias realizadas, medicações prescritas. É bom enfatizar que o conceito do PEP não é o de um simples prontuário eletrônico como existe em diversos hospitais no Brasil, criado quando da entrada do paciente, seja pela área de pronto atendimento, maternidade ou internação, e finalizado por ocasião da alta. O PEP contempla as informações sobre o paciente de forma cronológica, ou seja, caso uma pessoa tenha um problema de saúde e se dirija a um hospital no qual já tenha recebido um atendimento, seu prontuário estará disponível com todo o histórico, independentemente das áreas e profissionais que o atenderam. O segundo nível, chamado de avançado, contempla informações sobre vacinação, resultados de exames, imagens, vídeos de cirurgias realizadas e informações sobre pagamentos. É o estágio mais completo do PEP e que possibilitará às instituições de saúde um quadro amplo do histórico de qualquer paciente. Quais os benefícios do prontuário eletrônico do paciente (PEP) ou EHR? Primeiramente, trata-se de um direito de qualquer paciente o acesso às suas informações de saúde, de forma organizada e completa. Em segundo lugar, a qualidade do atendimento é maior, pois a probabilidade de erro em virtude do desconhecimento de informações importantes sobre o paciente é consideravelmente menor. Com isso, a eficácia e eficiência do atendimento e utilização dos recursos disponíveis nos hospitais crescem substancialmente. Como consequência, há uma diminuição dos custos pela redução do retrabalho ou correção de erros por falta de informação, baixa duplicidade de informações, maior rapidez e produtividade do hospital como um todo. MUNDO DIGITAL: AS ILHAS DE INFORMAÇÃO O conceito do EHR parte do princípio da digitalização das informações. Em 1995, Nicholas Negroponte, um dos fundadores do Media Lab, o laborató- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Entretanto, tais discussões não impedem que o PEP (EHR) possa PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 266 rio de multimídia do MIT (Massachussets Institute of Technology) escreveu “A vida digital”, livro no qual apresenta uma diferenciação entre bits e átomos. Negroponte explicita o conceito de que vivemos na “era da informação”, na qual o principal elemento é o bit, não mais o átomo. Objetos tangíveis, como uma cadeira ou uma mesa, são constituídos por átomos. A informação digitalizada, gerada e armazenada por intermédio de bits e bytes, pode ser transformada, combinada e transmitida com muito mais facilidade e, principalmente, sem limites aparentes. Sendo digitais na maioria das vezes, é possível combinar as informações geradas e incluir textos, vídeos, imagens, sons, criando uma nova informação e transmiti-la instantaneamente para qualquer local do planeta. É exatamente esse conceito a base do EHR. Informações geradas digitalmente podem ser incluídas no prontuário eletrônico do paciente; qualquer exame realizado, por exemplo, uma ressonância magnética (incluindo textos e imagens), pode ser adicionado, pois o equipamento de ressonância magnética gera as informações de maneira digital. Porém, o que vemos na realidade hospitalar é algo diferente. Os investimentos em equipamentos médicos superam os investimentos em tecnologia da informação e comunicação. Nos hospitais privados de ponta, vemos um número crescente de novas tecnologias de diagnóstico e auxílio em cirurgias sendo incorporadas ao dia-a-dia, porém as informações digitais geradas por tais equipamentos neles permanecem isoladas. Em alguns casos, duplicamos a informação via dispositivos como pen drives para que o médico possa copiar a informação para seu computador pessoal. Formam-se ilhas de informação nos hospitais, e o seu surgimento, apesar de todo o investimento em tecnologia médica, dificulta a integração das informações, base do EHR. Em inúmeros hospitais públicos e privados, dotados de equipamentos para exames e cirurgias de última geração, inexiste a utilização integrada das informações do paciente geradas a partir dos procedimentos realizados. A tecnologia da informação é vista somente enquanto necessária para o diagnóstico de algum problema de saúde de um paciente, falta a visão total. Funciona como a especialização médica atual; cada profissional é especialista em uma determinada área (ginecologia, neurologia, etc) e não consegue entender que o ser humano é um biosistema, com todas as suas funções orgânicas interrelacionadas. A informação gerada e obtida dos pacientes também segue essa lógica. 267 formações hoje disponíveis. Produtos e serviços de tecnologia da informação e comunicação, para o uso integrado das informações, estão disponíveis no mercado. É necessário que as instituições de saúde, em particular os hospitais, tenham a noção de prioridade desse fato. Os gastos em tecnologia da informação e comunicação deveriam ser direcionados para a interação das informações, geradas em grandes quantidades a cada dia nos hospitais. Integrá-las significa atender de forma mais adequada o paciente, reduzir os custos, permitindo melhor utilização dos ativos hospitalares. Enfim, seguir com o processo de geração de informações sem integrá-las na mesma velocidade não traz mais benefícios a qualquer organização, incluindo os hospitais. NOVAS POSSIBILIDADES Tecnologia disponível, podendo auxiliar a operação hospitalar, o RFID (Radio Frequence Identification) ou simplesmente rádio frequência, utiliza ondas eletromagnéticas para transmissão de dados. Por meio do RFID, por exemplo, podemos localizar equipamentos e verificar disponibilidade de leitos. Quantos desfibriladores existem em um hospital, alguém poderia perguntar? Provavelmente a resposta indicaria uma breve pesquisa na contabilidade do hospital, em particular nas informações sobre ativo fixo. Porém, como responder a questão: onde estão todos os desfibriladores que temos ? A razão da pergunta pode ser justificada para embasar uma decisão de aquisição ou não de mais equipamentos (desfibriladores em nosso exemplo). Responder a essa última questão torna-se uma tarefa difícil. Em diversos hospitais, equipamentos pequenos podem estar em qualquer armário do pronto atendimento, enfermaria, ambulatório ou em uma prateleira de algum andar da instituição. Não sabemos se a quantidade de equipamentos disponíveis é suficiente para o atendimento aos pacientes. Não temos como medir se, especificamente em algum setor do hospital, é necessário adquirir mais equipamentos, ou se a transferência de equipamentos ociosos para outra área resolveria a questão. Por intermédio da tecnologia de rádio frequência, é possível localizar PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Vale ressaltar que já é possível aumentar o nível de integração das in- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 268 imediatamente qualquer equipamento no hospital a partir de um simples computador. Chamado de “asset-tracking”, o conceito que utiliza o RFID permite, por exemplo, efetuar melhor gestão de leitos disponíveis no hospital como um todo. A falta de leitos é um fator que contribui para a lotação da área de emergência dos hospitais, conforme o RFID Journal (2010). Nas unidades de terapia intensiva, a sazonalidade na utilização dos recursos (picos nos finais de semana e entre 14 e 15 horas nos dias de semana, por exemplo) pode ser resolvida pelo RFID. Tendo a informação de que nos períodos de pico existem leitos e equipamentos disponíveis em outros locais do hospital, é possível otimizar sua utilização, sem a necessidade de aquisição de novas camas ou macas, aumentando a produtividade e melhorando o atendimento aos pacientes. De acordo com o Gartner Group, instituição de consultoria e pesquisa em TICs, uma das dez tendências do uso de tecnologia de informação e comunicação na área da saúde é o monitoramento remoto (Mobile Health Monitoring). “O monitoramento de saúde remoto é o uso de tecnologia da informação e telecomunicação móvel para monitorar pacientes remotamente e pode auxiliar governos, organizações de saúde e usuários a reduzir os custos com doenças e aumentar a qualidade de vida dos pacientes”, aponta o relatório do Gartner Group (2009). Também de acordo com o Gartner Group, o monitoramento remoto de saúde encontra-se em estágio inicial de maturidade, relativamente à sua implantação e oferta de produtos para esse mercado, limitando-se sua utilização a projetos-piloto. No entanto, os analistas esperam um crescimento dos serviços e produtos oferecidos nessa área. EXEMPLOS E PRÁTICAS Podemos citar três exemplos de utilização de tecnologia da informação e comunicação em hospitais, de forma integrada e com o principal objetivo de reduzir riscos para o paciente. O hospital público de Samambaia, localizado na cidade-satélite de mesmo nome, implantou em 2008, como parte da estratégia do governo do Distrito Federal para melhor administrar a rede de saúde pública, um sistema de informação na farmácia. Antes do sistema estar em 269 Implantado o sistema, a farmácia do hospital recebe imediatamente a medicação prescrita, realizada de forma personalizada, aplicada na dosagem correta e na hora exata. A permanência dos pacientes no hospital diminuiu após a implantação, permitindo maior e melhor uso das instalações, além de uma redução de 74% dos gastos com medicamentos, segundo reportagem realizada com a gerente da farmácia e o diretor do hospital de Samambaia86. Outro exemplo bem sucedido é do Hospital São Francisco Xavier, de Lisboa, Portugal. Segundo o diretor do serviço de pediatria, as crianças com epilepsia refratária podem passar por um processo cirúrgico para a retirada do foco do qual partem as convulsões. Para elas foi criada uma sala especial, dotada de uma câmera de raios infravermelhos e mais duas câmeras que captam imagens em qualquer ângulo da sala, inclusive dos movimentos convulsivos que a criança venha a ter. Em seu couro cabeludo são colocados eletrodos sem fio, que transmitem por rádio frequência as informações sobre a atividade cerebral da criança, captadas por um equipamento e transmitidas via Bluetooth para monitores em uma sala ao lado, permitindo acompanhar não somente o traçado eletroencefalográfico, como também as imagens de uma possível convulsão. Os monitores são acompanhados por enfermeiros e técnicos que, em caso de crise, podem selecionar o traçado encefalográfico e as imagens referentes à convulsão, e enviá-las imediatamente ao médico via tecnologia de comunicação 3G, que as recebe por meio de um PDA (Personal Digital Assistant), similar a um Palmtop, e as analisa. A partir daí, o profissional pode realizar o diagnóstico e solicitar qualquer procedimento imediatamente, como ministrar medicação específica, por exemplo. Com isso foi possível reduzir significativamente o período de risco no qual as crianças ficam sem medicação 86 Reportagem veiculada pela TV Globo de Brasília, programa DFTV, 1ª edição, de 28/01/2009. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 operação, os problemas se acumulavam: com os controles manuais existentes, falta de pontualidade na aplicação dos medicamentos e erros de dosagem não eram raros, resultando em graves riscos para a saúde dos pacientes, além de gerar custos adicionais, pois nova medicação precisava ser aplicada para a correção da dosagem equivocada. Mais ainda, a possibilidade de erro, furto e desperdício dos medicamentos era enorme, pois o controle sobre o processo era rudimentar. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 270 durante a crise convulsiva, aumentar a qualidade dos exames e proporcionarlhes maior conforto, uma vez que elas podem locomover-se normalmente no interior da sala. O caso do hospital português exemplifica como podemos utilizar de forma integrada diversas tecnologias para beneficiar o paciente. O sistema desenvolvido e implantado permitiu melhor diagnóstico, com a obtenção das informações médicas no exato momento da ocorrência do fenômeno da epilepsia, atuação imediata do médico, que pode analisar as informações tão logo a crise convulsiva ocorra, e solicitar ao hospital os procedimentos adequados, além de reduzir o risco de saúde das crianças internadas. Um terceiro exemplo refere-se ao Hospital Márcio Cunha, localizado na cidade de Ipatinga, estado de Minas Gerais. Fundado pela empresa Usiminas em 1965, o hospital é referência no atendimento a mais de 700.000 pessoas da região do Vale do Aço, sendo aproximadamente 70% do atendimento destinado aos usuários do SUS (Sistema Único de Saúde). Desde o ano de 2000, o hospital utiliza o PEP (Prontuário Eletrônico do Paciente). Baseado em um sistema de informação, o projeto do PEP contemplou um treinamento básico de informática e no sistema propriamente dito para todo o corpo clínico e de enfermagem. Para muitos, esse foi o primeiro contato com o computador; após o treinamento, o projeto PEP foi implantado em 3 fases: Fase 1) Área administrativa e financeira, incluindo informações básicas sobre o cadastro de paciente, arquivo de prontuário, atendimento ambulatorial, pronto socorro (urgências), internação, faturamento, centro cirúrgico/centro obstétrico. Fase 2) Área de serviços auxiliares de diagnóstico e tratamento, SADT, incluindo informações sobre diagnóstico por imagem, registros gráficos, laboratório de anatomia patológica, laboratório de patologia clínica, manutenção preventiva e corretiva, hemodinâmica. Fase 3) Área assistencial, contemplando informações sobre médicos, enfermagem, farmácia (dose individualizada), dietética, hemoterapia. Com todas as informações interligadas, a partir de uma prescrição eletrônica as informações são automaticamente geradas para a farmácia, para o preparo da medicação, e para a enfermagem, para a aplicação aos pacientes. 271 em hospitais. No caso do hospital público de Samambaia, um controle simples da operação na farmácia do hospital possibilitou um ganho na qualidade de atendimento ao paciente, na produtividade do hospital, redução nos custos e no desperdício dos medicamentos. CONCLUSÃO Com a facilidade de criação e geração de informações no mundo digital em que vivemos, é vital que essas informações estejam integradas para que o uso atinja os objetivos de qualidade na prestação dos serviços, redução de riscos aos pacientes e controle de custos, fatores essenciais na área de saúde, em especial nas instituições hospitalares, sejam elas públicas ou privadas. Informações dispersas aumentam o tempo de busca e localização, bem como a análise das interrelações existentes. Sendo possível a geração de forma digital, os limites do uso desta informação, combinação e disseminação se ampliam substancialmente. A velocidade em que novas TICs surgem no mercado traduz um universo de novas e diferentes aplicações na área da saúde, com resultados e efeitos diretos para os usuários e pacientes do sistema. Porém é necessário que os administradores responsáveis pelo sistema de saúde, com foco nos administradores hospitalares, possam perceber e entender a importância da integração das informações e não somente sua geração. Gerir de fato um estabelecimento com as características de um hospital exige o controle e visão sob todos os recursos disponíveis (humanos, físicos e financeiros), uma vez que a tecnologia avançada em equipamentos médicos está presente em muitos deles. Não basta investir nas instalações, incrementando o grau de sofisticação e tecnologia médica disponível. Precisamos compreender que o melhor uso e retorno do investimento realizado não virão da utilização do equipamento isoladamente ou das instalações compartimentadas. É exatamente a visão de todo da instituição, analisando-a sem restrições físicas ou burocráticas, facilitada pela tecnologia da informação e comunicação, que permitirá ao hospital se aproximar de um modelo ótimo de utilização dos recursos, aumentando a produtividade e, principalmente, prestando um serviço de alta qualidade aos usuários. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Os exemplos acima refletem diferentes níveis de utilização das TICs PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 272 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BÖHM, György Miklós; WEN, Chao Lung; SILVEIRA, Paulo Panse. Telemedicina: o acesso à distância aos registros de saúde. In: MASSAD et al. O prontuário eletrônico do paciente na assistência, informação e conhecimento médico. São Paulo: H. de F. Marin, 2003. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: a era da informação, sociedade e cultura. São Paulo: ed. Paz e Terra, Vol. I, 1999. FERREIRA, J. M.; FERNANDES, P. M. Epilepsia monitorizada através da Net. Portal I_GOV, Almada, Portugal, jul. 2008. Disponível em: <http://www.i-gov.org/index.php?visual=1&article=7344>. Acesso em 15 out. 2010. IAKOVIDIS, I. Towards personal health record: current situation, obstacles and trends in implementation of electronic healthcare record in Europe. International Journal of Medical Informatics, Vol. 52, No. 1-3, 1998. p.105–115. MOURA JR., L. A. O impacto do PEP no mercado de saúde. In: MASSAD et al. O Prontuário eletrônico do paciente na assistência, informação e conhecimento médico. São Paulo: H. de F. Marin, 2003. p. 173-182. NEGROPONTE, N. A vida digital. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 2003. NUNES, D.C.C.; COTTA Jr.,J.A.; LIMA, M.O.S. O prontuário eletrônico do paciente no Hospital Márcio Cunha – 6 anos de sucesso. Anais X Congresso Brasileiro de Informática em Saúde, 2006. SEGALA, M. Saúde em rede faz evoluir sistema do Distrito Federal. Brasil Econômico, São Paulo, mai, 2010. Disponível em: < http://www.brasileconomico. com.br/noticias/saude-em-rede-faz-evoluir-sistema-do-distrito-federal_83705. html>. Acesso em 01 out. 2010. SHEN, S. Dataquest insight: The top 10 consumer mobile applications in 2012. Gartner Group Report, Connecticut, nov. 2009. Disponível em: <http://www. gartner.com/it/page.jsp?id=1230413>. Acesso em 25 out. 2010. SWEDBERG, C. Trident health system boosts patient throughput, asset utilization. RFID Journal, New York, abr. 2010. Disponível em: <http://www.rfidjournal.com/article/view/7547/1>. Acesso em 25 out. 2010. VOGEL, Lynn H. Finding value from it investments: exploring the elusive ROI in healthcare. Journal of Healthcare Information Management, Vol. 17, No. 4, 2003, p. 20-28. 273 Luzeni Pereira Borges - Administradora de empresas, pós-graduada em administração de empresas com ênfase em mercado, mestranda em administração na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Alexandre Luzzi Las Casas - Administrador de empresas, mestre e doutor em administração, professor titular da PUC-SP. Resumo Este artigo procura avaliar, por meio da revisão da literatura, as principais evidências físicas no segmento hospitalar e sua importância na avaliação da qualidade do serviço prestado. As evidências físicas podem ser estudadas sob dois pontos de vista, pelo técnico, de maior complexidade e de difícil mensuração, no caso o atendimento do profissional de saúde propriamente dito, ou pelo afetivo, mais palpáveis para os clientes e mais fáceis de controlar pela instituição, que neste caso se referem às condições do ambiente físico, design, fatores físicos e sociais. A relevância deste estudo está no fato de, embora os hospitais possam oferecer nominalmente o mesmo serviço, tal não significa que entreguem ne- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 EVIDÊNCIA FÍSICA NO CONTEXTO HOSPITALAR COMO FATOR DE QUALIDADE DO SERVIÇO PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 274 cessariamente a mesma qualidade de serviço. Assim, a qualidade do serviço pode ser utilizada como uma arma de diferenciação estratégica para construir uma vantagem competitiva. Também devemos levar em consideração que para o cliente existe mais do que simplesmente o produto ou o serviço em si; existem fatores extras na percepção da qualidade, como por exemplo, os indicativos tangíveis. Palavras-chave: Evidência física, qualidade em serviços, diferenciação estratégica. Introdução Dada a natureza intangível dos serviços, inexiste uma forma objetiva para que sejam avaliados pelos clientes, os quais; por essa razão, procurarão elementos tangíveis no local (evidência física) para fazer tal avaliação. Entre os elementos tangíveis dos serviços em geral, estão as instalações físicas e todas as formas de comunicação com o cliente. Pode-se dizer que as percepções começam com a chegada ao local da prestação de serviço (nos estacionamentos, por exemplo), seguindo com a observação da aparência exterior, do layout da entrada, decoração, aparência dos empregados, atendimento inicial, material de comunicação, equipamentos disponíveis, etc. Tais elementos comunicam algo sobre o serviço ou facilitam sua execução, levando o cliente a valorar o serviço-qualidade. O gerenciamento da evidência física varia segundo o tipo de serviço oferecido: empresas de seguros e de correio o fazem de forma limitada, enquanto hospitais e hotéis fazem extenso uso das evidências físicas. Independentemente da variação no uso, todas as empresas de serviços devem reconhecer a importância de bem administrar suas evidências físicas nos processos de apresentação do serviço, facilitar o fluxo na sua prestação, promover de forma igualitária os contatos entre clientes e funcionários e diferenciar a empresa de seus concorrentes (HOFFMAN, 2003). Brady e Cronin (2001) identificaram em suas pesquisas que os clientes de serviços consideram o ambiente (evidências físicas) em sua avaliação 275 percepção de qualidade do ambiente: condições do ambiente, desenho das instalações e fatores sociais. Condições do ambiente compreendem aspectos não visuais de temperatura, cheiro e som, enquanto o desenho (design) das instalações compreende os fatores funcionais ou práticos ou estéticos, como limpeza e imagem. As condições sociais envolvem a quantidade, tipo e comportamento das pessoas presentes no ambiente (RAAJPOOT, 2002; RYU; JANG, 2008). Para Parasuraman et al., as evidências físicas (aspectos tangíveis), se comparadas com outras dimensões do serviço — responsividade, empatia, segurança e confiabilidade —, são os menos impactantes na percepção de qualidade. Muito importantes na qualidade no segmento de saúde são os chamados atributos técnicos, compreendendo a assistência propriamente dita realizada por médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde. Nosso maior interesse, neste artigo, é identificar e discutir a importância dos indicativos tangíveis, enfatizando a avaliação dos atributos afetivos (ambiente, layout, atendimento, material de comunicação, etc.), citados na avaliação da qualidade do serviço prestado no ambiente de serviços hospitalares. 2. Revisão Bibliográfica Qualidade na prestação de serviço A qualidade do serviço pode ser utilizada como arma de diferenciação estratégica para construir uma vantagem competitiva dificilmente copiada pelos concorrentes. Para atingir excelência em serviço, os hospitais devem almejar “erro zero”, retendo cada cliente rentável que a Instituição possa servir (REICHELD e SASSER, 1990). “Erro zero” requer esforço contínuo para melhorar a qualidade do sistema de entrega. Mas quem é de fato influenciado pelo cenário de serviços? Clientes? Funcionários? Ambos? Depende do tipo de serviço prestado; se for um autoserviço, a influência será basicamente sobre o cliente, se for um serviço à PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 de qualidade do serviço. Seu estudo revelou três fatores que influenciam a PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 276 distância, nenhum dos dois grupos será influenciado. Já no caso dos serviços interpessoais, como nos hotéis, hospitais, bancos, restaurantes, etc., o impacto é forte em ambos os grupos, e é aqui que o cenário deve ser planejado e executado de forma a atrair, reter, satisfazer e facilitar as atividades a serem desenvolvidas. Deve ainda levar em consideração a natureza e a qualidade da interação entre clientes e funcionários (ZEITHAML, 2003). O cenário de serviços é o que a organização mostra para o exterior, sendo assim fundamental nas percepções iniciais e na formação das expectativas dos clientes. No caso dos serviços hospitalares, as decisões ligadas ao cenário são normalmente difíceis e delicadas. Por sua complexidade, o cenário deve considerar não só o conforto do paciente, mas também a produtividade dos funcionários e ainda inspirar confiança, empatia, responsabilidade, etc. Dado que os serviços são em maioria intangíveis e produzidos depois da compra, o cliente potencial enfrenta alta dose de incerteza relativamente às suas características. Consequentemente, torna-se mais interessado em obter referências para diminuir as informações inconsistentes, mas, por conta da falta de transparência do mercado, a busca de informações é difícil e complexa. O cliente desejando informações mais completas sobre os atributos dos serviços, é normalmente forçado a concentrar-se em certos sinais da qualidade, caso não possa depender de fontes pessoais como recomendações de amigos ou especialistas (REIMER, 2005). Para Richard e Allaway (1993), qualidade em serviços engloba uma característica multidimensional, composta por dois grupos de atributos: estrutura e processo. Estrutura refere-se ao ambiente físico e às instalações nas quais o serviço é prestado; processo refere-se à interação com a equipe prestadora do serviço durante sua execução, o modo como cliente recebe o serviço. Os clientes apegam-se aos padrões normativos relativos aos diferentes aspectos dos cuidados de saúde recebidos e frequentemente manifestam sua satisfação em termos de estrutura e processo. A literatura indica que estrutura e processo influenciam a satisfação, a qual, em retorno, influencia as intenções de comportamento (HENNIG-THURAU, 2001). Satisfação com estrutura é o valor positivo atribuído pelo consumidor do serviço de saúde às características da estrutura ou para os vários elementos tangíveis associados a um serviço específico de saúde que inclui ambos, ambiente físico e outras instalações físicas nas quais o serviço é prestado. 277 Intenções comportamentais são o resultado do processo de satisfação (SZYMANSKI; HENARD, 2001), podendo ser agrupadas em duas categorias, econômica e social. Intenções econômicas são as que impactam o aspecto financeiro da empresa, como a repetição da compra do serviço e a aceitação de um preço maior. Há uma relação positiva entre um cliente satisfeito e a repetição da compra. Intenções sociais são as que impactam a resposta de outros clientes, atuais e potenciais, intensificando reclamações e o boca-a-boca (SZYMANSKI; HENARD, 2001). Positivas ou negativas, intenções sociais impactam o cliente individualmente e influenciam a opinião dos demais clientes. Os consumidores captam informações sobre desempenhos anteriores de um serviço e as utilizam para moldar suas expectativas e as expectativas de outros por meio do boca-a-boca. Informação espalhada pelo boca-a-boca de clientes atuais influencia a expectativa de futuros clientes. Outro ponto importante para estudar a qualidade nos serviços diz respeito à expectativa comparada à percepção. Para Parasuraman et al. (1988) e Gronroos (1982), a qualidade do serviço, na percepção dos clientes, origina-se na comparação entre o que acham que a empresa deve oferecer (expectativas) e sua percepção de desempenho em relação ao serviço recebido. Parasuraman et al. (1994) estudaram a qualidade em serviço com base PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Satisfação e insatisfação do consumidor tornaram-se forças direcionadoras para formatar sua atitude e comportamento subsequentes. Intenções comportamentais são consideradas as reações da satisfação geral, incluindo intenção de retornar e intenção de recomendar (STRASSER et al., 1993; BOLTON, 1998). Satisfação é a reação do paciente à diferença percebida entre a expectativa de desempenho e a entrega efetiva. Expectativa frustrada leva o cliente a atingir um estado de insatisfação, enquanto a confirmação da expectativa leva à satisfação (HENNIG-THURAU, 2001). Para ser julgado positivamente, um serviço deve ter performance positiva em todas as dimensões, enquanto para ser julgado negativamente, basta o desempenho negativo em apenas uma ou algumas dimensões (OFIR; SIMONSON, 2001). Há um ditado que diz “maximizando a satisfação do cliente teremos maximização de lucros e participação no mercado”. Satisfação do cliente é sempre usada pelos gestores para manter contratos, produzindo lealdade à marca e novos clientes (YUKSEL; YUKSEL, 2002; OH, 2000). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 278 em cinco dimensões: tangibilidade, confiabilidade, responsividade, segurança e empatia. • Tangibilidade diz respeito aos aspectos tangíveis da qualidade do serviço e que podem ser mensurados e visualizados pelo cliente no momento da prestação do serviço; • Confiabilidade é a execução dos serviços sem falhas ou erros, ou seja, entregar o serviço prometido; • Responsividade é a forma como a resposta é dada ao cliente, podendo ser positiva, imediata e eficaz, ou negativa, lenta e ineficaz; • Segurança é a capacidade de gerar credibilidade e confiança. Pode estar relacionada ao conceito que a Instituição possui no mercado, mas relaciona-se também à habilidade dos seus funcionários em inspirar; • Empatia relaciona-se ao atendimento diferenciado e individualizado a cada cliente. Implica em prestar atenção, ouvir, adaptar e ser flexível quanto às necessidades individuais de cada cliente. A figura a seguir ilustra as dimensões da qualidade de serviços. Figura 1 - As cinco dimensões de qualidade do serviço Fonte: Parasuraman, Zeithaml, e Berry, 1988. 279 suas percepções sobre o resultado técnico proporcionado e sobre o modo como tal resultado final foi entregue. Por exemplo, um cliente de serviço legal pode julgar o serviço com base no modo como o caso foi resolvido no tribunal. Assim, se o serviço tem um resultado específico, como ganhar ou perder um caso na justiça, o cliente pode julgar a eficácia do serviço com base em tal resultado. Alguns serviços são complexos e não podem ser facilmente julgados pelos clientes, quem podem nunca ter a certeza de que o serviço foi executado adequadamente (ZEITHAML, 2003). Qualidade no serviço hospitalar No segmento de saúde, os hospitais podem oferecer o mesmo tipo de serviço (atendimento à saúde) mas, no entanto, diferem muito relativamente à qualidade de serviço (YOUSSEF et al. 1996). Os clientes estão mais atentos quanto às alternativas de serviços disponíveis e, com a melhoria no padrão de serviço oferecido por cada Instituição, aumentaram também suas expectativas e estão se tornando cada vez mais críticos em relação ao serviço já experimentado. Avaliar qualidade no segmento de saúde levanta problemas relativos ao tamanho do serviço, complexidade, especialização e excelência entre as organizações de saúde. Qualidade em saúde é mais difícil de avaliar do que qualquer outro tipo de serviço porque é o cliente, ele mesmo, e sua vida que estão sendo avaliados (EIRIZ; FIGUEIREDU, 2005). Alguns autores sugerem que qualidade em saúde pode ser mensurada utilizando-se um observador externo, por exemplo, percepção de amigos e parentes. Rashid e Jusoff (2009) concluíram que a origem da instituição de saúde encoraja os pacientes a exigir o maior nível de qualidade possível. Para tanto, é preciso obter informações sobre as necessidades dos pacientes, expectativas e percepções, porque por muito tempo “as pessoas foram feitas para encaixarem-se nos serviços e não os serviços feitos para encaixarem-se nas pessoas”. Não podendo interferir na qualidade técnica dos serviços de saúde, os pacientes utilizam os atributos afetivos a eles associados. Portanto, a me- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Os clientes de serviço podem julgar a qualidade do serviço a partir de PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 280 dida da qualidade do serviço hospitalar deve basear-se na percepção de qualidade e não na qualidade objetiva, porque qualidade em serviço é intangível, heterogênea e seu consumo e produção ocorrem simultaneamente. A cura é a expectativa fundamental do serviço de saúde (CONWAY; WILLCOCKS, 1997), e a satisfação do paciente pode ser determinada por fatores relacionados ao cuidado, empatia, confiança e responsabilidade (TUCKER; ADAMS, 2001). Conduta médica, disponibilidade do serviço, continuidade, confiança, eficiência e cura são dimensões que afetam a avaliação dos pacientes (WARE, 1978); serviços essenciais, especificações, credibilidade profissional, competência e comunicação são outras dimensões introduzidas para capturar a avaliação dos pacientes de serviços de saúde (FOWDAR, 2005). Há seis determinantes primários da satisfação dos pacientes: admissão, liberação, cuidados de enfermagem, alimentação, governança e atributos técnicos (CARMAN, 2000). O atributo “cuidados de enfermagem” — serviço essencial de um hospital — destaca-se entre os demais por conta da satisfação dos pacientes no serviço hospitalar relacionar-se ao envolvimento humano. Há o envolvimento das emoções dos profissionais, cria-se um sentimento de amor e carinho pelos pacientes, bem como expectativas de altas em situações envolvendo o alívio da dor, vidas a serem salvas e a habilidade para lidar com raiva e frustração após intervenções médicas. A importância relativa das dimensões técnicas do cuidado hospitalar, como alta (quando o paciente fica livre da doença, dor ou incapacidade causadora da hospitalização), cuidados médicos e cuidados de enfermagem, versus a dimensão afetiva, como alimentação, ruídos, temperatura, privacidade, estacionamento, tem sido fonte de tensão entre médicos, gestores e planos de saúde por muitas décadas. Médicos consideram o processo de qualidade concluído quando o paciente recebe alta; gestores e especialistas de marketing argumentam que os clientes avaliam o processo de qualidade do serviço na sua totalidade, incluindo o serviço pessoal que recebem e as acomodações do hospital. Ao menos dois argumentos sustentam a posição dos gestores, com foco na dimensão afetiva, contra a dos médicos, centrada na dimensão técnica. Primeiro, os clientes usam medidas de qualidade referenciadas quando 281 médico recebido. O segundo argumento é mais institucional: até recentemente, os hospitais não estavam preparados para conduzir pesquisas sobre a satisfação dos pacientes com o serviço ou sobre a performance médica (dimensão técnica do serviço). Para compensar, os hospitais faziam perguntas sobre as dimensões afetivas ou somente sobre os processos. A importância relativa desses dois argumentos e sua interação é importante para que os gestores hospitalares possam decidir sobre a alocação dos recursos. Por exemplo, alguém pode argumentar que entregar alimentação pré-preparada é uma decisão razoável para cortar custos, já que os pacientes não estão interessados em alimentação e separam a sua qualidade da qualidade técnica (cuidados prestados). Porém, se a qualidade da alimentação impacta na avaliação geral dos outros aspectos da qualidade hospitalar, cortar custos na área pode não ser uma decisão inteligente. Ou seja, os atributos afetivos não podem ser desconsiderados quando na definição de cenário para a prestação de serviço em uma unidade hospitalar. Evidência física em serviço Para o cliente, há mais do que simplesmente o produto ou o serviço propriamente dito (BARBER, 2010); como a atmosfera e o ambiente físico, possíveis influenciadores na decisão de compra. Qualidade em serviço possui muitas variáveis, sobressaindo-se os indicativos tangíveis como importantes e geralmente negligenciados fatores (BRADY; CRONIN, 2001), incluindo as condições do ambiente, design, fatores físicos e sociais, todos com forte impacto na avaliação da qualidade do serviço. As pessoas que os prestam e os materiais de comunicação disponíveis são outros fatores que conferem tangibilidade aos serviços (LEHTINEN; LEHTINEN, 1991). A psicologia ambiental, subárea da psicologia que estuda as interrelações entre o homem e suas ações com o meio ambiente, ocupa-se do estudo dos ambientes de serviço e sua influência sobre as percepções e comportamento dos indivíduos. O modelo estímulo-organismo-resposta (EOP), desenvolvido por psicólogos ambientais, ajuda a explicar os efeitos do ambiente de PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 não conseguem encontrar medidas tangíveis da qualidade do atendimento PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 282 serviços sobre o comportamento do cliente, considerando três componentes: um conjunto de estímulos, um organismo e um conjunto de respostas. No contexto de serviços, os estímulos são representados pelo ambiente físico, o componente organismo são os funcionários e clientes, enquanto as respostas são os resultados aos estímulos gerados (HOFFMAN, 2003). O conceito de ambiente físico enquanto parte importante da experiência do serviço foi introduzida por Kotier (1973); para o autor, existe para o consumidor mais do que apenas produto ou serviço — atmosfera ou ambiente físico podem influenciar na decisão de compra. Vários autores referem-se às evidências físicas, por exemplo, o local da prestação de serviço, como indicadores de qualidade (WARD, 1992; BAKER, 1994 e 1998; AUBERT-GAMET; COVA, 1999). O local de prestação de serviço é um termo utilizado para descrever as áreas físicas de uma empresa de serviço, incluindo o design interior e exterior, condições ambientais — temperatura, iluminação, cor, ruídos, odores, música —, e as partes tangíveis do serviço — folders, placas sinalizadoras e demais materiais de comunicação. O local da prestação do serviço pode ser comparado à embalagem dos produtos e, enquanto substituto tangível, pode ter importância na criação de expectativas sobre o desempenho do serviço intangível, servindo como fator conclusivo (LEVITT, 1981; RUSHTON; CARSON, 1989; WARD, 1992) e oferecendo várias indicações para os clientes que buscam informações sobre o serviço (BAKER, 1998). Os estudos de Reimer e Kuehn (2005) sobre o impacto do local de prestação do serviço na percepção de qualidade, evidenciaram importância ainda maior do que a demonstrada em estudos anteriores, além de sua influência na avaliação das dimensões intangíveis. Qualidade do ambiente físico refere-se aos elementos tangíveis do serviço, incluindo a aparência das instalações, pessoal, material de comunicação e outros elementos físicos usados para oferecer o serviço em uma instalação de serviços. Nguyen (2002), realça a importância do ambiente físico enquanto elemento estético valioso no processo de criação da imagem corporativa e influenciador no desempenho do pessoal de serviço, recomendando sua organização em função das necessidades operacionais, visando maximizar a eficiência organizacional, e necessidades de marketing, visando criar um am- 283 para com a organização. Durante um atendimento de saúde, o consumidor do serviço é exposto a vários estímulos que são processados cognitivamente e ajudam a moldar sua satisfação. Tais atributos demonstram a estrutura do serviço e incluem fatores como conforto nas áreas de descanso, disposição (layout) e conforto dos quartos, limpeza geral, decoração, alegria das áreas, localização e equipamentos modernos (FOTTLER, 2000). Mesmo pesquisas mais antigas já demonstraram a importância dos elementos tangíveis do serviço hospitalar (REIDENBACH; SEIFER-SMALLWOOD, 1990). Salas de espera são também locais de prestação do serviço, nas quais parte do serviço é entregue e percebido (BITNER, 1992). Gerenciar a experiência psicológica dos clientes na sala de espera, buscando reduzir o tempo percebido da espera, pode ser tão eficaz quanto reduzir o tempo em si mesmo. Salas de espera são parte da qualidade percebida e pertencem à dimensão da qualidade tangível do serviço (PARASURAMAN,1998). A limpeza de um hotel, seja no saguão de entrada (lobby), no exterior do prédio ou no banheiro dos apartamentos, pode influenciar a percepção de qualidade do serviço (LOCKYER, 2003). Em estudo realizado por Hoffman et al. (2000) sobre falhas de serviços relacionadas à evidências físicas, os resultados mostraram que 8% dos problemas relacionavam-se às instalações, os mais graves advindos de falhas na limpeza, problemas de manutenção e problemas de projeto das instalações, com a limpeza apresentando o maior índice de falhas e o maior impacto para os clientes. Infraestrutura, segundo Duggirala e Rendran (2008), é uma dimensão que afeta a percepção do paciente sobre qualidade, incluindo limpeza, manutenção e disponibilidade de serviços, tais como salas de espera e consultórios, salas cirúrgicas, alimentação, leitos, serviço de ambulância, capacidade tecnológica, farmácia, banco de sangue, etc. Para os autores, deve-se considerar os seguintes ítens: • Adequação da limpeza, conforto e som das áreas de espera, consultórios, salas de exames e recuperação pós-anestésica; • A alimentação servida durante a internação estar fresca e higienizada; PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 biente que influencie favoravelmente as atitudes e crenças dos consumidores PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 284 • Instalações físicas no hospital serem visualmente atrativas; • Admissão e alta com tempo aceitável; • Leitos adequados e disponíveis para pacientes e residentes; • Serviço de transporte disponível e com custo acessível para trazer os pacientes ao hospital; • Layout adequado; • Disponibilidade de moderna e atual tecnologia para melhor atender os pacientes; • Disponibilidade de elementos para o conforto do paciente (amenities); • Disponibilidade de medicamentos na farmácia; • Disponibilidade de sangue no banco de sangue. Os estudos de Parasuraman et al., avaliando cinco dimensões da qualidade de serviços, mostraram, comparativamente aos outros fatores, a menor influência do fator tangibilidade na percepção da qualidade (ZEITHAML, 1990), contradizendo outros autores quanto à importância do local de serviço. Entretanto, ao analisarmos os estudos de Parasuraman et al., podemos observar que análise da dimensão “tangibilidade” foi um tanto superficial, levando assim a uma captura insuficiente do “tangível”. Os vários estudos, embora tenham focalizado diversos aspectos do local de prestação de serviço, não lograram determinar seu significado na percepção da qualidade do serviço. Somente o estudo de Parasuraman et al. examinou o significado relativo dos cinco indicadores, relatando que os elementos tangíveis têm um impacto limitado na percepção geral de qualidade dos clientes. A hospitalidade nos serviços de saúde como evidência física Muitos hospitais criaram serviços adicionais, tornando a estada do paciente mais prazerosa, adotando estratégias da indústria de serviços, especialmente dos hotéis, buscando essencialmente aumentar a interação entre 285 e ambientes de boas vindas, são complementados por ações da instituição visando tornar o mais agradável possível a experiência de estar em tratamento de saúde. Hospitalidade gera comprometimento com as necessidades dos clientes, é o primeiro foco das operações comerciais mediadas pelo relacionamento de um funcionário com o cliente (LASHLEY; MORRISON, 2000). Caracteriza-se pela atenção diferenciada dada pelo funcionário ao cliente e posterior correspondência deste para com o funcionário. A atenção diferenciada (hospitalidade) inclui uma atitude de boas vindas e ambientação (BROTHERTON, 1999; OH; PIZAM, 2008), e suportadas por uma ação genuína da instituição, vão além da excelência do serviço, criando uma experiência inesquecível (HEMMINGTON, 2007). Pacientes encontram-se doentes, vulneráveis e em um novo ambiente; visitantes podem estar irritados (BERRY; BENDAPUDI, 2007), e colaboradores — administrativos ou técnicos — podem estar estressados, pois estão direta ou indiretamente envolvidos no processo de restaurar a saúde. Na enfermagem estão os profissionais com maior risco de estresse, visto estarem na linha de frente da hospitalidade (BELICKI; WOOLCOTT, 1996; PRICE; SPENCER, 1994). Gerenciar a combinação de pacientes e colaboradores com alto risco de estresse produz na organização responsabilidades e desafios adicionais na retenção de colaboradores. Patten (1994) reconhece a importância da hospitalidade no setor de saúde, apresentando três tipos de hospitalidade relacionados aos profissionais de saúde e aplicáveis à experiência dos pacientes: hospitalidade pública, basicamente a cortesia, a mesma esperada em hotéis, companhias aéreas e restaurantes. No ambiente hospitalar, revela-se nas interações diárias nos cafés, lojinhas, balcões da recepção, etc. Hospitalidade pessoal, no entanto, vai além das trocas comuns; no ambiente hospitalar relaciona-se à equipe de enfermagem, com quem os contatos são mais prolongados, e nas salas de pronto atendimento, onde os contatos são curtos, mas vitais, intensos e íntimos. Em ambos os casos, há uma pequena distância social entre o cuidador e o provedor (ex: governança, voluntários, enfermeiros, médicos). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 funcionários e clientes. Tais serviços, chamados de hospitalidade ou atitudes PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 286 Finalmente, hospitalidade terapêutica indica um serviço ao ser humano englobando o elemento moral/ético. A hospitalidade terapêutica é utilizada para conectar pessoas objetivando reduzir a sensação de separação e solidão, enquanto esperam pela cura ou cuidado. 3. Considerações Finais Ao procurar atendimento de saúde em uma unidade hospitalar, o paciente é exposto a vários estímulos que são processados cognitivamente e ajudam a moldar a sua satisfação. Tais estímulos ligam-se à estrutura do serviço e incluem fatores técnicos e afetivos, como cuidado de enfermagem, conforto nas áreas de espera, disposição (layout) e conforto dos quartos, limpeza geral, decoração, receptividade, equipamentos modernos, etc. A maioria dos autores confere considerável importância aos aspectos tangíveis na prestação de serviços, mesmo em um tipo complexo de serviço como o hospitalar, envolvendo tanto aspectos técnicos quanto afetivos. Não podendo interferir na qualidade técnica dos serviços de saúde, os pacientes utilizam os atributos afetivos a eles associados para opinar sobre a qualidade geral do serviço recebido. Os aspectos afetivos são mais visualizados pelos clientes e podem ser mais facilmente trabalhados pelas instituições no sentido de obter uma diferenciação competitiva. No entanto, ocorre uma difícil disputa no meio hospitalar relativamente à importância dos atributos tangíveis; para os médicos, os aspectos técnicos vêm em primeiro lugar e são os únicos que interessam. Para os administradores e profissionais de marketing, os atributos afetivos são fatores importantes e devem sempre ser considerados na elaboração dos orçamentos visando melhorias. Os aspectos afetivos mais presentes na avaliação dos clientes são: • Condições do ambiente: cores, volume de ruídos no local, limpeza e higienização das áreas, luz confortável e ambiente em ordem; • Design: disposição interior, mobiliário decoração, instalações físicas; • Fatores físicos: equipamentos modernos, materiais de comunicação 287 namento; material informativo, prédio e salas de espera; • Fatores sociais: aparência dos funcionários, uniformes, atenção dos funcionários, cooperação dos funcionários, nível de preparação dos funcionários para dar orientações, atendimento individualizado, informações dadas com precisão, tempo de espera informado, erros no processo. Os serviços adicionais, chamados de hospitalidade, podem tornar mais agradável a experiência da hospitalização, mesmo estando em tratamento de saúde. Respondem pela individualização do paciente e pela melhoria do relacionamento entre clientes e colaboradores — ambos sob intensa carga de stress por conta da complexidade do serviço. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 disponíveis; materiais de comunicação explicativos, sinalização para direcio- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 288 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, E. W.; MITTAL, V. Strengthening the satisfaction-profit chain, Journal of Services Research, Vol. 3 No. 2, p. 107-20, 2000. UBERT-GAMET, V.; COVA, B. Servicescapes: from modern non-places to postmodern common places, Journal of Business Research, Vol. 44, p. 37-45, 1999. BAKER, J.; GREWAL, D.; PARASURAMAN, A. The influence of store environment on quality inferences and store image, Journal of the Academy of Marketing Science, Vol. 22 No. 4, p. 328-39, 1994. BAKER, J. Examining the informational value of store environment. In: SHERRY, J. (Ed.), Servicescapes: the concept of place in contemporary markets, NTC Business Books, Lincolnwood, IL, 1998, p. 55-79. BARBER, N.; SCARCELLI, J. M. Enhancing the assessment of tangible service quality through the creation of a cleanliness measurement scale, Managing Service Quality, Vol. 20, No. 1, p. 70-88, 2010. BRADY, M.; CRONIN, J. Some new thoughts on conceptualizing perceived service quality: a hierarchical approach, Journal of Marketing, Vol. 65, July, p. 34-49, 2001. BELICKI, K.; WOOLCOTT, R. (1996), Employee and patient designed study of burnout and job satisfaction in a chronic care hospital, Employee Assistance Quarterly, Vol. 12 No. 1, p. 1-13, 1996. BENDALL-LYON, D.; POWERS, T. The impact of structure and process attributes on satisfaction and behavioral intentions. Journal of Services Marketing, Volume 18 Number 2, p. 114-121, 2004. FERRY, L. Discovering the soul of service, New York, NY, The Free Press, 1999. BROTHERTON, B. Towards a definitive view of the nature of hospitality and hospitality management, International Journal of Contemporary Hospitality Management, Vol. 11 No. 4, p. 165-73, 1999. CARMAN, J. M. Patient perceptions of service quality, combining the dimensions, Journal of Management in Medicine, Vol. 14 No. 5/6, p. 339-356, 2000. 289 health care quality: developing a conceptual model, International Journal of Health Care Quality Assurance, Vol. 10 No. 3, p. 131-40, 1997. DUGGIRALA, M.; RAJENDRAN, C.; ANANTHARAMAN, A. R. Patient-perceived dimensions of total quality service in healthcare. International Journal of Benchmarking, Vol. 15, No. 5, p. 560-583, 2008. EIRIZ, V.; FIGUEIREDO, J. A. Quality evaluation in health care services based customer provider relationships, International Journal of Health Care, Vol. 18 No. 6, p. 404-12, 2005. FOTTLER, M. D. et al. Creating a healing environment: the importance of the service setting in the new consumer-oriented healthcare system, Journal of Healthcare Management, Vol. 45 No. 2, p. 35-43, 2000. FOWDAR, R. Identifying health care attributes, Journal of Health and Human Services Administration, Vol. 27 No. 4, p. 428-43, 2005. GRONROOS, C. Strategic management and marketing in the service sector, Helsingfors: Swedish School of Economics and Business Administration, 1982. GRONROOS, C. Relationship marketing: the strategy continuum, Journal of the Academy of Marketing Science, Vol. 23 No. 4, p. 252-4, 1995. HANSON, R. Determining attribute importance, Quirk’s Marketing Research Review, Vol. 6, October, p. 16-18, 1992. HEMMINGTON, N. From service to experience: understanding and defining the hospitality business, The Service Industries Journal, Vol. 27 No. 6, p. 747-55, 2007. HENNING-THURAU, T. A relationship marketing perspective of complaint satisfaction in service settings: some empirical findings. In: Enhancing knowledge development in marketing, Summer Educator’s Conference Proceedings, American Marketing Association, Chicago, IL, August, p. 206-13, 2001. HOFFMAN, K.; BATESON, J. Princípios de marketing de serviços: conceitos, estratégias e casos. 2ª ed., São Paulo, Ed. Pioneira, 2003, p. 246-275. KRAVITZ, R. Patients’ expectations for medical care: an expanded formulation based on review of the literature, Medical Care Research e Review, Vol. 53 No. 1, p. 3-27, 1006. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 CONWAY, T.; WILLCOCKS, S. The role of expectations in the perceptions of PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 290 LASHLEY, C.; MORRISON, A. In search of hospitality: theoretical perspectives and debates, Butterworth-Heinemann, Oxford, 2000. LEVITT, T. Marketing intangible products and product intangibles, Harvard Business Review, Vol. 81, May/June, p. 94-102, 1981. LIM, P. C.; TANG, N. Study of patients’ expectations and satisfaction in Singapore hospitals. International Journal of Health Care Quality Assurance, 13/7, 290±299, 2000. LOCKYER, T. Hotel cleanliness: how do guests view it? Let us get specific: a New Zealand study, Hospitality Management, Vol. 22, p. 297-305, 2003. MITTAL, V.; ROSS, W. T.; BALDASARE, P. M. The asymmetric impact of negative and positive attribute-level performance on overall satisfaction and repurchase intentions, Journal of Marketing, Vol. 62 No. 1, p. 33-47, 1998. NAIDU, A. Factors affecting patient satisfaction e healthcare quality, International Journal of Health Care Quality Assurance, Vol. 22 No. 4, p. 366-381, 2009. NGUYEN, N.; LEBLANC, G. Contact personnel, physical environment and the perceived corporate image of intangible services by new clients, International Journal of Service Industry Management, Vol. 13 No. 3, p. 242-262, 2002. OFIR, C.; SIMONSON, I. In search of negative customer feedback: the effect of expecting to evaluate on satisfaction evaluations, Journal of Marketing Research, Vol. 38 No. 2, p. 170-82, 2001. OH, H.; PIZAM, A. Handbook of hospitality marketing management, Boston, MA: Butterworth-Heinemann, 2008. PATTEN, C. Understanding hospitality, Nursing Management, Vol. 25 No. 3, p. 80A, 1994. PARASURAMAN, A.; ZEITHAML, V.; BERRY, L. Reassessment of expectations as a comparison standard in measuring service quality: implications for further research, Journal of Marketing, Vol. 58, January, p. 111-24, 1994. __________ et al. A multiple scale for measuring consumer perceptions of service quality, Journal of Marketing, Vol. 64, Vol. 1, 1988. PRICE, L.; SPENCE, S. Burnout symptoms amongst drug e alcohol service employees: gender differences in the interactions between work and home stressors, Anxiety, Stress & Coping, Vol. 7 No. 1, p. 67-84, 1994. 291 RASHID, W.; JUSOFF, H. Service quality in health care setting, International Journal of Health Care Quality Assurance Vol. 22 No. 5, p. 471-482, 2009. REICHHELD, F. F.; SASSER JR, W. E. Zero defections: quality comes to services, Harvard Business Review, September- October, p. 105-11, 1990. REIDENBACH, R. E.; SEIFER-SMALLWOOD, B. Exploring the perceptions of hospital operations by a modified SERVQUAL approach, Journal of Health Care Marketing, Vol. 10, December, p. 47-55, 1990. REIMER, A.; KUEHN, R. The impact of Servicescape on quality perception, European Journal of Marketing, Vol. 39 No. 7/8, p. 785-808, 2005. RICHARD, M. D.; ALLAWAY, A. W. Service quality attributes e choice behavior, Journal of Services Marketing, Vol. 7 No. 1, p. 59-68, 1993. RUSHTON, A.; CARSON, D. The marketing of services: managing the intangibles, European Journal of Marketing, Vol. 23, No. 8, p. 23-44, 1989. RYU, K.; JANG, S. DINESCAPE: a scale for customers’ perception of dining environments, Journal of Foodservice Business Research, Vol. 11 No. 1, p. 2-22, 2008. SEVERT, D. et al. Hospitality in hospitals?, International Journal of Contemporary Hospitality Management, Vol. 20 No. 6, 2008 p. 664-678, 2008. STRASSER, S.; AHARONY, L.; GREENBERGER, D. The patient satisfaction process: moving toward a comprehensive model, Medical Care Review, Vol. 50 No. 2, p. 219-49, 1993. SURESHCHEAR, G. S.; RAJENDRAN, C. The relationship between service quality and customer satisfaction – a factor specific approach, Journal of Services Marketing, Volume 16 Number 4, p. 363-379, 2002. SZYMANSKI, D. M.; HENARD, D.H. Customer satisfaction: a meta-analysis of the empirical evidence, Journal of the Academy of Marketing Science, Vol. 29 No. 1, p. 16-35, 2001. TUCKER, J. III; ADAMS, S. R. Incorporating patients’ assessments of satisfaction and quality: an integrative model of patients’ evaluations of their care, Managing Service Quality, Vol. 11 No. 4, p. 272-86, 2001. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 RAAJPOOT, N. TANGSERV: a multiple item scale for measuring tangible quality in food service industry, Journal of Foodservice Business Research, Vol. 5 No. 2, p. 109-27, 2002. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 292 TUCKER, J. The moderators of patient satisfaction, Journal of Management in Medicine, Vol. 16, No. 1, p. 48-66, 2002. YOUSSEF, F. N.; NEL, D.; BOVAIRD, T. Health care quality in NHS hospitals, International Journal of Health Care Quality Assurance, Vol. 9, No. 1, p. 15-28, 1996. ZEITHAML, V. A. Marketing de serviços: a empresa com foco no cliente. 2 ed., Porto Alegre, Bookman, 2003. WARD, J.; BITNER, M.; BARNES, J. Measuring the prototypicality and meaning of retail environments, Journal of Retailing, Vol. 68, No. 2, p. 194-220, 19. 293 Eduardo Bueno da Fonseca Perillo - Médico, mestre em administração, doutor em história econômica, vice-coordenador do núcleo de pesquisa Regulação Econômica e Estratégias Empresariais da PUC-SP. Maria Cristina Sanches Amorim - Economista, professora titular e coordenadora do núcleo de pesquisa Regulação Econômica e Estratégias Empresariais da PUC-SP. As discussões sobre pagamento por desempenho — payment for performance ou P4P (pi-for-pi) — estão na ordem do dia nas organizações de serviços de saúde — prestadores e fontes pagadoras. No campo da gestão de pessoas nas organizações, o tema foi objeto de discussões acadêmicas e frequentou as páginas dos periódicos científicos desde meados do século XX; há amplos registros sobre experiências de empresas e resultados obtidos — êxitos e fracassos — e também do debate entre especialistas. Dessa forma, gestores e consultores do setor saúde podem beneficiar-se do conhecimento já consolidado. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 PAGAMENTO POR DESEMPENHO: EXPERIÊNCIAS E REFLEXÕES PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 294 Dos estudos comportamentais ao pagamento por desempenho Os estudos comportamentais, ou behavioristas (de behavior/behaviour, comportamento em inglês), suportados pela filosofia da psicologia que considera “comportamentos” todos os atos de organismos, podem ser identificados a partir do século XIX, entre eles as pesquisas empreendidas por Ivan Pavlov que resultaram na descoberta dos reflexos condicionados87. O trabalho de numerosos pesquisadores ampliou e deu corpo à teoria behaviorista, entre eles Thorndike, Watson e Skinner. Os trabalhos de Skinner88, professor de psicologia na Universidade de Harvard de 1958 a 1974, deram notoriedade ao behaviorismo no meio empresarial a partir da aplicação, nas empresas e escolas, dos resultados de seus estudos sobre psicologia da aprendizagem, reforços e o condicionamento operante. Ao contrário do condicionamento respondente (involuntário ou reflexo), motivado por um estímulo prévio, indutor do comportamento respondente — por exemplo, a salivação induzida nos cães de Pavlov — o condicionamento operante de Skinner é de natureza voluntária, induzido pelas consequências seguintes à resposta e traduzido no comportamento operante. Nas palavras de Skinner: Through respondent (Pavlovian) conditioning, responses prepared in advance by natural selection could come under the control of new stimuli. Through operant conditioning, new responses could be strengthened (“reinforced”) by events which immediately followed them (SKINNER, 1981). Dessa forma, uma consequência percebida como positiva terá reforçada a resposta (ou comportamento) capaz de produzí-la, enquanto uma consequência percebida como negativa ou prejudicial terá inibida a resposta capaz 87 Ivan Pavlov, fisiologista russo e prêmio Nobel de fisiologia e medicina em 1904, mais conhecido por seus trabalhos sobre a fisiologia da digestão no final do século XIX que levaram à descoberta dos reflexos condicionados, notadamente pela observação da resposta de salivação obtida em cães por meio de estímulos externos associados à oferta de alimento. Disponível em: <http://nobelprize.org/nobel_prizes/medicine/laureates/1904/pavlov-bio.html>. 88 Skinner foi o criador do behaviorismo radical, teoria que procura entender o comportamento como consequência de reforços ou de um passado ambiental, e da análise experimental do comportamento, sua própria escola de pesquisa. 295 Em síntese, para Skinner o comportamento é função de suas consequências. Grande parte do trabalho experimental de Skinner utilizou ratos e pombos como organismos de análise valendo-se de equipamento por ele desenvolvido, a caixa de Skinner ou câmara operante. A caixa contém uma ou mais barras ou alavancas passíveis de manipulação pelo animal, de forma a permití-lo obter alimento, água ou outra gratificação como forma de reforço, emissores de estímulos sonoros e luminosos, assoalho com barras eletrificadas e um acoplamento para registrar as respostas dadas pelo animal e o esquema de reforço ao qual está sendo submetido. A ideia é permitir o estudo do comportamento em condições controladas, de forma a identificar qual esquema de reforço obtém a maior frequência de resposta90. 89 Essas são, na verdade, descrições e explicações muito simplificadas de uma metodologia complexa, limitadas pelo espaço e escopo deste artigo, mas servem como ponto de partida para nossa discussão. Transportando tais conclusões para seres humanos, os modelos de recompensa por desempenho inspiram-se na ideia que pessoas possam, voluntariamente, mediante condicionamento operante induzido por estímulos (reforços/punições), adquirir “aprendizado” para exibir comportamentos considerados adequados no ambiente empresarial ou escolar. Por exemplo, com relação aos bônus anuais oferecidos a executivos, é possível termos uma situação da adição de algo prazeroso — ganhar o bônus (reforço positivo), para incentivar uma conduta desejada (atingir ou superar a meta estipulada). Na outra ponta, pode-se ter a retirada de algo prazeroso — perder parte do bônus (punição negativa91), por exemplo se a meta de redução 89 Para o desenvolvimento de seu aircrib, um ambiente climatizado para crianças, também utilizou bebês. Foto e descrição do aparelho disponíveis em: <http://www.psychologicalscience.org/index.php/publications/ observer/2010/september-10/skinner-air-crib.html>. 90 Foto de um rato em uma caixa de Skinner e um interessante artigo do neuroeconomista Gregory Berns sobre o medo nas organizações e seus efeitos na tomada de decisões: <http://www.nytimes.com/2008/12/07/ jobs/07pre.html>. 91 Uma punição pode ser positiva, quando adiciona um castigo, ou negativa, quando retira algo prazeroso; uma recompensa pode ser positiva, oferecendo algo desejado, ou negativa, retirando algo que incomoda, por exemplo desligando a corrente elétrica no assoalho da caixa de Skinner. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 de gerá-la. O aprendizado ocorre pelo arranjo sucessivo de situações de reforço e punição, quer positivos (adição, recompensa) ou negativos (subtração, remoção). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 296 de peso determinada pela empresa não for atingida, uma prática que vem se tornando cada vez mais comum92. As teses skinnerianas são centrais nos modelos de pagamento por desempenho93; a empresa, sinalizando que premiará uma determinada conduta, busca induzir um comportamento “voluntário” nos trabalhadores, os quais, em maior ou menor grau, procurarão demonstrá-lo para receber o prêmio prometido. A mesma indução ocorrerá, presume a empresa, ao sinalizar que uma conduta indesejada ensejará punição ou perda de benefício. Para a maioria dos teóricos do condicionamento operante, que o estudam e aplicam no ambiente organizacional, recompensas financeiras são os mais poderosos e utilizados reforços para induzir comportamentos. A edição de setembro/outubro de 1993 da Harvard Business Review (HBR) trouxe um artigo do psicólogo Alfie Kohn, Why incentive plans cannot work, apresentando de forma condensada as ideias de seu livro Punished by rewards94, no qual critica os gestores que tão frequentemente acreditam no poder redentor de recompensas. Incentivos produziriam apenas mudanças temporárias, não criam um compromisso duradouro, não alteram as atitudes que produzem os comportamentos. Para o autor, punições e recompensas são duas faces da mesma moeda, ambas possuindo efeitos punitivos pois são manipuladoras; várias são as razões pelas quais as recompensas falham no longo prazo: • Pagamento não é motivação: não há comprovação de que mais pagamento encoraja pessoas a trabalhar melhor, ou produzir melhor no longo prazo; • Recompensas punem: retirar recompensas de quem esperava recebêlas equivale a punir; quanto mais desejada a recompensa, mais desmoralizador o efeito de sua retirada; • Recompensas destróem a cooperação: forçar pessoas a competir por recompensas as faz ver as outras como obstáculos ao seu sucesso; • Recompensas ignoram as causas dos problemas e as possibilidades de melhoria. Sistemas de recompensas exigem menor esforço de administração, mas são maus substitutos para boa gestão e impedem os gestores de mostrar sua habilidade; 92 Ver SOARES, Vivian, Empresas criam ações para reduzir número de executivos obesos. Valor Econômico, 26/03/2011, p. D14. 93 Outras variáveis também contribuem para o prestígio dos modelos de recompensa, como os princípios da racionalidade econômica originados na doutrina filosófica do utilitarismo. 94 Disponível em português: Punidos pela recompensas: os problemas causados por prêmios por produtividade. São Paulo, Atlas, 1998. 297 O artigo de Kohn não passou despercebido: no número seguinte, novembro-dezembro de 1993, a HBR trouxe opiniões de nove especialistas (sic) em outro artigo, Rethinking rewards. G. Bennet Stewart III, sócio de uma firma de consultoria, manifestou-se: A world without A’s, praise, gold stars or incentives? No thank you, Mr. Kohn. Communism was tried and it didn’t work (HBR, 1993). Na opinião de, Michael Beer, professor de administração: If incentive systems do not motivate, what should managers do about compensation? Surely, Kohn would not suggest that everyone should be paid the same (HBR, 1993). Theresa Amabile, professora de psicologia: Intrinsic motivation — being motivated by challenges and enjoyment — is essential to creativity. But extrinsic motivation — being motivated by recognition and money — doesn’t necessarily hurt (HBR, 1993). Na visão de Jerry McAdams, vice-presidente de uma empresa de consultoria — e que acusou Kohn de buscar tanto notoriedade como um nicho particular de mercado: Appropriate rewards for improved performance have always made good sense, intuitively and practically. They aren’t wrong, they aren’t intrinsically demotivating (HBR, 1993). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 • Recompensas desestimulam criatividade e a disposição de correr riscos; motivam pessoas a buscar resultados com foco na recompensa, não no trabalho a ser feito, podendo encorajar a manipução dos números e comportamentos aéticos e ilegais; • Recompensas minam o interesse no trabalho; pessoas que executam um trabalho excepcional o fazem porque amam o que fazem. Motivadores externos são maus substitutos para motivação intrínseca, isto é, promover o interesse genuíno pelo trabalho; incentivos ou subornos produzem sentimentos negativos acerca do trabalho (KOHN, 1993ab). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 298 O presidente da Tyco, Dennis Kozlowski, opinou: I’ll accept that elephants cannot fly and that fish cannot walk, but Kohn’s argument that incentive plans cannot work defies the laws of nature at Tyco Laboratories95 (HBR, 1993). Donita S. Wolters, administradora de recursos humanos comentou: Incentives are neither all good nor all bad. Although not the right answer in all cases, they can be highly effective motivational tools (HBR, 1993). Como bem notou Kohn em seu direito de resposta, as críticas mais contundentes partiram dos comentaristas que ganhavam a vida vendendo ou implementando programas de incentivos. Como Michael Beer observou, a maioria dos programas de pagamento por desempenho são descontinuados poucos anos após sua implantação — não há estudo controlado demonstrando melhorias de longo prazo na qualidade do desempenho resultante de recompensas extrínsecas. W. Edward Deming, expoente do Total Quality Management, recomendava abolir sistemas de mérito, pagamento de incentivos e avaliação anual de pessoas, aconselhando aos gestores aprofundar-se no estudo de liderança e gestão de pessoas (DEMING, 1993). Muito antes disso, Herzberg abordara o assunto: em 2003, a HBR publicou One more time: how do you motivate employees?, artigo originalmente publicado em 1968 e no qual o autor comenta as dificuldades para colocar um empregado em ação: “a maneira mais rápida é pedir, mas, se não funcionar, a próxima ‘solução’ é dar-lhe um chute no traseiro, ou KITA” (kick in the pants - mas o significado original é mais explícito). O chute, afirma Herzberg, pode provocar movimento, mas não provoca motivação — tampouco provocada por pagamento, promoção ou escritório luxuoso. Incentivos extrínsecos podem estimular pessoas temporariamente, mas o desempenho só vai durar até o próximo benefício ou promoção. Por que? A maioria das pessoas é motivada por incentivos intrínsecos, trabalho interessante e desafiador, e a oportunidade de assumir maiores responsabilidades. Se baixos salários são desmotivadores, a motivação, acredita o autor, 95 Kozlowski foi condenado em 2005 a uma pena de 8½ a 25 anos de reclusão por fraudes envolvendo o recebimento de bônus indevidos. Ver < http://money.howstuffworks.com/cooking-books10.htm>. 299 Jeffrey Pfeffer é outro autor a abordar recorrentemente o tema da motivação. Em seu artigo na HBR, Six dangerous myths about pay, traça um paralelo entre mitos e realidade, entre eles o de que pagamento de incentivos individuais aumenta o desempenho, quando na realidade o diminui, tanto individual quanto corporativamente. Vários estudos sugerem que o método solapa o trabalho em equipe, encoraja a adoção de objetivos de curto prazo e faz pessoas acreditarem que o pagamento não guarda relação com o desempenho, mas sim com uma personalidade cativante e as amizades “certas”. Outro mito é que as pessoas trabalham principalmente por dinheiro, quando o que conta é um trabalho intelectualmente estimulante e desafiador, em um bom ambiente e que permita o uso de todas as suas capacidades (PFEFFER, 1998). Os “mitos” sobre pagamento de incentivos e motivação financeira subsistem, em grande medida, amparados pela teoria econômica de base utilitarista e dos modelos de comportamento humano ensinados nas escolas de negócios. Nesses, há a suposição que o comportamento humano é racional, isto é, orientado pela melhor informação disponível no momento e para obter a máxima utilidade individual (maximização da utilidade). Segundo a teoria, as pessoas aceitam trabalho e decidem quanto esforço irão despender com base no retorno financeiro esperado; se o pagamento não guardar relação com o desempenho, as pessoas não devotarão suficiente energia e atenção ao seu trabalho. Tais modelos, segundo Pfeffer, apresentam o trabalho como algo duro e aversivo, implicando que a única maneira pela qual pessoas possam ser induzidas a trabalhar é por meio de uma combinação de recompensa e punição. Para o autor, pagamento não substitui um ambiente de trabalho prazeroso, com alto grau de confiança e significado (PFEFFER, 1998). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 depende do contínuo enriquecimento do trabalho, não de dinheiro e benefícios. Assim, recomenda (HERZBRG, 2003): • Aumente a responsabilidade individual removendo alguns controles; • Responsabilize as pessoas por um processo completo ou unidade de trabalho; • Informe diretamente aos funcionários ao invés de fazê-lo por meio da gerência; • Capacite as pessoas a executar tarefas novas e mais difíceis; • Dê tarefas especializadas às pessoas, permitindo-as tornarem-se especialistas. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 300 As empresas de consultoria em pagamentos e benefícios têm papel importante na perpetuação dos “mitos”, e “vários motivos para alimentar falsas concepções”, entre eles: • Planos de salários e benefícios são o seu ganha-pão, não obstante a expansão para outras áreas de serviços; • É mais fácil mudar um plano de pagamentos do que mudar a cultura organizacional e a maneira como a empresa é organizada; • Mudanças no sistema de pagamentos trazem novos problemas e novas oportunidades para o trabalho de consultoria (PFEFFER, 1998). Os conselhos de Pfeffer sobre pagamentos incluem: • Uma grande dose de recompensas coletivas no pacote salarial, fortalecendo a colaboração e o espírito de equipe, pois pessoas são interdependentes; • Menor ênfase no salário como razão para trabalhar na organização — quem vem pelo dinheiro, irá embora pelo dinheiro; • Transparência nas políticas salariais — segredos dão impressão que os empregados não merecem confiança ou que a organização tem algo a esconder. De volta ao tema em 2007, com Do financial incentives drive company performance?, capítulo de seu livro Hard facts, dangerous half-truths and total nonsense: profiting from evidence-based management, em co-autoria com Robert Sutton, Pfeffer reconhece o crescimento da prática de pagamentos por desempenho nos últimos 15 anos, não somente nas organizações norte-americanas, mas em todo o mundo, chegando até a 80% do total analisado. Persiste a crença que o trabalho é aversivo e pessoas precisam ser subornadas para esforçar-se, incentivos financeiros sendo vistos como a principal ferramenta para alinhar o comportamento individual aos objetivos organizacionais. O grande impulso do pagamento incentivado emana da noção que, pagandose os empregados de forma apropriada, virtualmente todos os problemas organizacionais e administrativos podem se resolvidos (PFEFFER, 2006). Reforçando a ideia, Edward Lazear, em Performance pay and productivity, afirma: 301 workers respond to incentives. Specifically, it is a given that paying on the basis of output will induce workers to supply more output (LAZEAR, 2000). Uma afirmação, lembra Pfeffer, que nada tem de nova; Frederic Winslow Taylor, considerado o “pai” da administração científica, afirmou: What the workmen want most from their employers beyond anything else is high wages (TAYLOR, 1911). Tais conceitos, somados à teoria do condicionamento operacional de Skinner, estabelecem que, se algum comportamento é desejado, ele necessita ser reforçado e os incentivos financeiros são a mais potente forma de reforço. Menos reticente do que em seu artigo de 1998, Pfeffer admite três formas dos incentivos financeiros incrementarem o desempenho organizacional — ou prejudicá-lo, se mal desenhados ou mal aplicados. Primeiro, um efeito motivacional, gerando mais esforço, mas somente se os resultados do trabalho estiverem sob o controle das pessoas incentivadas — se o seu esforço não produzir impactos sobre o resultado, o efeito motivacional dos incentivos financeiros não alterará o desempenho, gerando frustração e descontentamento. Segundo, um efeito informacional, esclarecendo as pessoas sobre o que a organização valoriza e quais são suas prioridades — o autor recomenda cuidado para que informações conflitantes não sejam transmitidas e o esforço desperdiçado — devem ser simples, de fácil entendimento. Por último, um efeito seletivo, atraindo pessoas que preferem trabalhar em um ambiente de política salarial baseada em desempenho e repelindo pessoas que preferem uma polícia salarial convencional, baseada em tempo de serviço, por exemplo (PFEFFER, 2006). Mas o problema com os incentivos financeiros individuais, observa, é que funcionam bem demais: atraem talentos, mas frequentemente do tipo errado, e incentivam comportamentos inesperados, recomendando: “cuidado com o que você remunera, pode ser que você acabe mesmo conseguindo”. No filme A suprema felicidade, de Arnaldo Jabor, Noel, o personagem vivido por Marco Nanini, em algum momento comenta com o neto que viveu de rato por vários anos. Explica-se: durante epidemia de peste bubônica no PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 A cornerstone of the theory in personnel economics is that PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 302 Rio de Janeiro, no início do século XX, o médico Oswaldo Cruz, diretor da Diretoria Geral de Saúde Pública, DGSP, capitaneou campanha para destruir os vetores da doença, ratos e pulgas. Para tanto, constituiu grupo de 50 homens, os “ratoeiros”, que deveriam percorrer as ruas comprando ratos caçados pela população. Ratos obtidos além da cota diária individual seriam remunerados adicionalmente ao salário mensal, incentivando dessa forma os ratoeiros a capturar mais ratos. Durante os primeiros meses em que esteve em vigor, a medida que incentivava a caça aos ratos apresentou os resultados desejados pela DGSP. De 20 de setembro até 31 de dezembro de 1903, foram incinerados 24.441 roedores, perfazendo uma média diária de 241 animais. Entretanto, nem tudo correu conforme o previsto durante a vigência da medida. Muitas vezes, durante a operação, a tão propalada malandragem carioca falava mais alto e muitos cidadãos viram nela uma oportunidade para ganhar dinheiro fácil. Para tanto, ratos começaram a ser criados em currais e cercados pela cidade, foram “importados” de cidades circunvizinhas, como Niterói, e chegou-se ao cúmulo de se fabricar ratos de papelão e de cera, incinerados como de verdade nos fornos do Desinfectório Central (SILVA, 2010). Pois o personagem Noel “viveu de rato”, incentivado que foi pelo pagamento por desempenho. Skinner também beneficiou-se da relação profissional com os roedores, pois os estudou por toda a vida, incentivado pelo sucesso de suas pesquisas acadêmicas. Uma rede de supermercados, objetivando reduzir os gastos com o benefício de farmácia para seus funcionários, introduziu um programa de incentivos para a substituição de medicamentos de marca por genéricos. Os funcionários passaram a comprar mais dos últimos, mas também cresceu o volume de compras de medicamentos, aumentando os gastos, justamente o que o programa visava combater (INOCÊNCIO et al, 2010). 303 A empresa de energia Enron foi eleita pela revista Fortune por seis vezes consecutivas como a empresa norte-americana mais inovadora, e antes de sua falência no final de 2001, após a revelação de fraudes, seu faturamento anual superava os 100 bilhões de dólares. Seus executivos utilizaram mecanismos contábeis (mark to market) permitindo contabilizar ganhos projetados de contratos de energia como se fossem receita corrente96, aumentando artificialmente o valor dos rendimentos da empresa e impactando na bonificação dos executivos e no valor das ações, por sua vez também parte da remuneração dos executivos, que podem vendê-las e colher os ganhos financeiros. Quando opções de ações são utilizadas para remunerar executivos pelo desempenho da companhia, eles precisam apenas manter o preço das ações elevado por um momento, e depois desfazer-se delas, e uma das maneiras de elevar o preço das ações é divulgar dados de desempenho financeiro superando as expectativas do mercado. No caso da Enron, a sinalização dada aos executivos era clara: aumentar o valor das ações e receber o bônus pelo desempenho — e esse resultado foi obtido. Quando o valor das ações chegou ao topo, os executivos que possuíam informação sobre a real situação da empresa venderam as que estavam em seu poder. Em 2001, o valor da ação caiu de 86 dólares para 30 centavos, e o caso da Enron teve maior impacto por incluir, além de executivos da empresa, bancos, acionistas e mesmo uma conceituada empresa de auditoria97. A situação da Enron não foi uma exceção. O mesmo Dennis Koslowski que atacou o artigo de Kohn em 1998, foi condenado em 2005 com outro executivo pela apropriação indevida de 120 milhões de dólares em bônus, fraude descoberta após investigação iniciada em 1999 pela US Securities and Exchange Commission - SEC, agência federal norte-americana análoga à Comissão de Valores Mobiliários, CVM. Bernard Webbers, principal executivo da WorldCom, gigante das telecomunicações norte-americanas sócia da Embratel, enriquecido pela valorização de seus ativos da companhia, usou suas ações como garantia de empréstimos 96 Mecanismo semelhante ao utilizado na fraude do Banco Panamericano. 97 Para a fraude da Enron, ver <ey.howstuffworks.com/cooking-books7.htm>. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Pagamento por desempenho e produção de indicadores: experiências recentes PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 304 para financiar outros empreendimentos, entre eles a construção de iates. Em 2000, quando o valor das ações da WorldCom sofreu forte queda após o Departamento de Justiça norte-americano negar a fusão com a Sprint, os bancos pressionaram Webbers para cobrir a defasagem entre o valor das ações em garantia e o dos empréstimos (margin calls). Sob a direção de Webbers, desde 1999 a empresa começara a utilizar manobras contábeis para elevar o valor das ações; primeiro reduzindo o montante de dinheiro em caixa reservado para cobrir eventuais obrigações das companhias adquiridas — 2,8 bilhões de dólares — declarando-o como lucro, depois classificando despesas operacionais como investimentos de capital de longo prazo (capex), e mesmo criando despesas fictícias com computadores no total de 500 milhões de dólares. As manobras contábeis “transformaram” os prejuízos da WorldCom em lucro de 1,38 bilhão de dólares em 2001, mas auditorias internas e investigações posteriores da SEC descobriram a fraude, totalizando 3,8 bilhões de dólares. Quando, em julho de 2002, a WorldCom pediu falência (Chapter 11 for bankruptcy protection), seu pedido envolveu a maior soma até então, já superada pela quebra do Lehnman Brothers e da Washinton Mutual em 2008. Perícias judiciais feitas em 2010 revelaram que os executivos do Lehman Brothers também usaram artifícios para inflar os resultados trimestrais, entre eles declarar contratos de recompra como vendas para ocultar as desastrosas operações da firma. Pouco antes da quebra, uma proposta para a suspensão dos bônus aos altos executivos, como demonstração de responsabilidade e prestação de contas aos investidores e funcionários, foi rapidamente rejeitada. Pagamento por des-empenho. Em dezembro de 2006, Franklin Raines, Timothy Howard e Leanne Spencer, executivos da Fannie Mae (Federal National Mortgage Association - FNMA) foram acusados de manipular os ganhos da companhia para maximizar seus bônus, em uma ação visando recuperar 115 milhões de dólares pagos ao trio entre 1998 e 2004. A partir do final de 2007 e estendendo-se por 2008, a crise de financiamento imobiliário nos EUA atingiu fortemente a Fannie Mae e a Freddie Mac (Federal Home Loan Mortgage Corporation - FHLMC), alimentada em grande parte pela sobreoferta de financiamento imobiliário subprecificado (devido aos baixos níveis de juros). Com a lucratividade fortemente atrelada ao volume de transações, a “solução” para satisfazer os investidores 305 O resultado: elevado número de compradores inadimplentes, crescimento da execuções de hipotecas (foreclosures), por sua vez aumentando a oferta de imóveis disponíveis no mercado, com impacto negativo no preço. Com isso, caiu também o valor dos imóveis já financiados, cujo preço de mercado passou a patamar inferior ao valor financiado, gerando mais e mais inadimplência, execução de hipotecas, sobreoferta de imóveis à venda, queda nos preços, em um ciclo vicioso. Os exemplos mostram como o pagamento incentivado pode gerar os resultados desejados no curto prazo, e trazer grandes problemas no médio e longo prazos, incluindo multas, indiciamentos, demissões e perda de mercado. Em seu artigo The fatal flaw in pay for performance, Ben Heineman comenta um erro crucial nos planos de pagamento por desempenho: não remunerar por desempenho com integridade, forçando condutas irregulares para atingir metas (HEINEMAN, 2008). Pfeffer voltou ao tema em Sins of commission: be careful about you pay for, you may get it, na coletânea What were they thinking? Unconventional wisdom about management, organizada pela Harvard Business School em 2007, chamando a atenção para o fato que as pessoas não são necessariamente motivadas por dinheiro em quaisquer circunstâncias98. Se trabalhassem apenas por dinheiro, o que explica trabalharem em organizações de forte apelo social e baixos salários, quando poderiam obter melhores colocações e remunerações? (PFEFFER, 2007). Para ilustrar o argumento, Pfeffer apresenta o caso da DaVita, empresa de diálise nos EUA, que aplica com sucesso políticas para criar uma cultura de alto desempenho. Há empenho em comunicar incessantemente aos quadros o que realmente é importante — no caso, o cuidado com os pacientes — salientando a compreensão de seu modelo de negócios: o que produz resultados empresariais positivos e por que. Apenas informações não bastam, são necessárias habilidades adequadas para a tomada de decisões operacionais e estratégicas. A DaVita mantém programas de educação continuada para todos os níveis, especialmente para seus gerentes de unidades e a alta administra98 Os estudos de Abraham Maslow, por exemplo, tratam da hierarquia das necessidades humanas. Disponível em: <http://www.maslow.com/>. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 foi incentivar as vendas rebaixando os requisitos de concessão de crédito e bonificando os vendedores. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 306 ção, oferecendo ainda cursos para seus pacientes (Empowerment Programs), para melhorar continuamente sua qualidade de vida (PFEFFER, 2007). Persistem questionamentos quanto ao pagamento diferenciado criar disparidades entre funcionários: pessoas que contribuem extraordinariamente para os resultados organizacionais gostam de ser reconhecidas, acreditando não ser justo receber o mesmo que colegas menos esforçados ou com resultados menores do que os seus. As pessoas costumam ver-se de forma positiva relativamente às outras, julgando-se acima da média; assumem o crédito por seus sucessos e relacionam suas falhas à questões fora de seu controle (PFEFFER, 2007). Dessa forma, políticas de remuneração diferenciada poderão criar ressentimentos entre a força de trabalho, pois quem receber menos que o esperado sentir-se-á preterido e/ou injustiçado (pela chefia ou pela organização). Quando isso acontece, há o risco de impactos negativos no espírito de equipe e na produtividade. Pior ainda será se a empresa tornar explícita a diferenciação entre funcionários e criar categorias como “vencedores”, “médios” e “perdedores”, com o inevitável crescimento da ciumeira e divisão entre as pessoas, com o surgimento de castas e a diminuição da confiança e dos laços sociais no ambiente de trabalho. Se há evidências que o pagamento diferenciado aumenta a produtividade em situações particulares, nas situações de interdependência entre as pessoas é melhor pensar em recompensas abrangendo todo o grupo. Pfeffer e Langton conduziram estudo entre professores universitários, demonstrando que quanto maior a dispersão do pagamento entre departamentos acadêmicos, menores a satisfação com o trabalho, a colaboração e o nível de produtividade de pesquisa (PFEFFER; LANGTON, 1993). O pagamento por desempenho tem larga aceitação nas organizações, pois adere aos valores e ao senso comum de muitos, mas a revisão da literatura científica recomenda ao gestor conhecer os limites e possibilidades do instrumento. No rol dos limites estão as consequências danosas de médio e longo prazos, as não planejadas e as identificáveis, mas não redutíveis a indicadores quantitativos, tais como perda de comprometimento, de motivação, de criatividade, entre muitas outras. 307 Em novembro de 1999, o Institute of Medicine - IOM, organização não governamental norte-americana, braço de saúde da National Academy of Science, divulgou o estudo To err is human: building a safer health system, centrado no erro médico nos Estados Unidos e suas consequências: 98.000 mortes evitáveis anuais somente em ambiente hospitalar, número superior às mortes por acidentes de trânsito, AIDS e câncer de mama. Iniciativas de pagamento por desempenho anteriores ao estudo do IOM podem ser identificadas, mas sua publicação e repercussão desencadearam um movimento nacional nos EUA, com o surgimento de várias iniciativas de P4P endossadas pelo Institute of Health Improvement (IHI), IOM, National Quality Foundation, Joint Commission on Accreditation of Health Care Organizations (JCAHO) e National Committee for Quality Assurance (NCQA). Um dos desdobramentos do estudo foi dar ao Leapfrog, grupo formado em 2000 por empresas listadas no Fortune 500, financiadoras de planos de saúde para mais de 40 milhões de vidas, o seu foco inicial: reduzir erros médicos evitáveis, recompensando, via pagamento por desempenho, hospitais que implementassem significativos melhoramentos em qualidade, segurança e eficiência, parâmetros avaliados por meio do Leapfrog Hospital Recognition Program (LHRP). O grupo propunha-se a trabalhar em três principais vertentes para melhorar a qualidade dos serviços de saúde nos EUA: publicar os resultados das pesquisas junto aos hospitais, favorecendo a transparência; oferecer incentivos e recompensas para os hospitais com melhor desempenho; tornar os serviços de saúde seguros e eficazes, em colaboração com outras instituições com afinidades de propósitos, ao mesmo em que os membros do grupo comprometem-se a aderir a um rol de “princípios de compra”. A metodologia de trabalho propunha a adoção de três “saltos” (leaps), mediante os quais os hospitais participantes poderiam ganhar em qualidade, segurança e acessibilidade. • Informatização da prescrição de medicamentos e utilização de software de prevenção de erros de prescrição (Computer Physician Order Entry - CPOE); • Indicação de hospitais baseada em evidências: necessitando de PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Pagamento por desempenho em serviços de saúde PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 308 procedimentos médicos complexos, pacientes e compradores de planos de saúde deveriam escolher os hospitais com maior experiência em cirurgias de alto risco e manuseio de condições críticas, e com os melhores indicadores de sobrevivência baseados em critérios científicos válidos; • Dotar os serviços de terapia intensiva de médicos intensivistas treinados. Em março de 2001, o IOM lançou um novo estudo, Crossing the quality chasm: a new health system for the 21st century, chamando a atenção para a baixa qualidade dos serviços de saúde nos EUA, clamando por reformas para corrigir um sistema de saúde chamado de desconjuntado e ineficiente. Entre as causas apontadas, a baixa utilização da tecnologia de comunicação e informação para agregar e disponibilizar dados clínicos dos pacientes, e o sistema amplamente utilizado para o pagamento dos serviços — o fee for service ou pagamento por procedimento — visto, sob certas condições, como um agente desincentivador da qualidade e uma barreira à inovação. Entre outras iniciativas, o estudo recomenda, tanto no âmbito público quanto no privado, o desenvolvimento de políticas de remuneração capazes de alinhar o pagamento a objetivos de melhoria de qualidade. Na esteira das recomendações do IOM, a Robert Wood Johnson Foundation, a California HealthCare Foundation e The Commonwealth Fund patrocinaram com 9 milhões de dólares a Rewarding Results, iniciativa com suporte técnico do Leapfrog Group visando prover doações, assistência técnica e material didático para auxiliar compradores e planos de saúde na obtenção de serviços de saúde de alta qualidade, desenvolvendo incentivos financeiros e não financeiros para recompensar médicos e hospitais comprometidos com tais objetivos. Galvin et al, em artigo publicado em janeiro de 2005 em Health Affairs, questionaram a capacidade do Leapfrog Group produzir um impacto real no mercado de serviços de saúde norte-americano após seu reconhecimento nacional. Se de um lado percebiam-se efeitos positivos diretos e indiretos, como o esforço de hospitais em melhorar a qualidade induzido pela disseminação de informações sobre seu desempenho, o aumento da contratação de inten- 309 Em novembro de 2005, a principal executiva do Leapfrog Group, Suzanne Delbanco, divulgou o relatório contendo os resultados e as lições aprendidas ao fim de três anos de implantação, pela Rewarding Results, de sete projetos experimentais de pagamento por desempenho financiados pelos patrocinadores99. Cautelosa, Delbanco comentou as dificuldades para a implementação de tais programas. Em suas palavras: P4P clearly has great potential for driving quality improvement, but challenges persist that can be overcome only by the kind of careful and independent evaluations these projects are undertaking to assess their progress. Identificou-se no relatório a ausência de resultados empíricos, fruto de estudos rigorosos, e várias questões permaneceram sem resposta: • Qual a dimensão das recompensas financeiras necessárias para causar mudanças? • Como engajar os médicos em atividades de melhoria contínua da qualidade ligadas ao P4P? • O ROI100 e os ganhos de qualidade superam os esforços financeiros e humanos? • Como manter a melhoria com tecnologia de informação adequada? • O P4P pode funcionar em todo e qualquer ambiente? Um dos participantes do projeto-piloto, Bridges to Excellence, sugeriu que o incentivo financeiro deveria ser, no mínimo de 5.000 dólares, enquanto outros sugeriram pelo menos 10% da renda anual do médico. Outros incentivos, como infraestrutura, suporte tecnológico e pessoal de apoio foram sugeridos como elementos motivacionais para que o médico atingisse os objetivos de qualidade, visto ser unânime a opinião da importância fundamental de seu engajamento para o sucesso da iniciativa. 99 Disponível em: <http://www.rwjf.org/newsroom/product.jsp?id=21847>. 100 ROI: Return on investment, retorno sobre investimento. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 sivistas, do incremento da adoção de tecnologias da informação, de CPOE e do P4P; de outro havia o reduzido número de hospitais que implementaram os “saltos” e a falta de documentação das melhorias clínicas e financeiras eventualmente obtidas (GALVIN et al, 2005). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 310 Outro participante do projeto-piloto, Local Initiative Rewarding Results (LIRR), envolveu sete planos de saúde da Califórnia e 3.300 médicos em programa para crianças e adolescentes arrolados no Medicaid, voltado para pessoas e famílias de baixa renda. O Center for Health Care Strategies, organização não governamental também financiada, entre outros, pela Robert Wood Johnson Foundation, California HealthCare Foundation e The Commonwealth Fund, divulgou relatório101 sobre as atividades do LIRR, concluindo: Pay-for-performance programs in Medicaid, with their focus on preventive, high quality and efficient care may be one way to ensure that we as a nation are getting value for our dollar spent, while ensuring the health care remains available to those who need it the most. (...) preliminary results from projects such as LIRR (...) give reason for optimism about the potential of rewarding provider performance in Medicaid. Após a divulgação dos resultados iniciais, Rewarding Results descontinuou sua atuação, e o National Health Care Purchasing Institute desapareceu. Bridges to Excellence (BTE) permanece em atividade, com o programa Prometheus, projeto-piloto de pagamento por desempenho no valor de 6 milhões de dólares, iniciado no final de 2007 e também financiado pela Robert Wood Johnson Foundation, Commonwealth Fund e outros102. Embora os resultados do programa não tenham sido ainda divulgados, BTE sumariza sua experiência com o P4P nas afirmações a seguir: • Serviços de maior qualidade custam menos; • Médicos responderão a incentivos para oferecer maior qualidade se forem significativos e proporcionais aos esforços necessários para obtê-los; • Para a mudança das práticas, são essenciais bons sistemas de cuidados e foco no gerenciamento de pacientes. Ainda em 2005, um artigo publicado no Journal of the American Medical Association - JAMA, comentou experiências iniciais com o pagamento por desempenho, concluindo: 101 Disponível em: <http://www.chcs.org/usr_doc/MedicaidP4PBrief.pdf>. 102 Disponível em: <http://www.bridgestoexcellence.org/node/60/#/1/1>. 311 Em novo relatório divulgado em julho de 2006, Preventing Medication Errors, o IOM recomenda a adoção de incentivos, de forma a alinhar a lucratividade de hospitais, clínicas, farmácias, companhias de seguros aos objetivos de segurança para os pacientes. Outro relatório, Rewarding Provider Performance: aligning incentives in medicine, divulgado pelo IOM em setembro de 2006, recomenda a adoção de programas de pagamento por desempenho para alinhar incentivos visando a melhoria do desempenho, prática que encontra obstáculos nos atuais sistemas de informações clínicas em uso pelos prestadores de serviços de saúde, quase sempre incapazes de coletar dados que possam ser empregados na avaliação da qualidade (IOM, 2007ab). Em agosto de 2006, o Annals of Internal Medicine trouxe o artigo Does pay-for-performance improve the quality of health care? Não obstante o entusiasmo sobre o potencial de alinhar incentivos financeiros com serviços de saúde de alta qualidade, a eficácia de tais programas carecia de avaliação sistemática, restando esclarecer várias questões relativas ao seu desenho ideal, eficácia e implementação. Por exemplo, quais condições clínicas ou serviços de saúde devem/podem ser incentivados? Doenças crônicas, cuidados agudos ou medidas preventivas? Qual a eficácia (e custo-eficácia103) dos incentivos financeiros para estimular qualidade? Que magnitude, frequência e duração devem ter os incentivos financeiros para qualidade? Quem deve receber os incentivos: o paciente, o prestador dos serviços de saúde, o hospital? O que recompensar pela qualidade: processos, resultados ou ambos? Quais incentivos não financeiros devem ser agregados? (PETERSEN et al, 2006). Serviços de saúde não funcionam segundo regras de livre mercado, lembram os autores, embora seja intuitiva a ideia que pagando mais por serviços de qualidade os serviços de saúde melhorarão. Na verdade, a relação médico-paciente comporta-se como uma relação principal-agente, na qual o 103 Análise de custo-eficácia (Cost-effectiveness): identifica a maneira economicamente mais eficaz de cumprir um objetivo (um determinado nível de resultados esperados), relacionando a eficácia de um programa — capacidade de produzir resultados — ao seu custo. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 Paying clinicians to reach a common, fixed performance target may produce little gain in quality for the money spent and will largely reward those with higher performance at the baseline (ROSENTHAL et al, 2005). PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 312 paciente (principal ou constituinte), desconhece ou não pode avaliar diretamente o nível de conhecimento ou esforço empregado pela outra parte, o médico (agente), ao executar o serviço contratado. O paciente, desconhecendo sua condição de saúde, suas necessidades ou os resultados esperados dos serviços de saúde, dispõe-se a ter o médico como agente para prover informações e serviços. Dada a assimetria de informação, a demanda dos pacientes por serviços de saúde pode não responder ao aumento da qualidade técnica, mas, mesmo assim, os esforços médicos em oferecer mais qualidade podem ser incentivados financeiramente, independentemente da percepção dos pacientes, pois os médicos poderão ser motivados a maximizar sua função utilidade104. No Reino Unido, o National Health System - NHS introduziu em abril de 2004 o Quality and Outcomes Framework - QOF, novo contrato visando mudar o comportamento dos clínicos gerais mediante recompensas financeiras por atingir metas predeterminadas para 146 indicadores de desempenho (atualmente são 128). Os resultados do primeiro ano de implantação superaram as expectativas, com 91% dos médicos aderindo às diretrizes clínicas, representando um acréscimo de 700 milhões de dólares ao orçamento do NHS (GALVIN, 2006). Recompensas substanciais e facilidade de cumprimento explicam o resultado, recolocando a questão: quão generosa deve ser a recompensa financeira (o primeiro P), e quais indicadores de desempenho (o segundo P), devem ser utilizados como base para o cálculo de elegibilidade para o incentivo? A definição de qualidade deveria ser multifacetada e derivar de diretrizes baseadas em evidências, refletindo as visões de médicos, especialistas em saúde pública e, claro, pacientes (ASHWORTH; JONES, 2008). O aumento das despesas do NHS não passou despercebido; em Is doctor’s self interest undermining the NHS?, artigo publicado no British Medical Journal em fevereiro de 2007, Alan Maynard, da Universidade de York lembra, citando Milton Friedman e Adam Smith: na teoria, a “mão invisível” do auto-interesse e a busca da melhoria individual em um mercado livre, minimamente regulamentado, deveria maximizar o crescimento econômico e assegu104 Outros fatores não financeiros podem ser incluídos na função utilidade: posição social, satisfação profissional, custo do esforço para produzir o serviço, espírito altruístico, incerteza quanto à eficácia clínica do tratamento, satisfação em realizar um trabalho bem feito (motivação intrínseca). Nos limites do texto, não se discute a possibilidade de que motivadores financeiros (extrínsecos) possam afetar a motivação intrínseca. 313 auto-interesse dos médicos (a maximização de sua função utilidade) manifesta-se em dois níveis: aumentar o rendimento pessoal e proteger a autonomia profissional, isto é, o direito de fazer o que achar melhor para seu paciente. O primeiro tipo de auto-interesse rendeu ganhos extras médios acima de 100 mil libras anuais para clínicos gerais, com poucos benefícios percebíveis para os pacientes e contribuintes, comenta o autor. Deixando de lado incentivos não financeiros, o NHS pode ter minado valores do serviço público e criado um sistema cujos custos de transação, em termos de fiscalização, podem ser elevados (MAYNARD, 2007). O desejo de fazer o melhor para seus pacientes é a segunda área de auto-interesse do médico. De um lado, racionar implica deixar de realizar ou indicar procedimentos mesmo quando os pacientes deles se beneficiariam; de outro, médicos não deveriam apoiar demandas de pacientes por cuidados de custo-eficácia marginal se isso significar privar outros pacientes de cuidados dos quais poderiam beneficiar-se mais. A preocupação do médico por seu paciente e seu auto-interesse podem levar a práticas ineficientes, ignorando os custos de oportunidade da decisão. Decidir-se por um tratamento marginalmente custo-eficaz para um paciente priva outro de um tratamento custoeficaz. Seriam éticas tais ineficiências na utilização de recursos escassos da sociedade, pergunta Maynard? Para corrigí-las, seria necessário alinhar a recompensa ao desempenho em termos de atividade e aferição de resultados custo-eficazes para o paciente (MAYNARD, 2007). O aumento expressivo de custos do NHS, associado a poucos benefícios mensuráveis para os pacientes, foi um resultado não esperado da introdução do QOF. Com um número crescente de resultados sociais dependendo de políticas públicas, deve agregar-se ao auto-interesse, a variável central explicativa do comportamento humano aceita pelas escolas de ciências sociais, a incompetência técnica e emocional dos formuladores de políticas (policymakers). Hoje, competência passou a ser uma variável estratégica (BRESSER-PEREIRA, 2003). Mannion e Davies (2008), examinando o pagamento por desempenho na saúde, apontam o crescimento de sua prática nos EUA, com mais de cem pro- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 rar que os recursos escassos da sociedade fossem usados eficientemente. O PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 314 gramas federais e privados somente para o Medicare105, além dos adotados por planos de saúde, e dos argumentos para a instituição de recompensas financeiras visando motivar a mudança de comportamento. Se a melhoria da qualidade dos resultados era o principal argumento no início do processo, o desejo de conter os custos crescentes do sistema de saúde emergiu e cresceu de importância. A dimensão da recompensa financeira, comentam os autores, é o quesito chave na motivação de mudança de comportamento; se for pequena demais, o efeito pode ser desprezível, se for substancial, poderá provocar grandes mudanças, potencialmente imprevisíveis. As respostas ao estímulo podem ser influenciadas se o P4P representar um ganho ou prejuízo potencial; no Reino Unido, o QOF coloca em risco até um quarto do rendimento do médico, ensejando potencialmente os seguintes efeitos indesejados: • Seleção adversa - incentivo para evitar os pacientes mais severamente afetados pela doença, para não deixar de atingir as metas; • Visão em túnel - foco nos aspectos clínicos mensurados e negligência nos que não são; • Erosão - diminuição potencial dos motivadores profissionais intrínsecos como atributos essenciais aos cuidados de saúde de alta qualidade; • Iniquidade - criação de incentivos perversos para excluir grupos específicos de pacientes; • Superpagamento - recompensar profissionais que já alcançam ou superam o limite de desempenho estabelecido; • Relatório falso ou distorcido; fraude. Médicos generalistas californianos arrolados em programa de P4P, observam McDonald e Roland (2009), queixam-se justamente da impossibilidade de excluir de seu cálculo de desempenho os pacientes não aderentes ao tratamento, como podem fazer os generalistas ingleses. Esses, por sua vez, comentam a mudança da natureza das consultas; aumentou o tempo gasto com coleta de dados e sua digitação no prontuário eletrônico do paciente, diminuiu o tempo de interação pessoal. Para Rosenthal (2008), a ênfase dos programas de P4P na contenção do crescimento dos gastos moverá recursos de ambientes mais intensivos 105 Medicare: programa federal de seguro-saúde para norte-americanos a partir de 65 anos ou que preencham outros critérios sociais. 315 to primary care physicians — podendo gerar resistências entre os médicos mesmo nos planos melhor desenhados. Analisando o impacto do pagamento por desempenho na qualidade dos serviços de saúde dos cinco maiores planos de saúde em Massachusetts no período 2001-2003, Pearson et al. (2008) concluíram que, de modo geral, os contratos de P4P não estavam associados a um maior incremento na qualidade comparados à tendência já em curso. Resultado semelhante foi observado em estudo realizado na Califórnia, não tendo sido observadas melhorias significativas de qualidade após três anos de investimentos (DAMBERG et al, 2009). Qaseem et al. (2010) preocuparam-se com eventuais conflitos éticos entre o pagamento por desempenho, destinado a produzir melhores resultados, e o profissionalismo médico, concluindo, contudo, que modelos bem desenhados de P4P podem adequar-se aos objetivos profissionais médicos. As conclusões levantadas pelo artigo de Campbell et al.(2009) analisando os resultados do programa de pagamento por desempenho na qualidade dos cuidados primários de saúde na Inglaterra, publicado no New England Journal of Medicine, parecem sumarizar os resultados de programas do gênero até agora adotados: Against a background of increases in the quality of care before the pay-for-performance scheme was introduced, the scheme accelerated improvements in quality for two of the three chronic conditions in the short term. However, once targets were reached, the improvement in quality of care for patients with these conditions slowed, and the quality of care declined for two conditions that had not been linked to incentives. Continuity of care was reduced after the introduction of the scheme (CAMPBELL et al, 2009). Como visto na parte inicial deste artigo, programas de incentivos parecem ir bem nos primeiros anos, perdendo força e estabilizando após 3-4 anos, assim permanecendo ou tendendo a decair, necessitando de reformulação, mais e maiores incentivos para ganhar novo alento. Não obstante sua larga adoção nos EUA, no Reino Unido e outros pa- PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 para menos intensivos, ou — from doctors who carry endoscopes and scalpels PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 316 íses, o pagamento por desempenho na saúde baseia-se em um conjunto de premissas de validade e vigor incertos: • Incentivos financeiros motivam mudanças de comportamento; • Tais mudanças de comportamento implicarão melhorias de qualidade e desempenho desejados; • Formuladores de políticas (policymakers) são capazes de distinguir quais aspectos da prática clínica se beneficiarão de incentivos financeiros dos que serão adversamente afetados; • Os benefícios resultantes superam quaisquer efeitos indesejados não planejados (MANNION; DAVIES, 2008). Até o presente momento, concluem os autores, as evidências são insuficientes para entender o que funciona, sob quais circunstâncias e com quais consequências desejadas e indesejadas. Se o P4P pode auxiliar na formatação de sistemas de alto desempenho, existem também os riscos que os custos sejam elevados e os benefícios mínimos, o que nos leva de volta ao âmago do debate ideológico sobre a motivação para o desempenho (MANNION; DAVIES, 2008). As experiências do setor saúde nos EUA e Grã-Bretanha convergem para as recomendações dos pesquisadores sobre pagamento por desempenho. A adoção de programas de incentivos de desempenho será beneficiada se considerar as evidências e debates compilados pela comunidade científica. Além das evidências clínicas e diretrizes (guidelines) já conhecidas na área da saúde, as ciências sociais aplicadas (economia, administração), também desenvolveram amplo corpo de conhecimentos e de recomendações que não deveriam ser ignorados. 317 ASHWORTH, Mark; JONES, Roger H. Pay for performance systems in general practice: experience in the United Kingdom. Sydney, The Medical Journal of Australia 189(2): 60-61. Disponível em: <http://www.mja.com.au/public/ issues/189_02_210708/ash10534_fm.html>. Consulta em fevereiro de 2011. BERNS, Gregory. In hard times, fear can impair decision making. The New York Times, Dec. 6, 2008. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2008/12/07/ jobs/07pre.html>. Consulta em fevereiro de 2011. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Auto-interesse e incompetência. Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, 57(1): 209-222, jan.-mar. 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbe/v57n1/a08v57n1.pdf>. Consulta em fevereiro de 2011. CAMPBELL, Stephen et al. Effect of pay for performance in quality of primary care in England. Boston, New England Journal of Medicine, 361(4): 368-378, Jul. 23, 2009. DAMBERG, Cheryl et al. Taking stock of pay-for performance: a candid assessment from the from lines. Bethesda, Health Affairs 28(2): 2517-2522, Mar. 2009. DEMIN, W. EDWARDS. The new economics for industry, government & education. Cambridge. Massachusetts Institute of Technology Center for Advanced Engineering Study, 1993. GALVIN, Robert et al. Has The Leapfrog Group had an impact on the health care market? Bethesda, Health Affairs 24(1): 228-233, Jan-Feb 2005. ________ Pay-for-performance: too much of a good thing? A conversation with Martin Roland. Bethesda, Health Affairs 25(5): w412-419, Sep. 2006. Disponível em: < http://content.healthaffairs.org/content/25/5/w412.full>. Consulta em fevereiro de 2011. HARVARD BUSINESS SCHOOL. What were they thinking? Unconventional wisdom about management. Boston, Harvard Business School Publishing Corporation, 2007. HBR. Rethinking rewards. Harvard Business Review, perspectives. 71:37-45 Nov-Dec 1993. HEINEMAN JR., Ben W. The fatal flaw in pay for performance. Boston, Harvard Business Review, June 86(6): 31-34, 2008. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 318 HERZBERG, F. One more time: how do you motivate employees? Boston, Harvard Business Review, January 81(1): 87-96, 2003. INOCÊNCIO, Marcos et al. Incentivos financeiros para medicamentos genéricos: estudo de caso sobre programa de reembolso. São Paulo, Einstein 8(2 Pt 1): 154-161, abr.-jun 2010. Disponível em: <http://apps.einstein.br/ revista/arquivos/PDF/1478-Einsteinv8n2_AO1478_final.pdf>. Consulta em fevereiro de 2011. INSTITUTE OF MEDICINE. To err is human: building a safer health system. Washington, DC, National Academy Press, 2000. __________ Crossing the quality chasm: a new health system for the 21st century. Washington, DC, National Academy Press, 2001. __________ Preventing medication errors. Washington, DC, National Academy Press, 2007a. __________ Rewarding provider performance: aligning incentives in Medicare. Washington, DC, National Academy Press, 2007b. KOHN, Alfie. Punished by rewards: the trouble with gold stars, incentive plans, A’s, praise, and other bribes. Boston, Houghton Mifflin Company, 1993a. __________ Why incentive plans cannot work. Boston, Harvard Business Review, (Sept.-Oct): 54-63, 1993b. LAZEAR, Edward P. Performance pay and productivity. Pittsburgh. American Economic Review, Dec. 2000 90(5): 1346-1361, 2000. Disponível em: <http:// www.ewts.at/Bilder%20online/Papers%202003/Lazear_Performance%20Pay. pdf>. Consulta em fevereiro de 2011. MANNION, Russell; DAVIES, Huw. Payment for performance in health care. London, British Medical Journal. Feb. 2008, vol. 336: 306-308. Disponível em: <http://www.keewu.com/IMG/pdf/20_BMJ_Payment_for_performance_in_ health_care.pdf>. Consulta em fevereiro de 2011. MAYNARD, Alan. Is doctor’s self interest undermining the NHS? London, British Medical Journal, 334: 234, Feb. 2007. Disponível em: <http://www.ncbi. nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1790746/pdf/bmj-334-7587-feat-00234.pdf>. Consulta em fevereiro de 2011. MCDONALD, Ruth; ROLAND, Martin. Pay for performance in primary care in England and California: comparison of unintended consequences. Cleveland, Annals of Family Medicine 7(2): 121-127, Mar.-Apr. 2009. 319 Terapia Comportamental e Cognitiva, 2007, IX(1): 129-137. PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 PEARSON, Steven D. et al. The impact of pay-for-performance on health care quality in Massachusetts 2001-2003. Bethesda, Health Affairs 27(4): 11671176, July 2008. PETERSEN, Laura et al. Does pay-for-performance improve the quality of health care? Philadelphia, Annals of Internal Medicine, 145(4): 265-272, August 2006. PFEFFER, Jeffrey; LANGTON, Nancy. The effect of wage dispersion on satisfaction, productivity and working collaboratively: evidence from College and University Faculty. Administrative Science Quarterly, 38: 382-407, 1993. Disponível em: <http://www.questia.com/googleScholar. qst?docId=5001675165>. Consulta em fevereiro de 2011. __________ Six dangerous myths about pay. Boston, Harvard Business Review Harvard Business Review, 76(3): 108-119, May-Jun. 1998. __________; SUTTON, Robert J. Hard facts, dangerous half-truths and total nonsense: profiting from evidence-base management. Boston, Harvard Business School Publishing Corporation, 2006. QASEEM, Amir et al. Pay for performance through the lens of medical professionalism. Philadelphia, Annals of Internal Medicine, 152(6): 6366-6369, March 2010. ROSENTHAL, Meredith et al. Early experience with pay-for-performance. From concept to practice. Chicago, Journal of the American Medical Association 294(14): 1788-1793, Oct. 12, 2005. __________ Beyond pay for performance - emerging models of providerpayment reform. Boston, New England Journal of Medicine 359(12): 11972000, Sep. 18, 2008. SILVA, Matheus A. D. da. Estratégias públicas no combate à peste bubônica no Rio de Janeiro (1900-1906). XIV Encontro Regional da ANPUH-RIO, 2010. Disponível em: <http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/ anais/8/1276725973_ARQUIVO_resumodaAnpuh.pdf>. Consulta em fevereiro de 2011. SKINNER, B. F. Selection by consequences. Washington, DC. Science, New series, Jul. 31, 1981. 213(4507): 501-504. Disponível em: <http://www. psychology.uiowa.edu/Classes/31174/Documents/Selection%20by%20 Consequences.pdf>. Consulta em fevereiro de 2011. __________ Seleção por consequências, Belo Horizonte, Revista Brasileira de PARA ENTENDER A SAÚDE NO BRASIL 4 320 Disponível em: <http://www.bfskinner.org/BFSkinner/Brazil_files/Selecao_por_ consequencias.pdf>. Consulta em fevereiro de 2011. __________ Sobre o behaviorismo, (12ª ed.), São Paulo, Pensamento/Cultix, 2010. SOARES, Vivian. Empresas criam ações para reduzir o número de obesos. São Paulo, Valor Econômico, edição do dia 26/03/2011, Eu & Carreira, p. D14. TAYLOR, Frederic W. Shop management. New York, Harper, 1911. Disponível em <http://www.jessebrogan.com/TMUS/books/ShopMgmt.pdf>. Consulta em fevereiro de 2011.