História da Sexualidade II

Transcrição

História da Sexualidade II
MICHEL FOUCAULT
HISTÓRIA
DA SE X U A L ID A D E
2
O USO DOS
PRAZEfcES
Tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque
Revisão Técnica de
José Augusto Guilhoh Albuquerque
8.a Edição
B IB LIO TEC A D E F IL O S O F IA E H IS T Ó R IA DAS C IÊ N C IA S
Vol. n» 15
( 'otirilcnadorcs:
J. A, G uilhon de A lbuquerque
e R oberlo M achado
© Éditions Gallimard, 1984
Capa: Femanda Gomes
Revisão: Henrique Tamapolsky
Produção gráfica: Orlando Fernandes
I
1
(CPI-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)
F86h
Foucault, Michel, 1926-1984.
História da sexualidade 2; o uso dos prazeres/Michel Foucault;
tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque; revisão
técnica de José Augusto Guilhon Albuquerque
Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
(Biblioteca de Filosofia e História das Ciências; v. n. 15).
Tradução de: Histoire de la sexualité 2: l’usage de plaisir
Bibliografia
1. Sexualidade — História 2. Sexualidade —
Teoria. I. Título II. O Uso dos prazeres III. Série
CDD-301.4179
84-0668
301.41701
Direitos adquiridos pela
EDIÇÕES GRAAL Ltda.
Rua Hermenegildo deBarros, 31-A
Glória, Rio de Janeiro, RJ
CEP: 20.241
Tel.: (021)252-8582
que se reserva a propriedade desta tradução.
1998
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
SUMÁRIO
IN T R O D U Ç Ã O
7
1. M odificações
9
2. As form as de p roblem atização
3. M oral e prática de si
26
17
I - A P R O B L E M A T IZ A Ç Ã O M O R A L D OS P R A Z E R E S
1. Aphrodisia
38
2. Chrésis
51
3. Enk rateia
60
4. L iberdade e verdade
73
II 1.
2.
3.
4.
D IE T É T IC A
87
D o regim e em geral
91
A dieta dos prazeres
100
Riscos e perigos
107
O ato, o dispêndio, a morte
III 1.
2.
3.
E C O N Ô M IC A
127
A sabedoria do casam ento
A casa de Isôm aco
137
Três políticas da tem perança •
IV 1.
2.
3.
E R Ó T IC A
165
U m a relação prob lem ática
167
A h o n ra de um rapaz
181
O objeto do prazer
190
114
129
149
V - O V E R D A D E IR O A M O R
199
CONCLUSÃO
215
ÍN D IC E D OS T E X T O S C IT A D O S
223
INTRODUÇÃO
1
MODIFICAÇÕES
Esta série de pesquisas surge m ais tard e do que eu previra e de
um a form a inteiram ente diferente.
Eis p o r quê. Elas n ão deveriam ser um a história dos co m p o rta­
m entos nem um a história das representações. M as um a história da
“ sexualidade” : as aspas têm sua im portância. M eu propósito não era
o de reconstruir um a história- das co n d u tas e das práticas sexuais de
acordo com suas form as sucessivas, sua evolução e difusão. Tam bém
não era m inha intenção analisar as idéias (científicas, religiosas ou fi­
losóficas) através das quais foram representados esses com p o rtam en ­
tos. G o staria, inicialm ente, de me deter na noção tão cotidiana e tã o
recente de “ sexualidade” : to m a r distanciam ento em relação a ela, con­
to rn ar sua evidência fam iliar, an alisar o contexto teórico e prático ao
qual ela é associada. O p ró p rio term o “ sexualidade” surgiu ta rd ia ­
m ente, no início do Século X IX . É um fato que não deve ser subesti­
m ado nem su p erin terp retad o . Ele assinala algo diferente de um remanejam ento de vocabulário; m as não m arca, evidentem ente, a brusca
em ergência daquilo a que se refere. O uso da palavra foi estabelecido
em relação a outros fenôm enos: o desenvolvim ento de cam pos de co­
nhecim entos diversos (que cob riram ta n to os m ecanism os biológicos
da repro d u ção com o as v ariantes individuais ou sociais do co m p o rta­
m ento); a in stau ração de um co n ju n to de regras e de norm as, em parte
tradicionais e em p arte novas, e que se apóiam em instituições religio­
sas, judiciárias, pedagógicas e m édicas; com o tam bém as m udanças no
m odo pelo qual os indivíduos são levados a d ar sentido e valor à sua
co n d u ta, seus deveres, prazeres, sentim entos, sensações e sonhos. Em
9
sum a, tratava-se de ver de que m aneira, nas sociedades ocidentais m o­
dernas, constitui-se u m a “ experiência” tal, que os indivíduos são le­
vados a reconhecer-se com o sujeitos de um a “ sexualidade” que abre
para cam pos de conhecim entos bastan te diversos, e que se articula
num sistem a de regras e coerções. O projeto era, p o rta n to , o de um a
história da sexualidade en q u a n to experiência - se entendem os por ex­
periência a correlação, num a cultura, entre cam pos de saber, tipos de
norm atividade e form as de subjetividade.
F alar assim d a sexualidade im plicaria afastar-se de um esquem a
de pensam ento que era en tão corrente: fazer da sexualidade um inva­
riante e supor que, se ela assume, nas suas manifestações, formas histo­
ricam ente singulares, é p o rq u e sofre o efeito dos m ecanism os diversos
de repressão a que ela se en co n tra exposta em to d a sociedade; ò que
equivale a colocar fora do cam po histórico o desejo e o sujeito do dese­
jo, e a fazer com que a form a geral da interdição dê contas do que
pode haver de histórico na sexualidade. M as a recusa dessa hipótese,
por si só, não era suficiente. F alar da “ sexualidade” com o um a expe­
riência historicam ente singular suporia, tam bém , que se pudesse dis­
por de instrum entos suscetíveis de analisar, em seu p ró p rio caráter e
em suas correlações, os três eixos que a constituem : a form ação dos sa­
beres que a ela se referem , os sistem as de poder que regulam sua p rá ti­
ca e as form as pelas quais os indivíduos podem e devem se reconhecer
com o sujeitos dessa sexualidade. O ra, sobre os dois prim eiros pontos,
o trabalh o que em preendi anterio rm en te - seja a p ro p ó sito da medici­
na e da p siquiatria, seja a p ro p ó sito do pod er punitivo e das práticas
disciplinares - deu-m e os instrum entos dos quais necessitava; a análise
das práticas discursivas perm itia seguir a form ação dos saberes, esca­
pando ao dilem a en tre ciência e ideologia; a análise das relações de po­
der e de suas tecnologias perm itia focalizá-las com o estratégias aber­
tas, escapando à altern ativ a entre um poder concebido com o dom ina­
ção ou denunciado com o sim ulacro.
Em com pensação, o estudo dos m odos pelos quais os indivíduos
são levados a se reconhecerem com o sujeitos sexuais me colocava difi­
culdades bem m aiores. A noção de desejo ou a de sujeito desejante
constituía, então, senão um a teoria, pelo m enos um tem a teórico ge­
ralm ente aceito. A p ró p ria aceitação parecia estranha: com efeito, era
esse tem a que se encon trav a, segundo certas variantes, no centro da
teoria clássica da sexualidade, com o tam bém nas concepções que bus­
cavam dela ap artar-se; era ele tam bém que parecia ter sido herdado,
no Século X IX e no Século XX, de um a longa trad ição cristã. A expe­
riência da sexualidade pode m uito bem se distinguir, com o figura his­
tórica singular, da experiência cristã da “ carne” : m as elas parecem
am bas d om inadas pelo princípio do “ hom em de desejo” . Em todo ca­
so, parecia difícil an alisar a form ação e o desenvolvim ento da expe­
10
riência da sexualidade a p a rtir d o Século X V III, sem fazer, a propósito
do desejo e do sujeito desejante, um trab alh o histórico e crítico. Sem
em preender, p o rta n to , um a “ genealogia” . C om isso, não me refiro a
fazer u m a história das concepções sucessivas do desejo, da concupis­
cência ou da libido, m as analisar as p ráticas pelas quais os indivíduos
foram levados a prestar atenção a eles próprios, a se decifrar, a se reco­
nhecer e se confessar com o sujeitos de desejo, estabelecendo de si para
consigo um a certa relação que lhes p erm ite descobrir, no desejo, a ver­
dad e de seu ser, seja ele n atu ral ou decaído. Em sum a, a idéia era a de
pesquisar, nèssa genealogia, de que m aneira os indivíduos foram leva­
dos a exercer, sobre eles m esm os e sobre os outros, um a herm enêutica
do desejo à qual o co m p o rtam en to sexual desses indivíduos sem dúvi­
da deu ocasião, sem no e n ta n to constituir seu dom ínio exclusivo. Em
resum o, p ara com preender de que m aneira o indivíduo m oderno p o ­
dia fazer a experiência dele m esm o e n q u an to sujeito de um a “ sexuali­
dad e” , seria indispensável distinguir previam ente a m aneira pela qual,
du ran te séculos, o hom em ocidental fora levado a se reconhecer com o
sujeito de desejo.
Um deslocam ento teórico me pareceu necessário para analisar o
que freqüentem ente era designado com o progresso dos conhecim en­
tos: ele me levara a interrogar-m e sobre as form as de práticas discursi­
vas que articulavam o saber. E foi preciso tam bém um deslocam ento
teórico p ara analisar o que freqüentem ente se descreve com o m anifes­
tações do “ p o d er” : ele me levara a interrogar-m e sobretudo sobre as
relações m últiplas, as estratégias abertas e as técnicas racionais que a r­
ticulam o exercício dos poderes. Parecia agora que seria preciso em ­
preender um terceiro deslocam ento a fim de analisar o que é designado
com o “ o sujeito” ; convinha pesquisar quais são as form as e as m odali­
dades da relação consigo através das quais o indivíduo se constitui e se
reconhece com o sujeito. A pós o estudo dos jog os de verdade conside­
rados entre si - a p a rtir do exem plo de um certo núm ero de ciências
em píricas nos Séculos XVII e X V III - e posteriorm ente ao estudo dos
jog o s de verdade em referência às relações de poder, a p artir do exem ­
plo das práticas punitivas, o u tro tra b a lh o parecia se im por: estudar os
jogos de verdade na relação de si p a ra si e a constituição de si m esm o
com o sujeito, to m an d o com o espaço de referência e cam po de investi­
gação aquilo que p oderia cham ar-se “ história do hom em de desejo”
E n tretan to , ficou claro que em preender essa genealogia me afas­
tava m uito de meu projeto prim itivo. D evia escolher: ou m anter o pla­
no estabelecido, fazendo-o aco m p an h ar de um rápido exam e histórico
desse tem a do desejo, ou reorganizar to d o o estudo em to rn o da lenta
form ação, d u ran te a A ntigüidade, de um a herm enêutica de si. E foi
por este últim o p artid o que optei ao pensar que. afinal de contas,
aquilo a que me atenho - a que me ative desde tan to s anos - é a tarefa
II
de evidenciar alguns elementos que possam servir para um a história da
verdade. Uma história que não seria aquela do que poderia haver de
verdadeiro nos conhecimentos; mas uma análise dos “jogos de verda­
de” , dos jogos entre o verdadeiro e o falso, através dos quais o ser se
constitui historicamente com o experiência, isto é, com o p odendo e de­
vendo ser pensado. Através de quais jogos de verdade o homem se dá
seu ser próprio a pensar q uand o se percebe como louco, quando se
olha como doente, q u a n d o reflete sobre si com o ser vivo, ser falante
e ser trabalhador, q u a n d o ele se julga e se pune e n qu a nto criminoso?
Através de quais jogos de verdade o ser h um ano se reconheceu como
homem de desejo? Pareceu-me que, colocando assim essa questão e
tentando elaborá-la a propósito de um período tão afastado dos meus
horizontes, o utrora familiares, abandonava, sem dúvida, o plano pre­
tendido mas estaria mais próxim o da interrogação que desde há muito
tempo me esforço em colocar. Ainda que essa abordagem exigisse de
mim alguns anos suplementares de trabalho. C ertam ente que havia
riscos nesse longo desvio; mas tinha um motivo e pareceu-me ter en­
contrado nessa pesquisa um certo proveito teórico.
Os riscos? Eram os de retardar e desorganizar o program a de
publicação previsto. Agradeço àqueles que seguiram os trajetos e os
desvios de meu trabalho - penso nos ouvintes do Collège de France - e
àqueles que-tiveram a paciência de esperar o term o desse trabalho: em
primeiro lugar, Pierre Nora. Q uanto àqueles para quem esforçar-se,
começar e recomeçar, experimentar, enganar-se, retom ar tu do de cima
a baixo c ainda encontrar meios de hesitar a cada passo, àqueles para
quçni. em suma, trab alh ar mantendo-se em reserva e inquietação equi­
vale a demissão, pois bem, é evidente que não somos do mesmo planeta.
O perigo era tam bém o de a b o rd a r docum entos po r mim mal co­
nhecidos.' Corria o risco de submetê-los, sem me dar conta, a formas
de análise ou a modos de questionam ento que, vindos de outros luga­
res, não lhes convinham; os livros de P. Brown, os de P. H a d o t e, em
várias ocasiões, seus pareceres e as conversações que mantivemos, me
foram de grande valia. T am bém , corria o risco, inversamente, de per­
der, no esforço para me familiarizar com os textos antigos, o fio das
I. N ão sou helenista nem latinista. Mas me pareceu que, com bastante cuidado, pa­
ciência, m odéstia e atenção, era possível adquirir fam iliaridade suficiente com os textos
da Antigiiidade grega e rom ana: quero dizer essa fam iliaridade que perm ita, de acordo
com uma prática sem dúvida cortstitutiva da filosofia ocidental, interrogar, ao mesmo
tempo, a diferença que nos mantém à distância de um pensam ento em que reconhece­
mos a origem do nosso, e a proxim idade que permanece a despeito desse distanciam ento
que nós aprofundam os sem cessar.
12
questões que queria colocar; H. D reyfus e P. R abinow em Berkeley,
perm itiram -m e, por m eio de suas reflexões, suas questões, e graças à
sua exigência, um trab alh o de reform ulação teórica e m etodológica. F.
W ahl deu-m e conselhos preciosos.
P. Veyne ajudou-m e co nstantem ente no decorrer desses anos. Ele
sabe o que é pesquisar o verdadeiro, com o h isto riador de verdade; m as
tam bém conhece o labirinto em que se en tra quando se quer fazer a
história dos jogos entre o verdadeiro e o falso; ele é daqueles, raros
hoje em dia, que aceitam enfren tar o perigo, p ara todo e qualquer pen­
sam ento, que a questão da história da verdade traz consigo. Seria difí­
cil circunscrever sua influência sobre estas páginas.
Q u an to ao m otivo que me im pulsionou foi m uito simples. Para
alguns, espero, esse m otivo pod erá ser suficiente por ele m esmo. É a
curiosidade - em to d o caso, a única espécie de curiosidade que vale a
pena ser p raticada com um pouco de obstinação: não aquula que p ro ­
cura assim ilar o que convém conhecer, m as a que perm ite separar-se
de si m esm o. De que valeria a obstin ação do saber se ele assegurasse
apenas a aquisição dos conhecim entos e não, de certa m aneira, e tan to
q u an to possível, o descam inho daquele que conhece? Existem m om en­
tos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentem ente
do que se pensa, e perceber diferentem ente do que se vê, é indispensá­
vel p ara continuar a olhar ou a refletir. Talvez me digam que esses jo ­
gos consigo m esmo têm que perm anecer nos bastidores; e que no m á­
ximo eles fa/em parte desses trab alh o s de p reparação que desapare­
cem p o r si sós a p a rtir do m om ento em que produzem seus efeitos.
M as o que é filosofar hoje em dia - quero dizer, a atividade filosófica senão o trab alh o crítico do pensam ento sobre o próprio pensam ento?
Se não consistir em ten tar saber de que m aneira e até^onde seria possí­
vel pensar diferentem ente em vez de legitim ar o que já se sabe? Existe
sem pre algo de irrisório no discurso filosófico q u ando ele quer, do ex­
terior, fazer a lei p ara os outros, dizer-lhes onde está a sua verdade e de
que m aneira encontrá-la, ou q u an d o pretende dem onstrar-se por posilividade ingênua; m as é seu direito explorar o que pode ser m udado,
no seu p róprio pensam ento, atrav és do exercício de um saber que lhe é
estranho. O “ ensaio" - que é necessário entender com o experiência
m odificadora de si no jo g o da verdade, e não com o apropriação simplificadora de outrem p ara fins de com unicação - é o corpo vivo da fi­
losofia, se, pelo m enos, ela for ain d a hoje o que era o u tro ra, ou seja,
um a “ ascese” , um ex ercid o de si, no pensam ento.
Os estudos que se seguem , assim com o o u tro s que anteriorm ente
em preendi, são estudos de “ h istó ria" pelos cam pos que tratam e pelas
referências que assum em ; mas n ão são trab alh o s de “ histo riad o r". O
que não quer dizer que eles resum am ou sintetizem o trabalho feito
por outros; eles são - se quiserm os encará-los do p o nto de vista de sua
13
“ prag m ática” - o p ro to co lo de um exercício que foi longo, hesitante, e
que freqüentem ente precisou se reto m ar e se corrigir. Um exercício fi­
losófico: sua articulação foi a de saber em que m edida o trab alh o de
pensar sua p ró p ria história pode liberar o pensam ento daquilo que ele
pensa silenciosam ente, e perm itir-lhe pensar diferentem ente.
T eria eu razão em correr esses riscos? N ão cabe a mim dizê-lo. Sei
apenas que, deslocando assim o tem a e os balizam entos cronológicos
de meu estudo, encontrei algum proveito teórico; foi-m e possível p ro ­
ceder a duas generalizações que me perm itiram , ao m esm o tem po, si­
tuá-lo num horizonte m ais am plo e precisar m elhor seu m étodo e seu
objeto.
Ao reto rn ar assim , da época m oderna, através do cristianism o,
até a A ntigüidade, pareceu-m e que não se p oderia evitar colocar um a
questão ao m esm o tem po m uito sim ples e geral: p o r que o co m p o rta­
m ento sexual, as atividades e os prazeres a ele relacionados, são objeto
de um a preocupação m oral? Por que esse cuidado ético que, pelo me­
nos em certos m om entos, em certas sociedades o u em certos grupos,
parece m ais im p o rtan te do que a atenção m oral que se presta a o u tros
cam pos, não o b stan te essenciais na vida individual ou coletiva,'com o
as condutas alim entares ou a realização dos deveres cívicos? Sei que
um a resposta o co rre de im ediato: é que eles são objeto de interdições
fundam entais cuja transgressão é considerada falta grave. M as isso se­
ria dar com o solução a p ró p ria questão; e, so b retudo, im plicaria des­
conhecer que o cuidado* ético a respeito da co n d u ta sexual n ão está
sem pre, em sua intensidade ou em suas form as, em relação direta com
o sistem a de interdições; ocorre freqüentem ente que a preocupação
m oral seja forte, lá o nde precisam ente não há o brigação nem proibi­
ção. Em sum a, a interdição é um a coisa, a problem atização m oral é
outra. P o rtan to , pareceu-m e que a questão que deveria servir de fio
co n d u to r era a seguinte: de que m aneira, p o r que e sob que form a a
atividade sexual foi constitu íd a com o cam po m oral? P or que esse cui­
dad o ético tão insistente, apesar de variável em suas form as e em sua
intensidade? Por que essa “ problem atização” ? E, afinal, é esta a tarefa
de um a história do pensam ento p o r oposição à história dos co m p o rta­
m entos ou das representações: definir as condições nas quais o ser hu­
m ano “ p ro b lem atiza” o que ele é, e o m undo no qual ele vive.
M as, ao colocar essa q u estão m uito geral, e ao colocá-la à cultura
grega e greco-latina, pareceu-m e que essa problem atização estava rela­
cionada a um co n ju n to de práticas que, certam ente, tiveram um a im­
i
* A palavra souci será sempre traduzida “ cuidado” , para diferenciar de soiit, sempre
traduzida "cuidados", e de préoccupation, sempre traduzida “ preocupação” . (N . do T.)
14
portân cia considerável em nossas sociedades: é o que se poderia ch a­
m ar "a rte s da existência” . Deve-se entender, com isso, práticas refleti­
das e v o luntárias através das quais os hom ens n ão som ente se fixam
regras de co nduta, com o tam bém pro cu ram se transform ar, m odifi­
car-se em seu ser singular e fazer de sua vida um a o b ra que seja p o rta ­
dora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo.
Essas “ artes de existência” , essas “ técnicas de si” , perderam , sem dúvi­
da, um a certa parte de sua im portância e de sua autonom ia quando,
com o cristianism o, foram integradas no exercício de um poder pasto­
ral e, m ais tarde, em práticas de tip o educativo, médico ou psicológico.
De qualquer m odo, dever-se-ia, sem dúvida, fazer e refazer a longa
história dessas estéticas d a existência e dessas tecnologias de si. Já há
algum tem po que B urckhardt sublinhou sua im portância na época do
Renascim ento; mas sua sobrevivência, sua história e desenvolvim ento
não param a i.’ Em todo caso, pareceu-m e que o estudo da problem ati­
zação do com p o rtam en to sexual na A ntigüidade podia ser considera­
do com o um capítulo - um dos prim eiros capítulos - dessa história ge­
ral das “ técnicas de si” .
Tal é a ironia desses esforços feitos a fim de m udar-se a m aneira
de ver, p ara m odificar o horizonte daquilo que se conhece e para ten­
ta r distanciar-se um pouco. Levam eles, efetivam ente, a pensar dife­
rentem ente? Talvez tenham , no m áxim o, p erm itido pensar diferente­
m ente o que já se pensava e perceber o que se fez segundo um ângulo
diferente e sob uma luz m ais nítida. A creditava-se to m ar distância e no
en tan to fica-se na vertical de si m esm o. A viagem rejuvenesce as coisas
e envelhece a relação consigo. Parece-m e que seria m elhor perceber
agora de que m aneira, um ta n to cegam ente, e p o r meio de fragm entos
sucessivos e diferentes, eu me conduzi nessa em preitada de um a histó­
ria da verdade: analisar, não os com p o rtam en to s, nem as idéias, não
as sociedades, nem suas “ ideologias” , m as as problematizações através
das quais o ser se dá com o poderfdo e devendo ser pensado, e as práti­
cas a p artir das quais essas problem atizações se form am . A dim ensão
arqueológica da análise p erm ite an alisar as p ró p rias form as d a proble­
m atização; a dim ensão genealógica, su a form ação a p artir das p rá ti­
cas e de suas m odificações. Problem atização d a loucura e d a doença a
p a rtir de práticas sociais e m édicas, definindo um certo perfil de “ n o r­
m alização” ; problem atização da vida, da linguagem e do tra b alh o em
2. N ão seria exato acreditar-se que, desde Burckhardt, o estudo dessas artes e dessa es­
tética da existência foi com pletam ente negligenciado. Podem os pensar no estudo de
Benjamin sobre Baudelaire. Pode-se encontrar, tam bém , um a análise interessante no re­
cente livro de S. G R E E N B L A T T, Renaissance Self-fashioning, 1980.
15
práticas discursivas obedecendo a certas regras “ epistêm icas” ; proble­
m atização do crim e e do co m p o rtam en to crim inoso a p a rtir de certas
práticas punitivas obedecendo a um m odelo “ disciplinar” . G o staria de
m ostrar, agora, de que m aneira, na A ntigüidade, a atividade e os p ra­
zeres sexuais foram problem atizados através de p ráticas de si, pondo
em jog o os critérios de um a “ estética da existência” .
Eis as razões pelas quais recentrei to d o o estudo sobre a genealo­
gia do hom em de desejo, desde a A ntigüidade clássica até os prim eiros
séculos do cristianism o. Segui um a distribuição cronológica simples:
um prim eiro volum e, O uso dos prazeres, é dedicado à m aneira pela
qual a atividade sexual foi p ro blem atizada pelos filósofos e pelos mé­
dicos, na cultura grega clássica, no Século IV a. C .; O cuidado de si é
dedicado a essa problem atização nos textos gregos e latinos nos dois
prim eiros séculos de nossa era; finalm ente, A s confissões da carne tra ­
tam da form ação da d o u trin a e da p astoral da carne. Em relação aos
docum entos que utilizarei, eles serão na m aior p arte textos “ prescritivos” ; com isso, quero me referir a textos que, q u alquer que seja sua
form a (discurso, diálogo, tra ta d o , coletânea de preceitos, cartas, etc.),
têm com o objetivo principal p ro p o r regras de co n duta. Só recorrerei
aos textos teóricos sobre a d o u trin a d o prazer ou das paixões para en­
c o n tra r esclarecim entos. O cam po que analisarei é constituído p o r tex­
tos que pretendem estabelecer regras, d ar opiniões, conselhos, p ara se
co m p o rtar com o convém : textos “ prático s” que são, eles próprios, ob­
jeto de “ p rática” na m edida em que eram feitos p ara serem lidos,
aprendidos, m editados, utilizados, postos à prova, e visavam , no final
das contas, constituir a arm ad u ra da con d u ta cotidiana. O papel des­
ses textos era o de serem operadores que perm itiam aos indivíduos in­
terrogar-se sobre sua p ró p ria co n d u ta, velar p o r ela, form á-la e con­
form ar-se, eles p ró p rio s, com o sujeito ético; em sum a, eles participam
de um a função "e to p o é tic a ” , p ara tran sp o r um a expressão que se en­
contra em Plutarco.
M as, com o essa análise do hom em de desejo se encontra no ponto
de intersecção en tre um a arq u eo lo g ia das problem atizações e um a ge­
nealogia das práticas de si, gostaria de deter-m e, antes de com eçar,
nessas duas noções: ju stificar as form as de “ problem atização” que
considerei, indicar o que se pode entender p o r “ prática de si” , e expli­
car através de que parad o x o s e dificuldades fui levado a substituir um a
história dos sistem as de m oral, feita a p artir das interdições, por um a
história das problem atizações éticas, feita a p a rtir das práticas de si.
16
2
AS FORMAS DE PROBLEMATIZAÇÃO
S uponham os que aceitem os p o r um m om ento categorias tão ge­
rais com o as de “ p ag an ism o ” , de “ cristianism o” , de “ m o ral” e de
“ m oral sexual” . S u p onham os que perguntem os em que po n to s a “ m o ­
ral sexual do cristianism o” opôs-se, o m ais nitidam ente, à “ m oral se­
xual do paganism o an tig o ” : p ro ib ição do incesto, dom inação m asculi­
na, sujeição da m ulher? Sem d ú v id a n ão serão essas as respostas d a ­
das: conhece-se a extensão e a constância desses fenôm enos sob suas
variadas form as. M ais provavelm ente, propor-se-iam ourros p o n to s
de diferenciação. O valor do p ró p rio a to sexual: o cristianism o o teria
associado ao mal, ao pecado, à q ueda, à m orte, ao passo que a A n ti­
güidade o teria d o ta d o de significações positivas. A delim itação do.
parceiro legítimo: o cristianism o, diferentem ente do que se passava
nas sociedades gregas ou ro m an as, só o teria aceito no casam ento monogâm ico e, no interior dessa conjugalidade, lhe teria im posto o princí­
pio de um a finalidade exclusivam ente procriad o ra. A desqualificação
das relações entre indivíduos d o m esm o sexo: o cristianism o as teria
excluído rigorosam ente, ao p asso que a G récia as teria exaltado - e
R om a, aceito - pelo m enos en tre hom ens. A esses três po n to s de o p o ­
sição m aior, poder-se-ia acrescen tar o alto valor m oral e espiritual que
o cristianism o, diferentem ente da m oral pagã, teria atrib u íd o à a b sti­
nência rigorosa, à castidade p erm an en te e à virgindade. Em sum a,
sobre todos esses po n to s que foram considerados, d u ran te tan to tem ­
po, com o tão im portantes - n atu reza do ato sexual, fidelidade m onogâm ica, relações hom ossexuais, castid ad e - , parece que os A ntigos te­
riam sido um tan to indiferentes, e que nada disso teria atraíd o m uito
sua atenção, nem co n stitu íd o p a ra eles problem as m uito agudos.
17
O ra, isso não é exato; e poder-se-ia m ostrá-lo facilm ente. Poderse-ia com prová-lo ressaltando as reproduções diretas e as continuidades m uito estreitas que se pode co n statar entre as prim eiras doutrinas
cristãs e a filosofia m oral da A ntigüidade: o prim eiro grande texto
cristão dedicado à p rática sexual na vida de casado - o capítulo X do
livro II do Pedagogo de C lem ente de A lexandria - apóia-se num certo
núm ero de referências às E scrituras m as tam bém num conjunto de
princípios e de preceitos diretam ente tom ad o s à filosofia pagã. Já en­
contram os ali um a certa associação entre a atividade sexual e o m al, a
regra de um a m onogam ia p ro criad o ra, a condenação das relações de
m esm o'sexo, a exaltação da continência. N ão é só: num a escala histó­
rica bem m ais longa, poder-se-ia aco m p an h ar a perm anência de te­
mas, inquietações e exigências, que sem dúvida m arcaram a ética cristã
e a m oral das sociedades européias m odernas, m as que já estavam cla­
ram ente presentes no cerne do pensam ento grego ou greco-rom ano.
Eis aqui diversos testem unhos: a expressão de um m edo, um modelo
de co m p o rtam en to , a imagem de um a atitu d e desqualificada, um
exem plo de abstinência.
1. Um medo
Os jovens com um a perda de sêmen “ carregam em to d o s os hábi­
tos do corpo a m arca da caducidade e da velhice; eles se tornam rela­
xados, sem força, entorpecidos, estúpidos, prostrad os, curvados, inca­
pazes de q ualquer coisa, com a tez pálida, branca, efem inada, sem ape­
tite, sem calor, os m em bros pesados, as pernas dorm entes, um a extre­
ma fraqueza, enfim , num a palavra, quase que to talm ente perdidos.
Essa doença chega a ser, p a ra m uitos, um a via p a ra a paralisia; de fa­
to, com o a potência nervosa não seria atingida se a natureza está en­
fraquecida no princípio regenerador e na p ró p ria fonte da vida?”
Essa doença “ em si m esma vergonhosa” é “ perigosa no que leva ao
m arasm o, nociva à sociedade na m edida em que se opõe à propagação
da espécie; porque ela é, em todos os aspectos, a fonte de um a infinida­
de de males, exige socorros u rg en tes".'
3. A RETÉE, Des signes et de la cure des maladies chroniques, II, 5. N a tradução france­
sa, L. Renaud ( 1834) com enta essa passagem da seguinte m aneira (p. 163): “ A gonorréia
da qual se fala aqui difere essencialmente da doença que tem esse nome hoje em dia, que
é cham ada, com mais razão, blenorragia . . . A gonorréia simples ou verdadeira, da qual
Areteu fala aqui é caracterizada por um fluxo, involuntário e fora do coito, do hum or
18
t
Reconhece-se facilm ente, nesse texto, as obsessões que a medicina
e a pedagogia alim entaram , a p artir dos Séculos XVII e X V III, em to r­
no do puro dispêndio sexual - aquele onde não existe fecundidade nem
parceiro; o esgotam ento progressivo do organism o, a m orte do indiví­
duo. a destruição de sua raça e, finalm ente, o d ano causado a to d a a
hum anidade, foram , regularm ente, ao longo de um a literatura lo q u a/.
prom etidos para aqueles que abusassem de seu sexo. Esses medos in­
duzidos parecem ter constituído a herança “ n atu ralista" e "científi­
ca", no pensam ento médico d o Século X IX , de um a tradição cristã
que colocava o prazer no cam po da m orte e do mal.
O ra, essa descrição é, de fato, um a trad u ção - um a tradução livre,
no estilo da época - de um texto escrito por um médico grego, A reteu,
no prim eiro século de nossa era. Desse tem or do ato sexual, suscetível,
se for desregrado, de p roduzir na vida do indivíduo os m ais nocivos
efeitos, encontrar-se-ão m uitos testem unhos na m esma época: Soranus, p o r exem plo, considerava que a atividade sexual seria, em qu al­
quer hipótese, m enos favorável à saúde do que a pura e simples abs­
tenção e a virgindade. M ais cedo, ainda, a m edicina tinha dado insis­
tentes conselhos de prudência e de econom ia no uso dos prazeres se­
xuais: evitar seu uso intem pestivo, levar em conta as condições nas
quais eles são praticados, tem er a sua p ró p ria violência e os erros de
regime. A lguns chegam a dizer que não se deve praticá-los “ a não ser
que se queira prejudicar-se a si p ró p rio ” . M edo m uito antigo por con­
seguinte.
2. Um esquenta de comportamento
Conhece-se a maneira pela qual São Francisco de Sales exortava à
virtude conjugal: p ara as pessoas casadas ele oferecia um espelho n a tu ­
ral propondo-lhes o m odelo do elefante e dos belos costum es que de­
m onstrava com sua esposa. O elefante “ não passa de um grande ani­
mal, en tretan to , é o m ais digno que vive sobre a terra e que possui
m ais senso... Ele nunca troca de fêmea, e am a ternam ente aquela que
escolheu e com a qual, no en tan to , só acasala a cada três anos, e so­
m ente p o r cinco dias, e tão secretam ente que jam ais alguém o viu nesse
ato; en tretan to , ele é visto no sexto dia q u an d o , antes de qualquer ou-
espermático e m isturado com hum or prostático. Essa doença vergonhosa é freqüente­
mente excitada pela m asturbação e é sua conseqüência” . A tradução modifica um pouco
o sentido do texto grego que se pode encontrar no Corpus Medicorum Graecorum.
19
tra coisa, vai diretam ente ao rio no qual lava to d o o corpo, não que­
rendo de m odo algum reto rn ar ao seu bando sem antes purificar-se.
N ão tem os aí belas e honestas disposições?” .4 O ra, esse m esm o texto é
uma variação de um tem a que foi transm itido por um a longa tradição
(através de A ldrovandi, G essner, V incent de Beauvais e o fam oso Physiologus)-, sua form ulação já se encontra em Plínio que a Introdução à
Vida Devota segue bem de perto: “ É por p u d o r que os elefantes só se
acasalam em s e g re d o .. . A fêm ea só se deixa cobrir a cada dois anos e,
com o se diz, d u ran te cinco dias de cada ano, não mais; no sexto dia
eles se banham no rio, e só se reúnem ao bando após o banho. Eles não
conhecem o adultério. .. 'V Plínio não pretendia, certam ente, pro p o r
um esquem a tão explicitam ente didático com o o de São Francisco de
Sales; en tretan to , referia-se a um m odelo de co n d u ta visivelmente va­
lorizado. Isso não significa que a fidelidade recíproca dos cônjuges te­
nha sido um im perativo geralm ente recebido e aceito pelos gregos e ro­
m anos. M as ela constituía um ensinam ento d ad o com insistência em
certas correntes filosóficas, com o no estoicism o tard io; constituía ta m ­
bém um com p o rtam en to apreciado com o m anifestação de virtude, de
firm eza da alm a e de dom ínio de si. Louvava-se C atão , o Jovem , que,
na idade em que decidiu se casar, não havia tido ainda relação com
m ulher algum a, e, m elhor ainda, Lelius, que “ em to d a a sua longa vida
só se aproxim ou de um a m ulher, a prim eira e única com quem se ca­
sou” ." Poder-se-ia v oltar ain d a mais longe na definição desse m odelo
de conjugalidade reciproca e fiel. Nicocles, no discurso que lhe atribui
Isócrates, m ostra to d a a im portância m oral e política que ele dá ao
fato de “ não ter tid o, a, p artir de seu casam ento, relação sexual com
ou tra pessoa a não ser sua m ulher” .1 E na sua cidade ideal, A ristóteles
quer que seja considerada com o “ ação deson ro sa” (e isso de “ m aneira
absoluta e sem exceção” ) a relação do m arido com um a o u tra m ulher
ou da esposa com um o u tro hom em .“ A “ fidelidade” sexual do m arido
com relação à sua esposa legítima não era exigida pelas leis nem pelos
costum es; não deixava de ser, contudo, um a questão que se colocava e
um a form a de au steridade a que certos m oralistas conferiam grande
valor.
/
4.
5
h.
7.
s.
20
1 RANQOIS DE SALES. Introduction à la vie dévote. 111. 39.
PLINE, Histoire naturelle, VIII, 5, 13.
l’L U TA RQ U E, Vie de Caton. VII.
ISOCRATE. M coiiès, 36.
ARISTO TE. Politique. VII, 16. 1 335 b.
3. Uma imagem
N os textos do Século X IX existe um perfil-tipo do hom ossexual
ou do invertido: seus gestos, sua p o stu ra, a m aneira pela qual ele se en­
feita, seu coquetism o, com o tam bém a form a e as expressões de seu
rosto, sua an ato m ia, a m orfologia fem inina de to d o o seu corpo fa­
zem, regularm ente, p arte dessa descrição desqualificadora; a qual se
refere, ao m esm o tem po, ao tem a de u m a inversão dos papéis sexuais e
ao princípio de um estigm a n a tu ra l dessa ofensa à natureza; seria de
acreditar-se, diziam , que “ a p ró p ria natu reza se fez cúm plice da m enti­
ra sexual” .'' Dever-se-ia, sem dúvida, estabelecer a longa história dessa
imagem (à qual puderam co rresp o n d er com p ortam entos efetivos,
através de um complexo jogo de indução e desafio). Ler-se-ia, na inten­
sidade tã o vivam ente negativa desse estereótipo, a dificuldade secular,
em nossas sociedades, p ara integrar os dois fenôm enos, aliás, diferen­
tes, que são a inversão dos papéis sexuais e a relação entre indivíduos
do m esm o sexo. O ra, essa im agem , com a au ra repulsiva que a envol­
ve, percorreu séculos; ela já estava m uito nitidam ente delineada na li­
teratu ra greco-rom ana da época im perial. E ncontra-se no perfil do Effem inatus traçad o pelo au to r de um a Physiognomonis anônim a do Sé­
culo IV; na descrição dos padres de A targatis, dos quais zom ba A puleu nas M e t a m o r f o s e s na sim bolização que D ion de Prusa propõe do
daimõn da intem perança, num a de suas conferências sobre a m o n a r­
quia;" na evocação fugaz dos pequenos retóricos todos perfum ados e
encaracolados que E piteto interpela no fundo de sua sala e aos quais
pergunta se são hom ens ou m ulh eres.i: Poder-se-ia ver essa imagem
tam bém no retrato da ju v en tu d e decadente tal com o a vê Sêneca, o
R etórico, cóm grande repugnância, ao seu redor: “ A paixão doentia
de ca n ta r e d an çar enche a alm a de nossos efem inados; ondular os ca­
belos, to rn a r a voz suficientem ente tênue p ara igualar a carícia das vo­
zes fem ininas, rivalizar com as m ulheres através da lassidão de a titu ­
des. estudar-se em perquirições m uito obscenas, eis o ideal de nossos
adolescentes. . . E nfraquecidos e enervados desde o nascim ento, eles
assim perm anecem , sem pre p ro n to s a atacar o p u d o r dos outros sem
se ocupar com o seu p r ó p r io " .'1 Porém , esse perfil, com seus traços
essenciais, é ainda mais antigo. O prim eiro discurso de Sócrates no
9.
10.
11.
12.
IV
H. DAUVERGN E, Les Forçais. 1X41. p. 2X9.
A PULÉE. Metamorphoses, V111. 26 sq.
DION DE PRUSE. Discours, IV. 101-115.
ÉPICTÈTE. Entretiens, HI. I.
S Í N I Q L E LE R H É T EU R . Controverses, 1. Prefácio. X.
21
h'edro a ele faz alu são q u an d o repreende o am or que se tem aos ra p a ­
zes flácidos, educados na delicadeza da som bra, o rn ad o s de m aquilagens e adereços.14 É tam bém com esses traços que A gaton aparece nas
Tesmoforias - tez pálida, faces escanhoadas, voz de m ulher, roupas de
açafrão, redes - ao p o n to do seu interlocutor se p erguntar se na verda­
de ele está na presença de um hom em ou de um a m u lh er.'* Seria inexa­
to ver aí um a con d en ação do am or pelos rapazes ou daquilo que, em
geral, cham am os de relações hom ossexuais; en tretan to , é necessário
reconhecer aí o efeito de apreciações fortem ente negativas a propósito
de certos aspectos possíveis da relação entre hom ens, assim com o uma
viva repugnância a respeito de túdo o que pudesse m arcar uma renún­
cia vo luntária aos prestígios e às m arcas do papel viril. O dom inio dos
am ores m asculinos pôde m uito bem ser “ livre” na A ntigüidade grega,
em to d o caso bem m ais do que o foi nas sociedades européias m oder­
nas; não resta dúvida, en tretan to , que bem cedo se vê m arcar intensas
reações negativas e form as de desqualificação que se p rolongarão por
m uito tem po.
4. Um modelo de abstenção
O herói virtuoso que é capaz de se desviar do prazer, com o um a
tentação na qual ele sabe não cair, é um a figura fam iliar ao cristianis­
mo, com o foi co rren te a idéia de que essa renúncia é capaz de d ar aces­
so a um a experiência espiritual da verdade e do am or, a qual seria ex­
cluída pela atividade sexual. M as é igualm ente conhecida da A ntigüi­
dade pagã a figura desses atletas d a tem perança que são suficiente­
m ente senhores de si e de suas concupiscências p a ra renunciar ao p ra­
zer sexual. Bem antes disso, a G récia conheceu e h o n ro u m odelos
com o o de A polônio de T iana, um tau m atu rg o , que um a vez fez voto
de castidade e que, p o r to d a a vida, nunca m ais teve relações sexuais."’
Para alguns, essa extrem a virtude era a m arca visível do dom íi\ip que
exerciam sobre eles p ró p rio s e, p o rta n to , do pod er que eram dignos de
assum ir sobre os outros: assim, Agésilas de X enofonte não som ente
“ não tocava naqueles que não lhe inspiravam desejo” com o tam bém
até renunciava a beijar o rapaz a quem am ava; e tom ava cuidado para
só alojar-se nos tem plos ou nos lugares visíveis “ p ara que todos pudes­
14.
15.
16.
22
PLATON. Phèdre, 239 c-d.
A R ISTO PH A N E. Thesmophories, v. 130 sq.
PH ILO STRATE. Vie d'Apollonius de Tyane, 1. 13.
sem ser testemunhas de sua tem peran ça” . 17 Porém, para outros essa
abstenção estava ligada diretamente a um a forma de sabedoria que os
colocava imediatamente em con tato com algum elemento superior à
natureza hum ana, e que lhes dava acesso ao próprio ser da verdade: tal
era o caso do Sócrates do Banquete do qual todos queriam se aproxi­
mar, do qual todos se enam oravam , de cuja sabedoria todos buscavam
se a propriar - sabedoria essa que se manifestava e se experimentava,
justam ente, pelo fato de que ele p róprio era capaz de não tocar na be­
leza provocadora de Alcebíades.1* A temática de um a relação entre a
abstinência sexual e o acesso à verdade já estava fortemente m arca­
da.
Entretanto, é preciso não esperar dem asiado dessas referências.
N ã o se poderia delas inferir que a moral sexual do cristianismo e a do
paganismo formem continuidade. Diversos temas, princípios e noções
podem perfeitamente se en contrar num e noutro; não possuem, no en­
tanto, o mesmo lugar e o mesmo valor em ambos. Sócrates não é um
padre do deserto lutando contra a tentação, e Nicocles não é nenhum
marido cristão; o riso de Aristófanes diante de Ágaton travestido tem
muito pouco a ver com a desqualificação do invertido que mais tarde
se encontrará no discurso médico. Além disso, é preciso ter em mente
que a Igreja e a pastoral cristã fizeram valer o princípio de um a moral
cujos preceitos eram constritivos e cujo alcance era universal (o que
não excluía as diferenças de prescrição relativas ao status dos indiví­
duos, nem a existência de movimentos ascéticos com suas próprias as­
pirações), Em compensação, no pensam ento antigo, as exigências de
austeridade não eram organizadas num a moral unificada, coerente,
autoritária e imposta a todos da mesma maneira; elas eram, antes de
mais nada, um suplemento, como que um “ luxo” em relação à moral
aceita correntemente; além disso, elas se apresentavam em “ focos dis­
persos” ; e estes tinham origem em diferentes movimentos filosóficos
ou religiosos: e encontravam seu meio de desenvolvimento em múlti­
plos grupos; e propunham , mais do que im punham , estilos de m odera­
ção ou de rigor çada qual com sua fisionomia particular: a austeridade
pitagórica não era a dos estóicos que, p o r sua vez, era bem diferente
daquela recomendada po r Epicuro. É preciso não concluir dessas p o u ­
cas aproximações que puderam ser esboçadas que a moral cristã do
sexo estava, de certa forma, “ pré-form ada” no pensamento antigo;
deve-se antes considerar que, bem cedo, na reflexão moral da A ntigüi­
dade, formou-se uma temática - um a “ quadritem ática” - da austeri­
17.
IS.
X ÉN O PH O N , Agésilas, 6.
PLATON, Banquet, 217 a-219 e.
23
dade sexual em to m o e a p ro p ó sito d a vida do corpo, da instituição do
casam ento, das relações entre hom ens e da existência de sabedoria. E
essa tem ática, através de instituições, de conjuntos de preceitos, de re­
ferências teóricas extrem am ente diversas e a despeito de m uitos rem anejam entos, g u ardou, através d o tem po, um a certa constância: com o
se houvesse, desde a A ntigüidade, q u atro p o n to s de problem atização a
p artir dos quais se reform ulava, incessantem ente - e segundo esque­
m as freqüentem ente diferentes - , o cuidado com a austeridade sexual.
O ra, é preciso n o ta r que esses tem as de au steridade não coinci­
diam com as delim itações que as grandes interdições sociais, civis ou
religiosas, podiam traçar. Poder-se-ia pensar, com efeito, que lá onde
as proibições são m ais fundam entais, lá onde as obrigações são mais
coercitivas é que, de um a form a geral, as m orais desenvolvem as m ais
insistentes exigências de austeridade: o caso p ode se produzir; e a his­
tó ria do cristianism o ou d a E u ro p a m oderna, sem dúvida, dariam
exem plos disso.19 E n tretan to , parece que tal não foi o caso na A ntigüi­
dade. Em prim eiro lugar, isso aparece m uito claram ente na dissim etria
bem p articular a to d a essa reflexão m oral sobre o co m portam ento se­
xual: as m ulheres são adstritas, em geral (salvo a liberdade que um sta­
tus, com o o de cortesã, p ode lhes dar), a obrigações extrem am ente es­
tritas; contudo, n ão é às m ulheres que essa m oral é endereçada; não
são seus deveres, nem suas obrigações que aí são lem brados, justifica­
dos ou desenvolvidos. T rata-se de um a m oral de hom ens: um a m oral
pensada, escrita, ensinada p o r hom ens e endereçada a hom ens, eviden­
tem ente livres. C onseqüentem ente, m oral viril o nde as m ulheres só
aparecem a título de objetos ou no m áxim o com o parceiras às quais
convém form ar, educar e vigiar, q u an d o as tem sob seu poder, e das
quais, ao co n trário , é preciso abster-se q u an d o estão sob o poder de
um o u tro (pai, m arido, tu to r). Aí está, sem dúvida, um dos pontos
m ais notáveis dessa reflexão m oral: ela n ão ten ta definir um cam po de
co ndu ta e um dom ínio de regras válidas - segundo as m odulações ne­
cessárias - p ara os dois sexos; ela é um a elab o ração da co nduta m ascu­
lina feita do p o n to de vista dos hom ens e p a ra d ar form a à sua condu­
ta.
M elhor ainda: essa reflexão m oral não se dirige aos hom ens com
referência a condutas que poderiam dizer respeito a algum as interdi­
ções reconhecidas p o r to d o s e solenem ente lem bradas nos códigos,
19. Pode-se pensar que o desenvolvimento de uma m oral das relações do casam ento e.
mais precisamente, das reflexões sobre o com portam ento sexual dos esposos na relação
conjugal (que assumiram tão grande im portânçia na pastoral cristã), é uma conseqüên­
cia da instauração, aliás lenta, tardia e difícil, do modelo cristão do casam ento no decor­
rer da Alta Idade Média (cf. G. DUBY, Le chevalier, la fem m e el lé prêtre, 1981).
24
costum es ou prescrições religiosas. Ela se dirige a eles a respeito das
condutas em que, ju stam en te, eles devem fazer uso de seu direito, de
seu poder, de sua au to rid ad e e de sua liberdade: nas práticas dos prazeres que não são co ndenados, n u m a vida de casam ento onde, no
exercício de um poder m arital, nenhum a regra nem costum e im pede o
hom em de ter relações sexuais extraconjugais, em relações com os ra ­
pazes que, pelo m enos d en tro de certos limites, são adm itidas, co rren ­
tes e até m esm o valorizadas. É preciso entender esses tem as da austeri­
dade sexual n ão com o um a trad u ção ou um com entário de proibições
profu n d as e essenciais, m as com o elab o ração e estilização de um a a ti­
vidade no exércício de seu p oder e na prática de sua liberdade.
O que não quer dizer que essa tem ática da austeridade sexual não
represente algo mais do que um refinam ento sem conseqüência e um a
especulação sem vínculo com q u alq u er preocupação precisa. A o con­
trário , é fácil ver que cada um a dessas grandes figuras da austeridade
sexual se relaciona com um eixo da experiência e com um feixe de rela­
ções concretas: relações com o corpo, com a questão da saúde e, p o r
trás dessa questão, todo o jogo da vida e da morte; relação com o outro
sexo, com a questão da esposa com o parceira privilegiada, no jo g o
entre a instituição fam iliar e o vínculo que ela cria; relação com o seu
pró p rio sexo, com a questão dos parceiros que nele se pode escolher, e
o problem a d o ajustam ento en tre papéis sociais e papéis sexuais; final­
m ente, relação com a verdade, o nde se coloca a questão das condições
espirituais que perm item ter acesso à sabedoria.
Pareceu-m e, assim , que haveria que o p erar todo um recentram ento. Em vez de buscar as interdições de base que se escondem ou se .ma­
nifestam nas exigências da austerid ad e sexual, era preciso pesquisar a
p a rtir de quais regiões da experiência, e sob que form as, o co m p o rta­
m ento sexual foi problem atizado, to rn an d o -se objeto de cuidado, ele­
m ento p ara reflexão, m atéria p a ra estilização. M ais precisam ente, era
preciso perguntar-se p o r que ju stam en te os q u atro grandes dom ínios
de relações onde parecia que o hom em livre, nas sociedades antigas,
teria podido desenvolver sua atividade sem en contrar m aiores p ro ib i­
ções foram objeto de um a problem atização intensa da p rática sexual.
Por que foi aí, a p ro p ó sito do corpo, da esposa, dos rapazes e da ver­
dade, que a prática dos prazeres foi questionada? Por que a interferên­
cia da atividade sexual nessas relações tornou-se objeto de inquieta­
ção, de d ebate e de reflexão? Por que esses eixos da experiência coti­
diana deram lugar a um pensam ento que buscava a rarefação do com ­
portam en to sexual, sua m oderação , sua co nform ação e a definição de
um estilo austero na p rática dos prazeres? D e que m aneira o com por­
tam en to sexual, na m edida em que im plicava esses diferentes tipos de
relação, foi objeto de reflexão com o dom ínio de experiência m oral?
25
3
MORAL E PRÁTICA DE SI
A fim de responder a essa questão é necessário introduzir algum as
considerações de m étodo; ou, m ais precisam ente, convém se in terro ­
gar sobre o objeto p ro p o sto q u an d o se em preende o estudo das form as
e transform ações de um a “ m o ral” .
C onhece-se a am bigüidade dessa palavra. P or “ m o ral” entende-se
um conjunto de valores e regras de ação p ro p o stas aos indivíduos e
aos grupos por interm édio de ap arelhos prescritivos diversos, com o
podem ser a fam ília, as instituições educativas, as Igrejas, etc. A conte­
ce dessas reg ras e valores serem bem explicitam ente form ulados num a
do u trin a coerente e num ensinam ento explícito. M as acontece tam bém
delas serem transm itidas de m aneira difusa e, longe de form arem um
conju n to sistem ático, constituírem um jo g o com plexo de elem entos
que se com pensam , se corrigem , se anulam em certos pontos, perm i­
tindo, assim, com prom issos ou escapatórias. C om essas reservas podese cham ar “ código m o ral” esse conjunto prescritivo. Porém , por “ m o ­
ral" entende-se igualm entç o co m p o rtam en to real dos indivíduos em
relação às regras e valores que lhes são propostos: designa-se, assim, a
m aneira pela qual eles se subm etem m ais ou m enos com pletam ente a
um princípio de co n d u ta; pela qual eles obedecem ou resistem a uma
interdição ou a um a prescrição; pela qual eles respeitam ou negligen­
ciam um conjunto de valores; o estudo desse aspecto da m oral deve de­
term in ar de que m aneira, e com que m argens de variação ou de tran s­
gressão, os indivíduos ou os grupos se conduzem em referência a um
sistem a prescritivo que é explícita ou im plicitam ente dado em sua cul­
tura, e do qual eles têm um a consciência m ais ou m enos clara. C ham e­
mos a esse nível de fenôm enos a “ m oralidade dos com portam entos'"
26
Mas não é só isso. Com efeito, uma coisa é uma regra de conduta;
outra, a c onduta que se pode medir a essa regra. Mas, outra coisa ain­
da é a maneira pela qual é necessário “ conduzir-se” - isto é, a maneira
pela qual se deve constituir a si mesmo como sujeito moral, agindo em
referência aos elementos prescritivos que constituem o código. D ado
um código de ação, e para um determ inado tipo de ações (que se pode
definir por seu grau de conform idade ou de divergência em relação a
esse código), existem diferentes maneiras de “ se conduzir!’ m oralm en­
te, diferentes maneiras, para o indivíduo que age, de operar não sim­
plesmente com o agente, mas sim com o sujeito moral dessa ação. Seja
um código de prescrições sexuais que determina para os dois cônjuges
uma fidelidade conjugal estrita e simétrica, assim como a permanência
de uma vontade procriadora; mesmo nesse quadro tão rigoroso, have­
rá várias maneiras de praticar essa austeridade, várias maneiras de
“ ser fiel” . Essas diferenças podem dizer respeito a vários pontos.
Elas concernem ao que se poderia cham ar determinação da subs­
tância ética, isto é, a maneira pela qual o indivíduo deve constituir tal
parle dele mesmo com o matéria principal de sua conduta moral. As­
sim, pode-se ter como essencial da prática de fidelidade o estrito res­
peito das interdições e das obrigações nos próprios atos que se realiza.
Mas pode-se também ter com o essencial da fidelidade o domínio dos
desejos, o combate obstinado que se tem contra eles, a força com a
qual se sabe resistir às tentações: o que constitui, então, o conteúdo da
fidelidade é essa vigilância e essa luta; os movimentos contraditórios
da alma, muito mais que os próprios atos em sua efetivação, é que se­
rão, nessas condições, a m atéria da prática moral. Pode-se, ainda, ter
com o essencial da prática de fidelidade a intensidade, a continuidade,
a reciprocidade dos sentimentos que se experimenta pelo cônjuge e a
qualidade da relação que liga, em permanência, os dois esposos.
As diferenças podem, assim, dizer respeito ao modo de sujeição,
islo é, à maneira pela qual o indivíduo estabelece sua relação com essa
regra e sc reconhece como ligado à obrigação de pô-la em prática.
Pod'vse, por exemplo, praticar a fidelidade conjugal e se submeter ao
preceito que a impõe por reconhecer-se como parte do grupo social
que a aceita, e que a proclama abertam ente, e que dela conserva o h á ­
bito silencioso; porém, pode-se tam bém praticá-la por considerar-se
herdeiro de uma tradição espiritual, a qual se tem a responsabilidade
de preservar ou de fa/.er reviver: com o tam bém se pode exercer essa fi­
delidade respondendo a um apelo, propondo-se como exemplo ou
buscando dar à vida pessoal uma forma que corresponda a critérios de
esplendor, bele/a, nobre/.a ou perfeição.
Existem também diferenças possíveis nas formas da elaboração
do trabalho ético que se efetua sobre si mesmo, não somente para
torn ar seu próprio c o m po rtam ento conform e a uma regra dada, mas
27
tam bém p ara ten tar se tran sfo rm ar a si m esm o em sujeito m oral de sua
p rópria cond u ta. Dessa form a, a austeridade sexual pode. ser praticada
por meio de um longo tra b a lh o de aprendizagem , de m em orização, de
assim ilação de um con ju n to sistem ático de preceitos e através de um
controle regular da co n d u ta, destinado a m edir a exatidão com que se
aplicam essas regras; pode-se p raticá-la sob a form a de um a renúncia
brusca, global e definitiva aos prazeres; com o tam bém sob a form a de
um com bate perm anente, cujas peripécias - até os fracassos passagei­
ros - podem ter sentido e valor; ela pode tam bém ser exercida através
de um a decifração tão cuidada, perm anente e detalhada q u an to possí­
vel, dos m ovim entos do desejo, sob to d as as form as, m esm o aquelas
m ais o bscuras sob as quais ele se oculta.
Finalm ente, o u tra s diferenças dizem respeito ao que se poderia
cham ar teleologia do sujeito m oral; pois um a ação não é m oral som en­
te em si m esm a e na sua singularidade; ela o é tam bém por sua inser­
ção e pelo lugar que ocupa no conjunto de um a co nduta; ela é um ele­
m ento e um aspecto dessa conduta, e m arca um a etap a em sua dura­
ção e um progresso eventual em sua continuidade. U m a ação m oral
tende à sua p ró p ria realização; além disso, ela visa, através dessa reali­
zação, a constituição de um a co n d u ta m oral que leva o indivíduo, não
sim plesm ente a ações sem pre conform es aos valores e às regras, mas
tam bém a um certo m odo de ser característico do sujeito m oral. E
existem m uitas diferenças possíveis nesse ponto; a fidelidade conjugal
pode dizer respeito a um a co n d u ta m oral que leva a um dom ínio de si
cada vez m ais com pleto; ela pode ser um a co n d u ta m oral que m anifes­
ta um distanciam ento repentino e radical a respeito do m undo; ela
pode tender a um a tran q ü ilid ad e perfeita da alm a, a um a total insensi­
bilidade às agitações das paixões, ou a um a purificação que assegura a
salvação após a m o rte e a im ortalidade bem -aventurada.
Em sum a, p a ra ser dita “ m o ral” um a ação n ão deve se reduzir a
um ato ou a um a série de atos conform es a um a regra, lei ou valor. É
verdade que to d a ação m oral co m p o rta um a relação ao real em que se
efetua, e um a relação ao código a que se refere; m as ela implica tam ­
bém um a certa relação a si; essa relação n ão é sim plesm ente “ cons­
ciência de si” , m as constituição de si en q u an to “ sujeito m oral” , na
qual o indivíduo circunscreve a p arte dele m esm o que constitui o obje­
to dessa prática m oral, define sua posição em relação ao preceito que
respeita, estabelece p a ra si um certo m odo de ser que valerá com o rea­
lização m oral dele m esm o; e, p a ra tal, age sobre si m esm o, procura co­
nhecer-se, controla-se, põe-se à p rova, aperfeiçoa-se, transform a-se.
N ão existe ação m oral p articu lar que não se refira à unidade de um a
co n du ta m oral; nem co n d u ta m oral que n ão im plique a constituição
de si m esm o com o sujeito m oral; nem tam p o u co constituição do sujei­
to m oral sem “ m odos de subjetivação” , sem um a “ ascética” o u sem
28
“ práticas de si" que as apóiem . A ação m oral é indissociável dessas
form as de atividades sobre si, form as essas que não são m enos diferen­
tes de um a m oral a o u tra do que os sistem as de valores, de regras e de
interdições.
Essas distinções não devem ter som ente efeitos teóricos. Elas têm
tam bém suas conseqüências p a ra a análise histórica. Q uem quiser fa­
zer a história de um a “ m o ral” deve levar em conta diferentes realida­
des que essa palavra engloba. H istó ria das “ m oralidades” : aquela que
estuda em que m edida as ações de tais indivíduos ou tais grupos são
conform es ou náo às regras e aos valores que são propostos por dife­
rentes instâncias. H istória dos “ códigos” , a que analisa os diferentes
sistem as de regras e valores que vigoram num a determ inada sociedade
ou num g rupo dado, as instâncias ou aparelhos de coerção que lhes
dã o vigência, e as form as to m ad as p o r sua m ultiplicidade, suas diver­
gências ou suas contradições. E finalm ente, história da m aneira pela
qual os indivíduos são cham ados a se constituir com o sujeitos de co n ­
d u ta m oral: essa história será aquela dos m odelos pro p o sto s p ara a
in stauração e o desenvolvim ento das relações para consigo, para a re­
flexão sobre si, p ara o conhecim ento, o exam e, a decifração de si p o r si
m esm o, as transform ações que se p ro cu ra efetuar sobre si. Eis aí o que
se poderia cham ar um a história da “ ética” e da “ ascética” , entendida
com o história das form as d a subjetivação m oral e das práticas de si
destinadas a assegurá-la.
Se de fâto for verdade que to d a “ m o ral” , no sentido am plo, com ­
p o rta os dois aspectos que acabo de indicar, ou seja, o dos códigos de
co m p o rtam en to e os das form as de subjetivação; se for verdade que
eles jam ais podem estar inteiram ente dissociados, m as que acbntece
deles se desenvolverem , ta n to um q u a n to o o u tro , num a relativa a u to ­
nom ia, é necessário tam bém ad m itir q u e em certas m orais a im p o rtân ­
cia é d ad a sobretudo ao código, à sua sistem aticidade e riqueza, á sua
capacidade de ajustar-se a tod o s os casos possíveis, e a cobrir to d o s os
cam pos de com po rtam en to ; em tais m orais a im portância deve ser
pro cu rad a do lado das instâncias de au to rid ad e que fazem valer esse
código, que o im põem à aprendizagem e à observação, que sancionam
as infrações; nessas condições, a subjetivação se efetua, no essencial,
de um a form a quase ju ríd ica, em que o sujeito m oral se refere a um a
lei ou a um conjunto de leis às quais ele deve se subm eter sob pena de
incorrer em faltas que o expõem a um castigo. Seria totalm ente inexa­
to reduzir a m oral cristã - dever-se-ia, sem dúvida, dizer “ as m orais
cristãs” - a um tal m odelo; talvez não seja falso pensar que a organi­
zação do sistem a penitencial no início do século X III, e seu desenvol­
vim ento até as vésperas da R eform a, provocaram um a fortíssim a “juridificaçâo” - no sentido estrito, um a fortíssim a “ codificação” - da
29
experiência moral: foi contra ela que reagiram muitos movimentos es­
pirituais e ascéticos que se desenvolveram antes da Reforma.
Hm compensação, pode-se muito bem conceber morais cujo ele­
mento forte e dinâmico deve ser procurado do lado das formas de subjetivação e das práticas de si. Nesse caso, o sistema dos códigos e das
regras de com po rtam ento pode ser bem rudimentar. Sua observação
exata pode ser relativamente pouco relevante, pelo menos com parada
ao que se exige do indivíduo para que, na relação que tem consigo, em
suas diferentes ações, pensamentos ou sentimentos, ele se constitua
como sujeito moral; a ênfase é dada, então, às formas das relações
consigo, aos procedimentos e às técnicas pelas quais são elaboradas,
aos exercícios pelos quais o próprio sujeiio se dá como objeto a c onhe­
cer, e às práticas que permitam transform ar seu próprio m odo de ser.
Essas morais “ orientadas para a ética" (e que não coincidem, forçosa­
mente, com as morais daquilo que se cham a renúncia ascética) foram
muito im portantes no cristianismo ao lado das morais “ orientadas
para o código": entre elas houve justaposições, por vezes rivalidades e
conflitos, e por vezes composição.
Ora, parece, pelo menos numa primeira abordagem , que as refle­
xões morais na Antigüidade grega ou greco-romana foram muito mais
orientadas para as práticas de si, e para a questão da a.ske.sis, do que
para as codificações de condutas e para a definição estrita do permiti­
do e do proibido. Se excetuarmos a República e as Leis, encontraremos
muito poucas referências ao princípio de um código que definiria no
varejo a conduta conveniente, à necessidade de uma instância encarre­
gada de vigiar sua aplicação, à possibilidade de castigos que sanciona­
riam as infrações cometidas. Mesmo se a necessidade de respeitar a lei
e os costumes - os nomoi - é freqüentemente sublinhada, o im portante
está menos no conteúdo da lei e nas suas condições de aplicação do
que na atitude que faz com que elas sejam respeitadas. A ênfase é colo­
cada na relação consigo que permite não se deixar levar pelos apetites
e pelos prazeres, que permite ter, em relação a eles, dom ínio e superio­
ridade, m anter seus sentidos num estado de tranqüilidade, permanecer
livre de qualquer escravidão interna das paixões, e atingir a um m odo
de ser que pode ser definido pelo pleno gozo de si ou pela soberania de
si sobre si mesmo.
Daí a opção de m étodo que fiz ao longo desse estudo sobre as m o ­
rais sexuais da Antigüidade pagã e cristã: m anter em mente a distinção
entre os elementos de código de uma moral e os elementos de ascese;
não esquecer sua coexistência, suas relações, sua relativa autonomia,
nem suas diferenças possíveis de ênfase; levar em conta tu d o o que pa ­
rece indicar, nessas morais, o privilégio das práticas de si, o interesse
que elas podiam ter, o esforço que era feito p ara desenvolvê-las, aperfeiçoáMas, e ensiná-las, o debate que tinha lugar a seu respeito. De
30
tal m odo que teríam os que tran sfo rm ar, assim, a questão tão freqüen­
tem ente colocada a p ro p ó sito da co ntinuidade (ou da ru p tu ra) entre as
m orais filosóficas da A ntigüidade e a m oral cristã; em vez de pergun­
ta r quais são os elem entos de código que o cristianism o pôde to m ar
em prestado ao pensam ento antigo, e quais são os que acrescentou por
sua p ró p ria conta, a fim de definir o que é perm itido e o que é proibido
na ordem de um a sexualidade supostam en te constante, coovi.ria p e r­
g u n tar de que m aneira, na continuidade, transferência ou m odificação
dos códigos, as form as da relação p a ra consigo (e as práticas de si que
lhes são associadas) foram definidas, m odificadas, reelaboradas e di­
versificadas.
N ão se supõe que os códigos não tenham im portância nem que
perm aneçam constantes. E n tretan to , pode-se observar que, no final
das contas, eles giram em to rn o de alguns princípios b astante simples e
pouco num erosos: talvez os hom ens não inventem m uito mais na o r­
dem das proibições do que na dos prazeres. Sua perm anência tam bém
é grande: a proliferação sensível das codificações (que dizem respeito
aos lugares, parceiros, e gestos perm itidos ou proibidos) se produzirá
bem m ais tard e no cristianism o. Em com pensação, parece - em todo
caso é a hipótese que g ostaria de explorar aqui - haver todo um cam po
de historicidade com plexa e rica na m aneira pela qual o indivíduo é
cham ad o a se reconhecer com o sujeito m oral da conduta sexual. T ra ­
tar-se-ia de ver de que m aneira, a p artir do pensam ento grego clássico
até a constituição da d o u trin a e da pasto ral cristã da carne, essa subjetivação se definiu e se tran sfo rm o u .
Nesse prim eiro volum e gostaria de m arcar alguns traços gerais
que caracterizam a m aneira pela qual o com p o rtam ento sexual foi re­
fletido, pelo pensam ento grego clássico, com o cam po de apreciação e
de escolhas m orais. Partirei da noção, en tão corrente, de “ uso dos p ra ­
zeres” - chrèsis aphrodisiõn - p ara distinguir os m odos de subjetivação
aos quais ela se refere: substância ética, tipos de sujeição, form as de
elab o ração de si e de teleologia m oral. Em seguida, p artin d o cada vez
de um a prática que, na cultura grega, tin h a sua existência, seu status e
suas regras (a prática do regim e de saúde, a da gestão da casa, e da co r­
te am orosa), estudarei a m aneira pela qual o pensam ento m édico e fi­
losófico elaborou esse “ uso dos prazeres” e form ulou alguns tem as de
austeridade que se to rn ariam recorrentes sobre q u atro grandes eixos
da experiência: a relação com o corpo, a relação com a esposa, a rela­
ção com os rapazes e a relação com a verdade.
31
CAPÍTULO I
A PROBLEMATIZAÇÃO MORAL
DOS PRAZERES
T eríam os m uita dificuldade em e n c o n tra r nos gregos (com o aliás,
nos latinos) um a noção sem elhante à de “ sexualidade” e à de “ carne” .
Q uero dizer: um a noção que se refira a um a entidade única e que per­
m ita ag ru p ar, com o sendo da m esm a n atureza, derivando de um a mes­
m a origem o u fazendo intervir o m esm o tip o de causalidade, fenôm e­
nos diversos e aparentem ente a fa sta d o s uns dos outros: com p o rtam en ­
tos com o tam bém sensações, im agens, desejos, instintos e paixões.1
É evidente que os gregos dispõem de um a série de palavras para
designar diferentes gestos ou ato s que. nós cham am os “ sexuais” . Eles
dispõem de um vocabulário p a ra designar práticas precisas; possuem
term os m ais vagos que se referem , de form a geral, ao que cham am os
“ relação” , “ conju n ção ” ou “ relações sexuais” : com o sunousia, hom i­
lia, plcsiasmos, mi.xis, ocheia. Porém a categoria geral sob a qual to dos
esses gestos, atos e p ráticas são subsum idos é m uito m ais difícil de
apreender. Os gregos utilizam facilm ente um adjetivo substantivado:
la aphradisia,' que os latinos traduzem aproxim adam ente p o r venerea.
“ C hoses" ou "plaisirs de l’a m o u r” , “ rap p o rts sexuels” , “ actes de la
ch air", "v o lu p tés",* tenta-se ta n to q u an to possível d ar a esse term o
1. E. LESKI. “ Die Zeugungslehre der A ntike", Abhandlungen der Akademie der Wis­
senschaften und Literatur, XIX, M ogúncia, 1950. p. 1248.
2. Cf. K. J. DOVER, “ Classical greek attitudes to sexual behaviour", Arelhusa. 6. n* I .
1973, p. 59; Id.. Greek popular morality. 1974, p. 205, e Homosexualité grecque, pp. X3-
M.
* " ( o is a s " o u " p r a /e r e x d o a m o r " , " r e la ç õ e s s e x u a is " , " a io s d a c a r n e " , " v o lú p ia s " . (N .
d o 1 .)
35
um equivalente em francês. Mas a diferença entre os conjuntos nocionais torna difícil a tradução exata do termo. Nossa idéia de "sexuali­
dade" não apenas cobre uni cam po muito mais amplo, como visa ta m ­
bém unia realidade de outro tipo: e possui, em nossa moral e em nosso
saber, funções inteiramente diversas, lini Iroca. não dispomos, de nos­
sa parle, de unia noção que opere um recorte e que reúna um conjunto
análogo ao dos aphrodisia. Perdoem-me se. mais de um a vez, deixo o
lermo grego em sua forma original.
N ão pretendo neste capítulo fazer uma exposição exaustiva, nem
mesmo um resumo sistemático das diferentes doutrinas filosóficas
ou médicas que, do Século V ao início do Século III, se referiram ao
p r a /e r e m geral e aos prazeres sexuais em particular. C o m o preliminar
ao estudo dos qu atro tipos principais de estilização da conduta sexual
desenvolvidos na Dietética, a propósito do corpo, na Econômica, a
propósito do casamento, na Erótica, a propósito dos rapazes, e na Fi­
losofia, a propósito da verdade, minha intenção é somente distinguir
alguns traços gerais que lhes serviram de qu adro de referência porque
eram comuns às diferentes rollexòes sobre os aphrodisia. Pode-se mui­
to bem admitir a tese corrente de que os gregos dessa época aceitavam,
muito mais facilmente que os cristãos da Idade Média ou que os euro­
peus do período m oderno, certos c o m portam entos sexuais; pode-se
muito bem adm itir igualmente que as faltas e as más condutas nesse
cam po suscitavam, então, menos escândalo, e expunham a menos retorsão, tan to mais que nenhum a instituição - pastoral ou médica pretendia determ inar o que, nessa ordem de coisas, é permitido ou
proibido, norm al ou anorm al; pode-se também adm itir que eles atri­
buíam, a todas essas questões, muito menos im portância que nós. En­
tretanto, mesmo que tudo isso seja adm itido ou suposto, um p onto
permanece irredutível: eles se preocuparam , não obstante, com essas
questões. Existiram pensadores, moralistas, filósofos e médicos para
estimar que o que as leis da cidade prescreviam ou interditavam, o que
o costume geral tolerava ou refutava, não podia ser suficiente para re­
gular devidamente a conduta sexual de um homem cuidadoso de si:
eles reconheciam, na maneira de ter essa espécie de prazer, um proble­
ma moral.
O que gostaria de determinar nessas poucas páginas, são, ju sta ­
mente, os aspectos gerais com que se preocuparam , a forma geral da
interrogação moral que colocaram a propósito dos aphrodisia. Para
isso, recorrerei a textos bem diferentes uns dos o utros - essencialmente
os de Xenofonte, Platão e Aristóteles; e não tentarei restituir o “ con­
texto d o u trin á rio " que pode dar a cada um seu sentido particular e seu
valor diferencial, mas sim o “ cam po de p roblem atização" que lhes foi
comum e que os tornou possíveis. Tratarem o s de fazer surgir, em seus
caracteres gerais, a constituição dos aphrodisia com o cam po de cuida36
do m oral. Focalizarei q u a tro noções que freqüentem ente se encontram
na reflexão sobre a m oral sexual: a noção de aphrodisia, através da
qual pode-se ap reender o que, no co m p o rtam en to sexual, era reconhe­
cido com o “ substância ética” ; a de “ uso” de chrêsis, que perm ite
ap rend er o tipo de sujeição ao qual a p rática desses prazeres deveria
subm eter-se p ara ser m oralm ente valorizada; a noção de enkrateia, de
dom ínio que define a atitu d e que se deve ter a respeito de si m esm o
para constituir-se com o sujeito m oral; e finalm ente a de “ tem p eran ­
ça ", de “ sab ed o ria" de sõphrosunê que caracteriza o sujeito m oral em
sua realização. Assim se pod erá circunscrever o que estru tu ra a expe­
riência m oral dos prazeres sexuais - sua ontologia, sua deontologia,
sua ascética e sua teleologia.
37
I
I
APHRODISIA
O Suda p ro p õ e a seguinte definição que H esíquio repetirá: os
aphrodisHi são "a s o b ra s", “ os atos de A fro d ite” - erga Aphrodites.
Sem dúvida, é necessário não esperar nesse gênero de o b ra um esforço
de conceituação m uito rigorosa. E n tretan to , é um fato que os gregos
não deram testem unho no seu pensam ento histórico, nem na sua refle­
xão p rática, de um cuidado insistente em delim itar o que eles enten­
diam . exatam ente, pelos aphrodisia - quer se tratasse de fixar a n atu re­
za da coisa designada, de delim itar a extensão de seu cam po, ou de es­
tabelecer o catálogo de seus elem entos. Em to d o caso n ad a que se asse­
melhasse às longas listas de atos possíveis que serão encontrados nos
penitenciais, nos m anuais de confissão ou nos livros de psicopatologia;
nenhum q u a d ro que sirva p a ra definir o legítim o, o perm itido ou o
norm al, e a descrever a vasta fam ília dos gestos proibidos. N ad a, tam ­
bém, que se assem elhe ao cuidado - tão característico da questão da
carne ou da sexualidade - em revelar sob o inofensivo ou o inocente a
presença insidiosa de um a potência de limites incertos e m últiplas m ás­
caras. N em classificação nem decifração. Serão fixadas com esm ero
qual a m elhor idade p ara se casar e ter filhos e em que estações as rela­
ções sexuais devem ser praticadas; nunca se dirá, com o um diretor
cristão, que gesto fazer ou evitar, que carícias prelim inares são perm i­
tidas. que posição tom ar, ou em quais condições pode-se interrom per
o ato. Para aqueles que não eram suficientem ente arm ados, Sócrates
recom endava fugir da vista de um belo rapaz, m esm o se para isso fosse
necessário exilar-se p o r um an o ;' e o Fedro evocava a longa luta do
am ante c o n tra seu p ró p rio desejo: mas, em nenhum lugar são expres-
V
38
XI N O PH O N . Mémorables, I, 3. 13.
sas, com o serão na espiritualidade cristã, as precauções necessárias a
fim de im pedir que o desejo se in tro d u za sub-repticiam ente na alm a,
ou a fim de desalojar seus vestígios secretos. E o que é talvez m ais es­
tranho: os m édicos que p ropõem , um tan to detalhadam ente, os ele­
m entos do regime dos aphrodisia, são praticam ente m udos q u an to às
form as que os próprios atos possam tom ar; eles dizem m uito pouco fora algum as referências q u an to à posição “ n a tu ra l” - sobre o que é
conform e ou co n trário à vontade da natureza.
Pudor? Talvez: pois em b o ra se possa m uito bem atrib u ir aos gre­
gos um a grande liberdade de costum es, co n tu d o a representação dos
atos sexuais que eles m ostram em o bras escritas - e mesmo na literatu ­
ra erótica - parece ser m arcada p o r um a grande reserva:J e isto c o n tra ­
riam ente aos espetáculos que eles se davam ou às representações iconográficas que puderam ser e n co n trad as.5 D e q ualquer form a, sente-se
claram ente que X enofonte, A ristóteles e, posteriorm ente, Plutarco,
não teriam achado decente dar, a p ro p ó sito das relações sexuais com a
esposa legítim a, os conselhos suspeitosos e aplicados que os autores
cristãos prodigaram a p ro p ó sito dos prazeres conjugais; eles não esta­
vam p rontos, com o mais tard e os diretores de consciência, a regular o
jogo das dem andas e recusas, das prim eiras carícias, das m odalidades
da conjunção, dos prazeres que se experim enta e da conclusão que
convém dar-lhes:
M as existe um a razão positiva p a ra aquilo que poderían\os perce­
ber retrospectivam ente com o “ reticência” ou “ reserva” . É que a m a­
neira pela qual se considerava os aphrodisia, o tipo de interrogação
que se lhes endereçava, era o rien tad a de m odo totalm ente diverso de
um a busca de sua n atureza p ro fu n d a, de suas form as canônicas ou de
sua p otência secreta.
1.
Os aphrodisia são atos, gestos, contatos, que p roporcionam
um a certa form a de prazer. Q u an d o S anto A gostinho, em suas Confis­
sões, for lem brar de suas am izades de juven tu d e, da intensidade de
suas afeições, do p razer dos dias vividos ju n to s, das conversas, dos fer­
vores e dos ritos, ele se p erg u n tará se tu d o isso não fazia parte, apesar
da aparen te inocência, da carne e dessa “ g lute” que a ela nos liga.6 E n­
tretan to , q u an d o A ristóteles, na É tica a Nicôm aco1, se interroga p ara
4. K .J . DOVER observa um a acentuação dessa reserva no decorrer da Idade Clássica:
Greek popular morality, pp. 206-207.
5. Cf. K. J. DOVER, Homosexualité grecque, pp. 17 e sq.
6. SA IN T -A U G U ST IN , Confessions, IV, cap. 8, 9 e 10.
7. AR1STOTE, Éthique à Nicomaque, III, 10, 1118 a-b (trad. R. - A. G authier e J. - Y.
Joly).
saber exatam ente quais são aqueles que m erecem ser cham ados “ in­
tem péran tes” , sua definição é cuidadosam ente restritiva: fazem parte
da intem perança, d a akolasia, som ente os prazeres do corpo; e, dentre
estes, é necessário excluir os da visão, os d o ouvido ou os do olfato.
N ão é ser in tem p eran te “ ter p razer” (chairein) com as cores, com os
gestos, desenhos, com o tam bém com o teatro ou com a música; podese, sem in tem perança, encantar-se com o perfum e dos frutos, das rosas
e do incenso; e com o diz a Ética a Eudem o,8 não se poderia reprovar
p or intem perança alguém que se concentrasse tã o intensam ente na
contem p lação de um a estátu a ou n a audição de um can to a p o n to de
perder o apetite o u o gosto p ara p raticar o am or, nem alguém que se
deixasse seduzir pelas Sereias. Pois só existe p razer suscetível de akola­
sia lá o n d e existe o to q u e e o contato: com a boca, a língua e a gargan­
ta (p ara os prazeres da alim entação e d a bebida), com o u tras p artes do
corpo (p ara o p razer do sexo). E A ristóteles ainda observa que seria
injusto suspeitar de intem perança certos prazeres que se experim entam
através da superfície do corpo - com o os prazeres n obres que, no giná­
sio, são p ro p o rcio n ad o s pelas m assagens e pelo calor: “ pois p a ra o in­
tem peran te o to c a r n ã o é difundido em to d o o corpo; só concerne a
certas p artes” ,’
U m dos traço s característicos da experiência cristã da “ carne” , e
posteriorm ente a d a “ sexualidade” , será a de que o sujeito é levado
nessas experiências a desconfiar freqüentem ente, e a reconhecer de
longe, as m anifestações de um poder surdo, ágil e temível que é tan to
mais necessário decifrar q u a n to é capaz de se em boscar sob outras
form as que não a dos atos sexuais. U m a tal suspeita não habita a expe­
riência dos aphrodisia. É verdade que na educação e no exercício da
tem perança recom enda-se desconfiar dos sons,' im agens e perfum es.
M as não p o rq u e a im portância que se lhes dá seja a form a m ascarada
de um desejo, cuja essência consistiria em ser sexual; e sim porque exis­
tem m úsicas que p o r seus ritm os são capazes de enfraquecer a alm a,
porque existem espetáculos que são capazes de to car a alm a com o um
veneno e p o rq u e tal perfum e, tal im agem , são de m olde a evocar a
S. Id. Éthique à Eudeme, III, 2, 8-9, 1230 b.
9. Éthique à Nicomaque, loc. cit. Cf. tam bém PSEU D O -A R IST O T E, Problèmes,
XXVIII, 2. N ão obstante, é preciso notar a im portância atribuída, por m uitos textos
gregos, ao olhar e aos olhos na gênese do desejo ou do amor: não é, entretanto, porque o
prazer do olhar seja nele mesmo intemperante; mas sim porque ele constitui uma abertu­
ra por onde a alm a é atingida. Cf. a esse respeito X É N O PH O N , Mémorables, I, 3, 12,
13. Q uanto ao beijo, apesar do perigo que ele com porta (Cf. X É N O PH O N , ibid.) foi al­
tam ente valorizado com o prazer físico e com unicação da alma. N a verdade, teria c{ue fa­
zer-se lodo um estudo histórico sobre o “ corpo de prazer” e suas transform ações.
40
»
"lem b ran ça da coisa desejada” ."’ E q u an d o se rir dos filósofos que
pretendem am ar nos rapazes som ente as belas alm as, não se suspeitará
que eles alim entem sentim entos p ertu rb ad o res dos quais talvez n ão te­
nham consciência, mas sim plesm ente que eles desejam um face a face
a fim de intro d u zir a m ão sob a tú n ica do bem am ado."
Desses atos, quais a form a e a variedade? A história natu ral for­
nece algum as descrições, pelo m enos q u an d o se tra ta dos anim ais: o
acasalam ento, observa A ristóteles, não é o m esm o em todos e não é
feito da m esm a m an eira.12 E na p arte do livro IV da H istória dos A n i­
mais co n sagrada especificam ente aos vivíparos, ele descreve as diferen­
tes form as de copulação que se p ode observar: elas'variam segundo a
form a e a localização dos órgãos, a posição que tom am os parceiros, a
d u ração do ato; m as ele evoca, igualm ente, os tipos de co m p o rtam en ­
tos que m arcam as estações do am or; os javalis se p rep aran d o para a
b a ta lh a ," os elefantes, cujo fu ro r chega até a destruir a casa de seu
m estre, ou os garanhões que reúnem suas fêmeas traçan d o em to rn o
delas um grande círculo antes de irem se lançar sobre os rivais.14 Q u a n ­
to ao gênero hu m an o , m esm o que as descrições dos órgãos e de seu
funcionam ento sejam d etalh ad as, os co m p o rtam entos sexuais, com
suas possíveis variantes, são apenas evocados. O que não quer dizer,
contud o , que haja em to rn o da atividade sexual dos hum anos, na m e­
dicina, na filosofia ou na m oral gregas, um a zona de silêncio rigoroso.
O fato não é que se evite falar desses atos de prazer: mas, q u ando se re­
flete a respeito deles, o que coloca p ro b lem a não é a form a que tom am
m as sim a atividade que m anifestam . Sua dinâm ica m uito m ais do que
sua m orfologia.
Essa dinâm ica é definida pelo m ovim ento que liga entre si os
aphrodisia, pelo prazer que lhes é associado e pelo desejo que susci­
tam . A atra ç ã o exercida pelo p razer e a força do desejo que tende para
ele constituem um a unidade sólida com o p ró p rio ato dos aphrodisia.
Será, em seguida, um dos traços fundam entais da ética da carne e da
concepção da sexualidade, a dissociação - pelo m enos parcial - desse
conjunto. Essa dissociação se m arcará, de um lado, por um a certa “ eli-
10. Q uanto aos perigos da música. Cf. PLA TO N , République, III, 398 e (as harm onias
lidias são perniciosas até mesmo para as m ulheres, a fortiori para os homens). N o que
diz respeito ao papel m nem ónico do odor e da imagem visual, Cf. A R ISTO TE, Éthique
à Nicomaque, III, 10, 1118 a.
11. Encontrar-se-á bem mais tarde um a censura desse tipo nos Amours atribuídos a
LU C IE N , 53.
12. ARISTO TË, Histoires des animaux, V, 2, 539
b.
13. Ibid., VI, 18, 571 b.
14. Ibid., VI, 18, 571 b e 572 b.
41
são” do prazer (desvalorização m oral através da injunção dada na
pastoral cristã a n ã o buscar a volúpia com o fim da p rática sexual; des­
valorização teórica que se trad u z pela extrem a dificuldade em dar lu­
gar ao prazer na concepção da sexualidade); ela se m arcará, igualm en­
te, p o r um a pro b lem atização cada vez m ais intensa do desejo (no qual
se verá a m arca o rig in ária da natu reza decaída o u da estru tu ra pró p ria
ao ser h um ano). N a experiência dos aphrodisia, ç,m com pensação, ato,
desejo e p razer form am um conju n to cujos elem entos, é verdade, p o ­
dem ser distinguidos m as que são fortem ente associados uns aos o u ­
tros. E é precisam ente seu vínculo estreito que constitui um dos carac­
teres essenciais-dessa form a de atividade. Q uis a n atureza (por razões
que serão vistas m ais adiante) que a realização d o a to seja associada a
um prazer; e é esse p razer que suscita a epithum ia, o desejo, m ovim en­
to dirigido p o r n atu reza p a ra o que “ d á p razer” , em função do princí­
pio lem brado p o r A ristóteles: o desejo é sem pre “ desejo da coisa ag ra­
dável” (he gar epithumia tou hêdeos estiri).'5 Ê verdade - e P latão insiste
freqüentem ente so b re isso - que n ão p oderia haver desejo sem p riva­
ção, sem falta d a coisa desejada e sem m escla, p o rta n to , de um certo
sofrim ento; m as o apetite, explica ele no Filebo, só pode ser provocado
pela representação, a im agem o u a lem brança d a coisa que d á prazer;
ele conclui daí que n ã o p oderia haver desejo a n ã o ser na alm a, pois se
o corpo é atin g id o pela privação, é a alm a e som ente ela que, através
da lem brança, p ode to rn a r presente a coisa a ser desejada e, p o rta n to ,
suscitar a epithum ia.'’’ O que n a ordem d a co n d u ta sexual parece, as­
sim, constifuir p a ra os gregos objeto da reflexão m oral não é, p o rta n ­
to, exafam ente o p ró p rio a to (visto sob as suas diferentes m odalida­
des), nem o desejo (considerado segundo .sua origem ou direção), nem
m esm o o p razer (avaliado segundo os diferentes objetos ou práticas
que podem provocá-lo); é sobretudo a dinâm ica que une os três de m a­
neira circular (o desejo que leva ao ato, o ato que é ligado ao prazer, e
o prazer que suscita o desejo). A questão ética colocada não é; quais
desejos? q uais atos? quais prazeres? M as; com que força se é levado
“ pelos prazeres e pelos desejos?” A o ntologia a que se refere essa ética
do co m p o rtam en to sexual não é, pelo m enos em sua form a geral, um a
ontologia da falta e do desejo; não é a de um a n atu reza fixando a n o r­
m a dos atos; m as sim a de um a força que liga en tre si atos, prazeres e
desejos. É essa relação dinâm ica que constitui o que se poderia cham ar
o grão da experiência ética dos aphrodisia.'1
15. A RISTO TE, Parties des animaux, 660 b.
16. PLATON, Philèbe, 44 e sq.
17. É preciso observar a freqüência das expressões que ligam fortem ente prazeres e de­
sejos. e que m ostram que o que está em jogo na m oral dos aphrodisia é o controle do
42
Essa dinâm ica é analisada segundo d uas grandes variáveis. U m a é
quantitativ a; ela diz respeito ao grau de atividade traduzida no núm e­
ro e na freqüência dos atos. O que distingue os hom ens entre si, p a ra a
m edicina com o p ara a m oral, não é ta n to o tipo de objeto p ara o qual
eles são o rientados, nem o m o d o de p rá tic a sexual que preferem ; é, an ­
tes de m ais nad a, a intensidade dessa prática. A divisão está en tre o
m enos e o mais: m o deração ou incontinência. Q uando se traça o perfil
de um a personagem é ra ro que se faça valer sua preferência p o r tal ou
tal form a de p razer sexual;18 em com pensação é sem pre im p o rtan te
para a sua caracterização m oral m arcar se, em sua prática com as m u­
lheres ou com os rapazes, ele soube d ar provas de com edim ento, com o
Agésilas, q u e levava a tem perança ao p o n to de recusar o beijo do j o ­
vem que am av a,19 ou se ele se entregava, com o A lcebíades e A rcésilas,
ao apetite dos prazeres que se pode ter com am bos os sexos.20 Podem os
n o tar a esse respeito a célebre passagem do 1’ livro das Leis: é verdade
que ali Platão o põe m uito claram ente a relação “ conform e à n a tu re ­
za ” , q u e liga o hom em e a m u lh er p a ra os fins da geração, e a relação
“ an tin a tu ra l" do m acho com o m acho, da fêmea com a fêm ea.21 E n­
tretan to , essa oposição, p o r m ais que seja m arcad a em term os de n a tu ­
reza, é referida p o r P latão à d istinção m ais fundam ental entre a co n ti­
nência e a incontinência: as p ráticas que contravêm à natureza é ao
princípio da p ro criação n ã o são explicadas com o efeito de um a n a tu ­
reza ano rm al ou de um a form a p articu lar de desejo; elas n ad a m ais são
do que a conseqüência d o desm esurado: “ é a intem perança no p razer”
(akrateia hêdonês) que está n a sua origem .22 E q u a n d o P latão no Timeu
expõe que a luxúria deve ser to m a d a com o efeito, n ão de um a m á von-
conjunto dinâm ico constituído pelo desejo e pelo prazer ligados ao ato. A dupla epithumiai-hedunai encontra-se correntem ente em PLATÃO: Gorgias, 484 d, 491 d; Banquet
196 c; Phèdre, 237 d; République, IV, 430 e, 431 c e d; IX, 571 b; Lois, 1 ,647 e; IV, 714 a;
VI, 782 e; VII, 802 e; 864 b, X, 8 886 b, etc. Cf. igualm ente A RISTO TE, Éthique à Nicomaque, VII, 4, I 148 a. São tam bém freqüentes as expressões que evocam o prazer com o
força que persuade, provoca, triunfa; assim em X É N O PH O N , Mémorables, 1 ,2 ,2 3 ,1,4,
14; I, 8; IV, 5, 3, etc.
18. Acontece de se mencionar, por necessidade da narrativa, o gosto particular de um
homem pelos rapazes. Assim faz X É N O PH O N no Anabase a propósito de um certo
Episthenes (VII, 4). Mas quando ele traça o perfil negativo de M enon (II, 6), não o cen­
sura por esse tipo de gosto, m as sim por fazer m au uso de tais prazeres: obter, dem asia­
do jovem , um com ando; ou am ar, ainda imberbe, um rapaz velho demais.
19. X É N O PH O N , Agésilas, V.
20. Sobre ARCÉSILA S, Cf, D IO G E N E S LA ERCE, Vie des philosophes, IV, 6. Plutarco notará assim que Hipérides era arrebatado pelos aphrodisia. Vie de dix orateurs,
849 d.
21. PLATON , Lois, 1, 636 c.
22. Encontrar-se-á igualmente em D IO N D E PRU SA um a explicação sobre o surgi­
m ento do am or pelos rapazes por um excesso de intem perança (Discours, VII, 150).
43
tade da alm a, m as de u m a doença do corpo, esse m al é descrito segun­
do um a g ran d e p ato lo g ia do excesso: ao invés de perm anecer encerra­
do na m edula e em sua a rm ad u ra óssea, o esperm a tran sb o rd aria e co­
m eçaria a escorrer em to d o o corpo; este p assaria a ser igual a um a á r­
vore cuja potên cia de vegetação ultrapassasse q u alquer m edida: assim
tam bém o indivíduo, d u ran te um a gran d e p arte de sua existência, en­
louqueceria pelo “ excesso de prazeres e de dores” .23 Q ue a im oralidade
nos prazeres do sexo seja sem pre da ordem do exagero, do a-m ais e do
excesso, é u m a idéia que se en co n tra no 39 livro d a Ética a Nicômaco\
para os desejos n a tu ra is que são com uns a to d o s, as únicas faltas que
se possa com eter, explica A ristóteles, são da ordem da quantidade:
elas concernem ao “ m ais” (to pleion)\ ao passo que o desejo n atu ral
consiste som ente em satisfazer a necessidade, “ beber e com er não im ­
p o rta o quê até ficar su p ersatu rad o é u ltrap assar em q u antidade (tõi
plêthêi) o q u e a n atu reza dem an d a” . É verdade que A ristóteles tam ­
bém adm ite os prazeres específicos aos indivíduos; acontece de se co­
m eter diferentes tipos de faltas, seja que n ão se ten ha p razer “ lá onde
se deveria” , seja o fato de se co m p o rtar “ com o a m u ltid ão ” , ou ainda
que não se te n h a prazer “ com o convém ” . E n tretan to , acrescenta A ris­
tóteles, “ os in tem perantes excedem (huperballousi) de to d as essas for­
mas, quer tenham prazer com satisfações que devam ser evitadas,
quer, se esses atos são perm itidos, tenham m ais prazer do que a m aior
parte das pessoas” . O que constitui a intem perança é o excesso nesse
cam po, “ e isso é algo reprovável” .24 Parece, assim , que a prim eira li­
nha de divisão que terá sido m arcada, no cam po do com portam ento
sexual, pela apreciação m oral, n ão foi traçad a a p a rtir da natureza do
ato, com suas v ariantes possíveis, m as a p a rtir da atividade e de suas
gradações qu an titativ as.
A p rática d os prazeres diz respeito, igualm ente, a um a o u tra va­
riável que se p o d eria ch am ar de “ papel” ou de “ p olarid ad e” . Ao ter­
m o aphrodisia corresp o n d e o verbo aphrodisiazein; ele se refere à ativi­
dade sexual em geral: assim , fala-se do m om ento em que os anim ais
chegam à idade em que são capazes de aphrodisiazein;25 tam bém desig­
na a realização de um ato sexual qualquer: assim , A ntístenes evoca em
23. Platon, Timée, 86 c-e.
24. A RISTO TE, Éthique à Nicomaque, III, 11, 1 118 b. E ntretanto, é preciso observar
que Aristóteles se preocupa, em m uitas passagens, com a questão dos “ prazeres vergo­
nhosos" que alguns podem procurar (Éthique à Nicomaque, VII, 5, 1 148 b; X, 3, I 173
b). Sobre a questão do desejo, de seu objeto natural e de suas variações cf. PLATON,
Republique, IV, 437 d-c.
25. A RISTO TE, Histoire des animaux, VIII, 1, 581 a. PLATON , République, IV, 426,
a-b, fala dos doentes que em vez de seguirem um regime continuam a comer, beber e
aphrodisiazein.
44
X enofonte a vontade que ele tem , às vezes, de aphrodisiazein.26 M as o
verbo pode, igualm ente, ser em pregado com seu valor ativo; nesse ca­
so, ele se refere particu larm en te ao papel dito “ m asculino” na relação
sexual, e à função “ ativa” definida pela penetração. E, inversam ente,
pode-se em pregá-lo em sua form a passiva; nesse caso, ele designa o
o u tro papel na conjunção sexual: o papel “ passivo” do parceiroobjelo. Esse papel é o que a natureza reservou às m ulheres - A ristó te­
les fala da idade em que as jovens tornam -se suscetíveis de aphrodisiasihcnai: ' é tam bém aquele que pode ser im posto pela violência a al­
guém que se en co n tra reduzido a objeto do prazer do o u tro ;2* é igual­
m ente o pap t! aceito pelo rapaz ou pelo hom em que se deixa penetrar
por seu p arceiro - o a u to r de Problemas se interroga, dessa m aneira,
sobre a razão pela qual certos hom ens obtêm prazer no aphrodisiazexiluii.-'
T em os, sem dúvida, razão em dizer que não existe no vocabulário
grego su bstantivo que agrupe n u m a noção com um o que pode haver
de específico na sexualidade m asculina e na sexualidade fem inina.30
M as é preciso sub lin h ar que, na p rática dos prazeres sexuais, distin­
gue-se claram ente dois papéis e dois pólos, com o tam bém podem ser
distinguidos na função generativa; são dois valores de posição - a do
sujeito e a do objeto, a do agente e a do paciente: com o diz A ristóteles,
“ a fêm ea en q u an to fêmea é de fato um elem ento passivo, e o m acho,
e n q u an to m acho, um elem ento ativ o ” .11 E nq u an to que a experiência
da “ carn e” será considerada com o um a experiência com um aos h o ­
m ens e às m ulheres, m esm o se não to m a a m esm a form a em am bos, e
e n q u an to que a “ sexualidade” será m arcada pela cesura entre sexuali­
dade m asculina e fem inina, os aphrodisia são pensados com o um a a ti­
vidade im plicando dois atores, cad a qual com seu papel e f u n ç ã o ^
aquele que exerce a atividade e aquele sobre o qual ela se exerce.
D esse p o n to de vista e nessa ética (a qual é sem pre necessário
lem brar que é um a m oral de hom em , feita pelos e p a ra os hom ens),
pode-se dizer que a linha de d em arcação passa, principalm ente, entre
os hom ens e as m ulheres - p o r causa m esm o d a forte diferenciação en­
tre o m undo dos hom ens e o das m ulheres em m uitas sociedades a n ti­
gas. M as, de m aneira ain d a m ais geral, ela passa sobretudo entre o que
26. X Ê N Ó PH O N , Banquet, IV, 38. PSEU D O -A RISTO TE, Sur la stérilité, V, 636 b.
27. ARISTO TE, Histoire des animaux, IX, 5, 637 a; VII, 1, 581 b
28. X É N O PH O N , Hiéron, III, 4.
29. PSEU D O -A RISTO TE, Problèmes, IV, 26.
30. P. M A N O L I, “ Fisiologia e patologia del feminile negli scritti hippocratici” , Hippocratica, 1980, p. 393 sq.
31. ARISTO TE, De la génération des animaux, I, 21, 729 b.
45
se poderia ch am ar os “ ato res ativos” no cenário dos prazeres e os “ atores passivos” : de um lado aqueles que são sujeitos d a atividade se­
xual (e que devem cu id ar de exercê-la de m aneira com edida e o p o rtu ­
na); e de o u tro aqueles que são os parceiros-objetos, os figurantes,
sobre os quais e com os quais ela se exerce. O s prim eiros, evidentem en­
te, são os hom ens, m ais precisam ente, os hom ens ad u lto s e livres; os
segundos, bem entendido, com preendem as m ulheres, m as elas aí figu­
ram apenas com o um dos elem entos de um co n ju n to m ais am plo, cuja
referência se faz às vezes p a ra designar os objetos de prazer possível:
“ as m ulheres, os rapazes, os escravos” . N o texto conhecido com o o ju ­
ram ento de H ipocrates, o médico se com p ro m ete a se abster, em q u al­
quer casa em que entre, de erga aphrodisia, com q u alquer pessoa, m u­
lher, hom em livre ou escravo.” M anter-se em seu papel ou ab andonálo, ser sujeito da atividade o u dela ser objeto, passar para o lado d a­
queles que a sofrem q u an d o se é um hom em , ou perm anecer no lado
daqueles que a exercem , eis a segunda grande variável que, ju n tam en te
com a da “ q u an tid ad e de atividade” , alim enta a apreciação m oral. O
excesso e a passividade são, p a ra um hom em , as duas form as princi­
pais de im oralidade na prática dos aphrodisia.
2.
Se a atividade sexual deve ser assim objeto de diferenciação e de
apreciação m oral, a razão disso não é que o a to sexual seja um mal em
si mesm o; tam bém n ã o é p orque trag a consigo a m arca de um a deca­
dência prim eira. M esm o q u an d o a form a atual da relação sexual e do
am or é referida, com o é o casos p o r A ristófanes no Banquete, a algum
dram a o rig in ário - orgulho dos hum anos e castigo dos deuses - , nem o
ato nem o p razer são p o r isso considerados m aus; ao co n trário , eles
tendem à restau ração daquilo que era p a ra os hum anos o m odo de ser
m ais co m p leto ." De form a geral, a atividade sexual é percebida com o
natural (n atu ral e indispensável) p osto que é p o r meio dela que os se­
res vivos podem se reproduzir, que a espécie em seu co njunto escapa à
m o rte '4 e que as cidades, as fam ílias, os nom es e os cultos podem se
p rolongar m uito além dos indivíduos destinados a desaparecer. É en­
tre os desejos m ais natu rais e necessários que Platão classifica aqueles
que nos levam aos a p h r o d i s i a e os prazeres que estes nos p ro p o rcio ­
nam têm com o causa, no dizer de A ristóteles, coisas necessárias que
32. H IPPO C R A TE , Le serment, in Oeuvres, ed. Loeb, I, p. 300.
33. PLATON , Banquet, 189 d-193 d. Sobre um tem po mítico sem geração sexual, cf.
Le Politique, 271 a-272 b.
34. A R ISTO TE, De la génération des animaux, II, 1,731 b; cf. De l'âme, II, 4 ,415 a-b.
35. PLATON , République, VIII, 559 c.
46
interessam ao corp o e à vida do corpo em geral.36 Em sum a, a ativ id a­
de sexual, tão pro fu n d am en te a n co rad a na natureza e de m aneira tão
natu ral, não poderia ser - e R ufus de Éfeso o lem brará - considerada
m á .17 E nisso, evidentem ente, a experiência m oral dos aphrodisia é ra ­
dicalm ente diferente d aquela que virá a ser a d a carne.
E n tretan to , p o r m ais n atu ral e m esm o necessária que possa ser,
ela não é m enos objeto de um cuid ad o m oral; ela pede um a delim ita­
ção que perm ita fixar até que p o n to , e em que m edida, é conveniente
praticá-la. E n tretan to , se ela pode ter algo a ver com o bem e com o
m al, não é em d etrim ento de sua natu ralid ad e, ou po rq u e esta teria
sido alterada; é em razão m esm o da m aneira pela qual a n atureza a
dispôs. C om efeito, dois traço s m arcam o prazer ao qual ela está asso­
ciada. Prim eiro, seu caráter inferior; sem esquecer, entretan to , que
para A ristipo e os cirenaicos “ os prazeres não diferem entre si” ,”' caracteriza-se em geral o prazer sexual com o sendo, não p o rta d o r de m a­
les, m as ontologicam ente ou qualitativ am en te inferior: porque com um
aos anim ais e aos hom ens (não con stitu in d o um a m arca específica des­
tes últim os); p orque m isturados à privação e ao sofrim ento (e nisso
eles se opõe aos prazeres dados pela visão e a audição); porque depen­
dente do corpo e de suas necessidades, e p orque destinado a restabele­
cer o organism o em seu estado a n terio r à necessidade.1'' M as p o r o u tro
lado esse prazer condicionado, subordinado e inferior é um prazer de
extrem a vivacidade; com o explica P latão no início das Leis, se a n a tu ­
reza fez de sorte que os hom ens e as m ulheres fossem atraídos uns pe­
los outros, foi p ara que a p ro criação fosse possível e, a sobrevivência
da espécie, assegurada.4" O ra, esse objetivo é tão im portante, e é tão es­
sencial que os h um anos se dêem um a descendência, que a n atureza
vinculou ao a to de p ro criação um p razer extrem am ente intenso; do
m esm o m odo que a necessidade de se alim entar e de assegurar, assim ,
sua sobrevivência individual, é lem brada aos anim ais pelo prazer n a tu ­
ral ligado ao alim ento e à bebida, assim tam bém a necessidade de en­
gendrar e de deixar atrás de si um a prog en itu ra lhes é incessantem ente
lem brada pelo prazer e pelo desejo que são associados à conjunção dos
sexos. As Leis evocam , assim, a existência desses três grandes apetites
fundam entais que dizem respeito ao alim ento, à bebida e à geração:
A
36. ARISTO TE, Éthique à Nicomaque, VII, 4, 2, 1 147 b.
37. R U F U S D’ÉPHESE, Oeuvres, ed. Darem berg, p. 318.
38. D IO G È N E LA ERCE, Vie des philosophes. II, 8.
39. Sobre a com unidade desse tipo de prazer com os animais, cf. X É N O PH O N , Hiéron, VII; sobre o caráter mesclado do prazer físico, cf. PLATON , République, IX, 583 b
e sq; Philèbe, 44 e sq; sobre o prazer que acom panha a restauração do estado anterior do
corpo, PLATON , Timée, 64 d, 65 a; ARISTO TE, Éthique à Nicomaque, VII, 4, 1 147 b.
40. PLATON, Lois, I, 636 c.
47
■
todos três são fortes, im periosos, ardentes, m as sobretudo o terceiro,
apesar de ser o “ últim o a d esp o n tar” , é “ o m ais vivo de nossos am o­
res” / 1A o seu interlocutor da República, Sócrates perguntava se ele co­
nhecia “ prazer m aior e mais vivo do que o prazer do am o r” .42
É ju stam en te essa vivacidade n atu ral do prazer, com a atração
que ele exerce sobre o desejo, que leva a atividade sexual a tran sb o rd ar
dos limites fixados pela natureza q u an d o ela fez do prazer dos aphro­
disia um prazer inferior, su bordinado e condicionado. Por causa dessa
vivacidade se é levado a inverter a hierarquia, a colocar esses apetites e
sua satisfação em prim eiro lugar, a lhes d ar pod er absoluto sobre a al­
ma. T am bém por causa dela se é levado a co n tin u ar além da satisfação
das necessidades, e a buscar o prazer mesm o após a restauração do
corpo. T endência à revolta e à sublevação, eis a virtualidade “ estasiástica” do ap etite sexual; tendência à superação, ao excesso, eis a virtude
“ hiperbólica” .4' A natureza colocou no ser h um ano essa força necessá­
ria e temível sem pre p ro n ta a ir além d o objetivo que lhe foi fixado.
Vemos por que, nessas condições, a atividade sexual exige um a discri­
m inação m oral, a qual já vim os que era m uito m ais dinâm ica do que
m orfológica. Se é preciso, com o diz Platão, im por-lhe os três m ais for­
tes freios - o tem or, a lei e o discurso verdadeiro44 - se é preciso, segun­
do A ristóteles, que a faculdade de desejar obedeça à razão com o a
criança aos m and am en to s de seu m estre,4' se o p ró p rio A ristipo queria
que, sem deixar de “ servir-se” dos prazeres, se velasse a não se deixar
levar p o r eles,4" a razão não é que a atividade sexual seja um mal; tam ­
bém n ão é p o rq u e ela arriscaria desviar-se em relação a um m odelo ca­
nônico; mas sim p orque ela depende de um a força, de um a energeia
que é p o r si m esm a levada ao excesso. N a d o u trin a cristã da carne, a
força excessiva d o prazer en co n tra seu princípio n a queda e na falta
que m arca desde en tão a n atureza h u m ana. P ara o pensam ento grego
clássico essa força é p o r n atureza virtualm ente excessiva e a questão
m oral consistirá em saber de que m aneira enfren tar essa força, de que
m aneira dom in á-la e g aran tir a econom ia conveniente dessa m esma
força.
C om o a atividade sexual aparece sob a form a de um jogo de for-
41. Ibid.. VI, 783 a-b.
42. PLATON , République, III, 403 a.
43. Sobre a hipérbole (huperbole, huperballein) dos prazeres, ver, por exemplo, PLA­
TO N , République, 402 e; Tintée, 86 b; A RISTO TE, Éthique à Nicomaque, III, II, 1 118b;
VII, 4, I 148 a; VU, 7. 1 150 a; VII, 7, 1 150 b. Sobre a revolta (epanastasis, stasiazein,
PLATON, République, IV, 442 d; IV, 444 b; IX, 586 e; Phèdre, 237 d.
44. PLATON , Lois, 783 a.
45. A RISTO TE, Éthique à Nicomaque, III, 12, 1 119 b.
46. D IO G E N E LAF.RCE, Vie des philosophes, VI, 8.
48
ças estabelecidas pela natureza, mas suscetível de abuso, isto a aproxi­
ma do alimento e dos problem as morais que ele pode colocar. Essa as­
sociação entre a moral do sexo e a da mesa é um fato constante na cul­
tura antiga. Dela encontrar-se-ão mil exemplos. Q uando no primeiro
livro dos M emoráveis Xenofonte quer m ostrar o quanto Sócrates, por
seu exemplo e seus propósitos, era útil a seus discípulos, ele expõe os
preceitos e a conduta de seu mestre “ sobre o beber, o comer e os p raze­
res do a m o r 'V 7Os interlocutores da República, q uan do tratam da ed u­
cação dos guardiães, concordam que a temperança, a sophrosunê, exi­
ge o triplo dom ínio dos prazeres do vinho, do am or e da mesa (potoi,
aphrodisia, edõdai).4* D o mesmo m odo Aristóteles: na Ética a Nicômaco, os três exemplos que ele dá de “ prazeres com uns" são os da com i­
da, da bebida e, para os jcvens e os homens na força da idade, as volúpias da cama;4'' nessas três formas de prazer ele reconhece o mesmo
tipo de perigo, o do excesso que vai além da necessidade; ele chega até
a encontrar um princípio fisiológico com um , já que encara uns e o u ­
tros como prazeres de contato e de toque (alimento e bebida só prov o­
cam, segundo ele, o prazer que lhes é próprio, q uando entram em c o n ­
tato com a língua e, sobretudo, a garganta).5" Q uand o o médico Erixímaco toma a palavra no Banquete, reivindica para sua arte a capacida­
de de dar conselhos sobre a m aneira pela qual é necessário fazer uso
dos prazeres da n.^sa e da cama; segundo ele, são os médicos que de­
vem dizer como ter prazer com a boa mesa sem ficar doente; são eles
também que devem prescrever para aqueles que praticam o a m o r físi­
co - “ o Pandém ico” - com o ob ter o gozo sem que isso resulte num
de sregram ento.'1
Sem dúvida, seria interessante seguir a longa história das relações
entre moral alimentar e moral sexual através das doutrinas, com o ta m ­
bém dos ritos religiosos ou das regras dietéticas; serja necessário ver de
que maneira pôde-se operar, no decorrer do tempo, o descolamento
entre o jogo das prescrições alimentares e o da moral sexual: a evolu­
ção de sua importância respectiva (com o m omento, sem dúvida bem
tardio, em que o problema da conduta sexual tornou-se mais preocu­
pante que o dos c om portam entos alimentares) e a diferenciação p r o ­
gressiva de sua estrutura p rópria (m om ento em que o desejo sexual foi
interrogado em outros termos que não os do apetite alimentar). De
todo modo, na reflexão dos gregos na época clássica, parece claro que
47.
48.
49.
50.
51.
X ÉN O PH O N , Mémorables, 1, 3, 15.
PLATON, République, III, 389 d-e; cf. tam bém IX, 580 e.
ARISTOTE, Éthique à Nicomaque, III, 11, 1 118 b.
Ibid., Ill, 10, 9, 1 118 a.
PLATON, Banquet, 187 e.
49
a problem atização m oral do alim ento, d a bebida e da atividade sexual,
tenha sido feita de m aneira bem sem elhante. As iguarias, os vinhos, as
relações com as m ulheres e com os rapazes constituem um a m atéria ética análoga; eles instauram forças naturais, m as que tendem sem pre a
ser excessivas: e ta n to uns com o os o u tro s colocam a m esm a questão:
com o se p ode e com o convém “ se servir” (chrêsthai) dessa dinâm ica
dos prazeres, dos desejos e dos atos? Q uestão do bom uso. C om o diz
Aristóteles: “ T o d o m undo, em certa m edida, usufrui do prazer da m e­
sa, do vinho e d o am or; m as, nem to d o s o fazem com o convém
(oueh'hös d ei)".-2
52.
50
ARISTO TE, Éthique à Nicomaque, VII, 14, 7, 1 154 a.
2
CHRESIS
D e que m an eira o b te r o p razer "co m o convém ” ? A que princípio
referir-se a fim de m o d erar, lim itar e regular essa atividade? Q u e tip o
de validade reconhecer nesses princípios que possa ju stificar q u e se
lhes ten h a que subm eter-se? O u, em o u tro s term os, qual é o m o d o de
sujeição im plicado nessa p ro b lem atização m o ral d a c o n d u ta sexual?
A reflexão m o ral sob re os aphrodisia tende m uito m enos a estabe­
lecer um código sistem ático que fixaria a form a canônica dos atos se­
xuais, traçaria a fro n teira das interdições, e distribuiria as práticas de
um lado e de o u tro de um a linha de dem arcação, do que a ela b o ra r as
condições e as m oralidades de um “ u so” : o estilo daquilo que os gre­
gos cham avam chrêsis aphrodision, o uso dos prazeres. A expressão
corren te chrêsis aphrodision se refere, de m odo geral, à atividade sexual
(assim se falará dos m om entos do an o o u da idade da vida que são
bons p a ra chrêsthai aphrodisiois).il M as o term o se refere tam bém à
m aneira pela qual um indivíduo dirige sua atividade sexual, sua m a­
neira de se conduzir nessa ordem de coisas, o regim e que ele se perm ite
ou se im põe, as condições em q u e ele realiza os atos sexuais, a im p o r­
tância que ele lhes atrib u i na sua v ida.54 Q uestão, não do que é perm iti-
53. AR1STOTE, Histoire des animaux, VII, 1, 581 b; De la génération des animaux, II,
7, 747 a.
54. PLATON (République, V, 451 c) fala do que deve ser a correta “ posse e prática”
(kiesis te kai chreia) das m ulheres e das crianças; trata-se, portanto, do conjunto das li­
gações e das form as de relação que se pode ter com eles. PO LY PE evoca a chreia aphro­
dision que, com o luxo das vestimentas e do alim ento caracteriza os costumes dos sobe­
ranos hereditários, e provoca o descontentam ento e a revolução (Histoires, VI, 7).
51
do ou proibido dentre os desejos que se experim enta ou os atos que se
com ete, mas questão de prudência, de reflexão, de cálculo na m aneira
pela qual se distribui e se con tro la seus atos. N o uso dos prazeres, em ­
bora seja preciso respeitar as leis e costum es do pais, não ofender aos
deuses e se referir ao que quer a natureza, as regras m orais às quais os
indivíduos se subm etem são m uitos distantes d aquilo que pode consti­
tuir um a sujeição a um código bem definido.55 T rata-se m uito m ais de
um ajustam ento v ariad o e no qual deve-se levar em consideração dife­
rentes elem entos: um que é o da necessidade e daquilo que a natureza
to rnou necessário;* o o u tro , tem poral e ciscunstancial, que é o da
oportun id ad e, e o terceiro que é o do status do p ró p rio indivíduo. A
chrêsis deve se decidir levando em con ta essas diferentes considera­
ções. Pode-se reconhecer, na reflexão sobre o uso dos prazeres, o cui­
dado com um a tripla estratégia: a da necessidade, a do m om ento e a
do status.
1.
A estratégia d a necessidade. É conhecido o gesto escandaloso
de Diógenes: q u an d o tin h a necessidade de satisfazer seu apetite sexual,
ele se satisfazia a si p ró p rio em p raça p ú b lica.56 C om o m uitas das p ro ­
vocações cínicas, esta perm ite duplo entendim ento. D e fato, a provo­
cação está no caráter público da coisa - o que n a G récia era co n tra to ­
dos os hábitos; dava-se, facilm ente, com o razão de n ão se praticar o
am or a n ã o ser d u ran te a noite, a necessidade de ocultar-se aos olh a­
res; e na precau ção a n ão se deixar observar nesse gênero de relações,
via-se o sinal de que a prática dos aphrodisia n ão era algo que honrasse
o que havia de m ais nob re no hom em . É co n tra essa regra de não
publicidade que D iógenes dirige sua crítica “ gestual” ; D iógenes Laércio relata, efetivam ente, que ele tin h a costum e “ de tu d o fazer em
público, as refeições e o am o r” , e que raciocinava assim: “ se não há
mal em com er, tam bém não há em com er em p ú b lico” .57 M as, com
essa aproxim ação com o alim ento, o gesto de D iógenes adquire tam ­
bém o u tra significação: a prática dos aphrodisia, que não pode ser ver­
gonhosa já que é n atu ral, não é n ad a de m ais nem de m enos do que a
satisfação de u m a necessidade; e assim com o o cínico buscava o ali­
55. ARISTO TE (Rhétorique, I, 9) define a tem perança com o o que nos leva a conduzir-nos, no que concerne aos prazeres do corpo, “ com o quer o nomos” . Sobre a noção de
nomos, cf. J. D E R O M ILL Y , L'Idée de loi dans la pensée grecque.
*' N o original: “ necessidade” (besoin) . . . “ necessário” (nécessaire). (N. do T.)
56. D IO G È N E LA ERCE, Vie des philosophes, VI, 2, 46. Ver tam bém D IO N DE
PRU SE, Discours, VI, 17-20, e G A L IE N , Des lieux affectés, VI, 5.
57. D IO G È N E LA E R C E. Vie des philosophes, V I, 2, 69.
52
m ento que pudesse satisfazer o m ais sim plesm ente o seu estôm ago (ele
teria ten tad o com er carne crua), tam bém encontrava na m asturbação
o meio m ais d ireto de acalm ar seu apetite; e até sentia m uito que não
houvesse a possibilidade de d a r satisfação tão sim ples à fom e e à sede:
“ P raza ao céu que bastasse esfregar a barrig a p a ra acalm ar a fom e” .
C om isso D iógenes n a d a m ais fazia do que levar ao extrem o um
dos grandes preceitos da chrêsis aphrodisiõn. Ele reduzia ao m ínim o a
co n du ta que A ntístenes já ex p u n h a no Banquete de X enofonte:
“ Q u an d o sou solicitado, dizia ele, p o r algum desejo am oroso, conten­
to-m e com a prim eira que en co n tro , e as m ulheres a quem me dirijo
me cobrem de carícias, pois ninguém m ais consente em se aproxim ar
delas. E todos esses gozos me parecem tão vivos que me a b an d o n an d o
a cada um deles não desejo o b te r gozos m ais vivos; gostaria até que
fossem m enos vivos, já que alguns deles u ltrapassam os limites do útil” .58 Esse regime de A ntístenes n ã o se afasta m uito, em seu princípio
(m esm o que as conseqüências p ráticas sejam bem diferentes), de vários
preceitos ou exem plos que Sócrates, segundo X enofonte, dava a seus
discípulos. Porque se ele recom endava, àqueles que eram insuficiente­
m ente arm ados co n tra os prazeres do am or, fugir dos belos rapazes e
até m esm ó, se fosse o caso, exilar-se, n ão prescrevia, apesar de tudo,
um a abstenção to tal, definitiva e incondicional; “ a alm a - é assim pelo
m enos que X enofonte apresenta a lição socrática - só aprova esses
prazeres se a necessidade física for urgente e puder ser satisfeita sem
d a n o ” .59
M as nesse uso dos aphrodisia regulado pela necessidade, o objeti­
vo não é o de a n u lar o prazer; trata-se, ao co ntrário, de sustentá-lo e
de sustentá-lo pela necessidade que o desejo suscita; sabe-se m uito
bem que o prazer se em b o ta q u a n d o não oferece satisfação à vivacida­
de de um desejo: “ M eus am igos” , diz a V irtude no discurso de Pródicos relatad o p o r Sócrates, “ gozam do com er e do beber com prazer
(hèdeia. . . apolausis) e sem esforço (apragmõn): porque eles esperam
sentir o desejo” .*0 E num a discussão com E utídem o, Sócrates lem bra
que “ a fome, a sede, o desejo am oroso (aphrodisiõn epithumia), as vigí­
lias são as únicas causas do prazer que se tem em com er, em beber, em
fazer am or, em repousar e em d o rm ir, q u an d o se esperou e se su p o r­
to u essas necessidades até que sua satisfação fosse tão agradável q u an ­
to possível (hõs eni hedista)".6' M as, se é preciso sustentar a sensação
de prazer pelo desejo, n ão se deve, inversam ente, m ultiplicar os dese-
58.
59.
60.
61.
X ÉN O PH O N , Banquet, IV, 38.
X ÉN O PH O N , Mémorables, 1, 3, 14.
Ibid., II, 1, 33.
Ibid., IV, 5, 9.
53
jo s pelo recurso a prazeres q u e n ão estão n a n atu reza; é o cansaço,
com o ain d a é d ito no discurso de Pródicos, e n ã o a ociosidade cultiva­
da que deve d a r von tad e de dorm ir; e se é possível satisfazer os desejos
sexuais q u an d o eles se m anifestam , n ão se deve criar desejos que vão
além das necessidades. A necessidade deve servir de principio diretor
nessa estratégia, a qual, com o se vê, nunca pode to m a r a form a de um a
codificação precisa ou de ú m a lei aplicável a to d o s d a m esm a m aneira
e em to d as as circunstâncias. Ela perm ite um equilíbrio n a dinâm ica
do prazer e d o .desejo: ela o im pede de “ encher-se de ím peto” e de cair
no excesso fixando-lhe, com o limite interno, a satisfação de um a ne­
cessidade: e ela evita que essa força n atu ral e n tre em sedição e usurpe
um lugar que n ão é o seu: p o rq u e ela só aceita o que, necessário ao
corpo, é querido pela n atureza, sem n ad a a mais.
Essa estratégia perm ite conjurar a intem perança qué é, em sum a,
um a con d u ta que não tem sua referência na necessidade. É p o r isso
que ela pode to m a r duas form as co n tra as quais o regime m oral dos
prazeres deve lutar. Existe um a intem perança que se poderia dizer de
“ pleto ra", de “ preenchim ento” 62: ela concede ao corpo to dos os praze­
res possíveis antes m esm o que ele ten h a experim entado a necessidade,
não lhe d an d o tem po de experim entar “ nem fom e, nem sede, nem de^
sejos am orosos, nem vigílias” ab afando, com isso m esm o, qualquer
sensação de prazer. Existe, igualm ente, um a intem perança que se p o ­
deria dizer de “ artifício” e que é a conseqüência da prim eira: ela con­
siste em ir buscar as volúpias na satisfação de desejos extranatureza: é
ela que, “ p ara com er com prazer procu ra cozinheiros, que para beber
com prazer obtém vinhos caros, e que no verão vai atrás da neve” ; é
ela que, p ara e n co n trar novos prazeres nos aphrodisia, se serve de “ h o ­
mens com o se fossem m ulheres” .61 C oncebida assim, a tem perança
não pode to m a r a form a de um a obediência a um sistem a de leis ou a
um a codificação das condutas; ela tam bém n ão pode valer com o um
princípio de an u lação dos prazeres; ela é um a arte, um a prática dos
prazeres que é capaz, ao “ usar” daqueles que são baseados na necessi­
dade, de se lim itar ela própria: “ A tem p eran ça” , diz Sócrates, “ é a úni­
ca que nos faz su p o rta r as necessidades de que falei e é a única, igual­
mente. que nos faz experim entar um prazer digno de m em ória” .6J E
era assim que o p ró p rio Sócrates usava a tem perança na vida cotidia­
na, se acred itarm o s em X enofonte: “ Ele só se alim entava na m edida
em que tinha prazer em com er, e chegava às refeições com um a d is D O -
61
63.
64.
54
Cf. PLATON. Gorgias, 492 a-b, 494 c. 507 e: République, VIII, 561 b.
X ÉN O PH O N , Mémorables, II, I. 30.
//>/</.. IV. 5. 9.
sição tal que o apetite lhe servia de tem pero. T o d a bebida lhe era ag ra­
dável já que ele nunca bebia sem ter sede” .'’'
2.
U m a o u tra estratégia consiste em d eterm inar o m om ento o p o r­
tu n o , o kairos. T rata-se de um dos mais im portantes objetivos e dos
m ais delicados na arte de fazer uso dos prazeres. Platão o lem bra nas
Leis: feliz daquele que, nessa ordem de coisas (quer se trate de um p a r­
ticular ou de um E stado), sabe o que convém fazer, “ quan d o e o tan to
que convém "; aquele, ao co n trário , que age “ sem saber com o (anepistêm onõs)” e “ fora dos m om entos o p o rtu n o s” (ektos ton kairon), este,
tem “ um a vida com pletam ente diferente” .6'’
Deve-se ter em m ente que esse tem a do “ quan do convém ” sem pre
ocupou, p ara os gregos, um lugar im portante, não som ente com o
problem a m oral, m as tam bém com o questão de ciência e de técnica.
Esses saberes práticos que são - segundo um a aproxim ação bem tra d i­
cio n al - a m edicina, o governo e a pilotagem , im plicam , com efeito,
que não se fique restrito a conhecer os princípios gerais m as que se te­
nha capacidade p ara determ in ar o m om ento em que é preciso intervir
e a m aneira precisa de fazê-lo em função das circunstâncias na sua
atualidade. E é ju stam en te um dos aspectos essenciais da virtude de
prudência dar aptidão p ara conduzir com o convém a “ política do m o ­
m en to ” , nos diferentes dom ínios - quer se trate da cidade ou do indiví­
duo, d o corpo ou da alm a - onde im p o rta aproveitar o kairos. N o uso
dos prazeres, tam bém a m oral é um a arte do “ m om ento” .
Esse m om ento pode ser d eterm inado segundo várias escalas. H á a
escala da vida com o um todo; os m édicos pensam que não é bom ini­
ciar a prática desses prazeres q u an d o se é m uito jovem ; eles tam bém
estim am que ela pode ser nociva se for prolo n g ad a até um a idade m ui­
to avançada; ela possui a sua estação na existência: ela é fixada em ge­
ral num período que é caracterizado nãò som ente com o aquele em que
a procriação é possível, m as aquele em que a descendência é sadia,
bem form ada, saudável.67 H á tam bém a escala do ano com as estações:
os regimes dietéticos, com o verem os adiante, atribuem um a grande
65. Ibid.. I, 3, 5.
66. PLATON , Lois, I, 636 d-e. Sobre a noção de kairos e sua im portância na m oral
grega, cf. P. A U B EN Q U E, La prudence chez Arislote, Paris, 1963, p. 95 e sq.
67. Fixava-se uma idade avançada: para Aristóteles, o esperma permanece infecundo
até os vinte e um anos. Porém, a idade que um homem deve atingir para poder esperar
um a bela descendência é ainda mais tardia: “ Após vinte e um anos as mulheres estão em
boas condições para fazer filhos, ao passo que os homens têm ainda que se desenvolver"
(Histoire des animaux, VII, 1, 582 a).
55
im portância à co rrelação entre a atividade sexual e a m udança de
equilíbrio no clim a, entre o quente e o frio, o úm ido e o seco.68 C o n ­
vém, tam bém , escolher o m om ento d u ran te o dia: um a das Questões de
convivas de P lu tarco tra ta rá desse p roblem a p ro p o n d o -lh e um a solu­
ção que parece ter sido tradicional; razões dietéticas com o tam bém a r­
gum entos de decência e m otivos religiosos recom endam preferir a noi­
te: po rq u e é o m om ento m ais favorável p a ra o corpo, o m om ento em
que a so m b ra o cu lta as im agens pouco convenientes, e o que perm ite
intercalar o tem po de um a noite antes das p ráticas religiosas da m anhã
seguinte.69 A escolha d o m om ento - do kairos - deve depender igual­
m ente das o u tras atividades. Se X enofonte cita C iro com o exem plo de
tem perança n ã o é p o rq u e este tivesse renunciado aos prazeres; é p o r­
que ele sabia distribuí-los com o convinha n o curso de sua existência,
não se deixando p o r eles desviar de suas atividades e som ente os per­
m itindo após um tra b a lh o prelim inar que conduzia a entretenim entos
honrosos.™
A im p o rtân cia do “ bom m o m en to ” na ética sexual aparece clara­
m ente num a passagem dos M emoráveis co n sagrada ao incesto. Sócra­
tes coloca sem equívoco que “ a interdição das relações entre um pai e
suas filhas, entre um filho e sua m ãe” constitui um a lei universal e es­
tabelecida pelos deuses: ele vê um a prova disso no fato de que aqueles
que a transgridem recebem um castigo. O ra, esse castigo consiste em
que, apesar das q u alidades intrínsecas que os pais incestuosos podem
ter, sua descendência é mal vinda. E p o r quê? Porque eles desconhece­
ram esse princípio d o “ m o m en to ” e m isturaram fora do tem po o sê­
men de genitores dos quais um é forçosam ente m uito m ais velho do
que o outro : en g en d rar q u an d o n ão se está m ais “ na flor da idade” é
sem pre “ p ro criar em m ás condições” .7' X enofonte ou Sócrates não di­
zem que o incesto seja condenável som ente sob a form a de um “ con­
tra tem p o ” ; m as é de n o tar-se que o m al d o incesto se m anifesta da
m esm a m aneira e pelos m esm os efeitos q u e o desconhecim ento do
tem po.
3.
A arte de usar do prazer deve tam bém se m odular em conside­
ração àquele que a usa e segundo o seu status. O au to r do Eroticos,
atribuíd o a D em óstenes, lem bra-o segundo o Banquete-, q u alquer espí­
rito sensato sabe m uito bem que as relações am orosas de um rapaz
6K.
69.
70.
71.
56
Tudo isto será desenvolvido no capítulo seguinte.
PL U T A R Q U E , Propos de table. III, 6.
X É N O PH O N , Cvropêdie, VIII, I, 32.
X f.N O PH O N , Mémorables, IV, 4, 21-23.
não são “ virtuosas ou desonestas de form a a b so lu ta” , m as que "elas
diferem com pletam ente segundo os interessados” ; p o rta n to , “ não se­
ria razoável seguir a m esm a m áxim a em to d o s os casos” .72
É sem dúvida um traço com um a m uitas sociedades que as regras
de co n d u ta sexual variem segundo a idade, o sexo, a condição dos in­
divíduos, e que obrigações e interdições não sejam im postas a to dos da
m esm a m aneira. M as, p a ra se a te r ao caso da m oral cristã, essa especi­
ficação se faz no q u a d ro de um sistem a global que define, de acordo
com princípios gerais, o valor do ato sexual, e indica sob que condições
ele p o d erá ou n ão ser legítim o, sendo a pessoa casada ou não, ligada
ou não p o r votos, etc.; trata-se aí de um a universalidade m odulada.
Parece que na m oral antiga, salvo alguns preceitos que valem para
to d o m undo, a m oral sexual sem pre faz p arte do m odo de vida, ele
pró p rio d eterm in ad o pelo status que se recebeu e as finalidades que se
escolheu. É ainda o p seudo-D em óstenes d o Eroticos que se dirige a
E pícrato p ara lhe “ d ar conselhos que sirvam p a ra colocar sua co n d u ta
em alta estim a” ; de fato, ele n ã o queria que o jovem tom asse resolu­
ções sobre si m esm o “ que n ão fossem conform es às m elhores o p i­
niões” ; e esses bons conselhos n ã o têm com o função lem brar princí­
pios gerais de co n d u ta m as fazer valer a legítim a diferença entre os cri­
térios m orais: “ alguém que seja de condição o b scura e hum ilde, nós
não o criticam os, m esm o em caso de falta pouco h o n ro sa” ; em tro ca,
se ele for com o o p ró p rio E p ícrato , que “ atingiu a notoriedade, a m e­
nor negligência sobre um p o n to que interessa à h o nra cobre-o de ver­
go n h a” .73 U m p rincípio g eralm ente adm itido é o de que q u a n to m ais
se for visado, m ais se tiver ou se quiser ter au to rid ad e sobre os ou tro s,
m ais se buscar fazer de sua vida um a o b ra resplandecente, cuja rep u ­
tação se estenderá longe e p o r m u ito tem po, m ais será preciso se im ­
por, p o r escolha e vontade, p rincípios rigorosos de co n d u ta sexual. Tal
era o conselho d a d o p o r Sim ônides a H ieron a p ro p ó sito “ do beber,
do com er, do sono, do a m o r” : esses “ gozos são com uns a to d o s os ani­
m ais in d istin tam en te” , ao p asso que o am o r pela h o n ra e o lo uvor é
p ró p rio aos h um anos; e é esse am o r que perm ite su p o rta r os perigos
com o as privações.74 E tal era tam b ém a m aneira pela qual Agésilas se
conduzia, sem pre segundo X enofonte, no que concerne aos prazeres
“ pelos quais m uitos hom ens se deixavam d o m in a r” ; ele estim ava, de
fato, que “ um chefe deve se d istinguir dos p articulares, n ão pela lassi­
dão m as sim pela resistência” .75
72.
73.
74.
75.
PLATON , Banquei, 180 c - 181 a; 183 d. PSEU D O -D EM O ST H È N E , Eroticos 4
Ibid.
X É N O PH O N , Hiéron, VIL
Id., Agésilas, V.
57
A tem perança é representada com grande regularidade entre as
qualidades que pertencem - ou que pelo m enos deveriam pertencer não a todos e a q u alq u er um, m as, de form a privilegiada, àqueles que
têm posição, status e responsabilidade na cidade. Q u an d o o Sócrates
dos M emoráveis tra ç a p ara C ritó b u lo o perfil do hom em de bem cuja
am izade é útil buscar, ele situa a tem perança no q u ad ro das qualidades
que caracterizam um hom em socialm ente estim ável: estar p ro n to a
prestar serviço a um am igo, estar disposto a retrib u ir os benefícios re­
cebidos, ser aco m o d atício nos negócios.76 Sócrates, sem pre segundo
X enofonte, m o stra a seu discípulo A ristipo - aquele que “ levava o des­
regram ento ao excesso” - as vantagens da tem perança, colocando-lhe
a seguinte questão: se tivesse que form ar dois alunos, um que levasse
um a vida q u alq u er e o o u tro que fosse d estinado a co m andar, para
qual dos dois ele ensinaria a ser “ m estre d e seus desejos am orosos” , a
fim de que esses desejos n ão o im pedissem de fazer o que teria a fa­
zer? " N ós preferim os, dizem em o u tra p arte os M emoráveis, ter escra­
vos que não são intem perantes; e com m ais razão ainda, se quisésse­
mos escolher um chefe, “ iríam os escolher aquele que saberíam os es­
cravo de seu ventre, do vinho, dos prazeres do am or, d a lassidão e do
sono?'' " É verdade que Platão quer d ar ao E stado inteiro a virtude da
tem perança; m as ele n ão entende com isso que to d o s serão igualm ente
tem perantes; a sõphrosuriê caracterizará o E stad o onde aqueles que de­
vem ser dirigidos obedecerão e onde aqueles que devem co m an d ar co­
m an d arão efetivam ente: encontrar-Se-á, p o rta n to , um a m ultidão “ de
desejos, de prazeres e de dores” do lado d as crianças, das m ulheres,
dos escravos, assim com o do lado da m assa de gente sem valor. “ M as
os desejos sim ples e m o derados que, sensíveis ao raciocínio, se deixam
levar pela inteligência e pela opinião ju s ta ” , só serão encontrados
“ num pequeno núm ero, naqueles que acrescentam , ao natural m ais
belo, a m ais bela ed u cação ” . N o E stado tem p erante, as paixões da
m ultidão viciosa são d o m inadas pelas “ paixões e pela inteligência de
um a m inoria v irtu o sa” .79
E stam os bem longe de um a form a de au sterid ade que tenda a su­
jeita r todos os indivíduos da m esm a form a, os m ais orgulhosos com o
os m ais hum ildes, sob um a lei universal, da qual apenas a aplicação
poderia ser m o d u lad a pela instauração de um a casuística. A o c o n trá ­
rio, tud o aqui é q u estão de ajustam ento, de circunstância, de posição
pessoal. As poucas g randes leis com uns - da cidade, d a religião ou da
76.
77.
7X.
79.
58
X É N O PH O N , Mémorables, 11, 6, 1-5.
Ibid., II. I, 1-4.
Ibid., I, 5, I.
PLATON, République, IV, 431, c-d.
natureza - perm anecem presentes, m as com o se elas desenhassem ao
longe um círculo bem largo no in terio r d o qual o pensam ento prático
deve definir o que convém fazer. E p a ra isso ela não tem necessidade
de algo com o um texto que faça a lei, m as de um a lêchnè ou de um a
" p rá tic a " , de um savoir-Jaire que, levando em conta os princípios ge­
rais, guie a ação no seu p ró p rio m om ento, de acordo com o contexto e
em função de seus p ró p rio s fins. P o rtan to , n ã o é universalizando a re­
gra de sua ação que, nessa form a de m oral, o indivíduo se constitui
com o sujeito ético; é, ao c o n trá rio , p o r m eio de um a atitude e de um a
p ro cu ra que individualizam sua ação, que m odulam e que até podem
d ar um brilho singular pela estru tu ra racional e refletida que lhe confe­
re.
59
3
ENK. RATEIA
O põe-se, freqüentem ente, a interioridade da m oral cristã à exte­
rioridade de um a m oral pagã que consideraria os atos apenas em sua
efetivação real, em sua form a visível e m anifesta, em sua adequação a
regras e segundo o aspecto que eles podem to m a r na opinião ou na
lem brança que deixam em seu rastro. M as essa oposição tradicional­
m ente aceita corre o risco de deixar escapar o essencial. O que se cha­
ma interioridade cristã é um m odo p articu lar de relação consigo que
com porta form as precisas de atenção, de suspeita, de decifração, de
verbalização, de confissão, de au to-acusação, de luta co ntra as te n ta­
ções, de renúncia, de com bate espiritual, etc. E o que é designado
com o “ ex terio rid ad e" da m oral antiga im plica tam bém o princípio de
um trab alh o sobre si, m as sob um a form a bem diferente. A evolução
que se p ro d u zirá, aliás com m uita lentidão, entre paganism o e cristia­
nism o, não consistirá n u m a interiorização progressiva da regra, do ato
e da falta; ela o p erará, antes de mais nada, um a reestruturação das for­
mas da relação consigo e u m a tran sfo rm ação das práticas e das técni­
cas sobre as quais essa relação se apoiava.
U m term o é utilizado na língua clássica p ara designar essa form a
de relação consigo, essa “ a titu d e ” que é necessária à m oral dos praze­
res, e que se m anifesta no bom uso que se faz deles: enkrateia. N a ver­
dade, essa palavra perm aneceu p o r m uito tem po bem próxim a de
sõphrosunê: elas são, freqüentem ente, encontradas ju n ta s ou alternati­
vam ente, com acepções bem próxim as. X enofonte, para designar a
tem perança - que faz p arte ju n tam en te com a devoção, a sabedoria, a
coragem e ju stiça, das cinco virtudes que ele em geral reconhece - , em­
prega às vezes a p alav ra sõphrosunê, às vezes enkrateia.,0 Platão se refe60
>
re u essa proxim idade das duas p alavras q u an d o Sócrates, interrogado
por Cálicles sobre o que é “ se co m an d ar a si m esm o (auton heauton arcliein)", responde: consiste em “ ser sábio e se dom inar (sõphrona onta
kai enkrate auton heautou), em co m an d ar os prazeres e os desejos em si
p róprio (archein ton hêdonõn ka i e p i t h u m i õ r i ) " E quan d o na Repúbli­
ca ele trata de cada um a das q u a tro virtudes fundam entais - sab ed o ­
ria, coragem , justiça e tem perança (sõphrosunê) - define esta últim a
pela enkrateia: “ A tem perança (sõphrosunê) é um a espécie de ordem e
de império' (kosm os ka i enkrateia) sobre certos prazeres e desejos” .*’
Pode-se n o tar, en tretan to , que apesar das significações dessas
duas palavras serem bastan te próxim as, ain d a faltaria m uito para se­
rem exatam ente sinônim as. C a d a um a delas se refere a um m odo um
tan to diferente de relação consigo. A virtude de sõphrosunêé so b retu ­
do descrita com o um estado b astan te geral que garante um a co n d u ta
“ com o convém p ara com os deuses e p ara com os hom ens” , isto é, ser
não som ente tem p eran te mas devoto e ju sto , com o tam bém corajoso.*'
Em troca, a enkrateia se caracteriza sob retu d o p o r um a form a ativa de
dom ínio de si que perm ite resistir ou lutar e g aran tir sua dom inação
no terreno dos desejos e dos prazeres. A ristóteles teria sido o prim eiro,
segundo H. N o h h , a distinguir sistem aticam ente entre sõphrosunê e
enkrateia .<J A prim eira é caracterizada, na Ética a Nicôm aco, pelo fato
de que o sujeito escolhe deliberadam ente princípios de ação conform es
à razão, que ele é capaz oe segui-los e aplicá-los, e que ele sustenta as­
sim, em sua c o r-iu ta , o “ju ste m ilieu’’* entre a insensibilidade e os ex­
cessos {Juste milieu que não é um a eqüidistância, já que de fato a tem ­
perança está mais longe dos excessos do que da insensibilidade), e que
ele tem prazer na m oderação que dem onstra; à sophrosunê se opõe a
intem perança (akolasia) na qual se segue, v o luntariam ente e por esco­
lha deliberada, m aus princípios, ab an d o n an d o -se até aos m ais fracos
desejos e o b ten d o prazer com essa m á conduta: o intem perante não
tem pesar nem cura possível. A enkrateia, com seu oposto akrasia se
situa sobre o eixo da luta, da resistência e do com bate: ela é com edi­
m ento, ten são , “ continência” . A enkrateia dom ina os prazeres e os de­
sejos m as tem necessidade de lu ta r p a ra vencê-los. D iferentem ente do
50. X É N O P H O N . Cyropédie. V U I , I, 30. S o b r e a n o ç ã o d e sophrosunê e s u a e v o l u ç ã o ,
cf. H. N O R T H . Sophrosww. o a u t o r s u b l i n h a a p r o x i m i d a d e d a s d u a s p a l a v r a s sophromow e enkrateia e m X e n o f o n t e (p p . 123-132).
51.
P L A T O N . Gorgias, 491 d.
X2.
P L A T O N . République, IV. 4 3 0 b. A r i s t ó t e l e s (Éthique à Nicomaque, V II, 1 . 6 , 1 145
b) l e m b r a a o p i n i ã o s e g u n d o a q u a l a q u e l e q u e é sophron è enkraies e karterikos.
53.
P L A T O N . Gorgias. 507 a - b . Cf. i g u a l m e n t e Lois, 111, 697 b. C o n s i d e r a r “ c o m o os
p r i m e i r o s e os m a is p r e c i o s o s d o s b e n s d a a l m a q u a n d o a t e m p e r a n ç a aí r e s i d e ” .
54.
Cf. H. N O R T H . Sõphrosunê, o p . ci t. , p p . 202-203.
*
L n t r e a s p a s n o o r ig i n a l. ( N . d o T . )
61
hom em “ tem p eran te” , o “ contin en te” experim enta o u tro s prazeres
que não aqueles conform es à razão; m as n ão se deixa m ais levar por
eles, e seu m érito será ta n to m aior q u a n to m ais forte forem seus dese­
jos. Em co n trap o sição , a akrasia não é, com o a in tem perança, um a es­
colha deliberada de m aus princípios; convém co m p ará-la de preferên­
cia a essas cidades que possuem boas leis m as não são capazes de aplicá-las; o incontinente se deixa levar, c o n tra sua vontade e a despeito de
seus princípios razoáveis, seja p o rq u e não tem força para operá-los,
seja porq u e não refletiu suficientem ente sobre eles: e é isso m esm o que
faz com que o incontinente possa curar-se e aceder ao dom ínio de si.*'
Nesse sentido a enkrateia é a condição da sophrosune, a form a de tra ­
balho e de con tro le que o indivíduo deve exercer sobre si para to rn arse tem perante (sõphrõn).
Em to d o caso, o term o enkrateia no v ocabulário clássico parece
referir-se em geral à dinâm ica de um a dom in ação de si p o r si e ao es­
forço que ela exige.
1.
Esse exercício da d om inação im plica, em prim eiro lugar, um a
relação agonística. O A teniense, nas Leis, lem bra a C línias: se é verda­
de que o hom em m ais bem d o ta d o p a ra a coragem seria apenas “ a m e­
tade de si m esm o” sem a “ p rova e o exercício” dos com bates, pode-se
pensar que n ão seria possível to rn ar-se tem p eran te (sõphrõn) “ sem ter
sustentado a luta c o n tra tan to s prazeres e desejos (pollais hedonais kai
epithumiais diamemachêmenos), nem alcan çad o a vitória graças à ra­
zão, ao exercício, à arte {logos, ergon, technê) ta n to nos jo g o s com o na
ação".'"' São quase as m esm as palavras q u e em pregava p o r sua vez
A ntifonte, o Sofista: “ n ão é sábio (sõphrõn) aquele que n ã o desejou (epithumein) o feio e o mal nem deles se aproxim ou: pois nesse caso não
há nada sobre o q u al ten h a triu n fad o (kratein), e que lhe perm ita afir­
m ar-se com o v irtuoso (kosm ios)” ."7 S om ente in stau ran d o , em relação
aos prazeres, um a atitu d e de com bate, é que se p ode conduzir-se m o­
ralm ente. Os aphrodisia, com o vim os, tonnam -se n ã o som ente possí­
veis m as desejáveis através de um jo g o de forças cuja origem e finalida­
de são n atu rais, m as cujas virtualidades, devido à sua energia p ró pria,
levam à revolta e ao excesso. Só se p ode usar dessas forças com a m o­
deração que convém q u a n d o se é capaz de opor-se a elas, de lhes resis-
85. AR ISTO TE, Éthique à Nicomaque, III, 11, e 12,1 118 b- 1 119 a e VII, 7,849,1 150
a- 1 152 a.
86. PLATON , Lois, I, 647 c.
87. A N T IP H O N , in STO D ÉE, Florilège, V, 33. Ê o fragm ento n* 16 nas Oeuvres<TA n­
tiphon (C. U. F.).
62
tir e dom iná-las. C ertam en te, se é necessário entrentá-las é po rq u e se
tra ta de apetites inferiores que nós com partilham os - com o a fom e e a
sede - com os anim ais;88 m as essa inferioridade n atu ral não seria em si
m esm a um a razão p ara com b atê-la se não fosse o perigo de que, pre­
dom in an d o sobre to d o o resto, elas estendessem sua dom inação sobre
todo o indivíduo, reduzindo-o, finalm ente, à escravidão. Em o u tra s
palavras, n ão é a sua natu reza intrínseca, sua desqualificação de
princípio que dem an d a a atitu d e “ polêm ica” consigo m esm o, m as sim
seu dom ínio eventual e seu im pério. À co n d u ta m oral, em m atéria de
prazeres, está subjacente um a b a ta lh a pelo poder. Es^a percepção dos
hêdonai e epithum ai com o força temível e inim iga, e a constituição co r­
relativa de si com o adversário vigilante que os enfrenta, que en tra em
ju sta co n tra eles e p ro cu ra dom iná-los, traduz-se num a série de expres­
sões em pregadas tradicionalm ente p a ra caracterizar a tem perança e a
intem perança: opor-se aos prazeres e aos desejos, não ceder a eles, re­
sistir às suas investidas ou, ao co n trário , deixar-se levar p o r eles,8'' ven­
cê-los ou ser vencido p o r eles,'’0 estar arm ad o ou equipado co n tra
eles.'" Ela tam bém se trad u z p o r m etáforas com o a da b atalh a a ser
trav ad a co n tra adversários arm ad o s,” ou com o a da alm a-acrópole,
atacad a p o r um a tro p a hostil, e que deveria se defender graças a um
sólido destacam ento;''3 ou com o a das vespas que atacam os desejos sá­
bios e m oderados, m atam -nos e os expulsam 94 se não se conseguir li­
vrar-se delas. T am bém se exprim e através de tem as com o o das forças
selvagens do desejo que invadem a alm a d u ran te o sono se ela não sou­
be se proteger anterio rm en te com as precauções necessárias.95 A rela­
ção com os desejos e com os prazeres é concebida com b um a relação
S«. X ÉN O PH O N , Hiéron, VII. ARISTO TE, Éthique à Nicomaque, III, 10, 8, I 117 b.
N9. Encontra-se assim toda um a série de palavras como agein. ageisthai (conduzir, ser
conduzido); PLATON , Protagoras, 355 a; République, IV, 431 -e; A RISTO TE, Éthique à
Nicomaque. VII, 7, 3, 1 150 a. Kolazein (conter).Gorgias, 491 e. République, V lll, 559 b;
IX, 571 b. Antiteinein (opor-se): Éthique à Nicomaque, VII, 2 ,4 , 1 146 a; VII, 7, 5 e 6, 1
150 b. Emphrassein (criar obstáculo): AN TI PHON, Fragm. 15. Antechein (resistir): Éthi­
que à Nicomaque, VII, 7, 4 e 6, I 150 a e b.
90. Nikan (vencer): PLATON , Phèdre, 238 c; Lois, I, 634 b; VIII, 634 b; ARISTO TE.
Éthique à Nicomaque, VII, 7, I 150 a; VII, 9, I 151 a; A N T IPH O N , Fragm. 15. Kratcin
(dominar): PLATON , Protagoras, 353 c: Phèdre, 237 e 238 a: République, IV, 431 a-c:
Lois. 840 c: X É N O PH O N , Mémorables, I, 2, 24: A N TIPH O N , Fragm. 15 e 16: ARIST O T 1. Lthique à Nicomaque, VII, 4 c, I 148 a; VII, 5, 1 149 a; Hettasthai (ser vencido).
Protagoras, 352 e; Phèdre, 233 c; Lois, VIII, 840 c; Lettre, VII, 351 a; Étique à Nicoma</i«-. VII. 6, I, I 149 b; VII, 7 ,4 , 1 150 a: VII, 7 ,6 , I 150 b; ISO CRATE. À N icodès. 39.
91. X ÉN O PH O N . Mémorables. 1. X. 14.
92. X ÉN O PH O N , Écon,unique, I, 23.
93. PLATON. République. VIII. 560 b.
94. Ibi,l„ IX. 572 d-573 b.
95. Ibid.. IX. 571 d.
63
de batalha: é necessário se colocar, em relação a eles, na posição e no
papel do adversário, tan to no m odelo do so ld ad o que com bate, com o
no m odelo do lu tad o r num concurso. N ão esqueçam os que q u ando o
A teniense das Leis se refere à necessidade de con ter os três grandes
apetites fundam entais, ele evoca “ o apoio das M usas e dos deuses que
presidem os jog o s (theoi agõnioi) ' ' A longa trad ição do com bate espi­
ritual, que deveria assum ir tan tas form as diversas, já estava claram en­
te articulada no p ensam ento grego clássico.
2.
Essa relação de com bate com adversários é tam bém uma rela­
ção agonística consigo m esmo. A b atalh a a ser trav ad a, a vitória a ser
conseguida e a d errota que se corre o risco de sofrer são processos e
acontecim entos que ocorrem de si p ara consigo. O s adversários que o
indivíduo deve co m b ater não estão sim plesm ente nele ou perto dele.
São parte dele m esm o. Evidentem ente, seria necessário lev arem conta
as diversas elaborações teóricas que foram p ro p o stas sobre essa dife­
renciação entre a p a rte de si mesm o que deve co m bater e a que deve
ser com batida: partes da alm a que deveriam respeitar certa relação
hierárquica en tre si? C o rp o e alm a entendidos com o duas realidades
de origem diferente, um a das quais deve p ro c u ra r se liberar da outra?
Forças que tendem p a ra objetivos diferentes e que se opõem entre si
com o os dois cavalos de um a equipagem ? M as, de qualquer m odo, o
que se deve reter p ara definir o estilo geral dessa “ ascética” é que o ad­
versário a ser co m b atid o , p o r m ais afastad o que esteja, p o r sua n atu re­
za, daquilo que pode ser a alm a, a razão ou a virtude, não representa
uma o u tra potência, ontologicam ente estran h a. U pi dos traços essen­
ciais da ética da carne será o vínculo de princípio entre o m ovim ento
da concupiscência, sob suas m ais insidiosas e secretas form as, e a pre­
sença do O u tro , com suas artim an h as e seu p o d er de ilusão. N a ética
dos aphrodisia, a necessidade e a dificuldade do com bate se deve, ao
c o n tiá rio , a que ele se desenrola com o um a ju s ta consigo mesmo: lutar
contra “ os desejos e os p razeres” é se m edir consigo.
N a República, Platão sublinha o q u a n to é sim ultaneam ente estra­
nha, um ta n to risível e desgastada um a expressão fam iliar, à qual ele
pró p rio recorre várias vezes:97 é a que consiste em dizer què alguém é
“ m ais fo rte” ou “ m ais fraco” do que ele m esm o (kreittõn, hettõn,
heautou). De fato, existe um p arad o x o em dizer que alguém é m ais for­
te do que ele m esm o, já que isso im plica que ele seja, ao m esm o tem po
P L A T O N , Lois, VI, 783 a-b.
P L A T O N , Phèdre, 232 a; République, IV, 4 3 0 c; Lois, I, 6 2 6 e, 633 e; V I I I , 8 40 c;
Lettre, V I, 337 a.
96.
97.
64
e p o r isso m esm o, m ais fraco do que ele m esm o. M as, segundo Platão,
a expressão se sustenta p o rq u e supõe a distinção entre duas p arte s da
alm a, um a que é a m elhor e a o u tra m enos boa e que, partin d o d a vitó­
ria ou da d erro ta de si sobre si, é do p o n to de vista da prim eira que se
pode situar-se: “ Q uan d o a p arte que é n atu ralm en te a m elhor m antém
a m enos boa sob seu im pério, isso é m arcado pela expressão ‘ser m ais
forte do que ele m esm o’, e é um elogio. Q u ando, ao co n trário , em
conseqüência de um a educação ruim ou de certas convivências, a me­
lhor parte, que se en co n tra enfraquecida, é vencida pelas forças da
parte m á, en tão se diz do hom em que está nesse estado, e nesse caso
trata-se de reprovação e censura, que ele é ‘escravo de si m esm o e intem p eran te’” .9* E que esse antag o n ism o de si p ara consigQ tenha que
e stru tu ra r a atitu d e ética do indivíduo, no que diz respeito aos desejos
e aos prazeres, é o que está claram ente afirm ado no início das L eis: a
razão d ad a p a ra que haja.em cada E stado um com ando e um a legisla­
ção é que, m esm o na paz, todos os E stados estão em guerra uns com
os outros; do m esm o m odo, é preciso entender que, se “ na vida públi­
ca todo hom em é p ara to d o hom em um inim igo” , na vida privada “ ca­
da um , face a si p ró p rio , é um inim igo de si m esm o” ; e de to d as as vi­
tórias possíveis de serem o btidas, “ a prim eira e a m ais gloriosa” é a
que se consegue “ sobre si m esm o” , ao passo que “ o m ais vergonhoso”
dos fracassos, “ o m ais desprezível” , “ consiste em ser vencido p o r si
m esm o” .99
3.
U m a tal atitude “ polêm ica” a respeito de si tende a um resulta­
do que é naturalm en te expresso em term os de vitória - vitória m uito
m ais %
b ela, dizem as Leis, do que aquelas da palestra e dos co n cursos.1""
Acontece dessa vitória ser caracterizad a pela extirpação total ou pela
expulsão dos desejos.'1’1 M as é m uito m ais freqüente que ela seja defini­
da pela in stau ração de um estado sólido e estável de dom inação de si
sobre si; a vivacidade dos desejos e dos prazeres n ão desaparece m as o
sujeito tem perante exerce sobre ela um dom ínio suficientem ente com ­
pleto p ara nunca ser levado pela violência. A fam osa provação de Só­
crates, capaz de não se deixar seduzir p o r A lcebíades, não o apresenta
“ purificad o ” de to d o 6 qualq u er desejo p a ra com os rapazes: ela to rn a
visível sua ap tid ão p ara resistir-lhe exatam ente quando quer e da m a­
98. P L A T O N , République, IV, 431 a.
99. P L A T O N , Lois, I, 6 26 d-e.
100. Ibid., V I U , 840 c.
101. P L A T O N , République, I X , 571 b. N a Éthique à Nicomaque t r a t a - s e d e “ d a r a d e u s
a o p r a z e r " , c o m o o s v e lh o s d e T r ó i a q u e r i a m fa z e r c o m H e l e n a (I I, 9, I 109 b).
65
neira que quer. Os cristãos irão censurar um a tal p rovação porque ela
atesta a presença su sten tad a, p ara eles im oral, do desejo; en tretanto,
m uito tem po antes, Bion de Borístenes fazia pouco caso disso afirm an­
do que, se Sócrates sentia desejo p o r A lcebíades, era tolo em se abster,
e que não tinha m érito algum se não o sentisse.1"-' Do m esm o m odo, na
análise de A ristóteles, a enkrateia, definida com o dom ínio e vitória,
supõe a presença dos desejos, e ta n to m ais valor possui q u an to mais
conseguir d o m in ar aqueles que são violentos."’1 M as a própria sõphro­
sunê, que A ristóteles define, en tretan to , com o um estado de virtude,
não im plica a supressão dos desejos m as sua dom inação: ele a situa
num a posição interm ediária entre um desregram ento (akolasia) no
qual há um ab a n d o n o deliberado a esses prazeres, e um a insensibilida­
de (anaisthêsia), aliás extrem am ente rara, na qual não se experim enta­
rá prazer algum ; o tem perante não é aquele que não tem m ais desejos,
mas aquele que deseja “ com m oderação, não m ais do que convém ,
nem q u an d o não convém ” .",J
A virtude na ordem dos prazeres não é concebida com o um esta­
do de integridade m as com o um a relação de dom inação, um a relação
de dom ínio: é o que m ostram os term os que são utilizados - seja por
Platão, X enofonte, D iógenes, A n tifonte ou A ristóteles - p a ra definir a
tem perança: “ d o m in ar os desejos e os prazeres” , “ exercer poder sobre
eles” , “ co m an d á-lo s” (kratein, archein). R elata-se de A ristipo, o qual,
todavia, possuía um a teo ria sobre o prazer, bem diferente da de Sócra­
tes, o seguinte aforism o que revela um a concepção geral da tem peran­
ça: “ O m elhor é d o m in ar os prazeres sem se deixar vencer p o r eles; e
não o fato de n ão recorrer a eles” (to kratein ka i m e hettasthai hêdonõh
ariston, ou to m e chrêsthai)" ,m Em o u tra s palavras, p a ra se constituir
com o sujeito v irtuoso e tem perante no uso de seus prazeres, o indiví­
duo deve in sta u ra r um a relação de si p a ra consigo que é do tipo “ dom inação-obediência” , “ co m ando-subm issão” , “ dom ínio-docilidade”
(e não, com o será o caso na espiritualidade cristã, um a relação do tipo
“ elucidação-renúncia” , “ decifração-purificação” ). É o que se poderia
cham ar de e stru tu ra “ h eau to crática” do sujeito na p rática m oral dos
prazeres.
4.
Essa fo rm a heau to crática é desenvolvida seguindo vários m o­
delos: assim em P latão, o da equipagem com seu cocheiro e, em A ris­
tóteles, o da criança com o ad u lto (nossa faculdade de desejar deve
conform ar-se às prescrições d a razão “ com o a criança deve viver se-
102.
103.
104.
105.
66
D IO G È N E LA E R C E, Vie des philosophes, IV, 7, 49.
A RISTO TE, Éthique à Nicomaque, VII, 2, 1 146 a.
Ibid., III, 11, 1 119 a.
D IO G È N E LA E R C E, Vie des philosophes, II, 8, 75.
gundo os preceitos de seu p ed ag o g o ” ).106 M as ela é, sobretudo, relacio­
nada a dois o u tro s g randes esquem as. O da vida dom éstica: assim
com o a casa só pode estar em ordem se a hierarq u ia e a au to rid a d e do
seu do n o forem respeitadas, assim tam bém o hom em será tem perante
na m edida em que souber co m an d ar seus desejos com o co m anda seus
serviçais. Inversam ente, a intem p eran ça pode ser lida com o um inte­
rior mal gerido. X enofonte, no início da Econômica - onde, ju sta m e n ­
te, tra ta do papel de chefe da casa e da a rte de governar a esposa, o p a ­
trim ônio e os serviçais - , descreve a alm a desordenada; é ao m esm o
tem po um contra-exem plo d o que deve ser um a casa bem dirigida e
um perfil desses m aus senhores que, incapazes de se governarem a si
próprios, levam seus p atrim ô n io s à ruína; na alm a do hom em intem ­
perante, senhores “ m aus” , “ in tratáv eis” - trata-se da voracidade, da
em briaguez, da lubricidade e d a am bição - reduzem à escravidão
aquele que deveria co m an d ar e, após tê-lo explorado na sua ju ventude,
preparam -lh e um a velhice m iserável.107 Recorre-se tam bém ao m odelo
da vida cívica p a ra definir a a titu d e de tem perança. A assim ilação dos
desejos a um povo inferior que se agita e que sem pre está p ro c u ran d o
se revoltar se n ão se lhes m antém a réd ea,108 é um tem a conhecido em
P latão; en tretan to , a estrita correlação entre indivíduo e cidade, que
sustenta a reflexão da República, perm ite desenvolver inteiram ente o
m odelo “ cívico” da tem perança e de seu co n trário. N ele a ética dos
prazeres é da m esm a ordem que a e stru tu ra política: “ Se o indivíduo se
assem elha à cidade, não é um a necessidade que se passem nele as m es­
m as coisas?” ; e o hom em será intem p eran te q u an d o fracassa a e stru tu ­
ra de poder, a arche que lhe perm ite vencer, d o m inar (kraíein) as p o ­
tências inferiores; en tão , “ um a servidão e um a baixeza ex trem a” to ­
m arão sua alm a; e as partes “ m ais h o n estas” dessa alm a cairão na es­
cravidão e “ um a m inoria, fo rm ad a pela p arte pior e m ais furiosa, nela
co m an d ará com o senhora e m estra” .109 N o final do penúltim o livro da
República, após co n stru ir o m odelo da cidade, P latão reconhece que o
filósofo terá m uito pouca o p o rtu n id ad e de en co n trar nesse m undo Es­
tados tão perfeitos e de neles exercer a sua atividade; entretan to , acres­
centa ele, o “ p arad ig m a” da cidade se en co n tra no céu p a ra quem qui­
ser contem plá-lo; e o filósofo, o lh an d o -o , p o d erá “ dirigir seu governo
p articu lar” (heauton ka to ikizein ): “ Pouco im p o rta que esse E stado es-
106. A RISTO TE, Éthique à Nicomaque, VII, 2, 1 119 b. Cf. tam bém PLA TO N , Ré­
publique, IX, 590 e.
107. X É N O PH O N , Économique, I, 22-23.
108. PLATON , Lois, III, 689 a-b: "A parte que sofre e que goza é na alm a o que o
povo e a m ultidão são na cidade” .
109. PLATON , République, IX, 577 d.
67
teja realizado em algum a p arte ou que esteja ain d a p o r se realizar: é
desse E stado e de nenhum o u tro que ele seguirá as leis” ." 0 A virtude
individual tem que se e stru tu ra r com o um a cidade.
5.
Para um a luta dessa n atureza, os exercícios são necessários. A
m etáfora da ju sta , d o com bate esportivo ou da b ata lh a não serve sim­
plesm ente p a ra designar a n atureza da relação com os desejos e com os
prazeres e a sua força sem pre p ro n ta à sedição e à revolta; ela se refere
tam bém à p rep aração que perm ite sustentar esse confronto. É Platão
quem o diz: não é possível opor-se a eles, nem vencê-los quando se é
agum nastos.'" O exercício não é m enos indispensável nessa ordem de
coisas do que q u an d o se tra ta de ad q u irir qualq u er o u tra técnica: a
mathêsis apenas n ão seria suficiente se não se apoiasse num exercício,
num a askêsis. T em os aí um a das grandes lições socráticas; ela não des­
m ente o princípio de que n ão se p o d eria com eter o m al voluntariam en­
te e conhecendo-o; ela confere a esse saber um a form a que não se re­
duz unicam ente ao conhecim ento de um princípio. X enofonte, a p ro ­
pósito das acusações lançadas co n tra Sócrates, to m a cuidado em dis­
tinguir seu ensino daquele dos filósofos - ou dos “ pretensos filósofos”
- para quem , u m a vez que o hom em ten h a ap rendido o que é ser ju sto
ou tem perante (sõphrõn) não pode to rn ar-se injusto e devasso. C om o
Sócrates, X enofonte tam bém se opõe a essa teoria: se não se exerce o
corpo não se pode cum prir as funções do corp o (ta tou somatos erga)’,
do m esm o m odo, se não se exerce a alm a não se p ode cum prir as fun­
ções da alma: fica-se, en tão , incapaz de “ fazer o que convém e absterse do que é preciso ev itar” . Ê p o r isso que X enofonte não quer que se
tom e Sócrates p o r responsável pela m á c o n d u ta de A lcebíades: este
não foi vítim a do ensinam ento recebido m as, após to dos os sucessos
ju n to aos hom ens e m ulheres, e ao povo inteiro que o levou aos pínca­
ros, ele procedeu com o m uitos atletas: um a vez o b tid a a vitória acredi­
tou que p o d ia “ negligenciar o exercício (amelein tes askêseõs)”
Platão reto m ará freqüentem ente esse princípio socrático da askê­
sis. Ele evocará Sócrates, m ostrando a A lcebíades ou a Cálicles que
eles não poderiam pretender ocupar-se da cidade e governar os outros
se não aprendessem prim eiro o que é necessário, e se não se exercitas­
sem para isso: “ Q u an d o ju n to s tiverm os p raticad o suficientem ente
esse exercício (askêsantes), então poderem os, se quiserm os, a b o rd ar a
110.
111.
112.
113.
68
Ibid.. IX. 592 b.
P L A T O N . Lois, 1, 647 d.
X É N O P H O N . Mémorables, I, 2. 19.
Ibid.. 1 . 2 , 2 4 .
política” .114 E ele associará essa exigência do exercício à necessidade de
se ocupar de si: a epimeleia heautou, a aplicação consigo que é um a
condição prévia p ara poder se o cu p ar com os outro s e dirigi-los, com ­
p o rta não som ente a necessidade de conhecer (de conhecer o que se ig­
nora, de conhecer que se é ignorante, de conhecer o que se é), com o
tam bém a necessidade de se aplicar efetivam ente a si e de se exercer e
se tra n sfo rm a r."' A d o u trin a e a prática dos cínicos atribuem , igual­
m ente, um a grande im portância à askêsis, a tal p o n to que a vida cínica
pode parecer inteiram ente com o um a espécie de exercício perm anente.
D iógenes achava que se devia exercitar ao m esm o tem po o corpo e a
alm a; cada um dos dois exercícios “ é im potente sem o o u tro , a boa
saúde e a força não são m enos úteis que o resto p o rque o que concerne
ao corp o concerne tam bém à alm a” . Esse duplo exercício visa ao m es­
m o tem po perm itir en fren tar sem sofrer as privações q u ando elas se
apresentam , e reduzir p erm anentem ente os prazeres à exclusiva satis­
fação elem entar das necessidades. O exercício é ao m esm o tem po redu­
ção à natureza, vitória sobre si e econom ia n atu ral de um a vida de ver­
dadeiras satisfações: “ N ão se p ode fazer nada na vida - dizia D iógenes
- sejn exercício e o exercício p etm ite aos hom ens tudo vencer (pan eknikêsai). .. D eixando de lado os sofrim entos fúteis que nós nos dam os
e exercitando-nos em co nform idade com a natureza, poderíam os e de­
veríam os viver felizes. .. O p ró p rio desprezo do prazer nos daria, se
nos exercitássem os, m uita satisfação. Se aqueles que adquiriram o h á ­
bito de viver nos prazeres sofrem q u an d o lhes é necessário m u d ar de
vida, aqueles que se exercitaram em su p o rta r as coisas penosas despre­
zam sem sofrim ento os prazeres (hêdio autõn tõn hêdonõn kataphronouA im portância do exercício n ão será m ais esquecida na tradição
filosófica ulterior. E terá m esm o um a am plidão considerável: m ultiplicar-se-ão os exercícios, definir-se-ão os procedim entos, os objetivos, as
variantes possíveis; sua eficácia será discutida; a askêsis, sob diferentes
form as (exercícios, m editação, p ro v as de pensam ento, exam e de cons­
ciência, controle das representações) tornar-se-á m atéria de ensino e
constituirá um dos instrum entos essenciais d a direção de alm as. Em
com pensação, encontra-se nos textos da época clássica poucos d e ta ­
lhes sobre a form a concreta que a askêsis m oral pode to m ar. Sem dú­
vida, a trad ição pitagorica reconhecia num erosos exercícios: regime
alim entar, inventários das faltas no fim do dia, ou ainda práticas de
114.
115.
116.
P L A tO N , Gorgias, 527 d.
Sobre a ligação entre o exercício e o cuidado de si, cf. Alcibiade, 123 d.
D IO G È N E LA ERCE, Vie des philosophes, VI, 2, 70.
69
m editação que devem preceder o sono de m a n e ira a conjurar os maus
sonhos e favorecer as visões que podem vir d o s deuses: Platão, aliás,
faz um a referência precisa a essas p rep araçõ es espirituais da noite
num a passagem da República, onde evoca o p erig o dos desejos sem pre
prontos p ara invadir a a lm a .117 E ntretan to , fo ra dessas práticas pitagóricas, não se e n co n tra - tan to em X enofonte, P latão , Diógenes, com o
em A ristóteles - especificação d a askésis co m o exercício de continên­
cia. Existem , sem dúvida, duas razões p ara isso. A prim eira é que o
exercício é concebido com o a p ró p ria prática d aq u ilo para o que é pre­
ciso se p rep arar; n ão há especificidade do exercício em relação ao ob­
jetivo a atingir: através da p reparação cria-se o h áb ito da co nduta que
será preciso m an ter daí em d ia n te .'" Assim X en o fo n te louvava a edu­
cação esp artan a que ensina as crianças a s u p o rta r a fome racionando
seus alim entos, a su p o rta r o frio dando-lhes u m a única roupa, a supor­
tar o sofrim ento expondo-as aos castigos físicos, assim com o lhes ensi­
na a p raticar a continência im pondo-lhes a m ais estrita m odéstia de
postura (a n d a r nas ruas em silêncio, com os o lh o s baixos e as m ãos
sob o m an to )."'' Assim tam bém Platão p reten d e subm eter os jovens a
provas de coragem que consistiriam em expô-los a perigos fictícios; se­
ria um meio de habituá-los, de aperfeiçoá-los, e ao m esm o tem po de
aferir seu valor; do m esm o m odo que se coloca “ os p o tro s no barulho
e no alarid o p ara ver se eles são m edrosos” , conv iria “ conduzir nossos
guerreiros q u an d o jovens em meio a objetos assustadores e depois devolvê-los aos prazeres” ; dessa form a ter-se-ia um m eio de pô-los à p ro ­
va “ com m ais cuidados do que q u an d o se põe à p rova o ouro pelo fo­
go, para saber se eles resistem às seduções, se g u ardam a decência em
qualquer circunstância, se são os fiéis guardiães de si m esm os e da m ú­
sica cujas lições receberam ” .120 N as Leis ele chega até a sonhar com
um a dro g a que ain d a não foi inventada: ela faria qualquer coisa pare­
cer assu stad o ra aos olhos daquele que a tivesse absorvido; e seria
possível servir-se dela a fim de se exercitar na coragem : ta n to só, se se
pensar que “ n ã o se deve deixar-se ver antes de estar bem trein ad o ” ,
qu anto em gru p o , e m esm o em público, “ com num erosos convivas”
para m o strar que se é capaz de dom inar “ a inevitável pertu rb ação da
bebida” ;12' é sob esse m odelo artificial e ideal que os banquetes podem
117. P L A T O N , Republique, IX , 571 c - 572 b.
I IX. C f. P L A T O N , Lois, I, 643 b: “ A q u e l e q u e q u i s e r se s o b r e s s a i r u m d i a n o q u e q u e r
q u e seja d e v e se a p l i c a r ( meletan ) ne sse o b j e t o d e s d e a in fâ n c ia , e n c o n t r a n d o , a o m e s m o
l e m p o , s e u d i v e r t i m e n t o e s u a o c u p a ç ã o e m t u d o q u e se r e l a c i o n a c o m e le ”
I 19. X É N O P H O N , Republique des Lacédémoniens, 2 e
3.
120. P L A T O N , République, II I, 41 3 d e sq.
121. P L A T O N , Lois, I, 64 7 c - 648 c.
70
ser aceitos e organizados com o espécies de provas de tem perança.
A ristóteles o disse num a frase que m ostra a circularidade entre a
aprendizagem m oral e a virtude que se aprende: “ É se afastando dos
prazeres que se pode tornar-se tem perante; m as é quando se chega à
tem perança que m elhor se pode afastar-se dos prazeres” .122
Q u an to à o u tra razão p ara explicar p o r que não existe um a arte
específica d o exercício da alm a, ela se deve ao fato de que o dom ínio
de si e o dom ínio dos o u tro s são considerados com o tendo a m esm a
form a: já que se deve governar a si m esm o com o se governa a própria
casa e da m aneira com o se desem penha o p ró p rio papel na cidade, se­
gue-se que a form ação das virtudes pessoais e particularm ente da
enkrateia não será diferente, p o r n atureza, da form ação que perm ite
sobressair-se sobre os outros cidadãos e dirigi-los. A m esm a ap ren d i­
zagem deve to rn a r capaz de virtude e de p oder. A ssegurar a direção de
si m esm o, exercer a gestão da p ró p ria casa, p articipar do governo da
cidade são três práticas do m esm o tipo. A Econômica de X enofonte
m ostra bem, en tre essas três artes, a continuidade, o isom orfism o, as­
sim com o a sucessão cronológica de sua instau ração na existência de
um indivíduo. O jovem C ritó b u lo afirm a que daí para diante ele é ca­
paz de se d om inar e de não m ais se deixar levar p o r seus desejos e p ra­
zeres (e Sócrates lem bra-lhe que estes são com o serviçais sobre os
quais convém m anter a autoridade); p o rta n to , é chegado o m om ento
para ele de se casar e de assegurar com sua esposa a direção da casa; e
esse governo dom éstico - entendido com o gestão de um interior e ex­
ploração de um dom ínio, m anutenção ou desenvolvim ento do p a tri­
m ônio - X enofonte faz n o ta r várias vezes que ele constitui, q u ando
acontece de a ele dedicar-se com o convém , um a notável p reparação
física e m oral p ara quem quiser exercer seus deveres cívicos, firm ar sua
auto rid ad e pública, e assum ir tarefas de com ando. De m odo geral,
tudo o que servir p ara a educação política do hom em enq u an to cida­
dão lhe servirá tam bém p ara exercitar a virtude e inversam ente: os
dois vão ju n to s. A askêsis m oral faz p arte da paideia do hom em livre
que tem um papel a desem penhar na cidade e com relação aos outros;
ela não tem que utilizar procedim entos diferentes; a ginástica e as p ro ­
vas de resistência, a m úsica e a aprendizagem dos ritm os viris e vigoro­
sos, a prática da caça e das arm as, o cuidado em se apresentar bem em
público, a aquisição do aidos que faz com que se respeite a si m esm o
através do respeito que se tem p ara com o o u tro - tudo isso é, ao m es­
mo tem po, form ação do hom em que será útil p ara a cidade, e exercício
m oral daquele que quer se d o m in ar a si m esmo. Ao evocar as provas
122.
A R I S T O T t - , Ethique à Miiiinaque. Il, 2. I 104 a.
71
de m edo artificial q u e ele recom enda, Platão vê nelas um meio para
deslacar. dentre os jovens, aqueles que serão m ais capazes de ser
“ úteis a eles p ró p rio s e ao E stad o ” ; são aqueles que serão recrutados
para governar; “ E stabelecerem os com o chefe e g u ardião da cidade
aquele que, tendo sofrido todas as provas sucessivas da infância, da ju ­
ventude e da idade m ad u ra, saia intacto (akêratos) de todas elas” .'2' E
quando nas Leis o A teniense dá a definição d aq u ilo que ele entende
por paideia, ele a caracteriza com o aquilo que form a "desde a infância
para a virtu d e” e que inspira “ o desejo ap aix o n ad o de tornar-se um ci­
dad ão realizado, sabendo co m an d ar e obedecer segundo a ju stiç a” .124
Pode-se dizer, num a palavra, que o tem a de um a askêsis, com o
p rep aração p rática indispensável p ara que o indivíduo se constitua
com o sujeito m oral, é im p o rtan te - e até m esm o insistente - no pensa­
m ento grego clássico e, em todo caso, na trad ição proveniente de Só­
crates. N o en tan to , essa “ ascética” não é o rganizada nem refletida
com o um corpus de práticas singulares que co nstituiriam um a espécie
de arte específica da alm a, com suas técnicas, seus procedim entos, suas
receitas. P or um lado, ela não se distingue da p ró p ria p rática da virtu­
de; ela é sua repetição an tecip ad o ra. P or o u tro iado, ela se serve dos
m esmos exercícios que os que form am o cidadão: o m estre de si e dos
o u tro s se form a ao m esm o tem po. Essa ascética logo com eçará a ad ­
quirir sua independência ou, pelo m enos, um a au to n o m ia parcial e re­
lativa. E isso de d u as m aneiras; ocorrerá um descolam ento entre os
exercícios que perm item governar-se e a aprendizagem do que é neces­
sário para g overnar os outros; tam bém haverá descolam ento entre os
exercícios em sua form a p ró p ria e a virtude, a m oderação, a tem peran­
ça, à qual eles servem de preparação: seus procedim entos (provas, exa­
mes, controle de si) tenderão a constituir um a técnica particular, mais
com plexa do que a sim ples repetição da co n d u ta m oral p a ra a qual
eles tendem . Ver-se-á, então, a arte de si assum ir sua p ró p ria figura em
relação à paideia que form a seu contexto e em relação à co n d u ta m oral
que lhe serve de objetivo. M as, p ara o pensam ento grego da época
clássica, a "a scética” que perm ite constituir-se com o sujeito m oral faz
parte integralm ente, até em sua p ró p ria form a, do exercício de um a
vida virtuosa que é tam bém a vida do hom em “ livre” no sentido ple­
no, positivo e político do term o.
123.
124
72
P L A T O N . République, 111. 413 e.
IM A T O N . Lois. I. 643 e.
4
LIBERDADE E V E RD AD E
1. “ Dize-me, E utidem o, acreditas que a liberdade seja um bem
nobre e m agnífico, q u er se trate de um p articu lar ou de um Estado? É o m ais belo que é possível ter, responde E utidem o. - M as aquele que
se deixa d o m in ar pelos prazeres d o corp o e que, em seguida, torna-se
incapaz de p raticar o bem , tu o consideras um hom em livre? - D e jeito
nenhum , diz ele.” 125
A sõphrosunê, o estado que se tende a alcançar pelo exercício do
dom ínio e pelo com edim ento na p rática dos prazeres é caracterizada
com o uma liberdade. E m bora seja tã o im p o rtan te governar desejos e
prazeres, e apesar do uso que se faz deles constituir um alvo m oral de
tal preço, não é p ara conservar o u reen co n trar um a inocência de o ri­
gem; não é, em geral - salvo, evidentem ente, na tradição pitagórica para conservar um a p u reza;121’ é p a ra ser livre e poder perm anecê-lo.
Poder-se-ia ver nisso, se-ainda fosse necessário, a p rova de que a liber­
dade, no pensam ento grego, não é sim plesm ente refletida com o a inde-
125. X ÉN O PH O N , Mémorables, IV, 5, 2-3.
126. N ão se trata, evidentemente, de dizer que o tem a da pureza esteve ausente da m o­
ral grega dos prazeres na época clássica; ele ocupou um lugar considerável nos pitagóricos; e foi im portante para Platão. E ntretanto, parece que, de m odo geral, no que concer­
ne aos desejos e prazeres físicos, o que estava em jogo na conduta m oral foi pensado
sobretudo com o jjm a dom inação. A ascensão e o desenvolvimento de uma ética da pu­
reza. com as práticas de si que lhe são correlativas, será úm fenômeno histórico de longo
alcance.
73
pendência de to d a a cidade, ao passo que os cidadãos seriam por si
m esm os elem entos sem individualidade nem interioridade. A liberda­
de que convém in sta u ra r e preservar é evidentem ente aquela dos cida­
dãos no seu co n ju n to , m as é tam bém , p a ra cada um , um a certa form a
de relaçào do indivíduo p ara consigo. E claro que a constituição da ci­
dade, o c a rá te r das leis, as form as da educação, a m aneira pela qual os
chefes se conduzem são fatores im portantes p a ra o co m portam ento
dos cidadãos; m as, em tro c a , a liberdade dos indivíduos, entendida
com o o d o m ín io que eles são capazes de exercer sobre si m esm os é in­
dispensável a to d o o E stado. Escutem os A ristóteles na Política: “ U m a
cidade é v irtuosa pelo fato de que os cidadãos que participam em seu
governo são eles p ró p rio s virtuosos; ora, em nosso E stado todos os ci­
dadãos participam do governo. O pon to a ser considerado é o seguin­
te: de que m aneira um hom em se to rn a virtuoso? Pois m esm o no caso
de ser possível a to d o o corp o dos cidadãos ser virtuoso sem que ne­
nhum den tre eles o seja individualm ente, é a virtude individual, no en­
tanto. que é necessário preferir, já que a virtude de to d o o corpo social
segue logicam ente a virtude de cada c id a d ã o " .1" A atitude do indiví­
duo em relação a si m esm o, a m aneira pela qual ele garante sua p ró ­
pria liberdade no que diz respeito aos seus desejos, a form a de sobera­
nia que ele exerce sobre si, são elem entos constitutivos da felicidade e
da boa ordem da cidade.
Essa liberdade individual, no en ta n to , n ão deve ser com preendi­
da com o a independência de um livre arb ítrio . O seu vis-à-vis, a polari­
dade à qual ela se opõe não é um determ inism o n atural nem a vontade
de um a onipotência: é um a escravidão - e a esci „vidão de si para con­
sigo. Ser livre em relação aos prazeres z n ão estar a seu serviço, é não
ser seu escravo. O perigo que os aphrodisia trazem consigo é m uito
mais a servidão d o que a m ácula. D iógenes dizia que os servos eram
escravos de seus senhores e que a gente im o ral,o era de seus desejos
(tous de phaulous tais epithumiais douleuein).'2" Sócrates, no início da
Econôm ica,'1" advertia C ritó b u lo c o n tra essa servidão, assim com o
tam bém advertia Eutidem o num diálogo dos M emoráveis que é um
hino à tem p eran ça considerada com o liberdade: “ A creditas, sem dúvi­
da, que p raticar o bem é ser livre, e que ter senhores que im pedem de
fazê-lo é ser escravo? - É este, v erdadeiram ente, o meu pensam ento,
diz ele. - P o rtan to , é verdade p ara ti que os in tem perantes são escra-
127. ARISTO TE, Politique, VII, 14, 1 332 a.
128. D IO G È N E LA ERCE, Vie des philosophes, VI, 2 ,66. A escravidão em relação aos
prazeres é uma expressão m uito freqüente. X E N O PH O N , Economique, I. 22: Mémo­
rables, IV, 5. PLATON . République, IX, 577 d.
129. X É N O PH O N . Économique, I, 1, 17 e sq.
74
v o s ... - E quai é p ara ti a pior servidão? - P ara m im , diz ele, é aquela
em que se tem os piores senhores. - E ntão, a pior das servidões é aq u e­
la dos in te m p é ra n te s .. . - Se te co m preendo bem , Sócrates, pretendes
que o hom em subjugado aos prazeres dos sentidos nada tem em co ­
m um com q u alq u er virtude? - Sim , E utidem o, diz Sócrates: pois, em
que o hom em intem p eran te su p era o m ais estúpido dos anim ais?” 1'0
N o e n ta n to , essa liberdade é m ais do que um a não-escravidão,
m ais do que um a liberação que to rn a ria o indivíduo independente de
qualquer co erção exterior ou interior; na sua form a plena e positiva ela
é poder que se exerce sobre si, no p o d er que se exerce sobre os o utros.
C om efeito, aquele que, p o r status, encontra-se situado sob a a u to rid a ­
de dos o u tro s não tem que esperar de si m esm o o princípio de sua tem ­
perança; basta-lhe obedecer às o rdens e às prescrições que se lhe dá. É
o que explica Platão a p ro p ó sito do artesão: o que existe de degradante
nele é que a m elhor p arte de sua alm a “ é tã o fraca p or natureza que ele
não pode co m an d ar as suas feras interiores, que ele as deleita, não p o ­
dendo ap ren d er o u tra coisa a n ão ser bajulá-las” ; o ra, o que fazer se
quiserm os que esse hom em seja regido p o r um princípio racional
com o aquele “ que governa o hom em superior?” O único m eio é colocá-lo sob a au to rid ad e e o p o d er desse hom em superior: “ Q ue ele se
faça escravo daquele em quem o elem ento divino co m an d a” . " 1 Em
troca, quem deve co m an d ar os o u tro s é aquele que deve ser capaz de
exercer um a au to rid ad e perfeita sobre si mesmo: ao m esm o tem po
porque, em sua posição e com o p o d er que ele exerce, lhe seria fácil sa­
tisfazer to d o s os seus desejos e, p o rta n to , entregar-se a eles, com o ta m T
bém porque as desordens de sua co n d u ta têm efeitos sobre to dos e na
vida coletiva d a cidade. P ara n ão ser excessivo e não fazer violência,
p ara escapar à d u p la constitu íd a pela au to rid a d e tirânica (sobre os o u ­
tros) e pela alm a tiran izad a (p o r seus p ró p rio s desejos), o exercício do
poder político exigirá com o seu p ró p rio princípio de regulação in ter­
na o poder sobre si. A tem p eran ça en tendida com o um dos aspectos
de sob eran ia sob re si é, n ão m enos d o que a ju stiça, a coragem ou a
prudência, um a virtude q ualificadora daquele que tem a exercer dom í­
nio sobre os outros. O m ais real dos hom ens é rei de si m esm o (basilikos, basileuõn heautou).” 2
Daí a im portância atrib u íd a, na m oral d o s prazeres, a duas altas
figuras da exem plificação m oral. De um lado, o m au tirano; ele é inca­
paz de d o m in a r suas p ró p rias paixões; e, p o r causa disso, ele se encon-
r
130.
131.
132.
Id.. Mémorables, IV, 5, 2-11.
PLATON, République, IX, 590 c.
Ibid., IX, 580 c.
75
ira sem pre inclinado a ab u sar de seu p ró p rio pod er e a fazer violência
(hubrizein) sobre seus súditos; ele introduz a p ertu rb ação em seu E sta­
do e assiste à revolta dos cidadãos co n tra ele; os abusos sexuais do dés­
pota, q u an d o ele se põe a desonrar os filhos - m eninos ou m eninas dos cidadãos, são frequentem ente invocados com o m otivo inicial dos
com plôs p a ra d e rru b a r as tiranias e restabelecer a liberdade: assim foi
com Pisistrátides em A tenas, Periandro em A m brácia e o u tros mais
que A ristóteles m enciona no V livro da P o l i t i c a l Face à figura do ti­
rano desenha-se a im agem positiva do chefe que é capaz de exercer um
estrito pod er sobre si na au to rid ad e que exerce sobre os outros; seu
dom ínio de si m odera o seu dom ínio sobre outrem . É testem unho o
Ciro de X enofonte que poderia m ais do que qualq uer o u tro ab usar do
seu poder e que, co ntu d o , em meio à sua p ró p ria corte, m anifestava o
dom ínio de seus sentim entos: “ Assim, um tal co m portam ento criava
na corte, en tre os inferiores, um sentim ento exato de sua posição, que
os fazia ceder aos superiores e, deles entre si, um exato sentim ento de
respeito e cortesia” .134 Assim tam bém , q u a n d o o p róprio N icocles de
Isócrates elogia a sua tem perança e a sua fidelidade conjugal, ele se re­
fere às exigências de seu status político: com o pretender o b ter a obe­
diência dos o u tro s se não pudesse assegurar a subm issão de seus p ró ­
prios desejos?1'' É em term os de prudência que A ristóteles recom en­
d ará, ao soberan o absoluto, não se entregar a q u alquer desregram en­
to; ele deve, efetivam ente, ter em conta, o apreço dos hom ens de bem
por sua h onra; p o r essa razão seria im prudente se os expusesse à hum i­
lhação dos castigos corporais; pela m esm a razão lhe seria necessário
abster-se “ das ofensas ao p u d o r da ju v en tu d e” . “ Q ue suas relações
íntim as com a ju v en tu d e sejam ditadas p o r razões de ordem sentim en­
tal, e n ão pela idéia de que tu d o lhe é perm itido e que, de m aneira ge­
ral, ele resgate tu d o o que pareça perda de consideração com honras
m aiores.” 156 E podem os lem brar que era isso o que se encontrava em
jogo no deb ate entre Sócrates e Cálicles: deve-se considerar aqueles
que governam os o u tro s em relação a eles pró p rio s com o “ governantes
ou governados (archontas ê archomenous)" - sendo esse governo de si
definido pelo fato de ser sõphrõn e enkratês. isto é, de “ co m an d ar em si
próprio os prazeres e os desejos” ?137
C hegará o dia em que o p aradigm a utilizado m ais freqüentem ente
p ara ilu strar a virtude sexual será o da m ulher ou da jovem que se de­
133.
134.
135.
136.
137.
76
A RISTO TE, Politique, V, 10.
X ÉN O PH O N , Cyropédie, VIII, 1, 30-34.
ISOCRATE, Nicoclès, 37-39.
A RISTO TE, Politique, V, 11, 1 315 a.
PLATON , Gorgias, 491 d.
fende co n tra os avanços daquele que tem to d o o poder sobre ela; a sal­
vaguarda da pureza e da virgindade, a fidelidade aos com prom issos e
aos votos constitu irão , en tão , a p ro v a típica da virtude. Essa figura
não é, certam ente, desconhecida na A ntigüidade; m as parece clara­
m ente que o hom em , o chefe, o senhor capaz de co n tro lar seu p ró p rio
apetite no m om ento em que seu pod er sobre outrem lhe fornece a pos­
sibilidade de usá-lo à vontade, representa m elhor, para o pensam ento
grego, um m odelo daquilo que é, n a sua p ró p ria natureza, a virtude de
tem perança.
2 . 0 que é afirm ado através dessa concepção do dom ínio com o li­
berdade ativa é o caráter “ viril” da tem perança. Assim com o na casa
cabe ao hom em com andar, assim com o na cidade não é aos escravos,
às crianças nem às m ulheres que com pete exercer o poder, m as aos h o ­
mens e som ente a eles, do m esm o m odo cada um deve pôr em o b ra
sobre si m esm o suas qualidades de hom em . O dom ínio de si é um a m a­
neira de ser hom em em relação a si p ró p rio , isto é, co m andar o que
deve ser com an d ad o , o b rig ar à obediência o que não é capaz de se diri­
gir p o r si só, im por os princípios da razão ao que desses princípios é
desprovido; em sum a, é um a m aneira de ser ativo em relação ao que,
por natureza, é passivo e que deve perm anecê-lo. N essa m oral de h o ­
m ens feita p a ra os hom ens, a elab o ração de si com o sujeito m oral con­
siste em in stau rar de si p a ra consigo um a estru tu ra de virilidade: é sen­
do hom em em relação a si que se poderá co n tro lar e dom inar a ativi­
dade de hom em que se exerce face aos o u tro s na prática sexual. N a
ju sta agonística consigo m esm o e na luta p a ra d om inar os desejos, é
necessário encam inhar-se p a ra o p o n to em que a relação consigo to r­
na-se isom orfa à relação de dom in ação , de h ierarquia e de au to rid ad e
que, na condição de hom em , e de hom em livre, pretende-se estabelecer
com os subordinados; sob essa condição de “ virilidade ética” é que se
poderá, segundo um m odelo de “ virilidade social” , estabelecer a m edi­
da que convém ao exercício da “ virilidade sexual” . N o uso desses p ra ­
zeres de m acho é necessário ser viril consigo com o se é m asculino no
papel social. A tem perança é, no sentido pleno, um a virtude de ho­
mem.
O que não quer dizer, evidentem ente, que as m ulheres n ão te ­
nham que ser tem perantes, que elas nãò sejam capazes de enkrateia ou
que elas ignorem a virtude de sõphrosunê. E n tretan to , essa v irtude ne­
las é sem pre referida, de certa form a, à virilidade. Referência in stitu­
cional, visto que é seu status de dependência em relação à fam ília e ao
m arido, e sua função p ro criad o ra possibilitando a perm anência do no­
me, a transm issão dos bens e a sobrevivência da cidade, que lhes im ­
põem a tem perança. M as, tam bém , referência estrutural, já que um a
77
m ulher, p a ra p o d er ser tem perante, deve estabelecer consigo um a rela­
ção de superio rid ad e e de dom inação que é em si m esm a um a relação
de tipo viril. É significativo que S ócrates, na Econômica de X enofonte,
após ter o uvido Isôm aco vangloriar-se dos m éritos da esposa que ele
próprio form ou, declara (n ão sem antes invocar a deusa da m atrim onialidade austera): “ Por H era! Eis que se revela em tu a m ulher um a
alm a bem viril (andrikê dianoia)". A o que Isôm aco, p a ra introduzir a
lição de p o stu ra sem coquetism o que tin h a d a d o à sua esposa, acres­
centa a seguinte réplica onde se lêem os dois elem entos essenciais dessa
virilidade virtuosa d a m ulher - força de espírito p ró p ria e dependência
em relação a^ m arido: “ Q u ero ain d a te citar o u tro s traços de sua força
de espírito (megalophrõn) e m o strar-te com que p ro n tid ã o ela me obe­
decia após o uvir m eus conselhos” .138
C o m o se sabe, A ristóteles se opôs explicitam ente à tese socrática
de um a unidade essencial da virtude e, p o rta n to , de um a identidade da
virtude nos hom ens e nas m ulheres. C o n tu d o , ele não descreve virtu­
des fem ininas que seriam estritam ente fem ininas; as virtudes que ele
reconhece nas m ulheres se definem em referência a um a virtude essen­
cial e que e n co n tra sua form a plena e acab ad a no hom em . E ele vê a
razão disso no fato da relação entre hom em e m ulher ser “ política” : é
a relação entre um governo e um governado. É necessário p a ra a boa
ordem da relação que am bos participem das m esm as virtudes; porém ,
cada um p articip ará à sua m aneira. A quele que co m an d a - o hom em ,
p o rta n to - “ possui a virtude ética em sua plen itu de” , en q u an to que
para os g o v ernados - e p a ra a m ulher - b asta ter “ o q u a n to de virtude
ap ro p ria d o a cada u m ” . P o rtan to , a tem perança e a coragem são no
hom em v irtu d e plena e com pleta “ de co m an d o ” ; q u an to à tem perança
ou à coragem da m ulher, são virtudes “ de su b o rd in a çã o ” , o que signi­
fica que elas en co n tram no hom em , ao m esm o tem po, seu m odelo per­
feito e acab ad o e o seu princípio de fu n cio n am ento.139
O u tra conseqüência, sim étrica e inversa d a precedente, decorre do
fato de ter a tem p eran ça um a estru tu ra essencialm ente viril: é que a in­
tem perança im plica um a passividade que a ap a re n ta à fem inidade. Ser
intem perante, com efeito, é encontrar-se num estado de nãoresistência e em posição de fraqueza e de subm issão em relação à força
dos prazeres; é ser incapaz dessa atitu d e de virilidade consigo que p er­
m ite ser m ais forte do que si p ró p rio . Nesse sentido, o hom em de p ra ­
zeres e de desejos, o hom em do n ão-dom ínio (akrasia) ou da intem pe­
rança (akolasia) é um hom em que se p oderia dizer fem inino e, em rela-
I3X.
139.
X É N O P H O N , Economique, X , I.
A R I S T O T E , Politique, I, 13, I 2 6 0 a.
ção a ele p ró p rio , ain d a m ais essencialm ente d o que em relação aos
outros. N u m a experiência da sexualidade com o a nossa, on d e um a ce­
sura fundam ental opõe o m asculino e o fem inino, a fem inidade do ho­
mem é percebida na transgressão efetiva ou virtual de seu papel sexual.
N inguém será te n ta d o a dizer de um hom em , cujo am o r às m ulheres o
leva ao excesso, que ele seja efem inado - a n ã o ser o p erando sobre o
seu desejo to d o um tra b a lh o de decifração e desentocando “ a hom os­
sexualidade laten te” que h ab ita em segredo sua relação instável e m ul­
tiplicada com as m ulheres. A o c o n trário , p a ra os gregos, é a oposição
entre atividade e passividade que é essencial e m arca ta n to o dom ínio
dos co m p o rtam en to s sexuais com o o das atitudes m orais; vê-se, então,
por que um hom em pode preferir os am ores m asculinos sem que nin­
guém sonhe em suspeitá-lo de fem inidade, desde que ele seja ativo na
relação sexual e ativo no dom ínio de si; em tro ca, um hom em que não
é suficientem ente d o n o de seus prazeres - pouco im porta a escolha de
objeto que faça - é con sid erad o com o “ fem inino” . A linha de d em ar­
cação entre um hom em viril e um hom em efem inado não coincide com
a nossa oposição entre hétero e hom ossexualidade; ela tam bém não se
reduz à oposição en tre hom ossexualidade ativa e passiva. Ela m arca a
diferença de atitu d e em relação aos prazeres; e os signos tradicionais
dessa fem inidade - preguiça, indolência, recusa das atividades um ta n ­
to rudes do esporte, gosto pelos perfum es e pelos adornos, la s s id ã o ...
(m alakia) - não designarão forçosam ente aquele que será ch am ad o no
Século X IX “ o inv ertid o ” , m as aquele que se deixa levar pelos p raze­
res que o atraem : ele é subm isso aos p ró p rio s apetites assim com o aos
dos outros. Face a um rap az m uito afetad o D iógenes se zanga; m as ele
considera que esse p o rte fem inino p ode trair ta n to o seu gosto pelas
m ulheres com o pelos h o m en s.'4" O que constitui, p ara os gregos, a negatividade ética p o r excelência, não é, evidentem ente, am ar os dois se­
xos; tam bém n ão o é preferir seu p ró p rio sexo ao outro; é ser passivo
em relação aos prazeres.
3.
Essa liberdade-poder que caracteriza o m odo de ser do hom em
tem peran te não pode conceber-se sem um a relação com a verdade.
D om inar os seus p ró p rio s prazeres e subm etê-los ao logos form am
um a única e m esm a coisa: o tem perante, diz A ristóteles, só deseja “ o
que a ju sta razão (orthos logos) prescreve” .141 É conhecido o longo de­
bate que se desenvolveu a p a rtir da trad ição socrática a p ro p ó sito do
140.
141.
D IO G È N E LA ERCE, Vie des philosophes, VI, 2, 54.
ARISTO TE, Éthique à Nicomaque, III, 12, 1 119 b.
79
papel do conhecim ento na virtude em geral e na tem perança em p a rti­
cular. X enofonte, nós M em oráveis, lem brou a tese de Sócrates segundo
a qual não se p oderia separar ciência e tem perança: àqueles que evo­
cam a possibilidade de saber o que convém fazer e, co n tu d o , de agir no
sentido co n trário , Sócrates responde que os intem peraiites são sempre,
ao m esm o tem po, ignorantes, visto que, de to d a form a, os hom ens
“ escolhem dentre to d as as ações aquelas que julgam ser as m ais van ta­
jo sas” .'42 Esses princípios serão longam ente discutidos por A ristóteles
sem que sua crítica venha en cerrar um debate que ainda con tin u ará no
estoicism o e à sua volta. M as que se adm ita ou n ão a possibilidade de
com eter o mal sabendo-o, e q ualquer que seja o m odo de saber supos­
to naqueles que agem a despeito d os princípios que conhecem , existe
um p o n to que não é contestado: é que não se pode p raticar a tem pe­
rança sem um a form a de saber que constitui pelo m enos uma de suas
condições essenciais. N ão se pode constituir-se com o sujeito m oral no
uso dos prazeres sem constituir-se ao m esm o tem po com o sujeito de
conhecim ento.
A relação ao logos na prática dos prazeres foi descrita pela filoso­
fia grega do Século IV sob três form as principais. U m a form a estrutu­
ral: a tem perança im plica que o logos seja colocado em posição de so­
berania no ser hum an o , que ele possa subm eter os desejos, e que seja
capaz de regular o co m portam ento. E n q u an to que, no intem perante, a
potência que deseja u surpa o prim eiro lugar e exerce a tirania, naquele
que é sõphrõn é a razão que com anda e prescreve de acordo com a es­
tru tu ra do ser hum ano: “ N ão cabe à razão, p ergunta Sócrates, com an­
d ar posto que é sábia e que é encarregada de velar sobre a totalidade
da alm a?” ; e a p artir daí ele define o sõphrõn com o aquele em quem as
diferentes partes da alm a estão em am izade e harm o nia, quando aque­
la que co m an d a e as que obedecem estão de acordo para reconhecer
que é a razão que deve co m an d ar e que elas não disputam m ais sua au ­
to rid a d e .14' E a despeito de todas as diferenças que opõem a tripartição
platônica da alm a à concepção aristotélica da época da Ética a Nicôm aco, é em term os de superioridade da razão sobre o desejo que aí se
encontra caracterizad a a sõphrosunê: “ o desejo do prazer é insaciável e
tudo o excita no ser desprovido de razão” ; o desejo, p o rta n to , crescerá
de m aneira excessiva “ se não se for dócil e subm isso à au to rid a d e” ; e
essa au to rid ad e é a do logos à qual deve conform ar-se a “ faculdade de
concupiscência {to epithum etikon) " .l4J
M as o exercício do logos na tem perança é tam bém descrito sob
142.
143.
144.
X É N O P H O N , M émorables , III, 9, 4.
P L A T O N , Republique, IV , 431 e - 4 32 b.
A R I S T O T E , Ethique à Nicomaque, II I, 12, 1 119 b.
um a form a instrum ental. Com efeito, a p a rtir do m om ento em que a
dom inação dos prazeres g aran te um uso que sabe adaptar-se às neces­
sidades, aos m om entos e às circunstâncias, um a razão prática torna-se
necessária, razão essa que possa determ inar, segundo a expressão de
A ristóteles, “ o que se deve, com o se deve e q u ando se deve” .145 Platão
sublinhava a im portância, p ara o indivíduo com o para a cidade, de
não usar os prazeres “ fora das circunstâncias o p o rtu n as (ektos tõn kairõn) e sem saber {anepistêmonõs) " , 146 E num espírito bem próxim o, Xenofonte m ostrava que o hom em de tem perança era tam bém o hom em
da dialética - a p to a co m an d ar e a discutir, capaz de ser m elhor - visto
que, explica Sócrates, nos M emoráveis, “ só os hom ens tem perantes
são capazes de considerar, dentre as coisas, aquelas que são as m elho­
res, de classificá-las prática e teoricam ente p o r gênero, de escolher as
boas e de abster-se das m ás” .147
Finalm ente, em Platão, o exercício do logos na tem perança a p a re­
ce sob um a terceira form a: a do reconhecim ento ontológico de si por
si. A necessidade de se conhecer a si m esm o a fim de p raticar a virtude
e dom inar os desejos foi um tem a socrático. M as q u an to à form a que
esse conhecimento de si deve tom ar, um texto como o grande discurso do
Fedro, onde se conta a viagem das alm as e o nascim ento do am or, fo r­
nece algum as precisões. Tem -se aí, sem dúvida, na literatura antiga, a
prim eira descrição daquilo que será m ais tard e “ o com bate espiri­
tu a l” . Aí se en co n tra - bem longe da im passibilidade e das proezas de
resistência ou de abstinência das quais Sócrates, segundo o A lcebíades
do Banquete, sabia d a r p rovas - to d a um a d ram atu rgia da alm a lu ta n ­
do consigo m esm a e c o n tra a violência de seus desejos; esses diferentes
elem entos terão um longo destino na história da espiritualidade: a per­
tu rb ação que se ap o d era da alm a e cujo p ró p rio nom e ela ignora, a in­
quietação que a m antém desperta, a efervescência m isteriosa, o sofri­
m ento e o p razer que se alternam e se m esclam , o m ovim ento que a rre ­
b ata o ser, a luta entre as potências opostas, as quedas, as feridas, os
sofrim entos, a recom pensa e o apaziguam ento final. O ra, ao longo
dessa n arrativ a que se dá com o a m anifestação daquilo que é, na sua
verdade, a natureza da alm a ta n to hum an a com o divina, a relação
com a verdade desem penha um papel fundam ental. C om efeito, p o r
ter contem plado “ as realidades que estão fora do céu” e percebido o
seu reflexo num a beleza deste m undo, a alm a é to m ad a pelo delírio de
am or, é colocada fora de si e n ão se possui mais; m as é tam bém pô rq u e
145.
146.
147.
Ibid.
PLATON, Lois, I, 636 d-e.
X ÉN O PH O N , Mémorables, IV, 5, 11.
81
essas lem branças levam -na “ p ara a realidade da beleza” , é porque ela
“ a revê, aco m p an h ad a da sab ed o ria e elevada sobre o seu pedestal sa­
g rado ” , que ela se contém , que to m a a si de sofrear o desejo físico e
p rocu ra liberar-se de tu d o o que poderia entorpecê-la e im pedi-la de
reenco n trar a verdade que ela viu.148 A relação da alm a com a verdade
é, ao m esm o tem po o que fundam enta o Eros em seu m ovim ento, for­
ça e intensidade e o que, ajudando-o a desenredar-se de qualquer gozo
físico, perm ite-lhe to rn ar-se o verdadeiro am or.
C om o vem os, a relação com o verdadeiro constitui um elem ento
essencial da tem perança, q u er seja sob a form a de um a estru tu ra hie­
rárquica do ser hum ano, sob a form a de um a p rática de prudência ou
de um reconhecim ento pela alm a de seu ser próp rio. Essa relação é ne­
cessária p a ra o uso com edido dos prazeres, necessária p ara a dom ina­
ção de sua violência. M as é preciso ver que essa relação com o verda­
deiro jam ais assum e a form a de um a decifração de si por si e de um a
herm enêutica d o desejo. Ela é co nstitutiva do m odo de ser do sujeito
tem perante; não equivale a um a obrigação p ara o sujeito de dizer a
verdade sobre si p róprio; nunca abre a alm a com o um dom ínio de co­
nhecim ento possível o nde as m arcas dificilm ente perceptíveis do dese­
jo deveriam ser lidas e interpretadas. A relação com a verdade é um a
condição estru tu ral instrum ental e ontológica d a instauração do in­
divíduo com o sujeito tem p eran te e levando um a vida de tem perança;
ela não é um a condição epistem ológica p a ra que o indivíduo se reco­
nheça na sua singularidade de sujeito desejante, e p a ra que possa purificar-se do desejo assim elucidado.
4.
O ra, e m b o ra essa relação com a verdade, constitutiva do sujei­
to tem perante, n ão conduza a um a herm enêutica do desejo, com o será
o caso na espiritualidade cristã, ela abre, em com pensação, p ara um a
estética da çxistência. Deve-se entender com isso um a m aneira de viver
cujo valor m oral n ão está em sua conform idade a um código de com ­
p o rtam en to nem em um trab alh o de purificação, m as depende de cer­
tas form as, ou m elhor, certos princípios form ais gerais no uso dos p ra­
zeres, na distrib u ição que deles se faz, nos lim ites que se observa, na
hierarquia que se respeita. Pelo logos, pela razão e pela relação to m o
verdadeiro que a governa, um a tal vida inscreve-se na m anutenção ou
reprodução de um a ordem ontológica; e, p o r o u tro lado, recebe o bri­
lho de um a beleza m anifesta aos olhos daqueles que podem contem ­
plá-la ou g uardá-la na m em ória. Essa existência tem perante, cuja me­
dida, fu n d am en tad a na verdade, é ao m esm o tem po respeito de uma
I4X.
82
PLATON , Ptiedre, 254 b.
estrutu ra ontológica e perfil de um a beleza visível, foi frequentem ente
esboçada p o r X enofonte, P latão e A ristóteles. Eis p o r exem plo em
Górgias a m aneira pela qual Sócrates a descreve dando ele m esm o às
suas p róprias questões as respostas de Cálicles silencioso: “ A q u a lid a­
de pró p ria a cada coisa, móvel, corpo, alm a, q ualquer anim al, n ão lhe
vem por acaso: ela resulta de um a certa ordem , de uma certa justeza,
de um a certa arte (taxis, orthotês, technê) ad ap tad as à n atureza dessa
coisa. Seria isso verdade? De m inha parte, eu o afirm o. - Assim , p o r­
tan to , a virtude de cada coisa consiste num arran jo e num a disposição
feliz resultante da ordem ? Eu o su stentaria. - C onseqüentem ente, uma
certa beleza de arran jo (kosm os tis), p ró p ria à n atureza de cada coisa é
o que, p o r sua presença, to rn a essa coisa boa? Eu o creio. - E p o r co n ­
seguinte, tam bém , um a alm a na qual se encontra a ordem que convém
à alm a vale m ais do que aquela onde essa ordem está ausente? N eces­
sariam ente. - O ra, um a alm a que possui a ordem é um a alm a bem o r­
denada? Sem dúvida. - E um a alm a bem o rd en ad a é tem perante e sá­
bia? N ecessariam ente. - P o rta n to um a alm a tem perante é b o a . . . eis o
que, q u an to a mim, afirm o e sustento com o certo. Se isso é verdade,
parece-m e pois que cada um de nós, p a ra ser feliz, deve buscar a tem ­
perança e nela exercitar (diõkteon kai askêteon)” .'**
Fazendo eco a esse texto que liga a tem perança e a beleza de um a
alm a cujo o rd en am en to co rresp o n d e à sua natu reza p ró p ria, a R e­
pública m o strará, inversam ente, a que p o n to são incom patíveis o es­
plendor de um a alm a e de um co rp o com o excesso e a violência dos
prazeres: “ Se um hom em reúne, ao m esm o tem po, um belo caráter
(kala êthê) na sua alm a, e no seu exterior traço s que se com binam e seajustam ao seu caráter, p o rq u e eles participam do m esm o m odelo, n ão
é esse o m ais belo espetáculo p a ra quem pode vê-lo? - D e longe o m ais
belo. - O ra, o m ais belo é tam bém o m ais am ável (eràsmiõtatón)? Sem objeção. - M as diga-m e, o abuso do prazer se ajusta com a tem r
perança? - C om o isso p o d eria o co rrer visto que ele p ertu rb a a alm a
ta n to q u an to a dor? - E com a virtude em geral? - N ão. - E com a vio­
lência e a incontinência (hubris, akolasia)? - M ais do que com qu al­
quer o u tra coisa. M as podes citar um prazer m aiôr e m ais vivo do que
o prazer de am or? - N ão , m ais furioso n ão existe. - A o c o n trário , o
am or que é segundo a razão (ho orthos eros) é um am or sábio e regra­
do, da ordem e da beleza? - C ertam ente. - É preciso, p o rta n to , não
deixar aproxim ar d o am o r razoável a lo u cu ra nem nada que se asse­
melhe à incontinência” .150
149.
150.
PLATON , Gorgias, 506 d - 507 d.
PLATON , République, III, 402 d - 403 b.
83
T am bém pode-se lem brar a descrição ideal que X enofonte p ro p u ­
nha a respeito da corte de C iro, que dava a si p ró p ria o espetáculo da
beleza, m ediante o perfeito dom ínio que cada um exercia sobre si; o
soberano m anifestava ostensivam ente um dom ínio e um com edim ento
em to rn o dos quais se distribuíam em todos, e de aco rd o com as posi­
ções de cada um , um a cond u ta m edida, o respeito de si e dos outros, o
controle cuidadoso da alm a e do corpo, a econom ia dos gestos, de tal
m odo que nenhum m ovim ento in v oluntário e violento viesse p ertu r­
bar um o rd en am en to de beleza que parecia presente no espírito de to ­
dos: "N u n c a se poderia ouvir alguém vociferar em cólera e em alegria,
rir a plenos pulm ões, mas vendo-os dir-se-ia que eles tom avam a bele­
za por m o d e lo ".1' 1O indivíduo se realiza com o sujeito m oral na plásti­
ca de um a co n d u ta m edida com exatidão, bem visível de to d o s e digna
de um a longa m em ória.
Eis o que é apenas um esboço de caráter prelim inar; alguns traços
gerais que caracterizam a m aneira pela qual se refletiu, no pensam ento
grego clássico, a prática sexual, e pela qual ela foi constituída com o
cam po m oral. O s elem entos desse cam po - a “ substância ética" - eram
form ados por aphrodisia, isto é, atos d eterm inados pela natureza, asso­
ciados por ela a um prazer intenso, e aos quais ela conduz através de
um a força sem pre suscetível de excesso e de revolta. O princípio segun­
do o qual devia-se regrar essa atividade, o “ m odo de sujeição", não
era definido p o r um a legislação universal, determ inando os atos per­
m itidos e os proibidos; mas ao contrário , p o r um savoir-faire, um a arte
que prescrevia as m odalidades de um uso em função de variáveis di­
versas (necessidade, m om ento, status). O trab alh o que o indivíduo de­
via exercer sobre si, a ascese necessária, tin h a a form a de um com bate
a ser su stentado, de um a vitória a ser co n q u istada estabelecendo-se
uma dom in ação de si sobre si, segundo o m odelo de um poder dom és­
tico ou político. Enfim , o m odo de ser ao qual se acedia por meio des­
se dom ínio de si caracterizava-se com o um a liberdade ativa, indisso­
ciável de um a relação estru tu ral, instrum ental e o ntológica com a ver­
dade.
C om o verem os agora, essa reflexão m oral desenvolveu, a p ro p ó ­
sito do co rp o , do casam ento, do am or pelos rapazes, tem as de austeri­
dade que se assem elham aos preceitos e interdições que poderão ser
en con trad o s p osteriorm ente. M as. é preciso ter em m ente que o sujeito
m oral não será constituído da m esm a m aneira sob essa continuidade
aparente. N a m o ral cristã do co m p o rtam en to sexual, a substância éti­
ca não será definida pelos aphrodisia, m as p o r um cam po dos desejos
151.
XÉN O PI1'
N , Cyropédie, V III , I, 33.
84
(
que se escondem nos arcanos do coração e por um conjunto de atos
cuidadosamente definidos em sua forma e em suas condições; a sujei­
ção não tomará a forma de um savoir-faire mas de um reconhecimento
da lei e de uma obediência à autoridade pastoral; portanto, não é tanto
a dom inação perfeita de si por si, no exercicio de uma atividade de tipo
viril, que caracterizará o sujeito m oral, m as sim a renúncia de si e um a
pureza, cujo m oaelo deve ser buscado do lado da virgindade. A p a rtir
daí, pode-se com preender a im portância, na m oral cristã, dessas duas
práticas, ao m esm o tem po o postas e com plem entares: um a codifica­
ção dos atos sexuais, que se to rn a rá cada vez m ais precisa, e o desen­
volvim ento de um a h erm enêutica d o desejo e dos procedim entos de
decifração de si.
Esquem aticam ente, pode-se dizer que a reflexão m oral da A nti­
güidade a p ro p ó sito dos prazeres não se orienta para um a codificação
dos atos, nem p a ra um a herm enêutica do sujeito, mas para um a estilização da atitu d e e um a estética da existência. Estilização, visto que a
rarefação d a atividade sexual se apresenta com o um a espécie de exi­
gência aberta: pode-se constatá-lo facilmente: nem os m édicos, ao da­
rem conselhos de regime, nem os m oralistas, ao pedirem aos m aridos
para respeitar suas esposas, nem aqueles que d ão conselhos sobre a
boa co n d u ta no am o r pelos rapazes, dirão exatam ente o que é preciso
ou não fazer na ordem dos ato s ou p ráticas sexuais. E a razão disso
não está, sem dúvida, no p u d o r ou na reserva dos autores, m as no fato
de que o problem a não é esse: a tem perança sexual é um exercício da
liberdade que tom a form a no dom ínio de si; e esse dom ínio se m anifes­
ta na m aneira pela qual o sujeito se m antém e se contém no exercício
de sua atividade viril, na m aneira pela qual ele se relaciona consigo
m esm o na relação que tem com os outros. Essa atitude, m uito m ais do
que os atos que se com etem ou os desejos que se escondem , dão base
aos ju lgam entos de valor. V alor m oral que é tam bém um valor estéti­
co, e valor de verdade, visto que, ao m anter-se na satisfação das verda­
deiras necessidades, ao respeitar a verdadeira h ierarquia do ser h u m a ­
no, e não esquecendo jam ais o que se é verdadeiram ente, é que se p o ­
derá dar à sua p ró p ria co n d u ta a form a que assegura o renom e e m ere­
ce a m em ória.
É preciso ver ag o ra de que m aneira alguns dos grandes tem as da
austeridade sexual, que iriam ter um destino histórico m uito além da
cultura grega, foram form ados e desenvolvidos no pensam ento do Sé­
culo IV. N ã o partirei de teorias gerais do prazer ou da virtude; apoiarme-ei em p ráticas existentes e reconhecidas, pelas quais os hom ens
procuravam d ar form a à sua conduta: p rática do regime, p rática do
governo dom éstico, p rática da corte no co m p o rtam en to am oroso; ten­
tarei m o strar de que m aneira essas três práticas foram objeto de refle­
xão na m edicina ou na filosofia, e de que m aneira essas reflexões pro85
puseram diversos m odos, não de codificar com precisão a co n duta se­
xual, mas antes de “ estilizar” ; estilizações na D ietética, com o arte da
relação cotidiana do indivíduo com o p ró p rio corpo, na Econôm ica,
com o arte da co n d u ta do hom em en q u an to chefe de fam ília, na Eróti­
ca, com o arte da co n d u ta recíproca entre o hom em e o rapaz na rela­
ção de a m o r.152
152. O livro de Henri JO LY , Le renversement platonicien, dá um exemplo da m aneira
pela qual se pode analisar, no pensamento grego, as relações entre o cam po das práticas
e a reflexão filosófica.
C A P ÍT U L O II
D IET ÉT IC A
\ rellexão moral dos gregos sobre o compor tamento sexual n ã o
procurou justificar interdições. mas estili/ar unia liberdade: aquela
que o homem "livre" exerce em sua atividade. Dai o que pode passar.
.1 primeira vista, por paradoxo: os gregos praticaram, aceitaram e \al o n / a r a m as relações entre homens e rapa/es: e. contudo, seus filóso­
fos conceberam e edificaram, a esse respeito, uma moral da abstenção
I l e s admitiram perfeitamente que um homem casado pudesse pr o c u­
rar seus pra/eres sexuais fora do casamento e. no entanto, seus m o r a ­
listas conceberam o princípio de uma vida matrimonial em que o mar i­
do so teria relação com a própria esposa. Hles jamais conceberam o
pra/er sexual como um mal em si mesmo ou podendo fa/er parle dos
estigmas naturais de um pecado; e, contudo, seus médicos se inquieta­
ram com as relações entre a atividade sexual e a saúde, e desenvolve­
ram toda uma reflexão sobre os perigos de sua prática.
Comecemos por esse último ponto. É preciso notar de imediato
que essa reflexão não consistia, quant o ao essencial, na análise dos di­
ferentes efeitos patológicos da atividade sexual: ela também não p r o­
curava organi/ ar esse compo rt ame nt o como um campo onde se pudes­
s e distinguir condutas normais e práticas anormais e patológicas. Sem
!ii\ida e s s e s temas não estavam totalmente ausentes. Mas não é isso
que constituía o quadro geral da interrogação sobre as relações entre
os aphnitliua. a saúde, a v ida e a morte. O cuidado principal dessa rellcxão era definir o uso dos pra/eres - suas condições favoráveis, sua
prática útil e sua rarelação necessária - cm função de uma certa m a ­
neira de ocupar-se do próprio corpo. A preocupação era muito mais
"dietética” do que "terapêutica": questão de regime, visando regular
uma atividade reconhecida como importante para a saúde. A proble89
1
m ali/ação m édica do com p o rtam en to sexual fez-se m enos a p artir dos
cuidados com a elim inação de suas form as patológicas do que a partir
da vontade de integrá-lo o m elhor possível à gestão da saúde e à vida
do corpo.
90
1
DO REGIME EM GERAL
A fim de esclarecer a importância que os gregos atribuíam ao re­
gime. o sentido geral que davam à “ dietética", e a maneira pela qual
eles ligavam sua prática à medicina, podemos nos referir a duas n a r ra ­
tivas sobre a origem: uma se encontra na coleção hipocrática e a outra
em Platão.
O autor do tratado sobre a Medicina Amiga, longe de conceber o
regime como uma prática adjacente à arte médica - uma de suas apli­
cações ou um de seus prolongament os - faz, ao contrário, a medicina
surgir da preocupação primeira e essencial com o regime.1 A h u m a n i ­
dade. segundo ele, ter-se-ia separado da vida animal por uma espécie
de ruptura de dieta; com efeito, originalmente os homens teriam usa­
do uma alimentação semelhante à dos animais: carne e vegetais crus e
sem preparação. Tal forma de se alimentar podia enrijecer os mais vi­
gorosos. mas era severa para os mais fracos: em suma, morria-se j o ­
vem ou velho. Os homens teriam, portanto, pr ocurado um regime
mais adapt ado "à sua n at ur e/a ": é esse regime que caracteriza, ainda,
a atual maneira de viver. Mas graças a essa dieta mais branda as d o e n­
ças tornaram-se menos imediatamente mortais; percebeu-se. então,
que a alimentação daqueles que estão bem de saúde não podia convir
aos doentes: outros alimentos lhes eram necessários. A medicina teria
então se formado como “ dieta" própria aos doentes e a partir de uma
interrogação sobre o regime específico que lhes convém. Nessa narra-
I
H I IM’OC R A T I ..
I.\h h ic n r,c n iciiu u w .
li!.
91
tiva sobre a origem é a dietética que aparece com o inicial: ela dá lugar
à m edicina e n q u an to um a de suas aplicações particulares.
Platão - b astan te desconfiado q u a n to à p rática dietética, ou pelo
m enos q u a n to aos seus excessos, que ele tem ia pelas razões políticas e
m orais que verem os - pensa, ao co n trário , que a preocupação com o
regime surgiu de um a m odificação nas práticas m édicas:: na origem o
deus A sclépios teria ensinado aos hom ens de que m aneira cu rar doen­
ças e feridas com rem édios drásticos e.operações eficazes. H om ero, se­
gundo Platão, na n arrativ a que faz das curas de M enelau e de Euripilo
nos m uros de T ró ia, d ará testem unho dessa prática das m edicações
simples: chupava-se o sangue dos feridos, derram ava-se alguns em o­
lientes sobre as chagas e dava-se, p a ra beber, vinho polvilhado de fari­
n ha e de queijo ra la d o .' Foi m ais tard e, q u an d o os hom ens se afasta­
ram da vida ru d e e sã dos antigos tem pos, que se pro cu ro u acom pa­
nhar “ passo a passo” as doenças e m anter, m ediante um longo regime,
aqueles que estavam m al de saúde, e que ju stam en te se encontravam
assim porque, n ão vivendo m ais com o convinha, eram vítim as de m a­
les duráveis. A dietética aparece, segundo essa gênese, como. um a espé­
cie de m edicina p a ra os tem pos d e ia ssid ã o ; ela era destinada às exis­
tências m al co nduzidas e que buscam prolongar-sé. Vê-se, contudo,
que, em b o ra p a ra Platão a dietética n ã o seja um a arte originária, não é
porque o regim e, a diaite, n ão ten h a im portância; a razão pela qual, na
época de A sclépios o u de seus prim eiros sucessores, não existia uma
preocupação com a dietética, é que “ o regim e” realm ente seguido pe­
los hom ens, a m aneira pela qual eles se alim entavam e se exercitavam
era conform e à n atu reza.4 N essa perspectiva, a dietética foi, efetiva­
m ente, um a inflexão da m edicina; m as ela só se to rn o u esse prolonga­
m ento da arte de c u ra r a p a rtir d o m om ento em que o regime, com o
m aneira de viver, separou-se da natureza; e se ela constitui sem pre o
aco m p an h am en to necessário da m edicina, é na m edida em que não sc
poderia cuid ar de quem q u er que seja sem retificar o m o d o de vida que
o to rn o u efetivam ente d oente.5
Em to d o caso., q u er se faça da dietética um a arte prim itiva ou se
veja nela um a derivação ulterior, é claro que a p ró p ria “ dieta” , o regi­
me, é um a categoria fundam ental através d a qual pode-se pensar a
co n d u ta hum ana; ela caracteriza a m aneira pela qual se conduz a pró­
pria existência, e perm ite fixar um co n ju n to de regras p a ra a conduta:
2. PLATON , République, III, 405 e - 408 d.
3. D e fato.-as indicações dadàs p or Platão não são exatam ente aquelas encontradas na
Ilíada (XI, 624 e 833).
4. PLATON , République, III, 407 c.
5. Sobre a necessidade d o regime para a cura das doenças, ver tam bém Timée, 89 d
92
um m odo de problematização do com portam ento que se faz em fun­
ção de uma natureza que é preciso preservar e à qual convém confor­
mar-se. O regime é toda uma arte de viver.
1.
O dom ínio que um regime convenientem ente refletido deve
cobrir é definido p o r u m a lista que, com o tem po, assum iu um valor
quase canônico. É a que se en co n tra no IV livro das Epidemias; ela
com preende: “ os exercícios (ponoi), os alim entos (sitia), as bebidas
(pota), os sonos (hupnoi), as reJações sexuais (aphrodisia)” - to d as sen­
do coisas que devem sfer “ m edidas” .6 A reflexão dietética desenvolveu
essa en um eração. D entre os exercícios distingue-se aqueles que são n a­
turais (an d ar, passear), e aqueles que são violentos (a corrida, a luta):
lixa-se quais são os que convém p ra tic a r/e com que intensidade, em
lunção da hora do dia, d o m om ento d o ano, da idade do sujeito e da
sua alim entação. A os exercícios são relacionados os banhos, m ais ou
m enos quentes, e que tam bém dependem da estação, da idade, das a ti­
vidades e das refeições que foram feitas ou que ainda se vai fazer. O
regime alim entar - com ida e b ebida - deve levar em conta a n atureza e
a q u an tid ad e do que se absorve, o estado geral do corpo, o clim a, as
atividades que se exerce. As evacuações - purgações e vôm itos - vêm
corrigir a p rática alim entar e seus excessos. T am bém o sono co m p o rta
diferentes aspectos que o regime p ode fazer variar; o tem po que lhe é
consagrado, as horas escolhidas, a qualidade do leito, sua dureza, seu
calor. O regime, p o rta n to , deve levar em co n ta num erosos elem entos
da vida física de um hom em , o u pelo m enos de um hom em livre; e isso
ao longo de to d o s os dias, do lev an tar ao deitar. O regim e, q u a n d o é
detalh ad o , assum e a form a de um a verdad eira agenda do dia: é dessa
form a que o regim e p ro p o sto p o r Diocles segue, a cada m om ento, o
fio do dia com um , desde o a co rd ar pela m anhã até a refeição da noite
e o adorm ecer, passando pelos p rim eiros exercícios, as abluções e as
fricções do corp o e da cabeça, os passeios, as atividades privadas e o
ginásio, o alm oço, a sesta, depois de novo o passeio e o ginásio, as u n ­
ções e as fricções, o ja n ta r. Ao longo de to d o o tem po, e a p ro p ó sito de
cada um a dàs atividades d o hom em , o regime problem atiza a relação
com o corp o e desenvolve um m odo de viver cujas form as, escolhas e
variáveis são determ in ad as pelò cu id ad o com o corpo. M as não é ape­
nas o corpo que está em causa.
o. HIIM’O t R A T I : . Epidemie*. V I, 6. I. S o b r e d if e r e n te s i n t e r p r e t a ç õ e s d e s s e t e x t o na
A n t i g ü i d a d e . cf. I I I I ’ I’O C R A T E . Oeuvres, t r a d . L i ttré , t. V . p p . 32 3-324.
93
2.
N os diferentes cam pos em que é solicitado, o regime tem que
estabelecer u m a m edida: “ U m porco se d aria conta disso” , com o diz
um dos in terlocutores do diálogo platô n ico dos Rivais:’ “ no que diz
respeito ao co rp o ” , é útil “ o que está na ju sta m edida” e não o que está
em m aior ou m enor quantidade. O ra, essa m edida deve ser com preen­
dida n ão som ente n a ordem corporal, m as n a ordem m oral. Os pitagóricos que, sem dúvida, desem penharam um papel im portante no d e­
senvolvim ento d a dietética, m arcaram com nitidez a correlação entre
os cuidados a serem dados ao corpo e o cuidado em preservar na alm a
sua pureza e harm o n ia. Se é verdade que eles pediam à medicina a p u r­
gação d o co rp o e, à m úsica, a purgação d a alm a, eles tam bém atri­
buíam , ao can to e aos instrum entos, efeitos benéficos sobre o
equilíbrio do organism o.* As num erosas proibições alim entares que
eles se prescreviam tinham significações culturais e religiosas; e a críti­
ca que faziam a qualq u er abuso na ordem do alim ento, da bebida, dos
exercícios e d as atividades sexuais, tin h a ao m esm o tem po valor de
preceito m oral e de conselho eficaz p a ra a saúde.’
M esm o fora d o contexto estritam ente pitagórico, o regime se defi­
ne nesse duplo registro: o da boa saúde e o do bom estado da alm a. E
isso p orque eles se induzem um ao o u tro , m as tam bém porque a reso­
lução de seguir um regime m edido e razoável, assim com o a aplicação
com que a ele se dedica, dependem p o r si m esm as de um a indispensá­
vel firm eza m oral. O Sócrates de X enofonte m arca bem essa correla­
ção q u an d o recom enda aos jovens exercerem regularm ente o corpo
pela p rática da ginástica. Ele vê nisso a g aran tia de m elhor se defender
na guerra, evitar com o soldado a reputação de covardia, m elhor servir
à pátria, o b ter altas recom pensas (e, p o rta n to , deixar fortuna e status
para os seus descendentes); ele espera, com isso, um a proteção contra
as doenças e as enferm idades do corpo. M as sublinha tam bém os bons
efeitos dessa ginástica lá, diz ele, onde m enos se espera: no pensam en­
to, já que um co rp o em má saúde tem com o conseqüências o esqueci­
m ento, o desânim o, o m au hum or, a loucura, a p o n to de que os conhe­
cim entos ad q u irid o s acabam sendo b anidos d a a lm a.10
7. PSEU D O -PLA TO N , Rivaux, 134 a-d.
8. Cf. R. JO LY , “ N otice" sobre H1PPOCRATE, Du regime (C. I). F.), p. XI.
9. “ Ele tinha . . . para as doenças corpóreas várias curativas por meio das quais o seu
canto levantava os doentes. O utras faziam esquecer a dor, acalm avam as cóleras, afasta­
vam os desejos desordenados. Agora, seu regime: mel no almoço, no jan ta r bolachas, le­
gumes, raram ente carne . . . Desse m odo, seu corpo guardava o mesmo estado como um
prum o, sem ficar às vezes são, às vezes doente, com o tam bém sem engordar e aum entar
às vezes, e às vezes dim inuir e emagrecer e sua alm a sempre m ostrava, por seu olhar, o
mesmo caráter (to homoion ethos)". PO R PH Y R E, Vie de Pythagore, 34. Pitágoras teria
tam bém dado conselhos de regime aos atletas (ibid., 15).
10. X É N O PH O N , Mémorables, III, 12.
94
¥
M as é tam bém p o rq u e o rigor de um regim e físico, com a resolu­
ção que é exigida p a ra segui-lo, d em an d a um a indispensável firm eza
m oral, e ela perm ite exercê-lo. É nisso que consiste, aos olhos de Pla­
tão , a verdadeira razão q u e se deve d ar às práticas p o r meio das quais
se ten ta ad q u irir a força, a beleza e a saúde d o corpo: não som ente, diz
Sócrates no livro IX d a República, o hom em sensato “ não se entregará
ao prazer bestial e irracio n al” ; n ão som ente ele não dirigirá “ a esse
lado suas p reocupações” ; fará mais; “ N ão terá consideração com a
sua saúde e n ã o d a rá im p o rtân cia a ser forte, são e belo, se com isso
não se to rn a r tem p eran te” . O regim e físico deve-se o rd en ar ao princí­
pio de um a estética geral da existência, onde o equilíbrio corporal será
um a das condições da ju s ta h ierarq u ia d a alma; “ ele estabelecerá a
harm o n ia no seu corp o visando m an ter o acordo em sua alm a” - o que
lhe perm itirá conduzir-se com o verdadeiro m úsico (m ousikos)." O re­
gim e físico não deve p o rta n to ser cultivado p o r si m esm o de m odo de­
m asiado intenso.
R econhece-se facilm ente a possibilidade de um perigo na p ró p ria
prática d a “ d ieta” . Pois se o regim e tem p o r objetivo evitar os exces­
sos, pode o co rrer um exagero na im po rtân cia que se lhe atribui e na
au to n o m ia que se lhe concede. Esse risco em geral é percebido sob
duas form as. Existe o perigo daquilo que se poderia cham ar o excesso
“ atlético” ; ele é devido a exercícios repetidos que desenvolvem exageradam ente o co rp o , e que acabam p o r adorm ecer a alm a enterrad a
num a m u sculatura dem asiado p otente: em várias passagens, P latão re­
prova esse desenvolvim ento forçado dos atletas, e declara não querer
isso para os jovens de sua c i d a d e . M a s existe tam bém o perigo d aq u i­
lo que se p oderia ch am ar o excesso “ valetu d in ário” : trata-se da vigi­
lância de to d o s os instantes que se dedica ao corpo, á saúde e aos seus
m enores males. O m elhor exem plo desse excesso é dado, segundo Pla­
tão , p o r aquele que era con sid erad o um dos fundadores da dietética, o
pedótrib o H eródicos; to talm en te o cu p ad o em não infringir a m enor
regra do regime que se im pôs, teria “ a rra sta d o ” du ran te anos um a
vida agonizante. Platão rep ro v a essa atitu d e de duas m aneiras. É p ró ­
prio de hom ens ociosos que n ão são úteis p ara a cidade; pode-se co m ­
p arar-lhes com vantagem esses sérios artesãos que, m esm o com enxa­
queca, não vão enfaixar a cabeça p o rq u e n ão têm tem po a perder com
os pequenos cuidados com a saúde. M as é tam bém o caso daqueles
que, p a ra não perderem a vida, ten tam com o podem re tard a r o term o
11. PLATON , Republique, IX, 591 c-d.
12. Ibid., Ill, 404 a. A RISTÓ TELES critica tam bém os excessos do regime atlético de
certos treinam entos ( Politique, VIII, 16, 1 335 b; e VIII, 4, 1 338 b - 1 339 a).
95
1
fixado pela n atureza. A prática do regim e traz consigo esse perigo m oral com o tam bém político - de d ar ao co rp o cuidados exagerados
(perittêepim eleia tou sõm atos)." A sclépios, que só curava com poções e
ressecções, era um sábio político: ele sabia que num Estado bem go­
vernado a ninguém é lícito passar a vida com o d oente e fazendo-se cui­
d a r.14
3.
A desconfiança a respeito dos regimes excessivos m ostra que a
dieta não tem p o r finalidade conduzir a vida o m ais longe possível no
tem po, nem o m ais alto possível no desem penho, mas torná-la útil e fe­
liz nos lim ites que lhe foram fixados. Ela tam bém não deve propor-se a
fixar de um a vez p o r todas as condições de um a existência. Um regime
que só perm ita viver num único lugar e com um único tipo de alim en­
to. sem que se possa ficar exposto a algum tipo de m udança, não é
bom . A utilidade d o regime está, precisam ente, na possibilidade que
dá aos indivíduos de poderem en frentar situações diferentes. É assim
que P latão opõe o regim e dos atletas, tã o estrito a p o n to de não per­
m itir que eles se afastem sem “ graves e violentas d o enças", àquele que
ele gostaria de ver ad o ta d o por seu sg u erreiro s; estes devem ser com o
cães, sem pre despertos; q u an d o estão em cam panha devem poder
“ m u d ar freqüentem ente de águas e de alim entos” , expor-se “ alterna­
dam ente ao sol escaldante e ao frio do in v ern o ", ao m esm o tem po que
m antêm um a “ saúde inalterável” .1' Sem dúvida, os guerreiros de Pla­
tão possuem responsabilidades particulares. E n tretanto, regimes mais
gerais obedecem tam bém a esse m esm o princípio. O a u to r do Regime
da coleção h ipocrática aten ta em su blinhar que ele não dirige seus con­
selhos a uns poucos inativos privilegiados, m as ao m aior núm ero de
pessoas; a saber, “ aqueles que trab alh am , os que se deslocam , nave­
gam e se expõem ao sol e ao frio” ."’ Já ocorreu interpretar-se essa pas­
sagem com o a m arca de um interesse p articu lar desse texto pelas for­
mas da vida ativa e profissional. M as é preciso so bretudo reconhecer
nele a preo cu p ação - aliás com um à m oral e à m edicina - de arm ar o
indivíduo p ara a m ultiplicidade das circunstâncias possíveis. N ão se
pode e n ão se deve pedir ao regime que co n to rn e a fatalidade ou que
dobre a natureza. O que se espera dele é que p erm ita reagir, sem ser às
cegas, aos acontecim entos im previstos tais com o se apresentam . A die-
13. P L A T O N , Republique, III, 406 a - 407 b.
14. Ibid., 407 c-e. N o Timeu, Platão ressalta que para cada ser vivo a duração da vida é
fixada pela sorte (89 b-c).
15. PLATON , République, III, 404 a-b.
16. H IPPO G RA TE, Du régime, III, 69,1; cf. a nota de R. JO LY na edição da C. U. F.,
p. 71.
96
w
tética é um a arte estratégica no sentido de que ela deve perm itir res­
ponder, de um a form a que seja razoável, e p o rta n to útil, às circu n stân ­
cias.
N a vigilância que ela exerce sobre o corpo e suas atividades ela re­
quer da p arte do indivíduo d uas form as de atenção bem particulares.
Ela exige o que se poderia c h am ar um a aten ção “ serial” , um a atenção
às seqüências: as atividades n ão são sim plesm ente boas ou m ás em si
mesmas; seu valor é em p arte determ in ad o p o r aquelas que as prece­
dem e que a elas se seguem , e a m esm a coisa (um certo alim ento, um
tipo de exercício, um b an h o q uente ou frio) será recom endada ou de­
saconselhada conform e se ten h a tid o ou se vá ter tal ou tal o u tra ativi­
dade (as práticas que se seguem devem ser com pensadas em seus efei­
tos, m as o con traste entre elas n ão deve ser dem asiadam ente forte).
A prática do regim e tam bém im plica um a vigilância “ circunstancial” ,
um a atenção ao m esm o tem po aguda e am pla que é necessário dirigir
p a ra o m undo exterior, seus elem entos, suas sensações: o clim a, evi­
dentem ente, as estações, as h oras do dia, o grau de um idade e de secu­
ra, de calo r e de frescor, os ventos, os caracteres próprios de um a re­
gião, a im plantação de um a cidade. E as indicações relativam ente de­
talhadas que são dad as pelo regim e hipocrático devem servir, àquele
que se fam iliarizou com elas, p a ra m o d u lar sua m aneira de viver em
função de to d as essas variáveis. O regim e não é p a ra ser considerado
com o um co rp o de regras universais e uniform es; é, antes de m ais na­
da, um a espécie de m anual p a ra reagir às situações diversas nas quais
é possível encontrar-se; um tra ta d o p a ra aju star o co m portam ento de
acordo com as circunstâncias.
4.
Enfim , a dietética é um a técnica de existência no sentido de que
ela não se co n ten ta em tran sm itir os conselhos de um m édico p ara um
indivíduo que iria aplicá-los passivam ente. Sem e n tra r aqui na história
do debate em que se opuseram m edicina e ginástica a pro p ó sito de
suas respectivas com petências p ara a determ inação do regime, é neces­
sário reter que a dieta n ão é concebida com o um a obediência nua ao
saber do o u tro ; ela deveria ser, p o r p arte do indivíduo, um a prática re­
fletida de si m esm o e de seu corpo. É certo que, p ara seguir o regime
que convém , é necessário escutar aqueles que sabem; mas essa relação
déve to m ar a form a da persuasão. A dieta do corpo, para ser razoável,
para ajustar-se com o convém às circunstâncias e ao m om ento, deve ser
tam bém questão de pensam ento, de reflexão e de prudência. E nquanto
os m edicam entos ou as operações agem sobre o corpo, o regime se di­
rige à alm a e lhe inculca princípios. Assim Platão distingue nas L eis'1
I’
1*1 VI O N . /.»/». IV. 720 h-c.
97
d u a s espécies de m édicos: aqueles que são bons p a ra os escravos (e são
eles p ró p rio s freqüentem ente de condição servil), e que se lim itam a
prescrever sem d a r explicações; e aqueles livres de nascim ento, que se
dirigem aos hom ens livres; eles n ão se con ten tam em d ar receitas, eles
entram em conversação, inform am -se ju n to aos doentes e aos seus
amigos; eles educam o doente, estim ulam -no e o convencem através de
argum entos que, u m a vez que ele fique p ersu ad id o , serão de natureza
a lhe fazer levar a vida que convém . O hom em livre deve receber do
m édico sábio, além dos m eios que p erm itam a cu ra pro p riam en te dita,
um a arm ação racional p a ra o co n ju n to de su a existência." U m a breve
passagem dos M em oráveis m o stra bem o regim e sob o aspecto de um a
prática co n creta e ativa d a relação consigo. N ela se vê Sócrates dedi­
cando-se a to rn a r seus discípulos “ capazes de se bastarem a si p ró ­
prios” na posição qu e é a sua. P ara tal ele lhes o rd e n a ap render (seja
com ele p ró p rio , seja com um o u tro m estre) o que um hom em de bem
deve. saber nos lim ites circunscritos daquilo que lhe é útil, e n ad a além:
apren d er o necessário na ordem da geom etria, d a astro n o m ia, d a a rit­
mética. M as ele os engaja tam bém “ a cu id ar d a saú d e” . E esses “ cui­
d ad o s” que devem , efetivam ente, apoiar-se num saber recebido, de­
vem tam bém desenvolver-se em atenção vigilante so b re si: observação
de si, além disso com tra b a lh o de escrita e de n o tação , o que é im por­
tante: “ Q ue cad a um se observe a si p ró p rio e an o te que com ida, que
bebida, que exercício lhe. convêm e de que m aneira usá-los a fim de
conservar a m ais perfeita saú d e” . P ara que a b o a gestão do corpo ve­
nha a ser um a a rte d a existência, ela deve p assar p o r um a colocação na
escrita, efetu ad a p elo sujeito a p ro p ó sito de si m esm o; através da escri­
ta ele p o d erá a d q u irir sua au to n o m ia e escolher com conhecim ento de
causa o que é bom e o que é m au p a ra ele: “ Se vos observardes desse
m odo, diz S ócrates a seus discípulos, dificilm ente encontrareis um mé­
dico que p ossa discernir m elhor do que vós p ró p rio s o que é favorável
à vossa saú d e” .'’
Em sum a, a p rá tic a d o regim e e n q u an to a rte de viver é bem o u tra
coisa do que um co n ju n to de precauções d estinadas a evitar as doenças
ou term in ar de curá-las. É to d a um a m aneira de se constituir com o um
sujeito que tem p o r seu co rp o o cuidado jü sto , necessário e suficiente.
C u idad o que atravessa a vida cotidiana; que faz das atividades m aio­
res ou rotineiras da existência um a questão ao m esm o tem po de saúde
e de m oral; que define en tre o corp o e os elem entos que o envolvem
18. Cf. PLA TO N , Timée, 89 d, que resume assim o que acaba de dizer a propósito do
regime: “ Já é o bastante sobre o ser vivo com o um todo, sobre sua parte corporal, sobre
a m aneira de governá-la ou de se deixar governar por elâ” .
19. X Ê N O PH O N , Mémorables, IV, 7.
98
um a estratégia circunstancial; e que, enfim , visa a rm a r o p ró p rio in­
divíduo com u m a co n d u ta racional. Q ue lugar se concordava em o u ­
to rg ar aos aphrodisia nessa gestão racional e n a tu ral da vida?
99
1
2
A DIETA DOS PRAZERES
D ois tra ta d o s de D ietética p ertencentes à coleção hipocrática che­
garam até nós. O m ais antigo é tam bém o m ais breve: é o Peri diaites
hugiaines, o Regim e salubre: ele foi considerado m uito tem po a últim a
parte do tra ta d o Sobre a N atureza do H om em ,2" o segundo, o Peri diai­
tes, é -também o m ais desenvolvido. Além disso, O ribase reuniu em sua
Coleção M édica ' um texto de Diocles consagrado à higiene que dá,
m eticulosam ente, um a regra de vida cotidiana; enfim , a esse mesmo
Diocles - que vivia no final do Século IV - foi atribuído um curto tex­
to reunido às o b ras de Paulo de Egines:” nesse texto o autor fornece
indicações sobre a m aneira de reconhecer em si m esm o os prim eiros si­
nais de doença assim com o algum as regras gerais de regime sazonal.
E n q u an to que o R egim e salubre n ão diz um a palavra sobre a
questão dos aphrodisia, o Peri diaites co m p o rta sobre esse ponto um a
série de recom endações e prescrições. A prim eira p arte da o b ra se
apresenta com o um a reflexão sobre os princípios gerais que devem
presidir à o rg anização do regim e. C om efeito, o a u to r acentua que al­
guns de seus num erosos predecessores deram bons conselhos sobre um
ou o u tro p o n to p articular; m as que nenhum ap resentou um a exposi-
20.
Cf. W . H . S. J O N E S , " I n t r o d u c t i o n " a o t o m o IV d a s Oeuvres d e H i p o c r a t e s ( L o e b
C la ss ic a l L i b ra ry ).
21. O R I BA Se. Collection médicale, t. 111. p p . 168-182.
22. P A U L D ’É G I N E , Chirurgie, t r a d . R . B ri a u. S o b r e a d i e té tic a n a é p o c a c li s s i c a , cf.
W . D . S M I T H , " T h e d e v e l o p m e n t o f cla ssical die te tic t h e o r y " , Hippocratica (1 98 0). p p.
439-4 48.
100
ção com pleta da m atéria que ele p retendia tratar; é qiie para “ escrever
corretam en te a p ro p ó sito da dieta h u m a n a ” é preciso ser capaz de
“ conhecer e reconhecer” a n atu reza d o hom em em geral assim com o
sua constituição de origem (hë e x arches sustasis) e o princípio que
deve co m an d ar no corp o (to epicrateon en toi sõm ati).23 O a u to r retém
com o dois elem entos fundam entais do regim e a alim entação e os
exercícios; estes últim os ocasionam dispêndios que o alim ento e a be­
bida têm p o r função com pensar.
A segunda p arte do texto desenvolve a prática da dietética, to ­
m ando com o p o n to de vista as prop ried ad es e os efeitos dos elem entos
que entram no regim e. A pós co nsiderar as regiões - elevadas ou bai­
xas, secas ou úm idas, expostas a tal ou tal vento - são passados em re­
vista os alim entos (a cevada ou o trigo, vistos segundo a ten u id ad e da
m oedura, o m om ento em que a farin h a foi am assada, a q u an tid ad e de
água com a qual foi m isturada; as carnes, segundo suas diversas prove­
niências; os frutos e legum es considerados segundo as espécies), em se­
guida, os b an h o s (quentes, frios, to m ad o s antes o u depois das refei­
ções), os vôm itos, o sono, os exercícios (n atu rais com o os da vista, do
ouvido, da voz, do pensam ento, ou ain d a o passeio; violentos com o as
corridas de velocidade ou de resistência, os m ovim entos dos braços, a
luta no solo, com bola, com a m ão; executados na poeira o u com o
corpo oleoso). N essa enu m eração dos elem entos do regime, a ativ id a­
de sexual (lagneiê) é apenas assin alad a entre os ban hos e as unções por
um lado e os vôm itos p o r o u tro ; e só é m encionada por seus três efei­
tos. D ois den tre eles são qualitativos: aquecim ento devido à violência
do exercício (ponos) e à elim inação de um elem ento úm ido; um idificação, ao co n trário , p o rq u e o exercício fez fundir as carnes. U m terceiro
efeito é q uantitativo: a evacuação p rovoca o em agrecim ento. “ O coito
em agrece, umedece e esquenta; ele esquenta p o r causa do exercício e
da secreção de um idade; ele em agrece pela evacuação e ele um edece
pelo que resta no corp o da fusão (das carnes) p ro duzida pelo exercí­
cio.” 24
Em com pensação na terceira p a rte desse Regim e se en co n tra, a
pro p ó sito dos aphrodisia, um certo núm ero de prescrições. Essa tercei­
ra parte se apresenta em suas prim eiras páginas com o um a espécie de
grande calendário de saúde, um alm an aq u e p erm anente das estações e
dos regim es que lhes convêm . M as o a u to r sublinha a im possibilidade
de fornecer um a fórm ula geral p a ra fixar o ju sto equilíbrio entre
exercícios e alim entos; e m arca a necessidade de levar em co n ta as dife-
23.
24.
H IPPO C R A TE , Du régime. I, 2V 1.
Ibid., II, 58, 2.
101
1
renças entre as coisas, os indivíduos, as regiões, os m om entos;2' o ca­
lendário não deve, p o rta n to , ser lido com o um co njunto de receitas
im perativas, m as sim com o princípios estratégicos, os quais é neces­
sário a d a p ta r à s circunstâncias. Em sum a, en q u a n to a segunda parte
do texto co nsiderava m ais os elem entos d o regim e neles mesmos se­
gundo suas q ualidades, e em suas p ro priedades intrínsecas (e aí os
aphrodisia são apenas m encionados), a terceira p arte, no seu início, é
sobretudo co n sag rad a às variáveis de situação.
O ano é, evidentem ente, dividido em q u a tro estações. Estas, por
sua vez, são subdivididas em períodos m ais curtos, de algum as sem a­
nas e m esm o de alguns dias. É que os caracteres p ró p rio s a cada esta­
ção evoluem freqüentem ente de m aneira progressiva; e que, além dis­
so, há sem pre o perigo de m odificar bruscam ente o regime: com o os
excessos, as m u d an ças repentinas têm efeitos nocivos; “ o pouco a po u ­
co (to kata m ikron) é um a regra segura. S o b retu d o no caso de m udan­
ça de um a coisa p a ra o u tra ” . O que tem com o conseqüência que, “ a
cada estação, é preciso m odificar pouco a pouco (ka ta mikron) cada
constituinte do regim e” .2'’ Assim o regim e de inverno deve ser subdivi­
dido, com o a p ró p ria estação o exige, em um período de quarenta e
qu atro dias que vai d o ocaso das Pléiades ao solstício, e em seguida
num período ex atam ente equivalente que segue um ab randam ento de
quinze dias. A prim av era com eça p o r üm perío d o de trin ta e dois dias
- desde o nascer de A rctu ro e da chegada das a n d o rin h as até ao equi­
nócio; a p a rtir daí a estação deve dividir-se em seis períodos de oito
dias. C hega e n tã o o verão que co m p o rta duas fases: do nascer das
Pléiades até ao solstício, e daí ao equinócio. Desse m om ento até ao
ocaso das Pléiades deve-se p rep arar, d u ran te q u a re n ta e oito dias, para
o “ regim e invern al” .
O a u to r n ão fornece um regime com pleto p a ra cada um a dessas
pequenas subdivisões. Ele antes define, d a n d o m ais ou m enos deta­
lhes, um a estratégia de conju n to que é função das qualidades próprias
a cada um desses m om entos do ano. Essa estratégia obedece a um
princípio de o posição, de resistência, o u pelo m enos de com pensação:
o frio de u m a estação deve ser reequilibrado p o r um regim e que es­
quente, de m edo que o corp o se resfrie dem asiado; em com pensação,
um forte calor exige um regime em oliente e refrescante. M as a estraté­
gia deve tam bém obedecer a um princípio de im itação e de conform i­
dade: p ara a estação b ran d a, e que evolui gradualm ente, um regime
25. Ihici.. II I. 67, 1-2.
2<v Ibid., 111.68, 10. N o m e s m o s e n t i d o cf. H 1 P P O C R A T E , De la nature de l'homme, 9
e Aphorismes, 5 1 . 0 m e s m o t e m a se e n c o n t r a n o P S E U D O - A R I S T O T E , Problèmes,
X X V I I I , I, e n o Régime de Dioclès, O R I B A S E , III, p. 181.
102
brand o e progressivo; na época em que as plantas preparam sua vege­
tação, os hum anos devem fazer o m esm o e p rep arar o desenvolvim en­
to de seu corpo: do m esm o m odo, no decorrer da dureza do inverno,
as árvores se enrijecem e tornam -se robustas; tam bém os hom ens ad ­
quirem vigor não fugindo do frio e a ele se expondo “ corajosam en­
te"
É nesse contexto geral que o uso dos aphrodisia é regulado tendo
em con ta os efeitos que podem pro d u zir no jogo entre o quente e o
frio, o seco e o úm ido, segundo a fórm ula geral encontrada na segunda
p arte do texto. As recom endações que lhes concernem situam -se, em
geral, entre as prescrições alim entares e os conselhos a respeito dos
exercícios ou das evacuações. O inverno, desde o ocaso das Pléiades
até ao equinócio da prim avera, é um a estação em que o regime deve ser
aquele que seque e que aqueça na m edida em que a estação é fria e úmida: p o rta n to , carnes assadas em vez de cozidas, pão de frum ento, le­
gum es secos e em pequenas qu an tid ad es, vinho pouco diluído m as em
pequena q u antidade; num erosos exercícios e de todas as espécies (cor­
ridas, luta, passeio); banhos que devem ser frios após os exercícios de
corrida - que sem pre aquecem m uito - e quentes após todos os outros;
relações sexuais m ais freqüentes, sob retu d o p ara os hom ens m ais ve­
lhos cujo corpo tende a se resfriar; vom itório três vezes por mês para
os tem peram entos úm idos; duas vezes p o r mês p ara aqueles que são
secos. " D u ran te o período de prim avera, quan d o o ar é m ais quente e
m ais seco, e q u an d o convém se p re p a ra r p ara o crescim ento do corpo,
deve-se com er tan to carnes cozidas com o assadas, absorver legumes úm idos, to m ar banhos, dim inuir a q u an tid ad e de relações sexuais e de
vom itórios; só vom itar duas vezes p o r mês, em seguida m ais raram en ­
te ainda, de m aneira que o co rp o m an ten h a um a “ carne p u ra” . A pós o
nascer das Pléiades, q u an d o chega o verão, é sobretudo contra a seca
que o regim e deve lutar: beber vinhos leves, b rancos e diluídos; bolos
de cevada, legumes cozidos ou crus se n ão correm o risco de esquentar;
abster-se do vom itório e reduzir ta n to q u an to possível os atos sexuais
(toisi de aphrodisiosin hõs hêkista); dim inuir os exercícios, evitar as c o r­
ridas que ressecam o corpo, assim com o a m archa sob o sol, e preferir
a lula na poeira."1 À m edida que se aproxim a o nascer de A rcturo e o
equinócio do o u to n o , é necessário m anter um regime m ais b ra n d o e
m ais úm ido; n ad a é dito em p articu lar sobre o regime sexual.
O Regim e de Diocles é m uito m enos desenvolvido do que o de Hi-
27.
28.
29.
H IPPO CR A TE. Du régime, UI, 68, 6 e 9.
Ibid., Ill, 68, 5.
Ibid., III. 68, 11.
103
pócrates. C o n tu d o , e m uito d etalhado no que diz respeito ao em prego
do tem po co tid ian o , que ocu p a um a g ran d e p a rte do texto: desde as
fricções que devem seguir de im ediato o d esp ertar e reduzir a rigidez
do corp o até as posições em que convém ficar no leito q u an d o chega o
m om ento de deitar-se (“ nem d em asiadam ente estendido, nem m uito
curvad o ” e de form a algum a de costas), to d o s os p rincipais m om entos
do dia são exam inados, com os b anhos, as fricções, as unções, as eva­
cuações, os passeios, os alim entos que convêm .30 A q u estão dos praze­
res sexuais e de su a m odulação só é considerada a p ro p ó sito das varia­
ções sazonais e após a evocação de alguns p rincípios gerais de
equilíbrio: “ É um p o n to m uito im p o rtan te p a ra a saúde que a'potência
de nosso co rp o n ã o seja depreciada p o r u m a o u tra po tên cia” . M as o
au to r lim ita-se a breves considerações gerais: prim eiram ente, que nin­
guém deve “ fazer uso freqüente e co n tín u o d o co ito” ; que este convém
m ais " à gente fria, úm ida, atrab iliária, flatu len ta” e convém mal àque­
les que são m agros; que existem p eríodos d a vida em que ele é m ais n o ­
civo, com o nas pessoas idosas, o u naq u elas que estão n o “ período que
conduz d a infância à adolescência” .31 Q u a n to ao texto, certam ente
m ais tard io , conhecido com o um a ca rta de D iocles ao rei A ntigone, a
econom ia que ele p ro p õ e dos prazeres sexuais é, em suas linhas gerais,
extrem am ente próxim a da de H ipocrates: no solstício do inverno, que
é o tem po o n d e se está m ais disposto ao c a ta rro , a p rá tic a sexual não
tem que ser restrita. D u ran te o tem po da ascensão das Pléiades, perío­
do em que no co rp o dom ina a bílis am arga, convém recorrer aos atos
sexuais com edidam ente. E deve-se até m esm o ren u nciar com pletam en­
te a eles no m o m en to do solstício de verão, q u a n d o a bílis negra p red o ­
m ina no organism o; e convém abster-se, assim com o de qualquer vô­
m ito, até o equinócio de o u to n o .32
V ários traços nesse regim e dos prazeres m erecem ser observados.
A ntes de m ais n ad a o lugar restrito que é d a d o ao pro b lem a das rela­
ções sexuais q u a n d o o com p aram o s com o lugar que é dad o aos exercí­
cios e, sobretu d o , à alim entação. A questão dos alim entos em função
de suas q ualidades próprias, com o tam bém das circunstâncias nas
quais eles são ingeridos (spjam as estações do ano ou o estado particular
do organism o) é, p a ra a reflexão dietética, consideravelm ente m ais im ­
p o rtan te do que a atividade sexual. P or o u tro lado é preciso n o ta r que
o cuidado com o regim e n ão concerne jam ais à form a m esm a dos atos:
nada sobre o tip o de relação sexual, nem sobre a posição “ n a tu ra l” ou
30. ORIBASE. Collection médicale. III, pp. 168-178.
31. Ibid.. p. m .
32. In PAUL D 'É G IN E , Chirurgie. Esse ritm o sazonal do regime sexual foi adm itido
durante m uito tem po. Vamos reencontrá-lo na época imperial cm Celso.
104
as prálicas indevidas, nada sobre a m astu rb ação , nem tam pouco sobre
essas questões que serão tão im p o rtan tes m ais tarde, a do coito in ter­
rom pido e a dos procedim entos de co n tracep ção ." Os aphrodisia são
considerados em bloco, com o um a atividade onde o que im porta não é
determ inado pelas diversas form as que ela pode tom ar; questiona-se
som ente se ela ocorre, com que freqüência, e em que contexto. A
problem atização se opera, essencialm ente, em term os de qu an tid ad e e
de circunstâncias.
E m esm o a q u an tid ad e não é considerada sob a form a de um a de­
term inação num érica precisa. Perm anece-se sem pre na ordem de um a
estim ação global: usar dos prazeres “ m ais am p lam ente” (pleon) ou,
em m enor q u an tid ad e (elasson) ou o m enos possível (hõs hêkista). O
que não quer dizer que seja inútil p restar um a atenção bem precisa,
m as que não é possível d eterm in ar a priori, e p ara todos, o ritm o de
um a atividade onde intervêm qualidades - o seco, o quente, o úm ido,
o frio - entre o corpo e o m eio no qual ele se encontra. Se, de fato, os
atos sexuais dependem de regime e precisam ser “ m o derados” é na
m edida em que eles produzem - pelos m ovim entos do corpo e pela ex­
pulsão do sêmen - efeiios de aquecim ento, de resfriam ento, de ressecam ento e de um idificação. Eles abaixam ou elevam o nível de cada um
dos elem entos que fazem o equilíbrio do corpo; p o rtan to , eles tam bém
m odificam a relação entre esse equilíbrio e o jo g o dos elem entos no
m undo exterior: o ressecam ento ou o aquecim ento, que podem ser
bons p ara um corp o h u m an o úm ido e frio, o serão m enos se a estação
e o clima forem eles p ró p rio s quentes e secos. O regime não tem que fi­
xar quantid ad es e nem d eterm in ar ritm os: ele deve negociar, em rela­
ções em que só se pode definir os caracteres globais, m odificações q u a ­
litativas e os reajustam entos que se to rn am necessários. Pode-se n o tar,
a prop ó sito , que o pseudo-A ristóteles nos Problemas parece ter sido o
único a inferir do um dos princípios m ais conhecidos dessa fisiologia
qualitativa (ou seja, o de que as m ulheres em geral são frias e úm idas
enq u an to que o hom em é q uente e seco) a conseqüência de que a alta
estação p ara as relações sexuais não é a m esm a nos dois sexos: é no ve­
rão que as m ulheres estão m ais inclinadas ao ato venéreo, ao passo
que os hom ens o estão so b retu d o no inverno.34
Assim a dietética p ro b lem atiza a p rática sexual, não com o um
co n jun to de aios a serem diferenciados segundo suas form as c o valor
de cada um , m as com o um a “ atividade” que se deve deixar fluir ou
33. Note-se contudo em Diocles (O RIBA SE, III, p. 177) as observações sobre a posi­
ção dorsal que no sono induzem a polução noturna.
34, PSEU D O -A RISTO TE, Problèmes, IV, 26 e 29 (cf. H IPPO C R A TE , Du régime, I.
24, I).
105
frear de aco rd o com referências cronológicas. N o que podem os a p ro ­
xim ar esse regime de certas regulações que m ais tard e serão e n co n tra­
das na pasto ral cristã. É que lá tam bém , efetivam ente, a fim de delim i­
ta r a atividade sexual, certos critérios utilizados serão de ordem tem/poral. M as esses critérios não serão sim plesm ente m ais precisos; eles
funcio n arão de m aneira to talm en te diferente: d eterm in arão os m o­
m entos nos q uais a prática é perm itida, e o u tro s em que ela é proibida;
e essa rep artição rigorosa será fixada segundo diferentes variáveis: ano
litúrgico, ciclo m enstrual, perío d o de gravidez o u tem po que segue ao
p a rto ." N os regim es m édicos antigos, as variações, ao co n trário , são
progressivas; em vez de organizar-se segundo a form a binária do per­
m itido e do p ro ib id o , eles sugerem um a oscilação perm anente entre o
m ais e o m enos. O ato sexual n ão é co nsiderado com o um a p rática líci­
ta ou ilícita, segundo os limites tem porais no in terior dos quais ele se
inscreve: ele é en carad o com o um a atividade que, n o p o nto de intersec­
ção entre o indivíduo e o m undo, o tem p eram en to e o clim a, as quali­
dades do corp o e as da estação, pode p ro v o car conseqüências m ais ou
m enos nefastas, e p o rta n to deve obedecer a u m a econom ia m ais ou
m enos restritiva. E um a prática que dem an d a reflexão e prudência.
N ão se tra ta , p o rta n to , de fixar, uniform em ente e p a ra todos, os “ dias
úteis” do p razer sexual; mas de calcular da m elhor m aneira os m em en­
tos o p o rtu n o s e as freqüências que convêm .
35. Sobre esse ponto é preciso referir-se ao livro de J. L. F L A N D R IN , Un temps pour
embrasser, 1983, que a partir de fontes do Século VII m ostra a im portância das delim ita­
ções entre m om entos perm itidos e momentos proibidos e as form as m últiplas tom adas
por essa ritm icidade. Vê-se o quanto essa distribuição do tem po difere das estratégias
circunstanciais da dietética grega.
3
RISCOS E PERIGOS
() regime dos tip lir u d is u i. com a necessidade de moderar sua práti­
ca. não s e baseia no postulado de que os atos sexuais seriam, neles p r ó ­
prios. e por nature/a. maus. l ies não são objeto de nenhuma desquali­
ficação de principio A questão colocada a seu respeito é a de um uso de um uso a ser mo dula do segundo o estado do corpo e as circunstân­
cias exteriores. C ontudo. a necessidade de recorrer a um regime cuida­
doso. e dar à prática sexual uma atenção vigilante, é justificada por
duas séries de ra/òcs cm que se manifesta, qu ant o aos eleitos dessa ati\ idade, uma certa inquietação.
1.
A primeira série de ra/òes concerne às conseqüências do ato se­
xual para o corpo do indivíduo, li claro que se admite que existam
temperamentos para os quais a atividade sexual é favorável: assim
para aqueles que sofrem de uma abundânci a de pituíta. pois ela per mi­
te a evacuação dos líquidos que. ao se corromperem, fa/em surgir esse
humor, ou ainda, para aqueles que digerem mal e cujo corpo se co ns o­
me e que têm o ventre frio e seco: ’ em troca, para outros - cujo corpo
e cabeça estão repletos de humores - seus eleitos são. ao contrário, nociv os.
16.
37.
HIIM’OC R A T H . l)u régime. I I I. XO. 2.
//>/</.. II I. 73 e 2.
107
C o n tu d o , apesar dessa neutralidade de princípio e dessa am biva­
lência contextuai, a atividade sexual é objeto de um a suspeita bastante
constante. D iógenes Laércio refere-se a um a sentença de Pitágoras em
que a regra geral de um regime sazonal está diretam ente associada a
um a exigência de rarefação perm anente e a um a afirm ação de nocivi­
dade intrínseca: “ C onvém entregar-se aos aphrodisia no inverno, e não
no verão; e bem m oderadam ente na prim avera e no outono: aliás em
qualq u er estação é penoso e m au p ara a sa ú d e ” . E D iógenes cita ainda
essa resposta de Pitágoras a quem se perguntava que m om ento preferir
para o am or: “ Q u a n d o se quer en fraquecer” .’* M as os pitagóricos não
são os únicos, longe disso, a m anifestarem uma tal desconfiança; a re­
gra do “ m enos freqüentem ente possível” , a p ro cura do “ m al m enor"
são invocadas tam bém em textos que têm pretensões exclusivam ente
m édicas ou higiênicas: a Dieta de Diocles propõe-se a estabelecer as
condições nas quais o uso dos prazeres p ro v o cará “ m enos m al” (hêkista enochlei);■"* e os Problemas do pseudo-A ristóteles com p aran d o os
efeitos do ato sexual a a rra n c ar um a p lanta, que lesa sem pre as raízes,
aconselha só ter relações nos casos de necessidade u rg e n te /11 A través
de um a dietética que deve d eterm inar q u an d o é útil e q u ando é nocivo
praticar os prazeres, vê-se esboçar um a tendência geral p ara um a eco­
nom ia restritiva.
Essa desconfiança se m anifesta na idéia de que m uitos órgãos, e
dentre os m ais im po rtan tes, são afetados pela atividade sexual e p o ­
dem sofrer com seus excessos. A ristóteles observa que o cérebro é o
prim eiro ó rg ão a sofrer das conseqüências do a to sexual, p o rq u e ele é
o “ elem ento m ais frio” de to d o o corpo; su b train d o do organism o um
“ calor p u ro e n a tu ra l” , a em issão do sêmen induz um efeito geral de
resfriam ento;41 Diocles coloca na categoria dos ó rgãos p articularm en­
te expostos aos efeitos dos excessos de prazer, a bexiga, os rins, os pul­
mões, os olhos, a m edula espinhal;42 segundo os Problemas, os olhos e
as costas é que são atingidos de m aneira privilegiada, seja po rq u e eles
contribuem m ais do que os o u tro s órgãos p a ra o ato, seja po rq u e o ex­
cesso de calo r neles p ro d u z um a liquefação.43
Essas co rrelações orgânicas m últiplas explicam os efeitos p a to ló ­
gicos diversos que se atrib u i à atividade sexual q u an d o ela não obede­
ce às regras d a indispensável econom ia. É preciso observar que não é
38.
39.
40.
41.
42.
43.
D IO G È N E LA E R C E, Vie des philosophes, V III, 1, 9.
O RIBA SE, Collection médicale, III, 181.
PSEU D O -ARISTO TE, Problèmes, IV, 9, 877 b.
A R ISTO TE , De la génération des animaux, V, 3, 783 b.
O R IB A SE, Collection médicale, III, p. 181.
PSEU D O -ARISTO TE, Problèmes, IV, 2, 876 a-b.
freqüente en co n trar m enção - pelo m enos p ara os hom ens44 - de dis­
túrbio s que poderiam ser p ro vocados p o r um a abstenção total. As
doenças o riu n d as de um a m á distribuição da atividade sexual são sem ­
pre doenças do excesso. T al com o essa fam osa “ tisica d o rsa l", defini­
da por H ipocrates no tra ta d o Das Doenças, cuja descrição será encon­
tra d a por m uito tem po, com a m esm a etiologia, na m edicina ociden­
tal: trata-se de um a doença que “ ataca sob retu d o os recém -casados" e
“ as pessoas inclinadas às relações sexuais" (philolagnoi); ela tem com o
po n to de origem a m edula (que, com o verem os, é considerada a p a r­
te do corpo onde se en co n tra o esperm a); ela dá a sensação de um
form igam ento que desce ao longo da coluna vertebral; o esperm a es­
corre espontaneam ente d u ra n te o sono na urina e nas fezes; o sujeito
torna-se estéril. Q uan d o o mal se aco m p an h a de dificuldades respira­
tórias e de dores de cabeça, pode-se m orrer. Um regime de alim enta­
ção am olecedora e de evacuação pode levar à cura, mas após um ano
inteiro de abstenção de vinho, de exercícios, e dos a p h r o d i s i a As Epi­
demias citam , igualm ente, casos em que o abuso dos prazeres acarre­
tou doenças graves: num h ab itan te de A bdera, as relações sexuais e as
bebidas provocaram febre aco m p an h ad a, no seu início, p o r náuseas,
cardialgia, um a sensação de sede, urina negra, língua pesada; a cura
foi obtida no vigésimo q u a rto dia, após várias remissões e retornos de
febre;4'1 em com pensação um jovem de M elibeu m orreu em pléna lou­
cura após um a doença de vinte e q u a tro dias que tinha com eçado com
distúrbios intestinais e respiratórios, seguindo-se a um longo abuso de
bebida e de prazeres sexuais.47
Em tro c a , o regime dos atletas, que é freqüentem ente reprovado
p o r seus exageros, é citado com o exem plo dos efeitos benéficos que a
abstinência sexual pode prod u zir. Platão o lem bra nas Leis a p ro p ó si­
to de lssos de T a re n to , um vencedor de O lím pia: am bicioso com o era.
ele “ que possuía em sua alm a a técnica e a força com a tem p eran ça” ,
enq u an to se consagrou ao seu trein am en to , “ não se aproxim ou ja ­
m ais, pelo que se co n ta, de um a m ulher nem de um jo v em ". A m esm a
trad ição existia a p ro p ó sito de C rito n , A stilos, D iopom pe.4* N os
princípios dessa prática, sem dúvida, cruzavam -se vários temas: o de
um a abstenção ritual que, nos concursos com o nas batalhas, constituía
44. V e r e m o s a d i a n t e q u e a c o n j u n ç ã o s ex u a l, e m c o m p e n s a ç ã o , é c o n s i d e r a d a c o m o
• a t o r de s a ú d e n a m u l h e r . O a u t o r d o s Problemas o b s e r v a , e n t r e t a n t o , q u e o s h o m e n s vi ­
g o r o s o s e b e m n u t r i d o s tê m a c e s s o d e bilis se n ã o tiv e re m a t i v i d a d e s e x u a l (I V 10)
45. H IPPO CR A TE, Des maladies. II, 51.
46. H I P P O C R A T E . Épidemies, I I I. 17. c a s o 10.
47. Ihitlr, 111. IX, c a s o 16.
4X. P L A T O N . Lois. V I I I . X40 a.
109
um a das condições do sucesso: o de um a vitória m oral que o atleta de­
via co n q u istar sob re si m esm o, se quisesse ser capaz e digno de g a ran ­
tir sua su p erio rid ad e sobre os outros; m as. tam bém , o de um a econo­
mia necessária ao corpo para que ele conservasse toda um a força que o
ato sexual jo g a ria fora. E n q u an to que as m ulheres precisam da relação
sexual p ara que o escoam ento necessário ao seu organism o possa se
produ zir regularm ente, os hom ens, pelo m enos em certos casos, po­
dem reter to d o o seu sêmen; sua abstinência rigorosa, longe de prejudi­
cá-los, conserva neles a integralidade de suás forças, acum ula-a, con­
serva-a, e finalm ente leva-a a um p o n to sem igual.
U m p a ra d o x o h ab ita, p o rta n to , essa p reo cupação com um regime
onde se busca, ao m esm o tem po, a ju sta repartição de um a atividade
que não pode ser ela p ró p ria co nsiderada com o um mal e um a econo­
m ia restritiva o n d e “ o m enos” parece, quase sem pre, ter m aior valor
do que “ o m ais". E m b o ra seja n atu ral que o corpo fom ente um a subs­
tância vigorosa q u e tem a capacidade de procriar, o p ró p rio ato que a
retira do o rg an ism o e a lança p a ra fora, ta n to corre o risco de ser peri­
goso nos seus efeitos, q u a n to é conform e à natureza em seu princípio;
o corpo inteiro, com os seus órgãos m ais im portantes ou os m ais frá­
geis, corre o risco de p a g a r um prèço elevado por esse desperdício que,
no en tan to , a n a tu re z a quis; e reter essa substância, que pela p ró p ria
força p ro c u ra escap ar-se, pod erá ser um meio de d a r ao corpo sua
m ais intensa energia.
2.
O cu id a d o com a p ro g en itu ra tam bém m otiva a vigilância que
se deve m an ifestar no u so dos prazeres. Pois, ao adm itir-se que a n a tu ­
reza o rganizou a c o n ju n ç ã o d os sexos p ara assegurar a descendência
dos indivíduos e a sobrevivência d a espécie, ao adm itir-se tam bém que
por essa m esm a ra z ã o ela associou à relação sexual um tã o vivo p ra ­
zer, reconhece-se q u e essa descendência é frágil, pelo m enos em sua
qualidade e seu v alo r. E perigoso, p ara o indivíduo, obter seu prazer
ao acaso; m as se é ao acaso que ele procria, e não im porta com o, o fu­
tu ro de sua fam ília é colo cad o em perigo. N as Leis, P latão sublinha
com solenidade a im p o rtâ n c ia das precauções que é preciso to m ar
para esse fim, q u e é d o interesse dos pais e da cidade inteira. H á os cui­
dados a serem to m a d o s no prim eiro ato sexual entre os dois cônjuges,
no m om ento d o casam en to : tod o s os valores e todos os perigos tra d i­
cionalm ente reco n h ecid o s nos atos inaugurais ali se encontram : nesse
dia, nessa n o ite , é p re c iso abster-se de q ualquer erro nesse p articular,
“ pois o com eço é u m d eu s que, estabelecendo-se entre os hom ens, sal­
va tod as as coisas, se c a d a um dos seus devotos lhe presta honras con­
venientes” . M as é necessário , tam bém , ser precavido to d o s os dias e
no decorrer d a vida d e casam ento: com efeito, ninguém sabe “ em que
110
noite ou em que d ia” o deus d a rá a sua aju d a na fecundação; convém
tam bém , d u ran te “ o ano e a vida in teira” e, sobretudo, no tem po em
que se está a p to a p ro criar, “ cu id ar de nada fazer voluntariam ente de
m alsão, n ad a que seja d esm esurado e injusto, pois isso penetra e im ­
prim e-se na alm a e no co rp o da crian ça” ; corre-se o risco de “ dar à luz
seres de q u alq u er m o d o m iseráveis” .4,1
Os perigos que se tem em e, p o rta n to , as precauções que se reco­
m endam dizem respeito a três g randes questões. Em prim eiro lugar à
idade dos pais. A idade com a q ual o hom em é supostam ente capaz de
p ro duzir a m ais bela descendência é relativam ente tardia: de trin ta a
trin ta e cinco anos segundo P latão, ao passo que, p a ra as m oças, ele
fixa a possibilidade de casam en to en tre dezesseis e vinte an o s.’0 A m es­
m a defasagem cronológica parece indispensável a A ristóteles; ele a es­
tim a necessária p a ra o vigor da p ro g en itu ra; ele calcula que, com essa
distância, os dois esposos chegarão ju n to s à idade em que a fecundida­
de declina, q u an d o é, aliás, p o u co desejável que a p rocriação ocorra;
além disso, as crianças concebidas d u ran te esse período da vida a p re ­
sen tarão a vantagem de chegar à idad e de o cu p ar o lugar dos
pais ju stam en te q u an d o estes atingirem seu declínio; “ é p o r isso que
convém fixar o casam ento das m oças p o r volta dos dezoito anos e dos
hom ens aos trin ta e sete ou um p o u co m enos; é nos lim ites desse tem ­
po e en q u an to o corp o está com to d o o seu vigor que a união entre os
sexos o co rrerá” . '1
O u tra questão im p o rtan te é a “ d ieta” dos pais: evitar os excessos,
evidentem ente, to m a r cu id ad o s p a ra não p ro criar em estado de
em briaguez, m as tam bém p ra tic a r um regim e geral e perm anente. Xenofonte exaltava a legislação de Licurgo e as m edidas que eram to m a ­
das a fim de assegurar, atrav és d o vigor dos pais, o bom estado de sua
progenitura: as jov en s que estavam d estinadas a ser m ães não deve­
riam beber vinho, o u apenas m istu rad o com água; o pão e as carnes
lhes eram m edidos com exatidão; com o os hom ens, elas deviam p ra ti­
car os exercícios físicos; Licurgo chegou até a instituir “ corridas e p ro ­
vas de força entre as m ulheres, com o en tre os hom ens, p ersuadido de
que se os dois sexos fossem vigorosos teriam filhos m ais ro b u sto s” .'2
49. Ibid., VI, 775 e.
50. PLATON , Lois, IV, 721 a-b e VI 785 b. N a République V, 460 e, o período de fe­
cundidade "legal” dos hom ens é fixado dos 25 aos 55 anos e o das mulheres dos 20 aos
40 anos.
51. A RISTO TE, Politique, VII, 16, 1 355 a. Sobre as idades do casam ento em A tenas,
cf. W. K. LACEY, The fa m ily in Classical Greece, 1968, pp. 106-107 e 162.
52. X É N O PH O N , République des lacidémoniens. I, 4. PLATÃO insiste sobre os efei­
tos nocivos da embriaguez dos pais no m om ento da concepção (Lois, VI, 775 c-d).
111
A ristóteles, p o r sua vez, não queria um regim e atlético forçado de­
mais; ele preferia aquele que convém a um cidadão e assegura a dispo­
sição necessária à sua atividade (euexia p o litike): " O tem peram ento
deve 1er sido trein ad o p ara a fadiga, p orém , trein ado não p o r meio de
trabalhos violentos nem por um a única form a de trab alh o , com o o
tem peram ento dos atletas, m as p o r m eio das atividades convenientes
aos hom ens livres” . P ara as m ulheres, ele desejava um regim e que lhes
daria o m esm o tipo de q u alid ad es."
Q u an to ao m om ento d o ano o u da estação que é m ais favorável
p ara obter um a bela descendência, era con sid erad o função de todo um
conjunto de elem entos com plexos; é, sem dúvida, sobre precauções
desse tip o que deverá, entre o u tras coisas, recair a atenção das inspetoras que, em Platão, velam pela b o a c o n d u ta dos casais d u ran te os dez
anos em que lhes é exigido e p erm itid o p ro c ria r.'4 A ristóteles evoca,
rapidam ente, o saber que os m édicos de seu tem po e os connaisseurs da
natureza são capazes de ensinar sob re esse assunto. O s esposos deve­
rão, segundo ele, fam iliarizar-se com to d a s essas lições: “ O s m édicos,
com efeito, fornecem indicações ad eq u ad as sobre os m om entos em
que o co rp o está favoravelm ente d isp o sto p a ra a p ro criação ” (é o in­
verno de aco rd o com o costum e geral); q u a n to aos “ físicos” , eles
“ m arcam sua preferência pelos ventos d o n o rte em detrim ento dos do
sul” .'5
A través de to d o s esses cuidados indispensáveis, nota-se que a p rá­
tica pro criad o ra, se se quiser co n ju rar to d o s os perigos que a am eaçam
e assegurar-lhe o sucesso que dela se espera, dem anda um a grande
atenção, o u m elhor, to d a um a atitu d e m oral. Platão insiste no fato de
que ta n to um com o o o u tro esposo devem ter em m ente (dianoisthai)
que eles devem d a r à cidade “ as crianças m ais belas e m elhores possí­
veis” . Eles devem pen sar nessa ta re fa intensam ente em função do
princípio de que os hom ens são bem sucedidos naquilo que em preen­
dem “ q u a n d o refletem e aplicam seu espírito ao que fazem ” , ao passo
que fracassam “ se n ão aplicarem seu espírito o u se não o possuem ” .
C onseqüentem ente, “ que o esposo p reste aten ção (prosechetõ (on noun)
á esposa e á p ro criação , o m esm o q u a n to à esposa, so b retu d o d u ran te
o tem po que precede o prim eiro nascim ento” .56 Pode-se lem brar, a
53. ARISTO TE, Politique, VII, 16, 1 335 b. Segundo X E N O FO N T E , para ter um a
descendência vigorosa é que os jovens casados em E sparta não deviam se encontrar mui­
to freqüentemente: “ Nessas condições, os esposos se desqam mais e os filhos,
vêm a
nascer, são mais vigorosos do que se os esposos se fartassem um do ou tro ” (Republique
des lacédémoitiens, I, 5).
54. PLATON , Lois, VI, 734 a-b.
55. ARISTO TE, Politique, VII, 16, 1 335 a.
56. PLATON , Lois, VI, 783 e.
112
esse respeito, a n o tação que se e n co n tra nos Problemas do pseudoA ristóteles: se acontece tã o freqüentem ente de os filhos dos hum anos
não se parecerem com seus pais é que estes - no m om ento do ato se­
xual - têm a alm a ag itad a de vários m odos em vez de só pensar no que
fazem nesse in stan te.57 M ais tard e, no m undo da carne, um a regra ne­
cessária à justificação do ato sexual consistirá em baseá-lo num a inten­
ção precisa, a da procriação. A qui, um a tal intenção não é necessária
p ara que a relação entre os sexos n ão seja um pecado m ortal. E ntre­
tan to , p ara que possa atingir o seu objetivo e perm itir ao indivíduo
sobreviver através dos seus filhos e co n trib u ir p ara a salvação da cida­
de, é preciso to d o um esforço da alm a: o cuidado perm anente em afas­
tar os perigos que envolvem o uso dos prazeres e am eaçam o fim que a
natureza lhes conferiu.5*
57. P S E U D O - A R I S T O T E , Problèmes, X , 10.
5X. P L A T Ã O , n a s Leis, q u e r q u e , p a r a a j u d a r a f o r m a ç ã o m o r a l d a c r i a n ç a , a m u l h e r
g r á v i d a leve u m a v id a q u e e s te ja a o a b r i g o d e p r a z e r e s e d e d o r e s d e m a s i a d o in te n s a s
( Lois, V I I , 792 d-e).
113
O ATO, O DISPÊNDIO, A MORTE
N o en ta n to , se o uso dos prazeres constitui um problem a na rela­
ção do indivíduo com seu p ró p rio corpo e p ara a definição de seu regi­
me físico, a razão não está sim plesm ente no fato de que se suspeite de
que esse uso possa ser a origem de certas doenças ou de que se receie
suas conseqüências sobre a progenitura. O ato sexual não é, certam en­
te, percebido pelos gregos com o um mal; ele não é, para eles, objeto de
um a desqualificação ética. M as os textos testem unham um a inquie­
tação que recai sobre essa p ró p ria atividade. E essa inquietação gira
em to rn o de três focos: a própria, form a do ato , o custo que ele provo­
ca, a m orte à qual está ligado. Seria um erro ver no pensam ento grego
som ente um a valorização positiva do ato sexual. A reflexão médica e
filosófica descreve-o com o capaz de am eaçar, p o r sua violência, o
controle e o dom ínio que convém exercer sobre si: de m inar, pelo esgo­
tam ento que p rovoca, a força que o indivíduo deve conservar e m an­
ter; e com o um a m arca da m ortalidade d o indivíduo ao m esm o tem po
em que assegura a sobrevivência da espécie. E m b o ra o regime dos p ra ­
zeres seja tã o im p o rtan te, não é sim plesm ente p o rq u e um excesso pode
p roduzir um a doença; é p orque na atividade sexual em geral está em
jo g o o dom ínio, a força e a vida do hom em . D ar a essa atividade a for­
m a rarefeita e estilizada de um regime é se g a ra n tir c o n tra os m ales fu­
turos; é tam bém se form ar, se exercer, experim entar-se com o um in­
divíduo cap az de c o n tro la r sua p ró p ria violência e de deixá-la funcio­
n ar nos lim ites convenientes, de reter em si o princípio de sua energia
e de aceitar a m o rte prevendo o nascim ento de seus descendentes. O
regim e físico dos aphrodisia é um a precaução de saúde; é, ao m esm o
tem po, um exercício - um a askesis - de existência.
1. A violência do ato
É p en sando nos aphrodisia que P latão, no Filebo, descreve os efei­
tos do prazer q u a n d o m istu rad o , em forte p ro p o rção , com o sofrim en­
to; o p razer “ co n trai o co rp o to d o , crispa-o às vezes até atingir sobres­
saltos e, fazendo-o passar p o r to d as as cores, to d as as gesticulações e
to d o s os ofegos possíveis, p ro d u z u m a superexcitação geral com gritos
de p e rd iç ã o .. . E o paciente chega assim a dizer dele pró p rio , ou os
o u tro s sobre ele, que goza de to d o s os prazeres até a m orte; assim ele
os persegue sem cessar ta n to m ais intensam ente q u an to m enos com e­
dim ento e tem perança tiver” (akolasteros, aphronesteros).59
A tribuiu-se a H ipocrates a afirm ação de que o gozo sexual teria a
form a de um a pequena epilepsia. Pelo m enos é o que relata A uloG élio; “ Eis aqui qual era a o p in ião do divino H ipócrates sobre a rela­
ção sexual (coitus venereus). Ele a via com o um a p arte d a terrível do en ­
ça que cham am os com icial. A tribui-se a ele a seguinte frase; ‘A con­
ju n çã o de um sexo é um a p eq u en a epilepsia’ (ten sunousian einai
m ikran epilepsian).” 60 D e fato, a fórm ula é de D em ócrito. O tra ta d o hipocrático Da geração, que em suas prim eiras páginas fornece um a des­
crição d etalh ad a do a to sexual, se inscreve, ao contrário, num a o u tra
tradição , aquela de D iógenes de A polônia; o m odelo ao qual essa tra ­
dição (atestad a ain d a p o r C lem ente de A lexandria) se referia não era o
patológico do mal com icial, m as o m ecânico, de um líquido aquecido e
espum ante: “ A lguns, relata o Pedagogo, supõem que o sêmen do ser
vivo é a espum a do sangue, q u a n to à substância. O sangue fortem ente
agitado no decorrer dos enlaces e aquecido pelo calor natural do m a­
cho form a espum a e se espalha nas veias esperm áticas. Segundo D ió ­
genes de A polônia, esse fenôm eno explicaria o nom e de aphrodisia"
Sobre esse tem a geral do líquido, da agitação, do calor e da espum a es­
palhad a, o Da geração da coleção h ipocrática fornece um a descrição
que é inteiram ente org an izad a em to rn o daquilo que poderíam os ch a­
m ar "esquem a ejacu lató rio ” ; é esse esquem a que é tran sp o sto tal qual
59. P L A T O N , Phitèbe. 47 b.
60. A U LU -G E LL E, S u its al tiques, XIX, 2.
61. C L E M E N T D 'A L E X A N D R IE , Le pédagogue, I, 6, 48. Cf. R. JO LY , “ N otice"
sobre Hippocrale, Oeuvres, t. XI, C. U. F.
115
do hom em p ara a m ulher; é ele que serve p ara decifrar as relações en­
tre o papel m asculino e o papel fem inino em term os de confrontação e
de ju sta, com o tam bém de dom inação e de regulação de um pelo ou­
tro.
O ato sexual é analisado, desde sua origem , com o um a m ecânica
violenta que conduz para a saída do esperm a.62 Inicialm ente a fricção
do sexo e o m ovim ento dado ao corpo inteiro têm por efeito produzir
um aquecim ento geral; este, conjugado à agitação, tem com o conse­
qüência d ar ao hum or, espalhado no corpo, m ais fluidez, ao ponto que
chega a “ esp u m ar” (aphrein), “ com o espum am todos os fluidos agita­
dos". Nesse m om ento se p roduz um fenôm eno de “ sep aração ” (apokrisis): desse hu m o r espum ante, a p arte m ais vigorosa, “ a m ais forte
e a mais g o rd u ro sa ” (to ischurotaton kai piolatori) é levada ao cérebro e
à m edula espinhal, ao longo da qual ela desce até as costas. É então
que a espum a quente passa aos rins e daí, através dos testículos, até a
verga de onde ela é expulsa por um a agitação violenta (tarache). Esse
processo, que é voluntário no seu início, q u an d o há conjunção sexual e
“ fricção do sexo” , pode tam bém se desenrolar de m odo inteiram ente
involuntário. É o que se passa no caso da polução n o tu rn a citada pelo
au tor de Da geração: quan d o o trab alh o ou um a o u tra ação provo­
cou, antes do sono, o aquecim ento do corpo, o h u m o r com eça a espu­
m ar espontaneam ente; ele “ se com porta com o no coito” ; e a ejacula­
ção se produz, fazendo-se aco m p an h ar de im agens de um sonho, sem
dúvida de acordo com o princípio freqüentem ente invocado de que os
sonhos, ou pelo m enos certos sonhos, são a trad u ção do estado atual
do corpo."'
Entre o ato sexual do hom em e o da m ulher, a descrição hipocrálica estabelece um isom orfism o global. O processo é o m esmo, salvo
que no caso da m ulher o pon to de p artid a do aquecim ento é a m atri/
estim ulada pelo sexo m asculino d u ran te o coito: “ N as m ulheres, o
sexo sendo friccionado no coito e a m atriz em m ovim ento, digo que
esta últim a é to m ad a com o que de um a com ichão que dá prazer e calor
ao resto do corpo. T am bém a m ulher ejacula a p artir do corpo, às ve
/es na m atriz, às vezes fora” .M M esm o tipo de substância e m esma for­
m ação (um esperm a que surge do sangue p o r aquecim ento e separa­
ção): mesmo m ecanism o e m esm o ato term inal de ejaculação. O autor,
entretan to , acentua certas diferenças que não dizem respeito à natu re­
za do ato , m as à sua violência p ró p ria, assim com o à intensidade e à
duração do prazer que o acom panha. N o p ró p rio ato, o prazer da
62.
63.
64.
116
H I P P O C R A T L . De h généralinn. I. 1-3.
Ihiíl.. I. 3.
Ibid.. IV. I.
m ulher é m uito m enos intenso do que o do hom em porque neste a ex­
creção do h u m o r se faz de m aneira brusca e com m uito m ais violência.
Em com pensação, na m ulher, o prazer com eça no início do a to e dura
tan to q u a n to o p ró p rio coito. Seu prazer, ao longo de to d a a relação, é
dependente do hom em ; e só cessa q u an d o “ o hom em libera a m ulher” ;
e se acontece dela chegar ao orgasm o antes dele, não é por isso que o
prazer desaparece; ele é apenas experim entado de o u tra form a.65
E ntre esses dois atos isom orfos no hom em e na m ulher, o texto hipocrático coloca um a relação que é, ao m esm o tem po, de causalidade
e de rivalidade: de certa form a um a ju sta em que o m acho desem penha
um papel in citad o r e deve o b ter a vitória final. Para explicar os efeitos
do prazer do hom em sobre o.da m ulher, o texto-recorre - com o em o u ­
tras passagens, sem dúvida antigas, da coletânea hipocrática - aos dois
elem entos da água e d o fogo e aos efeitos recíprocos do quente e do
frio; o licor m asculino desem penha ta n to um papel estim ulante q u an to
o de resfriam ento; q u an to ao elem ento fem inino, sem pre quente, é às
vezes representado pela ch am a e às vezes p o r um líquido. Se o prazer
da m ulher se intensifica “ no m om ento em que o esperm a cai na m a­
triz" é à m aneira da cham a, que de repente aum enta quan d o se d e rra­
m a vinho sobre ela; se, ao co n trário , a ejaculação do hom em leva ao
fim do prazer da m ulher, é com o se fosse um líquido frio que se d erra ­
ma na água m uito quente: a ebulição logo cessaria.“ Assim, dois atos
sem elhantes, fazendo intervir substâncias análogas m as d o tad as de
qualidades opostas, enfrentam -se na conjunção sexual: força co n tra
força,'ág u a fria co n tra fervura, álcool sobre cham a. M as de to d a m a­
neira é o ato m asculino que determ in a, regula, atiça, dom ina. É ele que
determ ina o início e o fim do prazer. É ele tam bém que garante a saúde
dos órgãos fem ininos assegurando seu bom funcionam ento: “ Se as
m ulheres têm relações com os hom ens elas ficam em boa form a; se
não, o ficam m enos. É que, p o r um lado, a m atriz no coito torna-se úm ida e não seca; ora, q u an d o ela está seca ela se contrai violentam ente
e m ais do que convém ; e ao se c o n trair violentam ente ela faz o corpo
sofrer. P or o u tro lado, o coito, a o esqu en tar e um edecer o sangue, to r ­
na a passagem m ais fácil p ara as regras; ora, quando as regras não es­
correm , o corpo das m ulheres to rn a-se d o en te” .67 A penetração pelo
hom em e a ab sorção do esperm a são p a ra o corpo da m ulher o princí­
pio do equilíbrio de suas q ualidades e a chave p a ra o escoam ento ne­
cessário de seus hum ores.
Esse “ esquem a ejacu lató rio ” através do qual se percebe to d a a
( õ.
(1(1.
(>T
//>/</.. I V . I.
//>/</.. I V . 2.
//>„/.. I V . 3.
117
atividade sexual - e em am bos os sexos - m ostra, evidentem ente, a d o ­
m inação quase exclusiva do m odelo viril. O a to fem inino não é exata­
mente o seu com plem ento; é antes o duplo, m as sob a form a de uma
versão enfraquecida, que dele depende ta n to p a ra a saúde q u an to para
o prazer. Focalizando to d a a atenção sobre esse m om ento da em issão
- do arra n q u e espum oso, considerado com o essencial ao a to - colocase no centro da atividade sexual um processo que é caracterizado p o r
sua violência, p o r uma m ecânica quase irreprim ível e p o r um a força
cujo dom ínio escapa; m as coloca-se tam bém com o problem a im por­
tante no uso dos prazeres um a questão de econom ia e de dispêndio.
2. O dispêndio
O a to sexual arran ca do corpo um a substância que é capaz de
transm itir a vida, m as que só a transm ite p o rq u e ela pró p ria está liga­
da à existência d o indivíduo e carrega em si um a p a rte dessa existência.
O ser vivo, ao expulsar seu sêmen não se lim ita a evacuar um hum or
em excesso: ele se priva de elem entos que são de grande valia para a
sua própria existência.
Nem tod o s os autores d ã o a m esm a explicação para esse caráter
precioso do esperm a: o Da geração parece referir-se a duas concepções
da origem do esperm a. De acordo com um a delas, é da cabeça que ele
viria: form ado 110 cérebro, ele desceria pela m edula até as partes infe­
riores do corpo. Tal era, no dizer de D iógenes Laércio, o princípio ge­
ral da concepção pitagórica: o esperm a era aí considerado com o “ uma
gota de cérebro que contém em si um vap o r q u en te” ; desse fragm ento
de m atéria cerebral se form aria m ais tard e o con junto do corpo com
“ os nervos, as carnes, os ossos, os cabelos” ; do sopro quente que ele
contém nasceria a alm a do em brião e a sensação."' O texto de H ipocra­
tes reproduz esse privilégio da cabeça na form ação do sêmen lem bran­
do que os hom ens nos quais foi feita um a incisão perto da orelha - em ­
bora ainda m antenham a possibilidade de ter relações sexuais e de eja­
cular - têm um sêmen pouco ab undante, fraco e estéril: “ Pois a m aior
parte do esperm a vem da cabeça, ao longo das orelhas, para a medula;
e essa via. depois da incisão que se tran sfo rm a em cicatriz, endure­
c e " ." M a s essa im portância atrib u íd a à cabeça não exclui, no tratad o
68.
69.
118
D I O G È N E L A E R C E , Vie des pilosophes, V I I I , 1, 28.
H I P P O C R A T E . De hi génération, il. 2.
▼
Da geração, o princípio geral segundo o qual o sêm en provém do co n ­
ju n to do corpo: o esperm a do hom em “ vem de qualquer h u m o r que se
encon tre no co rp o ” e isso graças às “ veias e aos nervos que vão do co r­
po inteiro ao sexo” ;™ ele se fo rm a “ a p a rtir de to d o o corpo, de suas
partes sólidas, de suas partes m oles e de to d o o h u m o r” , nas suas q u a ­
tro espécies;’1 tam bém a m ulher “ ejacula a p artir de to d o o co rp o ” ;72 e
se os m eninos e as m eninas, antes da puberd ad e, n ão podem em itir sê­
men, é porque, nessa idade, as veias são tão finas e estreitas que “impe­
dem o esperm a de cam in h ar” .73 Em to d o caso, em anando do co n ju n to
do corp o ou vindo, na m aio r p arte, da cabeça, o sêmen é considerado
com o o resultado de um processo que separa, isola, concentra a p arte
“ m ais forte” do hum or: to ischurotaton.1* Essa força se m anifesta na
n atureza g o rd u ro sa e espum osa do sêm en e na violência com que esca­
pa; ela se trad u z tam bém pela fraqueza que é sem pre experim entada
após o coito, p o r m enor que seja a q u an tid ad e que foi ex cretada.7'
A origem do sêm en foi, de fato, m an tid a com o assunto de discus­
são na literatu ra m édica e filosófica. N ão o b stan te - e quaisquer que
sejam as explicações p ro p o sta s - elas deviam d a r co nta daquilo que
perm itia ao sêm en tran sm itir a vida e d ar início a um o u tro ser vivo; e
de onde p oderia a substância sem inal tira r o seu poder, senão dos
princípios da vida que podem enco n trar-se no indivíduo de onde ela
proveio? Seria preciso que ela tom asse em prestada a existência que d a ­
va, destacan d o -a do ser vivo em que se originou. Em to d a em issão esperm ática existe q u alq u er coisa que sai dos m ais preciosos elem entos
d o indivíduo e que lhe é su b traíd a. A dem iurgia d o Timeu enraizou as­
sim o sêm en n aquilo que constitui p a ra os h um anos a articulação entre
o co rp o e a alm a, entre a m orte e a im ortalidade. Essa articulação é a
m edula (que em sua p arte cran ian a e red o n d a abriga a sede da alm a
im ortal e em sua p arte alo n g ad a e d orsal a da alm a m ortal): “ Os
vínculos da vida pelos quais a alm a é a c o rre n tad a ao corpo, é na m e­
dula que eles vêm se a ta r p a ra en raizar a espécie m o rta l” .7'' D aí deriva,
p o r meio das duas g ran d es veias dorsais, a um idade de que o co rpo ne­
cessita e que nele perm anece encerrada; daí deriva tam bém o sêmen
que escap a pelo sexo p ara d a r nascim ento a o u tro indivíduo. O ser
vivo e sua descendência têm um único e m esm o princípio de vida.
70.
71.
72.
73.
74.
75.
76.
Ibid.,
Ibid.,
Ibid.,
Ibid.,
Ibid..
Ibid.,
I, 1.
I I I. 1.
IV . 1.
11, 3.
1, 1 e 2.
1. 1.
P L A T O N , Tintée, 73 b.
119
1
A análise de A ristóteles é bem diferente da de P latão e tam bém da
de H ipocrates. D iferente q u a n to às localizações, diferente q u an to aos
m ecanism os. C o n tu d o , encontra-se nele o m esm o princípio da su b tra ­
ção preciosa. N a Geração dos animais, o esperm a é explicado com o o
p ro d u to residual (perittõm a) da nutrição: p ro d u to final, concentrado
em pequeníssim as q u an tid ad es e útil com o são os princípios de cresci­
m ento que o organ ism o tira do alim ento. D e fato, p a ra A ristóteles a
elab o ração term inal d aq u ilo que a alim entação d á ao co rp o fornece
um a m atéria, d a qual um a p arte vai p a ra to d as as partes do corpo p a­
ra, im perceptivelm ente, fazê-lo crescer tod o s os dias, e a o u tra espera a
expulsão que lhe perm itirá, um a vez na m atriz d a m ulher, d a r form a­
ção ao em b rião .77 O desenvolvim ento do indivíduo e sua reprodução
repousam , p o rta n to , nos m esm os elem entos, e têm seu princípio num a
m esm a substância; os elem entos do crescim ento e o líquido esperm ático form am um a d u p la resultante de um a e lab o ração alim en tar que
m antém a vida de um indivíduo, e que perm ite o nascim ento de o u tro .
C om preende-se, nessas condições, que a evacuação desse sêmen cons­
titui para o corp o um acontecim ento im portante: ela lhe subtrai um a
substância que é preciosa, p osto que é o últim o resultado de um longo
trabalh o d o o rganism o e que co n cen tra elem entos que podem , p o r sua
natureza, “ ir a to d as as partes do co rp o ” e que, p o rta n to , seriam sus­
cetíveis de fazê-lo crescer se não lhe fossem retirados. C om preende-se,
igualm ente, p o r q u e essa evacuação - que é inteiram ente poSsível na
idade em que o hom em necessita som ente ren o v ar seu organism o sem
ter que desenvolvê-lo - nâo o corre na ju v en tu d e q u an d o to d as as fon­
tes do alim ento são utilizadas p a ra o desenvolvim ento; nessa idade
“ tudo é despendido de an te m ã o ” , diz A ristóteles; com preende-se tam ­
bém que na velhice a p ro d u ção de esperm a dim inua: “ O organism o
não realiza m ais um a cocção suficiente” .7' A o longo d a vida do indiví­
duo - desde a ju v en tu d e que tem necessidade de crescer até a velhice
que a ta n to custo se m antém - se m arca essa relação de com plem enta­
ridade entre o p o d er de p ro criar e a capacid ad e p a ra desenvolver-se ou
para subsistir.
Q ue o sêm en seja retirad o de to d o o organism o, que se origine lá
onde o corp o e a alm a se articulam , ou que se form e no term o da longa
elaboração in tern a dos alim entos, o a to sexual que o expulsa constitui
para o ser vivo um dispêncio custoso. O prazer pode m uito bem acom ­
panhá-lo, com o quis a natureza, a fim de que os hom ens pensem em
ter um a descendência. N ão deixa de co n stitu ir um d u ro abalo p ara o
77.
7X.
120
A R I S T O T E , De la génération des animaux, 7 24 a - 725 b.
Ibid.. 725 b.
pró p rio ser, o ab a n d o n o de to d a um a p arte daquilo que contém um ser
m esm o. É assim que A ristóteles explica o ab atim en to “ p a ten te” que se
segue à relação sexual;”' e que o a u to r dos Problemas explica a repug­
nância dos jovens pela prim eira m ulher com a qual lhes aconteceu de
ter relações sexuais.“" Sob um tã o fraco volum e - em bora p ro p o rc io ­
nalm ente m aior nos hom ens do que nos o u tro s anim ais - o ser vivo se
priva de to d a um a p arte dos elem entos essenciais à sua pró p ria exis­
tê n c ia .C o m p re e n d e -s e de que m aneira o abuso dos prazeres sexuais
pode. em certos casos, com o o descrito p o r H ipocrates, d a tísica d o r­
sal. conduzir à m orte.
3. A m orte e a imortalidade
N-ão é sim plesm ente no m edo d o dispêndio excessivo que a refle­
xão m édica e filqsófica associa a atividade sexual com a m orte. Ela
tam bém as liga no p ró p rio princípio d a rep ro d u ção, na m edida em
que coloca com o finalidade da p ro criação p aliar o desaparecim ento
dos seres vivos e d ar à espécie, to m ad a no seu conjunto, a eternidade
que não pode ser concedida a cada indivíduo. Se os anim ais se unem
na relação sexuâi, e se essa relação lhes dá descendentes, é para que a
espécie - com o é d ito nas Leis - acom panhe sem fim a m archa do tem ­
po; tal é a sua m aneira p ró p ria de èscapar à m orte; ao deixar “ os filhos
dos filhos” , perm anecendo a m esm a, ela “ p articipa, pela geração, da
im o rta lid a d e ".“2 O ato sexual está p a ra A ristóteles, assim com o para
Platão, no p o n to de cruzam ento en tre um a vida individual que é desti­
nada à m orte - e à qual, aliás, ele subtrai um a parte de suas forças
m ais preciosas - e um a im o rtalid ad e que to m a a form a concreta de
um a sobrevivência da espécie. E n tre essas duas vidas, p ara ju n tá -la s e
para que, à sua m aneira, a p rim eira participe na segunda, a relação se­
xual constitui, com o diz ainda P latão, um “ artifício" (mêchanê), que
assegura ao indivíduo um “ re b ro ta r" dele m esm o (apoblastêma).
Em P latão, esse vínculo, ao m esm o tem po artificial e n a tu ra l, é
sustentado pelo desejo, p ró p rio a to d a a n atureza perecível, de se per­
p etu ar e de ser im o rtal.“' U m tal desejo, observa D iotím ia no Banque-
74.
NO.
si.
X2.
s.V
//»/</.. 725 b. Cl', l a m b e m P S L U D O - A R 1 S T O T E . Problèmes. IV. 22. X79 a.
P S I U D O - A R I S T O T t . Problèmes. IV, I I . X77 b.
//>/</.. IV. 4 e 22.
P L A T O N . Lois. IV. 721 c.
P L A T O N , Banquet. 2 06 e.
121
te, existe nos anim ais que, tom ad o s pela von tad e de pro criar, “ tornam -se doentes dessas disposições a m o ro sas” e estão p ro n to s “ até a
sacrificar sua p ró p ria vida a fim de salvar sua descendência".*4 Ele
existe tam bém no ser h u m an o que n ão quer, um a vez que cesse de vi­
ver, ser um m o rto sem renom e e “ sem nom e” ;*5 para isso, dizem as
Leis, ele deve se casar e dar-se um a descendência nas m elhores condi­
ções possíveis. E é esse m esm o desejo que su scitará, em alguns d aq u e­
les que am am os rapazes, o a rd o r, náo de sem ear no co rp o m as o de
engendrar na alm a e de d a r à luz o que é belo em si mesmo.*'’ Em cer­
tos textos precoces de A ristóteles, com o o Da a lm a '' a ligação da ativi­
dade sexual com a m orte e com a im ortalidade é ainda expressa sob a
form a um ta n to “ p lato n iz a n te " de um desejo de p articipação no que é
eterno: em textos m ais tardios, com o o Tratado da Geração e da Cor­
r u p ç ã o , ou o Da Geração dos A nim ais, ela é p ensada sob a form a de
um a diferenciação e de um a distribuição dos seres na órdem natural
em função de um co n ju n to de princípios o n tológicos no que diz respei­
to ao ser, ao não-ser e ao m elhor. Propondo-se a explicar, de acordo
com as causas finais, p o r que h á en g en d ram en to dos anim ais e exis­
tência distin ta d os sexos, o segundo livro da Geração dos Anim ais invo­
ca alguns princípios fundam entais que regem as relações entre a m ulti­
plicidade dos seres e o ser: a saber, que certas coisas são eternas e divi­
nas ao passo que as o u tra s podem ser ou não ser; que o belo e o divino
é se m p re o m e lh o r e q u e a q u ilo q u e n ã o é e te rn o p o d e p a rtic ip a r
no m elhor e nü pior; que é m elhor ser d o que não ser, viver do que não
viver, ser an im ad o do que inanim ado. E ao lem brar que os seres su b ­
m etidos ao vir-a-ser só serão eternos na m edida em que o possam , con­
clui que existe g eração dos anim ais e que estes, excluídos da eternidade
com o indivíduos, podem ser eternos com o espécie: “ num ericam ente” ,
o anim al " n ã o p o d er ser im ortal, pois a realidade dos seres reside no
particular: e se ele o fosse, seria eterno. M as ele pode sê-lo especifica­
m ente"."1
A atividade sexual se inscreve, p o rta n to , no am plo horizonte da
m orte e da vida, do tem po, do vir-a-ser e da eternidade. Ela se to rn a
necessária p o rq u e o indivíduo é d estinado a m o rrer e para que, de cer­
ta m aneira, ele escape à m orte. É claro que essas especulações filosófi­
cas não estão diretam en te presentes na reflexão sobre o uso dos praze-
*4.
n.\
X<),
S7.
W.
Ihul . 207 a-h.
1’ I.A T O N . / .o is . IV . 721 b-c.
I M .A T O N . Hunqufl. 2(W h.
A R IS T O T K . / V f a m e . II. 4. 415 a-b.
A R I S K ) T l.. D e la g é n é r a tio n et J e la c o r r u p t io n . 336
h.
A R IS 10 T L . D e
la g é n é r a tio n
îles a n im a u x . Il, I,731b - 732 a.
f
res e sobre o seu regime. M as pod em o s n o ta r a solenidade com que
P latão a ela se refere na legislação “ p ersuasiva” que propõe para o ca­
sam ento - legislação essa que deve ser a prim eira de todas, já que está
no “ princípio dos n ascim entos" nas cidades: “ C asar-se-á entre trin ta e
trin ta e cinco anos, d en tro d o p en sam en to de que o gênero h u m an o re­
tira de um dom n atu ral um a certa p arte de im ortalidade cujo desejo
tam bém é in ato em tod o s os h om ens e sob tod o s os pontos de vista.
Pois a am bição de se afam ar e de n ão perm anecer sem nom e após a
m orte provém desse desejo. O ra , a raça h u m an a possui um a afinidade
n atural com o conju nto do tem po que ela aco m p an ha e ac o m p an h ará
através da d uração: é p o r m eio disso que ela é im ortal, deixando os fi­
lhos de seus filhos e assim , graças à perm anência de sua unidade sem ­
pre idêntica, p articip an d o , pela g eração, d a im o rtalid ad e”.''" O s in ter­
locutores das Leis sábem que essas longas considerações n ã o são h a b i­
tuais nos legisladores. M as o A teniense observa que nessa ordem de
coisas é com o na m edicina; q u a n d o esta se dirige a hom ens racionais e
livres não pode se lim itar a fo rm u lar preceitos; elá deve explicar, d ar
razões e persu ad ir p ara que o d oente regule com o convém o seu m odo
de vida. D ar tais explicações sobre o indivíduo e a espécie, o tem po e a
eternidade, a vida e a m orte, é fazer de m aneira que os cidadãos acei­
tem “ com sim patia e, graças à essa sim patia, com m ais docilidade" as
prescrições que devem regular sua atividade sexual e seu casam ento, o
regime racional de sua vida tem perante.'"
A m edicina e a filosofia gregas se interro g aram sobre os aphrodi­
sia e sobre o uso que deles se devia fazer se se quisesse ter um ju sto cui­
dad o com o p ró p rio corpo. Essa problem atização não levou a distin­
guir, nesses ato s, nas suas form as e em suas variedades possíveis, os
que eram aceitáveis e os que eram nocivos ou “ an o rm ais” . M as, ao
considerá-los m aciçam ente, globalm ente, com o m anifestação de um a
atividade, ela se deu com o objetivo fixar os princípios que perm itissem
ao indivíduo, em função das circunstâncias, assegurar sua intensidade
útil e sua ju sta distribuição. N o en ta n to , as tendências nitidam ente res­
tritivas de um a tal econom ia testem unham um a inquietação q u a n to a
essa atividade sexual. In q u ietação que diz respeito aos eventuais efei­
tos dos abusos: inquietação que diz respeito tam bém , e sobretudo., ao
p róprio ato , sem pre percebido de aco rd o com um esquem a m asculino,
ejaculatório, “ p aroxístico” , q u e caracterizaria to d a a atividade sexual.
>)().
>)l.
I’ I . A T O N . /.«/a. IV. 721 b-c.
//.((/ , 721 a.
123
N ota-se, en tão , que a im portância atribuída' ao ato sexúal e às form as
de sua rarefação se deve não som ente aos seus efeitos negativos sobre
o corpo, m as ao que ele é, nele m esm o e p o r natureza: violência que es­
capa â vontade, dispêndio que extenua as forças, p rocriação ligada à
m orte futura do indivíduo. O ato sexual não inquieta porque releva do
mal, m as sim p o rq u e p ertu rb a e am eaça a relação do indivíduo consi­
go m esm o e a sua constituição com o sujeito m oral: ele traz com ele, se
não for m edido e distribuído com o convém , o desencadear das forças
involuntárias, o enfraquecim ento da energia e a m orte sem descendên­
cia h o n rad a.
Pode-se n o ta r que esses três grandes tem as de preocupação não
são particulares à cu ltu ra antiga: en contrar-se-á freqüentem ente, e em
o u tros lugares, a m anifestação dessa inquietação que, identificando o
ato sexual com a form a “ viril” do sêm en lançado, associa-o à violên­
cia, à extenuação e à m orte. Os docum entos com pilados p o r Van G ulik a pro p ó sito da cu ltu ra chinesa antiga parecem m o strar m uito bem
a presença dessa m esm a tem ática: m edo do a to irreprim ível e custoso,
receio de seus efeitos nocivos p ara o corpo e p a ra a saúde, representa­
ção da relação com a m ulher sob a form a de um a ju sta , preocupação
de en co n trar p ara si um a descendência de qualidade graças a um a a ti­
vidade sexual bem regrada.'*2 M as a essa inauietacão. os antigos tra ta ­
dos chineses “ do q u a rto de d o rm ir” respondem de um m odo to ta l­
m ente diferente d aquele que p o d e encontrar-se n a G récia clássica; o
receio face à violência do ato , e o m edo de p erder o sêm en, suscitám
procedim entos de retenção voluntária: o co n fro n to com o o u tro sexo é
percebido com o u m a m aneira de e n tra r em c o n ta to com o princípio vi­
tal que este detém e, observando-o, interiorizá-lo p ara poder dele se
beneficiar; de m o d o que um a atividade sexual bem conduzida não so­
m ente exclui to d o o perigo, com o p o d e to m a r o efeito de um esforço
de existência e de um processo de rejuvenescim ento. A elaboração e o
exercício, nesse caso, dizem respeito ao p ró p rio ato, seu desencadea­
m ento, o jo g o de forças que o sustenta, e finalm ente o prazer ao qual
ele está associado; a elisão ou o adiam en to indefinido de seu term o
perm ite dar-lhe sim ultaneam ente o seu m ais alto grau na ordem do
prazer e o seu m ais intenso efeito na ordem da vida. N essa “ arte eró ti­
ca” que, com seus alvos éticos bem m arcados, busca intensificar, ta n to
q u an to possível, os efeitos positivos de um a atividade sexual dom ina­
da, refletida, m u ltiplicada e pròlo n g ad a, o tem po - aquele que term ina
o ato, envelhece o corpo e leva à m orte - se en contra conjurado.
N a d o u trin a cristã da carne tam bém se e n co n trarão facilm ente te-
R. VAN C iU l.lk . La vie sexuelle dans la Chine ancienne.
124
mas bem próxim os de inquietação: a violência involuntária do ato, seu
parentesco com o mal e seu lugar no jo g o entre a vida e a m orte. M as
Santo A gostinho verá, na força irreprim ível do desejo e do ato sexual,
um dos principais estigm as da queda (esse m ovim ento involuntário re­
produz no corp o h u m ano a revolta do hom em sublevado contra
Deus): a p astoral fixará, num calendário preciso, e em função de um a
m orfologia d etalh ad a dos atos, as regras de econom ia a que convém
subm etê-los; enfim , a d o u trin a do casam ento conferirá à finalidade
pro criad o ra o duplo papel de g a ra n tir a sobrevivência ou m esm o a
proliferação do povo de Deus, e a possibilidade p ara os indivíduos de
não destinar, através dessa atividade, sua alm a à m orte eterna. Tem -se
aí um a codificação ju ríd ico -m o ral dos atos, dos m om entos e das inten­
ções, que to rn a legítim a um a atividade que carrega em si m esm a valo­
res negativos: e a inscreve no dup lo registro da instituição eclesiástica e
da instituição m atrim onial. O tem po dos ritos e o da procriação legíti­
m a podem absolvê-la.
N os gregos, os mesmos temas de inquietação (violência, dispêndio
e m orte) tom aram form a num a reflexão que não visa um a codificação
dos atos, nem a constituição de um a arte erótica, mas a instauração de
um a técnica de vida. Esta não postula que se retire aos atos sua n a tu ­
ralidade de princípio; ela tam bém não se propôs a m ajorar seus efeitos
de prazer; procu ra distribuí-los o m ais próxim o possível do que a n a­
tureza dem anda. O que ela p ro cu ra elab o rar não é, com o num a arte
erótica, o desenrolar do ato; tam bém não são as condições de sua legi­
tim ação institucional, com o será o caso do cristianism o; é m uito m ais
a relação de si m esm o com essa atividade “ considerada em bloco” , a
capacidade de dom iná-la, lim itá-la e reparti-la com o convém; trata-se,
nessa technê, da possibilidade de se constituir com o sujeito, m estre de
sua pró p ria co n d u ta, isto é, de se to rn a r - com o o m édico em relação à
doença, o piloto entre os escolhos ou o político em relação à cidade'1' o hábil e p rudente guia de si m esm o, a p to à con jecturar com o convém
sobre a m edida e o m om ento. Pode-se com preender, assim , por que a
necessidade de um regime p ara os aphrodisia é sublinhada com ta n ta
insistência, e n q u an to que poucos detalhes são dados sobre os d istú r­
bios que um abuso p ode pro v o car, e poucas precisões sobre o que é
preciso fa/er ou não fazer. Porque ele é o m ais violento dentre to dos os
prazeres, p orque é m ais custoso do que a m aior parte das atividades
93. tssa s três "artes de governar" são aproxim adas entre si com m uita freqüência, en­
quanto artes que requerem, ao mesmo tem po, saber e prudência circunstanciais: tam ­
bém são aproxim adas porque são saberes associados a uma capacidade de com andar.
Freqüentem ente se faz referência a elas quando se trata do indivíduo procurar os princí­
pios ou a autoridade que o ajudarão a “ conduzir-se".
125
físicas, p o rq u e ele diz respeito ao jo g o da vida e d a m orte, ele constitui
um dom ínio privilegiado p a ra a form ação ética d o sujeito: de um sujei­
to que deve se caracterizar p o r sua capacidade de do m in ar as forças
que nele se desencadeiam , de g u a rd a r a livre disposição de sua energia,
e de fa/.er de sua vida um a o b ra que sobreviverá além de sua existência
passageira. O regim e físico dos prazeres e a econom ia que ele im põe
l'a/ parte de toda um a arte de si.
126
CAPÍTULO III
ECONÔMICA
1
A SA BEDO RIA D O CASAM ENTO
Com o, sob que formas, e a partir do quê, as relações sexuais entre
marido e mulher, no pensam ento grego, “ constituíram problema"?
Que razão havia para se preocupar com elas? E, sobretudo, para inter­
rogar o com portam ento do marido, refletir sobre a sua necessária tem ­
perança e, nessa sociedade tão fortemente marcada pela dom inação
dos “ homens livres” , torná-lo um tema de preocupação moral? Apa­
rentemente nenhuma ou, em todo caso, muito pouca. N o final do libe­
lo Contra Nera, atribuído a D em óstenes, o autor formula uma espécie
de aforismo que permaneceu célebre: “ As cortesãs, nós as tem os para
o prazer; as concubinas, para os cuidados de todo o dia; as esposas,
para ter uma descendência legitima e uma fiel guardiã do lar” .'
Com tal fórmula, e o que poderia passar por uma estrita distribui­
ção de papéis, se está m uito longe das artes do prazer conjugal, com o
se pode encontrar, segundo Van G ulik, na China antiga: lá são estrei­
tamente associadas prescrições relacionadas à obediência da mulher,
seu respeito, seu devotam ento, conselhos de com portamento erótico
destinados a majorar tanto quanto possível o prazer dos parceiros, ou
em todo caso d o homem, e pareceres sobre as condições para obter a
melhor descendência possível .2 É porque nessa sociedade poligâm ica a
esposa tinha, em relação às outras, uma situação concorrencial onde o
1.
2.
D E M O ST H È N E , Contre Niéra, 122.
R. VAN G U L IK , La vie sexuelle dans
la Chine ancienne, pp. 144-154.
129
seu status e sua a p tid ã o a d a r prazer estavam diretam ente ligados; a in­
terrog ação sobre o co m p o rtam en to sexual e as form as de seu aperfei­
çoam ento possível faziam p arte d a reflexão sobre a existência dom ésti­
ca; prática hábil dos prazeres e equilíbrio da vida conjugal faziam p a r­
te do m esm o conju n to . Assim tam bém a fórm ula do Contra Nera se
afasta m uito daquilo que se poderá en co n trar na d o u trin a e na p a sto ­
ral cristãs, m as p o r razões to talm en te diferentes; nessa situação estrita­
m ente m onogâm ica, o hom em se verá p ro ib id o de ir buscar qualquer
ou tra form a de prazer que seja, fora daquele que deve ter com sua es­
posa legítim a; e esse m esm o prazer colocará um núm ero considerável
de problem as, já que o objetivo das relações sexuais n ã o deve estar na
volúpia m as na procriação; em to rn o dessa tem ática central, to d a um a
interro g ação m uito estrita se desenvolverá a p ro p ó sito do estatu to
dos prazeres na relação conjugal. Nesse caso, a problem atização não
nasce da estru tu ra poligâm ica m as da o brigação m onogâm ica; e ela
não pro cu ra ligar a q u alidade da relação conjugal à intensidade do
prazer e à diversidade dos parceiros, mas, ao co n trário , dissociar, ta n ­
to q u an to possível, a constância de um a relação conjugal única da bus­
ca do p razer.'
A fórm ula do Contra N era parece rep o u sar sobre um sistem a to ­
talm ente distinto. P or um lado esse sistem a faz funcionar o princípio
de um a única esposa legítim a; m as, p o r o u tro , situa m uito nitidam ente
o cam po dos prazeres fora da relação conjugal. N ela o casam ento só
enco n traria a relação sexual em sua função re p ro d u to ra, e n q u an to que
a relação sexual n ão colocaria a questão do p iu zer a não ser fora do
casam ento.. E, com o conseqiiência, ncD se vê p o r que as relações se­
xuais co n stitu iriam p roblem a nà vida conjugal, salvo q u an d o se tra ta
de dar ao m arid o um a descendência legítim a e feliz. A ssim , no pensa­
m ento grego, se en co n trará, m uito logicam ente, interrogações técnicas
e m édicas sobre a esterilidade e suas razões,4 considerações de dietética
e de higiene sobre os m eios de ter filhos em b o a saúde,5 e de preferên­
cia m eninos d o que m eninas, reflexões políticas e sociais sobre a m e­
lhor co m b in ação possível dos cônjuges,6 enfim , debates jurídicos sobre
3. É preciso evitar esquem atizar e reduzir a doutrina cristã das relações conjugais à fi­
nalidade procriadora e com a exclusão do prazer. N a verdade, a doutrina será comple­
xa. sujeita a discussão, e conhecerá numerosas variantes. N o entanto, o que se deve con­
siderar aqui é que a questão do prazer na relação conjugal, do lugar que ele ocupa, das
precauções a serem tom adas contra ele, e tam bém das concessões que lhe devem ser fei­
tas (tendo em conta a fraqueza do outro e sua concupiscência) constitui um núcleo ativo
de reflexão.
4. Ver o tratado Sohre a esterilidade, atribuído a Aristóteles e considerado por muito
tem po com o o livro X da História dos animais.
5. Cf. supra, cap. II.
6. Assim, X É N O PH O N , Économique, VII, 11; PLATON , Lois, 111 d-773 e.
130
as condições nas quais os descendentes podem ser considerados legíti­
m os e beneficiar-se do status de cid ad ão (era o que estava em jo g o na
discussão no Contra Nera).
N ã o se vê, aliás, p o r que a p roblem atização das relações sexuais
entre esposos assum iria o u tra s form as o u se p ren deria a ou tras ques'tões se se considera quais eram , n a A tenas clássica, o status dos espo­
sos e as obrigações pelos quais um e o u tro eram responsáveis. A defi­
nição daquilo que era perm itido, p ro ib id o e im posto aos esposos pela
instituição do casam ento, em m atéria de p rática sexual, era bastan te
sim ples e b a sta n te claram ente dissim étrica p a ra que um suplem ento de
regulação m oral n ão parecesse necessário. P or um lado, as m ulheres,
en q u a n to esposas, são de fato circunscritas p o r seu status ju ríd ico e so­
cial; to d a a sua atividade sexual deve se situar no interior d a relação
conjugal e seu m arid o deve ser o parceiro exclusivo. Elas se encontram
sob o seu poder; é a ele que devem d a r filhos que serão seus herdeiros e
cidadãos. Em caso de ad u ltério , as sanções to m ad as são üe ordem p ri­
vada com o tam b ém pública (u m a m ulher acusada de adultério não
possui m ais o direito de ap arecer nas cerim ônias de culto público);
com o diz D em óstenes: a lei “ q u er que as m ulheres experim entem um
tem or bem forte p a ra que p erm aneçam honestas (sõphronein), p a ra
que não com etam algum a falta (niêden hamartanein), p a ra serem fiéis
guardiãs do la r” ; ela as adverte q u e “ se n ão cum prissem um tal dever
seriam excluídas ao m esm o tem po da casa de seu m arido e do culto da
cidade” .7 O status fam iliar e cívico da m ulher casada lhe im põe as re­
gras de um a co n d u ta que é a de u m a p rá tic a sexual estritam ente conju­
gal. N ã o é que a virtude seja inútil às m ulheres, longe disso; m as sua
sõphrosunê tem p o r função g a ra n tir que elas saberão respeitar, por
v o ntad e e razão , as regras q u e lhes são im postas.
Q u an to ao m arid o , ele é lim itado, em relação à sua m ulher, a um
certo nú m ero de obrigações (u m a lei de Sólon exigia do m arido que ti­
vesse relações sexuais com sua m ulher pelo m enos três vezes p o r mês
se ela fosse “ h erd eira” 8. M as ter relações sexuais a n ã o ser com sua es­
posa legítim a n ão faz parte, de m o d o algum , de suas obrigações. É ver­
dade que to d o hom em , q u alq u er que seja ele, casado ou não, deve res­
p eitar um a m ulher casad a (o u u m a jovem sob p o d er paterno); m as é
po rq u e ela está sob o p o d er de um o u tro ; não é seu p ró p rio status que
7. D EM O STH ÈN E, Contre Nééra, 122.
8. PL U T A R Q U E , Vie de Solon, XX. Encontra-se também o testem unho de uma obri­
gação dos deveres conjugais no ensino pitagórico; é o que relata D IÓ G EN ES LAÉRCIO: “ Hierônim o acrescenta que Pitágoras desceu aos infernos . . . e viu os torm entos
daqueles que tinham negligenciado realizar seus deveres conjugais" (tous me thelontas
suneinai tais heauton gunaixi ), Vie des philosophes, VIII, 1, 21.
131
o detém , m as o d a jovem o u da m ulher c o n tra a qual ele atenta; sua
falta é essencialm ente co n tra o hom em que tem p o d er sobre a m ulher;
é por isso que ele será m enos gravem ente pu n id o , sendo ateniense, se
violar, a rre b a tad o p o r um m om ento pela voracidade de seu desejo, do
que se seduzir p o r vontade deliberada e ardilosa; com o diz Lísias no
Contra Eratóstenes, os sedutores “ corrom pem as alm as, a p o n to que
as m ulheres dos o u tro s lhes pertencem m ais intim am ente do que aos
m aridos; eles se to rn am os senhores d a casa, e n ã o se sabe m ais de
quem são os filhos” .9 O violador a ten ta som ente c o n tra o corpo da
m ulher; o sed u to r, c o n tra o p oder do m arido. Ele p ró p rio , em troca,
en q u an to hom em casado, só lhe é p ro ib id o c o n tra ir o u tro casam ento;
nenhum a relação sexual lhe é p ro ib id a em conseqüência do vinculo
m atrim onial que contraiu; ele p ode ter u m a ligação, po d e freqüentar
p ro stitu tas, pode ser am an te de um rap az - sem c o n ta r os escravos,
hom ens o u m ulheres que tem. em sua casa, à sua disposição. O casa­
m ento de um hom em não o liga sexualm ente.
Isso tem com o conseqüência, na ordem ju ríd ica, que o adultério
não é um a ru p tu ra do vínculo do casam ento que p ode oco rrer p o r cau­
sa de um dos cônjuges; ele só é co n stitu íd o com o infração no caso em
que um a m ulher casada tem relação com um hom em que não é seu es­
poso; é o status m atrim onial da m ulher, jam ais o do hom em , que per­
m ite definir um a relação com o adultério. E, nessa ordem m oral, com ­
preende-se p o r que n ão existiu p a ra os gregos essa categoria da “ fideli­
dade recíproca” que iria in tro d u zir m ais tard e, n a vida de casado, um a
espécie de- “ direito sexual” de valor m oral, com efeito ju ríd ico e de
com ponente religioso. O princípio de um dup lo m onopólio sexual, fa­
zendo os dois esposos parceiros exclusivos, n ã o é requerido na relação
m atrim onial. Pois se a m ulher pertence ao m arid o , este só pertence a si
m esm o. A d u p la fidelidade sexual, com o dever, engajam ento e senti­
m ento igualm ente co m p artilh ad o , não constitui a g aran tia necessária,
nem a m ais alta expressão da vida de casado. Poder-se-ia concluir dis­
so que, em b o ra os prazeres sexuais coloquem seus problem as, em bora
a vida de casado coloque os seus, as d uas problem atizações não se en­
contram . Em to d o caso, o casam ento, pelas razões que acabam os de
ver, não deveria colo car questões q u a n to à ética dos prazeres sexuais:
no caso de um dos parceiros - a m ulher - as restrições são definidas
pelo status, a lei e os costum es, e elas são g aran tid as p o r castigos ou
sanções; no caso d o o u tro - o m arid o - o status conjugal n ã o lhe im ­
põe regras precisas, salvo p a ra lhe designar aqu ela d a qual ele deve es­
perar seus herdeiros legítim os.
9. LYSIAS, Sur le meurtre d'Eraloslhène, 33. Cf. S. PO M E R O Y , Goddesses, whores,
wives and staves. Women in Classical Antiquity, pp. 86-92.
132
E n tretan to , n ão se p ode ficar nisso. É verdade que, pelo m enos
nessa época, o casam ento e, no casam ento, as relações sexuais entre
cônjuges, n ão constituíam um foco de in terro g ação m uito intensa; é
verdade que o cuid ad o em refletir sob re a co n d u ta sexual parece m e­
nos im p o rtan te na relação que se p o d e ter com a esposa do que n a re­
lação que se p ode ter com o p ró p rio co rp o ou, com o verem os, n a rela­
ção com os rapazes. M as seria inexato pensar que as coisas eram tão
sim ples a p o n to da co n d u ta da m u lh er - e n q u an to esposa - ser dem a­
siado im periosam ente fixada p a ra que fosse necessário pensá-la, e que
a do hom em - e n q u a n to esposo - fosse dem asiado livre p a ra que se ti­
vesse que in terrogar-se sobre ela. Em prim eiro lugar, existem testem u­
nhos sobre os sentim entos de ciúm e sexual; as esposas reprovavam com um ente os seus m aridos pelos prazeres que eles iam buscar alhures, e
a m ulher volúvel de Eufileto o censura p o r suas intim idades com um a
pequena escrav a.10 D e m an eira m ais geral, a opinião esperava, de um
hom em que se casava, u m a certa m u d an ça em sua co n d u ta sexual; su­
punha-se que, d u ran te o celibato d a ju v en tu d e (acontecia freqüente­
m ente dos hom ens n ã o se casarem antes dos trin ta), tolerava-se facil­
m ente um a intensidade e um a variedade de prazeres que e ra bom res­
tringir após um casam ento que, n ão ob stan te, n ã o im punha nenhum a
lim itação precisa. M as fora desses co m p o rtam en tos e dessas atitudes
correntes, tam bém existia um a tem ática refletida d a austeridade m ari­
tal. O s m oralistas - alguns, em to d o caso - em item claram ente o
princípio de que um hom em casado n ã o p oderia, em boa m oral, sen­
tir-se livre p a ra p ra tic a r os prazeres com o se não fosse casado. N icocles, no discurso que lsócrates lhe atrib u i, vangloria-sé de que não so­
m ente ele governa com ju stiça seus p ró p rio s súditos, m as que, desde
seu casam ento, só teve relação sexual com a sua p ró p ria esposa. E
A ristóteles prescreverá, na Política, que se considere com o “ um a ação
desonrosa” as relações “ do m arido com um a o u tra m ulher, ou da es­
posa com o u tro hom em ” . F enôm eno isolado e sem im portância? Já o
surgim ento de um a nova ética? M as p o r pouco num erosos que sejam
esses textos e, so b retu d o , p o r m ais afastad o s que tenham sido da ver­
dadeira prática social e do c o m p o rtam en to real dos indivíduos, con­
vém colocar-se um a questão; p o r que, na reflexão m oral, essa preocu­
pação com o c o m p o rtam en to sexual dos hom ens casados? Q ual era
esse cuidado, seu princípio e suas form as?
C onvém evitar sobre esse p o n to duas in terpretações que não p a ­
recem in teiram ente adequ ad as.
10. Ihiíl., 12: cf. também no Banquete de X E N O FO N TE a alusão às artim anhas que
uni m arido pode utilizar para esconder os prazeres sexuais que buscará alhures (Ban­
queiI. IV. X).
133
U m a delas consistiria em p ensar que a relação entre os esposos
não tin h a, p a ra os gregos da época clássica, n en h u m a o u tra função a
não ser o cálculo que aliava duas fam ílias, duas estratégias, duas fo rtu ­
nas, e que n ã o tin h a o u tro objetivo senão o de p ro d u zir um a descen­
dência. O aforism o do Contra Nera, que parece distinguir tão n itid a­
m ente os papéis q u e a cortesã, a concubina e a esposa devem desem pe­
n har na vida de um hom em , foi algum as vezes lido com o um a tripartição que im plicaria funções excludentes: prazer sexual de um lado, vida
cotidiana de o u tro , e enfim , p a ra a esposa som ente a continuação da
linhagem . M as é preciso levar em co n ta o contexto no qual essa sen­
tença, aparen tem en te b ru tal, foi form ulada. T ratav a-se de um litigante
que p reten d ia invalidar o casam ento ap aren tem ente legítim o de um
de seus inim igos, assim com o o reconhecim ento, e n q u a n to cidadãos,
dos filhos nascidos desse casam ento: e os argum entos apresentados se
baseavam na origem da m ulher, seu p assad o com o p ro stitu ta, e seu
status atual, que n ã o p oderia ser o u tro que n ã o o de concubina. O
p o nto n ã o era, p o rta n to , o de m o strar que se vai buscar prazeres em
o u tro lugar que n ão ju n to à esposa legítim a; m as que um a descendên­
cia legítim a não p o d eria ser o b tid a a não ser com a p ró p ria esposa. É
por isso que Lacey observa, a p ropósito desse texto, que nãt> se deve
en co n trar nele a definição de três papéis distintos, m as sim um a enu­
m eração cum ulativa que deve ser lida assim: o prazer é a única coisa
que a cortesã p ode dar; a concubina pode p ro p o rcio n ar, além disso, as
satisfações da existência cotidiana; m as som ente a esposa pode exercer
um a certa função p ertinente ao seu p ró p rio status: d ar filhos legítim os
e g ara n tir a co n tin u id ad e da instituição fam iliar.11 É necessário conce­
ber que em A tenas o casam ento não constituía o único m odo de união
aceita; na realidade ele form ava um a união p articu lar e privilegiada, a
única a pod er ocasio n ar, com os.seus direitos e efeitos inerentes, um a
co abitação m atrim o nial e u m a descendência legítim a. Existem , aliás,
m uitos testem u n h o s que m o stram o valor que se atrib u ía à beleza da
esposa, à im p o rtân cia das relações sexuais que se p odia ter com ela, ou
à existência de um am o r recíproco (com o esse jo g o entre Eros e A nteros que une N ik e ra to s e sua m ulher no Banquete (de X enofonte).12 A
separação rad ical entre o casam ento e o jo g o dos prazeres e das pai­
xões não é, sem dúvida, um a fórm ula que possa caracterizar conve­
nientem ente a existência m atrim onial n a A ntigfiidade.
D e ta n to q u erer isolar o casam ento grego das im plicações afetivas
e pessoais que, de fato , assum irão um a m aio r im p ortância p o sterio r­
m ente, de ta n to q u erer distingui-lo das form as ulteriores da conjugali-
11.
12.
134
W. K. LACEY, The fam ily in Classical Greece, 1968, p. 113.
X ÉN O PH O N , Banquet, VIII, 3.
dade, é-se levado p o r um m ovim ento inverso a aproxim ar dem ais a
m oral austera dos filósofos de certos princípios da m oral cristã. T entase, freqüentem ente, reconhecer nesses textos o nde a boa co n d u ta do
m arido é pensada, v alorizada e regulada sob a form a da “ fidelidade
sexual” , o esboço de um código m oral ain d a inexistente: aquele que
im porá sim etricam ente, aos dois esposos, a m esm a obrigação de so­
m ente p raticar as relações sexuais na união conjugal, e o m esm o dever
de atribuir-lhes a p ro criação com o fim privilegiado senão exclusivo.
Tende-se a ver, nas passagens que X enofonte ou Isócrates con sag ra­
ram os deveres do m arido, textos “ excepcionais dado os costum es do
tem p o ” .13 Excepcionais, eles o são na m edida em que são raros. M as
seria um a razão p a ra ver neles a antecipação de um a m oral fu tu ra ou o
signo an u n ciad o r de um a nova sensibilidade? Q ue estes textos tenham
sido reconhecidos retrospectivam ente em sua sem elhança com form u­
lações ulteriores, é um fato. Seria isso suficiente p ara colocar essa re­
flexão m oral e essa exigência de au sterid ad e em ru p tu ra com os com ­
po rtam en to s e as atitudes dos contem porâneos? Seria um a razão para
ver neles a v an g u ard a isolada de um a m oral futura?
Se quiserm os considerar, nesses textos, n ão o elem ento de código
que eles form ulam , m as a m an eira pela qual a co nduta sexual do ho­
mem é pro b lem atizad a, perceberem os facilm ente que não é a p a rtir do
p ró p rio vínculo conjugal e de u m a o brigação direta, sim étrica e recí­
proca que dele pudesse derivar. É verdade que é enq u an to casado que
o hom em tem que restringir seus prazeres, ou pelo m enos seus parcei­
ros; m as ser casado significa aqui, antes de m ais n ad a, ser chefe de
fam ília, ter um a au to rid ad e, exercer um pod er que tem na “ casa” seu
lugar de aplicação e, d en tro desse q u ad ro , m an ter as obrigações que
têm efeitos sobre a rep u tação do cidadão. É p o r isso que a reflexão
sobre o casam ento e a boa co n d u ta do m arid o está regularm ente as­
sociada a um a reflexão sobre o oikos (casa e p ro p riedade dom éstica).
Pode-se n o tar, en tão , que o princípio que liga o hom em a ob rig a­
ção de não ter p arceiro fora do casal que ele form a é de um a o u tra n a­
tureza do que aquele que liga a m u lh er a um a o brigação análoga. N o
caso da m ulher, é p or estar sob o p o d er de seu m arido que essa o b rig a ­
ção lhe é im posta. N o caso dele, é p o rq u e exerce o p o der e p o rq u e deve
dar provas de dom ínio de si na prática desse p oder, que deve res­
tringir as escolhas sexuais. T er som ente relação com o esposo é p ara a
m ulher um a conseqüência do fato de que ela está sob o seu p oder. N ã o
ter relação a n ão ser com sua esposa é, p a ra o m arido, a m ais bela m a ­
neira de exercer seu p oder sobre a m ulher. M ais do que a prefiguração
de um a sim etria que se e n c o n tra rá na m oral ulterior, trata-se aí d a es-
13.
G. M A TH IE U , “ N ote” em ISO CRA TE, Nicoclès, C .U .F., p. 130.
135
tilização de um a dissim etria atual. U m a restrição q u e é análoga naqui­
lo que p erm ite o u que proíbe não recobre p ara os d ois esposos a mes­
m a m aneira de “ se conduzir” . Isso é bem claro no exem plo de um tex­
to consagrado à m aneira de conduzir sua casa e de se conduzir com o
chefe d a casa.
136
V
2
A CASA DE ISÔMACO
A Econômica de X enofonte contém o tra ta d o de vida m atrim onial
m ais desenvolvido que a G récia clássica nos deixou. O texto se ap re­
senta com o um conju n to de preceitos relativos à m aneira de governar
0 pró p rio patrim ô nio . Em to rn o dos conselhos para adm in istrar o
dom ínio, dirigir os trab alh ad o res, proceder às diferentes form as de
cultura, aplicar no bom m om ento as boas técnicas, vender ou c o m p rar
com o convém e q u an d o convém , X enofonte desenvolve várias refle­
xões gerais: um a reflexão sob re a necessidade, nessas m atérias, de re­
correr a p ráticas racionais que, às vezes, ele designa pelo nom e de sa­
ber (epistênie) e, às vezes, pelo de arte o u de técnica (technê); um a refle­
xão sobre o objetivo que ela se p ro p õ e (conservar e desenvolver o p a ­
trim ônio); e enfim um a reflexão sobre os meios p ara atingir esse obje­
tivo, isto é, sobre a arte de co m an d ar, e é esse últim o tem a que volta o
m ais freqüentem ente ao longo do texto.
A paisagem na qual essa anál se se inscreve é social e politicam en­
te bem m arcada. É o pequeno m undo dos p ro p rietários de terra que
têm que m anter, fazer crescer e tra n sm itir p ara aquelçs que têm o seu
nom e. os bens da fam ília. X enofonte o opõe m uito explicitam ente ao
m undo dos artesãos, cuja vida não é benéfica nem para a sua pró p ria
saúde (p o r causa de seu m odo de vida) nem p ara seus am igos (aos
quais eles n ão podem ajudar) nem tam p o u co p ara a cidade (pois não
dispõem de tem po p ara se o cu p ar de seus negócios).14 Em troca, a a ti­
vidade dos p ro p rietário s de terra ;e desenrola ta n to na praça pública,
11 \ l
l\ . 2-.V
137
na ágora, onde podem exercer seus deveres de am igos e de cidadãos,
com o no oikos. M as o oikos não é sim plesm ente constituído pela casa
propriam ente dita; tam bém co m p o rta as terras e os bens, em qualquer
lugar em que se encontrem (m esm o fora dos limites da cidade): “ a casa
de um hom em é tu d o aquilo que ele vem a p ossuir” ;1' define toda uma
esfera de atividades. E a essa atividade é ligado um estilo de vida e uma
ordem ética. A existência do p ro p rietário , se ele se ocupa de seu dom í­
nio com o convém é, em prim eiro lugar, b o a p ara ele mesmo; em todo
caso, ela constitui um exercício de resistência, um treino físico que é
bom p ara o corpo, p a ra a saúde e p ara o vigor; ela tam bém encoraja a
devoção, perm itindo fazer ricos sacrifícios aos deuses; ela favorece as
relações de am izade, fornecendo a o p o rtu n id ad e de se m ostrar genero­
so, de realizar com largueza os deveres da hospitalidade, e de m anifes­
tar sua benevolência p ara com os cidadãos. Além disso, essa atividade
e útil a toda a cidade p orque contribui p ara a sua riqueza e, sobretudo,
porque lhe fornece bons defensoras: o p ro p rietário de terra, habituado
aos rudes trab alh o s, é um soldado vigoroso e os bens que possui fa­
zem -no interessar-se em defender corajosam ente o solo da pátria."
T o d as essas vantagens pesso iis e cívicas da vida do proprietário
confluem p ara aquilo que aparece com o o m érito principal da arte “ econôm ica’": ela ensina a prática do co m ando da qual é indissociável.
D irigir o oikos é com andar; e co m an d ar a casa não é diferente do p o ­
der que se deve exercer na cidade. Sócrates dizia para N icom aquides
nos M emoráveis: “ não despreze os bons ecônom os; pois u condução
dos negócios privados só difere q u an to ao núm ero daquela dos negó­
cios públicos; no resto elas se assem elham . .. ; aqueles que dirigem os
negócios públicos não em pregam hom ens diferentes daqueles que em ­
pregam os ad m in istrad o res dos negócios privados, e aqueles que sa­
bem em pregar os hom ens dirigem igualm ente bem os negócios priva­
dos e os p ú b lic o s."1 O diálogo sobre a Econômica se desenvolve com o
uma grande análise da arte de com andar. O início do texto evoca C iro.
o jovem , que pessoalm ente tom ava conta das culturas, exercitava-se. a
cada dia, em p lan tar seu ja rd im , e que tinha assim adquirido uma tal
habilidade em dirigir hom ens que nenhum de seus soldados, quan d o
ele teve que ir à g uerra, desertou jam ais de seu exército: ao invés de
ab ando n á-lo eles preferiram m orrer sobre o seu ca d áv e r.Ih Sim etrica­
mente o fim do texto evoca a réplica desse m onarca m odelo tal com o
15.. //>/</.. 1.2.
Ifi. Sohrc esse elogio da agricultura e a enumeração de seus eleitos benéficos, cf. todo
o capitulo V da Hconômicu
17. X ÍíN O PH O N . Men,,,rubles. III. 4.
IS. X ÉN O PH O N , KctHunniqni'. IV. IK-25.
138
se pode enco n trá-la, seja nos chefes “ de grande caráter” , aos quais
seus exércitos seguem sem pre infalivelm ente, seja no chefe da casa, cu­
jas m aneiras reais bastam p a ra estim ular os trab alh ad o res, tã o logo o
vejam , e sem que necessite zangar-se, am eaçar ou punir. A arte dom és­
tica é da m esm a natu reza que a a rte politica ou a arte m ilitar, pelo m e­
nos na m edida em que se tra ta , lá com o aqui, de governar os o u tro s .19
É nesse contexto de um a arte d a “ econom ia” que X enofonte colo­
ca o problem a das relações en tre m arido e m ulher. É que a esposa, en­
q u an to dona-de-casa, é um a personagem essencial na gestão do oikos e
para o seu bom governo. “ Existe alguém a quem confies m ais negócios
im portantes do que à tu a m ulher?” perg u n ta Sócrates a C ritó b u lo ; e
um pouco m ais ad ian te ele acrescenta: “ p ara m im , considero que um a
m ulher que é um a boa associada no governo da casa é tã o im p o rtan te
com o o hom em p ara a causa co m u m ” ; p o rta n to , nessa ordem de coi­
sas. “ se tu d o é bem feito, a casa p rospera; se é m al feito, a casa peri­
g a " .’" O ra, ap esar da im p o rtân cia da esposa, n ad a é realm ente p re p a­
rado p ara que ela possa desem penhar o papel exigido: em prim eiro lu­
gar, a sua extrem a ju v en tu d e e a sucinta educação que recebeu
(“ quando tu a desposaste era um a jovem a quem não foi deixado, ta n ­
to q u an to possívei, p o r assim dizer, ver nem ouvir n ad a” ), e tam bém a
ausência quase to tal de relações com seu m arido com quem ela ra ra ­
m ente conversa (“ existe alguém com quem tenhas m enos conversação
do que a tu a m ulher?” ).21 É precisam ente sobre esse p o n to que se situa,
para o fnarid o , a necessidade de estabelecer com sua m ulher relações
que são ao m esm o tem po de form açãp e de direção. N um a sociedade
em que as m oças são dad as m uito j’ovens - em geral em to rn o dos
quinze anos - a hom ens que são, freqüentem ente, duas vezes m ais ve­
lhos que elas, a relação conjugai, à qual o oikos serve de suporte e de
contexto, tom a a form a de um a pedagogia e de um governo das co n ­
dutas. Aí reside a responsabilidade do m arido. Q u an d o o co m p o rta ­
m ento da m ulher, em vez de ser proveitoso p ara o m arido, só lhe causa
danos, á quem deve ser a trib u íd a a falta? Ao m arido. “ Se um carneiro
está em m au estado, é em geral ao p a sto r que se atribui a responsabili­
dade; e se um cavalo está viciado é. o rdinariam ente, ao cavaleiro que
sc acusa; q u a n to à m ulher, se seu m arido lhe ensina a fazer bem , e que
contu d o ela adm inistra m al seus negócios, será sem dúvida ju sto a tri­
buir a responsabilidade à m ulher; m as se ele tem um a m ulher que ig­
nora o bem p orque ele não lhe ensina, não seria ju sto fazer recair a res­
ponsabilidade sobre o m arido?” 22
19.
20.
21.
Ibid.. X X I . 4-9.
Ibid.. 111. 15.
Ibid.. III. 12-13.
::
Ibid.. 111. II.
139
C om o se vê, as relações entre esposos não são questionadas nelas
mesmas: elas não são, inicialm ente, consideradas com o relação sim ­
ples de um casal co n stitu íd o por um hom em e um a m ulher e que pode­
ria ter, além disso, que se o cu p ar de um a casa e de um a família. X eno­
fonte tra ta longam ente da relação m atrim onial, m as de m aneira indi­
reta, contextuai e técnica; ele a tra ta no q u ad ro d o oikos, com o um as­
pecto da responsabilidade governam ental do m arido, e p ro cu ran d o
determ inar de que m aneira o esposo poderia fazer de sua esposa a co­
laborad o ra, a associada, a sunergos, da qual necessita para a prática
razoável da econom ia.
A d em o n stração de que essa técnica pode ser ensinada é solicitada
a Isôm aco; este, p a ra conferir au to rid ad e à sua lição, tem apenas que
ser, nada m ais, n ad a m enos, do que um “ hom em de bem ” ; ele enfren­
tou, o u tro ra , a m esm a situação que a de C ritó b u lo hoje; casou com
um a m ulher m uito jovem - ela tin h a quinze anos e sua educação nada
lhe ensinou além de fazer um m anto e distribuir a lã às fiandeiras;''
mas ele a form ou tã o bem , e a tran sfo rm o u num a co lab o rad o ra tão
preciosa que p ode ag o ra confiar-lhe os cu idados da casa enq u an to ele
pró p rio fica disponível p a ra os seus negócios, quer no cam po ou na ágora, ou seja, nos lugares onde deve exercer de m aneira privilegiada a
atividade m asculina. Isôm aco irá, p o rta n to , fazer p ara C ritó b u lo e Só­
crates, a exposição d a “ econom ia” , da arte de gerir o oikos\ antes de
dar conselhos sobre a gestão de um dom ínio agrícola ele com eçará, n a­
turalm ente, p o r tra ta r da casa p ro p riam en te d ita, cuja adm inistração
deve ser bem regulada se quiser ter tem po p a ra se o cu p ar do gado e da
terra, e evitar que to d o o esforço aí feito seja perd id o p o r causa de um a
desordem dom éstica.
1.
O p rincípio d o casam ento será lem brado p o r Isôm aco, que cita
o discurso que teria feito à sua jovem m ulher, algum tem po depois do
casam ento, q u a n d o ela estava “ fam iliarizada” com seu esposo e “ sufi­
cientem ente dom esticada p ara conversar” : “ Por que te desposei e por
que teus pais te deram p ara m im?” O p ró p rio Isôm aco responde:
“ porque refletim os, eu p o r m inha p ró p ria co n ta, e os teus pais pela
tua, sobre o m elhor associado que am bos poderíam os ter para nossa
casa e nossos filhos” .24 O vínculo m atrim onial é, p o rta n to , caracteriza­
do em sua dissim etria de origem - o hom em decide p o r ele p ró p rio en­
q u an to que a fam ília decide pela jovem - e em sua dupla finalidade: a
casa e os filhos; é ain d a preciso observar que a questão da descendên-
H.
24.
140
Ihitl.. VII. 5.
Ibid., VII. II.
cia é, nesse m om ento, deixada de lado, e que antes de estar form ad a
p a ra a sua função de m ãe a jovem sen h o ra deve to rn ar-se um a boa
dona-de-casa.2S E Isôm aco m o stra que esse papel é o de associado; a
respectiva co n trib u ição de cad a um não precisa ser levada em conside­
ração ,2'’ apenas o m odo com o cad a um se em penha com vistas ao obje­
tivo com um , isto é, “ m an ter seus bens no m elhor estado possível, e os
fazer crescer ta n to q u a n to possível através de m eios honrosos e legíti­
m o s".27 Pode-se n o ta r essa insistência sobre a diluição necessária das
desigualdades iniciais entre os dois esposos, e sobre o vínculo de asso­
ciação que deve estabelecer-se en tre eles; en tre ta n to vê-se que essa co­
m unidade, essa koinõnia, n ão se estabelece n a relação dual en tre os
dois indivíduos, m as sim pela m ediação de um a finalidade com um que
é a casa: sua conservação, com o tam bém a dinâm ica de seu crescim en­
to. A p a rtir daí podem ser analisadas as form as dessa “ co m u n id ad e” e
a especificidade dos papéis que nela devem desem penhar os dois côn­
juges.
2.
P ara definir as funções respectivas dos dois esposos na casa,
X enofonte p a rte da n o ção de “ ab rig o ” (stegos): ao criar o casal h u m a ­
no, os deuses teriam , de fato, pensado na descendência e na co n tin u a­
ção da raça, na aju d a de que se tem necessidade na velhice, enfim , na
necessidade de não se “ viver ao a r livre com o o g ad o ” : p a ra os h u m a ­
nos, “ é evidente que é necessário um te to ” . À prim eira vista, a descen­
dência d á à fam ília sua dim ensão tem p o ral e, o abrigo, sua org an iza­
ção espacial. M as as coisas são um pouco m ais com plexas. O “ te to ”
determ ina um a região externa e u m a região interna, um a das quais
concerne ao hom em e a o u tra constitui o lugar privilegiado d a m ulher;
m as ele é tam bém o lugar onde se ju n ta , acum ula e conserva o que foi
adquirido; ab rig ar é prever p a ra d istrib u ir n o tem po, de acordo com
os m om entos o p o rtu n o s. F o ra, haverá, p o rta n to , o hom em que se­
meia, cultiva, lab o ra e cria o gado; ele tra z p a ra casa o que produziu,
ganhou ou tro co u ; d en tro , a m ulher recebe, conserva e atribui na me­
dida das necessidades. “ Ê a atividade d o m arido que geralm ente faz
e n tra r os bens na casa; m as é a g estão d a m ulher que, o m ais freqüen­
tem ente, regula seu g a sto .” 2* O s dois papéis são exatam ente com ple-
25. Ibid., V tl, 12.
26. Isômaco insiste sobre essa anulação das diferenças entre esposos que poderia ser
m arcada pela contribuição de cada um (VII,
13).
27. Ibid.. VII, 15.
2X. Ibid., VII. 19-35. Sobre a im portância dos dados espaciais na ordem dom éstica cf
J. P. V ERN A N T, "H estia-H erm ès. Sur l'expression religieuse de l'espace chez les
G recs" M vilv et pensée chez les grecs, 1, pp. 124-170.
141
m entares, e a au sência de um to rn a ria o o u tro inútil: “ Q ue teria eu
para conservar, diz a m ulher, se não estivesses lá p ara cuidar de trazer
de fora algum as provisões?” ; a o que o esposo responde: se ninguém
estivesse aí p a ra co n serv ar o q u e foi trazid o p a ra a casa, “ eu seria ridí­
culo, com o essa gente que jo g a ág u a num vaso sem fundo” .” P ortanto,
dois lugares, duas form as de atividade, com o tam bém duas m aneiras
de organ izar o tem po: de um lad o (o d o hom em ) a produção, o ritm o
das estações, a esp era das colheitas, o m o m en to o p o rtu n o que deve ser
respeitado e previsto; de o u tro (o da m ulher) a conservação e os gas­
tos, a o rd e n a ç ã o e a d istrib u ição q u a n d o é necessário e, sobretudo, a
arrum ação: sobre as técnicas de arru m a ç ão no espaço da casa, Isômaco lem bra longam ente to d o s o s conselhos que deu à m ulher para que
ela pudesse re e n c o n trar o que conservou fazendo assim , de seu lar, um
lugar de ordem e d e m em ória.
Para que eles pudessem exercer ju n to s essas funções distintas, os
deuses d o ta ra m c a d a sexo de qualid ad es particulares. T raços físicos:
para os hom ens q u e ao a r livre devem “ la b o rá r, sem ear, plan tar e le­
var o g ado a p a s ta r” , a trib u íram o dom de su p o rta r o frio, o calor, as
cam inhadas; as m ulheres, que tra b a lh a m abrig ad as, têm o corpo me­
nos resistente. T raço s de c a rá te r tam bém : as m ulheres possuem um
m edo n atu ral, m as que tem seus efeitos positivos: ele as leva a se preo­
cuparem com as provisões, a tem erem sua perd a, a recearem os gastos;
o hom em , em tro c a , é bravo, p o is no exterior ele deve se defender con­
tra tu d o o que p o d e ria lhe c a u sa r d an o . Em sum a, “ a divindade adap­
tou, desde o início, a jiatu reza d a m ulher aos tra b a lh o s e aos cuidados
do interior, e a d o hom em àqueles d o exterior” .30 M as ela os arm ou
tam bém de q u alid ad es com uns: p o sto que ta n to o hom em com o a m u­
lher, cada um no seu papel, têm “ a d a r e receber” , p o sto que, em sua
atividade com o responsáveis d a casa eles têm , ao m esm o tem po, que
recolher e d istrib u ir, receberam igualm ente a m em ória e a atenção
(m nêm ë e epim eleia).3'
P o rtan to , ca d a um dos dois cônjuges tem u m a natureza, um a for­
ma de atividade, um lugar q u e se define em relação às necessidades do
oikos. Q ue cada um se m an ten h a n o seu lugar é o que quer a “ lei” - no­
mos: h áb ito regular que co rresp o n d e exatam ente às intenções da n atu ­
reza que atrib u i a cad a um seu pap el e lugar, e define o que é conve­
niente e belo p a ra cad a um fazer o u não. Essa “ lei” declara belas (ka la) “ as ocupações p a ra as quais a divindade deu a cad a um m ais capa­
cidades n atu rais” : assim é m elh o r (kallion) p a ra a m ulher “ perm anecer
29.
M)
31.
142
X É N O PH O N , Économique, VII, 39-40.
Ihicl.. VII, 22.
Ihicl.. VII, 26.
em casa do que passar seu tem p o fo ra ” , e m enos bom , para o hom em ,
“ perm anecer em casa do que se o c u p a r dos trab alh o s no exterior” .
M odificar essa rep artição , passar de um a atividade à o u tra, é ate n ta r
co ntra esse nomos\ é, ao m esm o tem po, ir co n tra a natureza e a b a n d o ­
nar seu lugar: “ Se alguém age co n trariam en te à n atureza que a divin­
dade lhe conferiu, deixando, p o r assim dizer, seu posto (ataktõn ), ele
não escapa ao o lh ar dos deuses e é castigado p o r negligenciar os tra b a ­
lhos que lhe dizem respeito, e p o r se o cu p ar com os de sua m ulher” .'2
A oposição “ n a tu ra l” en tre o hom em e a m ulher, a especificidade de
suas aptidões, são indissociáveis da ordem da casa; elas são feitas para
essa ordem que, em reto rn o , as im põe com o obrigações.
3.
Esse texto, tã o d etalh ad o q u an d o é preciso fixar a repartição
das tarefas na casa, é bem discreto sobre a questão das relações sexuais
- quer se trate de seu lugar nas relações entre os dois cônjuges ou das
interdições que poderiam resu ltar d o estado de casado. N ão é que se
negligencie a im portância de ter um a descendência; ela é lem brada vá­
rias vezes no decorrer da intervenção de Isôm aco: ele indica que ela é
um dos grandes objetivos do casam en to ;11 tam bém indica que a n a tu ­
reza d o to u a m ulher de um a te rn u ra p articu lar p ara se o cu p ar dos fi­
lhos;'4 sublinha, igualm ente, o q u a n to é preciso, q u an d o se envelhece,
en co n trar nos filhos o apoio de q u e se tem necessidade.15 M as n ad a é
dito no texto sobre a p ró p ria p ro criação nem sobre os cuidados a se­
rem tom ad o s p ara se ter a m ais bela pro g en itu ra possível: ainda não
havia chegado o tem po p a ra a b o rd a r esse gênero de questões com a jo ­
vem esposa.
E n tretan to , várias passagens do texto se referem à co n d u ta se­
xual, à m o deração necessária e ao apego físico en tre esposos. É preciso
lem brar inicialm ente o com eço do diálogo, q u an d o os dois interlocu­
tores em preendem a discussão sobre a econom ia com o o saber que
perm ite dirigir a casa. Sócrates evoca aqueles que teriam talentos e re­
cursos p ara isso, m as recusam aplicá-los p o rq u e obedecem , no interior,
deles p róprios, a m estres ou a m estras invisíveis: preguiça, lassidão da
alm a, incúria, m as tam bém - m estras ain d a mais intratáveis do que as
ou tras - a gula, a em briaguez, a lubricidade, e as am bições loucas e
custosas. O s que se subm etem a um tal despotism o dos apetites conde­
nam à ruína seu corpo, sua alm a e sua casa.''1 M as C ritó b u lo se van-
32. Ihid.. VII, 31.
33. tile précisa que u divindade associa o homem à mulher visando os filhos e, a lei, vi­
sando o casam ento (VII, 30).
34. Ihid.. VII. 23.
35. Ihid.. VII, 12.
36 Ihid., 22-23.
143
gloria de já ter vencido esses inimigos: sua form ação m oral do to u -o de
uma enkrateia suficiente: “ Q u an d o me exam ino parece-m e que sou su­
ficientem ente m estre dessas paixões, de form a que, se quisesses acon­
selhar-m e sobre o que eu poderia fazer p ara en g randecer m inha casa,
não penso que estaria im pedido de fazê-lo pelo que cham as de mes­
tr a s " .1' Eis o que habilita C ritó b u lo a q uerer agora desem penhar q pa­
pel de chefe de casa e a aprender as suas tarefas difíceis. Ë preciso com ­
preender que o casam ento, as funções de chefe de fam ília, o governo
do oikos, supõem que se chegue a ser capaz de governar-se a si p ró ­
prio.
M ais adiante, na enum eração que p ro p õ e sobre as diferentes q u a­
lidades de que a n atureza d o to u cada um dos sexos, p a ra que possam à
sua m aneira desem penhar seu papel dom éstico, Isôm aco m enciona o
dom ínio de si (enkrateia); ele o considera não um traço p e rten c erte es­
pecificam ente ao hom em ou à m ulher, m as um a virtude com um - ao
mesm o títu lo que a m em ória ou a atenção - aos dois sexos; diferenças
individuais podem m odular a distribuição dessa qualidade; e o que de­
m onstra seu alto valor na vida m atrim onial é que ela vem co ro ar aque­
le que, entre os dois cônjuges é o m elhor, que seja o m arido ou a m u­
lher, o m elhor é o m ais bem d o tad o no que concerne a essa virtude. '’1
O ra, no caso de Isôm aco, vê-se de que m aneira sua tem perança se
m anifesta p o r si m esm a e guia a'd e sua m ulher. De fato, há um episó­
dio do diálogo que rem ete de um a form a bem explícita a certos aspec­
tos da vida sexual dos esposos: é aquele que concerne à m aquilügem e
aos cosm éticos.'“ T em a im p o rtan te na m oral antiga, pois o ornam ento
coloca o problem a das relações en tre a verdade e os prazeres e que, ao
introduzir nestes os jog o s do artifício, confunde os princípios de sua
regulação n atu ral. A questão do coquetism o na esposa de Isôm aco
não diz respeito à sua fidelidade (po stu lad a ao longo de to d o o texto);
tam bém não diz respeito a seu caráter perdulário: trata-se de sitber de
que m aneira a m ulher pode, ela p ró p ria, se ap resen tar e ser reconheci­
da por seu m arid o com o objeto de prazer e parceira sexual na relação
conjugal. E é dessa questão que Isôm aco tra ta , sob form a de lição, um
dia em que sua m ulher, p ara lhe ag rad ar (a fim de parecer ter “ um a tez
m ais clara” do que na realidade, as faces “ m ais ro sa d a s", a silhueta
“ m ais esbelta” ) se ap resenta em poleirada em altas sandálias e toda
p intada de alvaiade e de o rcan eta. A essa co n d u ta, que ele reprova,
Isôm aco responderá com um a d u p la lição.
37.
3X.
3‘).
144
//)«/.. 11. I.
IhUI.. V II. 27.
//>«/.. X . 1-X.
A p rim eira é negativa; consiste num a crítica da m aquilagem com o
em buste. Esse em buste, que p ode en g an ar estranhos, não poderia cau ­
sar ilusão em um hom em com quem se vive e que está, p o rta n to , em
condições de ver sua esposa ao sair d a cam a, em suores, às lágrim as,
ou ainda à saída do b an h o . M as Isôm aco critica so bretudo esse logro
na m edida em que ele infringe um princípio fundam ental do casam en­
to. X enofonte não cita diretam ente o aforism o, que se en c o n trará por
ta n to tem po e com ta n ta freqüência, segundo o qual o casam ento é
um a com unidade (koinõnia) de bens, de vida e de corpo; m as é claro
que ao loftgo do texto ele tem atiza essa trip la com unidade: co m unida­
de dos bens, a p ro p ó sito da q ual lem bra que cada um deve esquecer a
parte de sua contribuição; com u n id ad e de vida, que se fixa’com o um
de seus objetivos a prosperidade d o p atrim ônio; enfim , com unidade de
corpo, explicitam ente su b lin h ad a (tõn sõm aton koinonêsantes). O ra, a
com unidade de bens exclui o em buste; e o hom em se conduziria mal
com sua m ulher se lhe fizesse crer em riquezas que não possui; não de­
vem do m esm o m odo p ro c u ra r enganar-se um ao ou tro q u an to a seus
corpos; ele, p o r sua p arte, n ã o colocará verm elho nas faces; ela, do
m esm o m odo, não deve o rn ar-se com alvaiade. A ju sta com unidade
dos corpos tem esse preço. N a relação entre esposos, a a traç ão que
deve existir é aquela que se exerce naturalm ente, com o em q u alq u er es­
pécie anim al, entre o m acho e a fêmea: “ Os deuses fizeram os cavalos a
coisa m ais agradável d o m u n d o p a ra os cavalos, o gado p a ra o gado,
os carneiros p a ra os carneiros; assim tam bém os hom ens (anthrõpoi)
não encontram nada de m ais agradável do que o corpo do hom em sem
nenhum artificio” .40 É a a tra ç ã o n atu ral que deve servir de princípio às
relações sexuais en tre esposos e à com unidade de corpo que eles cons­
tituem : A enkrateia de Isôm aco recusa to d o s os artifícios usados p ara
m ultiplicar os desejos e os prazeres.
M as um a questão se coloca: de que m aneira pode a m ulher co n ti­
n u ar a ser o bjeto de desejo p a ra seu m arid o , com o estar segura de não
ser um dia su p lan tad a p o r o u tra , m ais jovem e m ais bonita? A jovem
m ulher de Isôm aco interro g a explicitam ente. O que fazer, n ã o som en­
te p a ra parecer, m as p a ra ser bela e conservar a beleza?“' E, de um a
m aneira que pode nos parecer estran h a, é áin d a a casa e o governo da
casa que serão o p o n to decisivo. Em to d o caso, a beleza real da m ulher
é, segundo Isôm aco, suficientem ente assegurada por suas ocupações
dom ésticas se ela as realiza com o convém . D e fato ele explica que, exe­
cu tan d o as tarefas de sua responsabilidade, ela n ão perm anecerá sen-
4t).
41.
Ihicl.. X. 7.
//>«/.. X. 9.
145
tad a, curv ad a sobre si m esm a com o um a escrava, o u ociosa com o umacoquete. Ela p erm anecerá de pé, supervisionará, co n tro la rá , irá de
qu arto em q u a rto verificar o trab alh o que se efetua; a posição ereta, a
m archa, d a rã o a seu corpo essa form a de p o stu ra, esse jeito que, aos
olhos dos gregos, caracterizam a plástica do indivíduo livre (mais
adiante Isôm aco m o stra rá que o hom em form a seu vigor de soldado e
de cidadão livre p o r sua p articipação ativa nas responsabilidades de
um m estre de o b ras).42 Assim tam bém é bom p a ra a dona-de-casa
am assar a farin h a, sacudir e a rru m a r as ro u p as ou as co b ertas.43 E des­
se jeito se form a e se conserva a beleza do corpo; a posição de
dom ínio tem a sua versão física que é a beleza. A lém disso., as roupas
da esposa possuem um a lim peza e um a elegância que a distinguem de
suas servas; Enfim , ela terá sem pre sobre estas a vantagem de pro cu rar
voluntariam ente a g rad ar, em vez de ser obrigada, com o um a escrava,
a se subm eter e a sofrer coerção: X enofonte parece se referir, aqui, ao
princípio que ele evoca em o u tro s textos,44 segundo o qual o prazer que
se obtém à força é m uito m enos agradável do que aquele que é ofereci­
do de bom grado: e é esse últim o prazer que a esposa pode dar a seu
m arido. Desse m odo, pelas form as de um a beleza física indissociáveis
de seu status privilegiado, e pela livre v o n tad e de ag rad ar (charizesthaí), a don a-d e-casa terá sem pre a preem inência sobre os ou tras
m ulheres da casa.
Nesse texto consag rad o à arte “ m asculina” de governar a casa - a
m ulher, os serviçais, o p atrim ô n io - não é feita alusão à fidelidade se­
xual da m ulher, e ao fato de que seu m arido deva ser o seu único p a r­
ceiro sexual: trata-se de um princípio necessário e que se supõe adm iti­
do. Q u an to à atitu d e tem perante e sábia do m arido, ela nunca é defini­
da com o o m o n o p ó lio que ele concederia à su a m ulher sobre todas as
suas atividades sexuais. O que está em jo g o nessa p rática refletida da
vida do casam ento, o que aparece com o essencial à boa ordem da casa,
à paz que aí deve reinar, e ao que a m ulher pode desejar, é que esta
possa g u a rd a r, en q u a n to esposa legítim a, o lugar em inente que o casa­
m ento lhe conferiu: n ã o se ver p reterid a p o r o u tra , não ser destituída
de seu status e de su a dignidade, n ão ser su b stitu íd a p o r o u tra ao lado
de seu m arid o , eis o que lhe im p o rta antes de m ais n ad a. Pois a am eaça
co ntra o casam ento não vem do prazer que o hom em possa o b ter aqui
ou acolá, m as das rivalidades que podem nascer en tre a esposa e as o u ­
tras m ulheres em to rn o do lugar a ser o cu p ad o na casa e das precedên­
cias a respeitar. O m arid o “ fiel” [pistos) n ão é aquele que ligaria o es­
42.
4.V
//>;,/.. X . 10.
Ihul.. X . I I .
44
XI NÜIMION. Itiéron. I.
146
w
tad o de casam ento à renúncia a qualquer prazer sexual obtido com
um a o utra; é aquele que sustenta até o fim os privilégios reconhecidos
à m ulher pelo casam ento. A liás, é desse m odo que o entendem as espo­
sas “ tra íd a s" que aparecem nas tragédias de Euripedes. M edéia p ro ­
testa co n tra a “ infidelidade ” de Jasão; depois dela, ele tom ou um a es­
posa real e se d o ta rá de um a descendência que rejeitará na hum ilhação
e na servidão os filhos que teve com M edéia.4' O que faz C reusa ch o rar
pelo que ela im agina ser a “ tra iç ã o ” de X uto é que terá que viver
“ sem filhos” e “ h ab itar solitária num a m oradia desolada” ; é que “ em
sua casa" - pelo m enos é isso que lhe dão a crer - que foi a de Eretéia,
irá en trar “ com o m estre sem nom e, sem m ãe enfim, o filho de algum a
escrav a".J"
Essa preem inência da esposa, que o bom m arido deve preservar,
está im plicada pelo a to de casam ento. M as ela não é ad q u irid a uma
vez por todas; não é g a ra n tid a p o r algum engajam ento m oral que o
m arido assum a; m esm o fora do repúdio e do divórcio, um a prescrição
de fato pode sem pre se p roduzir. O ra, o que m ostram a Econômica de
X enofonte e o discurso de Isôm aco é que, em bora a sabedoria do m a­
rido - sua enkrateia com o tam bém seu saber de chefe de família - este­
ja sem pre p ro n ta a reconhecer os privilégios da esposa, em troca, ela
deve, p ara conservá-los, exercer o m elhor possível seu papel na casa e
as tarefas que lhe são associadas. Isôm aco não prom ete logo de início
à sua m ulher um a “ fidelidade sexual" no sentido e.,i que a entendem os
hoje, nem m esm o que ela n ão precise terror nunca um a o u tra preferên­
cia; mas, do m esm o m odo que ele lhe garante que sua atividade de
dona-d e-casa,su a p o stu ra e seu porte terão um charm e m aior do que o
das servas, assegura tam bém que ela pode, até a yelhice, m anter o lu­
gar m ais alto na casa. E ele lhe sugere um a espécie de ju sta consigo
m esm a na boa co n d u ta e na aplicação aos cuidados da casa; e se ela
conseguir g an h ar, então, não terá m ais nada a tem er de q u alquer rival,
m esm o jovem . “ M as p ro v arás o m ais doce p razer", diz Isôm aco à sua
m ulher, “ q u an d o , m o stran d o -te m elhor do que eu, tiveres feito de
mim teu servo e q u an d o , longe de tem er que ao avançar na idade sejas
m enos considerada na casa, tiveres a segurança de que, ao envelhece­
res, q u an to m ais apreciada fores com o sócia, p o r teu esposo e, com o
dona-de-casa, p o r teus filhos, m ais serás h o n rad a na casa.” 47
N essa ética da vida de casado, a “ fidelidade" que é recom endada
ao m arido é, p o rta n to , t*lgo bem diverso da exclusividade sexual que o
casam ento im p õ e.à m ulher; ela concerne à m anutenção do status da
45.
46.
47.
t U R I P I D t, M ejée. V. 465 sq.
Id.. Ion. V, X36 sq.
X ÉN O PH O N , Économique. VII, 41-42.
147
esposa, de seus privilégios, de sua preeminência sobre as outras mulhe­
res. E se ela supõe uma certa reciprocidade de conduta entre o homem
e a mulher, é no sentido de que a fidelidade masculina responderia,
não tanto à boa conduta sexual da mulher - a qual é sempre suposta mas à maneira pela qual ela sabe se conduzir em casa e conduzir a pró­
pria casa. Portanto, reciprocidade, porém dissimetria essencial, pois os
dois com portam entos, mesmo supondo um ao outro, não se baseiam
n<ft mesmas exigências, nem obedecem aos mesmos princípios. A tem­
perança do marido diz respeito a uma arte de governar, de se gover­
nar, e de governar uma esposa que é preciso conduzir e respeitar ao
mesmo tempo, pois ela é, diante do marido, a dona obediente da casa.
148
L
3
TRÊS POLÍTICAS D A TEM PERANÇA
Outros textos no Século IV e no início do Século III também de­
senvolvem o tema de que o estado de casamento exige, da parte do ho­
mem, pelo menos uma certa forma de moderação sexual. Três deles,
sobretudo, merecem ser mencionados: a passagem que Platão consa­
gra, nas Leis, às regras e às obrigações do casamento; um desenvolvi­
mento de Isócrates sobre o m odo com que N icocles conduz sua vida
de homem casado; um tratado de econômica.que foi atribuído a Aris­
tóteles e que, certamente, provém de sua escola. Esses textos são bem
diferentes uns dos outros em seus propósitos: o primeiro oferece um
sistema de regulação autoritária das condutas no quadro de uma cida­
de ideal; o segundo caracteriza o estilo de vida pessoal de um autocra­
ta respeitoso de si e dos outros; o terceiro procura definir para qual­
quer homem os princípios úteis para dirigir a casa. Em todo caso, ne­
nhum se refere, com o a Econômica de Xenofonte, à forma de vida pró­
pria de um proprietário de terra nem, conseqüentemente, às tarefas de
gestão de um dom ínio que ele deve assumir em complementaridade
com sua mulher. A despeito das diferenças que os separam, esses três
textos parecem marcar tanto uns com o outros, e mais nitidamente do
que Xenofonte, uma exigência que se aproxima daquilo que se poderia
chamar o principio de “ duplo m onopólio sexual” ; é dessa forma que
eles parecem querer, tanto para o homem com o para a mulher, locali­
zar toda uma atividade sexual unicamente na relação conjugal: assim
com o sua esposa, o marido aparece com o obrigado ou, pelo m enos, se
obrigando a só procurar prazer com a sua mulher. Por conseguinte,
exigência de uma certa simetria; e tendência a definir o casamento
com o lugar não somente privilegiado mas talvez exclusivo da relação
149
1
sexual m oralm ente aceitável. E n tretan to , a leitura desses três textos
m ostra bem que se estaria errado em neles p ro jetar retrospectivam ente
um princípio de "fidelidade sexual recíproca" com o aquele que servirá
de arm ação jurid ico -m o ral p ara form as ulteriores da prática m atrim o­
nial. É que, de fato, em todos esses textos, a obrigação ou a recom en­
dação, feita ao m arido, de um a m oderação tal que ele só tivesse com o
parceira sexual a sua p ró p ria esposa, não é efeito de um engajam ento
pessoal que ele co n trairia em relação a ela; mas de um a regulação polí­
tica que é, no caso das leis platônicas, au to ritariam en te im posta, ou
que - em Isócrates e no pseudo-A ristóteles - o homem se im põe a si
mesm o p o r um a espécie de auto-lim itação refletida de seu p róprio p o ­
der.
1.
De fato, nas L eis, a prescrição de casar na idade que convém
(para os hom ens, en tre vinte e cinco e trinta e cinco anos), de fazer fi­
lhos nas m elhores condições, e de não ter - seja o hom em ou a m ulher
- nenhum a relação com quem quer que seja a não ser com o cônjuge,
todas essas injunções não assum em a form a de um a m oral voluntária
m as de um a regulam entação coercitiva; é•verdade que se sublinha vá­
rias vezes a dificuldade de legislar nessa m atéria,4* e o interesse que
haveria em que certas m edidas tom assem a form a de um regulam ento
apenas se ocorressem desordens e se o m aior núm ero não fosse mais
capaz de tem p eran ça.4’ Em todo caso, os princípios dessa m oral são
sem pre diretam ente relacionados às necessidades do E stado, sem se re­
ferirem jam ais às exigências internas da casa, da fam ília e da vida m a­
trim onial; deve-se co nsiderar que o bom casam ento é aquele que é útil
para a cidade, e q u e é em benefício desta que os filhos devem ser “ os
m ais belos e os m elhores possíveis” .50 U niões que, em respeito às p ro ­
porções proveitosas ao E stado, evitariam que os ricos se casassem com
os ricos,51 m eticulosas inspeções que viriam verificar que os jovens ca­
sais se p rep aram efetivam ente à sua tarefa p ro criad o ra,52 a ordem ,
com bin ad a com a punição, de só fecundar a esposa legítima, sem ter
nenhum a o u tra relação sexual d u ran te to d o o período em que se está
na idade de p ro c ria r," tu d o isso, que é ligado às estruturas particulares
da cidade ideal, é b astan te estran h o a um estilo de tem perança fu nda­
do na p ro c u rá volu n tária da m od eração .54
48. Lois. VI, 773 c e e.
49. Ibid., VI. 7X5 a.
50. Ibid., VI, 7X3 e; cf. IV, 721 a; VI, 773 b.
51. Ibid.. VI, 773 a-e.
52. Ibid.. VI, 784 a-c.
53. Ibid.. VI, 784 d-e.
54. N otar que, ultrapassado o limite de idade em que se pode ter filhos, “ aqueles que
viveram castam ente (sophronõn kai sophronousa) serão cercados de honra, mas os outros
terão a reputação contrária, ou melhor, serão desonrados” (784e).
150
î
!
E n tretan to , deve-se observar que Platão atribui som ente um a
confiança lim itada à lei q u an d o se tra ta de regular a co n duta sexual.
Ele não pensa que ela p oderia ser seguida de efeitos suficientes se não
se utilizar o u tro s meios, além de suas prescrições e am eaças,-para d o ­
m inar desejos tão v io len to s.'4 São necessários outros instrum entos de
persuasão m ais eficazes, e P latão enum era qu atro . A opinião: Platão
se refere ao que se passa em relação ao incesto; com o pode acontecer,
pergunta ele, que o hom em chegue a nem m esm o experim entar desejo
por seus irm ãos e irm ãs, seus filhos o u filhas, p o r m ais belos que se­
jam ? É p orque desde sem pre eles ouviram dizer que esses atos são “ um
objeto de ódio p ara a divindade” e que ninguém , a esse respeito, teve
jam ais a o p o rtu n id ad e de ouvir o u tra linguagem ; seria preciso, p o rta n ­
to, que a p ro p ó sito de todos os atos sexuais repreensíveis, “ a voz
pública unânim e” fosse da m esm a m aneira investida por um “ caráter
religioso” .'6 A glória: P latão evoca o exem plo dos atletas que, no dese­
jo de conquistarem um a vitória nos jo g o s se subm etem a um regime de
estrita abstinência, não se ap ro x im an d o nem de m ulher nem de rapaz
du ran te to d o o seu treinam ento: o ra, a vitória sobre esses inim igos in­
ternos, que são os prazeres, é bem m ais bela do que aquela que se pode
o b ter sobre riv a i« 57 A h o n ra d o ser hum ano: P latão cita aqui um
exem plo que será freqüentem ente utilizado a p artir daí; trata-se desses
anim ais que vivem em ban d o s m as em que eada um leva, no meio dos
o utros, “ na continência, um a vida p u ra de qualq uer acasalam en to ” ;
q u an d o chega a idade, p a ra eles, de procriar,, isolam -se e. form am ca­
sais que n ão se desfazem . Q ra, é preciso n o ta r que essa conjugalidade
anim al n ão é citada com o um princípio de n atureza que seria univer­
sal, m as antes com o um desafio que os hom ens deveriam considerar:
com o é que a lem brança de um a tal p rática não incitaria os hum anos
racionais a se m ostrarem “ m ais v irtuosos d o que os anim ais?” 51 Enfim ,
a vergonha: ao dim inuir a freqüência da atividade sexual, “ en fraque­
ceria sua tira n ia ” ; sem ter que proibi-los, seria necessário que os cida­
dãos “ cobrissem de m istérios tais a to s” e que eles sofram “ um a de­
so n ra” com etendo-os a descoberto, e isso em função de “ um a o b rig a­
ção criada pelos costum es e a lei n ão escrita” .59
A legislação de P latão estabelece, p o rta n to , um a exigência que é
sim étrica p a ra o hom em e p a ra a m ulher. Porque eles têm um certo p a ­
pel a desem penhar p a ra um objetivo com um - o de genitor dos fu tu ro s
55.
56.
57.
58.
59.
Ibid.,
Ibid.,
Ibid..
Ibid..
Ibid..
VIII,
VIII,
VIII,
VIII,
VIII,
835
838
840
840
844
e.
a-838
a-c.
d-e.
a-b.
151
«
cidadãos - é que eles são circunscritos exatam ente d a m esm a m aneira
às m esm as leis que lhes im põem as m esm as restrições. M as é preciso
n o ta r que essa sim etria n ão im plica de m odo algum que os esposos es­
tejam sujeitos à “ fidelidade sexual'’ p o r um vínculo pessoal, que seria
intrínseco à relação m atrim onial, e con stitu iria um engajam ento m ú­
tu o . A sim etria n ão se estabelece sobre um a relação direta e recíproca
entre eles, m as sob re um elem ento que os d o m in a a am bos: princípios
e leis aos quais am b o s estão sujeitos da m esm a m aneira. É verdade que
eles .devem se subm eter v o luntariam ente e pelo efeito de um a persua­
são interna; m as esta não concerne a um apego que deveriam ter um
pelo outro ; elà concerne à reverência que se deve ter pela lei ou aos cui­
dados que se deve ter consigo m esm o, com a p ró p ria reputação, com a
pró p ria h o n ra. É a relação do indivíduo consigo e com a cidade, na
form a dó respeito ou da vergonha, d a h o n ra ou da glória - e não a re­
lação com o o u tro - que im põe essa obediência.
E pode-se n o ta r que, na fo rm u lação p ro p o sta p o r P latão p ara a
lei, no que diz respeito “ às escolhas do am o r’’, ele considera duas for­
m ulações possíveis. D e acordo com um a, seria p ro ib id o a to d o indiví­
d uo to car em um a m ulher que fosse de b o a origem e de condição livre
m as que n ão fosse a sua esposa legítim a, de p ro criar fora do casam en­
to, e de ir lançar nos m achos, “ em perversão d a n atu re za” , “ um sêmen
infértil” . A o u tra fo rm ulação retom a, de form a ab soluta, a interdição
dos am ores m asculinos; q u an to às relações sexuais extraconjugais, ele
considera que se deve castigá-las som ente nos casos em que a falta não
perm anecesse ig n o rad a p o r “ todos, hom ens e m ulheres” .60 T an to é
verdade que à d u p la obrigação de lim itar as atividades sexuais ao casa­
m ento concerne o equilíbrio da cidade, sua m oralidade pública, as
condições de u m a b o a procriação, e n ão os deveres recíprocos atinen­
tes a u m a 're la ç â o dual entre os cônjuges.
2.
O texto de Isócrates, que se apresenta com o um a alocução de
N icocles a seus concidadãos, associa m uito nitidam ente as considera­
ções que ele desenvolve, sobre a tem perança e o casam ento, com o
exercício do p o d e r político. Esse discurso é o pendant daquele que Isó­
crates dirigiu a N icocles, pouco tem po após este ter to m a d o o poder: o
o ra d o r dava, então, ao jovem , conselhos sobre co n d u ta pessoal e sobre
governo que deveriam p o d er lhe servir de tesouro perm anente ao qual
recorrer d u ran te o resto d a vida. O discurso de N icocles é supostam en­
60. Ibid., VIII, 841 c-d. N otar que, pelo menos na prim eira form ulação da lei, Platão
parece dizer que só são proibidas a um homem casado as mulheres que são “ livres” e de
"b o a origem ” . Em todo caso, é a tradução de Diès. R obin interpreta o texto com o que­
rendo dizer que essa lei só se aplica aos hom ens livres e de boa origem.
152
te um a m ensagem do m onarca que explica, p a ra aqueles sobre os quais
reina, a con d u ta que devem ter a seu respeito. O ra, to d a a prim eira
p arte do texto é consag rad a a um a justificação desse poder: m éritos do
regime m o nárquico, direitos da fam ília reinante, qualidades pessoais
do soberano; e um a vez dad as essas justificativas é que serão definidas
a obediência e a afeição que os cidadãos devem a seu chefe: em nom e
de suas virtudes p ró p rias, ele p ode exigir a subm issão de seus súditos.
N icocles vai, p o rta n to , co n sag rar um longo desenvolvim ento às quali­
dades que ele se reconhece: a ju stiça - dikaio su n ê- que ele m anifestou
na ordem das finanças, da ju risd ição penal e, no exterior, nas boas re­
lações que estabeleceu ou restabeleceu com as o u tras potências;'’1 em
seguida, a sõphrosunê, a tem perança, que ele considera exclusivam ente
com o dom ínio sobre os prazeres sexuais. E ele explica as form as e as
razões dessa m o deração em relação direta com a soberania que ele
exerce em seu país.
O m otivo que ele invoca em últim o lugar concerne à sua descen­
dência e à necessidade de um a raça sem b astard o s que possa reivindi­
car o esplendor de um nascim ento n obre e a co ntinuidade de um a ge­
nealogia que rem o n ta até os deuses: “ N ão possuía os m esm os senti­
m entos q u e a m aior p arte dos reis sobre os filhos a serem colocados no
m undo; n ão estim ava que alguns deveriam náScer de um a origem obs­
cura e o u tro s de um a origem nobre, nem que devia deixar a trás de
mim filhos que fossem , uns b astard o s, o u tro s legítim os; to d o s, em m i­
nha opinião, deviam ter a m esm a n atu reza e rem o n tar sua origem , ta n ­
to do lado de seu pai com o do lado de sua m ãe, entre os m ortais a Evágoras m eu pai, en tre os sem ideuses aos filhos de Éaco, entre os deuses
a Zeus, e nenhum de meus descendentes deveria ser privado da n o b re ­
za de um a tal origem .” '’2
U m a o u tra razão p a ra N icocles ser tem perante diz respeito à co n ­
tin uidad e e à hom ogeneidade en tre o governo de um E stado e o de
um a casa. Essa co n tin u id ad e é definida de duas m aneiras: pelo princí­
pio de que se deve respeitar to d as as associações (koiriõniai) que se es­
tabeleceu com outrem ; N icocles n ã o q u er fazer, p o rta n to , com o esses
hom ens que respeitam seus o u tro s engajam entos, m as se colocam em
falta com sua m ulher com a qual, n ão obstan te, eles estabeleceram
um a associação p a ra to d a a vida (koiriõnia pantos tou biou): já que se
considera que n ã o se deve sofrer aflição p o r p a rte d a esposa, não
convém fazê-la sofrer o m esm o pelos prazeres que se tem ; o so b era­
no que pretende ser ju sto deve sê-lo com a sua p ró p ria m ulher.63 M as
61.
62.
63.
1SOCRATE, Nicocles, 31-35.
Ibid., 42.
Ibid., 40.
153
1
há tam bém con tin u id ad e e com o isom orfism o entre a boa ordem que
deve reinar na casa do m onarca e aquela que deve presidir ao seu go­
verno público: “ Os bons soberanos elevem esforçar-se em fazer reinar
um espírito de concórdia, não som ente nos E stados que eles dirigem,
com o tam bém em sua p ró p ria casa, e nos dom ínios que eles habitam ;
pois toda essa obra dem anda dom ínio de si e ju stiç a."'’4
A ligação entre tem perança e poder, à qual Nicocles se refere ao
longo do texto, é sob retu d o pensada com o um a relação essencial entre
dom inação sobre os o u tro s e dom inação de si, segundo o princípio ge­
ral que já fora enunciado no prim eiro discurso, aquele endereçado a
Nicocles: “ Exerce tu a au to rid ad e sobre ti m esm o (archêsautou) tanto
com o sobre os o u tro s, e considera que a con d u ta m ais digna de um rei
é a de não ser escravo de nenhum prazer, e de co m an d ar seus desejos
ainda mais do que co m an d ar seus c o m p atrio tas.''"' Esse dom ínio de si
com o condição m oral p ara dirigir os outros, Nicocles com eça p ro v an ­
do que o possui: diferentem ente do que fazem tan tos tiranos, ele não
aproveitou de seu poder p ara apoderar-se pela força das m ulheres ou
dos filhos dos outros: ele lem brou o q u an to os hom ens se apegam às
suas esposas e aos seus descendentes e q u an tas vezes as crises políticas
e as revoluções se originaram nos àbusos desáe tipo;“ ele tom ou, p o r­
tanto, o m aior cuidado p a ra evitar sem elhantes reprovações: a p artir
do dia em que assum iu o podèr suprem o, pôde-se c o n statar que ele
não teve relação física “ com outra pessoa a não ser sua m ulher".'’' N i­
cocles tem , no en ta n to , razões mais positivas p ara ser tem perante. A n­
tes de m ais nada, ele quer d ar a seus concidadãos um exem plo; é claro
que não se deve entender que ele peça aos hab itan tes de seu país para
praticarem um a fidelidade sexual sem elhante à sua; provavelm ente ele
não pretende erigi-la em regra geral: o rigor de seus costum es deve ser
com preendido com o um a incitação geral à virtude e um m odelo con­
tra o relaxam ento que é sem pre nocivo a um E stado.'”' Esse princípio
de analogia global entre os costum es do príncipe e os do povo fora
evocado no discurso a Nicocles: “ D á em exem plo aos o u tro s tua p ró ­
pria p o n d eração (sõphrosunê), lem brando-te que os costum es (èthos)
de um povo se assem elham àqueles de quem o governa. Terás um tes­
tem unho d o valor de tu a au to rid ad e real q u a n d o constatares que os
1-4
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41
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Sobre U-.MJ lema Ireqüenle. \ er \ K IS í O I I . Politique. \ . I } I I a-b. Pode­
mos rcss.ih.ir que Kóerales nola. não obsianle. a iiuiulgcneia do po\o pelos ehetes que
ohieiu seus pr.i/eres em ioda parle mas sabem governar eom justiça {Ihn/ . 37).
tr Ihn/.. *(v
íiN Ihn/.. P.
154
f
teus súditos adquiriram um bem-estar maior e costumes mais policia­
dos (euporõterous kai sõphronesterous gignomenous) graças à tua ativi­
dade (cpimcleia).""" Nicocles. entretanto, não se contenta em to rn a r a
massa semelhante a ele; ele quer, sem que haja contradição, distinguirse ao mesmo tempo dos outros, da elite e mesmo daqueles que são os
mais virtuosos. O que é ao mesmo tempo a fórmula moral do exemplo
(ser um modelo para todos sendo melhor que os melhores) com o ta m ­
bém a fórmula política da concorrência pelo poder pessoal num a aris­
tocracia, e o princípio de um a base estável para a tirania sábia e m o d e ­
rada (ser dotado aos olhos do povo de mais virtude do que os mais vir­
tuosos). "C onstatei que a am ior parte dos homens são senhores do
conjunto de seus atos, mas que os melhores se deixam vencer pelos de­
sejos que os rapazes e as mulheres despertam neles. Quis, po rtanto,
m ostrar a mim mesmo ser capaz de firmeza, lá fui cham ad o a sob repu ­
jar não somente a massa como ainda aqueles que se orgulham de sua
própria virtude." 11
Mas é preciso com preender que essa virtude, que funciona com o
exemplo e m arca uma superioridade, não deve seu valor político ao
simples fato de ser um com p o rta m e n to h on ra d o aos olhos de todos.
De lato. ela manifesta aos governados a forma de relação que o prínci­
pe mantém consigo mesmo: elemento político importante, posto que é
essa relação consigo que m odula e regula o uso que o príncipe faz do
poder que exerce sobre os outros. Essa relação é, portanto, im portante
em si mesma, no esplendor visível com que se manifesta e na arm ação
racional que a garante. É por isso que Nicocles lembra que a sua
sõphrosunê passou aos olhos de todos por uma prova; de fato, existem
circunstâncias e idades em que não é difícil m ostrar que se pode ser
justo e dispensar o dinheiro ou o prazer; entretanto, q uando se recebe
o poder em plena juventude, então, m ostrar m oderação constitui uma
espécie de prova qu alificad ora.'1 Além disso, ele sublinha que sua vir­
tude não é apenas questão de natureza mais sim de raciocínio (logismo.s): não é, po rtanto, ao acaso, nem ao sabor das circunstâncias que
cie se conduzirá bem, mas sim de maneira voluntária e constante.
Assim a m oderação do príncipe, posta à prova pela situação mais
perigosa, e garantida pela perm anência da razão, serve com o fun da ­
mento de uma espécie de pacto entre o governante e os governados:
eles podem muito bem obedecer-lhe, a ele que é senhor de si. Pode-se
'II
//■(,/. W
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IhiJ
. 4 '
//v ,/.-r
155
pedir aos súditos que obedeçam, se for sob a caução da virtude do
príncipe; ele é de fato capaz de m oderar o poder que exerce sobre os
outros, pelo d o m ín io que estabelece sobre si. É assim que termina a
passagem em que Nicocles, tendo term inado de falar sobre si mesmo,
tira daí o argu m ento p ara exortar seus súditos a obedecer-lhe: “ Dei
uma am plidão m aior a esse desenvolvimento sobre mim ( . . . ) para
não vos deixar nenhum pretexto de não executar, de bom coração e
com zelo, os conselhos e as prescrições que vos darei." ' A relação do
príncipe com ele m esmo e a maneira com que ele se constitui com o su­
jeito moral formam peça im portante no edifício político; sua austeri­
dade faz parte dele e contribui para sua solidez. T am b ém o príncipe
deve praticar um a ascese e exercitar-se: “ Definitivamente, não existe
atleta para quem fortificar o corpo seja um a obrigação tão grande
com o é, p ara um rei, aquela de fortificar sua alma; pois os prêmios que
os jogos oferecem não são nada em com p aração com aqueles pelos
quais vós, príncipes, lutais a cada d ia." J
3.
Q u a n to à Econômica atribuída a Aristóteles, sabem-se os
problemas de data que coloca. O texto que constitui os livros I e II é re­
conhecido, de maneira geral, como um texto de “ boa época" - seja
porque foi editado a partir de notas por um discípulo imediato de
Aristóteles, ou porque foi obra de uma das primeiras gerações de peripatéticos. Hm todo caso, podem os deixar de lado, no momento, a ter­
ceira parte, ou pelo menos o texto latino, manifestamente muito mais
tardio, e que foi considerado com o uma “ versão" ou uma “ a d a p ta ­
ção" do terceiro livro “ perdido” dessa Econômica. Muito mais curto e
infinitamente menos rico do que o texto de Xenofonte, esse livro I se
apresenta, igualmente, como uma reflexão sobre a arte (lechnê) da eco­
nomia; ela é destinada a definir as condutas de “ aquisição” e de s v a lo ­
rização" (ktêsásthai. chrêsasthai)’■ na ordem da casa. O texto se apre­
senta com o um a arte de governar, de resto, menos as coisas do que os
humanos; e isso segundo um princípio form ulado alhures por Aristó­
teles, a saber, que na Econômica atribui-se mais interesse às pessoas do
que à posse dos bens inanimados; '’ de fato, o trata d o da Econômica
consagra o essencial das indicações que oferece (sem dar, com o em Xe­
nofonte, um grande espaço às técnicas do cultivo) às tarefas de dire­
ção, de supervisão e de controle. É um manual do senhor que deve, em
primeiro lugar, “ preocupar-se" (epim elein) com a própria esposa. '
l/m l. 47.
"4
i .\/i ■ ( I I . () toma da virtude privada do principe como problema político mcicccria. por si só. lodo um estudo.
7\
I’SI I D O -A K I S T O I T . l u ■onm iiiquc. I. I. I. I 343 a.
\ R I S I O I I . />„///,</»<■. I. 13. I 259 b.
”
1’SI U )(> -A R IS T O I t . ÍÁ im/miii/Hc. I. 3. I. 1 343 h.
156
Esse texto faz fu ncionar quase que os m esm os valores que o tra ta ­
do de X enofonte: elogio da agricultura que, diferentem ente dos ofícios
de artesan ato , é capaz de form ar indivíduos “ viris” ; afirm ação de seu
caráter prim eiro e fu n d ad o r segundo a natureza e de seu valor consti­
tuinte para a cidade.'" M as m uitos elem entos trazem consigo tam bém
a m arca aristotélica: em p articu lar a d u p la insistência sobre o enraiza­
m ento natural da relação m atrim onial e a especificidade de sua form a
na sociedade hum ana.
A associação (koinõnia) entre o hom em e a m ulher é apresentada
pelo au to r com o sendo um a coisa que existe “ por n atureza” , e da qual
pode-se e n co n trar exem plos nos anim ais: “ Sua associação responde a
um a necessidade ab so lu ta” .1’ Tese co nstante em A ristóteles, que seja
na Política, onde essa necessidade está ligada diretam ente à p ro cria­
ção,"" ou na Ética a Nicômaco, que apresenta o hom em com o um ser
naturalm en te “ sindiástico” e d estinado a viver a dois." M as dessa koi­
nõnia o au to r da Econômica lem bra tam bém que ela tem carac’eres
p róprio s que não se en co n tram nas espécies anim ais: não porque os
anim ais não conheçam form as de associação que vão além da simples
conjunção procriadora;"2 é que nos hum anos, a finalidade do vínculo
que liga o hom em e a m ulher n ão concerne sim plesm ente - segundo
uma distinção im portante em Aristóteles - ao “ser” , mas ao “bem-estar”
(einai. eu einai). Em to d o caso, nos seres hum anos a existência do ca­
sal perm ite, ao longo de to d a a existência, a ajuda e os socorros recí­
procos; q u an to à p ro g en itu ra ela não g aran te apenas a sobrevivência
da espécie; ela serve “ ao próprio interesse dos pais” , pois “ os cuidados
que, em sua plena força, eles deram a seres fracos, em reto rn o , na fra­
queza da idade avançada, eles os obtêm de seres que se to rn aram fo r­
tes” .*' E foi p a ra esse suplem ento do m elhor-viver que a natureza dis­
pôs, com o fez, o hom em e a m ulher; foi visando a vida com um “ que
ela organizou um e o u tro sexo” . O prim eiro é forte, o segundo é co n ti­
do pelo tem or; um e n co n tra sua saúde no m ovim ento, o o u tro é incli­
nado a levar um a vida sedentária; um tra z os bens p a ra a casa, o o u tro
vela sobre o que aí está; um alim enta os filhos, o o u tro os educa. A n a­
tureza prog ram o u , de certa form a, a econom ia da propriedade dom és­
tica e os papéis que cada um dos esposos deve aí desem penhar. O a u ­
to r encontra nesse p o n to , a p a rtir de princípios aristotélicos, o esque-
7.S. //>;</.. I, 2. 1-3, I 343 a-b.
79. Ihiíl.. I. 3, I, I 343 b.
50. A R I S T O T t , Politique. I, 2, I 2 52 a.
51. /</., Ethique à Nicomaque, V I I I , 12, 7, 1 162 a.
X2. 1’SI U D O - A R I S T O T h , Économique. I, 3, I, I 343 b.
S3. //>;</.. I. 3, 3, I 343 b.
157
ma de um a descrição tradicional da qual X enofonte já tinha dado um
exemplo.
Logo após essa análise das com plem entaridades naturais é que o
a utor da Econômica a b orda a questão do com p o rta m e n to sexual. E
isso num a breve e elíptica passagem, e que vale a pena citar no seu
conjunto:“ 0 primeiro dever é não cometer nenhum a injustiça: as­
sim, pode-se não sofrê-la em si próprio. É a isso, justam ente, que a
conduta moral c o m u m conduz: não deve a mulher ter que sofrer injus­
tiça, pois ela é na casa, assim com o dizem os pitagóricos, como uma
suplicante e uma pessoa afastada do seu lar. O ra, seria um a injustiça
da parte do m arido as convivências ilegítimas (thuraze sunousiaí)",*4
N ão é de espantar que nada seja dito sobre a c onduta da mulher,
posto que suas regras são conhecidas e que, de tod o modo, estamos
aqui lidando com um manual do senhor: é a maneira de agir dele que
está em questão. Pode-se notar, também, que nada é dito - como ta m ­
pouco em X enofonte - sobre qual deveria ser a co ndu ta sexual do m a­
rido em relação à sua mulher, sobre a realização do dever conjugal ou
sobre as regras de pudor. Porém, o essencial está em outras coisas.
Pode-se notar, primeiramente, que o texto situa nitidamente a
questão das relações sexuais no q uadro geral das relações de justiça
entre o marido e a mulher. Ora, quais são essas relações? Que formas
elas devem ter? A despeito do que o texto anuncia anteriorm ente sobre
a necessidade de bem determinar que espécie de “ relação” (homilia)
deve unir o homem e a mulher, nada na Econômica é dito sobre a sua
forma geral e sobre o seu princípio. Em compensação, nos outros tex­
tos, e em particular na Ética a Nicômaco e na Política, Aristóteles res­
ponde a essa questão q u and o analisa a natureza política do vínculo
conjugal - isto é, o tipo de autoridade que nele se exerce. Segundo ele,
entre o homem e a mulher, a relação é evidentemente desigual posto
que é papel do homem governar a mulher (a situação inversa, que
pode ser devida a várias razões, é “ antinatural").*' Entretanto, essa
desigualdade deve ser distinguida com cuidado de três outras desigual­
dades: a que separa o senhor do escravo (pois a mulher é um ser livre),
a que separa o pai de seus filhos (e que dá lugar a uma autoridade de
tipo real); enfim, a que separa, numa cidade, os cidadãos que com an­
dam e os que são com andados; se, de fato. a autoridade do marido
sobre a mulher é mais fraca, nienos total que nas duas primeiras rela­
ções. ela não tem o caráter simplesmente provisório que se encontra na
relação “ política“ , no sentido estrito do termo, isto é, na relação entre
* 4 I*S1 1 1 1 ) 0 - A R I S T O T H , E c o n o m iq u e , I, 4. I, i 344 a.
s.y \ R l S l o n , P o litiq u e , I, 12, 1 259 b. N a E lica a M c ô n ia c o ( V I I I , )(), ?, I 161 a)
Arisiõtclcs evoca a autoridade das mulheres herdeiras.
158
cidadãos livres num E stado; é po rq u e, num a constituição livre, os ci­
dadãos com andam e são co m an d ad o s altern ad am ente, en q u an to que
na casa é o hom em que deve g u a rd a r a superioridade perm anentem en­
te.“6 D esigualdade de seres livres, m as desigualdade definitiva e basea­
da sobre um a diferença de natu reza. É nesse sentido que a form a polí­
tica da relação entre m arido e m ulher será a aristocracia: um governo
onde é sem pre o m elhor que com anda, mas onde cada um recebe a sua
parte de au to rid ad e, seu papel e suas funções em pro p o rção com seu
m érito e valor. C om o diz a Ética a Nicômaco, “ o p o der do m arido
sobre a m ulher padece ser de caráter aristocrático; se o m arido exerce
auto rid ad e é p ro p o rcio n alm en te ao m érito (k a t’axian), e nos dom í­
nios onde convém que o hom em com an d e” ; o que ocasiona, com o em
todo governo aristocrático, que ele delegue à sua m ulher a p arte em
que ela é com petente (se quisesse fazer tu d o sozinho, o m arido tra n s­
form aria seu p o d er n u m a “ o lig arq u ia” ).87 A relação com a m ulher se
coloca, p o rta n to , com o um a questão de justiça, que está diretam ente
ligada à n atureza “ política” do vínculo m atrim onial. E ntre um pai e
um filho, diz a Grande moral, a relação n ão pode ser de justiça, pelo
m enos e n q u an to o filho não a d q u irir sua independência, pois ele nada
m ais é do que “ um a p arte de seu p a i” ; tam bém não pode tra ta r-se de
justiça na relação entre o senhor e os serviçais, salvo se ela for en ten d i­
da com o um a justiça “ interna à casa e propriam en te econôm ica” . N ão
se dá o m esm o com a m ulher: sem dúvida esta é e será sem pre inferior
ao hom em , e a justiça que deve reger as relações entre esposos não
pode ser a m esm a que reina entre os cidadãos; contudo, p o r causa de
sua sem elhança, o hom em e a m ulher devem ter um a relação que “ se
aproxim e m uito da ju stiça p o lítica” .**
O ra, na passagem da Econômica onde está em questão o co m p o r­
tam en to sexual que o m arido deve ter, o au to r parece referir-se a um a
justiça inteiram ente diferente; ao evocar um tem a pitagórico, o au to r
sublinha que a m ulher é “ na casa com o um a suplicante e um a pessoa
afastad a do seu lar” . N o en tan to , se olh arm o s m ais de p erto, parece
que essa referência à suplicante - e, de m aneira geral ao fato de que a
m ulher nasce num o u tro lar, e que na casa de seu m arido ela não está
“ na sua casa” - não é d estin ad a a definir o tipo de relações que deve
existir em geral entre um hom em e sua esposa. Essas relações, em sua
form a positiva e em sua co n fo rm id ad e com a justiça desigualitária que
as deve reger, tin h a sido evocada in diretam ente n a passagem prece­
dente. Pode-se su p o r que o a u to r, ao evocar aqui a figura da suplican-
S(,
S7.
SS
A R IS T O T t. Politique. 1. 12. I 259 b.
ARISTOTK. / ihiquc à Sicontaque. VII.
A R IS K )T I . Grande morale. 1. 31. I S .
10. I 152 a.
159
1
te, lem bra que a esposa n ão tem p o r que exigir, pelo fato do próprio
casam ento, a fidelidade sexual de seu m arido; m as que existe, en tre­
tan to , algo que, na situação da m ulher casada, dem anda da parte do
m arido com edim ento e lim itação; trata-se ju stam en te de sua posição
de fraqueza que a subm ete à vontade do m arid o , com o um a suplicante
arreb atad a de sua casa de origem .
Q u an to à n atu reza desses atos injustos, n ão é fácil, segundo o tex­
to da Econômica, precisá-la. São thuraie sunousiai, “ freqüentações ex­
teriores". A palavra sunousiai pode designar um a conjunção sexual
particular; pode tam bém designar um “ com ércio” , um a “ ligação". Se
fosse necessário d ar aqui a essa palavra seu sentido restrito, seria todo
ato sexual com etido “ fora de casa” , que c o n stitu iria ,u m a injustiça
com relação à esposa: exigência que parece m uito pouco verossímil
num texto que se m antém bem próxim o da m oral corrente. Se, ao con­
trário, derm os à palavra sunousia o valor m ais geral de “ relação” ve­
m os po r que haveria aí um a injustiça no exercício de um p o der que
deve dar a cada um segundo seu valor, seu m érito e seu status: um a li­
gação fora do casam ento, um a concubinagem , e talvez filhos ilegíti­
m os atentam seriam ente c o n tra o respeito que se deve à esposa; em
todo caso, tu d o o que, nas relações sexuais de seu m arido, am eaça a
posição privilegiada da m ulher no governo aristo crático da casa, é
um a m aneira de com p ro m eter a necessária e essencial justiça. Assim
com preendida, a form ula da Econômica não está m uito longe, no seu
alcance concreto, daquilo que X enofonte deixava entender q u ando
Isôm aco prom etia à sua m ulher, se ela se conduzisse bem , nunca cau­
sar prejuízo a seus privilégios e ao seu status *'* é preciso observar,
aliás, que são tem as m uito próxim os aos de X enofonte que são evoca­
dos nas linhas im ediatam ente seguintes: a responsabilidade do m arido
na form ação m oral de sua esposa e a crítica dos cosm éticos (kosm êsis)
enq u an to m entira e em buste, os quais é preciso evitar entre esposos.
Porém , e n q u an to X enofonte faz da tem perança d o m arido um estilo
próprio ao chefe da casa vigilante e sábio, o texto aristotélico parece
inscrevê-la no jo g o m últiplo das diferentes form as de justiça que de­
vem regular as relações dos h um anos em sociedade.
N ão é fácil, sem dúvida, m arcar exatam ente quais são os com por­
tam entos sexuais que o au to r da Econômica perm ite ou proíbe ao m a­
rido que quer se conduzir bem. E n tretan to , parece que a tem perança
do esposo, q u alq u er que seja a form a precisa, não deriva do vínculo
pessoal entre os esposos, e que ela não se im põe a ele do m esm o m odo
v>. ' Nd cm anto. c preciso observar que Isômaco evocava as situações de rivalidade que
podem provocar as relações com as servicaisda casa. Aqui são as ligações externas que
aparecem como am eaçadoras.
160
em que se p ode ped ir à esposa um a estrita fidelidade. É no contexto de
um a distribuição desigualitária dos poderes e das funções que o m ari­
do deve a trib u ir um privilégio à sua m ulher; e é p o r um a atitude volun­
tária - fu n d ad a sobre o interesse ou a sabedoria - que ele saberá, com o
aquele que sabe gerir um p oder aristo crático , reconhecer o que é devi­
d o a cada um. A m o deração do m arido é, aqui ainda, um a ética do po­
der que se exerce, mas essa ética se reflete com o um a das form as da
justiça. M aneira bem d esigualitária e form al de definir a relação entre
m arido e m ulher e o lugar que devem ter suas duas virtudes. N ão es­
queçam os que sem elhante m aneira de conceber as relações conjugais
não era de m odo algum excludente d a intensidade reconhecida às rela­
ções de am izade. A Ética a Nicôm aco reúne todos esses elem entos - a
justiça, a desigualdade, a virtude, a form a de governo aristocrático - e
é por m eio desses elem entos que A ristóteles define o caráter p ró p rio
da am izade do m arido p o r sua m ulher; essa philia do esposo “ é aquela
que se en co n tra no governo a ris to c rá tic o .. . Ela se pro p o rcio n a à vir­
tude; o m elhor tem a superio rid ad e das vantagens e, além disso, cada
um obtém dela o que lhe convém . T al é tam bém o caráter d a ju sti­
ça” .''" E m ais adiante A ristóteles acrescenta: “ P ro cu rar qual deva ser a
co n duta do m arid o em relação à m ulher e, em geral, a do am igo com o
am igo é, m anifestam ente, p ro c u ra r de que m aneira são respeitadas as
regras d a ju stiç a .” '''
E ncontram -se, p o rta n to , no p ensam ento grego da época xlássica,
os elem entos de unia m oral d o casam ento que parecem exigir dos es­
posos, ta n to de um com o de o u tro , u m a sem elhante renúncia de to d a
atividade sexual exterior à relação m atrim onial. A regra de um a p rá ti­
ca sexual exclusivam ente conjugal, que era em princípio im posta à
m ulher p o r seu status e pelas leis d a cidade com o as da fam ília, tal re­
gra parece ser concebida p o r alguns com o aplicável igualm ente aos ho­
mens; em to d o caso, é a lição q u e parece se d estacar da Econômica de
90. A RISTO TE, Étique à Nicomaque, VIII, 11, 4, 1 161 a.
91. Ibid., VIII, 12, 8, 1 162 a. Sobre as relações da philia com o casam ento em A ristóte­
les, cf. J. Cl. FRA ISE, Philia, la notion d ’amitié sur la philosophie antique (Paris, 1974).
É necessário notar que na cidade ideal, descrita por Aristóteles na Política, as rela­
ções entre m arido e m ulher são definidas de um m odo bem próxim o daquilo que se pode
encontrar em Platão. A obrigação de procriar será interrom pida quando os pais corre­
rem o risco de ser dem asiado velhos: “ N o decorrer dos anos que ainda restam , só se terá
relações sexuais por razões evidentes de saúde ou por qualquer outra causa análoga” .
N o que concerne às relações do “ m arido com uma outra m ulher ou da esposa com um
outro homem” , conviria considerá-las com o um a ação desonrosa (me kalon), ‘isso de
um a m aneira absoluta e sem exceção, p o r tanto tem po q uanto d urar o casam ento e que
se áchem m arido e m ulher.’ “ Essa falta, p o r razões fáceis de com preender, terá conse­
qüências legais - a atim ia - se for com etida “ durante o tem po em que a procriação p u ­
der ocorrer” (Politique, VIII, 16, 1 135 a - 1 336 b).
161
X enofonte e d aq u ela do pseudo-A ristóteles, o u de certos textos de Pla­
tã o e de Isócrates. Esses poucos textos aparecem isoladam ente no
meio de um a sociedade onde nem as leis, nem os costum es continham
tais exigências. É verdade. M as não parece possível ver neles o prim ei­
ro esboço de um a ética da fidelidade conjugal recíproca, assim com o o
início de um a codificação da vida de m atrim ô n io à qual o cristianism o
dará um a form a universal, um valor im perativo, e o apoio de to d o um
sistem a institucional.
P ara isso, há várias razões. C om exceção do caso d a cidade p latô ­
nica, onde as m esm as leis valem p a ra todos d a m esm a m aneira, a tem ­
perança que é d em an d ad a ao m arido n ão tem os m esm os fundam entos
nem as m esm as form as que aquela im posta à m ulher: esta últim a deri­
va d iretam en te de um a situação de direito e de um a dependência
estatuária que a coloca sob o pod er de seu m arido; as prim eiras, em
troca, dependem de um a escolha, de u m a von tad e de d ar à sua vida
um a certa form a. Q uestão de estilo, de certo m odo: o hom em é cha­
m ado a tem p erar sua co n d u ta em função do dom ínio que espera exer­
cer sobre si m esm o, e da m oderação com a qual ele quer fazer funcio­
nar seu d om ínio sob re os outros. D aí o fato de que essa austeridade se
apresenta - tal com o em Isócrates - com o um refinam ento cujo valor
exem plar n ã o to m a a form a de um princípio universal; daí tam bém o
fato de que a renúncia a to d a relação fora da relação conjugal não é
explicitam ente prescrita p o r X enofonte, nem m esm o talvez pelo pseudo-A ristóíeles, e que ela não tom a, em Isócrates, a fôrm a de um enga­
jam en to definitivo, m as antes a de um a façanha.
Além disso, que a prescrição seja sim étrica (com o em P latão) ou
que ela n ão o seja, não é sobre a n atureza p articu lar e sobre a form a
p rópria da relação conjugal que se estabelece a tem perança d em anda­
da ao m arido. É, sem dúvida, p o rq u e ele é casad o que sua atividade se­
xual deve sofrer algum as restrições e adm itir um a certa m edida. M as é
o status de hom em casado, e não a relação com a esposa que o exige:
casado, com o o quer a cidade platônica, segundo as form as que ela de­
cide e p ara lhe d ar os cidadãos dos quais ela necessita; casado, e p o r is­
so tendo que gerir um a casa que deve p ro sp e ra r na b o a ordem , e cuja
boa m an u ten ção deve ser, aos olhos de todos, a im agem e a garantia
de um bom governo (X enofonte e Isócrates); casado e obrigado a fazer
funcionar, nas form as da desigualdade p ró p ria ao casam ento, e à na­
tureza da m ulher, as regras da ju stiça (A ristóteles). N ão há nada aí que
seja excludente de sentim entos pessoais, de apego, de afeição e de soli­
citude. M as é preciso com preender bem que n ão é jam ais diante de sua
m ulher na relação que os liga en q u an to indivíduos, que essa sõphrosu­
nê é necessária. O esposo a deve a si p ró p rio na m edida em que o fato
de ser casado o in tro d u z no jo g o p articu lar de deveres ou de exigências
onde se tra ta de sua rep u tação , de sua fo rtu n a, de sua relação com os
162
outros, de seu prestígio na cidade e de sua vontade de levar um a exislência bela e boa.
Pode-se com preender, en tão , p o r que a tem perança do hom em e a
virtude da m ulher podem se ap resen tar com o duas exigências sim ultâ­
neas. e derivando, cada qual à sua m aneira, e sob suas form as p ró ­
prias. d o estado de casam ento; e que, co n tu d o , a questão da p rática se­
xual com o elem ento - e elem ento essencial da relação conjugal - quase
não seja. p o r assim dizer, colocada. M ais tarde, as relações sexuais en­
tre esposos, a form a que elas devem to m ar, os gestos que nelas são per­
m itidos. o p u d o r que devem respeitar com o tam bém a intensidade dos
vínculos que elas m anifestam e encerram , serão um elem ento im p o r­
tante de reflexão; to d a essa vida sexual entre os esposos d a rá lugar, na
pastoral cristã, a um a codificação frequentem ente m uito detalhada;
mas já anterio rm en te Plutarco havia colocado questões não som ente
sobre a form a das relações sexuais entre esposos com o sobre sua signi­
ficação afetiva; e ele tinha su b lin h ad o a im portância dos prazeres recí­
procos p ara a afeição m ú tu a dos esposos. O que irá caracterizar essa
nova ética não é sim plesm ente que o hom em e a m ulher sejam reduzi­
dos a ter apenas um único parceiro sexual - o cônjuge; m as tam bém
■que a sua atividade sexual será pro b lem atizad a com o um elem ento es­
sencial, decisivo e p articu larm en te delicado de sua relação conjugal
pessoal. N ada sem elhante é visível na reflexão m oral do Século IV;
não se tra ta de sugerir com isso que os prazeres sexuais tivessem en tão
pouca im portância na vida m atrim onial dos gregos e para a harm o n ia
de um casal: trata-se de o u tra q uestão, em to d o caso. M as seria preciso
sublinhar, p ara com preender a elab o ração da co nduta sexual com o
problem a m oral, que o co m p o rta m e n to sexual dos dois esposos não
era questio n ad o no p ensam ento grego clássico a p artir de sua relação
pessoal. O que se passava en tre eles tin h a im portância a p artir do m o­
m ento em que se tratasse de ter filhos. M as, p a ra o resto, sua vida se­
xual com um não era objeto de reflexão e de prescrição: o p o n to de
p ro b le m a ti/a ç ào estava na tem perança, da qual cada um dos cônjuges
devia dar provas pelas razões e nas form as correspondentes a seu sexo
e a seu status. A m oderação n ão era um a questão com um entre eles e
com a qual eles tivessem que se p reo cu p ar um pelo o u tro . N isso se está
longe da pasto ral cristã, na qual cada esposo deverá responder pela
castidade do o u tro , ao não induzi-lo a com eter o pecado da carne seja por solicitações d em asiado im pudicas, seja p or recusas dem asia­
do rigorosas. A tem perança nos m oralistas gregos da época clássica
era prescrita aos dois parceiros da vida m atrim onial; m as ela concer­
nia, em cada um deles, a um m odo diferente de relação consigo. A vir­
tude da m ulher co n stitu ía o correlativo e a g aran tia de um a co n d u ta de
subm issão; a austeridade m asculina inscrevia-se num a ética da d o m i­
nação que se lim ita.
163
CAPÍTULO IV
ERÓTICA
1
U M A RELAÇÃO PROBLEMÁTICA
O uso dos prazeres na relação com os rapazes foi, p ara o pensa­
m ento grego, um tem a de inquietação. O que é parad oxal num a socie­
dade que passa p o r ter “ to le ra d o ” o que cham am os “ hom ossexualida­
de” . M as talvez não seja m uito pru d en te utilizar aqui esses dois ter­
mos.
D e fato, a noção de hom ossexualidade é bem pouco adeq u ad a
p ara recobrir um a experiência, form as de valorização e um sistem a de
recortes tã o diferentes d o nosso. O s gregos n ão o p u n ham , com o duas
escolhas excludentes, com o dois tipos de co m p o rtam en to radicalm en­
te diferentes, o am o r ao seu p ró p rio sexo ao am o r pelo sexo oposto. As
linhas de d e m a rc a çã o n ão seguiam um a tal fronteira. A oposição entre
um hom em tem p eran te e se n h o r de si e aquele que se entregava aos
prazeres era, do p o n to de vista d a m oral, m uito m ais im p o rta n te do
que aquilo que distinguia, en tre elas, as categorias de p razer às quais
era possível consagrar-se m ais livrem ente. T er costum es frouxos con­
sistia em n ã o saber resistir nem às m ulheres nem aos rapazes, sem que
este últim o caso fosse m ais grave d o que o o u tro . Q u ando P latão faz o
perfil do hom em tirânico, isto é, aquele que deixa “ que o tira n o Eros
se entronize em sua alm a e governe to d o s os seus m ovim entos” ,' ele o
m ostra sob dois aspectos equivalentes, o n d e se m arcam d a m esm a m a­
1.
PLATON , Republique, IX, 573 d.
167
neira o desprezo pelas obrigações m ais essenciais, e a sujeição ao
dom ínio geral do prazer: “ Se ele se apaixona p o r um a cortesã, que é
para ele som ente um novo e supérfluo conhecim ento, de que m aneira
tra taria ele à sua m ãe, am iga de longa d ata e que a natureza lhe deu? E
se tem p o r um belo adolescente um am o r recente e supérfluo, com o
tra ta ria ele a seu pai?” 2 Q u an d o se reprovava a devassidão de Alcebíades não era m ais p o r esta e m enos p o r aquela, m as sim, com o di­
zia Bion de Borístenes, p o rq u e “ em sua adolescência ele desviou os
m aridos de suas m ulheres e, em sua ju v en tu d e, as m ulheres de seus
m aridos” .'
Inversam ente, p a ra m ostrar a continência de um hom em indicava-se - e era o que fazia P latão a p ro p ó sito de Icos de T a ren to 4 - que
ele era capaz de se abster ta n to dos rapazes com o das m ulheres; e, se­
gundo X enofonte, a vantagem que C iro en co n trav a em apelar para os
eunucos p a ra o serviço da corte residia em sua incapacidade de causar
danos às m ulheres e aos rapazes’ - de tal m odo parecia que essas duas
inclinações eram am bas igualm ente verossím eis, e que elas podiam
coexistir perfeitam ente num m esm o indivíduo.
Bissexualidade dos gregos? Se quiserm os dizer com isso que um
grego po d ia, sim ultânea o u altern ad am en te, am ar um rapaz ou um a
m oça, que um hom em casado p o d ia ter seus paidika, que era corrente,
após as inclinações “ p ara rapazes” na juven tu d e, voltar-se de prefe­
rência p a ra as m ulheres, então, pode-se m uito bem dizer que eles eram
“ bissexuais” . M as se quiserm os p restar atenção à m aneira pela qual
eles refletiam sobre essa dupla prática, convém o b serv ar que eles não
reconheciam nela duas espécies de “ desejos” , “ duas pulsões” , diferen­
tes ou co ncorrentes, co m p artilh an d o o co ração dos hom ens ou seus
apetites. Podem os falar de sua “ bissexualidade” ao pensarm os n aliv re
escolha que eles se dayam entre os dois sexos, m as essa possibilidade
não era referida p o r eles a um a estru tu ra du p la, am bivalente e ‘‘bisse­
xual” do desejo. A seus olhos, o que fazia com que se pudesse desejar
um hom em o u um a m ulher era unicam ente o ap etite que a natureza ti­
nha im p lan tad o no co ração do hom em p a ra aqueles que são “ belos” ,
qualquer q u e seja o seu sexo.6
C ertam ente encontra-se no discurso de P ausânias7 um a teoria dos
dois am ores, o segundo dos quais - U rânius, o celeste - dirige-se exclu-
2.
3.
4.
5.
6.
7.
Ibid., IX, 574 b-c.
D IO G E N E LA E R C E, Vie des philosophes, IV, 7, 49.
PLATON , Lois, V III, 840 a.
X É N O PH O N , Cyropédie, VII, 5.
Sobre esse pon to cf. K.. J. DO VER, H om osexualité grecque, p. 86.
PLATON , Banquet, 181, b-d.
sivam ente aos rapazes. M as a distinção não se estabelece entre um
am or heterossexual e um am or homossexual; Pausânias estabelece a li­
nha de d em arcação en tre o “ am o r que os hom ens de baixa espécie ex­
perim entam ” - que tem p o r objeto ta n to as m ulheres com o os rapazes,
só visa o p ró p rio a to (to diaprattesthaí) e se realiza ao acaso - e o am or
m ais antigo, m ais nobre e m ais racional, que se liga ao que pode ter
m ais vigor’e inteligência, e lá só pode tratar-se, evidentem ente, do sexo
m asculino. O Banquete de X enofonte m ostra bem que a diversidade da
escolha entre m oça e rap az não se refere, de m odo algum , à distinção
entre duas tendências, ou à oposição entre duas form as de desejo. A
festa é d ad a p o r C álias em h o n ra do m uito jovem A utólicos p o r quem
ele está ap aix o n ad o; a beleza do rap az é tã o gran de que atrai a atenção
de todos os convidados, com ta n ta força com o “ um a luz aparecendo
na n o ite” ; “ ninguém . . . deixou de sentir a alm a com ovida p o r sua
a p arê n c ia".“ O ra, dentre os convidados, vários são casados ou noivos
com o N ikeratos - que tem p o r sua m ulher um am or que ela lhe re tri­
bui, segundo o jo g o de Eros é de A nteros - ou C ritó b u lo que, no en ­
tan to , está ainda na idade de ter ta n to pretendentes q u a n to am ados;1'
C ritó b u lo , aliás, éan ta seu am o r p o r C línias, um rapaz que conheceu
na escola e, num a ju sta côm ica, ele valoriza sua p ró p ria beleza co n tra
a de Sócrates; a recom pensa do concurso deve ser o beijo de um rapaz
e o de um a moça: estes pertencem à um siracusiano que os treinou
num a d an ça cujas graça e habilidades acrobáticas a to dos deliciam .
Eles os ensinou tam bém a im itar os am ores de D ionísio e A riadne; e os
convivas, que tinham acab ad o de o uvir Sócrates dizer o que deve ser o
verdadeiro am o r pelos rapazes, sentem -se vivam ente “ excitados" (aneptoromenoi) vendo esse “ D ionísio tã o belo" e essa “ A riadne tão ver­
d adeiram ente e n c a n ta d o ra ” tro carem beijos m uito reais, ouvindo os
ju ra m e n to s que eles p ro n u n ciam , pode-se adivinhar m uito bem que os
jovens acro b atas são “ en am o rad o s aos quais finalm ente se perm itiu o
que desejavam há m uito tem p o ” .1" T an tas incitações diversas ao am o r
im pulsionam cada um ao prazer: alguns, no final do Banquete, m o n ­
tam seus cavalos p a ra irem ao en co n tro de suas m ulheres, ao passo
que C álias e Sócrates vão ju n ta r-se ao belo A utólicos. Nesse banquete,
o nde puderam encontrar-se em com um com a beleza de um a m oça ou
o encanto dos rapazes, os hom ens de todas as idades acenderam o ape­
tite do prazer ou o am o r grave que vão p ro cu rar, uns ju n to às m ulhe­
res e o u tro s ju n to aos rapazes.
X.
X ÉN O PH O N , Banquei. I. 9.
9. Ihitl.. II. 3.
10. Ihid.. IX . 5-6.
169
É claro q u e a preferência pelos rapazes e as m oças era facilm ente
reconhecida com o um traço de caráter: os hom ens podiam se distin­
guir pelo p ra z e r a o qual eram m ais ligados;" questão de gosto, que p o ­
dia prestar-se a gracejos, m as n ão questão de tipologia im plicando a
própria n atu reza d o indivíduo, a verdade de seu desejo ou a legitim i­
dade natu ral de sua inclinação. N ão se concebia dois apetites distintos,
distribuindo-se em indivíduos diferentes, ou co n frontando-se num a
m esma alm a; encarava-se antes com o duas m aneiras de o b ter seu p ra­
zer, um a das q u ais co nvinha m elhor a certos indivíduos ou a certos
m om entos da existência. As práticas com rapazes e com m ulheres não
constituíam categorias classificatórias en tre as quais os indivíduos p u ­
dessem repartir-se; o hom em que preferia os paidika não se experim en­
tava com o “ o u tro ” face àqueles que buscavam as m ulheres.
Q u a n to às noções de “ to lerân cia” ou “ in to lerân cia” , elas tam bém
seriam m u ito insuficientes p ara d a r co n ta da com plexidade dos fenô­
m enos. A m ar os rapazes era um a p rática “ livre” , no sentido de que era
não som ente p erm itid a pelas leis (salvo em circunstâncias p articula­
res), com o tam bém adm itid a pela o pinião. O u m elhur, ela encontrava
sólidos su p o rtes em diferentes instituições (m ilitares ou pedagógicas).
Ela possuía cauções religiosas em ritos e festas onde se interpelavam , a
seu favor, as p o tên cias divinas que deviam p ro teg ê-la.12 Enfim , era um a
prática cu ltu ralm en te valorizada p o r um a literatu ra que a cantava, e
por um a reflexão que fu ndam entava sua excelência. M as a isso tudo se
m isturavam atitu d es bem diferentes: desprezo pelos jovens dem asiado
fáceis ou dem asiad o interessados, desqualificação dos hom ens efem i­
nados, dos quais A ristófanes e os au to res côm icos zom bavam freqüen­
tem en te," rejeição de certas co n d u tas vergonhosas com o a dos devas­
sos que, aos olhos de Cálicles, ap esar de sua ousad ia e de sua franque­
za, era bem a prova de que nem to d o p razer p o d ia ser bom e h o n ra ­
d o .14 Parece que essa p rática, não o b stan te ser adm itida, não obstante
ser com um , era envolta em apreciações diversas, e atravessada por um
jo g o de valorizações e desvalorizações suficientem ente com plexas para
to rn a r dificilm ente decifrável a m oral que a regia. E tinha-se um a clara
consciência dessa com plexidade; pelo m enos é o que sobressai na pas­
sagem do discurso o nde P ausânias m o stra o q u a n to é difícil saber se
11. Cf. X É N O PH O N , Anabase, VII, 4, 7.
12. Cf. K. B U F FIÈ R E . Éros adolescent, pp. 90-91.
13. Assim Clístenes nos Acharniens ou Ágaton nas Tesmophories de Aristófanes.
14. PLATON , Gorgias, 494 e: “ Sócrates: N ão é a vida dos devassos (ho ton kinaidon
hios) horrível, vergonhosa e miserável? O usarias dizer que a gente dessa espécie é feliz se
tem em abundância o que deseja? - Cálicles: N ão te envergonhas, Sócrates, de tratar
desses assuntos?"
170
em A tenas se é favorável o u hostil a um a tal form a de am or. Por um
lado, ela é tão aceita - ou m elhor: atribui-se-lhe um tã o alto valor que se h onra, no en am o rad o , co n d u tas que, em o utrem , são julgadas
loucuras ou desonestidades: as preces, as súplicas, ás insistências o b sti­
nadas e tod o s os falsos ju ra m e n to s. M as, p o r o u tro lado, vê-se os
cuidados com que os pais protegem seus filhos das intrigas ou exigem
dos pedagogos que as im peçam , e n q u a n to se ouve os c am ara d as re­
provarem en tre eles a aceitação de sem elhantes relações.15
Esquem as lineares e sim ples não perm item com preender o m odo
singular de aten ção que, no Século IV, se dava ao am o r pelos rapazes.
É preciso te n ta r reto m ar essa questão em o u tro s term os que não os da
“ tolerân cia” a respeito da “ hom ossexualidade” . E, ao invés de p ro cu ­
rar saber até que p o n to esta últim a pôde ser livre na G récia A ntiga
(com o se se tratasse de um a experiência ela m esm a invariante, fluindo
uniform em ente sob m ecanism os de repressão m odificáveis através do
tem po), é m elh o r perguntar-se com o e sob que form a o p razer ob tid o
entre hom ens pôde co n stitu ir problem a; de que m aneira ele foi ques­
tio nad o , quais questões p articu lares ele pôde levantar, e em que debate
ele esteve envolvido; em sum a, p o r que, apesar de sua p rática ser di­
fundida, de que as leis n ão o condenassem de m odo algum e de que o
seu agrad o fosse, de m o d o geral, reconhecido, ele foi objeto de um a
preo cu p ação m oral p articu lar, e p articu larm en te intensa, de tal m odo
que foi investido de valores, de im perativos, de exigências, de regras,
de conselhos, de exortações, ao m esm o tem po num erosos, urgentes e
singulares.
Para dizer as coisas de m odo b astan te esquem ático: tem os ten­
dência hoje em dia a pensar q u e as p ráticas de prazer, q u an d o ocorrem
entre dois parceiros do m esm o sexo, im plicam um desejo cuja estrutuy ra é particu lar; m as su sten tam o s - se form os “ to leran tes” - que isso
não constitui um a razão p a ra subm etê-la a um a m oral ou, ainda m e­
nos, a um a legislação, diferente d aquela que é com um a to dos. O p o n ­
to de interro g ação , nós o colocam os sobre essa singularidade de um
desejo que n ão se dirige ao o u tro sexo; e ao m esm o tem po afirm am os
que n ão se deve a trib u ir a esse tip o de relação um valor m enor nem re­
serva-lhe um status p articu lar. O ra, parece que as coisas foram bem
diferentes en tre os gregos: eles pensavam que o m esm o desejo se d iri­
gia a tu d o o que era desejável - rap az o u m oça - com a reserva de que
era m ais n o b re o ap etite que se inclinava ao que é m ais belo e m ais
honrado: m as tam bém pensavam que esse desejo devia d a r lugar a
um a co n d u ta p articu lar q u an d o ele se in stau rav a num a relação entre
dois indivíduos de sexo m asculino. Os gregos n ão im aginavam que um
15.
P L A T O N , Banquet , 1X2 a - 183 d .
171
hom em tivesse necessidade de um a natu reza “ o u tra ” para am ar um
hom em ; m as eles estim avam sem hesitar que, p ara os prazeres obtidos
num a tal relação, era necessário d ar um a o u tra fo rm a m oral que não
aquela exigida q u a n d o se tratav a de am ar um a m ulher. Nessa espécie
de relação os prazeres não traíam , naquele que os experim entava, um a
natureza estra n h a , m as seu uso exigia u m a estilística própria.
fc é fato que os am ores m asculinos foram , na cu ltura grega, objeto
de toda um a efervescência de pensam entos, de reflexões e de discus­
sões a p ro p ó sito das form as que deveriam to m a r ou do valor que se
podia reconhecer-lhes. Seria insuficiente ver nessa atividade de discur­
so apenas a tra d u ç ã o im ediata e espontânea de um a p rática livre, po­
dendo desse m odo expressar-se natu ralm en te, com o se bastasse a um
co m p o rtam en to n ão ser p ro ib id o p ara constituir-se com o dom ínio de
question am en to ou núcleo de preocupações teóricas e m orais. M as se­
ria tam bém inexato suspeitar nesses textos som ente um a tentativa de
revestir com um a justificativa honrosa o am o r que se podia ter pelos
rapa/es: o que pressu p o ria condenações ou desqualificações que só
mais tarde foram feitas. É necessário, antes de m ais nada, p ro c u rar sa­
ber com o e p o r que essa prática deu lugar a um a problem atização m o­
ral singularm ente com plexa.
M uito p ouco nos resta d aq u ilo que os filósofos gregos escreveram
sobre o a m o r em geral e sobre este em particu lar. A idéia que se pode
ter dessas reflexões e de sua tem ática geral só pode ser b astante incerta
na m edida em q u e se conservou um núm ero tã o reduzido de textos;
além disso, quase to d o s são ligados à trad ição socrático-platônica, en­
q u a n to nos faltam o b ras com o aquelas m encionadas p o r Diógenes
Laércio. de A ntístenes, de Diógenes, o C ínico, de A ristóteles, de Teofrasto. de Z enâo, de C rísipo ou de C râ n to r. N o e n ta n to , os discursos
m ais ou m enos ironicam ente rep o rtad o s p o r P latão podem d a r um a
certa visão d aq u ilo que esteve em questão nessas reflexões e debates
sobre o am or.
I.
Inicialm ente é preciso observar que as reflexões filosóficas e
m orais a p ro p ó sito d o am o r m asculino n ão recobrem to d o o cam po
possível das relações sexuais entre hom ens. O essencial da atenção é
focalizado num a relação “ privilegiada" - núcleo de problem as e de di­
ficuldades. objeto de cuidado particular: trata-se de um a relação que
im plica, en tre os parceiros, um a diferença de idade e, em relação a es­
ta, um a certa distin ção de status. A relação pela qual há interesse,
sobre a qual se discute o u se interro g a, n ão é aq u ela que ligaria dois
adultos já am ad u recid o s ou dois g aro to s da m esm a idade; é aquela que
se elabora en tre dois hom ens (e n ad a im pede que eles sejam , am bos,
jovens e bem p róxim os q u an to à idade) que são considerados com o
pertencendo a d u a s classes de idade distin tas, e dos quais um. ainda
172
bem jovem , n ão term in o u su a form ação, não atingiu seu status de­
finitivo.'" É a existência dessa defasagem que m arca a relação sobre
a qual os filósofos e os m oralistas se interrogam . E preciso não tirar
dessa atenção p articu lar conclusões apressadas sobre os c o m p o rta ­
m entos sexuais dos gregos nem sob re as p articularidades de seus gos­
tos (m esm o se m uitos elem entos d a cultura m ostram que o jovem era
ao m esm o tem p o indicado e reconhecido com o um objeto erótico de
alto valor). Em to d o caso, é preciso não im aginar que som ente esse
tipo de relações era p raticad o ; encontram -se m uitas referências aos
am ores m asculinos que n ão obedecem a esse esquem a e que não com ­
portam esse “ diferencial de idade” entre os parceiros. T am bém seria
inexato su p o r que, p raticad as, essas o u tra s form as de relações fossem
mal vistas e sistem aticam ente consideradas inconvenientes. As rela­
ções entre rapazes m ais jov en s eram consideradas totalm ente n aturais
e até m esm o p arte de sua co n d iç ã o .” Inversam ente citava-se sem re­
provação o am o r vivaz q u e se p ro lo n g a num casal de hom ens, am bos
tendo ultrap assad o largam ente a adolescência."1Sem dúvida, pelas ra ­
zões que verem os - e que dizem respeito à p o laridade considerada ne­
cessária entre a atividade e a passividade - , a relação entre dois homens
feitos será m ais facilm ente objeto de crítica ou de ironia: é p o rq u e a
suspeita de um a passividade, sem pre m al vista, é p articularm ente m ais
grave q u a n d o se tra ta de ad u lto . M as, q u er fossem facilm ente aceitas
ou antes, suspeitas, é preciso ver - e é isso o im p o rtante no m om ento que essas relações não são objeto de um a atenção m oral ou de um inte­
resse teórico m uito grande. Sem serem ignoradas, nem inexistentes,
elas não dizem respeito ao cam po d a problem atização ativa e intensa.
A atenção e o cu id ad o se concentram sobre relações que se podem adi­
vinhar terem sido carregadas de m últiplas cauções: as relações que po­
dem se estabelecer entre um hom em m ais velho que term inou a sua
form ação - e que se supõe d esem penhar o papel social, m oral e sexual­
m ente ativo - e o m ais jovem , que não atingiu seu status e que tem ne-
16. Fm hora os textos se refiram freqüentem ente a essa diferança de idade e de status c
preciso notar que as indicações quanto à idade real dos parceiros são frequentem ente
flutuantes (Cf. F. B U F FÏÈ R E . op. cii.. pp. 605-607). Além disso, vemos personagens
que desempenham o papel de am ante em relação a uns e de am ado em relação a outros:
assim Critóbulo no Banquete de X enolbnte, onde canta seu am or por Ciinias a quem co­
nheceu na escola e que é com o ele um jovem (cf. sobre esses dois rapa/es e sua pequena
diferença de idade. PLATON , Euthydème. 271 b).
17. N o C'hurinide( 153 c), PLATÃO descreve a chegada do jovem a quem lodo m undo
olha - adultos, com o tam bém rapa/es - “ até os mais novos".
IX. Citou-se por m uito tem po o exemplo de Eúripedes que ainda amava Ágaton quan­
do este já era um homem feito. F. B U F F IÈ R F (op. cit.. p. 613. nota 33) cita, a esse res­
peito. uma anedota contada por ELIEN (Histoires variées. XIII. 5).
173
1
cessidade de aju d a, de conselhos e de apoio. E ssa diferença n o cerne da
relação era, em sum a, o que a to rn av a válida e pensável. P o r causa
dela valorizava-se essa relação, p o r causa dela essa relação era questio­
nada; e lá o nde ela n ão era m anifesta procurava-se encontrá-la. Assim,
gostava-se de d iscu tir sobre a relação en tre A quiles e P átroclo p a ra sa­
ber com o se diferenciavam e qual dos dois tin h a ascendência sobre o
o u tro (po sto que o texto de H om ero era am bíguo sobre esse p o n to ).1''
U m a relação m asculina provocava um a p reo cu p ação teórica e m oral
q u ando se articu lav a a um a diferença bem m arcad a em to rn o do li­
m iar que sep ara o adolescente do hom em .
2.
N ã o parece que o privilégio atrib u íd o a esse tipo particu lar de
relação fosse ap an ág io dos m oralistas o u filósofos anim ados p o r um
cuidado pedagógico. C ostum a-se ligar estreitam ente o am o r grego pe­
los rapazes à p rática d a educação e ao ensino filosófico. A personagem
de Sócrates convida a isso, assim com o a sua representação m anifesta­
da co n stan tem en te n a A ntigüidade. De fato, um contexto bem am plo
con trib u ía p a ra a valorização e p a ra a elab o ração da relação entre ho­
mens e adolescentes. A reflexão filosófica que a to m ará com o tem a enraíza-se, de fato , em p ráticas sociais difundidas, reconhecidas e relati­
vam ente com plexas: é que diferentem ente, a o ^ ju e parece, das outras
relações sexuais, ou em to d o caso m ais d o que elas, as que uniam o ho­
mem ao rap az além de um certo lim iar de idade e de status* separandoos, eram o bjeto de um a espécie de ritualização que, ao im por-lhes vá­
rias regras, dava-lhes form a, valor e interesse. A ntes m esm o de serem
levadas em co n ta pela reflexão filosófica, essas relações já eram pretex­
to de to d o um jo g o social.
Em to rn o delas foram form adas p ráticas de “ c o rte” : sem dúvida,
estas n ão possuíam a com plexidade e n co n trad a nas o u tra s artes de
a m a i, com o as que serão desenvolvidas na Idade "Média. M as elas
tam bém eram o u tra coisa que não o costum e respeitado p ara a o b ten ­
ção, den tro das form as, da m ão de um a jovem . Elas definem to d o um
conjun to de c o n d u tas o p o rtu n a s e convenientes fazendo, assim , dessa
relação, um dom ínio cultural e m oralm ente so b recarregado; essas prá­
ticas - cuja realidade D over2" atestou p o r m eio de num erosos docu­
m entos - definem o co m p o rtam en to m útuo e as respectivas estratégias
que os dois p arceiros devem observar p a ra d a r às suas relações u m a^
form a “ bela” , estética e m oralm ente válida. Elas fixam o papel do
19. H O M E R O atribuía a um a origem, ao outro a idade: a um a força, ao outro a re­
flexão (Iliade. XI. 7X6). Sobre a discussão no que diz respeito aos seus papéis respectivos
cf. PLATON , Banquei. 1X0 a-b; ESCH IN E, Contre Timarque, 143.
20. K. J. D O VER. Homosexualité grecque, pp. 104-116.
174
erasta e o do erômeno. O prim eiro tem a posição da iniciativa, ele per­
segue, o que lhe dá direitos e obrigações: ele tem que m o strar seu a r­
dor, e tam bém tem que m oderá-lo; ele dá presentes, presta serviçoS;
tem funções a exercer com relação ao am ado; e tu d o isso o habilita a
esperar a ju s ta recom pensa; o o u tro , o que é am ado e cortejado, deve
evitar ceder com m uita facilidade; deve tam bém evitar aceitar dem a­
siadas h o n ras diferentes, conceder seus favores às cegas e p o r interesse,
sem p ô r à prova o valor de seu parceiro; tam bém deve m anifestar reco­
nhecim ento pelo que o am an te fez p o r ele. O ra, essa p rática de corte
m ostra p o r si m esm a que a relação sexual entre hom em e rapaz “ não
era sem problem as” ; devia ser aco m p an h ad a p o r convenções, regras
de co m p o rtam en to s, m aneiras de fazer, to d o um jo g o de adiam entos e
de chicanas destinados a re ta rd a r o térm ino e a integrá-la num a série
de atividades e de relações anexas. Isto quer dizer que esse gênero de
relações, que era perfeitam ente adm itido, não era “ indiferente". Ver
em to d as essas precauções to m ad as, e no interesse que se lhes atribuía,
apenas a prova de que esse am o r era livre, é deixar escapar o p o n to es­
sencial, é desconhecer a diferença que se estabelecia entre esse c o n p o rtam en to sexual e to d o s os o u tro s á p ro p ó sito dos quais não havia a
preocupação de saber com o eles deviam desenrolar-se. T o d as essas
preocupações m o stram bem que as relações de prazer entre hom ens e
adolescentes já constituíam , na sociedade, um elem ento delicado e um
p o n to tão nevrálgico que n ão se p o d ia deixar de preocupar-se com a
co n d u ta de uns e dos outros.
3.
M as pode-se logo perceber u m a diferença considerável com re­
lação a esse o u tro cen tro de interesse e de interrogação constituído
pela vida m atrim onial. É que en tre hom ens e rapazes trata-se de um
jo g o que é “ a b e rto ” , pelo m enos até certo p o n to.
A b erto “ espacialm ente” . N a E conôm ica e na arte d a pro p ried ad e
dom éstica, tratav a-se de um a e stru tu ra espacial b inária em que o lugar
dos dois cônjuges era cuidad o sam en te distinguido (o exterior p a ra o
m arido, o interio r p a ra a esposa, as dependências dos hom ens de um
lado, as das m ulheres de o u tro ). C om o rap az o jo g o se desenrola num
espaço m uito diferente: espaço com um , pelo m enos a p a rtir d o m o­
m ento em que a criança .atinge certa idade - espaço d a ru a e dos luga­
res de reu n ião com alguns p o n to s estratégicos im p ortantes (com o o gi­
násio); m as espaço o nde cad a um se desloca livrem ente,21 de form a que
é necessário perseguir o rapaz, caçá-lo, espreitá-lo lá onde ele pode
21. ts s a liberdade era, nas escolas, vigiada e lim itada. Cf. o que Ésquino lem bra no
Contre íinuirqiie a propósito das escolas e das precauções que os mestres deveriam to ­
m ar (9-10). Sobre os lugares de encontro, cf. F. BUFF1ÈRE. <>/>. cit.. pp. 561-sq.
175
passar e apreendê-lo no lugar em que ele se en contra; a necessidade de
correr ao ginásio, de ir com o am ad o à caça e esfalfar-se em co m p arti­
lhar exercícios p a ra os q uais não se está m ais em condições, era tem a
de queixa irônica d a p arte dos enam orados.
M as o jo g o é tam bém ab erto e so b retu d o pelo fato de que não se
pode exercer sobre o rap az - do m om ento em que ele não é de origem
servil - nenhum p o d er estatu tário : ele é livre p a ra escolher, p a ra aquilo
que aceita ou recusa, em suas preferências o u suas decisões. P ara obter
dele o que sem pre tem direito de não conceder é preciso ser capaz de
convencê-lo; aquele que quiser o b te r a sua preferência deve predom i­
nar a seus olh o s sobre os rivais, se houver, e p a ra isso é preciso acen­
tu a r prestígios, q u alidades o u presentes; m as a decisão pertence ao
p ró p rio rapaz: nessa p a rtid a em que se e n tra nunca se está certo de ga­
nhar. O ra, é precisam ente nisso que consiste seu interesse. N a d a o tes­
tem unha m elhor d o que o form oso lam ento de H ieron, o tira n o , tal
com o X enofonte o relata.22 Ser tira n o , explica ele, n ão to rn a agradável
nem a relação com a esposa nem com o rapaz. Pois o tiran o só pode
to m ar um a m ulher num a fam ília inferior, perd en d o assim todas as
vantagens de se ligar a um a fam ília “ m ais rica e m ais p o d ero sa” . Com
o rapaz - e H ieron está ap aix o n ad o p o r D ailocos - o fato de dispor de
um po d er d espótico suscita o u tro s obstáculos; os favores que H ieron
queria ta n to o b ter, ele gostaria de alcançar p o r meio de sua am izade e
de sua livre vontade; m as “ a ter de roubar-lhe: à força” , ele acaba o de­
sejando tã o pouco q u a n to “ fazer-se m al a si p ró p rio ” . T o m ar algo do
inim igo, c o n tra a sua vontade, constitui o m aior dos prazeres; q u anto
aos favores d os rapazes, os m ais doces são os que eles concedem vo­
luntariam ente. Q ue prazer, p o r exem plo, “ tro c a r o lhares com um am i­
go que vos Corresponde! Q ue encanto em suas perguntas! Q ue encanto
em suas respostas! A té m esm o as querelas e as desavenças são pteiias
de cand u ras e de atrativ o s. M as g ozar de um rap az apesar dele p róprio
é m ais p ira ta ria d o que am o r” . N o caso do casam ento, a problem ati­
zação dos prazeres sexuais e de seus usos se faz a p a rtir da relação esta­
tu tária que dá ao hom em o p o d er de governar a m ulher, os o utros, o
p atrim ô n io , a casa; a questão essencial consiste n a m oderação a ser
conferida a esse p o d er. N o caso d a relação com os rapazes, a ética dos
prazeres terá que seguir, através das diferenças de idade, delicadas es-''
tratégias que devem levar em co n ta a liberdade d o o u tro , sua capaci­
dade de recusar e seu necessário consentim ento.
4.
N essa pro b lem atização da relação com o adolescente a questão
do tem po é im p o rtan te, m as é co locada de m aneira singular; o que im-
22.
176
X É N O PH O N , Hieron, 1.
po rta não é m ais, com o no caso da D ietética, o instante o p o rtu n o do
uto, nem, com o na Econôm ica, a m anutenção constante de um a e stru ­
tu ra relacionai: trata-se, antes de m ais nada, da difícil questão do tem ­
po precário e da passagem fugitiva. Ela se expressa de diferentes m o­
dos e, em prim eiro lugar, com o um problem a de “ lim ite” : Q ual é o
tem po a p artir do qual o rap az deverá ser considerado velho dem ais
para ser parceiro legítim o na relação de am or? Em que idade já n ã o é
bom p ara ele aceitar esse papel e nem p ara seu n am o rad o querer impor-lhe? C onhecida casuística dos sinais de virilidade que devem m ar­
car um lim iar, que é ta n to m ais declarado intangível q u an to freqüente­
m ente devia ser tran sp o sto e p o rq u a n to se reivindica a possibilidade
de reprovar aqueles q u e o transgrediam ; a prim eira barba, com o se sa­
be, passava por essa m arca fatídica, e a navalha que a cortava devia
rom per, com o se dizia, o fio dos am o res.2' É preciso n otar, em to d o ca­
so, que não se reprovava sim plesm ente os rapazes que aceitavam de­
sem penhar um papel que já não estava m ais em relação com a sua viri­
lidade, m as os.hom ens que freqüentavam rapazes velhos dem ais.24. Os
estóicos serão criticados p o r g u ard arem p o r m uito tem po os seus am a­
dos - até os vinte e o ito anos - m as o argum ento que eles d arão , e que
prolonga de certa form a o argum ento de Pausânias no Banquete (ele
sustentava que, p ara ligar-se ap en as a jovens de valor, a lei devia in ter­
d itar as relações com rapazes m uito novos),2’ m ostra que esse limite
era m enos um a regra universal d o que um tem a de debate perm itindo
soluções bem diversas.
Essa atenção ao tem p o da adolescência e aos seus lim ites foi, sem
dúvida, um fato r de intensificação da sensibilidade ao corpo juvenil, à
sua beleza p articu lar e às diferentes m arcas de sua evolução; o físico
adolescente tornou-se o bjeto de u m a espécie de valorização cultural
m uito insistente. Os gregos n ão ignoravam nem esqueciam que o co r­
po m asculino pode ser belo m uito além de seu prim eiro encanto; a es­
ta tu á ria clássica dedica-se m ais facilm ente ao corpo adulto; e no Ban­
quete de X enofonte evoca-se o fato de que havia o cuidado de escolher
com o talóforos de A ten as os m ais belos anciãos.26 M as na m oral se­
xual é o corpo juvenil com seu en can to p ró p rio que é regularm ente
prop o sto com o o “ bom o b jeto ” de pfazer. M as nos enganaríam os se
acreditássem os que esses traço s eram valorizados por causa de sua li­
gação com a beleza fem inina. Eles o eram p o r eles m esm os ou em sua
ju stap o sição com os signos e as cauções de um a virilidade em vias de
23.
24.
25.
26.
PLATON, Protagoras, 309 a.
Cf. as criticas contra M énon cm X É N O PH O N ,
PLATON , Banquet, 181 d-€.
X ÉN O PH O N , Banquet, IV, 17.
Anabase, II, 6, 28.
177
se form ar: o vigor, a resistência, o a rd o r tam bém faziam p arte dessa
beleza; e, ju stam en te, era bom que os exercícios, a ginástica, os c o t f
cursos, a caça viessem reforçá-los g a ran tin d o assim que essa graça não
desem bocasse na lassidão e na efem inização.27 A am bigüidade fem ini­
na que será percebida m ais tard e (e m esm o já no d ecorrer da A ntigüi­
dade) com o um com ponente - ou m elhor, com o que a razão secreta da beleza d o adolescente era, na idade clássica, algo de que o garo to
devia antes se p o u p a r e ser p o u p ad o . H avia nos gregos to d a um a esté­
tica m oral do corp o d o rapaz; ela é reveladora de seu valor pessoal e
do valor do am o r que se lhe tem . A virilidade com o m arca física deve
estar ausente dessa estética; m as ela deve estar presente e n q u an to fo r­
ma precoce e prom essa de com portam ento: conduzir-se já com o o ho­
mem que ain d a n ão se é.
M as a essa sensibilidade estão tam bém ligadas a inquietação face
a m udanças tã o rápidas e à proxim idade de seu term o, o sentim ento
do caráter fugaz dessa beleza e de sua legítim a capacidade de suscitar
desejo; o tem or, o d u p lo tem or, expresso tão freqüentem ente no am an ­
te, de ver o am ad o p erd er a sua graça e, no am ad o , de ver os n am o ra­
dos se afastarem . E a questão que é colocada en tão é aquela da conver­
são possível, m oralm ente necessária e socialm ente útil, d o vínculo de
am or (destinado a desaparecer) em um a relação de am izade, de philia.
Esta se distingue da relação de am or d a qual é possível e desejável que
ela surja; ela é d u ra d o u ra e não tem o u tro term o que o da p ró p ria vi­
da, e ela apaga as dissim etrias que estavam im plicadas n a relação eró ­
tica entre o hom em e o adolescente. É um dos tem as freqüentes na re­
flexão m oral sobre essa espécie de relações que elas devem se livrar de
sua precariedade: precariedade que é p ro d u to da inconstância dos p a r­
ceiros e um a conseqüência do envelhecim ento do rap az que perde seu
encanto: m as ela é tam bém um preceito, p o sto que n ão é bom am ar
um rapaz que passou de um a certa idade, com o tam bém não o é para
ele deixar-se am ar. Essa jjrecariedade - s e m evitada som ente se, já no^
a rd o r do am o r, a pfïïTiâT;a am izade com eçasse a se desenvolver: philia,
isto é, sem elhança do caráter e da form a de vida, o co m p artilh ar dos
pensam entos e da existência, a benevolência m ú tu a.28 É esse nascim en­
to e esse tra b a lh o d a am izade indefectível no am o r que X enofonte des­
creve q u an d o erige o perfil dos dois am igos que se olham um ao o u tro ,
27. Sobre a oposição entre o rapaz sólido e o sem consistência, ver PLATON , Phèdre,
239 c-d e os Rivaux. A propósito do valor erótico do rapaz m asculino e da evolução do
gosto para um físico mais efem inado, talvez já em curso no Séc. IV, cf. K . J. DO VER,
Homosexualité grecque, pp. 88-94. Em todo caso o princípio de que o encanto de um ga­
roto m uito jovem esteja ligado a um a feminidade que o habita tornar-se-á um tema
constante mais tarde.
28. Sobre a definição da philia cf. J.-CI. FRA ISSE, op. cit.
178
r
conversam, prestam-se reciprocamente confiança, alegram-se ou se en­
tristecem juntos com as vitórias e os fracassos e velam um pelo outro:
“ Ao se comportarem assim eles não cessam até a velhice de amar a sua
mútua ternura e de dela gozar .” 29
5. Essa interro g ação sobre as relações com os rapazes to m a, de
m aneifa bem geral, a form a de um a reflexão sobre o am or. N ã o se de­
veria concluir daí que, p ara os gregos, o Eros só tivesse lugar nesse
tipo de relações e que ele não pudesse caracterizar relações com um a
m ulher: o Eros pode unir seres h um anos qualq u er que seja o seu sexo;
e pode-se ver em X enofonte que N ikeratos e sua m ulher estavam uni­
dos entre si pelos vínculos do Eros e do A nteros.’° O Eros não é forço­
sam ente “ hom ossexual” nem m uito m enos excludente do casam ento;
e o vínculo conjugal n ão se distingue da relação com os rapazes na m e­
dida em que seria incom patível com a força do am o r e a sua reciproci­
dade. A diferença é o u tra: a m oral m atrim onial, e m ais precisam ente a
ética sexual do hom em casado, n ão exige, p ara se constituir e definir
suas regras, a existência de um a relação do tipo do Eros (m esm o se é
m uito possível que esse vínculo exista entre os esposos). Em troca,
q u an d o se tra ta de definir o q u e deve ser, p ara atingir a m ais bela e a
mais perfeita form a, a relação de um hom em com um rapaz, e q u an d o
se tra ta de d eterm in ar qual uso, no interio r de sua relação, eles podem
fazer de seus prazeres, en tão a referência ao Eros torna-se necessária;
a problem atização de sua relação diz respeito a um a “ E rótica” . É p o r­
que entre dois cônjuges, o status ligado ao estado de casam ento, a ges­
tão do oikos, a m anutenção da descendência podem fu n dam entar os
princípios de co n d u ta, definir suas regras e fixar as form as da tem pe­
rança exigida. Em com pensação, entre um hom em e um rapaz, que es­
tão em posição de independência recíproca, e entre os quais não existe
constrição institucional, mas um jo g o aberto (com preferências, esco­
lha, liberdade de m ovim ento, desfecho incerto), o princípio de regula­
ção das co n d u tas deve ser buscado na p ró p ria relação, na n atureza do
m ovim ento que os leva um p a ra o o u tro , e da afeição que os liga rociprocam ente. A problem atização, p o rta n to , se fará na form a de um a
reflexão sobre a p ró p ria relação: in terro g ação ao m esm o tem po teó ri­
ca sobre o am o r e prescritiva sobre a m aneira de am ar.
( M as essa arte de am ar se dirige efetivam ente a duas personagéns. É verdade que a m ulher e seu co m p o rtam en to não estavam com ­
29. X ÉN O PH O N , Banquet, VIII, 18. T oda essa passagem do discurso de Sócrates
(VIII. 13-1 S) é bem característica da inquietação face à precariedade dos am ores m ascu­
linos e do pupel que aí deve desem penhar a permanência da amizade.
30. X ÉN O PH O N , Banquet. VIII. 3.
179
pletam ente ausentes da reflexão sobre a E conôm ica; m as ela aparece lá
som ente a título de elem ento co m plem entar d o hom em ; ela era coloca­
da sob sua au to rid ad e exclusiva e, se era bom respeitá-la em seus privi­
légios, era na m edida em que ela se m ostrava digna, e em que era im ­
p o rtante que o chefe de uma família perm anecesse senhor de si. Em
troca, o rapaz pode m uito bem ser m an tid o na reserva que se im põe a
essa idade; com as suas possíveis recusas (tem idas, m as honrosas) e
com as suas eventuais aceitações (desejadas, m as facilm ente suspeitas),
ele constitui, face ao am ante, um centro independente. E a Erótica terá
que se estender de um centro ao o u tro dessa espécie de elipse. N a Eco­
nôm ica e na D ietética a m oderação v o luntária de um hom em fundavase essencialm ente sobre sua relação consigo m esm o; na Erótica, o jogo
é m ais com plexo; ele im plica o dom inio de si d o am ante; ele tam bém
im plica que o am ad o seja capaz de in sta u ra r um a relação de dom ina­
ção sobre si m esm o; e enfim ele im plica a escolha refletida que fazem
um do o u tro , u m a relação entre as suas duas m oderações. Pode-se até
n o ta r um a certa tendência a privilegiar o p o n to d e vista do rapaz; é
so b retud o a sua c o n d u ta que é in terro g ad a e é a ele que se propõem
pareceres, conselhos e preceitos: com o se fosse im p o rtan te, antes de
m ais nad a, co n stitu ir um a E rótica do objeto am ad o ou, pelo m enos,
do objeto am ad o e n q u an to ele tem que se fo rm ar com o sujeito de con­
d u ta m oral; é ju stam en te o que aparece num texto com o o elogio de
E picrato, atrib u íd o a D em óstenes.
180
2
A H O N R A DE UM RAPAZ
Face aos dois grandes Banquetes, o de P latão e o de X enofonte,
face ao Fedro, o Eroticos d o pseudo-D em óstenes parece relativam ente
pobre. D iscurso solene, ele é ao m esm o tem po a exaltação de um jo ­
vem e um a ex o rtação que a ele se dirige: essa era a função tradicional
do panegírico - tal com o é evo cad a no Banquete de X enofonte - , “ dar
prazer ao jo v e m ", e “ ensinar-lhe ao m esm o tem po o que ele deve
ser". " P o rtan to , louvor e lição. M as através da b analidade dos tem as e
de seu tra ta m e n to - um a espécie de p latonism o um ta n to insípido - é
possível isolar alguns traços com uns às reflexões sobre o am or e à m a­
neira pela qual a questão dos “ prazeres” era colocada.
I.
U m a preo cu p ação an im a to d o o texto. Ela é m arcada p o r um
vocabulário que, constan tem en te, refere-se ao jo g o da h o nra e da ver­
gonha. O que está em q u estão ao longo do discurso é a aischunê, essa
vergonha que é ta n to a d eso n ra pela q ual se pode ser m arcado, com o o
sentim eçito que dela afasta; o que está em questão é aquilo que é ver­
gonhoso (aischron) e que se opõe ao que é belo, ou ao m esm o tem po
belo e ju sto . Está tam bém em questão o que provoca reprovação e des­
prezo (oneidos, epitim ê) e o que h o n ra e d á boa reputação (endoxos, en;inios). De to d o m odo, desde o início do Eroticos, o ap aixonado por
31. X ÉN O PH O N , Banquet, VIII. 12. Sobre as relações entre elogio e preceito, cf. tam ­
bém ARISTO TL. Rhétorique. I, 9.
181
Epícrato sublinha seu objetivo: que o louvor trag a ao am ad o h o nra e
não vergonha, com o o co rre q u an d o os elogios são p ro nunciados por
am antes in d iscreto s.'2 E regularm ente ele lem bra essa preocupação: é
im portante que o jovem se recorde que, em razão de sua origem e de
seu status, a m enor negligência sobre um a questão de ho n ra corre o
risco de cobri-lo de vergonha; é preciso que ele guard e na m em ória, e a
título de exem plo, aqueles que, à custa da vigilância, puderam preser­
var sua h o n ra no decorrer de sua ligação;" ele deve to m a r cuidado em
não “ deso n rar suas qualidades n atu rais” , e n ão fru strar as esperanças
daqueles que se orgulham dele.u
O c o m p o rtam en to de um jovem aparece, p o rta n to , com o um
dom ínio p articu larm en te sensível à divisão entre o que é vergonhoso e
o que é conveniente, entre o que causa h o n ra e o que desonra. E é com
isso que se preocupam aqueles que querem refletir sobre a gente jo ­
vem, sobre o am o r q u e se lhes devota e sobre a co n d u ta que eles devem
m anter. N o Banquete de Platão, Pausânias, ao evocar a diversidade
dos hábitos e dos costum es a p ro p ó sito dos rapazes, indica o que é ju l­
gado “ vergo n h o so ” .ou “ belo” em Élide, em E sparta, em Tebas, em
lônia ou entre os B árbaros, e finalm ente em A te n a s.'5 E Fedro lem bra
o princípio que deve ser to m ad o com o guia na questão do am or dos
jovens assim com o na vida em geral: "À s coisas vis vincula-se a deson­
ra; às belas, p o r o u tro lado, o desejo de estim a: a ausência de am bas
interdita a to d a cidade assim com o a to d o p articu lar o exercício de
um a grande e bela atividade” .5.'’ É preciso o b servar, porém , que essa
questão não era sim plesm ente um a questão de alguns m oralistas exi­
gentes. A co n d u ta de um jovem , sua h o n ra e sua d esonra eram tam ­
bém objeto de to d a um a curiosidade social; prestava-se atenção, falava-se e lem brava-se: p a ra atacar T im arco, Ésquines não terá escrúpu­
los em reativar as fofocas que co rreram m uitos anos antes, q u ando seu
adversário era ain d a m uito jo v em .” Além disso o Eroticos m ostra, de
passagem , com o um rap az era objeto, de m odo b astante n atural, de
um a solicitude desconfiada da p arte de seu meio; ele é observado, es­
preitado, com enta-se sua p o stu ra e suas relações; à sua volta as máslínguas são ativas; os espíritos m aldosos estão p ro n to s a reprová-lo se
ele se m o stra arro g an te ou espevitado; co n tu d o se ap ressarão em criticá-lo se ele m anifestar dem asiada facilidade.'* N ão se pode deixar de
32.
D h M O S T H È N b . E r o t ic o s , 1.
33.
// > « /..
.
Ih id .. 53. A R e t ó r ic a d e A ris tó te le s (I, 9) m o s tra a im p o r tâ n c ia d a s c a te g o r ia s d o
34.
5
k u ln ii c d o a is c h ro n n o p a n e g íric o .
35.
36.
37.
3X
182
PI A T O N . B a n q u e t , 1X2 a -d .
I h iil.. I7X d.
K S C H IN E . C o n t r e T im a r q u e , 39-73.
D L M O S T H È N t . E r o t ic o s , 17-73.
I
pensar, evidentem ente, no que foi em o u tras sociedades a situação das
m oças q u an d o , com o recuo considerável da idade do casam ento p ara
as m ulheres, a sua co n d u ta pré-conjugal tornpu-se, para elas m esm as e
p ara a sua fam ília, um a p reo cu p ação m oral e social im portante.
2.
M as, p ara o rap az grego, a im portância de sua h o nra não con­
cerne - com o m ais tard e no caso da m oça européia - ao seu fu tu ro ca­
sam ento: ela diz respeito, antes de m ais nada, ao seu status, seu lugar
futuro na cidade. E videntem ente, tem -se mil provas de que rapazes de
reputação duvidosa p o d iam exercer as m ais altas funções políticas;
m as se tem tam bém o testem u n h o de que ju stam en te isso podia serlhes reprovado - sem c o n ta r as consideráveis conseqüências judiciárias
que certas más co n d u tas podiam produzir: o caso de T im arco m ostrao bem. O a u to r do Eroticos lem bra-o claram ente ao jovem Epícrato;
uma p arte de seu fu tu ro , com a posição que ele pod erá o cupar na cida­
de, é decidida hoje m esm o de aco rd o com a m aneira, h o nrosa ou não,
com o ele souber se conduzir: a cidade, a p artir d o m om ento em que
não quer apelar p ara o prim eiro que apareça, levará em consideração
as reputações ad q u irid a s;w e aquele que tiver desprezado um bom con­
selho carregará a vida inteira a pena de sua cegueira. Z elar, q u an d o se
é aind a jovem , pela p ró p ria co n d u ta, mas velar tam bém , q u an d o se fi­
cou velho, pela hon ra dos m ais jovens, são, p o rta n to , duas coisas ne­
cessárias.
Essa idade de tran sição em que o jovem é tã o desejável e sua h o n ­
ra tão frágil constitui, p o rta n to , um período de prova: um m om ento
em que se prova o seu valor, no sentido em que este tem ao m esm o
tem po que se form ar, que se exercer, que se m edir. A lgum as linhas, no
final d o texto, m ostram bem o caráter de “ teste” que tom a a co n d u ta
do rapaz nesse período de sua vida. O a u to r do panegírico, ao ex o rtar
Epícrato lem bra-lhe que vai haver contestação (agõn) e que o debate
será aquele da dokim asie:m trata-se d o term o pelo qual se designa o
exam e ao fim do qual aceita-se os jovens na efebia ou os cidadãos em
certas m agistraturas. A c o n d u ta m oral do jovem deve sua im portância
e a atenção que to do s devem lhe reservar ao fato de que ela é, aos
olhos dé to d o m undo, p rova q ualificadora. A liás, o texto diz isso cla­
ram ente: "P en so . . . que nossa cidade te en carregará de ad m inistrar
um de seus serviços e que, q u a n to m ais os teus dons forem brilhantes,
mais ela te ju lg a rá digno de p ostos im portantes, e tan to m ais rápido
ela qu ererá fazer a pro v a de tu as capacidades” .41
W.
40
41
//>/</.. 55.
//>/</.. 5.V
//>/,/.. 54.
183
3.
N o que consiste a pro v a precisam ente? E a p ro p ó sito de que
tipo de co n d u ta E pícrato deve esforçar-se em o p e ra r a separação çntre
o que é h o n ro so e o que é desonroso? N os p o n to s bem conhecidos da
educação grega: a p o stu ra do corp o (evitar cuidad o sam ente a rhathum ia, essa m oleza que é sem pre signo de infâm ia), os olhares (onde se
pode 1er o aidõs, o p u d o r), a m aneira de falar (n ão se refugiar na facili­
dade do silêncio, m as saber m istu rar palavras sérias e leves), a q u alid a­
de das pessoas que se freqüenta.
Porém , é so b retu d o no cam po da co n d u ta am o ro sa que funciona
a distinção en tre o h o n ro so e o vergonhoso. C onvém n o ta r em prim ei­
ro lugar que nesse p o n to o a u to r - e é nisto que o texto consiste num
elogio d o am o r e, ao m esm o tem po, louvor ao jovem - critica a opi­
nião que coloca a h o n ra do rap az na rejeição sistem ática dos preten­
dentes: é claro que certos apaixo n ad o s m aculam a p ró p ria relação (lum ainesthai tõi pragm ati)*1 m as n ão se deve confundi-los com aqueles
que dão p rova de m oderação. O texto n ã o estabelece a fronteira da
h o n ra en tre aqueles qúe rejeitam seus pretendentes e aqueles que os
aceitam . P ara um jovem grego, ser assediado p o r enam o rad o s não
constituía, evidentem ente, um a desonra: era, ao c o n trário , a m arca
visível de suas qualidades; o núm ero de pretendentes podia ser objeto
de orgulho legitim o - e às vezes de gloríola. M as aceitar a relação
am orosa, e n tra r no jo g o (m esm o se n ã o se representasse exatam ente
aquele que p ro p u n h a o apaix o n ad o ) tam bém n ã o era considerado
um a vergonha. A quele que louva E pícrato fá-lo com preender que ser
belo e ser am ad o constitui um a dupla sorte (eutuchia):43 é bom , entre­
tan to , servir-se dela com o convém (orthõs chrêsthaí). Aí está o p o n to
sobre o qual o texto insiste, e onde m arca o que se p oderia cham ar “ o
p o n to de h o n ra ” : essas coisas (ta pragm ata) n ão são nelas m esm as, e
de m aneira ab so lu ta, boas o u más; elas variam conform e aqueles que
as praticam (para tous chrõmenous).** É o “ uso” q u e determ ina o seu va­
lor m oral segundo um princípio que se e n co n tra freqüentem ente for­
m ulado em o u tro lugar; de q u alq u er m odo são expressões m uito p ró ­
ximas que são en co n trad as no Banquete: “ N essa m atéria nada é abso­
luto; a coisa, nela m esm a e som ente ela, não tem nem beleza nem feiú­
ra: m as o que a faz bela é a beleza de sua realização; e sua fealdade o
que a laz feia."4'
O ra, se p ro cu rarm o s saber de que m aneira precisa se opera, na re­
lação am o ro sa, a d em arcação da h o n ra , é preciso reconhecer que o
-i:
//>«/.. .V
-I '
44
//>/(/.. 5.
Ihn/.. 4.
4'
IM M O N . Haiii/iici. 1X3 d: cf. ta m b é m 1X1 a.
184
texto é extrem am ente elíptico. E m b o ra o discurso dê indicações sobre
o que E pícrato deve fazer ou o que ele fez a fim de exercer seu co rp o e
form ar sua coragem , ou p ara ad q u irir os conhecim entos filosóficos
que lhe serão necessários, nada é d ito sobre o que, em m atéria de rela­
ção física, pode ser adm itido ou rejeitado. U m a coisa é clara, nem
tu d o deve ser recusado (o jovem “ concede favores"), m as nem tudo
deve ser aceito: “ N inguém fica fru strad o de teus favores q u a n d o eles
são com patíveis com a justiça e a m oral; q u an to àqueles que red u n ­
dam em vergonha ninguém se arrisca sequer a esperar p o r eles: tal é a
liberdade que tu a tem perança concede a tod o s aqueles que têm as m e­
lhores intenções; tal é o d esencorajam ento que ela inspira naqueles que
querem atrever-se” .46 A tem perança - a sõphrosunê - que é exigida
com o um a das qualidades m aiores dos rapazes im plica um a discrim i­
nação nos co n tato s físicos. M as não se p ode inferir desse texto os atos
e os gestos que a h o n ra im poria recusar. É preciso o bservar que no Fedro onde, n ão o b stan te, o tem a é desenvolvido com m uito m ais am pli­
tude, a im precisão é quase a m esm a. A o longo dos dois prim eiros dis­
cursos sobre a o p o rtu n id a d e de ceder àquele que am a ou àquele que
não am a, e na grande fábula da’atrelagem d a alm a com seu cavalo re­
belde e com seu cavalo dócil, o texto de P la tã o m ostra que a questão
da p rática “ h o n ro sa ” é essencial: e, co n tu d o , os atos não sãó jam ais
designados a não ser p o r expressões com o “ co m p razer” ou “ concéder
seus favores” (charizesthai), “ fazer a coisa” (diaprattesthai), “ tira r o
m áxim o prazer d o am a d o ” , “ o b te r aquilo que se q u er” (peithesthai),
“ ter prazer” (apolauesthai). D iscrição inerente a esse tipo de discurso?
Sem dúvida, e os gregos certam ente achariam indecente nom ear preci­
sam ente num discurso solene coisas que, m esm o nas polêm icas ou nos
litígios, só são evocados de longe. Pode-se pensar tam bém que não se­
ria necessário insistir em distinções que eram conhecidas p o r todos:
cada um devia saber m uito bem o que é, p a ra um rapaz, hon ro so ou
vergonhoso aceitar. M as se pode lem brar tam bém o que já aparecera
com a D ietética e a E conôm ica: a reflexão m oral e n tã o não se dedica
tan to a definir com o m áxim o de rigor possível os códigos a serem res­
peitados e o q u a d ro dos atos perm itid o s e proibidos, q u an t j a caracte­
rizar o tipo de atitu d e, de relação consigo m esm o que é requerido.
- ' 4. O texto m ostra, de fato, se não as form as gestuais a serem res­
peitadas e os lim ites físicos que não devem ser u ltrapassados, pelo me­
nos o p rincípio geral q u e determ in a, nessa ordem de coisas, a m aneira
de ser e de se conduzir. T o d o o panegírico de E pícrato rem ete a um
contexto agonístico on d e o m érito e o brilho do jovem devem se afir-
46 .
D E M O S T H È N b . Eroticos. 20
185
1
m ar por sua superio rid ad e sobre os dem ais. Passem os p o r sobre esses
tem as tão freqüentes nos discursos solenes: a saber, que aquele a quem
se elogia é m ais im p o rtan te do que os louvores que dele se faz, e que as
palavras correm o risco de ser m enos belas do que aquele de quem elas
falam ;47 ou ain d a q u e o rap az é superior a to d o s os o u tro s por suas
qualidades físicas e m orais; sua beleza é incom parável com o se a “ F o r­
tu n a ” , ao co m b in ar as qualidades m ais diversas e as m ais opostas, q u i­
sesse “ d ar um exem plo” a to d o s;48 não som ente seus dons m as a sua
conversação o colocam acim a dos o u tro s;49 d en tre to d o s os exercícios
onde se p ode b rilh ar ele escolheu o m ais n obre e o m ais recom pensa­
d o r;50 sua alm a está p rep arad a “ p ara as rivalidades d a am bição” ; e
não contente em se distinguir p o r um a q ualidade, ele reúne “ todas
aquelas de que um hom em sensato p oderia se v an g lo riar” .51
C o n tu d o , o m érito de E pícrato n ão está som ente nessa a b u n d â n ­
cia de qualidades que lhe perm ite afastar to d o s os seus rivais e fazer a
glória de seus pais;52 consiste tam bém em que, em relação àqueles que
dele se aproxim am , ele m antém sem pre seu valor em inente; não se dei­
xa dom in ar p o r nenhum deles; to d o s querem atraí-lo p a ra a sua inti­
m idade - a p alav ra sunetheia tem ao m esm o tem po o sentido geral de
vida em com um e de relação sexual;” m as ele prevalece sobre eles de
tal m aneira, assum e sobre eles um a tal ascendência que eles encontram
to d o o seu prazer n a am izade que experim entam p o r ele.54 N ã o ceder,
não se subm eter, perm anecer o m ais forte, vencer pela resistência, pela
firm eza, pela tem p eran ça (sõphrosunê) os p retendentes e os ap aixona­
dos: eis com o o jo v em afirm a o seu valo r n o cam po am oroso.
Seria preciso im aginar sob essa indicação geral um código preciso
e que estaria b aseado na analogia tã o fam iliar aos gregos entre as posi­
ções no cam po social (com a diferença en tre os “ p jim eiro s” e os ou­
tros, os potentes que com andam e os que obedecem , os senhores e os
serviçais) e a form a de relações sexuais (com as posições dom inantes e
dom inadas, os papéis ativos e passivos, a p en etração exercida pelo h o ­
mem e recebida p o r seu parceiro)? D izer que n ã o convém ceder, não
deixar os o u tro s prevalecerem , n ão aceitar u m a posição inferior na
q u al se ficaria p o r baixo, è sem dúvida excluir o u desaconselhar práti-
47.
48.
49.
50.
51.
52.
53.
54.
186
Ibid.,
Ibid.,
Ibid.,
Ibid.,
Ibid.,
Ibid.,
Ibid.,
Ibid.,
7, 33, 16.
8, 14.
21.
23, 25.
30.
31.
17.
17.
cus sexuais que seriam h u m ilhantes p ara o rapaz e pelas quais ele seria
colocado num a posição de in ferio rid ad e."
M as é provável que o p rincípio da h o n ra e d a “ su p erio rid a d e''
m antida se refira - além de algum as prescrições precisas - a um a espé­
cie de estilo geral: não convinha (so b retu d o aos olhos da opinião) que
o rapaz se conduzisse “ p assivam ente” , que ele se deixasse levar e d o ­
m inar, que cedesse sem com bate, que se torn asse o parceiro com pla­
cente das volúpias d o o u tro , que ele satisfizesse seus caprichos, « que
oferecesse seu co rp o a quem quisesse, e da m aneira pela qual o quises­
se p o r lassidão, p o r gosto pela volúpia o u p o r interesse. É nisto que
consiste a d esonra dos rapazes que aceitam o prim eiro que chega, que
se exibem sem escrúpulos, que passam de m ão em m ão, e que conce­
dem tu d o ao que m ais oferecq. É isso que E pícrato não faz e que nunca
fará, cuidadoso que é d a o p in ião que se^tem sobre ele, d a posição que
terá que assum ir e das úteis relações que ele p o d e estabelecer.
5.
Basta ain d a m encionar rap id am en te o papel que o a u to r do
Eroticos faz a filosofia d esem penhar nessa g u ard iania d a h o n ra e nes­
sas ju sta s de su p erio rid ad e às quais o jovem é convidado, com o sen­
do provas p ró p rias à sua idade. Essa filosofia, cujo con teú d o não é de­
finido senão p o r referência ao tem a socrático d o epimeleia heautou,
“ do cuidado consigo” ,5'’ e à necessidade, tam bém socrática, de ligar o
saber com o exercício (epistêm ê-m eletê) - essa filosofia não aparece
com o um princípio p a ra se ter um a o u tra vida nem p ara se ab ster de
to dos os prazeres. Ela é evocada pelo pseudo-D em óstenes com o com ­
plem ento indispensável das o u tra s provas: “ C onsidera que é, de um la­
do, insensato ao extrem o m anifestar em ulação e passar p o r num erosas
provas a fim de au m en tar seu g an h o , seu vigor físico e to d as as v an ta­
gens dessa espécie . . . e n ão buscar os m eios de aperfeiçoar a faculda­
de que preside a to d o o resto ” .57 O que a filosofia é capaz de m o strar é,
de fato, com o to rn ar-se “ m ais fo rte d o que si p ró p rio ” e q u a n d o se
chega aí ela fornece, além disso, a possibilidade de prevalecer sobre os
o utros. Ela é p o r si m esm a prin cíp io de co m an d o p o sto que é ela, e so*
m ente ela, q u e é capaz de dirigir o pensam ento: “ N o s negócios h u m a ­
nos o p en sam en to conduz tu d o e p o r sua vez a filosofia po d e m uito
bem dirigi-lo ao m esm o tem p o q u e exercitá-lo” .51 Vê-se que a filosofia
55. S o b r e a im p o r tâ n c ia d e n ã o s e r d o m in a d o e a s re tic ê n c ia s a re s p e ito d a s o d o m ia e
d a Ic la ç ã o p a ss iv a s n a s re la ç õ e s h o m o s s e x u a is . C f. K . J . D O V E R , Hom osexualité grect/ttc. p p . 125-134.
5(i. Eroticos. 39-43.
57. //>/</.. 3X.
5X. Ihúl.. 37.
187
é um bem necessário à sab ed o ria d o jovem ; e n tre ta n to , n ão p a ra desviá-lo p a ra um a o u tra form a d e vida mas p a ra perm itir-lhe exercer o
dom ínio de si e a vitória sob re os o u tro s no difícil jo g o das provas a se­
rem enfren tad as e d a h o n ra a ser salvaguardada.
T od o esse Eroticos gira, com o se vê, em to rn o do problem a dessa
dupla su p erio rid ad e sobre si e sobre o s outro s nessa fase difícil onde a
ju ventud e e a beleza do rap az atraem tan to s hom ens que buscam “ pre­
valecer”, sob re ele. N a D ietética, o q u e estava em q u estão era so bretu­
do o dom ínio de si e a violência de um ato perigoso; na E conôm ica era
a questão d o p o d er que se deve exercer sobre si n a p rática do poder
que se exerce so b re a m ulher. A qui, a p artir d o m om ento em que a
Erótica assum e o p o n to de vista do rapaz, o p ro b lem a é saber de que
m aneira ele p o d erá assegurar seu dom ínio não cedendo aos outros.
N ão se tra ta d a m edida a ser im p o sta ao seu p ró p rio poder, m as sim
da m elhor m aneira de se m edir ao pod er d os o u tro s, assegurando
sobre si m esm o o seu p ró p rio dom ínio. N isso, u m a breve n arrativ a
que figura no m eio d o discurso assum e um valo r sim bólico. T rata-se
de um lugar-com um : a n a rra ç ão de um a co rrid a de c arro s a cavalo.
M as o pequeno d ra m a esportivo c o n ta d o está em relação d ireta com a
prova pública a que o jovem se subm ete na sua co n d u ta com os preten­
dentes; nela E p ícrato dirige os cavalos de su a equipagem (a referência
ao Fedro é verossím il); ele q u ase é d e rro ta d o , seu c a rro p o r p o u c o não
é destru íd o p o r u m a equipagem adversa; o p úblico, apesar d o gosto
que tem em geral pelos acidentes, ap aixona-se pelo herói en q u an to
este “ ain d a m ais fo rte d o q u e o vigor de sua equipagem consegue pre­
valecer sobre os m ais favoritos de seus rivais” .”
Essa p ro sa à E pícrato n ã o é, certam en te, um a das m ais elevadas
form as da reflexão grega sob re o am o r. M as ela m anifesta m uito bem ,
na sua p ró p ria b an alid ad e, alguns aspectos im p o rtan tes d aq u ilo que
constitui “ o p ro b lem a grego dos rap azes” . O jovem - en tre o térm ino
d a infância e o m o m en to em que atinge o status viril - constitui p a ra a
m oral e o p en sam en to grego um elem ento delicado e difícil. Sua ju v e n ­
tu d e com a beleza q u e lhe pertence (e à q ual está subentendido que
to d o hom em é, p o r n atu reza, sensível) e o status que será seu (e p ara o
qual ele deve, com a aju d a e sob a cau ção de seu m eio, preparar-se)
form am urçi p o n to “ estratégico” em to rn o d o q u al requer-se um jogo
com plexo; sua h o n ra , q u e depende p o r um lado d o uso que ele faz de
seu corp o , e que vai d eterm in ar tam b ém , n u m a certa m edida, sua re­
p u tação e seu papel fu tu ro , é algo im p o rtan te. A í se en co n tra, p a ra ele,
um a p ro v a que exige aplicação e exercício: com o tam b ém p ara os ou­
tros, um a o casião de p reo cu p ação e de cu id ad o . N o final de seu elogio
59.
188
ibid., 29-30.
a E pícrato, o a u to r lem bra que a vida do rapaz, seu bios, deve ser um a
o b ra “co m u m ” ; e com o se se tratasse de um a o b ra a ser aperfeiçoada
ele solicita a to d o s aqueles que conhecem E pícrato p ara d a r, a essa fi­
gura a vir, “ o m aior ex plendor possível” .
M ais tard e, na cu ltu ra eu ro p éia, a m oça ou a m ulher casada, eom
sua co n d u ta, sua virtude, sua beleza e sentim entos se to rn a rã o tem as
de cuid ad o privilegiado; um a nova arte de cortejá-las, um a literatu ra
de form a essencialm ente rom anesca, um a m oral exigente e atenciosa à
integridade de seu corpo e à solidez de seu en gajam ento m atrim onial,
tu d o isso a tra irá p a ra elas as curiosidades e os desejos. Q u alq u er que
seja a inferioridade m an tid a p o r sua posição na fam ília ou na socieda­
de haverá, en tão , um a acen tu ação , um a valorização d o “ p ro b lem a ”
da m ulher. Sua n atu reza, sua co n d u ta, os sentim entos que ela inspira
ou que-experim enta, a relação perm itid a o u p ro ib ida que se po d e ter
com ela, p assarão a ser tem as de reflexão, de saber, de análise, de pres­
crições. Em tro ca, parece claro q u e foi a p ro p ó sito do rap az que a
problem atização foi m ais ativa n a G récia clássica, em p reen cen d o em
to rn o de sua beleza frágil, de sua h o n ra co rp o ral, de sua sabedoria e da
aprendizagem que ela requer, u m a intensa preo cu p ação m oral. A sin­
gularidade histórica n ão consiste em que os gregos tinham prazeres
com os rapazes, nem m esm o em que eles ten h am aceito esse prazer
com o legítim o. Ela consiste em que essa aceitação do prazér n ão era
simples, e que ela deu lugar a to d a um a elab o ração cultural. F alan d o
esquem aticam ente, o que é preciso apreen d er aqui n ão é p o r que Os
gregos tinham g osto pelos rapazes,.m as sim p o r que eles tinham um a
“ pederastia” : isto é, p o r que, em to rn o dèsse gosto, eles elaboraram
um a prática de corte, um a reflexão m oral e, com o vèrem os, um asce­
tism o filosófico.
189
3
O OBJETO DO PRAZER
Para co m preender de que m aneira o uso dos aphrodisia é problem atizado na reflexão sobre o am o r pelos rapazes é preciso lem brar um
princípio que, sem dúvida, n ão é p ró p rio da cu ltu ra grega, m as que ali
teve um a im p o rtân cia considerável e exerceu, nas apreciações m orais,
um poder d eterm inante. T rata-se do p rincípio de isom orfism o entre
relação sexual e relação social. Deve-se entender p o r esse princípio que
a relação sexual - sem pre pensada a p a rtir do ato m odelo d a penetra­
ção e de um a p o larid ad e que opõe atividade e passividade - é percebi­
da com o d o m esm o tip o que a relação entre superio r e inferior, aquele
que dom in a e aquele que é d om inado, o que subm ete-e o que é sub­
m etido, o que vence e o que é vencido. A s práticas de prazer são refle­
tidas através das m esm as categorias que o cam po das rivalidades e das
hierarquias sociais: analogias na e stru tu ra agonística, nas oposições e
diferenciações, nos valores atrib u íd o s aos respectivos papéis dos p a r­
ceiros. E pode-se com preender, a p a rtir daí, que há, n o co m portam en­
to sexual, um papel que é intrinsecam ente h o nroso e que é valorizado
de pleno direito: é o que consiste em ser ativo, em d o m in ar, em pene­
tra r e em exercer, assim , a sua superioridade.
D aí as várias conseqüências a respeito d o e statu to daqueles que
devem ser os parceiros passivos dessa atividade. Os escravos, evidente­
m ente, estão à disposição d o senhor: sua condição faz com que sejam
objetos sexuais a respeito dos quais n ão há n ad a a questionar; a tal
ponto que acontecia de se ach ar surpreendente que a m esm a lei p ro i­
bisse o estu p ro dos escravos e o das crianças; p ara explicar essa estra190
nheza, Ésquines diz q u e se quis m o strar, ao proibi-la até m esm o com
relação aos escravos, o q u a n to era grave a violência q u an d o ela se diri­
gia às crianças de b o a origem . N o que diz respeito à passividade da
m ulher, ela m arca m uito bem um a inferioridade de natureza" e de con­
dição; m as ela não deve ser rep ro v ad a com o c o n d u ta po sto que é, pre­
cisam ente, conform e ao que a natu reza quis e ao que o status im põe.
Em com pensação, tu d o aqu ilo que no co m p o rtam en to sexual poderia
ac arreta r p a ra um hom em livre - e ain d a m ais p ara um hom em que,
por sua origem , fo rtu n a, prestígio, ocu p a ou deveria o cu p ar posições
privilegiadas en tre os dem ais - as m arcas da inferioridade, d a d o m in a­
ção sofrida, d a servidão aceita, só p o d eria ser considerado com o ver­
gonhoso: e vergonha ain d a m aio r se ele se presta a ser objeto com pla­
cente d ó prazer do o u tro .
O ra, num jo g o de valores regu lad o segundo tais princípios, a p o ­
sição do rap az - do rap az de origem livre - é difícil. É evidente que ele
está ain d a num a posição “ in ferio r” , no sentido em que está longe de se
beneficiar dos direitos e dos p o deres que serão seus q u an d o tiver ad ­
quirido a plenitude de seu status. N ã o obstante, seu lugar n ão se super­
põe ao de um escravo, evidentem ente, nem ao de um a m ulher. Isso já é
verdade no contexto da casa e d a fam ília. U m a passagem de A ristó te­
les na Política o diz claram ente. A o tra ta r das relações de a u to rid a d e e
das form as de governo p ró p rias à fam ília, A ristóteles define, em rela­
ção ao chefe de fam ília, a p o sição d o escravo, a d a m ulher e a d o filho
(hom em ). G o v e rn ar escravos, d iz A ristóteles, n ão é governar seres li­
vres; g overnar um a m ulher é exercer um p o d er “ político” no qu al as
relações são de p erm an en te desigualdade; o governo dos filhos, em
troca, p ode ser d ito “ real” p o rq u e ele repousa “ sobre a afeição e a su­
perioridade d a idad e” .60 D e fa to , a faculdade de deliberação falta no
escravo; ela está presente na m u lh er, m as não exerce nesta a função de
decisão; no m enino, a falta diz respeito som ente ao grau de desenvolvi­
m ento que ain d a n ão atingiu seu term o. E se a educação m oral das
m ulheres é im p o rtan te posto q u e elas constituem a m etade d a p o p u la­
ção livre, a dos filhos hom ens o é ain d a mais; pois ela concerne aos fu­
turos cidadãos que p a rtic ip a rão n o governo da cidade.61 Vê-se bem : o
caráter p ró p rio da posição de um rapaz, a form a p articu lar de sua de­
pendência, e a m aneira pela q u a l se deve tratá-lo , m esm o n o espaço
onde se exerce o pod er considerável d o pai de fam ília, encontram -se
m arcados pelo status que será o seu no futuro.
O m esm o o corre, até certo p o n to , no jo g o das relações sexuais.
D entre os diversos “ o b jeto s” q u e são legitim ados, o rapaz o cupa um a
M>.
<>l.
ARISTO Ti:. Politique. I. 12. 1 259 a-b.
Ibid.. I. 1.1. I 2M) b.
\
191
posição p articu lar. C ertam en te ele n ão é um objeto proibido; em A te­
nas, certas leis protegem as crianças livres (co n tra os adultos que du­
ran te um certo tem po, pelo m enos, n ão terão o direito de en tra r nas es­
colas, c o n tra os escravos que fícam sujeitos à m o rte se procuram corrom pê-las, c o n tra pais o u tu to res que são pun id o s se as prostituem );“
m as nada im pede nem p roíbe que um adolescente seja aos olhos de to ­
dos o parceiro sexual de um hom em . N ão ob stan te, existe com o que
um a dificuldade intrínseca nesse papel: algo que ao m esm o tem po im ­
pede de definir claram en te e de bem precisar em que consiste esse p a­
pel na relação sexual e que, co n tu d o , atrai a aten ção sobre esse p o nto e
faz com que se a trjb u a um a gran d e im p o rtân cia e m uito valor ao que.
deve ou não se p assar nessa relação. Existe nisso tu d o , ao m esm o tem ­
po, com o que um p o n to cego e um p o n to de supervalorização. O papel
do rapaz é um elem ento p a ra o qual converge m u ita incerteza e um in­
teresse intenso.
Ésquines, no .Contra Timarco faz uso de u m a lei que é p o r si mes­
m a m uito interessante p o rq u e diz respeito aos efeitos de desqualifica­
ção cívica e pôiítica que a m á co n d u ta sexual de um hcm em - m ais
exatam ente a “ p ro stitu ição ” - p o d e acarretar, p o rq u e ela o proíbe, a
p a rtir daí, “ ser ad m itido na classe dos nove arcontes, exercer um sa­
cerdócio, executar as funções de ad v ogado públiôo” . A quele que se
p ro stituiu n ã c m ais p o d erá exercer q u alq u er m ag istratu ra n a cidade
ou no exterior, eletiva o u resultante de um sorteio. Ele n ão poderá
exercer as funções de tesoureiro nem as de em baix ad o r, nem tornar-se
acusador ou d en u n ciad o r assalariado daqueles que fazem parte de
um a em baixada. F inalm ente, ele n ã o m ais p o d erá expressar sua opi­
nião face ao C onselho o u ao povo, ain d a que seja “ o m ais eloqüente
dos o rad o res” .61 P o rtan to , essa lei faz d a p ro stitu ição m asculina um
caso de atim ia - de desonra pública - que exclui o cidadão de certas
responsabilidades.64 Porém , a m aneira pela q ual É squines conduz o
seu libelo, e busca, através d a discussão p ro p riam en te ju rídica, com ­
prom eter seu ad versário, m ostra bem a relação de incom patibilidade
“ m o ral” , assim com o legal, que é reconhecida en tre certos papéis se­
xuais no rapaz e certos papéis sociais e políticos n o adulto.
A arg u m en tação ju ríd ica de É squines consiste em en co ntrar, a
p artir da “ m á co n d u ta ” de T im arco, a testad a pelos rum ores, fofocas e
tèstem unhos, certos elem entos constitutivos d a p ro stituição (núm ero
de parceiros, ausência de escolha, p agam ento de serviço) en q u an to al-
(>2. Cr. as leis citadas por ESCH IN E no Contre Timarque.
63. Ibid.. 19-20.
64. K .J . DOVER (Homosexualité grecque, pp. 44-45) sublinha que o que era condenável não era a prostituição em si mesma; mas o fato de, tendo-se prostituído anteriorm en­
te. infringir as inelegibilidades que daí decorriam .
192
guns dos o u tro s elem entos faltam (seu registro com o pro stitu íd o e sua
passagem em algum a casa). Q u a n d o e ra jovem e b onito, ele passou
p o r inúm eras m ãos e nem sem pre b astan te ho n rad as, posto que foi vis­
to vivendo com um hom em de condição servil, e com um devasso no­
tó rio que vivia cercado de can to res e de to cadores de cítara; ele rece­
beu presentes, foi su sten tad o , to m o u p arte nas extravagâncias de seus
protetores; entre os quais ficaram conhecidos C idônides, A utóclides,
T hersande, M igolas, A nticles, P ittólacos, Hegésicles. P o rta n to , n ã o é
possível apenas dizer que ele viveu ten d o ligações (hetairêkõs), m as sim
que ele se “ p ro stitu iu ” (peporneumenos); “ pois aquele que se en treg a a
essas práticas sem escolher, com to d o m uiido e em tro co de um salá­
rio, é bem p o r esse crim e - n ão é verdade? - que ele deve responder” .65
M as a acusação funciona tam bém num d iap asão m oral que não
perm ite sim plesm ente estabelecer o delito m as sim com prom eter glo­
bal e politicam ente o adversário . T alvez T im arco n ão ten h a sido for­
m alm ente um p ro stitu íd o profissional; m as ele é o u tra coisa, e n ão um
desses hom ens respeitáveis q u e não escondem seu gosto pelos am ores
m asculinos e que m antêm , com o s rapazes livres, relações hon ro sas e
preciosas p a ra o jovem parceiro: É squines reconhece que ele p ró p rio
co m p artilh a de bom g rad o dessa espécie de am or. Ele descreve T im ar­
co com o um hom em que, no curso de sua juven tu d e, colocou-se a si
p ró p rio e m ostrou-se a to d o s na posição inferior e hum ilhante de um
objeto de prazer p a ra os o u tro s; ele quis, p ro cu ro u , deleitou-se e bene­
ficiou-se com esse papel. E é isso que Ésquines sublinha, diante de seus
ouvintes, com o m oral e p o liticam ente incom patível com as responsa­
bilidades e o exercício d o p o d er na cidade. U m hom em que foi m arca­
do pelo papel no qual ele se com p razia em sua ju v en tu d e não saberia
agora desem penhar, sem escândalo, o papel daquele que, na cidade, é
superior aos o u tro s, lhes d á am igos, aconselha-os em suas decisões, di­
rige-os e os representa. O q u e é difícil de ser aceito p a ra os atenienses tal é, no discurso c o n tra T im arco , o sentim ento que Ésquines ten ta fo­
m en tar - n ão é que não pudesse ser g o v ernado p o r alguém que am a os
rapazes ou que, q u an d o jo v em , foi am ad o p o r um hom em ; m as sim
que n ã o se pode aceitar a a u to rid a d e de um chefe que se identificou
o u tro ra com o papel de o b jeto de p razer p a ra o s o u tro s.
A liás, é p ara esse sen tim en to que A ristófanes tinha apelado tão
frequentem ente em suas com édias; o p o n to d a ridicularização e que
devia escandalizar é q u e esses o ra d o re s, esses chefes seguidos e am a­
dos, esses cidadãos que buscavam seduzir o povo p a ra se colocar aci­
m a dele e dom iná-lo, C leonte de C listenes com o A gírrios, eram tam ­
bém os hom ens que tin h am aceito, e aceitavam ain da, desem penhar
65.
ESCH IN E, Contre Timarque, 52.
193
p ara os o u tro s o papel de objetos passivos e com placentes. E A ristófanes ironizava essa dem ocracia ateniense onde m ais o p o rtu n id a d e se ti­
nha de ser ouvido na A ssem bléia q u an to m ais gosto se tivesse pelos
prazeres dessa espécie.66 D o m esm o m odo, e com o m esm o espírito,
Diógenes ridicularizava D em óstenes e os seus costum es, ele que pre­
tendia ser o co n d u to r (o demagogos) d o povo ateniense.67 Q uando, no
jo g o das relações de prazer, desem penha-se o papel d o dom inado, não
se poderia o cu p ar, de m aneira válida, o lugar do d o m in an te no jogo da
atividade cívica e política.
Pouco im p o rta o que poderia haver, na realidade, de justificação
p ara essas sátiras e essas críticas. H á, pelo m enos, um a coisa que elas
claram ente indicam , apenas pelo fato de existirem : é a dificuldade,
nessa sociedade que adm itia as relações sexuais en tre hom ens, provo­
cada pela ju stap o sição en tre um a ética d a superio ridade viril e um a
concepção de q u alq u er relação sexual segundo o esquem a da p en etra­
ção e da dom in ação do m acho; a conseqüência disso consiste, p o r um
lado, em que o papel da “ atividade” e da d om inação é afetado p o r va-1
lores constan tem en te positivos m as, p o r o u tro , é necessário a trib u ir a
um dos parceiros no a to sexual a posição passiva, d o m inada e inferior.
E em bora n ão haja problem a q u a n d o se tra ta de um a m ulher ou de um
escravo, o m esm o n ão acontece q u an d o se tra ta de um hom em . É sem
dúvida a existência dessa dificuldade que explica, a o m esm o tem po, o
silêncio no q ual a relação en tre os ad u lto s foi efetivam ente envolta, e a
baru lh en ta desqualificação daqueles que ju stam en te rom pem com esse
silêncio ao m arcarem sua aceitação, o u m elhor, sua preferência p o r
esse papel “ in ferio r” . É igualm ente em função dessa dificuldade que
to d a a aten ção foi co n cen trad a n a relação en tre h om ens e rapazes,
posto que, nessa relação, um dos parceiros, p o r sua ju v en tu d e e pelo
fato de n ã o ter ain d a atingido um status viril, p ode ser, p o r um tem po
que se sabe breve, o bjeto aceitável de prazer. M as, em b o ra o rapaz,
p o r seu p ró p rio en can to , possa ser p a ra os hom ens u m a presa que eles
perseguem sem q u e h aja escândalo nem pro b lem a, é preciso não es­
quecer que ele terá um dia que ser hom em , terá que exercer poderes e
responsabilidades, n ão p odendo, evidentem ente, ser m ais objeto de
prazer: m as em que m edida pod erá tê-lo sido?
D aí o que se p o d eria ch am ar “ an tin o m ia do ra p a z ” n a m oral gre­
ga dos aphrodisia. P o r um lado, o jovem é reconhecido com o objeto de
prazer - e até m esm o com o o único objeto h o n ro so e legitim o dentre
os parceiros m asculinos d o hom em ; jam ais se rep ro v ará alguém p o r
66. A R ISTO PH A N E , Cavaliers, v. 428 sq. Assemblée des femmes, v. 112 sq. Cf. F.
B U F FIÊ R E , Êros adolescent, pp. 185-186.
67. D IO G Ê N E L A E R C E, Vie des philosophes, VI, 2, 34.
194
am ar um rapaz, desejá-lo e gozar com ele, c o n tan to que as leis e as
conveniências sejam respeitadas. M as, p o r o u tro lado, o rapaz, posto
que sua ju v en tu d e deve levá-lo a ser hom em , n ão po d e aceitar assum irse com o objeto nessa relação, que é sem pre pensada sob a form a da
dom inação: ele n ão p ode nem deve se identificar com esse papel. Ele
não poderia ser de bom g rad o , a seus p ró p rio s olhos e p a ra si pró p rio ,
esse objeto de prazer, ao passo que o hom em gosta de escolhê-lo, n a tu ­
ralm ente, com o objeto de prazer. Em sum a, experim entar volúpia, ser
sujeito de p razer com um rap az n ão con titu i p roblem a p a ra os gre­
gos; em com pensação, ser objeto de prazer e se reconhecer com o tal
constitui, p ara o rapaz, um a dificuldade m aior. A relação que ele deve
estabelecer consigo m esm o p a ra vir a ser um hom em livre, senhor de si
e capaz de vencer os o u tro s, n ão p o d eria estar em consonância com
um a form a de relação n a q ual ele fosse objeto de prazer p ara um o u ­
tro . Essa n ão -consonância é m oralm ente necessária.
U m a tal dificuldade explica certos traços p ró p rio s da reflexão
sobre o am or pelo rapaz.
E, em prim eiro lugar, u m a oscilação, p a ra nós b astante enigm áti­
ca, a p ro p ó sito do caráter n atu ral o u “ a n tin a tu ra l” desse am or. P or
um lado, é d a d o p o r certo q u e o m ovim ento que atrai p a ra os rapazes
é n atu ral, com o to d o m ovim ento que faz derivar o que é belo. C o n tu ­
do, n ão é de to d o excepcional en co n trar a afirm ação de que a relação
entre dois hom ens, ou m ais geralm ente, en tre dois indivíduos do m es­
m o sexo, seja para phusin, ex tran atu reza. Pode-se, evidentem ente, con­
siderar que são duas opiniões que m arcam duas atitudes: um a favorá­
vel e o u tra hostil em relação a essa espécie de am or. M as a p ró p ria
possibilidade dessas duas apreciações se inscreve provavelm ente no
fato de que, adm itindo-se m anifestam ente com o n atu ral o ter prazer
com um rapaz, é m u ito m ais difícil aceitar co m o n atu ral aq u ilo que faz
do rap az um o b jeto de prazer. D e form a que se pode fazer a objeção
de ser para phusin - já que ele fem in iza um dos parceiros - o p ró p rio
a to que se desenrola en tre dois individuos m asculinos, ao passo que o
desejo que se p ode ter pela beleza n ã o deixa de ser considerado n a tu ­
ral. Os cínicos não eram ad versários d o am ó r pelos rapazes, m esm o se
eles ridicularizavam , com m u ita gana, to d o s os rapazes' que, p o r sua
passividade, aceitam decair de sua p ró p ria natu reza e tornar-se, assim ,
“ piores d o q u e eram ” .“ Q u a n to a P latão, n ã o é necessário su p o r que,
p artid á rio n a sua ju v en tu d e d o am o r m asculino, em seguida “ to m o u
juízo” a p o n to de condená-lo n os seus últim os textos, defínindo-o
com o um a relação “ a n tin a tu ra l” . É preciso n o ta r, antes de m ais nada,
que no início das Leis, q u a n d o ele o põe a relação com as m ulheres
68.
Ibid., VI, 2, 59 (cf. tam bém 46 e 54).
195
com o um elem ento de natu reza à relação entre hom ens (ou e n tre m u­
lheres) com o um efeito da incontinência (akrasia), ele se refere a o p ró ­
prio ato da cop u lação (previsto pela n atu reza p a ra a p ro criação), e
pensa nas instituições susceptíveis de favorecer ou de perverter os cos­
tum es dos cid ad ão s.69 D o m esm o m odo, no livro V III, onde* ete focali­
za a necessidade - e a dificuldade - de u m a lei co ncernente às relações
sexuais, os argum entos que privilegia dizem respeito ao que po d e exis­
tir de nocivo em “ usar com o m ulheres” hom ens e rapazes na c o n ju n ­
ção sexual (m ixis aphrodision): de que m aneira p o d eria se fo rm ar “ um
caráter corajoso, v i'il” (to tes andreias ethos) naquele qtte é seduzido?
E “ um espírito de tem p eran ça” no sedutor? “ T o d o m u n d o rep ro v ará a
lassidão daquele q u e cede aos prazeres e que não p ode resistir” e “ na­
quele que p ro cu ra im itar a m ulher, to d o m u n d o rep ro v ará a im agem
dem asiado sem elhante à dela que ele assum e” .70
A dificuldade em pensar o rap az com o objeto de prazer se trad u z
tam bém p o r u m a série de reticências m u ito m arcadas. R eticência em
evocar diretam en te, e nos p ró p rio s term os, o papel do rap az n a rela­
ção sexual: um as vezes serão utilizadas expressões to talm en te gerais,
tais com o fazer a coisa (diaprattesthai to pragm a),1' o u tras vezes ela é
designada através d a p ró p ria im possibilidade em nom eá-la,72 o u tra s
vezes aind a - e aí reside o m ais significativo do problem a colocado p o r
essa relação - fazendo apelo a term os que dizem respeito a m etáforas
“ agonísticas” o u políticas - “ ceder” , “ se subm eter” (hupêretein), “ se
colocar a serviço” (therapeuein, hupourgein).73
Reticência, igualm ente, p a ra ad m itir que o rap az possa sentir p ra ­
zer. Essa “ denegação” deve ser to m ad a, ao m esm o tem po, com o a
afirm ação de que um ta l prazer n ão p o d eria existir, e a prescrição de
que ele n ão deve ser experim entado. A o ter que explicar p o r que tã o
freqüentem ente o a m o r se tran sfo rm a em ó d io q u a n d o passa pelas re­
lações físicas, Sócrates, no Banquete de X enofonte, evoca a co n trarie­
dade que p ode haver, p a ra um jovem , em ter relação (homilein) com
um hom em que com eça a envelhecer. M as ele acrescenta logo com o
princípio geral: “ U m rapaz, aliás, n ão p articip a com o u m a m ulher das
volúpias am o ro sas de um hom em , m as perm anece com o espectador jeju n o de seu a rd o r sensual” .74 E n tre o hom em e o ra p az n ã o há - não
69. PLATON , Lois, 1, 636 b-c.
,
70. Ibid., VIII, 836 c-d. N o Fedro, a form a física da relação onde o homem se conduz
“ com o anim al de quatro p atas” é dita “ antinatural” (250 e).
71. O u diaprattesthai, cf. Phèdre, 256 c.
72. X É N O PH O N , Banquet, IV, 15.
73. X É N O PH O N , Hièron, 1 e VII; ou PLATON , Banquet,184 c-d. Ver K. J. DOVER,
Hom osexualité grecque, p. 62.
74. X É N O PH O N , Banquet, VIII, 21.
196
pode e não deve haver - com unidade de prazer. O a u to r dos Problemas
só adm itirá a possibilidade desse p razer em alguns indivíduos às custas
de um a irregularidade an atô m ica. E ninguém é tã o severam ente con­
d enado com o os rapazes que m anifestam , p o r sua facilidade em ceder,
pela m ultiplicidade de suas ligações, ou ainda, p o r sua po stu ra, sua
m aquiagem , seus ad o rn o s ou seus perfum es, que eles podem en co n trar
prazer em desem penhar esse papel.
O que não significa, co n tu d o , q u an d o acontece do rapaz ceder,
que ele deva fazê-lo de certa form a na to tal frieza. A o co n trário , ele só
deve ceder se experim enta, p o r seu am ante, sentim entos de adm iração
ou de reconhecim ento e afeição, que lhe fazem desejar dar-lhe prazer.
O verbo charizesthai é correntem ente em pregado p a ra designar o fato
de que o rap az “ aceita” e “ concede seus favores” .75 A p alav ra indica
bem que, d o am ad o ao am an te existe o u tra coisa que n ã o um a sim ples
“ rendição” ; o jovem “ concede seus favores” p o r um m ovim ento que
consente a um desejo e a um a dem an d a do o u tro , m as que não é da
m esm a natureza. É um a resposta; n ão é o co m p artilh ar de um a sensa­
ção. O rapaz não tem que ser o titu lar de um p razer físico; ele nem
m esm o tem que ter p razer com o prazer do hom em ; ele tem é que res­
sentir um co n ten tam en to em d a r prazer ao o u tro se ele cede q u an d o
convém , isto é, sem dem asiada p recipitação nem com dem asiada con­
trariedade.
A relação sexual com o rap az d em anda, p o rta n to , da p a rte de
cada um dos parceiros, co n d u tas particulares. C om o conseqüência do
fato de que o rap az não pode se identificar com o papel que ele tem
que desem penhar, ele deverá recusar, resistir, fugir e esquivar-se;76 será
tam bém necessário que ele estabeleça condições p a ra o consentim ento,
se no final das contas ele o concede, que dizem respeito àquele a quem
ele cede (seu valor, status, virtude) e o benefício que ele pode esperar
dessa relação (benefício vergonhoso, se som ente se tra ta r de dinheiro,
m as honro so se o que está im plicado for a^aprendizagem do ofício de
hom em , apoios sociais p a ra o fu tu ro , ou um a am izade durável). E são,
justam en te, benefícios dessa espécie que o am an te deve poder forne­
cer, além dos presentes m ais estatu tário s que convém d ar (e cuja im ­
p ortância e valor variam com a condição dos parceiros). D e m odo que
o ato sexual, na relação en tre um hom em e um rapaz, deve ser to m ad o
num jogo de recusas, de esquivas e de fuga que tende a adiá-lo o m ais
possível, mas tam bém num processo de trocas que fixa q u an d o , e em
que condições, é conveniente que ele se produza.
75.
7(>.
IM .A T O N . Banquet, 1X4 e.
Ihul.. 1X4 a.
197
Em sum a, o rapaz d á p o r com placência e, p o rta n to , p o r o u tra
coisa que n ão o seu p ró p rio prazer, algo que seu parceiro busca pelo
prazer que nessa relação ele obterá: m as este últim o não pode pedi-lo
legitim am ente sem a c o n tra p a rtid a de presentes, de benefícios, de pro­
m essas e de engajam entos que são de o u tra ordem do que o “ dom ”
que lhe é feito. D aí essa tendência tã o m anifestam ente m arcada na re­
flexão grega sobre o am o r pelos rapazes: de que m aneira integrar essa
relação num co n ju n to m ais am plo è perm itir-lhe transform ar-se em
o u tro tipo de relação: um a relação estável o nde a relação física não te­
rá m ais im p o rtân cia, e onde os dois parceiros p o d erão co m p artilh ar os
m esm os sentim entos e os m esm os bens? O am o r pelos rapazes não
pode ser m o ralm ente h o n rad o , a n ão ser que ele co m p o rte (graças aos
benefícios razoáveis do am an te e graças à com placência reservada do
am ado) os elem entos que constituem os fu ndam entos de um a transfor­
m ação desse am o r num vínculo definitivo e socialm ente precioso, o de
philia.
E staríam os enganados se acreditássem os que os gregos, posto que
eles não interditavam esse gênero de relação, n ão se inquietavam com
suas im plicações. M ais do que qualquer o u tra relação sexual, e stalh e s
“ interessava” e tu d o evidencia que eles se preocupavam com ela. M as
pode-se dizer que, num pensam ento com o o nosso, a relação entre dois
indivíduos do m esm o sexo é q uestionada, antes de m ais nada, do pon­
to de vista do sujeito d o desejo: com o pode acontecer que num hom em
se form e um desejo que tem p o r objeto um o u tro hom em ? E sabe-se
que é do lado de um a certa estfu tu ração desse desejo (do lado de sua
am bivalência ou de sua ausência) que se p ro c u ra rá o princípio de u na
resposta. A preo cu p ação dos gregos, em tro ca, n ão dizia respeito ao
desejo que p o d ia levar a esse tipo de relação, nem ao sujeito desse de­
sejo; sua inquietação se dirigia p ara o objeto do p razer ou, m ais exata­
m ente, p a ra esse objeto na m edida em que, chegado o m om ento, ele te­
ria que ser o senhor no prazer que se tem com os o u tro s e no poder que
se exerce sobre si m esm o.
É nesse p o n to d a p roblem atização (com o fazer, d o objeto de p ra­
zer, o sujeito sen h o r de seus prazeres?) que a erótica filosófica ou, em
to d o caso, a reflexão so crático-platônica sobre o am or terá seu p o n te
de partid a.
198
CAPÍTULO V
O VERDADEIRO AMOR
É da E rótica, en q u an to arte refletida do am or (e singularm ente do
am or pelos rapazes) que esse capítulo tra ta rá ainda. M as ela será foca­
lizada aqui com o contexto de desenvolvim ento do q u a rto dos grandes
tem as de austeridade que p ercorreram , ao longo de sua história no
m undo ocidental, a m oral dos prazeres. A pós a relação com o corpo e
com a saúde, após a relação com a m ulher e com a instituição do casa­
m ento, após a relação com o rapaz, sua liberdade e sua virilidade, fo­
calizadas com o m otivos de p roblem atização da atividade sexual, eis
agora a relação com a verdade. Pois aí se encontra um dos pontos mais
notáveis da reflexão grega sobre o am o r pelos rapazes: não som ente
ela evidencia de que m aneira, pelas razões que já vim os, esse am or
constituía um p o n to difícil, que exigia um a elaboração da co nduta e
um a estilização bem delicada do uso dos aphrodisia; com o tam bém foi
sobre esse tem a que se desenvolveu a questão das relações entre uso
dos prazeres e acesso à verdade, sob a form a de um a interrogação
sobre o que deve ser o verdadeiro am or.
N as cultu ras cristã e m oderna essas m esm as questões - da verda­
de, do am o r e do p razer - serão relacionadas m uito m ais facilm ente
com os elem entos constitutivos da relação hom em -m ulher: os tem as
da virgindade, das bodas espirituais, da alm a esposa m arcarão bem
cedo o deslocam ento efetuado de um a paisagem essencialm ente m as­
culina - h ab itad a pelo erasta e pelo erôm eno - p ara um a o u tra, m arca­
da pelas figuras da fem inidade e da relação entre os dois sexos.1 M uito
I. O que não quer dizer que as figuras do am or masculino tenham desaparecido intei­
ramente. Cf. J. BOSWELL. Christianity, social tolerance, and homosexuality.
201
m ais tard e, o Fausto será um exem plo d a m aneira pela qual a questão
do prazer e a d o acesso ao conhecim ento se en co n tram ligadas ao tem a
do am o r pela m ulher, de sua virgindade, de sua pureza, de sua queda e
de seu p o d er redentor. N os gregos, ém tro ca, a reflexão sobre os víncu­
los recíprocos entre o acesso à verdade e a austeridade sexual parece
ter sido desenvolvida, so b retu d o , a p ro p ó sito d o am o r pelos rapazes.
E videntem ente, é preciso levar em co n ta o fato de que poucas coisas
perm aneceram d aquilo que, nos m eios pitagóricos d a época, foi dito e
prescrito sobre as relações entre a p ureza e o conhecim ento; é preciso
ter em co n ta, tam bém , o fato de que n ã o conhecem os os tratad o s
sobre o am o r escritos p o r A ntístenes, D iógenes, o C ínico, A ristóteles
ou T eofrasto . P o rtan to , seria im prudente generalizar as características
próprias à d o u trin a so crático-platônica, su p o n d o que ela resum e por
si só to d as as form as que a filosofia d o E ros to m o u na G récia clássica.
N ão resta dúvida que ela perm aneceu d u ra n te m uito têm po um pólo
da reflexão, com o bem o m ostram textos com o o diálogo de Plutarco,
os Am ores d o pseudo-L uciano o u os discursos de M áxim o de Tiro.
Em to d o caso, tal com o se en co n tra no Banquete ou no Fedro, e
graças às referências que faz às o u tras m aneiras de discorrer sobre o
am or, pode-se ver q ual a distância que a separa d a erótica corrente,
que se in terroga sobre a b o a c o n d u ta recíproca d o jovem e de seu pre­
tendente, e sobre a m aneira pela q ual ela pode se conciliar com a hon­
ra. Pode-se ver tam bém com o, m esm o ao se en raizar profundam ente
nos tem as hab itu ais d a ética dos prazeres, ela abre questões cuja im­
p o rtân cia será, a p a rtir daí, m uito grande p a ra a tran sfo rm ação dessa
ética n u m a m oral d a renúncia, e p a ra a constituição de um a herm e­
nêutica d o desejo.
T o d a u m a g ran d e p a rte d o Banquete e d o Fedro é consagrada à
“ repro d u ção ” - im itação o u pastiche - daquilo que se diz habitual­
m ente nos ilisc u rso s so b re o a m o r: ta is são os “ discu rso stestem unhos” de F edro, de Pausânias, dê Erixím aco, de Á gaton no
Banquete; o u o de Lísias no Fedro, bem co m o o prim eiro contradiscurso irônico que Sócrates propõe. Eles to rn am presente o pan o de
fundo d a d o u trin a platônica, a m atéria-p rim a que P latão elabora e
tran sfo rm a q u an d o ele substitui a problem ática d a “ co rte ” e d a h o nra
p o r aquela d a verdade e d a ascese. N esses discursos-testem unhos, um
elem ento é essencial: através do elogio do am o r, de sua potência, de
sua divindade, volta sem pre a questão d o consentim ento: deve o jovem
ceder? A quem ? E em que condições e com quais garantias? E aquele
que o am a, pode legitim am ente desejar vê-lo ceder facilm ente? Q ues­
tão característica de um a E rótica concebida com o arte d a ju sta entre
aquele q u e corteja e aquele que é cortejado.
É essa questão q u e aparece sob a fo rm a de um princípio absoluta­
m ente geral e agradavelm ente tautológico n o prim eiro discurso do
202
Banquete em Á gaton: “ às coisas vis (aischrois) se liga a desonra (aischunê), às belas, o desejo de estim a” ;2 m as logo P ausânias retom a com
m ais seriedade, distinguindo os dois am ores, aquele “ que diz respeito
som ente à realização do a to " e aquele que, antes de m ais n ad a, quer
fazer a experiência da alm a.' Pode-se ain d a n o ta r que, no Fedro, os
dois discursos iniciais - aqueles que serão rejeitados, um n u m a reto ­
m ada irônica e o o u tro num a palin ó d ia re p a ra d o ra - colocam , cada
um à sua m aneira, a q u estão de “ a quem ceder?” ; e que eles a isso res­
pondem dizendo que convém ceder àquele que am a. E to d o s esses p ri­
m eiros discursos apelam p ara um a tem ática com um ; a dos am ores fu­
gidios que se rom pem q u an d o o am ad o fica m ais velho e o deixam nó
ab an d o n o ;4 a das relações desonrosas que colocam o rapaz sob a de­
pendência do am a n te ,' que o com prom etem aos olhos de todos, que o
desviam de sua fam ilia ou de relações honrosas das quais ele poderia
tirar proveito;6 a dos sentim entos repugnantes e de desprezo que o
am an te p ode ter p ara com o p rap az pelas p ró p rias com placências que
este lhe concede o u d o ódio que o jovem pode experim entar pelo ho­
mem envelhecido que lhe im põe relâções que n ão ag rad am ;’ a do papel
fem inino que o rapaz é levado a assum ir, e os efeitos de deterioração
física e m oral que são exigidos p o r essa espécie de relação;“ a das re­
com pensas, benefícios e serviços, freqüentem ente pesados, que o
am ante deve se im p o r e dos quais ele ten ta livrar-se deixando seu a n ti­
go am igo na vergonha e na solidão.'1T u d o isso constitui a pro b lem áti­
ca elem entar dos prazeres e de seu uso no am o r pelos rapazes. A s con­
veniências, as práticas da corte e os jog o s regulados do am o r tentam
responder a essas dificuldades.
Podem os pen sar que o discurso de A ristófanes no Banquete é um a
exceção: ao falar sobre a divisão dos seres prim itivos pela cólera dos
deuses e sua separação em d uas m etades (m acho e fêmea, ou am bas do
m esm o sexo, conform e o indivíduo fosse, na sua origem , andrógino ou
inteiram ente m asculino ou fem inino), ele parece ir além dos problem as
da arte de cortejar. C oloca a questão do que é o am or em seu princí­
pio: e pode passar por um a abordagem divertida - ironicam ente colo-
2. 1*1 A T O N . Banquet. 17S d . S o b r e o s d is c u r s o s d o Banquete, cf. L U C B R I S S O N . in
Dictionnaire t/es mythologies, s.v . H ros.
3. Banquet. INI b -d .
4. Ihid.. I S3 d -e ; Phèdre 231 a -2 3 3 a.
5. l’l.A T O N . Banquet. 1X2 a: Phèdre. 239 a.
Phèdre. 231 c-2 3 2 a: 2 3 9 e -2 4 0 a.
7. Ihid.. 241) d .
•s. Ihid.. 2.W c-d .
Ihid.. 241 a-c.
203
cada na boca de A ristófanes, o velho adversário de Sócrates - das pró­
prias teses de Platão. N ão é que nela os en am o rad o s buscam sua m eta­
de perdida, com o as alm as de P latão m antêm a lem brança e a nostal­
gia daquilo que foi sua pátria? E ntretan to , p ara se ater aos elem entos
do discurso que concernem ao am o r m asculino é claro que tam bém
A ristófanes tende a responder à questão d o consentim ento. E o que
faz a singularidade um ta n to escandalosa de seu discurso, e sua ironia,
é que a sua resposta é totalm ente positiva. O u m elhor, ela abala, atra ­
vés de sua n arrativ a m ítica, o princípio tão geralm ente aceito de uma
dissim etria de idade, de sentim ento, de co m p o rtam en to entre o am an­
te e o am ado. Ele estabelece entre eles sim etria e igualdade posto que
os faz surgir da divisão de um ser único; o m esm o prazer e o mesmo
desejo levam o erasta e o erôm eno um p a ra o o u tro ; se ele é, por natu ­
reza, um a m etade de m acho, o rap az am ará os hom ens: terá “ prazer”
em “ d o rm ir com os m achos” e a “ ficar entrelaçado com eles” (sumpeplegmenoi)."' E com isso, em vez de revelar u m a natureza fem inina, ele
m ostra que nada m ais é d o que a “ téssera” de um ser inteiram ente vi­
ril. E P latão se diverte em fazer A ristófanes inverter a reprovação que,
em suas com édias, este fizera tã o freqüentem ente aos hom ens políticos
de A tenas: “ ao term inarem sua form ação, os indivíduos dessa espécie
são os únicos a se revelar hom ens p o r suas aspirações políticas” ." Em
sua juv en tu d e, eles se deram a hom ens p o rq u e p rocuravam sua m etade
de m acho; pela m esm a razão, to rn ad o s adultos, eles p ro cu rarão os ra­
pazes. “ A m ar os rapazes” , “ g o star dos am an tes” (se rpaiderastês e philerastês),'1 são duas vertentes do m esm o ser. À questão tradicional do
consentim ento A ristófanes dá, pois, um a resposta direta, simples, in­
teiram ente positiva, e que abole ao m esm o tem po o jo g o das dissimetrias que organizava as relações com plexas entre o hom em e o rapaz:
to d a a questão do am o r e da co n d u ta a ser m an tid a nada m ais é então
do que reen co n trar a sua m etade perdida.
O ra, a Erótica, so crático-platônica é p ro fu n d am en te diferente:
não som ente pela*solução que pro p õ e, com o tam bém , e sobretudo,
porqu e tende a colocar a questão to talm en te em o u tro s term os. N ão se
tra ta rá m ais, p a ra saber o que é o verdadeiro am or, de responder à
questão: quem convém am ar e em que condições o am or pode ser hon­
roso tan to p a ra o am ad o com o p a ra o am ante? O u , pelo m enos, todas
essas questões se e n c o n tra rão sub o rd in ad as a um a o u tra, prim eira e
fundam ental: o que é o am o r em seu ser m esm o?13
*
10.
11.
12.
13.
204
PLATON, Banquet, 191 e.
Ibid., 192 a.
Ibid.. 192 b.
Sobre a resposta de Sócrates a Aristófanes, cf. Banquet, 205 e.
Para se ter a m edida da elab o ração platônica, e a distância que a
separa da erótica corrente, podem os lem brar a m aneira pela qual X e­
nofonte responde a essa m esm a questão: ele ressalta os elem entos tra ­
dicionais: a oposição entre o am o r que só pro cu ra o prazer do am ante
e aquele que se interessa pelo p ró p rio am ado; a necessidade de tran s­
form ar o am o r fugidio em um a am izade igualitária, recíproca e d u ra ­
d oura. N o Banquete e nos M emoráveis, X enofonte apresenta um Só­
crates que estabelece um a linha de dem arcação rigorosa entre o am or
da alm a e o am or do c o rp o ,14 desqualifica nele m esm o o am or do còrp õ ,1' faz do am o r da alm a o am o r verdadeiro, e busca na am izade, na
philia, o princípio que dá valor a to d a relação (sunousia)."' D aí se segue
que não basta associar o am or da alm a àquele do corpo; é preciso li­
bertar toda afeição de suas dim ensões físicas (q u ando se am a “ o corpo
e a alm a ao m esm o tem p o ” , é o prim eiro que predom ina, e a perda do
frescor da ju v en tu d e faz passar a p ró p ria am izade);'7 deve-se, com o
Sócrates dá a lição, fugir de to d o s os co n tato s, renunciar aos beijos
que são de m olde e en trav ar a alm a, fazer m esm o de m aneira que o
corpo não toque no corp o e dele n ã o sofra “ a ferida” .'* Em tro ca, toda
relação deve edificar-se sobre os elem entos constitutivos da am izade:
benefícios e serviços prestados, esforços p ara o aperfeiçoam ento do ra­
paz am ado, afeição recíproca, vínculo perm anente e estabelecido um a
vez p o r to d a s.1'* Isso quereria dizer que p ara X enofonte (ou p a ra o Só­
crates que ele põe em cena) não poderia haver entre dois hom ens ne­
nhum Eros, m as som ente um a relação de philia? É esse ideal ju sta m e n ­
te que X enofonte crê p o d er reconhecer na E sparta de L icurgo.2“ Lá, os
hom ens apaixonados pelos corpos dos rapazes eram , segando ele, de­
clarados “ infam es” ao passo que se louvava e encorajava vos adultos
“ honestos” que só am avam a alm a dos jovens e aspiravam som ente a
torná-los am igos; de form a que na Lacedem ônia “ os am antes não
eram m enos contidos em seu a m o r pelas crianças que os pais pelos
seus filhos, o u os irm ãos pelos seus irm ãos” . M as, no Banquete, X eno­
fonte ap resenta um a imagem m enos esquem ática dessa dem arcação.
Ele esboça um a concepção do Eros e de seus prazeres que teria p o r obje to a p ró p ria am izade: X enofonte não faz dessa am izade, daquilo que
ela pode co m p o rta r de vida com um , de atenção recíproca, de benevo­
lência de um p a ra com o o u tro , de sentim entos com partilhados, o
14.
15.
16.
17.
IX.
19.
20.
X ÉN O PH O N , Banquei, VIII, 12.
Ibid., VIII, 25.
Ibid., V III, 13.
Ibid., VIII, 14.
Ibid.. IV, 26; cf. tam bém Mémorables, 1, 3.
X ÉN O PH O N , Banquet, VIII,
18.
Id., République des lacédémoniens, II, 12-15.
205
substituto do am or ou algo que lhe dê seqüência no m om ento o p o rtu ­
no; ele faz da am izade aquilo m esm o p o r que os am antes devem se
enam orar: erõntes tes philias, diz ele num a expressão característica que
perm ite salvar o Eros, m anter-lhe a força mas d ando-lhe por conteúdo
concreto apenas as co n d u tas de afeição recíproca e d u rad o u ra com ­
preendidas na am izade.21
A erótica platônica é constituída de m odo bem diverso, mesmo se
o p o nto de p artid a da reflexão está na questão fam iliar do lugar a ser
dado aos aphrodisia na relação de am or. M as é p o rque ju stam ente Pla­
tão só retom a essas interrogações tradicionais p a ra m ostrar de que
m aneira, nas respostas apressadas que a elas se dá, dcixa-se escapar o
problem a essencial.
Os dois discursos do Fedro, o de Lísias, inocente, e o de Sócrates,
gozador, sustentam que um rapaz não deveria ceder àquele que o ama.
Tais propósitos, observa Sócrates, não poderiam dizer a verdade:
" N ã o há verdade num a linguagem (ouk esti etum os logos) que, sendo
adm itida a existência de um en am orado, preten d erá que é àquele que
não am a que se deve de preferência conceder seus favores, e isso
pelo m otivo de que o prim eiro está em delírio e o segundo com os sen­
tidos em rep o u so ” .” O s discursos do início do Banquete, em oposição
a isso e com mais preocupação em louvar o am o r do que ofendê-lo,
afirm am que é belo ceder se isso se faz, com o convém , a um am ante de
valo r,’1que n ão há n ad a de im pudico nem vergonhoso nisso, e que sob
a lei do am o r “ o bom g rad o se afina com o bom g ra d o ” .;j Esses discur­
sos por serem m ais respeitosos p ara com o am o r não são mais etumoi
do que os de Lísias e de seu censor irónico no Fedro.
Face a eles, as palavras de D iotím ia, relatadas no Banquete, e a
grande fábula do Fedro, contada pelo p ró p rio Sócrates, aparecem
com o discursos etum oi: discursos verdadeiros e ap arentados, por sua
origem , à verdade que dizem. Em que eles o são? O nde está a diferença
com os elogios ou as desqualificações que os precediam ? A diferença
não está no fato-de que D iotím ia ou Sócrates são m ais rigorosos ou
m ais austeros do que os o u tro s interlocutores; eles não se opõem a es­
tes po rq u e estes últim os seriam dem asiado com placentes e concede­
riam aos corpos e aos prazeres um lugar excessivo num am or que só
deveriam dedicar às alm as. Eles se sobressaem p o rque não colocam o
problem a com o os o u tro s; eles operam um certo núm ero de tran sfo r­
m ações e deslocam entos essenciais em relação ao jogo de questões tra ­
dicionais nos debates sobre o am or.
21.
22.
23.
24.
206
Id.. Banquei. VIII, 18.
PLATON, Phèdre. 244 a.
PLATON , Banquet. 184 e; 185 b.
Ibid.. 196 c.
1. Passagem da questão da conduta amorosa à
interrogação sobre o ser do amor.
N o d eb ate tal com o os o u tro s discursos o form ulam , o am o r e o
m ovim ento tã o intenso e tão fo rte que a rre b a ta o am ante são pressu­
postos; o p o n to essencial da preo cu p ação é en tão saber - “ adm itindose” esse a m o r25 - de q u e m aneira os dois parceiros deverão se c o n d u ­
zir: com o, sob que form a, até que p o n to , em pregando quais m eios de
^ p e rs u a s ã o , o u d an d o que p rovas de am izade, o enam o rad o deverá p ro ­
cu rar atingir “ ao que ele asp ira” ; e com o, em quais condições, após
quais resistências e p rovas o am ad o , p o r seu lado, deverá ceder. Q ues­
tã o de co n d u ta sobre o fundo de um am o r preexistente. O ra, D iotím ia
e Sócrates se interrogam sobre o p ró p rio ser desse am or, sua natureza
e origem , o q u e constitui sua força e o que o conduz com um a tal obs­
tinação o u u m a tal lo u cu ra p a ra seu objeto: “ o que é o p ró p rio am or,
qual é a sua n atu reza e em seguida quais são as suas obras?” 26 In te rro ­
gação o n to ló g ica e n ã o m ais questão de deontologia. T odos os o u tro s
interlocutores orientam seus discursos para o louvor ou a crítica, para a
demarcação entre o bom e o m au am or, p ara a delimitação daquilo que
convém ou n ã o fazer; n a tem ática h ab itu al de um a busca de conve­
niência e da e lab o ração de u m a arte de cortejar, o objeto prim eiro da
reflexão é a co n d u ta o u o jo g o das co n d u tas recíprocas. P latão afasta
essa q uestão, pelo m enos provisoriam ente, e p a ra além da dem arcação
entre o bem e o m al ele coloca a questão de saber o que é a m a r.27
O ra, co lo car assim a questão im plica prim eiro um deslocam ento
do p ró p rio o b jeto d o discurso. D iotím ia reprova a Sócrates - m as de
fato a tod o s os au to res dos elogios prçcedentes - o ter buscado, do
lado d o elem ento “ am a d o ” (ton erõtHenon), o princípio d aq u ilo que
conviria dizer do am or; eles se deixaram , p o rta n to , ofuscar pelo ch ar­
me, beleza e perfeição do rapaz am ad o e atrib u íram esses m éritos inde­
vidam ente ao p ró p rio am or; este som ente saberia dizer a sua pró p ria
verdade se à perguntasse ao que ele é e não a quem ele am a. É preciso
p o rta n to v o ltar do elem ento am ad o àquele que am a (to êrori) e interrogá-lo nele m esm o.2* É tam bém isso que será feito no Fedro q u an d o ,
para responder aos dois prim eiros contra-elogios, Sócrates efetua o
longo desvio p o r m eio da teoria das alm as. M as, com o conseqüência
desse deslocam ento, o discurso sobre o am o r deverá enfren tar o risco
25. l'L .A T O N . Phèdre. 2 4 4 a.
2(>. P L A T O N , liiiiiquel. 201 d .
27. D e p o is d o s d is c u r s o s d e l e d r o , S ó c ra te s le m b ra q u e d e v e h a v e r n o p e n s a m e n to d a ­
q u e le q u e fa la “ u m c o n h e c im e n to s o b re a v e rd a d e d o a s s u n to s o b re o q u a l e le irá t a la r "
(Phèdre. 2 5 9 e).
2N. Ihid.. 204 e.
207
de não m ais ser um “ elogio” (na form a m esclada e confusa d o louvor
dirigido sim ultaneam ente ao am o r e ao am ado); ele terá que dizer com o no Banquete - a natu reza “ in term ed iária” d o am or, a falha que
o m arca (p o sto que ele n ão está na posse das belas coisas que deseja), a
parentela de m iséria e de m an h a, de ig norância e de saber na qual ele
se origina; ele terá tam bém que dizer - com o no Fedro - de que m anei­
ra se m isturam nele m esm o o esquecim ento e a lem brança do espetácu­
lo supraceleste, e o que é o longo cam inhd de sofrim ento que o levará
finalm ente até seu objeto.
2. Passagem da questão da honra do rapaz
para a questão do am or da verdade.
D izer com o D io tím ia que é m elhor desviar o o lh a r do elem ento
am ado p a ra rep o rtá-lo sobre o principio am an te, n ão quer dizer que a
questão d o o bjeto n ão se coloque mais: ao c o n trário , to d o o desenvol­
vim ento que segue essa form ulação essencial é co n sagrado a determ i­
nar aqu ilo que, no am o r, é am ad o . Porém , a p a rtir do m om ento em
que se com eça a falar d o am o r num discurso que q u er dizer seu ser e
não ca n ta r aquilo q u e ele am a, a questão do objeto será colocada em
term os diferentes.
<
N o deb ate trad icio n al, o p o n to de p a rtid a d o questionam ento es­
tava do lad o d o p ró p rio o bjeto d o am or: estabelecido o que é e o que
deve ser aquele a quem se am a - n ão som ente a beleza de seu corpo
com o tam bém de sua alm a, a form ação que lhe é necessária, o caráter
livre, n obre, viril, corajo so que ele deve co n q u istar, etc. - qual é a for­
m a de am o r h o n ro sa, p a ra ele e p a ra o am ante, q ue se deve dedicarlhe? E ra o respeito d o am ad o , naquilo que ele é em realidade, que de­
via dar sua form a p ró p ria e seu estilo co n tid o ao que se po d ia esperar
dele. N a in terro g ação p latônica é a consideração sobre o que é o pró­
p rio am o r q u e deve levai* à determ inação d o que é, n a verdade, seu ob­
jeto. Além d a s diferentes coisas belas às quais o en am o rad o pode se
apegar, D iotím ia m o stra a Sócrates que o a m o r busca g erar no pensa­
m ento e ver “ o belo em si m esm o” , em confo rm id ade com a verdade
de sua natureza, em conform idade com a sua p ureza sem mescla e “ a
unicidade de su a fo rm a” . E no Fedro, é o p ró p rio S ócrates que m ostra
de que m an eira a a lm a , se tem u m a lem brança bem forte daquilo que
viu acim a do céu, se é energicam ente co n duzida e se n ão se deixa cur­
var, no seu im pulso, pelos apetites im puros, liga-se som ente ao objeto
am ad o p o r aquilo que ele traz em si de reflexo e de im itação d a própria
beleza.
Em P latão se en co n tra o tem a de que é à alm a dos rapazes, m ais
d o que ao corpoT qúêõ a m õ fd e v e se dirigir. M a s etentõ~fôre^pnm eiro
nem o único a d iz ê -lo ^ C om conseqüências m ais o u m enos rigorosas
este era um tem a que c o rria através dos debates tradicionais sobre o
208
am or e ao quai X enofonte dá - atrib u in d o -o a Sócrates - um a form a
radical. O que é p ró p rio a P latão n ão é essa dem arcação, m as a m anei­
ra pela qual ele estabelece a inferioridade do am or pelos corpos. Ele a
fundam enta, com efeito, não sob re a dignidade do rapaz am ad o e o
respeito que se the deve, m as sob re o que, no p ró p rio am ante, determ i­
na o ser e a form a de seu am o r (seu desejo de im ortalidade, sua a sp ira­
ção ao belo em sua pureza, a rem iniscência do que viu acim a do céu).
I Além disso (e aí o Banquete, assim com o o Fedro, são bem explícitos)
ele não tra ç a um a linha de d em arcação nítida, definitiva e in tra n sp o n í­
vel entre o m au am o r do corpo e o belo am o r d a alm a; p o r m ais desva­
lorizada, p o r m ais inferior que seja a relação com o corpo, q u an d o
com p arad a çom esse m ovim ento p ara o belo, p o r m ais perigosa que
possa ser, posto que ela p ode desviar e estan car esse m ovim ento, ela
não é p o r isso excluída nem co n d en ad a p a ra sem pre. D e um belo co r­
po, p a ra os belos corpos, conform e a célebre fórm ula do Banquete, em
seguida destes p a ra as alm as, depois p a ra o que existe de belo nas “ ocupações” , “ as regras de co n d u ta ” , “ os conhecim entos” , até que, fi­
nalm ente, o o lh a r atin ja “ a v astà região já o cu p ad a pelo belo” ,” o
m ovim ento é co n tín u o . E o Fedro, m esm o can tan d o a coragem e a per­
feição das alm as que não cederam , n ão destina ao castigo aquelas que,
levando um a vida ligada m ais à h o n ra do que à filosofia, deixaram -se
surpreender, e p a ra as quais aconteceu de “ com eter a coisa” levadas
por seu ardor; sem dúvida, no m om ento em que, chegando a vida ter­
restre a seu term o, a alm a deixa o corpo, eles são desprovidos de asas
(diferentem ente do que se passa com aqueles que perm aneceram “ m es­
tres de si m esm o” ); eles não p o d erão , p o rta n to , subir ao m ais alto;
m as n ão serão o brigados à viagem su bterrânea; em co m panhia um do
o u tro , os dois am antes farão a viagem acim a d o céu até que, p o r sua
vez, “ em razão de seu am o r” eles recebam asas.50 N ã o é a exclusão do
corpo que caracteriza essencialm ente, p a ra P latão, o verdadeiro am or;
é que ele é, através das aparências do objeto, relação com a verdade.
3. Passagem da questão da dissimetria dos parceiros
para a questão da convergência do amor.
D e aco rd o com as convenções estabelecidas, entendia-se que o
Eros vinha do am ante; q u an to ao am ad o , ele n ão podia ser, do m esm o
m odo que o erasta, sujeito ativo do am o r. Sem dúvida, esperava-se
, dele um apego em reto rn o , um A nteros. M as a natureza dessa resposta
colocava problem a: ela n$o p o d ia ser ex atam ente sim étrica d aq u ilo
que a provocava; m ais d o que ao desejo e ao prazer do am an te, era à
29.
30.
Ibid.. 210 c-d.
Phèdre. 256 c-d.
209
sua benevolência, aos seus benefícios, à sua solicitude e ao seu exem­
plo que o ra p a z devia corresponder; e era preciso esperar o m om ento
em que o a rreb atam en to do am o r tivesse cessado e em que a idade, ao
excluir os ardores, tivesse afastado os perigos, p ara que os dois amigos
pudessem estar ligados entre si por m eio de um a relação de exata reci­
procidade.
M as se Eros é relação com a verdade, os dois am antes só pode­
riam se unir com a condição de que tam bém o am ado fosse levado ao
verdadeiro pela fo rça do m esm o Eros. N a erótica platônica, o am ado
não poderia m anter-se na posição de objeto em relação ao am or do
o u tro , esperan d o sim plesm ente recolher, em nom e da troca à qual ele
tem direito (po sto que ele é am ado), os conselhos de que necessita e os
conhecim entos aos quais aspira. C onvém que ele se to rn e efetivam ente
sujeito nessa relação de am or. Esta é a razão pela qual se produz, n c fi­
nal do terceiro discurso d o Fedro, a inversão que faz passar do ponto
de vista do am an te ao do am ado. Sócrates descreveu o cam inho, o ar­
dor, os sofrim entos daquele que am a e o d u ro com bate que teve que
trav ar p ara d o m in ar sua equipagem . Eis que agora ele evoca o am ado:
talvez, à sua volta, tenham feito o rapaz acred itar que não era bom ce­
der à um en am o rad o ; ele, co n tu d o , aceita a convivência com o seu
am ante; a presença deste coloca-o fora de si; p o r sua vez ele sd sente
agitado pela o nda do desejo, asas e plum as bro tam em sua alm a." Evi­
dentem ente, ele não sabe ainda qual é a verdadeira n atureza daquilo a
que ele aspira, e faltam -lhe palavras p a ra nom eá-la; m as “ ele lança os
b raços” em to rn o de seu am an te e “ lhe dá beijos” .32 Esse m om ento é
im portante: diferentem ente do que se passa na arte de cortejar, a “ dia­
lética do a m o r” exige aqui nos dois am antes dois m ovim entos exata­
m ente sem elhantes; o am o r é o m esm o, posto que é, ta n to para um
com o p a ra o o u tro , o m ovim ento que os a rre b a ta p a ra o verdadeiro.
4. Passagem da virtude do rapaz amado para o am or
do m estre e para a sua sabedoria.
N a arte de co rtejar cabia ao am ante fazer a corte; e m esm o se lhe
era exigido g u a rd a r o dom ínio de si, sabia-se m uito bem que a força de
coerção de seu am o r corria o risco de a rreb atá-lo apesar dele. O ponto
sólido da resistência era a h o n ra do rapaz, sua dignidade, a obstinação
razoável com que ele resistia. M as, a p a rtir do m om ento em que Eros
se dirige p a ra a verdade, é aquele que está m ais ad ia n tad o no cam inho
do am or, aquele q u e está m ais verdadeiram ente en am o rad o da verda­
de, que p o d erá m elhor guiar o o u tro e ajudá-lo a n ão aviltar-se em 'to­
il.
32.
210
Ibid.. 255 b-c.
Ibid., 255 e -2 5 6 a .
■
dos os prazeres baixos. A quele q u e é o m ais sábio em am or será tam ­
bém o m estre de verdade; e seu papel será o de ensinar ao am ad o de
que m aneira triu n far sobre os seus desejos e “ to rnar-se m ais forte do
que a si p ró p rio ” . N a relação de am or, e com o conseqüência dessa
relação com a verdade que, a p a rtir daí, a e stru tu ra, u m a nova perso ­
nagem aparece: o m estre que vem o cu p ar o lugar do en am o rad o , m as
que, pelo dom ínio com pleto q u e exerce sobre si m esm o, m odifica o
sçntido do jo g o , tran sfo rm a os papéis, estabelece o princípio de um a
renúncia aos aphrodisia e passa a ser, p a ra to d o s os jovens ávidos de
verdade, o bjeto de am or.
Tal é o sentido que convém d ar, sem dúvida, nas últim as páginas
do Banquete, à descrição das relações que Sócrates m antém não so­
m ente com A lcebíades com o tam bém com C harm ide, filho de G laucon, com E utidem o, filho de D iocles e ainda com m uitos o u tro s.33 A
distribuição dos papéis é inteiram ente invertida: são os jovens rapazes
- eles que são belos e que são assediados p o r ta n to s n a m o rad o s - que
são os enam o rad o s de Sócrates; eles seguem suas pegadas, p ro cu ram
seduzi-lo, querem que ele conceda seus favores, isto é, que lhes co m unique o teso u ro de sua sabedoria. Eles ficam na posição de erasta e iíó ^
crates, o hom em velho de corpo sem graça, na posição d e erôm eno.
M as o que eles não sabem - e que A lcebíades descobre no curso d a fa ­
m osa “ p ro v ação ” - é que Sócrates só é am ad o p o r eles n a m edida m es­
m o em que é capaz de resistir à sua sedução; o que n ã o quer dizer que
ele é, p a ra eles, sem am o r nem desejo, m as sim que ele é levado pela
força d o v erdadeiro am o r e que sabe v erdadeiram ente am ar o verda­
deiro que convém am ar. D iotím ia havia d ito anteriorm ente: den tre to ­
dos é ele o sábio em m atéria de am or. É a sabedoria do m estre daí para
a frente (e n ã o m ais a h o n ra d o rapaz) q u e m arca, ao m esm o tem po, o
objeto do v erdadeiro am o r, e o princípio que im pede de ceder.
O Sócrates que aparece nessa passagem é revestido de poderes
p róp rio s à personagem trad icio n al do theios anêr: resistência física,
ap tid ão p a ra a insensibilidade, capacidade de se au sen tar de seu co rp o
e de co n cen trar nele m esm o to d a .a energia de sua alm a.34 M as é preci­
so com preender que essas potências vêm ter efeito aqui no jo g o m uito
p articu lar d o Eros; elas asseguram a d om inação que. S ócrates é capaz
de exercer sobre si m esm o; e, p o rta n to , elas o qualificam a o m esm o
tem po com o o m ais alto o bjeto de am o r, ao qual os jovens podem se
dirigir, com o tam bém e n q u an to o único que possa conduzir seu am or
até a verdade. N o jo g o am oroso onde se enfrentavam diversas dom i-
.VV PLATON. Banquei, 222 b. Sobre as relações entre Sócrates è Eros, cf. P. H A D O T .
E.yereii es spirituels et philosophie antique, pp. 69-82.
.'4. II. JO LY . Le renversement platonicien, 1974, pp. 61-70.
211
nações (a d o am an te buscando apoderar-se do am ad o , a do am ado
p ro cu ran d o escapar e, através dessa resistência, reduzindo o am ante à
escravidão), Sócrates introduz íim o u tro tipo de dom inação: a que é
exercida pelo m estre de verdade e p ara a qual ele é qualificado pela so­
berania que exerce sob re si.
'
A erótica platônica pode aparecer assim sob três aspectos. Por um
lado, é um a m aneira de responder a um a dificuldade inerente, na cul­
tu ra grega, às relações entre hom ens e rapazes: a saber, a questão do
status a ser d ad o a estes últim os en q u an to objeto de prazer; sob esse
ângulo, a resposta de P latão parece som ente m ais com plexa e m ais ela­
borada do que aquelas que podiam ser prop o stas, nos diversos “ deba­
tes" sobre ò am o r ou, sob o nom e de Sócrates, nos textos de X enofon­
te. De fato, Platão resolve a dificuldade do objeto do prazer reportan
do a questão do indivíduo am ado p ara a natu reza do próprio amor;
estru tu ra n d o a relação de am o r com o um a relação com a verdade; des­
d o b ran d o essa relação, e situ an d o -a ta n to naquele que é am ado com o
naquele que é ap aixonado; e invertendo o papel do jovem am ado para
fazer dele um en am o rad o do m estre de verdade. N essa m edida, podese dizer que ele satisfaz ao desafio lançado pela fábula de A ristófanes:
deu a esta um co nteúdo verdadeiro; m ostro u com o era o m esm o am or
que, num m esm o m ovim ento, podia to rn a r ta n to paiderastês com o
philerastês. As dissim etrias, as defasagens, as resistências e as fugas
que organizavam , na prática do am o r h o n rad o , as relações sem pre
difíceis entre o erasta e o erôm eno - o sujeito ativo e o objeto assedia­
do - não têm m ais razão de ser; ou m elhor, elas podem se desenvolver
de aco rd o com um m ovim ento to talm en te o u tro , to m an d o um a form a
inteiram ente o u tra, e im pondo um jo g o bem diferente: o de um a rota
onde o m estre de verdade ensina ao rapaz o que é a sabedoria.
M as com isso m esm o vê-se que a erótica p latônica - e nisso con­
siste seu o u tro perfil - in tro d u z com o qupstão fundam ental na relação
de am o r a questão da verdade. E sob um a form a inteiram ente o u tra do
que aquela do logos ao qual é preciso subm eter os pró p rio s apetites no
uso dos prazeres. A tarefa d o en am o rad o (e ela lhe perm itirá de fato
atingir ao que é o seu objetivo) é reconhecer o que é verdadeiram ente o
am or q u e to m o u co n ta dele. E aí, a resposta ao desafio de A ristófanes
tran sfo rm a a resposta que este últim o dava: n ão é a o u tra m etade de si
m esm o que o indivíduo busca no outro; é o v erdadeiro com o qual sua
alm a é a p a re n ta d a. C om o conseqüência, o tra b a lh o ético que lhe é ne­
cessário fazer será o de descobrir e de su sten tar, sem desistir jam ais,
essa relação com a verdade que era o sup o rte oculto de seu am or. E vêse, então, de que m an eira a reflexão p latô n ica tende a se desligar de
um a pro b lem atização corrente, que g ravitava em to rn o do objeto e do
estatu to a lhe ser d ad o , p a ra ab rir um q u estio n am ento sobre o am or,
que g rav itará em to rn o do sujeito e da verdade de que é capaz.
212
F inalm ente, a erótica socrática tal com o Platão a faz aparecer, co ­
loca m uitas questões que eram habituais nas discussões sobre o am or.
M as ela não visa definir a cond u ta conveniente onde se equilibrariam
a resistência suficientem ente longa do am ado e o benefício suficiente­
m ente precioso do am ante; ela tenta d eterm inar por qual ir.ovim ento
próprio, por qual esforço e q u a l tra b a lh o sobre si mesmo o Eros do
am ante p o d erá resgatar e estabelecer p ara sem pre sua relação com o
ser verdadeiro. Em vez de querer traçar definitivam ente a linha que
perm ite d em arcar o honroso e o desonroso ela procura descrever a
rota - com suas dificuldades, suas peripécias e suas quedas - que con­
duz ao p o n to onde ele en co n tra seu ser próprio. O Banquete e o Fedro
indicam a passagem de um a erótica m odelada sobre a prática da “ co r­
te" e a liberdade do o u tro , p ara um a erótica que gira em to rn o de um a
ascese do sujeito e do acesso com um à verdade. Por isso m esm o a in­
terrogação se desloca: na reflexão sobre a chrêsis aphrodision ela dizia
resp eito n o prazer e à sua dinâm ica, cuja prática e distribuição legítima
convinha assegurar pelo dom ínio de si; na reflexão platônica sobre o
am or, a interrogação diz respeito ao desejo que convém levar para o
seu verdadeiro objeto (que é a verdade) reconhecendo-o pelo que ele é
no seu ser verdadeiro. A vida de tem perança, de sõphrosunê, tal qual
é descrita nas Leis, é um a existência “ benigna em todos os po n to s de
vista, com dores e prazeres tranqüilos, desejos flexíveis (êremaiai hêdonai, m alakai epithumiai) e am ores sem fu ro r (erõtes ouk em m aneis)” ;"
têm-se aí a ordem de um a econom ia dos prazeres garan tid a pela dom i­
nação que se exerce de si p ara consigo. Para a alm a cujas peripécias e
ardores am orosos o Fedro descreve, é prescrito igualm ente, se ela qui­
ser obter a sua recom pensa e reen co n trar a sua p átria além do céu,
“ um regime o rd e n a d o ” (tetagm eriêdiaitê) assegurado porque ela é “ se­
nhora de si” e p o rqu e tem “ cuidado com a m edida” , porque reduziu à
“ escravidão o que faz nascer o vício” e dá, ao contrário, “ a liberdade
ao que p ro d u z a virtude” .56 M as o com bate que ela teve que sustentar
contra a violência de seus apetites ela só pôde travá-lo a p artir de uma
dupla relação com a verdade: relação com seu p ró p rio desejo, questio­
nado em seu ser, e relação com o objeto de seu desejo reconhecido
com o ser verdadeiro.
Vê-se, desse m odo, m arcar-se um dos p o n tos onde se form ará a
interrogação do hom em . O que não quer dizer que a erótica platônica
se tenha liberado súb ita e definitivam ente de u m a ética dos prazeres
e de seu uso. V erem os, ao contrário* de que m aneira esta últim a co n ti­
nuou a se desenvolver e a se tran sfo rm ar. M as a tradição de pensa-
35.
36.
PLATON, Lois, V, 734 a.
PLATON, Phèdre, 256 a-b.
213
m ento que deriva de P latão desem penhará um pápel im p o rtan te qu an ­
do, bem m ais tard e, a problem atização do c o m p o rtam en to sexual for
reelaborada a p artir da alm a de concupiscência e da decifração cie seus
arcanos.
Essa reflexão filosófica a respeito dos rapazes co m p o rta um p a ra ­
doxo histórico. O s gregos atrib u íram a esse am o r m asculino, e m ais
precisam ente a esse am o r pelos rapazes jovens e pelos adolescentes,
que a p a rtir de então deveria ser, p o r ta n to tem po e tã o severam ente
condenado, um a legitim idade onde nos é g ra to reconhecer a prova da
liberdade que eles tin h am nesse dom ínio. C o n tu d o , foi a seu respeito
m uito m ais d o que a respeito d a saúde (com a qual eles tam bém se
preocupavam ), m uito m ais do que a respeito d a m ulher e d o casa­
m ento (p o r cuja b o a ordem , no en tan to , eles velavam ), que eles for­
m ularam a exigência das m ais rigorosas austeridades. É verdade que salvo exceção - eles n ã o o condenaram nem o p roibiram . C on tu d o , é
na reflexão sobre o am o r pelos rapazes que se vê a form ulação do
princípio de um a “ abstinência indefinida” ; o ideal de um a renúncia,
cujo m odelo Sócrates fornece çom sua resistência sem falhas à ten ta ­
ção; e o tem a de que essa renúncia detém , p o r si m esm a, um alto valor
espiritual. D e um a m aneira que p o d e surp reen d er à prim eira vista, ve­
m os form ar-se, na cu ltu ra grega e a respeito d o am or pelos rapazes, al­
guns dos elem entos m ais im po rtan tes de um a ética sexual que o rejei­
ta rá em nom e precisam ente desse princípio: exigência de um a sim etria
e de um a reciprocidade na relação am o ro sa, a necessidade de um com ­
bate difícil e de m u ito fôlego consigo m esm o, a purificação progressiva
de um am or que só se dirige ao p ró p rio ser em sua verdade, e a interro­
gação d o hom em sobre si m esm o e n q u an to sujeito de desejo.
D eixaríam os escapar o essencial se im aginássem os que o am or pe»
los rapazes suscitou a sua p ró p ria interdição, o u que um a am biguida­
de pró p ria à filosofia só aceitou a su a realidade exigindo a sua supera­
ção. É preciso ter em m ente que esse “ ascetism o” não e ra um a m anei­
ra de desqualificar o am o r pelos rapazes; era, ao co n trário , um a form a
de estilizá-lo e, p o rta n to , ao dar-lhe form a e figura, valorizá-lo. N ão
resta a m enor dúvida de que existia lá um a exigência de abstenção to ­
tal e um privilégio atrib u íd o à questão d o desejo que introduzia ele­
m entos os quais n ão era fácil colocar num a m oral organizada em to r­
no da p ro cu ra d o uso dos prazeres.
214
CONCLUSÃO
V
P o rtan to , no cam p o das p ráticas reconhecidas (a do regim e, a da
gestão dom éstica, a da “ co rte" feita aos rapazes jovens) e a p a rtir das
reflexões que tendiam a elaborá-las, os gregos se interrogaram sobre o
co m p o rtam en to sexual com o questão m oral, e procuraram definir a
form a de m o deração p a ra ta n to exigida.
Isso n ão quer dizer que os gregos em geral só se interessavam pe­
los prazeres sexuais a p artir desses três p o n to s de vista. E ncontrar-se-á
na literatura que eles nos deixaram diversos testem unhos atestan d o a
existência de o u tro s tem as e de o u tra s preocupações. M as se nos ativerm os, com o quis fazer aqui, aos discursos prescritivos pelos quais
eles ten taram refletir e regular sua co n d u ta sexual, esses três núcleos de
problem atização aparecem com o sendo, de longe, os m ais im p o rtan ­
tes. Em to rn o deles os gregos desenvolveram artes de viver, de se c o n ­
duzir e de “ usar os prazeres" segundo princípios exigentes e a jsteros.
À prim eira vista, podem os ter a im pressão de que essas diferentes
form as de reflexão se apro x im aram ao m áxim o das form as de austeri­
dade que serão en co n trad as m ais tard e nas sociedades ocidentais cris, tãs. Em to d o caso, tem -se a ten tação de corrigir a oposição, ainda m ui­
to correntem ente ad m itid a, entre um pensam ento pagão, “ to le ran te" à
prática da “ liberdade sexual", e as m orais tristes e restritivas que a ele
se seguirão. C om efeito, é preciso ver bem que o princípio de um a tem ­
perança sexual rigorosa e cuidadosam ente p raticada é um preceito que
não d ata nem do cristianism o, evidentem ente, nem da A ntigüidade
tard ia, nem m esm o d os m ovim entos rigoristas que se conheceu com os
217
estóicos, p o r exem plo, na época helenística e ro m ana. D esde o Século
IV encontra-se, m uito claram ente form ulada, a idéia de que a ativida­
de sexual é em si m esm a dem asiado perigosa e custosa, m uito forte­
m ente ligada à perda da substância vital, p a ra que um a econom ia me­
ticulosa deva lim itá-la na m edida em que ela n ão seja necessária; en­
contra-se tam bém o m odelo de um a relação m atrim onial que exigiria,
da parte dos dois cônjuges, um a igual abstenção a qualquer prazer
“ extraconjugal"; enfim , encontra-se o tem a de um a renúncia do ho­
mem a to d a relação física com um rapaz. Princípio geral de tem peran­
ça, suspeita de que o prazer sexual pudesse ser um m al, esquem a de
um a restrita fidelidade m onogâm ica, ideal de castidade rigorosa: evi­
dentem ente n ão era em conform idade com esse m odelo que os gregos_
viviam; m as não é que o pensam ento filosófico, m oral e m édico que se
form ou no seu m eio form ulou alguns dos princípios fundam entais que
as m orais ulteriores - e singularm ente as que são enco n trad as nas so­
ciedades cristãs - só tiveram que retom ar? E n tretan to , não se pode fi­
car nisso; as prescrições podem m uito bem ser form alm ente parecidas:
:sso só prova, no final das contas, a pobreza e a m o n o to n ia das interdi­
ções. A m aneira pela qual a atividade sexual era constituída, reconhe­
cida, org an izad a com o questão m oral n ão é idêntica som ente pelo fato
de que o perm itido ou o p roibido, o recom endado ou o desaconselha­
do sejam idênticos.
Vim os que: o co m p o rtam en to sexual é co n stitu ído com o dom ínio
de prática m oral, no pensam ento grego, sob a form a de aphrodisia, de
atos de prazer que se referem a um cam po agonístico de forças difíceis
de serem dom inadas; elas exigem, p ara to m a r a fo rm a de um a co nduta
racional e m oralm ente adm issível, o funcionam ento de um a estratégia
da m edida e d o m om ento, da q u an tid ad e e da o p o rtu n id ad e; e essa es­
tratégia tende com o que p a ra o seu p o n to de perfeição e p a ra o seu ter­
m o, a um exato dom ínio de si onde o sujeito é “ m ais forte” do que ele
mesm o até no exercício do p oder que exerce sobre os o utros. O ra, a
exigência de austeridade im plicada pela constituição desse sujeito se­
nhor de si m esm o n ão se ap resenta sob a form a de um a lei universal, à
qual cada um e tod o s deveriam se subm eter; m as, antes de tu d o , com o
um princípio de estilização da co n d u ta p a ra aqueles que querem d ar à
sua existência a form a rtia ísb e la e m ais realizada possível. Se quiser­
mos fixar um a origem p a ra alguns desses grandes tém as que deram
form a à nossa m oral sexual (a pertinência do prazer ao cam po perigo­
so do m al, a obrig ação da fidelidade m onogâm ica, a exclusão de p a r­
ceiros do m esm o sexo) não som ente é preciso n ão atribuí-los a essa fic­
ção cham ada m oral “ju d eu -cristã” m as, so b retu d o, é preciso não ir
buscar neles a função intem poral d a interdição ou a form a perm anen­
te da lei. A austeridade sexual precocem ente recom endada pela filoso­
fia grega n ão se enraíza na intem poralidade de um a lei que to m aria al218
ternad am en te as form as historicam ente diversas da repressão: ela diz
respeito a um a história q u e é, p a ra com preender as transform ações da
experiência m oral, m ais decisiva que a dos códigos: um a história da
“ ética” en ten d id a co m o a elab o ração de um a form a de relação consi­
go que perm ite ao indivíduo constituir-se com o sujeito de um a co n d u ­
ta m oral.
;
P or o u tro la d o , cad a um a d as três grandes artes de se conduzir,
das três grandes técnicas de si que foram desenvolvidas no pensam ento
grego - a D ietética, a E conôm ica e a E rótica - , p ropôs, senão um a m o­
ral sexual p articu lar, pelo m enos um a m odulação singular d a co n d u ta
sexual. N essa elab o ração das exigências da austeridade, não som ente
os gregos n ão b uscaram definir um código de condutas obrig ató rias
p ara todos, com o tam bém não p ro cu raram o rganizar o co m p o rtam en ­
to sexual com o um cam p o referente em todos os seus aspectos a um único e m esm o co n ju n to de princípios.
N o que diz respeito à D ietética, encontra-se um a form a de tem pe­
rança definida pelo uso com edido e o p o rtu n o dos aphrodisia; o exercí­
cio dessa tem p eran ça exigia um a atenção cen trada so b retu d o na ques­
tã o do “ m o m en to ” e na correlação en tre os estados variáveis do corpo
e as propriedades cam biantes das estações; e no cerne dessa p reo cu p a­
ção se m anifestavam o m edo d a violência, o tem or do esgotam ento e o
duplo cuidado com a sobrevivência do indivíduo e com a m anutenção
da espécie. N o que diz respeito à Econôm ica, encontra-se um a form a
de tem perança definida, não pela fidelidade recíproca dos cônjuges,
m as p o r um certo privilégio que o m arido conserva à esposa legítim a,
sobre a qual ele exerce seu poder; o problem a tem poral nesse caso não
está na apreensão do m om ento o p o rtu n o m as sim na m anutenção, ao
longo da existência, de um a certa estru tu ra h ierárquica p ró p ria à o rg a­
nização da casa; é p a ra assegurar essa perm anência que o hom em deve
tem er qualq u er excesso e p raticar o dom ínio de si no dom ínio que ele
exerce sobre os o u tro s. Enfim , a tem perança solicitada pela E rótica é
ainda de o u tro tipo: m esm o se ela não im põe a abstinência p u ra e sim ­
ples, vim os que ela tende p ara isso e que traz consigo o ideal de um a
renúncia a q u alq u er relação física com os rapazes. P or o u tro lado, essa
Erótica é ligada a um a percepção d o tem po m uito diferente daquela
que se en co n tra a p ro p ó sito d o co rp o ou a p ro p ó sito do casam ento: é a
experiência de um tem p o fugidio que conduz fatalm ente a um term o
próxim o. Q u a n to ao cuidado que a anim a, é o d o respeito que é devido
à virilidade do adolescente e ao seu status fu tu ro de hom em livre: não
se tra ta m ais sim plesm ente p a ra o hom em de ser senhor de seu prazer;
trata-se de saber de que m aneira se pode d a r lugar à liberdade do ou­
tro no dom ínio que se exerce sob re si m esm o e no am o r verdadeiro que
se tem por ele. N o final das contas é nessa reflexão a p ro p ó sito do
„ iim or pelos rapazes que a erótica pTatomca côlocou a quei>tãõ â a s rela-
219
ções com plexas entre o am o r, a renúncia aos prazeres e o acesso à'v er­
dade.
P od e-se lem brar o que K. J. D over escrevera: “ O s gregos não
herdaram a crença de que um a potência divina revelara à hum anidade
um código de leis q u e regulavam o c o m p o rtam en to sexual, nem entretiveram , eles pró p rio s, essa crença. T am b ém n ã o possuíam um a insti­
tuição com o pod er de fazer respeitar interdições sexuais. C o n fro n ta­
dos com cultu ras m ais antigas, m ais ricas e m ais elab o rad as do que a
deles, os gregos sentiram -se livres de escolher, a d a p ta r, desenvolver e
sobretu d o inovar” .1 A reflexão sobre o c o m p o rtam en to sexual com o
cam po m orai n ão con stitu iu entre eles um a m aneira de interiorizar, de
justificar ou de fu n d am en tar em princípios certas interdições gerais
im postas a todos; foi so b retu d o um a m aneira de elab o rar, p ara a me­
nor p arte d a pop u lação , constitu íd a pelos ad u lto s livres do sexo m as­
culino, um a estética d a existência, a a rte refletida d e um a liberdade
percebida com o jo g o de p oder. A ética sexual que está em p a rte na ori­
gem d a nossa repousava de fato num sistem a m u ito d u ro de desigual­
dades e de coerções (em p articu lar a respeito das m ulheres e dos escra­
vos); m as ela foi p ro b lem atizad a no p ensam ento com o a relação, para
um hom em livre, en tre o exercício de sua liberdade, as form as de seu
poder, e seu acesso à verdade.
N u m a visão ráp id a e m u ito esquem ática d a h istó ria dessa ética e
de suas transform ações n u m a cronologia longa, podem os n o ta r ini­
cialm ente um deslocam ento de acento. N o pensam ento grego clássico
é claro que é a relação com os rapazes q u e constitui o p o n to m ais deli­
cado e o núcleo m ais ativo de reflexão e de elaboração; é ai que a
problem atização exige as form as de au sterid ad e m ais sutis. O ra, no
curso de um a evolução m u ito lenta p odem os ver esse núcleo se deslo­
car: é em to rn o d a m ulher que p o u co a p o u co os problem as irão se
centrar. O que n ão quer dizer nem que o a m o r pelos rapazes não será
m ais p raticad o , nem que ele cessará de se expressar, nem que não será
de form a algum a questio n ad o . M as é a m ulher e a relação com a m u­
lher que irão m arcar os tem pos fortes da reflexão m oral sobre os p ra ­
zeres sexuais: q u er seja sob a form a d o tem a d a virgindade, d a im por­
tância to m a d a pela co n d u ta m atrim onial, o u d o valor atrib u íd o às re­
lações de sim etria e de reciprocidade en tre os dois cônjuges. A lém dis­
so podem os ver um novo deslocam ento d o núcleo de problem atização
(dessa vez d a m ulher p a ra o corpo) no interesse que foi m anifestado a
p artir dos Séculos X V II e X V III pela sexualidade d a criança e, de um a
m aneira geral, pelas relações en tre o c o m p o rtam en to sexual, a no rm a­
lidade e a saúde.
I.
K. J. DO VER, H om osexualité grecque, p. 247.
220
M as, ao m esm o tem po desses deslocam entos, produziu-se um a
certa unificação entre os elem entos que se poderia en c o n tra r rep a rti­
dos nas diferentes “ artes” de usar os prazeres. H ouve a unificação
d o u trin al - da qual S an to A gostinho foi um dos operadores - e que
perm itiu pensar, no m esm o co n ju n to teórico, o jo g o da m orte e da
im ortalidade, a instituição do casam ento e as condições de acesso à
verdade. M as houve tam bém um a unificação que se pode dizer “ p rá ti­
ca” , e que é aq u ela que recentrou as diferentes artes da existência em
to rn o da decifração de si, dos procedim entos de purificação e dos
com bates c o n tra a concupiscência. C om isso, o que veio a se e n co n tra r
situado no cerne da problem atização d a co n d u ta não foi m ais o p ra ­
zer, com a estética do seu uso, m as o desejo, com sua herm enêutica p u ­
rificadora.
Essa m udança será o efeito de to d a um a série de transform ações.
Tem -se o testem unho dessas transform ações, antes m esm o do desen­
volvim ento do cristianism o, na reflexão dos m oralistas, dos filósofos e
dos m édicos nos dois prim eiros séculos de nossa era.
221
ÍNDICE DOS TEXTOS C ITA D O S1
A N TIPH O N ,
D iscours, texto estabelecido p o r L. G em et, Collection des universités
de France (C .U .F .).
P p. 62-63.
A PU LÉE,
Les M étam orphoses, trad u ção de P. G rim ai, Paris, G allim ard, La
Pléiade, 1963.
P. 21.
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Traité des signes, des causes et de la cure des maladies aiguës et
chroniques, texto no Corpus M edîcorum G raecorum , II, Berlim ,
1958; tradução de L. R enaud, Paris, 1834.
P. 18.
A R ISTO PH A N E,
Les A charniens, texto estabelecido p o r V. Coulon e traduzido por
H . V an D aele (C .U .F .).
P. 170.
1. Expresso meu reconhecimento à Bibliothèque du Saulchoir e ao seu diretor. Agra­
deço a Nicole e Louis Êvrard. bem como a Hélène Monsacré, cuja ajuda me foi
preciosa para a feitura deste livro.
223
L 'A ssem blée des fe m m e s, texto estabelecido p o r V. Coulon e tra d u ­
zido p o r H . Van D aele (C .U .F .).
P. 194.
Les Cavaliers, texto estabelecido p o r V. C oulon e trad u zid o por H .
V an D aele (C .U .F .).
P. 194.
Les Them osphories, texto estabelecido p o r V. Coulon e traduzido
por H. V an D aele (C .U .F .).
Pp. 22, 170.
A R IST O T E ,
D e l'â m e, texto estabelecido p o r A. Jannone, traduzido e anotado
por E. B arbotin (C .U .F .).
P p. 46, 122.
É th iq u e à E u d em e, texto e trad u ção de H . R ackham (Loeb classical
Library). P. 40.
É th iq u e à N icom aque, texto e trad u ção de H . R ackham (Loeb clas­
sical Library); trad u ção francesa de R .-A. G a u th ie r e J.-Y . Jolif,
Louvain-Paris, 1970.
Pp. 38-40, 43-44, 47-50, 61-63, 65-66, 71, 79, 80, 158-159, 161.
D e la génération des a n im a u x, texto e tra d u ç ã o de P . Louis (C .U .F .).
P p. 45, 46, 51, 108, 120, 122.
D e la génération et de la corruption, texto e trad u ção de C h. M ugler
(C .U .F .).
P. 122.
H istoire des a n im a u x, texto e trad u ção de P. Louis (C .U .F .).
Pp. 41, 44-45, 51, 55.
Les Parties des anim a u x, texto e trad u ção de P. Louis (C .U .F .).
P. 42.
La Politique^ texto e trad u ção de H . R ackham (Loeb classical
Library).
P p. 20, 76, 78, 95, 111-112, 154, 157, 159, 161, 191.
L a R héto riq u e, texto e trad u ção de J. V oilquin e J. Capelle, Paris,
1944.
P p. 52, 181-182.
PSE U D O -A R IST O T E ,
É conom ique, texto e trad u ção de A. W artelle (C .U .F .).
P p . 156-158, 162.
224
Problèmes, texto e trad u ção de W . S. H e tt (Loeb classical Library).
P p. 40, 102, 105, 108, 113, 121.
Sur la stérilité, texto e trad u ção de P. Louis, t. III d a Histoire des
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Du régime salubre, texto e trad u ção de W . H . S. Jones (Loeb classi­
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P p. 23, 43, 46, 49, 53, 57, 121, 168, 171, 174, 177, 184, 197,
203-204, 205-207, 211, 213.
Charmide, texto e trad u ção de A. Croiset (C .U .F .).
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P p. 43, 48, 55, 62-65, 67-68, 70, 72, 81, 97, 111-113, 121-123,
130, 150-152, 168, 196, 213.
Phèdre, texto e trad u ção de L. R obin (C .U .F .).
P p. 22, 43, 48, 63, 64, 82, 178, 203, 206-207, 209-210, 213-214.
Philèbe, texto e trad u ção de A. Diès (C .U .F .).
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La République, texto e trad u ção de E . C ham bry (C .U .F .).
P p. 41, 43, 44, 46-49, 51, 54, 58, 63-65, 67, 70, 72, 74-75, 80, 84,
92, 95-96, 111, 167, 168.
Timée, texto e trad u ção de A. R ivaud (C .U .F .).
P p. 44, 47-48, 92, 96, 98, 119.
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P p . 23, 43, 57.
Anabase, texto e trad u ção de C. L. Brow nson e O . J. T odd (Loeb
classical Library); trad u ção francesa de P . C ham bry, P aris, 1967.
P p. 43, 170, 177.
Le Banquet, texto e trad u ção de C. L. Brow nson e O . J. T odd (Loeb
classical Library); trad u ção francesa de P . C ham bry, Paris, 1967.
P p . 45, 53, 133, 134, 169-160, 177-179, 181, 196, 205-206.
La Cyropédie, texto e trad u ção de M . Bizos e Ê . D elebecque (C .U .F .).
P p. 56, 61, 76, 84, 169.
Économique, texto e trad u ção de P. C h an train e (C .U .F .).
P p. 67, 71, 78, 130, 137-147.
Hiéron, texto e trad u ção de E . C. M a rc h a n t e G . W . Bowersock (Loeb
classical Library); trad u ção francesa de P. C ham bry, Paris, 1967.
P p. 45, 47, 57, 63, 146, 176, 196.
Les Mémorables, texto e trad u ção de E . C. M a rc h a n t (Loeb classical
Library); tradução francesa de P . C ham bry, P aris, 1967.
P p. 38, 40, 43, 49, 53-54, 56, 58, 63, 68, 73, 74, 80-81, 94, 98,
138, 205.
La République des Lacédémoniens, tra d u ç ã o francesa de P. C ham ­
bry, Paris, 1967.
P p . 111, 205.
232
I

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