1. A Bill of Rights não se aplica aos estados

Transcrição

1. A Bill of Rights não se aplica aos estados
UNIDADE 3 – DIREITOS FUNDAMENTAIS I: DIREITOS PROCESSUAIS
Sumário: 1. A Bill of Rights não se aplica aos estados: caso Barron v. Baltimore (1833) 2. A
Guerra Civil (1860-1865) e a mudança da interação entre os estados e a União: as 13ª,
14ª e 15ª emendas à Constituição. 3. A cláusula de Due Process of Law da 14ª Emenda.
4. Os direitos processuais das 4ª, 5ª e 6ª emendas. 5. Análise do caso Miranda v. Arizona
(1966). 6. Pena de morte e a 8ª Emenda: casos Furman v. Georgia (1972) e Gregg v.
Georgia (1976). 7. Pena de morte hoje.
Objetivos: Entender como a relação entre o governo federal e os estados muda após a
Guerra Civil; entender o significado da cláusula de Due Process of Law; entender os
direitos processuais: direito a um julgamento por um júri de seus pares, presunção de
inocência e de ser representado por um advogado; entender o posicionamento da
Suprema Corte quanto a pena de morte ao longo do tempo.
1. A Bill of Rights não se aplica aos estados: caso Barron v. Baltimore (1833)
Na Unidade 1 estudamos que a Bill of Rights foi uma exigência de representantes
de alguns estados para ratificarem a Constituição de 1787. Eles receavam que apenas
uma estrutura de governo federal com poderes enumerados e limitados não garantiria a
liberdade que ansiavam. Rhode Island é um exemplo de estado que só aderiu ao governo
constitucional após a adoção da Carta de Direitos, não mandando representantes para a
Convenção Constitucional da Philadelphia. Em New York a Constituição esteve prestes a
ser rejeitada, não fosse Madison prometer a aprovação de um conjunto de direitos
individuais que protegessem mais diretamente as liberdades dos cidadãos.
A Bill of Rights foi então aprovada pelo Congresso em 1789 e ratificada pelos
estados necessários para se tornar as dez primeiras emendas da Constituição. Ela
constitui um conjunto mínimo de direitos que, na maioria dos casos foram respostas aos
arbítrios da Grã-Bretanha durante o período da Revolução Americana. São direitos de
liberdade religiosa, liberdade de expressão, porte de armas, privacidade, a um devido
processo legal quando acusado de crime, de ser legalmente representado em juízo, de
ser julgado por um júri de seus pares, dentre vários outros direitos.
No fim da Unidade 1 e início da Unidade 2 estudamos a atuação do Chief Justice
Marshall, construindo a ideia de controle de constitucionalidade e prevalência da
Constituição sobre atos ordinários do Legislativo (Marbury v. Madison) e supremacia da
legislação federal (McCulloch v. Maryland). Contudo, em um de seus últimos casos na
Corte John Marshall adota uma postura diferente em relação à supremacia da
Constituição ao tratar da Bill of Rights.
Em 1833, a Suprema Corte aceitou julgar o caso Barron v. Baltimore que estava
1
em questão a aplicabilidade da 5ª Emenda à Constituição em relação aos governos
estaduais. John Barron era dono de um cais muito lucrativo no litoral de Baltimore e, com
a expansão da cidade, grandes quantidades de areia acumularam-se no litoral e
impediram Barron de atingirem águas profundas, provocando grandes prejuízos nos seus
negócios. Barron então processou a prefeitura da cidade de Baltimore para recuperar
suas perdas.
Na parte final, a 5ª Emenda à Constituição prevê que “(nenhuma pessoa) será
privada da vida, liberdade, ou propriedade, sem o devido processo legal, nem terá sua
propriedade privada confiscada para uso público, sem justa compensação”. Em resposta
à questão de se essa provisão era aplicável aos estados, Marshall, acompanhado pela
unanimidade dos demais juízes da Suprema Corte, entendeu que não, ela não se
aplicava. O Tribunal entendeu que as restrições previstas na 5ª Emenda eram aplicáveis
apenas ao governo federal.
A argumentação do Chief Justice foi de que a intenção dos Pais Fundadores foi de
criar uma limitação ao governo central e não aos dos estados individuais. Ele disse:
A Constituição foi criada e estabelecida pelas pessoas dos Estados Unidos para
elas mesmas, para seu próprio governo, e não para o governo dos estados
individuais. Cada estado estabeleceu uma constituição para si mesmo, e naquela
constituição promoveram limitações e restrições aos poderes dos governos
particulares como mandou seus julgamentos.
Marshall lembrou que estava presente nos discursos no momento de adoção da
Constituição. Ele sabia o que os Pais Fundadores intentavam com a Bill of Rights. E a
intenção não era a de limitar os poderes dos diversos estados. Portanto, as legislaturas
estaduais e administrações locais não estavam vinculadas a seguir as limitações impostas
pelas emendas à Constituição. Pergunta-se, Barron v. Baltimore ainda é um precedente
válido como lei no ordenamento jurídico norte-americano?
De fato, hoje direitos individuais vinculam também os governos estaduais. Isso, nós
tivemos a oportunidade de estudar, acontece desde a Era Lochner. Mais ainda a partir
das décadas 1950 e 1960 com o surgimento da ideia de direitos fundamentais e os
movimentos de direitos civil, como ainda vamos estudar na próxima unidade. Portanto, é
sem dúvidas que a Bill of Rights aplica-se sim aos governos estaduais hoje. Mas,
surpreendentemente, Barron v. Baltimore ainda é um precedente válido no Direito norteamericano.
Nem todas as emendas da Carta de Direitos aplicam-se aos estados. Após a
passagem da 14ª Emenda à Constituição, no período de reconstrução dos estados
confederados durante a Guerra Civil, a Bill of Rights passou também a ser aplicável aos
2
diversos estados. No entanto, os juízes da Suprema Corte consideraram que essa
interpretação da Emenda significaria mudar tão drasticamente a natureza do governo com
o qual estavam acostumados que não a adotaram nas suas decisões. A opção adotada
pela Corte foi de uma assimilação seletiva e gradual dos direitos individuais que também
eram aplicáveis aos estados. Tecnicamente, um direito previsto nas emendas restringe os
estados quando for incorporado pela cláusula de Devido Processo Legal da 14ª Emenda.
Vamos estudar a seguir como a Guerra Civil de 1860 a 1865 muda a relação do
governo federal com os diversos estados, culminando na adoção das 13ª, 14ª e 15ª
Emendas – chamadas emendas revolucionárias -, para depois entendermos o que se
compreende por Due Process of Law.
2. A Guerra Civil (1860-1865) e a mudança da interação entre os estados e a União:
as 13ª, 14ª e 15ª emendas à Constituição.
A escravidão foi, desde a formação dos Estados Unidos como uma nação
independente, uma questão de conflito entre as ex-colônias. Como estudamos na
Unidade 1, foi um dos pontos em debate nas convenções constitucionalistas que
necessitou de constantes compromissos para que a União dos estados pudesse surgir. A
Constituição não fala expressamente de escravos, mas há claras referências ao sistema
escravagista na cláusula de 3/5 de qualquer outra pessoa, onde os escravos eram
considerados 3/5 de uma pessoa para se contar o quociente eleitoral. Há também a
conhecida cláusula do “escravo fujão” (Fugitive Slave Clause), inserida no artigo 4, Seção
2, Cláusula 3, da Constituição. Segundo esse dispositivo, qualquer pessoa que estivesse
sendo mantida em regime de servidão em um estado que fugisse para outro estado e
fosse capturada deveria ser devolvida para aquele estado onde estivesse cumprindo o
serviço.
Os estados estavam divididos e conflitavam constantemente ao redor da questão
escravagista. Ao longo do século XIX vários atos legislativos e acordos entre os estados
foram firmados para resolver a divergência. Provavelmente o mais impactante foi o
Compromisso do Missouri (Missouri Compromise), passado em 1820, que delimitava uma
linha divisória de leste a oeste e determinava que ao norte dela os novos estados deviam
obrigatoriamente ser livres da escravidão, proibindo com isso a escravidão no território da
Louisiana.
A cada estado que era integrado à União a questão se o novo estado seria
escravagista ou abolicionista gerava um conflito, porque a escolha feita pelo novo estado
3
poderia impacta na distribuição de força política entre os dois partidos. Em 1854 o
Missouri Compromise é colocado sob grande pressão com a inserção dos estados do
Kansas e de Nebraska à União.
À beira do conflito armado naqueles novos territórios, o Congresso aprovou um
novo compromisso – Kansas-Nebraska Compromise – permitindo a esses novos estados
escolherem por voto popular se queriam ser livres ou escravagistas. Na prático, revogouse o Compromisso do Missouri. Contudo, longe de resolver a questão, aprofundou-a,
iniciando uma intensa disputa política pelo controle da região. Chegou um momento que o
estado do Kansas tinha quatro constituições, apenas uma, contudo, era reconhecida pelo
governo federal.
Os estados sulistas viam o crescente risco da escravidão ser extinta à medida que
o país crescia em número de estados abolicionistas. No fim do século XVIII tinha-se a
ideia que a escravidão estava em vias de naturalmente ser extinta mesmo. No entanto, o
desenvolvimento das lavouras de algodão nos estados do sul, que usavam principalmente
mão-de-obra escrava, e a crescente demanda das indústrias têxteis dos estados do norte
que dependiam do algodão, contribuiu para gerar uma dependência entre os estados
escravagistas e abolicionistas. De certa forma, as grandes industrias dos estados do norte
financiavam a escravidão no sul e contribuíam para sua expansão.
Dado esse cenário o conflito era inevitável. Como uma última opção de resolver a
questão através das instituições políticas do Estado, a Suprema Corte se reuniu para
decidir o caso Dred Scott v. Sandford (1856). Dred Scott era um escravo no estado do
Missouri que durante algum tempo residiu no território da Louisiana, livre da escravidão
pelo Missouri Compromisse. De volta ao Missouri ele acionou o judiciário estadual
requerendo sua liberdade, porque havia morado em um território livre e por isso tinha
adquirido o direito à liberdade. Depois de perder na corte estadual, ele ingressa em um
tribunal federal e o caso chega à Suprema Corte por via de recurso com intensa pressão
para uma solução da questão escravagista. A primeira decisão a que chega o Tribunal é
que nenhum americano de descendência africana pode nunca ser considerado um
cidadão dos Estados Unidos e, portanto, não tinha o direito de ingressar com ação no
Poder Judiciário. Essa opinião contrariava as leis de muitos estados que até previam
direito de voto a ex-escravos e também, do ponto de vista formal, a Corte deveria ter
parado de decidir aqui, se essa era a sua opinião. Se Dred Scott não era um cidadão, não
havia caso a ser decidido por ilegitimidade ativa da parte. Mas havia uma questão a ser
resolvida e a Suprema Corte não podia parar aqui. Decidiu então que o Congresso não
tinha competência para restringir a escravidão e esta deveria ser legal em todo o território
4
dos Estados Unidos, portanto o Missouri Compromisse era inconstitucional. Com isso os
juízes achavam terem obtido uma solução definitiva para a questão da escravidão.
Abraham Lincoln, 16º Presidente dos Estados Unidos, em seus discursos ainda
antes de ser eleito, criticava abertamente a decisão em Dred Scott. Dizia ele:
Decisões judiciais têm dois usos: primeiro, servem para determinar absolutamente
o caso decidido; e segundo, servem para indicar ao público como outros casos
similares devem ser decididos quando estes surgirem. No segundo caso, eles são
chamados de “precedentes” e “vinculativos”. Nós acreditamos tanto quando o Juiz
Douglas (talvez até mais) em obediência e respeito às decisões judiciais.
Acreditamos que suas decisões em questões constitucionais, quando assentadas,
deveriam aplicar-se não apenas ao caso concreto decidido, mas de forma geral e
abstrata em todo o país, sujeitas a revisão apenas por emendas à Constituição,
como previsto nesta própria. Mais do que isso seria uma revolução. Mas nós
acreditamos que Dred Scott foi uma decisão errada. Nós sabemos que o Tribunal
que a decidiu constantemente tem revogado suas próprias decisões, e nós
faremos o que pudermos para vê-lo revogar essa decisão também. Nós não
oferecemos nenhuma resistência a ela. Decisões judiciais possuem maior ou
menor autoridade como precedentes dependendo das circunstâncias (LINCOLN
Apud ROE: 1907, p. 50, tradução livre do autor).
A eleição de Lincoln como presidente em 1860 representou um profundo golpe aos
estados escravagistas do sul. Ele foi eleito sem ganhar em nenhum desses estados e
evidenciou que o arranjo que eles colocaram no processo eleitoral já não mais
funcionava. Começaram, então, a abandonar a União e a formar os Estados
Confederados da América o que levou à guerra civil.
Os estados começaram a se segregarem da União antes mesmo de Lincoln tomar
posse. Em 1860 mesmo a Carolina do Sul abandona os Estados Unidos. O presidente
anterior à Lincoln, James Buchanan, acreditava não ter autoridade de impedir os estados
de se desligarem da União, fundado em ideias de independência dos entes federativos
expressas nos Artigos da Federação. Abraham Lincoln não concordava com essa
interpretação.
Para o novo presidente, “the people” (as pessoas) formaram o governo
constitucional, como está expresso no preambulo da Constituição: “We the people of
United States, in Order to form a more perfect Union”, então só “as pessoas dos Estados
Unidos” poderiam dissolvê-la. Os estados não teriam esse direito. Após cinco anos de
guerra, durante os quais o Lincoln adotou questionáveis políticas e desobedeceu algumas
decisões da Suprema Corte, os estados do sul perderam a guerra e foram submetidos à
política da reconstrução.
O governo de Lincoln representou uma mudança fundamental de paradigmas
constitucionais nos Estados Unidos. Chega-se a dizer até que representou uma segunda
revolução americana. Inaugurou uma ideia nova para o papel do presidente em defender
5
a Constituição, tal como Marbury v. Madison inaugurou o papel do Judiciário nessa tarefa.
As ideias ali desenvolvidas estão presentes até hoje na atuação dos presidentes no
combate ao terrorismo, os poderes emergenciais do Presidente durante um período de
guerra. Não deixa por isso de estar envolvida em grande discussão constitucional.
A Guerra Civil também representa uma mudança na interação entre o governo
federal e os governos dos diversos estados. Três emendas à Constituição foram
aprovadas imediatamente após o fim da guerra com o claro objetivo de mudar
precedentes da Suprema Corte, principalmente Dred Scott. A 13ª Emenda abole
taxativamente a escravidão em todo o território dos Estados Unidos. É, curiosamente, a
única norma constitucional que restringe condutas de indivíduos e não de governos
estaduais e federal. Nenhuma pessoa pode possuir um escravo. A 15ª Emenda garante
que nenhuma pessoa seja privada do seu direito de votar por causa de raça, cor ou antiga
condição de servidão. Uma tentativa do Congresso de impedir que os estados do sul
privassem antigos escravos de direitos políticos. No entanto, a mais significativa emenda
passada após a Guerra Civil foi a 14ª.
A 14ª Emenda garante que todas as pessoas nascidas nos Estados Unidos são
cidadãos dos Estados Unidos e do estado onde residem. Também aplica os privilégios e
imunidades garantidos a todos os cidadãos dos Estados Unidos pela cláusula 1 do artigo
4 aos estados membros. E, mais importante, garante o direito ao Due Process Law da 4ª
Emenda como vinculante também aos estados. Outras provisões estão presentes na
Emenda, principalmente em relação à representação no Congresso, que não são
importantes na análise aqui desenvolvida.
É importante perceber que no começo a Suprema Corte relutou em aplicar essas
mudanças nas suas decisões. O conservadorismo do Tribunal perpetuou uma política de
segregação racial por mais de 100 anos nos estados sulistas após o fim da escravidão. As
mudanças criadas pelas Emendas significavam uma mudança tão drástica no
entendimento da relação entre os governos estaduais e o governo federal que os juízes
não estavam preparados para adotá-la. Mesmo hoje, a opção seletiva da Corte em
incorporar os direitos fundamentais gradativamente dentro da cláusula de Devido
Processo Legal é criticada. Hugo Black, juiz da Suprema Corte entre 1937 e 1971,
defendia a completa incorporação de toda a Bill of Rights para se aplicar aos estados. Há
quem acredite que os direitos fundamentais não são devidos à cláusula de Due Process
of Law, mas sim como uma garantia de privilégios e imunidades de todos os cidadãos dos
Estados Unidos. Esta última opção abriria uma “caixa de pandora” com efeitos imprevistos
na doutrina da Suprema Corte.
6
O que vamos analisar no restante desta Unidade, bem como no restante do curso,
é justamente a evolução do entendimento do princípio de Devido Processo Legal
substantivo. Começamos pela sua aplicação ao processo criminal.
3. A cláusula de Due Process of Law da 14ª Emenda
O Devido Processo Legal tem duas acepções: uma de direito procedimental, mais
referida aos requisitos de um procedimento para determinada decisão tais como
contraditório, isonomia e ampla defesa, e outra de direito substantivo referente a um
conjunto de direitos que restringe o poder de polícia do Estado, exigindo a observância de
certa razoabilidade dos atos estatais.
Uma importante ideia necessária para entender esse princípio é a de Estado de
Direito, ou rule of law. Como oposição ao regime monárquico, no qual a autoridade estava
nos homens (reis), o sistema republicano-democrático coloca a autoridade, supremacia
na Lei. O princípio de igualdade perante a lei, fundador de todo regime democrático,
impede o entendimento de existência de qualquer hierarquia, não podendo concluir que
autoridade seja atributo de uma pessoa. Em uma monarquia a autoridade emana da
essência do monarca, mas numa democracia a autoridade está na lei.
Contudo, a lei não vincula a obediência simplesmente porque é lei. Apesar da
opinião do filósofo francês do século XVI, Michel de Montaigne, para quem “as leis se
mantêm em crédito, não porque elas são justas, mas porque são leis. É o fundamento
místico de sua autoridade, elas não têm outro (...). Quem a elas obedece porque são
justas não lhes obedece justamente pelo que deve”, o Devido Processo Legal serve como
critério de justiça a lei para que ela seja vinculativa de obediência. O Estado não tem o
direito de enforce, que pode ser fragilmente traduzido por aplicar, a lei por qualquer meio,
mas é restringido pelo princípio de Due Process of Law.
Diferentemente dos sistemas jurídicos de tradição romano-germânica, que têm a
tendência de desenvolver fórmulas fixas de resolução dos casos concretos determinadas
na lei, os sistemas de common law dependem no precedente, que é um método aberto de
reconstrução constante do sentido da norma a partir das decisões judiciais. Alexandre
Araújo Costa afirma nesse sentido que “ao negar o papel criativo da jurisprudência – ou
não encará-lo de forma conseqüente -, nosso modelo jurídico não desenvolveu métodos
adequados para orientar a criação jurisprudencial, mesmo no ponto em que é inevitável a
criatividade jurisprudencial: a interpretação”.
O papel criativo das decisões judiciais é crucial para o princípio de Devido
Processo Legal substantivo. Nas palavras do Justice Felix Frankfurter na sua decisão no
7
caso Joint Anti-Fascist Refugee Committee v. McGrath (1951):
O devido processo, ao contrário de alguma regras, não é uma concepção técnica
com um conteúdo fixado e desligado do tempo, espaço e circunstâncias.
Expressando, em última análise, uma imposição de que a lei respeite aquele
sentimento de justiça ou de justo tratamento que tem sido desenvolvida durante
séculos de história constitucional e civilização anglo-americana, o devido processo
não pode ser aprisionado nos limites traiçoeiros de qualquer fórmula.
Representando uma profunda atitude de justiça entre homem e homem, e mais
particularmente entre indivíduo e governo, o devido processo é composto por
história, razão, o conjunto das decisões passadas e uma grande confi ança na
força da fé democrática que professamos. O devido processo não é um
instrumento mecânico. Não é um critério. É um processo.
O desenvolvimento para uma ideia de Devido Processo Legal substantivo foi
gradativa. O modelo do sistema common law coloca maior precedência no precedente do
Tribunal do que na legislação e como a Suprema Corte em quase 100 anos de existência
do princípio na 5ª Emenda nunca o aplicou em um sentido substantivo, restringindo o
legislativo estadual a Corte não quis inovar nos casos Slaughterhouse (1872), primeira
vez que ela se deparou com essa questão.
Em Slaughterhouse a Suprema Corte majoritariamente recusou qualquer
interpretação substantiva da cláusula de Devido Processo Legal. O caso tratava-se de
uma lei do estado da Louisiana que havia criado um monopólio nos negócios de
abatedouros do estado. Os competidores alegaram que a lei criava “servidão
involuntária”, restringia “privilégios e imunidades dos cidadãos”, negou “proteção
igualitária” e os privou de “liberdade e propriedade sem o devido processo legal”. A
importância desse caso reside justamente na oportunidade que o Tribunal teve em
exprimir uma opinião sobre os aspectos mais importantes da 14ª Emenda.
A opinião majoritária da Corte foi por uma interpretação restrita de todas essas
previsões da Emenda. O Tribunal, a partir do voto de Justice Miller, entendeu pela não
aplicação da cláusula de equal protection, no entendimento de que esta protegia
discriminação contra negros e não era aplicada a todos. E a cláusula de Devido Processo
Legal da 14ª Emenda impunha requerimentos iguais aos estados assim como a 5ª
Emenda impunha ao governo federal. Este era um entendimento muito restrito das
provisões da Emenda, com o receio de que outra interpretação desestabilizaria a
harmonia entre os governos estaduais e federal.
A porta para uma mudança nesse entendimento já estava presente nos votos
dissidentes em Slaughterhouse. O principal voto dissidente foi o de Justice Field,
acompanhado por Chase, Swayne e Bradley, que se concentrava principalmente na
questão dos privilégios e imunidades dos cidadãos. Em seu voto Field alegou:
A questão apresentada é da maior importância. Não é nada menos que a questão
8
sobre se as recentes emendas protegem os cidadãos dos Estados Unidos contra a
privação dos seus direitos comuns pelos estados. Na minha opinião, a 14a
Emenda estabelece essa proteção. A Emenda não tenta conferir novos privilégios
ou imunidades aos cidadãos, nem a enumerar e definir as que já existem. Ela
assume que há privilégios e imunidades que pertencem ao direito dos cidadãos
como tais, e ordena que elas não sejam restringidas pelos estados. Se essa
proteção não se refere a privilégios ou imunidades deste caráter, mas, como
sustenta a maioria, refere-se apenas aos privilégios e imunidades que, antes da
adoção da emenda, foram expressamente reconhecidos pela Constituição ou nela
estão implícitos como pertencentes a todos os cidadãos dos Estados Unidos,
então essa seria uma disposição vã e inútil. Nenhum estado poderia interferir em
privilégios e imunidades expressos ou implícitos, e não era necessária qualquer
emenda constitucional para proibir tal interferência. Mas se a emenda refere-se
aos direitos naturais e inalienáveis que pertencem aos cidadãos, a proibição seria
de profunda importância.
Justice Bradley por outro lado, em um voto dissidente individual, abordou a questão
de forma mais ampla, debatendo a aplicação dos privilégios e imunidades, da cláusula de
equal protection e do Devido Processo Legal, sem chegar à conclusão de qual seria o
melhor.
Em meu juízo, era a intenção do povo desse país ao adotar a 14a Emenda, prover
uma segurança nacional contra violações, pelos estados, dos direitos
fundamentais dos cidadãos. A norma que estabelece um monopólio, priva uma
grande classe de cidadãos do privilégio de perseguir uma profissão lícita. Segundo
meu ponto de vista, uma lei que proíbe uma grande classe de cidadãos de adotar
uma profissão lícita, ou de continuar a exercer uma profissão anteriormente
escolhida, priva-os de liberdade, bem como de propriedade, sem o devido
processo legal. O seu direito de escolha é uma parte da sua liberdade e a sua
ocupação [profissional] é parte da sua propriedade. Uma tal lei também priva
esses cidadãos da igual proteção do Direito, contrariamente à última cláusula da
seção. É fútil argumentar que a Emenda apenas pretendeu beneficiar as pessoas
da raça africana. Eles podem ter sido a causa primária da Emenda, mas a sua
linguagem é geral, abrangendo todos os cidadãos, e creio que de forma
intencional.
A primeira vez que a Suprema Corte usou a cláusula de Due Process of Law da 14ª
Emenda para restringir o legislativo estadual, como estudamos, foi em Lochner v. New
York. Este precedente já não é mais válido como lei, como já analisamos, mas nossa
análise não se deu em relação à cláusula da 14ª Emenda. A importância de Lochner
nessa questão foi o desenvolvimento da ideia de scrutiny, um requisito de adequação
entre meios e fins da atividade do legislador. Como estudamos, os meios utilizados pelo
legislador ao produzir uma legislação devem ser necessários e próprios para a finalidade
que pretende atingir, sob pena da lei ser inválida (inconstitucional). Essa análise de
necessidade e propriedade do ato legislativo é chamada de scrutiny.
A primeira vez que o termo scrutiny propriamente apareceu em uma opinião da
Suprema Corte foi em uma nota de rodapé no caso United States v. Carolene Products
Co. (1938). Esse método de avaliação dos atos legislativos foi mais desenvolvido quando
o Tribunal se afasta da Era Lochner e começa a proferir decisões sobre liberdades civis.
9
O mais alto critério é chamado strict scrutiny, perante o qual o governo tem que ter forte
interesse na adoção da legislação perante o direito do indivíduo. É aplicada em relação
aos direitos mais fundamentais. Depois existem o intermediate scrutiny e o rational basis
review, sendo este o mais baixo critério de análise da necessidade de adoção de
determinada lei. Esses conceitos serão fundamentais na análise dos casos da próxima
unidade que tratam de direitos fundamentais. Primeiro estudaremos os direitos
procedimentais do Devido Processo Legal.
4. Os direitos processuais das 4ª, 5ª e 6ª emendas
Nesta seção vamos analisar os direitos dos indivíduos submetidos a um processo
criminal. Esses direitos estão previstos na 4ª, 5ª e 6ª Emendas da Constituição.
A quarta emenda prevê que “O direito das pessoas de terem privacidade na sua
vida pessoal, em suas casas, papéis e derivados, contra buscas e apreensões
irrazoáveis, não pode ser violado, e nenhum mandado será emitido, exceto com fundada
causa, apoiada por juramento ou afirmação, e precisamente descrevendo o local a ser
realizada a busca, e as pessoas ou coisas a serem apreendidas”. Este é o direito geral de
privacidade do indivíduo, o qual o governo não pode violar a não ser através de um
mandado emitido pela autoridade competente ou com probable cause.
A quinta emenda define o direito a um julgamento justo por um júri de seus pares e
o direito ao devido processo legal. “Ninguém será julgado por um crime capital, ou
qualquer outro crime, a não ser após de uma denúncia de um Grande Júri, exceto em
casos de crimes militares, ou em relação às Milícias, quando em serviço em tempo de
guerra ou insurreição popular; nenhuma pessoa será julgada duas vezes pelo mesmo
crime; nem será compelida em qualquer caso criminal a produzir prova contra si mesma,
nem ser privada da vida, liberdade, ou propriedade, sem o devido processo legal; e
nenhuma
propriedade
privada
será
confiscada
para
uso
público,
sem
justa
compensação”.
E a sexta emenda estabelece o direito a um julgamento público e rápido e a ter
representação legal em juízo. “Em todos os processos criminais, o acusado terá o direito
a um julgamento rápido e público, por um júri imparcial do estado e distrito onde o crime
tiver ocorrido, no distrito previamente estabelecido por lei, e de ser informado da natureza
e causa da acusação; de confrontar as testemunhas contra ele; de arrolar e intimar
testemunhas a seu favor; e de ter assistência de um advogado para sua defesa”.
Estes são os direitos gerais de qualquer pessoa ao ser acusada de um crime e
10
mesmo ao ser alvo de uma investigação. De maneira geral podemos resumir em um
direito de permanecer calado – de não produzir provas contra si mesmo -, de ter um
advogado para lhe assistir, de ser julgado por um júri imparcial. Esses direitos são
gradativamente assegurados pela Suprema Corte aos procedimentos criminais estaduais.
Esse processo ocorre principalmente durante a presidência do Chief Justice Earl Warren,
nomeado pelo presidente Dwight Eisenhower. Esse período foi de uma grande atuação da
Corte na defesa dos direitos civis dos indivíduos.
O que estudaremos na próxima seção é o principal caso em que a Suprema Corte
aplica esses direitos. Tudo começa em Mapp v. Ohio (1960) que a Corte aplica a quarta
emenda aos processos estaduais. O Tribunal decidiu que evidências obtidas ilegalmente
eram inadmissíveis também em cortes estaduais. O caso abriu as portas para a aplicação
das garantias constitucionais aos tribunais de todos os níveis do governo.
Em Katz v. United States (1967) a Corte ao aplicar os direitos de privacidade da
quarta emenda, decidiu que o indivíduo detinha tal direito em todos os lugares em que
tivesse expectativa de privacidade. “A quarta emenda protege pessoas e não lugares”, foi
uma famosa expressão presente na decisão da Corte. Tratava-se de um caso em que se
discutia se o indivíduo teria expectativa de privacidade ao usar um telefone público. É no
voto concorrente de Justice John Marshall Harlan que encontramos a melhor definição de
uma “razoável expectativa de privacidade”. Diz ele:
Como a Corte declarou, “a Quarta Emenda protege pessoas e não lugares”. A
questão, no entanto, é qual proteção ela garante a essas pessoas. Geralmente,
como aqui, a resposta a essa pergunta requer referência a “lugar”. Meu
entendimento da decisão que emerge de decisões anteriores é que há um duplo
requerimento, primeiro que a pessoa tem que exibir uma real expectativa
(subjetiva) de privacidade e, segundo, que a expectativa seja uma que a
sociedade esteja preparada a reconhecer como “razoável”. Assim, a casa de uma
pessoa é, para a maioria dos propósitos, um local onde ela espera ter privacidade,
mas objetos, atividades, ou declarações que ela expõe a “plena vista” de terceiros
não estão “protegidas”, porque nenhuma intenção de deixa-las privadas foi
demonstrada. Por outro lado, conversas em espaços aberto não estariam
protegidas contra a escuta de terceiros, então a expectativa de privacidade nessas
circunstâncias seria irrazoável.
Quanto ao direito a um advogado a posição da Suprema Corte muda
completamente da década de 1940 para a década de 1960. Em Betts v. Brady (1942), em
uma decisão infeliz a Corte opinou que indigentes – pessoas que não pudessem pagar
por um advogado – poderiam ter esse direito privado delas. Esse precedente é revertido
em Gideon v. Wainwright (1963) quando o Tribunal decide que todos têm direito a um
advogado e o estado deve nomear um para aqueles que não têm condições de pagar.
Neste caso, destaca-se a opinião de Justice William O. Douglas que diverge da maioria
11
dos juízes quanto aos direitos da 14ª Emenda serem uma versão reduzida dos direitos
garantidos pela Bill of Rights. Já em Escobedo v. Illinois (1964) a Corte decidiu que uma
pessoa detida pela polícia também tem o direito de ter um advogado presente.
Gradativamente durante vários casos da década de 1960 observamos a Suprema
Corte expandindo as proteções garantidas aos acusados em um processo criminal. Todas
essas garantias atingiram um ápice de consolidação no famoso caso Miranda v. Arizona
julgado em 1966. Esse caso definiu os chamados “Direitos de Miranda” (Miranda rights),
um conjunto de direitos de um acusado que, se violados, nulificam todo o procedimento
criminal.
5. Análise do caso Miranda v. Arizona (1966)
Miranda v. Arizona é um caso histórico da Suprema Corte dos Estados Unidos.
Neste julgamento a Corte julgou três casos juntos, além do caso Miranda, abordando
vários aspectos dos direitos que um indivíduo detido por uma autoridade policial possui.
Em Vignera v. New York o indivíduo foi detido pela polícia, fez admissões orais, assinou
um termo de confissão, tudo sem ser notificado de seus direitos. De forma semelhante,
mas com a autoridade policial sendo um agente do FBI, em Westover v. United States o
sujeito foi detido e fez declarações sem ter seus direitos ditos para ele. E em California v.
Stewart o interrogado ficou sob custódia policial por cinco dias sem ser-lhe explicado
nenhum de seus direitos.
A questão mais central em Miranda v. Arizona era determina quais direitos um
indivíduo detido para interrogatório por uma autoridade policial tem. Durante as
argumentações orais, Justice Potter Stewart perguntava o advogado exatamente quanto a
quais seriam esses direitos, se seriam todos aqueles previstos na Constituição para um
julgamento justo e, se não todos eles, onde definir o limite. A resposta do Dr. John Flynn,
que defendia Miranda no caso, foi no sentido de que “no mínimo, uma pessoa na posição
de Ernest Miranda precisa do benefício de um advogado, e a não ser que ele seja
concedido esse direito ele simplesmente, em essência, não tem nenhum direito da quinta
ou sexta emenda, e não há devido processo legal sendo concedido para alguém na
posição de Ernest Miranda”.
A decisão da Corte foi no sentido de que
quando um indivíduo é levado em custódia ou de outra forma privado do seu
direito de ir e vir pelas autoridades em qualquer forma significante e é submetida a
interrogatório, o direito contra autoincriminação está em risco. Garantias
procedimentais devem ser colocadas em prática para proteger esse direito, e a
não ser que outros meios efetivos sejam adotados para notificar a pessoa do seu
12
direito de permanecer em silêncio e para assegurar que o exercício do direito será
escrupulosamente honrado, as seguintes medidas são requeridas. Ele deve ser
avisado anteriormente a qualquer interrogatório que ele tem o direito de
permanecer em silêncio, que qualquer coisa que ele diga pode ser usado contra
ele no julgamento, que ele tem o direito de ter um advogado presente, e que, se
ele não puder pagar um advogado um lhe será nomeado antes de qualquer
interrogatório se ele desejar. Oportunamente o exercício desses direitos devem lhe
ser garantidos ao longo de todo interrogatório. Após tais avisos serem
apresentados, e na devida oportunidade serem-lhe assegurados, o indivíduo pode
conscientemente abrir mão desses direitos e concordar em responder perguntas
ou fazer uma declaração. Mas a não ser e até que tais avisos e eventual renúncia
sejam demonstradas pela promotoria no julgamento, nenhuma evidência obtida
como resultado do interrogatório pode ser usada contra ele.
Resumidamente, uma pessoa detida pela autoridade policial deve ter seus direitos
explicados a ela e garantidos durante todo o período da detenção. O espírito da decisão
era o de proteger o indivíduo contra os abusos das autoridades governamentais. A Corte
afastou a ideia de uma supremacia do interesse público em “descobrir a verdade em uma
prática de um crime”, já que a Constituição previu o direito do indivíduo de se manter em
silêncio como garantia fundamental, portanto acima do interesse público. Em um regime
de leis (rule of law), o governo está submetido às leis e este o sentido da opinião da Corte
nesse trecho:
Decência, segurança e liberdade exigem que as autoridades governamentais
estejam sujeitas às mesmas regras de conduta que regem os cidadãos. Em um
governo de leis, a existência do governo será prejudicada se este falhar em
observar as leis meticulosamente. Nosso Governo é poderoso, o professor
onipresente. Por bem ou por mal, ele ensina a todos pelo seu exemplo. Crime é
contagioso. Se o Governo se tornar um violador das leis, ele estimula o
desrespeito às leis; ele convida a todos os homens a se tornarem governantes de
si mesmos; ele convida à anarquia. Afirmar isso, na administração da lei criminal,
os fins justificam os meios... traria terríveis consequências. Esta Corte deveria
fortemente se afirmar contrária essa doutrina.
No Brasil, o princípio de Devido Processo Legal no Direito Penal tem uma
aplicação problemática, porque convive com legislações penais produzidas em momentos
de governos de exceção e uma Constituição com amplas garantias de direitos
fundamentais. Doutrinas como a de um processo penal inquisitivo e até mesmo de um
procedimento investigatório que desconsidera algumas garantias de direitos fundamentais
permanecem aplicadas pelos tribunais pátrios, fundadas em previsões do Código de
Processo Penal que claramente não podem ser consideradas acolhidas pelo
ordenamento jurídico após 1988.
O Devido Processo Legal está previsto na Constituição da República de 1988 no
artigo 5º, LIV, como requisito indispensável para a privação do indivíduo de seus direitos
de liberdade e propriedade. O Supremo Tribunal Federal já expressou o que entende por
esse princípio no julgamento do HC 94.016/SP:
13
O exame da cláusula referente do due process of law permite nela identificar
alguns elementos essenciais à sua configuração como expressiva garantia de
ordem constitucional, destacando-se, dentre eles, por sua inquestionável
importância, as seguintes prerrogativas: (a) direito ao processo (garantia de
acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor
da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas;
(d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa
técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis “ex post
facto”; (f) direito à igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado com
fundamento em provas revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da
gratuidade; (i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao
silêncio (privilégio contra a auto-incriminação); (l) direito à prova; e (m) direito de
presença e de “participação ativa” nos atos de interrogatório judicial dos demais
litisconsortes penais passivos, quando existentes.
A complexidade da questão aumenta quando analisamos a fase de investigação
policial. A doutrina tradicional insiste em afirmar que a natureza da fase investigativa é
inquisitória e, portanto, não existe contraditório e ampla defesa nessa. Como afirma
Thiago Minagé1
Não há que se falar nas garantias da ampla defesa e do contraditório (para parte
da pseudo doutrina reacionária (sic!) e punitiva). Pois, o inquérito é um
procedimento inquisitório de natureza investigatória. Portanto, essas garantias
constitucionais não incidem na fase do inquérito, posição esta que vem perdendo
espaço sob a alegação de que o simples fato de uma pessoa ser alvo de uma
investigação criminal passa-se a existir violações de inúmeros direitos individuais
protegidos constitucionalmente, como por exemplo, liberdade, integridade moral
dentre outros, mas, ainda são poucas as vozes que se levantam para reivindicar
tais direitos nesta fase, esperamos que em um futuro próximo essas vozes,
ganhem mais adeptos e recebam mais forças para concretização desse
pensamento, por isso acredito em vocês, alunos da graduação.
O mesmo autor em outra obra afirma que
Tudo conforme descrito no Art. 5º, LV da Constituição da República Federativa do
Brasil onde define que „... aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e
aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os
meios e recursos a ela inerentes...‟ sendo certo que, por conta deste fundamento,
insustentável a alegação de que não cabe contraditório no Inquérito Policial sob
argumento de ser exceção, eis que, toda exceção surge como „fundamento‟ de
2
toda e qualquer violação de direitos .
Evidentemente que todo indivíduo, livre, suspeito, indiciado, acusado ou mesmo
condenado preserva seus direitos e garantias fundamentais. Assim como nos Estados
Unidos, o ordenamento jurídico brasileiro prevê o direito à não incriminação, de se manter
calado, e mais expressamente de ter seus direitos informados a ele. O artigo 5º, LXIII da
Constituição da República estabelece que “o preso será informado de seus direitos, entre
os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e do
1
MINAGÉ,
Thiago
M.
Características
do
Inquérito
Policial.
Disponível
em:
http://emporiododireito.com.br/caracteristicas-do-inquerito-policial-por-thiago-minage/ ISSN 2446-7405. Acessado
em: 17/07/2015.
2
MINAGÉ, Thiago. Prisões e medidas cautelares à luz da Constituição. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2013, p. 20.
14
advogado”. O Superior Tribunal de Justiça já assentou que, semelhante ao precedente da
Suprema Corte norte-americana, qualquer declaração de uma pessoa sob custódia da
polícia sem que lhe seja informada seus direitos de silêncio e de ser acompanhada por
um advogado é inválida como evidência para condenação. Conforme o julgamento do
Habeas Corpus nº 244.977/SC:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS.
INVESTIGAÇAO POLICIAL. EXERCÍCIO DO DIREITO DE PERMANECER
CALADO MANIFESTADO EXPRESSAMENTE PELO INDICIADO (ART. 5º, LXIII,
DA CF). GRAVAÇAO DE CONVERSA INFORMAL REALIZADA PELOS POLICIAIS
QUE EFETUARAM A PRISÃO EM FLAGRANTE. ELEMENTO DE INFORMAÇAO
CONSIDERADO
ILÍCITO.
VULNERAÇAO
DE
DIREITO
CONSTITUCIONALMENTE
ASSEGURADO.
INAPLICABILIDADE
DO
ENTENDIMENTO NO SENTIDO DA LICITUDE DA PROVA COLETADA QUANDO
UM DOS INTERLOCUTORES TEM CIÊNCIA DA GRAVAÇAO DO DIÁLOGO.
SITUAÇAO DIVERSA. DIREITO À NAO AUTOINCRIMINAÇAO QUE DEVE
PREVALECER SOBRE O DEVER-PODER DO ESTADO DE REALIZAR A
INVESTIGAÇAO CRIMINAL.
1. Segundo o art. 5º, LXIII, da Constituição Federal, o preso será informado de
seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a
assistência da família e de advogado.
2. Apesar de ter sido formalmente consignado no auto de prisão em flagrante que
o indiciado exerceu o direito de permanecer calado, existe, nos autos da ação
penal, gravação realizada entre ele e os policiais que efetuaram sua prisão,
momento em que não foi informado da existência desse direito, assegurado na
Constituição Federal.
3. As instâncias ordinárias insistiram na manutenção do elemento de prova nos
autos, utilizando, de forma equivocada, precedente do Supremo Tribunal Federal
no sentido de que não é considerada ilícita a gravação do diálogo quando um dos
interlocutores tem ciência da gravação.
4. Tal entendimento não se coaduna com a situação dos autos, uma vez que além
de a gravação estar sendo utilizada para sustentar uma acusação no caso do
precedente citado estava em ponderação o sigilo das comunicações, enquanto no
caso em questão está em discussão o direito constitucional de o acusado
permanecer calado, não se autoincriminar ou não produzir prova contra si mesmo.
5. Admitir tal elemento de prova nos autos redundaria em permitir um falso
exercício de um direito constitucionalmente assegurado, situação inconcebível em
um Estado Democrático de Direito.
6. Ordem concedida para determinar o desentranhamento da mídia que contém a
gravação do diálogo ocorrido entre o paciente e os policiais que efetuaram sua
prisão da ação penal instaurada contra ele, pelo crime de tráfico de drogas, na
Vara Criminal da comarca de Laguna/SC.
O direito ao silêncio deriva do princípio da presunção de inocência, não é ao
acusado (suspeito ou indiciado) que cabe provar a sua culpabilidade. É a Promotoria que
deve demonstrar, além de qualquer dúvida razoável, que os fatos ocorreram como
narrados na peça acusatória, não sendo o silêncio do acusado nenhum indício de sua
culpabilidade. Também compete aos agentes estatais, com respeito ao princípio da
legalidade, o respeito à lei durante o procedimento investigativo e acusatório, não
podendo “trapacear” e tirar vantagens indevidas do desconhecimento do indivíduo de
seus direitos. A autoridade tem o dever de avisá-lo claramente de seus direitos e garantir
15
que eles sejam observados a todo momento, como respeito ao princípio do Devido
Processo Legal. Deve-se ter claramente que não existe uma supremacia de interesse
público quando se trata de direitos fundamentais.
É significativo que a polícia e, de certa forma, nem mesmo o Poder Judiciário está
preparado para um processo penal fundado nesses princípios. Como afirmam Iuri Victor
Romero Machado e Murilo Henrique Pereira Jorge3:
Ressalte-se que este tipo de informação não faz parte de nenhum curso de
formação de policiais brasileiros. Muito ao contrário, há uma inversão de valores
conforme se pode anotar em recente julgamento realizado pela 2ª Secretaria do
Tribunal do Júri de Curitiba. Neste julgamento, um renomado Coronel da reserva
da Polícia Militar paranaense (testemunha de defesa do acusado) deixou claro que
os policiais militares devem realizar um “interrogatório de campo” e que devem se
utilizar de todos os meios necessários para que os detidos falem. Nas exatas
palavras do Coronel: “a gente chama de interrogatório de campo, algo
absolutamente normal na vida diária de todos os policiais (…) pode usar todas as
técnicas, desde que legais, que sejam suficientes para extrair a informação (…) é
um interrogatório, é uma técnica normal e se usa todos os subterfúgios, vamos
dizer assim, para se obter a informação, desde que legais”.
6. Pena de morte e a 8ª Emenda: casos Furman v. Georgia (1972) e Gregg v. Georgia
(1976)
Os Estados Unidos, diferente do Brasil, ainda adota sistematicamente a pena de
morte para crimes capitais. É reservado aos estados-membros decidirem se adotam a
penalidade ou não e a Suprema Corte historicamente adotou uma postura de não
interferir nessa escolha. Essa tendência muda drasticamente em 1972 quando a Corte
suspende a pena de morte em todo o território, no argumento de que violava a Oitava
Emenda.
O caso Furman v. Georgia forçou as legislaturas estaduais a repensarem toda a
aplicação da pena, para se adequarem a esse precedente. Furman estava assaltando
uma residência quando foi surpreendido pelos moradores. Na sua tentativa de fugir ele
tropeçou e caiu. Acidentalmente disparando a arma que carregava, matou um dos
residentes da casa e foi condenado à pena de morte pelo homicídio. Outros dois casos
que envolviam a pena de morte aplicada ao crime de estupro e homicídio foram julgados
conjuntamente com esse (Jackson v. Georgia e Branch v. Texas). O Tribunal, em uma
decisão breve, opinou que a pena de morte imposta em casos como esses constitui uma
pena cruel e não usual (unusual and cruel punishment).
Apesar de breve o holding, as opiniões concorrentes e dissidentes dos juízes
3
MACHADO, Iuri Victor Romero; JORGE, Murilo Henrique Pereira. O Aviso de Miranda e a Invalidade dos
Interrogatórios Informais. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/o-aviso-de-miranda-e-a-invalidade-dosinterrogatorios-informais/ ISSN 2446-7405. Acessado em: 17/07/2015.
16
expressaram diversas concepções deles sobre a pena de morte. Justices Brennan e
Marshall foram os únicos que opinaram pela inconstitucionalidade da pena de morte em
todos os casos. No voto de Brennan identificamos sua visão de que uma pena cruel e não
usual é aquela que viola a dignidade humana e de que o estado não respeitaria esse
princípio quando aplicasse arbitrariamente uma pena extremamente cruel a um grupo de
pessoas e não a outros.
Estava presente na opinião dos juízes a preocupação com o caráter seletivo da
aplicação da pena de morte. Todos os condenados que estavam tendo suas apelações
julgadas pela Corte eram negros e isso não passou despercebido. Justice William O.
Douglas expressou o seguinte entendimento:
Nós não podemos dizer pelos fatos evidenciados nesses registros que esses
acusados foram condenados a morte porque eles são negros. Mesmo assim,
nosso trabalho não é restrito a um esforço para desvendar os motivos que
influenciaram essas condenações. Na verdade, nós lidamos com um sistema legal
e de justiça que deixa à incontrolável discricionariedade de juízes e júris a
determinação se o acusado cometendo esses crimes devem ser condenados a
morte ou serem aprisionados. Nessas leis, não há nenhum padrão que governe a
seleção da pena. Pessoas vivem ou morrem, dependendo da vontade de uma
pessoa ou de doze.
Em outro trecho de seu voto fica mais evidente ainda sua opinião sobre a
desigualdade da aplicação da pena.
Uma lei que afirmasse que qualquer pessoa que ganhasse mais de 50 mil dólares
seria isento da pena de morte seria claramente inconstitucional, assim como seria
uma lei que nos seus termos afirmasse que negros, aqueles que nunca foram
além da quinta série na escola, aqueles que ganham menos de 3 mil dólares por
ano, ou aqueles que são impopulares e instáveis deveriam ser as únicas pessoas
a serem executadas. Uma lei que, de maneira geral, alcança esses resultados na
prática não tem maior santidade do que uma lei que em seus termos provocasse o
mesmo efeito. Assim sendo, essas leis são inconstitucionais na sua operação.
Elas estão impregnadas de discriminação, e discriminação não é um ingrediente
compatível com a ideia de equal protection of the laws que está implícita na
proibição de penas “cruéis e não usuais”.
É evidente na visão dos juízes de que o poder punitivo do Estado é seletivo.
Historicamente sempre foi e isso não é exclusividade dos Estados Unidos. Apesar de
oficialmente não existir pena de morte no Brasil, o sistema penal no nosso país funciona
de forma excludente, discriminatória e muito violenta. Como salienta Salah H. Khaled Jr.4:
É necessário reconhecer que o sistema foi imposto como violência fundadora e
que na sua configuração real para além do âmbito narrativo, sempre foi seletivo e
persecutório, sempre foi conducente a celebrar na realidade concreta os excessos
que discursivamente propunha-se a conter. O discurso jurídico-penal irrompe no
âmbito das práticas punitivas como abertura fadada a não triunfar sobre a
4
KHALED JR., Salah H. O homem do dique e a irracionalidade do pensamento jurídico-penal sedimentado:
homenagem ao professor Eugenio Raúl Zaffaroni. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/o-homem-dodique-e-a-irracionalidade-do-pensamento-juridico-penal-sedimentado-homenagem-ao-professor-eugenio-raulzaffaroni-por-salah-h-khaled-jr/ ISSN 2446-7405. Acessado em: 17/07/2015.
17
barbárie, à qual ela acaba inclusive, se incorporando e até mesmo legitimando sob
uma retórica que reconhece o jus puniendi estatal.
E, no mesmo sentido, Raul Zaffaroni5 afirma que “[...] a seletividade é estrutural e, por
conseguinte, não há sistema penal no mundo cuja regra geral não seja a criminalização
secundária em razão da vulnerabilidade do candidato”.
O que estamos percebendo é a necessidade de constante controle de exercício de
poder estatal para não cairmos no arbítrio. Furman v. Georgia marcou um período no qual
as legislaturas estaduais foram obrigadas a rever sua legislação relativa à pena de morte,
para evitarem a seletividade da aplicação da medida. Nos anos seguintes a Suprema
Corte foi julgando os novos estatutos dos estados: Gregg v. Georgia (1976), Proffitt v.
Florida (1976), Jurek v. Texas (1976), Woodson v. North Carolina (1976) e Roberts v.
Louisiana (1976), todos consideraram os novos estatutos dos estados constitucionais e
reintroduziram a pena de morte neles.
Em Gregg v. Georgia a Corte revisou o novo estatuto da pena de morte aprovado
pela legislatura do estado da Georgia. O estado adotou um sistema de duas fases para a
imposição da pena de morte, requerendo que após a condenação o juiz ou júri escute
agravantes da punição em uma audiência para poder então decidir pela pena de morte.
No caso de pena capital, a apelação para a Suprema Corte do estado é obrigatória e
automática e esta deve considerar em sua revisão se a decisão foi tomada sob a
influência de paixões, preconceitos, ou outro fator arbitrário; se a evidência de agravante
suporta a decisão; e também se a pena de morte é proporcional às penas aplicadas em
casos similares.
Dessa forma, o Tribunal considerou que o novo estatuto do estado era compatível
com as preocupações expressas na decisão de Furman e também que a Oitava Emenda
não invalidava a pena de morte de forma geral, apenas quando aplicada de forma
arbitrária e sem mecanismos eficientes de revisão da sentença.
Outros três casos demonstram a emergente preocupação da Suprema Corte
quanto a dignidade humana na imposição da pena de morte. Em Ford v. Wainwright
(1986) a Corte decidiu que a penalidade não pode ser aplicada aos loucos; em Atkins v.
Virginia (2002) o Tribunal opinou que a pena capital não é aplicável aos doentes mentais,
com capacidade de discernimento do certo e errado reduzida, mas deixou aberto para os
estados definirem o que doença mental significa; e em Roper v. Simmons (2005) decidiuse que a pena não era aplicável aos menores de idade.
5
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal Brasileiro –
I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.51.
18
O principal argumento em favor de manter a pena de morte é uma deferência da
Corte às vontades populares, expressas nas decisões de seus representantes eleitos.
Além disso, temos que o uso da pena é visto como eficaz para coibir a prática de crimes
hediondos. Em Atkins a argumentações foi de que a pena aplicada aos doentes mentais
não atendia nenhum desses objetivos. Enquanto Atkins v. Virginia estava sendo decidido,
Christopher Simmons lutava para ter seu caso julgado pela Suprema Corte do estado do
Missouri. Após a decisão em Atkins, ela aceitou ouvir a apelação e decidiu que a pena
imposta a Simmons, que tinha 17 anos à época do crime, violava a Oitava Emenda. A
Suprema Corte do Missouri fundamentou sua decisão afirmando que a opinião geral havia
mudado em relação à pena capital aplicada aos menores de idade.
A opinião da Suprema Corte dos Estados Unidos ao julgar o caso Roper v.
Simmons acatou o argumento de que haveria um consenso entre as legislaturas
estaduais de que a pena de morte aplicada a menores de idade era desproporcional e os
próprios precedentes da Corte indicavam esse entendimento. Além disso, a maioria dos
juízes disse existir grande pressão internacional contrária a aplicação da pena capital em
crianças. A opinião do Tribunal foi de que:
As diferenças entre criminosos jovens e adultos devem ser precisas e bem
entendidas sob o risco de se permitir que um jovem receba a pena de morte
apesar de sua culpa ser insuficiente. Uma comparação inaceitável existe que a
brutalidade e a natureza hedionda de um determinado crime mitigaria argumentos
baseados em juventude, mesmo quando a imaturidade, vulnerabilidade, e
verdadeira inocência do criminoso jovem deveria requerer uma sentença menos
severa do que a morte. Em alguns casos a juventude de um criminoso pode ser
considerada em seu desfavor. (...) É difícil mesmo para psicólogos diferenciar
entre criminosos jovens cujos crimes são reflexo de sua imaturidade, e os raros
criminosos juvenis cujos crimes refletem uma característica irreparável. (...) Se
psiquiatras treinados com o uso de testes clínicos e observações relutam, apesar
de suas especialidades em diagnósticos, em diagnosticar menores de 18 anos
como tendo distúrbios de personalidade, nós concluímos que os estados deveriam
evitar de colocar nas mãos dos jurados a decisão de impor uma condenação grave
(...). Quando um criminoso juvenil comete um crime hediondo, o estado pode
restringir seus direitos de liberdade mais básicos, mas o estado não pode extinguir
sua vida e sua potencialidade de adquirir maturidade para compreender sua
própria humanidade. Traçar o limite aos 18 anos está sujeito, evidentemente, às
objeções sempre levantadas contra decisões categóricas. As características que
diferenciam jovens de adultos não desaparecem quando uma pessoa completa 18
anos. Pela mesma razão, alguns menores de 18 anos têm já maturidade a um
nível que adultos nunca terão. Pelas razões aqui discutidas, no entanto, um limite
deve ser traçado. (...) A idade de 18 anos é o ponto onde a sociedade traça a linha
para diversos propósitos entre infância e idade adulta. É, nós concluímos, a idade
na qual a linha para a pena de morte deve ser traçada.
7. Pena de morte hoje
Em recentes anos a pena de morte vem sofrendo nova pressão, agora em relação
ao coquetel de drogas usadas na injeção letal. A maioria dos estados adotam um coquetel
19
de três drogas para aplicar a pena de morte. A primeira droga é um sedativo, utilizada
para tirar a consciência do condenado durante o procedimento, a segunda paralisa o
sistema respiratório e a terceira droga mata o condenado parando seu coração. O
coquetel de drogas utilizado pelos estados era principalmente produzido por indústrias na
Europa, mas recentemente elas pararam de exportar os medicamentos para serem
utilizados nas execuções numa postura contrária à pena de morte. Os estados
começaram a buscar alternativas para continuarem aplicando a pena capital.
O estado de Oklahoma foi um que passou a utilizar midazolam, um sedativo
normalmente utilizado para tratar ansiedade, como a primeira droga do coquetel da
injeção letal. Muitos condenados têm argumentado que a droga não produz um estado de
inconsciência perfeito e, portanto, seria uma violação à proteção garantida pela Oitava
Emenda, porque se o condenado não está completamente inconsciente quando da
aplicação da segunda e da terceira drogas, ele experiência um alto grau de sofrimento
durante a morte6.
A Suprema Corte julgou uma apelação relacionada ao uso da droga neste ano no
caso Glossip v. Gross (2015). Em abril de 2014, Clayton Lockett foi executado usando o
midazolam como primeira droga e o procedimento foi um desastre. Lockett acordou
durante a execução e levou quarenta minutos para morrer. Muitos outros condenados,
então, acionaram o judiciário contrários ao uso da droga, sem sucesso em ter uma
decisão favorável.
Em 15 de janeiro a Suprema Corte se recusou a emitir um writ of certiorari para
julgar o caso de um detento chamado Charles Warner, que acabou sendo executado.
Justice Sotomayor objetou fortemente contra essa decisão da Corte, como injusta com o
condenado. Já Richard E. Glossip conseguiu ter seu caso julgado pelo Tribunal e a
decisão, da maioria conservadora dos juízes, foi de que o uso da droga midazolam não
constitui uma violação à cláusula de penas “cruéis e não usuais” da Oitava Emenda.
A opinião da Corte, emitida pelo Justice Samuel Alito foi de um grande
conservadorismo. Ele afirmou que a Oitava Emenda não determina que a pena seja
completamente livre de dor, já que o risco de dor está inerente na própria aplicação da
pena de morte e que os advogados dos condenados não foram capazes de apresentar
nenhum outro método mais viável para aplicar a pena de morte. Como expresso no voto
de Alito:
E porque algum risco de dor é inerente em qualquer método de execução, nós
6
Amy Howe, Justices again spurn lethal injection challenge: In Plain English, SCOTUSblog (Jun. 29, 2015, 2:53 PM),
http://www.scotusblog.com/2015/06/justices-again-spurn-lethal-injection-challenge-in-plain-english/
20
afirmamos que a Constituição não requer um procedimento indolor. Além do mais,
enquanto a maioria das pessoas desejam morrer sem sofrer, muitos não têm essa
sorte. Afirmar que a Oitava Emenda prevê a eliminação essencialmente de
qualquer risco de dor significaria na prática eliminar totalmente a possibilidade da
pena de morte.
O principal voto dissidente foi proferido Justice Breyer. Ele baseou seu voto em
diversos estudos sobre a aplicação da pena de morte, que tem maior chance de ser
aplicada naqueles crimes com maior reprovabilidade social, mesmo quando há fortes
indicações de que o acusado é inocente ou quando ocorre algum vício no processo. Ele
também retomou o argumento de decisões anteriores apresentando estudos que
mostravam a seletividade da aplicação da pena a grupos com maior possibilidade de
serem discriminados socialmente. Argumentou que o fundamento de aplicação da pena
de morte como meio de prevenir outros crimes hediondos enfraquece ante o fato de que
passasse muito tempo entre a condenação e a aplicação da pena, devido às maiores
garantias processuais dos condenados à morte. Por fim, afirmou que há uma crescente
repulsa na população à aplicação da pena, o que a tornaria “não usual” nos propósitos da
Oitava Emenda.
Justice Sotomayor também emitiu um voto dissidente no qual argumentou que não
há nenhum requisito na Oitava Emenda de que os condenados apresentem uma
alternativa viável à pena de morte, já que métodos de execuções não se tornam
constitucionais simplesmente pela falta de opções melhores.
Este caso envolvendo a pena de morte dividiu a Corte exatamente entre os cinco
juízes nomeados por presidentes republicanos e os quatro nomeados por democratas.
Evidencia a clara divisão de perspectiva ideológica entre as duas agremiações políticas e
os cidadãos que elas representam. Em uma Corte com outra configuração, ou em um
momento político diferente, pode significar a completa declaração de inconstitucionalidade
da pena de morte.
21

Documentos relacionados