SOBRE A TORMENTOSA DELIMITAÇÃO ENTRE DOLO
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SOBRE A TORMENTOSA DELIMITAÇÃO ENTRE DOLO
SOBRE A TORMENTOSA DELIMITAÇÃO ENTRE DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE NA DOGMÁTICA PENAL 1) INTRODUÇÃO AO TEMA: Honra-nos muito a Editora Revista dos Tribunais com o pedido de que comentemos o v. acórdão proferido pelo Egrégio S.T.F. em sede do HC nº 101.698/RJ – 1.ª T. – j. 18.10.2011, em que foi relator o eminente Ministro Luis Fux. O sobredito julgado manteve a decisão de pronúncia (que já havia sido mantida pelo Colendo S.T.J.), no sentido de remeter ao Tribunal do Júri um acusado de homicídio doloso, por dolo eventual, uma vez que o agente, durante a prática de uma competição automobilística não autorizada, denominada racha, acabou por colher, com seu veículo em alta velocidade, uma jovem de 17 anos que dirigia uma motocicleta, matando-a. A distinção entre dolo eventual e culpa consciente continua sendo um dos temas mais tormentosos dentro da Ciência Penal, tradicional e contemporânea, mas que possui uma “extraordinária importância prática”, no dizer do Prof. CLAUS ROXIN 1. 1 ROXIN, Claus. Strafrecht; Allgemeiner Teil (i.e.: Direito Penal; Parte Geral). 3ª ed. Munique/Alemanha, Editora Beck, 1997, p. 372. Há tradução desta obra para o Espanhol: Derecho Penal, Parte General, tomo I, tradução e notas de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. 2) AS DIVERSAS TEORIAS QUE TRATAM DO ASSUNTO: 2.1) Teorias Subjetivas: 2.1.1) Teoria da Vontade (da Aprovação ou do Consentimento): tal linha doutrinária preconiza que, para que ocorra o dolo eventual, é necessário que o agente haja aprovado interiormente o resultado por ele previsto, ou seja, que o agente tenha consentido mentalmente para com o resultado. Esta era a posição adotada pelo Reichsgericht na Alemanha (o Tribunal Imperial alemão). A grande crítica que se faz a esta teoria é a de que, para a caracterização do dolo eventual, é preciso que o resultado tenha “agradado” o sujeito ativo, o que nem sempre ocorre nestas situações. Mas falase a favor dela que basta que o agente tenha “querido” o resultado, de certa forma, ou seja, eventualmente. 2.1.2) Teoria da Representação ou da Possibilidade: esta linha de pensamento, contrária à teoria da vontade, entende que basta a mera representação mental do sujeito ativo, isto é: o agente não precisa “querer”; tão-só a representação em seu intelecto de que um resultado lesivo poderá acontecer a partir de sua atuação deveria fazer com que ele (agente) desistisse de continuar atuando; se ele persiste na atuação, será o caso de dolo eventual. Se ele confiar na não-produção do resultado, tratar-se-á de culpa consciente. Em outras palavras: se o sujeito ativo antevê o resultado em seus cálculos e, ainda assim, atua contra o bem jurídico, deve ser-lhe imputado o dolus eventualis. 2.1.3) Teoria da Indiferença: segundo ENGISCH, seu maior defensor, há dolo eventual quando o sujeito considera possível a realização do tipo e conforma-se com o resultado por indiferença, frente ao bem jurídico protegido 2. 2.1.4) Neste marco das teorias subjetivistas, não se poderia olvidar as fórmulas de FRANK, que fornecem interessantes critérios para a detecção do dolo eventual: 2.1.4-a) Teoria Hipotética do Consentimento de FRANK 3: num cálculo de possibilidade, a previsão do resultado como certo não teria detido o agente de continuar com sua atuação; 2.1.4-b) Teoria Positiva do Consentimento de FRANK 4: o agente diz a si próprio: "dê no que quer, seja como for, em qualquer caso (aconteça ou não o resultado), eu não deixo de atuar"; 2.1.5) Teoria da Motivação de MAX ERNST MAYER 5: para se saber se o sujeito ativo atuou com dolo eventual ou culpa consciente, deve-se indagar qual foi sua posição frente ao provável resultado (concordou ele com o evento ou não ?), isto tomando-se por base os seus motivos. 2 ENGISCH, Karl. Untersuchungen über Vorsatz und Fahrlässigkeit, 1930, p.141 e segs, apud WELZEL, Hans. Derecho Penal Aleman. 4ª ed. Santiago/Chile, Editorial Jurídica de Chile, trad. Juan Bustos Ramírez e Sergio Yáñes Pérez, 1997, p. 80. 3 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, vol. I, tomo II, p. 117-118. 4 Ibidem. 5 Ibidem. 2.1.6) Teoria da Não-Colocação em Prática da Vontade de Evitar o Evento: segundo o finalista ARMIN KAUFMANN, deve-se negar o dolo eventual somente quando a vontade do sujeito ativo esteve dirigida à evitação do resultado. 2.2) Teorias Objetivas: 2.2.1) Teoria da Probabilidade: segundo esta linha expositiva, “a probabilidade é mais que a mera possibilidade”, segundo HELLMUTH MAYER; assim, se o agente contava com a probabilidade do resultado, ou seja, considerava altamente provável que o evento se realizaria e, assim mesmo, continuou agindo, deve responder por dolo eventual. No dizer dos mais modernos, como JOERDEN, o sujeito que, em sua representação, antevê que produzirá um perigo concreto para o bem jurídico, atua com dolo eventual 6. Fala-se, ainda, na consciência de um quantum de fatores causais, dos quais deriva um risco de produção de um resultado, que há de ser levado a sério, a fim de se estabelecer o dolo eventual. 2.2.2) Teoria do Risco de Frisch: o Prof, WOLFGANG FRISCH desenvolveu uma teoria, segundo a qual basta para a caracterização do dolo eventual o conhecimento, pelo agente, do risco não 6 JOERDEN, Dyadische Fallsysteme im Strafrecht, apud ROXIN, Claus. Strafrecht; Allgemeiner Teil (i.e.: Direito Penal; Parte Geral). 3ª ed. Munique/Alemanha, Editora Beck, 1997, p. 383. permitido. Portanto, o dolus eventualis seria mais um problema de tipo objetivo que de tipo subjetivo. Atua dolosamente quem atua com o conhecimento do risco típico. 2.2.3) Teoria da Habituação ao Risco de Jakobs: segundo o Prof. GÜNTHER JAKOBS, um grande número de comportamentos da vida diária decorre, em maior ou menor medida, de maneira automatizada, vale dizer: tratam-se de reações estereotipadas frente a situações estereotipadas, de modo que a reação vem de maneira praticamente mecanizada, afastando a evitabilidade e, destarte, a conduta, o dolo e a culpa 7 . Assim, para tal doutrinador, somente aquilo que transcende o risco habitual e que o sujeito ativo pratique cônscio da importância do bem jurídico afetado e da intensidade do risco é que leva à conclusão do dolo, inclusive o eventual. 2.2.4) Teoria do Perigo Não Coberto de Herzberg: este autor também desloca a questão do dolo eventual decisivamente para o âmbito do tipo objetivo, tornando-o um assunto essencialmente ligado à imputação objetiva. Assim, certos comportamentos estão dentro do que ele chama de “perigo coberto ou assegurado”; por exemplo: o professor que deixa seus alunos nadarem em um rio caudaloso, onde há uma placa indicativa do perigo das águas, não terá contra si imputação ao tipo objetivo, no caso de 7 JAKOBS, Günther. Estudios de Derecho Penal. Madri/Espanha, Editorial Civitas, trad. Enrique Peñaranda Ramos, Carlos J. Suárez González e Manuel Cancio Meliá, 1997, p. 197 e segs. morte de algum dos alunos, pois este discípulo poderia livrar-se do risco obedecendo à placa. No entanto, quem pratica roleta russa contra outrem, está praticando uma conduta desencadeadora de um risco extremo, de um “perigo não coberto e não assegurado” pela ordem jurídica. Neste último caso, o da roleta russa, há que se reconhecer indiscutivelmente o dolo eventual, pelo alto nível do risco criado em relação à vítima. 3) Segundo o Prof. CLAUS ROXIN 8, o decisivo para se reconhecer o dolo eventual é quando o agente “leva a sério” e “conforma-se” com o risco de sua conduta e a probabilidade do resultado. Não deve haver uma preponderância dos elementos objetivos sobre os elementos subjetivos ou vice-versa. Deve haver uma ponderação de todos os dados objetivos e volitivos-cognitivos, utilizando-se o julgador, inclusive, de uma combinação de teorias e de indícios de caráter processual penal (esta última orientação preconizada pelo Prof. CORNELIUS PRITTWITZ). 4) Não é demais lembrar que, segundo a Dogmática Penal Moderna (a sistemática funcionalista), a configuração do tipo objetivo e do tipo subjetivo é a seguinte: 8 ROXIN, Claus. Strafrecht; Allgemeiner Teil (i.e.: Direito Penal; Parte Geral). 3ª ed. Munique/Alemanha, Editora Beck, 1997, p. 372 Tipo - Conduta Tipo - Dolo ou Objetivo - Nexo Causal Subjetivo - Culpa - Nexo de Imputação * - Resultado * Não haverá nexo de imputação quando o agente, com sua atuação, causar um risco tolerável para a sociedade e para o bem jurídico; quando, porém, o agente, com sua conduta, provocar um risco acima do tolerável, haverá nexo de imputação contra ele. Destarte, somente ocorrerá o preenchimento do tipo subjetivo (dolo direto ou eventual; culpa consciente ou inconsciente), se houver primeiro o preenchimento de todos os elementos do tipo objetivo, pois, caso contrário, não haverá tipicidade (imputação ao tipo objetivo). 5) CONCLUSÃO: Quer-nos parecer que o v. acórdão sob comento levou em conta todos os fatores acima expostos. Em termos do tipo objetivo, houve uma conduta do agente de participar de um racha ou pega, que, no dizer de HERZBERG, como no caso da roleta russa, trata-se de uma conduta desencadeadora de um risco extremo para a sociedade, para a segurança do trânsito, para a vida e integridade física dos cidadãos. Houve nexo causal e resultado-morte. No tipo subjetivo, deve-se imputar o fato ao agente, a título de dolo eventual e não de culpa consciente, pelos fatores indiferença e desapreço que o perpetrador do racha tem pelos bens jurídicos vida humana e integridade física de seus concidadãos. Isto sem falar em uma ponderação de todos os dados objetivos e volitivos-cognitivos, que o Excelso Pretório fez do caso concreto, inclusive, combinando teorias e indícios de caráter processual penal. Carlos Ernani Constantino Promotor de Justiça no Estado de São Paulo; Professor de Direito Penal no curso de graduação da Faculdade de Direito de Franca-SP; Professor de Direito Penal no Curso de Especialização de Direito Penal da Escola Superior do Ministério Público; Mestre em Direito Público, pela Unifran-SP.
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