O Dolo no Negócio Jurídico
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O Dolo no Negócio Jurídico
1 CENTRO UNIVERSITÁRIO FLUMINENSE – UNIFLU FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM DIREITO O DOLO NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS SOB A PERSPECTIVA DA BOA-FÉ ROGÉRIO NUNES DE OLIVEIRA CAMPOS DOS GOYTACAZES 2006 2 O DOLO NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS SOB A PERSPECTIVA DA BOA-FÉ Dissertação apresentada como exigência final do Curso de Mestrado em Direito do Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário Fluminense – UNIFLU – Faculdade de Direito de Campos, sob a orientação do Dr. Leonardo Mattietto. CAMPOS DOS GOYTACAZES 2006 3 Dedico as linhas seguintes aos meus filhos, Maria Gabriela e Fabiano, aos quais soneguei muitas manhãs, tardes e noites empenhadas na conclusão deste trabalho. À Roberta, pela compreensão, companheirismo e incentivo que me foram tão caros. Aos meus pais, Estela Maria e Fabiano, e ao meu irmão, Ricardo, pelo apoio habitual e pelo constante estímulo em minha vida. 4 Agradeço aos amigos Vanessa Ribeiro Corrêa e João Paulo de Aguiar Sampaio Souza, por sua indizível generosidade e pela impagável companhia, tanto nos bons quanto nos maus momentos. Aqui ficam, também, meus agradecimentos perenes aos colegas do Centro Universitário Fluminense – Uniflu – Faculdade de Direito de Campos, formadores de alunos e de cidadãos. 5 RESUMO Para o Direito Civil, a vontade é elemento de capital importância, pois constitui a fonte criadora dos negócios jurídicos e, até certo ponto, a medida dos efeitos desejados pelos agentes. Dentro da perspectiva contemporânea, em que o princípio da autonomia privada, grande baluarte dos contratos nos séculos XIX e XX, é sobreposto por princípios de inspiração social, o estudo dos vícios de consentimento, particularmente do dolo, ganha vigor em respeito à tutela objetiva da confiança dos contratantes e para a concretização dos efeitos jurídicos legitimamente esperados pela sociedade. É porque, no plano conceitual, dolo é o expediente malicioso empregado com o fim de obter o consentimento da vítima. Dentro dessa perspectiva, o desenvolvimento da aplicação do princípio da boa-fé objetiva produz importantes reflexos sobre as tradicionais distinções feitas entre o dolo principal e o dolo acidental e sobre as figuras do dolus bonus e do silêncio intencional. Desse modo, o princípio da boa-fé objetiva impõe aos contratantes um comportamento leal e honesto, a fim de atuar sobre o dolo civil como um instrumento de redefinição do campo da anulabilidade dos negócios jurídicos e de abandonar a noção subjetivista e individualista tradicional para transformar-se em fonte de interpretação das declarações de vontade, de inspiração de confiança recíproca entre as partes e de criação de deveres positivos. 6 RÉSUMÉ Pour le droit civil, la volonté est un element d’importance capitalle, car il constituit la source créateur des affaires juridiques, jusqu’à un certain point, la mesure des effects souhaitables por les agents. Dans la perspective contemporaine, le principe de l’autonomie privée, grande bastion des contrats dans les siècles XIX et XX, est surpassé pour des principes d’inspiration sociale et l’étude des vices du consentement, en particulier ceux du dol, gagne viguer avec la protection objective de la confiance des contractants et la matérialisation des effets juridiques légitimement attendues pour la societé. C’est parce que, dans le plan des concepts, le dol est la manoeuvre déloyale ou frauduleuse employée avec l’objetif d’obtenir le consentement de la victime. Dans cette perspective, le dévelopment de l’application du principe de la bonne foi objetif produit importants reflets sur les tradictionales distintions fait entre le dol principal et le dol incident et sur les figures du dolus bonus et de la réticence. De cette façon, le principe de la bonne foi objetif demande des contractants un comportement leal et hônet, pour agir sour le dol civil comme un instrument de rédefinition du champ de l’annulabilité des affaires juridiques et d’abandonner la notion subjectiviste et individualiste traditionnelle, pour devenir une source d’interpretation des déclarations de volonté, d’inspiration de la confiance réciproque dans les parties et de création de devoires positifs. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8-9. CAPÍTULO 1 – A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE COMO ELEMENTO ESSENCIAL À FORMAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS...................................................................10-40. 1.1. O princípio da autonomia privada como fundamento da força obrigatória dos contratos....................................................................................................................11-21. 1.2. O declínio do princípio da autonomia privada.................................................21-30. 1.3. O caminho do subjetivismo à tutela objetiva da confiança............................30-40. CAPÍTULO 2 – O DOLO NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS...............................................41-75. 2.1. Conceito e pressupostos..................................................................................41-50. 2.2. O dolo principal e o dolo acidental...................................................................50-56. 2.3. O silêncio intencional........................................................................................56-59. 2.4. O dolo praticado por terceiro............................................................................60-69. 2.5. O dolo do representante...................................................................................69-71. 2.6. A torpeza bilateral..............................................................................................71-75. CAPÍTULO 3 – REFLEXOS DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA NO DOLO CIVIL...................................................................................................................................76-105. 3.1. O chamado dolus bonus..................................................................................76-88. 3.2. Releitura crítica do dolo acidental....................................................................88-97. 3.3. O novo panorama interpretativo do dolo por omissão.................................97-105. CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................106-108. REFERÊNCIAS................................................................................................................109-114. 8 INTRODUÇÃO O presente trabalho apresenta como tema o dolo nos negócios jurídicos, sob a perspectiva da boa-fé objetiva. Este estudo se justifica porque o negócio jurídico concretizado sob o signo da malícia e do desapego à boa-fé representa um ato de desvalor às idéias de lealdade e ética que devem presidir as relações negociais na atualidade, em que o Direito intervém para sobrepor a igualdade e sentido de probidade nos contratos. O tema escolhido, longe de ser simples, enseja um espaço privilegiado para discussão voltada à construção de um diálogo funcional entre o alinhamento dogmático do dolo e os valores recentemente introduzidos em nossa ordem jurídica, fundados, em essência, na tutela da pessoa e na solidariedade social. O diálogo que se propõe é elaborado através da demarcação dos pontos de equilíbrio entre a construção normativa do dolo – cuja expressão conceitual, entre nós, remonta a mais de três séculos – e a miríade de princípios de matiz social e de dignidade constitucional que impregnam a manifestação do Direito Civil na época em que vivemos. A par dessas considerações, o primeiro capítulo aborda a relevância e o papel empenhado pela declaração de vontade nos negócios jurídicos, particularmente como elemento criador e fundamento da força obrigatória dos contratos. O capítulo segundo cuida da análise e interpretação do dolo à luz do Código Civil vigente, passando em revista, 9 de modo crítico, a sua compleição dogmática em confronto com a nova ordem principiológica que permeia o Direito Civil. O último capítulo busca o estabelecimento de um ponto de interseção entre o dolo nos negócios jurídicos e o princípio da boa-fé objetiva, pondo em revista o dolus bonus, o dolo acidental e o silêncio intencional, na perspectiva de nosso ordenamento jurídico nos dias de hoje. 10 CAPÍTULO 1 – A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE COMO ELEMENTO ESSENCIAL À FORMAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS A vontade tem um papel de grande importância nas manifestações sociais. É ela que move o indivíduo na concretização material dos impulsos básicos da vida humana; é ela, ainda, que atua como elemento determinante das mais refinadas e agudas expressões do nosso cotidiano; e é ela, enfim, que compreende o elo de ligação espiritual entre o conhecer e o querer e permite “uma tomada de posição do sujeito frente ao mundo”.1 Tratase, como se vê, de um assunto de extensão ampla e que interessa tanto ao direito quanto à psicologia, à ética e à filosofia.2 Aos olhos do Direito, além de elemento essencial para a formação dos atos jurídicos em geral, a vontade age como fundamento da força criadora das obrigações, cuja expressão reproduz a última instância de um complexo processo volitivo dirigido a um resultado prático. Entretanto, a vontade, em si, como porção imponderável da manifestação humana, não tem relevância alguma para o Direito: só no momento em que se exterioriza e desencadeia um fato criador, modificativo ou extintivo de uma relação jurídica é que o Direito lhe reconhece relevância.3 1 DALL’AGNOL, Darlei. Ética e Linguagem: uma introdução ao tractatus de Wittgenstein. 2ª edição. Florianópolis: Unisinos, 1994, p. 47. 2 AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 3ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 335-336. 3 RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil, Vol. 1.São Paulo: Bookseller, p. 322. 11 Por tais motivos, a análise da atuação da vontade na conclusão dos negócios jurídicos e, em especial, dos contratos4 é de implacável relevância jurídica, sobretudo nos tempos atuais, que são o testemunho de uma “crise generalizada da razão prática”,5 capaz de abalar os grandiosos baluartes tradicionais do Direito Civil, como sejam a família, a propriedade e o contrato.6 1.1. O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA COMO FUNDAMENTO DA FORÇA OBRIGATÓRIA DOS CONTRATOS Nos códigos modernos, a vontade é contemplada como o arcabouço fundamental sobre o qual se desenvolve a ordem jurídica, a “base de todo o edifício social e jurídico”.7 Isso se deve porque, por obra de uma tradição secular, a declaração de vontade é sinônimo da liberdade, um valor essencial do Direito e atributo natural titulado por todas as pessoas. A fim de explicar a influência que a escola do Direito Natural exerceu sobre a construção do princípio da autonomia privada, Georges Ripert destacou que “a obrigação assumida não é mais do que uma manifestação do direito natural que assiste a todo o homem de se obrigar e, portanto, de manifestar uma liberdade que ele não pôde alienar”.8 No momento em que se desenvolveu a sua base teórica, o princípio da autonomia privada incorporou a ideologia do voluntarismo como expressão por excelência da 4 V. GARCEZ NETO, Martinho. Temas Atuais de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 37. O autor ainda acrescenta: “De fato, contrato significa acordo de vontades, de duas ou mais pessoas; vale dizer, envolve matéria em que a suprema lei é a vontade das partes, que dita o direito, que elege a regra jurídica mediante a qual vai regular-se o próprio contrato ou os vínculos que se criam, salvo mediante restrições em defesa dos incapazes, da moral ou do interesse público”. 5 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 60. 6 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 22-23. 7 BECKER, Anelise. Teoria Geral da Lesão nos Contratos. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 16. 8 RIPERT, Georges. A Regra Moral nas Obrigações Civis. São Paulo: Bookseller, 2000, p. 54. 12 liberdade dos indivíduos, que “transformavam em ato toda a potência de suas vontades”9. Maria Celina Bodin de Moraes, com acuidade, assinala: Liberdade e autonomia privada foram, durante muito tempo, consideradas, do ponto de vista do Direito Civil, como conceitos sinônimos. De fato, era muito simples traduzir uma pela outra quando se estava referindo apenas à igualdade formal, no âmbito de situações patrimoniais; simples, porque se dava ao indivíduo, a todo e qualquer indivíduo, amplo poder de disposição, desde que, evidentemente, ele possuísse bens para contratar, bens para testar, 10 bens para adquirir, bens para dividir. Daí que, para alguns autores, o princípio da autonomia privada é uma das manifestações da autonomia da vontade, já que, de modo particular, compreenderia a força criadora do ânimo humano na formação de um vínculo obrigacional. Nada obstante, a autonomia da vontade é uma expressão mais ampla, que designa uma aspiração subjetiva e psicológica, ao passo em que a autonomia privada representa a própria concretização do poder da vontade num sentido dinâmico, voltado para o impulso criador de um fato jurídico “de um modo objetivo, concreto e real”.11 Portanto, a autonomia privada é um princípio jurídico que concretiza a faculdade que o ordenamento jurídico confere às pessoas para a autotutela dos seus interesses através da criação, da modificação ou da extinção de uma relação jurídica. Esse princípio, surgido com o Humanismo, ganhou notoriedade no século XVII, com a Escola do Direito Natural, e pressupõe que “cada indivíduo, enquanto sujeito de direito, goza da liberdade de se obrigar ou não, sendo pela sua vontade consciente que ele se obriga”.12 Silvio Rodrigues anota que a autonomia da vontade implica “na prerrogativa conferida aos indivíduos de criarem relações na órbita do direito, desde que se submetam às regras impostas pela lei e que 9 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 6ª edição. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 126. 10 MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 102. 11 AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 337-338. O mesmo autor ainda lembra que o habitat natural da autonomia privada é, por excelência, o negócio jurídico, ao passo em que comumente a autonomia da vontade tem sede nos atos jurídicos (Idem. Op. cit., p. 362-363). 12 GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 3ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian 2001, p. 737. 13 seus fins coincidam com o interesse geral, ou não o contradigam”.13 Com acerto, Arnoldo Wald pondera que esse princípio apresenta-se sob a forma da liberdade de contratar, consistente na faculdade de realizar ou não determinado contrato, e da liberdade contratual, composta pela possibilidade de fixação do conteúdo do contrato.14 Nesse mesmo sentido, Francisco Amaral explica que “a autonomia privada é o poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações de que participam, estabelecendo-lhes o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica.”15 Caio Mário da Silva Pereira enfatiza que o princípio da força obrigatória, reflexo da autonomia privada, espelha implicitamente o máximo de subjetivismo que a ordem legal é capaz de idealizar: “uma centelha de criação, tão forte e tão profunda, que não comporta retratação.”16 É, enfim, a “liberdade dos sujeitos de determinar com a sua vontade, eventualmente aliada à vontade de uma contraparte no ‘consenso’ contratual, o conteúdo das obrigações que se pretende assumir, das modificações que se pretende introduzir no seu patrimônio”.17 Emilio Betti opunha-se à tendência de se antever a autonomia privada como um ato de criação, pois, como se cuida de uma prerrogativa dada pela ordem jurídica, ela não pode criar nada, por se limitar a “realizar a hipótese de fato de uma norma já existente, dando vida, entre particulares, àquela relação jurídica que essa norma estabelece”.18 Sob o enfoque clássico, o princípio da autonomia privada é dotado de um caráter essencialmente subjetivo e invariavelmente psíquico, associado ao “poder dos indivíduos de suscitar, mediante declaração de vontade, efeitos reconhecidos e tutelados pela ordem jurídica. No exercício desse poder, toda pessoa capaz tem aptidão para provocar o 13 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 3. 27ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 15. WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil Brasileiro – Obrigações e Contratos. 12ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 162. 15 AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 337. 16 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. III. 10ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 6. 17 ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 128. 18 BETTI, Emilio. Teoria Geral do Negócio Jurídico, Tomo I. Campinas: LZN, 2003, p. 73-74. 14 14 nascimento de um direito, ou para obrigar-se”.19 Washington de Barros Monteiro explicava que através do manejo do princípio da autonomia da vontade: Têm os contratantes ampla liberdade para estipular o que lhes convenha, fazendo assim do contrato verdadeira norma jurídica, já que o mesmo faz lei entre as partes. Em virtude desse princípio, que é a chave do sistema individualista e o elemento mais colorido na conclusão dos contratos, são as partes livres de contratar, contraindo ou 20 não o vínculo obrigacional. Na tradição jurídica contemporânea, a autonomia privada desperta a noção de instrumento de circulação de riquezas e, em última análise, de tráfego jurídico do direito de propriedade,21 de modo a expressar o espírito patrimonialista e individualista que inspirou a sua consagração no Code, “centrada no império subjetivo do vínculo”.22 O grande Clóvis Bevilaqua, em colorida metáfora, explicou a densidade e a importância da autonomia privada na ótica tradicional na disciplina contratual: Desprendida a personalidade individual da nebulosa do coletivismo primitivo, robustecida, enlarguecida, toma o vôo, como prole emplumada, que abandona as alenturas enervantes do ninho, e começa, por meio dos contratos, na faina de aproximar as utilidades criadas ou apreendidas das necessidades sentidas. E, para realizar essa empresa, vai, progressivamente, estendendo o circulo de sua ação. Hoje um povo, amanhã um grupo de nações vizinhas, mais tarde um continente e, finalmente, o globo inteiro recebem 23 as malhas vigorosas da rede imensa do comércio. 19 GOMES, Orlando. Contratos. 18ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 22. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, 5º Vol., 2ª parte. 30ª edição. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 9. 21 Eros Grau observa que “a verdade, no entanto, é que tais valores não estão dispostos em situação simétrica, sendo mais correto observar que a liberdade de contratar não é senão um corolário da propriedade privada dos bens de produção. Isso porque a liberdade de contratar tem o sentido precípuo de viabilizar a realização dos efeitos e virtualidades da propriedade individual dos bens de produção. Em outros termos: o princípio da liberdade de contratar é instrumental do princípio da propriedade privada dos bens de produção” (GRAU, Eros Roberto, Op. cit., p.125). No mesmo sentido, Enzo Roppo acrescenta que, sob o ângulo do Código Napoleão, “o instituto do contrato assume, num certo sentido, uma posição não autônoma, mas subordinada, servil, relativamente à propriedade, que se apresenta como instituto-base, em torno do qual e em função do qual são ordenados todos os outros: o contrato, em suma, surge na consideração do legislador só no seu papel de instrumento (um dos instrumentos, a colocar ao lado de outros susceptíveis de desempenhar a mesma função, como por exemplo a sucessão mortis causa, que não por acaso são contemplados no mesmo livro) de transferência de direitos sobre coisas e, portanto, em primeiro lugar, o direito de propriedade” (ROPPO, Enzo Op. cit., p. 42). 22 BECKER, Anelise Becker, Op. cit., p. 19. 23 BEVILAQUA, Clóvis. Direito das Obrigações. Edição histórica. São Paulo: Red Livros, 2000, p. 211 e 212. 20 15 Mas tamanha pujança e abrangência só foram possíveis por obra de um processo histórico secular,24 que, com o advento da Revolução Francesa, em 1789, transformou a convenção em base de toda a autoridade entre os homens e postou a manifestação de vontade num patamar de igualdade com as fontes formais do Direito, como se a ordem jurídica delegasse uma parcela de sua competência normativa para os indivíduos, aos quais tocaria construir o vínculo contratual em conformidade com os seus interesses e conveniências. Pertinente, aqui, a reflexão de Martinho Garcez Neto: O Código napoleônico consagrou em texto especial essa concepção filosófico-jurídica que dominou por largo tempo: ‘les conventions légalement formées’ –– reza o art. 1.134, al. 1ª do código citado –– ‘tiennent lieu de lois à ceux qui les ont faites’. E Savatier, dissertando a esse respeito, podia dizer que a palavra lei, ali, não está empregada levianamente, mas como verdadeira homenagem à liberdade humana, cuja prerrogativa essencial era a de poder criar o direito. Nessa liberdade, inata a cada homem, há uma espécie de delegação do legislador. E é investido de tal poder da vontade que o indivíduo constrói o direito civil contratual, a 25 cujo serviço são colocados os Tribunais e a força pública. Por conseqüência, o Código Civil Francês permeou o princípio da autonomia privada com um sentido capaz de atribuir às pessoas um vasto potencial de autoregulamentação de seus interesses, no interior de um espaço preservado pela ordem jurídica para a expansão plena e absoluta do individualismo, que só encontraria refreio nos limites externos impostos pela ordem pública e pelos bons costumes.26 Em tal perspectiva, o papel do ordenamento jurídico no âmbito da atividade contratual seria reduzidíssimo, na medida em que se restringiria a demarcar o campo de atuação da liberdade de contratar, 24 Georges Ripert sintetiza com grande eloqüência a evolução lenta e gradual do teórico necessário à construção do princípio da autonomia privada, ressaltando que “para chegar a esta concepção da vontade soberana, criando ela própria e unicamente pela sua força direitos e obrigações, foi preciso que na obra lenta dos séculos a filosofia espiritualizasse o direito para desembaraçar a vontade pura das formas materiais pelas quais se dava, que a religião cristã impusesse aos homens a fé na palavra escrupulosamente guardada, que a doutrina do direito natural ensinasse a superioridade do contrato, fundando a própria sociedade sobre o contrato, que a teoria do individualismo liberal afirmasse a concordância dos interesses privados livremente debatidos sobre o bem público” (RIPERT, Georges. Op. cit., p. 53). 25 GARCEZ NETO, Martinho. Op. cit., p. 45. 26 O Código Napoleão preconiza: “Art. 6. Não se pode derrogar, através das convenções particulares, as leis que interessam à ordem pública e aos bons costumes” (nossa tradução livre). 16 dentro do qual todo egoísmo seria útil e qualquer proveito econômico, por mais exagerado que parecesse, seria justo, porque amparados no exercício soberano da vontade e no gozo dos atributos da liberdade. Ao lado de seu fundamento, enraizado, como se viu, na liberdade como um valor jurídico, algumas teorias buscaram vincular o princípio da autonomia privada a ideologias devotadas a justificar a sua existência e o seu sentido prático. Alicerçadas em doutrinas econômicas e de filosofia política, essas teorias conceberam a autonomia privada “como produto e como instrumento de um processo político e econômico baseado na liberdade e na igualdade formal, com positivação jurídica nos direitos subjetivos de propriedade e de liberdade de iniciativa econômica”.27 Filosoficamente, a autonomia privada seria um postulado da liberdade natural de que todas as pessoas são dotadas, que preexistiria independentemente do seu reconhecimento expresso nas ordens jurídicas. Nos meados dos séculos XVIII e XIX, dada a influência da concepção contratual da origem da sociedade e por reflexo da filosofia iluminista que desabrochava, o contrato foi tido como um instrumento capaz de permitir a explicação de todo sistema jurídico, desde o regime matrimonial – atravessando o direito sucessório, no qual a sucessão legal seria um testamento tácito do defunto – até a identificação da nacionalidade como um efeito decorrente de um contrato ajustado entre o súdito e o Estado.28 A respeito da acepção absoluta, Martinho Garcez Neto assoma: O princípio da autonomia da vontade parte do pressuposto de que os interesses privados, livremente discutidos, harmonizam-se com o bem-estar público e do contrato não pode surgir injustiça alguma, desde que as obrigações são assumidas livremente... Colhe-se, assim, que o princípio da autonomia da vontade, não é senão, em matéria de contratos, a aplicação das idéias individualistas apregoadas pela revolução francesa 29 e que tiveram apogeu no século XIX. 27 AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 348. TERRÉ, François; SIMLER, Philippe Simler; LEQUETTE, Yves. Droit Civil – Les obligations. 6ª edição. Paris: Dalloz, 1996, p. 23. 29 AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 348. 28 17 A ótica político-filosófica contempla a autonomia privada como um fim em si mesmo, a razão e a medida do usufruto da liberdade do homem, porque baseada na manifestação livre da vontade na qualidade de fonte criadora de direitos. Entrementes, Jean-Luc Aubert e Jacques Flour30 denunciam a fragilidade dessa teoria, pois a autonomia privada, antes de um preceito jusnaturalista e instrumento único da realização da ordem jurídica, é um produto construído pela dogmática jurídica e uma conseqüência natural da evolução do direito positivo. Por outro lado, o simplismo e o pragmatismo com que as doutrinas econômicas idealizaram a autonomia privada também produziram um forte impacto na disciplina dos contratos no período moderno, porquanto a idéia geral do liberalismo permitiu aos homens organizar livremente a troca de riquezas e de serviços e, na ótica jurídica, transformou a livre contratação como o instrumento soberano para o desenvolvimento de relações mais justas e socialmente úteis. John Gilissen associa os efeitos implacáveis do princípio da autonomia da vontade no curso dos séculos XVIII e XIX à influência exercida pelo ideário da economia mercantilista sobre as ordens jurídicas: As fórmulas ‘laissez faire, laissez passer’ e a lei da oferta e da procura repousam essencialmente sobre a liberdade contratual. É a idade de ouro da liberdade absoluta das convenções entre vendedores e compradores, entre patrões e operários, entre senhorios e inquilinos, etc., com a conseqüência da obrigação de as executar, mesmo se elas se revelassem injustas ou socialmente graves ou perigosas. Pois, então, estava-se convencido de que todo 31 o compromisso livremente querido era justo. Mesmo hoje respeitáveis setores da doutrina vêm no desenvolvimento econômico a justificativa mais importante do princípio da autonomia privada,32 como é o caso, entre nós, 30 FLOUR, Jacques; AUBERT, Jean-Luc. Droit Civil – Les Obligaciones – 1. L’acte Juridique. 7ª edição. Paris: Armand Colin, 1996, p. 71. 31 GILISSEN, John. Op. cit., p. 738-739. 32 V. LARROUMET, Christian. Droit Civil – Les Obligations – Le Contrat, Tomo 3. 4ª edição. Paris: Economica, 1998, p. 93. 18 do festejado Caio Mário da Silva Pereira, que, em ilustrativa passagem de suas Instituições de Direito Civil, afirma: O mundo moderno é o mundo do contrato. E a vida moderna o é também, e em tão alta escala que, se se fizesse abstração por um momento do fenômeno contratual na civilização de nosso tempo, a conseqüência seria a estagnação da vida social. O homo economicus estancaria suas atividades. É o contrato que proporciona a subsistência de toda a gente. Sem ele, a vida individual regrediria, a atividade do homem limitar-se-ia aos momentos 33 primários. A doutrina econômica, desse jeito, divulgava a idéia de que os indivíduos são os melhores juízes de seus próprios interesses, pois, como diria um aforismo liberal, “quando alguém decide alguma coisa a respeito do outro é sempre possível que lhe faça alguma injustiça, mas toda a injustiça é impossível quando ele decide por si próprio”.34 Todavia, a profundidade dessa ideologia, consagrada na célebre frase atribuída a Fouillée – “qui dit contractuel dit juste” – põe em evidência, ao mesmo tempo, o reconhecimento e o exagero da fórmula conceitual do princípio da autonomia privada. É porque a vontade não é capaz de criar mais do que uma justiça objetiva e tarifária, donde dizer-se que “o sistema individualista conduziu a se forjar um modelo abstrato de contratante: o bom pai de família. A idéia consiste em postular uma igualdade teórica entre todos os contratantes, sem realmente levar em consideração suas particularidades”.35 Isso levou Eduardo Nóvoa Monreal a afirmar cuidar-se de um princípio devotado à criação de normas abstratas para homens abstratos.36 Como instrumento por excelência para a troca de riquezas e para o tráfego jurídico do direito de propriedade, o contrato se transformou no mais auspicioso elemento da 33 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 4-5. RIPERT, Georges. Op. cit., p. 54. 35 NOGUERO, David. Le code civil e le contrat. Disponível em www.courdecassation.fr. Acesso em 26 de abril de 2004 (tradução livre). 36 MONREAL, Eduardo Novoa. O Direito como Obstáculo à Transformação Social. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 100. 34 19 economia e do comércio. O ordenamento jurídico seria um mero garantidor das regras do jogo, livremente definidas pelos particulares e dotadas de força obrigatória, das quais surgiria um vínculo contratual indissolúvel, que, quando ameaçado, “deveria o Estado vir em socorro do credor, colocando toda a força pública à sua disposição para compelir o devedor a cumpri-lo”.37 Clóvis Bevilaqua, em harmonia com o período histórico em que elaborou a sua obra doutrinária, reconhecia que o ordenamento jurídico tinha por objetivo atuar em prol dos fracos e que o direito obrigacional deveria buscar inspiração na equidade, de maneira a tornar os seus preceitos mais flexíveis e compatíveis com o elemento ético, apesar de não perder de vista o vigor absoluto do princípio da autonomia da vontade como elemento fiador da força obrigatória dos contratos: A intervenção do direito se faz necessária nesse momento, em que a falta de congruência atual dos interesses ameaça impedir a execução das obrigações contraídas. Em nome de um interesse mais ato, ele vem sustentar o contrato uma vez firmado; sem ele, os acordos raramente se executariam, quando constassem de alguma relação mais extensa do que uma simples permuta concluída num 38 só ato. Esse sentido absoluto atribuído ao princípio da autonomia privada era insensível à realidade porque sublimava a influência que os fatores sociais exerciam sobre as relações contratuais. O paradoxo dessa linha de pensamento, ancorada na valorização incondicional do livre-arbítrio dos homens, foi descortinado quando a realidade social revelou que a regra da liberdade contratual tanto poderia produzir efeitos bons, aptos à determinação de relações jurídicas justas e socialmente úteis, como também abomináveis e deletérios. Georges Ripert conseguiu condensar com retórica incisiva a dimensão contraditória que o princípio da autonomia privada, levado às últimas conseqüências, é capaz de 37 38 BECKER, Anelise. Op. cit., p. 28. BEVILAQUA, Clóvis. Op. cit., p. 213, nota n. 2. 20 promover no ordenamento jurídico. Vejam-se, a título de ilustração, as palavras desse jurista francês: Será permitido explorar a fraqueza física e moral do próximo, a necessidade em que ele está de concluir, a perversão temporária da sua inteligência ou da sua vontade? Pode o contrato, instrumento de troca das riquezas e dos serviços, servir para a exploração do homem pelo homem, consagrar o enriquecimento injusto 39 dum dos contratantes com prejuízo do outro?. Seja dito, a bem da verdade, que ainda nos dias de hoje o princípio da autonomia privada é digna de vassalagem pela linha de pensamento de alguns compartimentos da jurisprudência e da doutrina como um dogma intocável. Quer dizer, mesmo depois da superação da febre dogmática e da proliferação, na atualidade, de uma ordem de princípios que valorizam a confiança e o equilíbrio nos contratos, o absolutismo da autonomia privada, assentado no milenar princípio do pacta sunt servanda, ainda é um tabu. Vale a pena transcrever a ementa de um julgado: AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. CARTÃO DE CRÉDITO. CLÁUSULA CONTRATUAL. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. JUROS LEGAIS. INAPLICABILIDADE. PRINCÍPIOS DA AUTONOMIA DA VONTADE E DA FORÇA OBRIGATÓRIA DOS CONTRATOS. Civil. Cartão de crédito. Revisão de cláusulas contratuais. Impossibilidade. Juros legais. Inaplicabilidade. Ausência de regulamentação. Conseqüência. As cláusulas contratuais não podem ser alteradas judicialmente, para beneficiar a parte que não cumpre a obrigação a seu cargo. Se a norma constitucional que estabelece a limitação dos juros não é auto-aplicável e se o valor do financiamento é buscado no mercado bancário, sobre ele incidem os juros do referido mercado, que são repassados ao usuário do cartão de crédito por sua administradora. Recurso a que se 40 nega provimento. As razões de decidir do acórdão enfatizaram, em tom implacável, o poderio e o prestígio da autonomia privada como uma expressão da liberdade individual e definiram a 39 RIPERT, Georges. Op. cit., p. 54. TJ-RJ, 14ª Câmara Cível, Embargos Infringentes n. 16/2003, Relator Desembargador Marlan Marinho, j. 10.04.2002. 40 21 vontade como o elemento determinante e fundamento da força obrigatória das obrigações contratuais: De se observar que o financiamento do saldo devedor é opção do titular do cartão de crédito... Poderia o embargante, conforme esclareceu a embargada (f. 157), ter se socorrido de outras alternativas para quitar sua fatura mensal, não sendo, pois, obrigado a aceitar o percentual de encargos contratuais previamente informados pela administradora do cartão. Preferindo, no entanto, utilizar-se da comodidade que tal cláusula lhe proporciona, não pode agora dela libertar-se, imputando-lhe a pecha de abusiva... Afastadas, assim, a abusividade da aludida cláusula e a conseqüente aplicação do art. 51, IV, do C.D.C., volta-se a atenção para a liberdade conferida às partes de comporem elas mesmas os seus interesses... A inarredável conclusão a que se chega é a de que o embargante beneficiou-se do contrato, fazendo uso do cartão de crédito, para comprar os bens e contratar serviços, segundo a sua exclusiva conveniência. Portanto, deixando de honrar os pagamentos a que se obrigou, não pode, agora, pretender a revisão das cláusulas contratuais e beneficiar41 se da sua comprovada e reiterada inadimplência. Ao abrigo das perspectivas clássica e moderna, por conseguinte, infere-se que a autonomia privada foi elevada ao patamar mais alto da disciplina contratual e deificada como expressão final do processo de construção do consenso das partes, atributos capazes de excluir a revisão do conteúdo dos contratos legalmente formados em respeito à manifestação de vontade que lhes deu vida. 1.2. O DECLÍNIO DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA O princípio da autonomia da vontade, porém, mascarou uma ideologia fundada numa igualdade meramente formal, como se as pessoas, dotadas de idêntica liberdade, tivessem, por esse motivo, iguais oportunidades. “Atrás do encanto da fórmula, todavia, escondem-se tão-somente o liberalismo econômico e a tradução em regras jurídicas de 41 Ibidem. 22 relações de força mercantil,”42 razão pela qual foi impossível dissimular que a igualdade, formalmente considerada, não teria outro efeito que não permitir que o mais forte, de fato ou de espírito, ditasse a sua própria lei em seu benefício exclusivo, redundando na máxima que vaticina: “o que se diz contratual não se diz forçosamente justo”.43 As chances de desequilíbrio na conclusão contratual guardam relação diretamente proporcional com a desigualdade material entre os contratantes, em moldes que quanto maior a diferença entre as partes tanto maior será o risco de prejuízo para o lado mais débil. Em certa medida, o consenso na formação dos negócios jurídicos, e em especial nos contratos, contradiz a sua própria raiz semântica, que designa “conformidade, acordo ou concordância de idéias”,44 transformando as negociações preliminares, como alude, com acerto, Anelise Becker, num jogo de poder e de pressão: o consenso quase nunca é o ponto de encontro de duas vontades que, tendo dialogado, encontraram uma base de entendimento, mas sim a resultante da intensidade e eficácia dos meios de pressão com que cada um procurou levar o outro a cedências em relação às suas posições iniciais: negociar não é um exercício de razão, mas um 45 exercício de poder . Esse cenário tornou inevitável a revisão da abstração excessiva da compreensão da autonomia privada, a qual, forjada por séculos de tradição jurídica e consagrada em centenas de textos normativos, erigiu uma barreira intransponível que punha a relação contratual a salvo de qualquer análise de conteúdo pelo Estado (juiz), a quem se interditava considerar fatores externos pertinentes à desigualdade entre os contratantes, mesmo que o negócio consubstanciasse um palco de injustiças e de iniqüidades. Foi preciso que o contrato se adaptasse a um novo contexto econômico-social, nomeadamente em razão 42 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de janeiro: Renovar, 1999, p. 19. 43 NOGUERO, David. Op. cit. (tradução livre). 44 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI. Versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Novembro de 1999. 45 BECKER, Anelise. Op. cit., p. 66. 23 dos fenômenos da contratação em massa e da diversificação e expansão dos meios de informação e comunicação. A autonomia privada, entronada como dogma criador dos negócios jurídicos, perdeu o seu caráter mitológico de outros tempos, na medida em que os aspectos com que se exterioriza – a liberdade de contratar propriamente dita e a liberdade de estipulação do conteúdo material do contrato – foram abalados por variadas exceções, como nos casos da obrigação de contratar, em que a faculdade de abstenção de participar de um contrato é subtraída de um dos contratantes, e dos contratos de adesão, que não permitem ao aderente tomar parte na determinação do conteúdo do negócio. É porque “de tal modo se abusou dessa liberdade, sobretudo em algumas espécies contratuais, que a reação cobrou forças, inspirando medidas legislativas tendentes a limitá-las energicamente”.46 E Martinho Garcez Neto exclamou: E parecerá até ridículo falar-se de uma igualdade tão utópica, como seja a igualdade jurídica, em tese apenas, dos contratantes, desde que ela não impede, antes facilita e fomenta o desate de desigualdades reais, concretas, de fácil constatação. E se, hodiernamente, não se pode negar que, apenas em reduzida minoria, existe a possibilidade de livre discussão das cláusulas de um contrato; se, na verdade, a imensa maioria dos contratos são impostos, como lei da parte mais forte imposta à mais fraca, que apenas tem a liberdade de aderir ao contrato, isto é, de aceitá-lo como lhe é oferecido, sem que o possa discutir e impugnar, certamente a tão apregoada igualdade dos contratantes não passa de uma fábula, de que se vale o contratante mais forte para explorar e oprimir o mais fraco, 47 menos favorecido pela situação econômica e social. Tudo isso contribuiu para redimensionar, ou equacionar ao seu devido lugar, o papel da vontade no Direito das Obrigações, que deixa de ser um fim em si mesmo para ser reconhecido como parte integrante da etapa conclusiva dos negócios contratuais. Alguns chegaram a falar na morte do contrato. Isso, de fato, seria um exagero e não passou, quando muito, duma metáfora criada para simbolizar que os novos tempos reclamam por 46 47 GOMES, Orlando. Op. cit., p. 26. GARCEZ NETO, Martinho. Op. cit., p. 46. 24 um novo paradigma na disciplina dos contratos. Conveniente, aqui, a opinião de Enzo Roppo, que diz: Se, em alguns aspectos, o contrato se mostra atualmente em declínio, noutros aspectos, o seu papel conhece uma expansão e um relançamento; o contrato não está ‘morto’, mas está simplesmente ‘diferente’ de como era no passado; e mais que de um retorno ‘do contrato ao status’, parece legítimo falar de uma passagem de um modelo de contrato a um novo modelo de contrato, adequado às 48 exigências dos novos tempos. A instituição contratual, desse jeito, foi redesenhada pela influência de uma nova era, na qual o vínculo obrigacional não tem mais o seu caráter unilateral e utilitarista de outrora, a fim de ser interpretado como um instrumento devotado a propiciar a realização dos mútuos interesses das partes. Nada morreu, sem dúvidas: O contrato não morreu nem tende a desaparecer. A sociedade é que mudou, tanto do ponto de vista social como do econômico e, conseqüentemente, do jurídico. É preciso que o Direito não fique alheio a essa mudança, aguardando institutos com o perfil que herdamos dos romanos, atualizado na fase das codificações do século XIX. A propósito, o último grande movimento reformista do Direito Privado no mundo ocidental ocorreu com a recepção do Direito Romano, o que, convenhamos, não se coaduna com o dinamismo que a sociedade, em constante 49 transformação, está a exigir da ciência do Direito. A liberdade contratual sofre, hoje, severas limitações50 e o individualismo sem freios que, em outra época, corrompia os seus fundamentos foi remodelado a par de novos valores e objetivos, muitos deles de matiz constitucional.51 e 52. Dito em outros termos, isso 48 ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 347. GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos e; FINK, Daniel Roberto; FILOMENO, José Geraldo Brito; WATANABE, Kazuo; NERY JÚNIOR, Nelson; DENARI, Zelmo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. 8ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 503. 50 Enzo Roppo lembra que, de fato, o papel da vontade sofreu um processo de erosão, embora isso não tenha implicado, de per si, na subtração da liberdade econômica dos sujeitos, tratando-se, antes disso, duma providência devotada a “adequar as suas formas de exercício, para torná-las mais funcionais às novas condições do mercado capitalista” (Idem. Op. cit., p. 311). 51 Neste sentido: AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 354, onde se lê: “Ora, se por um lado vemos a redução ou anulação do individualismo subjacente aos postulados liberais do direito civil burguês, por outro lado, temos o reconhecimento constitucional desses mesmos postulados, revestidos, é certo, de uma dimensão pública, geral e funcional, no sentido de que, integrados na ordem econômica e social, servem como instrumentos de desenvolvimento e justiça social”. 52 Valem destaque, em especial, os fundamentos republicanos da dignidade humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (art. 1º, incisos III, IV e V, da Constituição Federal) e os 49 25 implica em asseverar que “a vontade continua essencial à formação dos negócios jurídicos, mas sua importância e força diminuíram, levando à relativização da noção de força obrigatória e da intangibilidade do conteúdo do contrato.”53 Há, pois, uma evolução na qual, após termos abandonado a caracterização do contrato como manifestação ilimitada da liberdade individual, demos-lhe uma nova conceituação em que prepondera, ou deveria preponderar, sobre a intenção e a vontade individual de cada um dos contratantes, o consenso que entre eles se formou, sem que seja lícito, a qualquer um deles, tirar uma vantagem maior do que a racionalmente aceitável, tanto no momento da celebração do contrato, como em todo período da sua execução, quando se trata de convenções com efeitos duradouros ou 54 diferidos. Assim, o desenho conceitual da autonomia privada foi refeito desde os seus fundamentos e de seus limites externos até à própria compleição interna dos contratos, o que Orlando Gomes denomina esquema legal.55 Em outras palavras, houve uma alteração de forma e de conteúdo, que transformou profundamente a fisionomia tradicional da atividade contratual. Segundo Francisco Amaral: O problema da autonomia privada é, portanto e somente, um problema de limites que se colocam, por exemplo, com o dever ou a proibição de contratar, a necessidade de aceitar regulamentos predeterminados, a inserção ou substituição de cláusulas contratuais, o princípio da boa-fé, os preceitos de ordem pública, os bons costumes, a justiça contratual, as disposições sobre abuso de direito etc., tudo isso passou a representar as exigências crescentes de 56 solidariedade e de socialidade . objetivos da República Federativa do Brasil, consistentes na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, na erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem comum, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e outros meios discriminatórios (art. 3º, incisos I, III e IV, da Constituição Federal). 53 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 122. 54 WALD, Arnoldo. O Novo Código Civil e a Evolução do Regime Jurídico dos Contratos. Rivista di Diritto Dell’Integrazione e Unificazione del Diritto in Europa e in America Latina. Roma, n. 16/2003: Mucchi Editore, p. 87-107. 55 Cf. GOMES, Orlando. Op. cit., p. 29. 56 AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 355. 26 Segue-se que nos contratos de adesão, ou standard,57 e naqueles em que uma das partes atua no mercado de bens ou serviços em regimes de monopólio legal e de fato,58 ou de quase-monopólio,59 a importância da manifestação de vontade do aderente ou do que se vê na contingência de não poder se abster de contratar é bastante mitigada, especialmente quando se pensa na autonomia privada como um meio de autoregulamentação dos próprios interesses dos contratantes. É porque, em casos tais, o assentimento na conclusão negocial, emitida pela parte em posição de sujeição, dirige-se simplesmente à aceitação do vínculo, sem que se lhe possibilite debater previamente o conteúdo do negócio, suprimindo-se, desse modo, uma parte fundamental do iter de formação dos contratos, que é o período de discussões e de concessões recíprocas que antecede a celebração do pacto, denominado tratativas, ou negociações preliminares. Oportuna, aqui, a observação de Georges Ripert acerca da realidade negocial presente nos contratos de adesão: Consentir num contrato é debater as suas cláusulas com a outra parte depois duma luta mais ou menos dura, cuja convenção traduzirá as alternativas. Aderir é submeter-se ao contrato estabelecido e submeter a sua vontade protestando no íntimo contra a dura lei que lhe é imposta. Num tal contrato há sempre uma espécie de vício permanente do consentimento, revelado pela própria natureza do contrato. Que há de contratual neste ato jurídico ? É na realidade a expressão duma autoridade privada. O único ato de vontade do aderente consiste em colocar-se em situação tal que a lei da outra parte venha a se aplicar. O aderente entra neste círculo estreito que a vontade da outra parte é soberana. E, quando pratica aquele ato de vontade, o aderente é levado a isso pela imperiosa necessidade de contratar. É uma graça de mau 60 gosto dizer-lhe: tu quiseste. É evidente que os contratos feitos num ambiente de monopólio, em que predomina a contratação obrigatória, assim como nos casos dos contratos de adesão, um aspecto 57 ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 312. O monopólio de fato, segundo Orlando Gomes, é aquele caso que “embora não seja de monopólios, nasce tal como se fosse, por exemplo, a das companhias de seguros em relação aos seguros obrigatórios” (GOMES, Orlando. Op. cit., p. 27). 59 TERRÉ, François Terré; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 31. 60 RIPERT, Georges. Op. cit., p. 112 e 113. 58 27 primordial da autonomia privada é alijado, pois a parte mais vulnerável é tolhida do poder de deliberação dos efeitos do negócio de que participa. E isso, por si só, já se assemelha suficiente para justificar a reconstrução de uma nova noção de ordem pública para permitir a intervenção estatal nos contratos, em que o paradigma do indivíduo é substituído pelo paradigma social, como “instrumento de cooperação entre os indivíduos no interesse comum dos mesmos e da própria sociedade”.61 Vale também afirmar: A liberdade contratual não é reconhecida senão porque a troca dos produtos e dos serviços nos aparece com a mais justa e a mais fácil organização das relações sociais. Se, em certos casos, esta liberdade leva à exploração injusta dos fracos pelos fortes, é preciso quebrá-la. Não é por não ter natureza contratual que o contrato de adesão é 62 suspeito, é, pelo contrário, por ser contrato. Dentro dessa ordem de coisas, notadamente depois da segunda Grande Guerra, com a massificação das relações de consumo, o mundo testemunhou o surgimento de um sem-número de leis destinadas à tutela de determinadas relações jurídicas e de certos tipos contratuais, que usurparam a centralidade do Código Civil e a sua primazia como estatuto fundamental do direito privado. David Noguéro, em feliz alusão, destaca que “em 1804, o contrato é um pilar do Código civil. Em 2004, o Código civil é um pilar do direito dos contratos”.63 A propósito disso, Roberto Wider também pondera: Se antes a liberdade de contratar representava o axioma máximo da autonomia (rectius – liberdade) individual, hoje, este direito deixa de representar um poder reconhecido a um indivíduo, para instrumentalizar uma política econômica do Estado, na defesa e proteção dos mais fracos, representada no exemplo mais paradigmático que é a 64 proteção dos consumidores. 61 WALD, Arnoldo. O Novo Código Civil, cit, p. 99. RIPERT, Georges. Op. cit., p. 116. 63 NOGUERO, David. Op. cit.. 64 WIDER. Roberto. O Direito dos Contratos e a Autonomia da Vontade. A Proteção Especial dos Consumidores. Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 54, p. 13-33, jan/mar, 2003. 62 28 Despontaram, com isso, diversas leis especiais de vocação setorial, voltadas à disciplina exaustiva de determinadas relações jurídicas reputadas dignas de tratamento especial pelo ordenamento jurídico, como foi o caso, por exemplo, do Decreto n. 22.626/33 (Lei da Usura), da Lei de Loteamentos (Decreto-lei n. 58/37), do Estatuto da Terra (Lei n. 4.132/62), das sucessivas leis de locações de imóveis urbanos, do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), do recente Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/01), que, dentre outras conseqüências, redundaram no arrefecimento do princípio do pacta sunt servanda, grande baluarte dos contratos,consoante alude Cláudia Lima Marques: Como se observa, o postulado da força obrigatória dos contratos encontra-se muito modificado pelas novas tendências sociais da noção de contrato. O papel dominante agora é o da lei, a qual com seu intervencionismo restringe cada vez 65 mais o espaço para a autonomia da vontade . Neste compasso, por igual, deu-se conta que até mesmo as relações contratuais, além da satisfação das metas econômicas das partes, também buscam, de maneira mediata, a realização de outros objetivos que, não raro, transcendem o campo patrimonial. Realmente, várias são as hipóteses em que os contratos dirigem-se à promoção de valores, que, embora secundários para a determinação do elemento causal, têm relevância direta aos olhos do ordenamento jurídico. Fala-se, por isso, na utilidade social dos contratos66 ou, entre nós, em função social.67 Francisco Amaral explica que a função social representa o “não-individual”, um critério de valoração de situações jurídicas conexas ao desenvolvimento das atividades econômicas, que “sistematicamente, atua no âmbito dos fins básicos da propriedade, da garantia de liberdade e, conseqüentemente, da afirmação da pessoa”,68 “isto é, o direito deixa o ideal positivista (e dedutivo) da ciência, reconhece a influência do social (costume, 65 MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p. 126. V. FLOUR, Jacques; AUBERT, Jean-Luc. Op. cit., p. 67. No mesmo sentido: TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 27. 67 V. artigo 421 do Código Civil. 68 AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 357. 66 29 moralidade, harmonia, tradição) e passa a assumir proposições ideológicas, ao concentrar seus esforços na solução dos problemas.”69 “A evolução jurídica demonstra que o contrato perdeu a sua característica tradicional, da concepção clássica, isto é, deixou de ser individual e passou a assumir, na modernidade, feição nova, de instituto jurídico social”.70 Leonardo Mattietto enfatiza que “o princípio da autonomia privada, com as suas variantes de autodeterminação e autovinculação, cedeu lugar a um novo direito obrigacional, que acolhe no seu próprio âmago os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da boa-fé objetiva”.71 Enoque Ribeiro dos Santos ressalta: Na verdade, os negócios jurídicos tendem a se apresentar de forma mais humanística e a se socializar no futuro, nesses novos tempos de enaltecimento dos direitos humanos fundamentais da pessoa humana. Toda plêiade de contratos, desde os mais modestos e freqüentes até os mais sofisticados, que envolvem poderosas multinacionais tendem a coibir os atos de exploração e de abusos aos 72 mais fracos economicamente . Paulo Neves Soto advoga a precedência do enfoque civil-constitucional na disciplina dos contratos e destaca que foi a partir da aplicação do princípio da função social que se buscou a superação do voluntarismo, iniciada por meio de leis especiais que disciplinavam setores do direito privado, como foi o caso do Código de Defesa do Consumidor, até atingir um ponto de desequilíbrio entre a realidade social e o ordenamento jurídico, em que a Constituição se sobrepôs como “fonte e filtro das decisões legais ordinárias, judiciais e administrativas”.73 69 MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p. 104. GARCEZ NETO, Martinho. Op. cit.l, p. 50. 71 MATTIETTO, Leonardo de Andrade. O papel da vontade nas situações jurídicas patrimoniais: o negócio jurídico e o novo Código Civil. Diálogos sobre Direito Civil – Construindo a Racionalidade Contemporânea. Carmem Lucia Silveira Ramos (organizadora)... et al. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 23-39. 72 SANTOS, Enoque Ribeiro. A Função Social do Contrato e o Direito do Trabalho. Revista LTr, Vol. 67. São Paulo, n. 12, p. 110-132, dez/2003. 73 SOTO, Paulo Neves. Novos perfis do direito contratual. Diálogos sobre Direito Civil – Construindo a Racionalidade Contemporânea. Carmem Lucia Silveira Ramos (organizadora)... et al. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 247-265. 70 30 Isso parece explicar porque, na atualidade, a relevância do papel da vontade voltase menos para o elemento exterior da vontade e mais para a confiança que a própria declaração em si, dentro de dadas circunstâncias e condições, tornaria razoável e legítimo esperar. Em outras palavras, a ordem jurídica passa a apegar-se ao conteúdo objetivo do contrato e aos efeitos que razoavelmente deveria suscitar. Trata-se da chamada objetivação,74 ou publicização do contrato,75 que significa “um capítulo novo de sua evolução, já que, através de sua longa vida, tem ele passado por numerosas vicissitudes”.76 Enzo Roppo anota: Para que um tal objetivo seja conseguido, o contrato não pode mais configurar-se como o reino da vontade individual, a expressão direta da personalidade do seu autor, exposto, por isso, a sofrer, de forma imediata, os reflexos de tudo quanto pertence à esfera daquela personalidade e daquela vontade; para servir o sistema da produção e da distribuição de massa, o contrato deve, antes, tornar-se, tanto quanto possível, autônomo da esfera psicológica e subjetiva em geral do seu autor, insensível ao que nesta se manifesta e sensível sobretudo ao que se manifesta no ambiente social, nas condições objetivas do mercado: o comtrato deve transformar-se em instrumento objetivo e impessoal, para adequar-se à objetividade e impessoalidade do 77 moderno sistema de relações econômicas . O jurista contemporâneo não pode perder de vista que os contratos têm uma função importantíssima no modus vivendi do mundo ocidental, cada dia mais dinâmico, massificado e cercado por um impressionante conjunto de informações. Os contratos, assim, permitem que os indivíduos presidam o destino dos seus interesses através da determinação dos objetivos práticos que almejam atingir com o negócio. É por isso que falar na morte ou na extinção do contrato é um exagero retórico, que deve ser interpretado como um signo conotativo das mudanças sofridas pelo Direito Civil na atualidade. 74 ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 309-310. GARCEZ NETO, Martinho. Op. cit., p. 48. 76 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit. p. 13. 77 ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 309. 75 31 1.3. O CAMINHO DO SUBJETIVISMO À TUTELA OBJETIVA DA CONFIANÇA O processo volitivo percorre um indecifrável caminho desde as mais remotas entranhas do querer do agente até o momento em que se revela ao mundo exterior com a manifestação de vontade. A declaração é a exteriorização dum elemento mais importante e decisivo, qual seria a vontade do agente, a “base e fundamento do ato, sua razão de ser, a alma do negócio jurídico”.78 A dualidade entre o ato exterior e o evento psíquico que lhe deu origem é bastante conhecida da filosofia e da lingüística, que há muito se dedicam à decifração da relação entre conteúdo e forma e entre significante e significado. A própria Bíblia Sagrada, em conhecido aforismo da segunda epístola de São Paulo aos Coríntios, adverte que “a letra mata, mas o espírito vivifica” (Coríntios II, 3,6). Em Direito, mais precisamente, fala-se que o processo volitivo é composto por dois elementos: a vontade interna, consistente no íntimo querer do sujeito, devotada à criação, à modificação ou à extinção de um direito; e a declaração, consubstanciada na exteriorização da vontade interna no momento da celebração do ato. Vicente Ráo aprofundou o estudo da fenomenologia jurídica da manifestação de vontade e decompôs o iter do processo de formação do consentimento em três planos distintos, que chamou de elementos volitivos, que se iniciam no plano psíquico do agente, percorrem-lhe as veredas do pensamento e terminam na aceitação do negócio, com a materialização da declaração: Consistem, pois, tais elementos: a) na vontade consciente de se alcançar o bem que se conhece, ou seja, na autodeterminação de obtê-lo; b) na vontade de declarar a vontade propriamente dita; c) na vontade do que se contém na 79 declaração ou nas declarações efetivamente produzidas. 78 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, 1º Vol. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 184. 79 RÁO, Vicente. Ato Jurídico. 4ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 175 e 176. 32 O caminho que a manifestação de vontade segue, não raro, encontra acidentes de percurso, e aquilo o que verdadeiramente se quis dizer se distancia do que se disse querer; em outras palavras, acontece um conflito entre a vontade interna do sujeito e a declaração aposta no negócio, assunto que merece especial atenção para se determinar quais partes desse mesmo fenômeno devem prevalecer e por quais motivos. Ao longo do tempo, muitas teorias reivindicaram o mérito de oferecer a solução mais adequada e justa para dirimir os termos do problema decorrente da falta de correlação entre a vontade íntima do sujeito e a declaração: algumas penderam para a supremacia do elemento subjetivo, em detrimento do conteúdo declarado no negócio jurídico; outras deram primazia ao aspecto objetivo da manifestação de vontade. A teoria subjetiva, ou da vontade (Willenstheorie), a partir da observação do negócio jurídico como um ato essencialmente voluntário, destinado à construção de relações jurídicas reconhecidas pela ordem jurídica, considera que a conformidade entre o íntimo querer do agente e a declaração é um pressuposto de validade inafastável, cuja ausência implicaria em sua invalidade. A discrepância entre o querer íntimo e o manifestado na declaração de vontade seria um fato inaceitável, que, quando muito, redundaria na criação de um simples arremedo de negócio jurídico. Dito de outro modo: A declaração de uma vontade não existente, ou não verdadeira, ou inválida, mais não significaria do que a aparência de uma declaração de vontade; e quando em vontade se fala, deve-se entender que de determinação ou ânimo se trata, dirigido, direta e imediatamente, à 80 consecução dos efeitos jurídicos do ato praticado. Desse jeito, diante da divergência entre a vontade interna e a vontade declarada, é aquela que deve prevalecer, porquanto, diriam os subjetivistas, “o negócio jurídico é 80 RÁO, Vicente. Op. cit., p. 164. 33 essencialmente vontade, a que deve corresponder exatamente a sua forma de declaração, que é simples instrumento de manifestação dessa vontade”.81 Não são poucas as críticas à concepção da teoria da vontade, cunhada no apogeu do individualismo e empenhada essencialmente à exclusiva salvaguarda dos interesses do declarante, a qual, afetada pelo culto absolutista ao princípio da autonomia privada, relegou para um plano secundário – ou mesmo até de uma completa irrelevância jurídica –, as expectativas legítimas e o sentido de confiança que o ato negocial suscitou no âmbito social. “Ela é capaz de semear grande insegurança no meio em que a declaração se projeta e, portanto, na sociedade, pois qualquer negócio, aparentemente consolidado, pode vir a se desfazer se uma das partes demonstrar que com ele concordou inspirada em erro”.82 Demais disto, a premissa em que se apóia a teoria voluntarista é equivocada, tendo em mira que não se pode afirmar existir simetria entre a vontade do agente e o princípio da autonomia privada, como se houvesse, entre ambos, uma harmoniosa e necessária relação de causa e efeito. De fato, não raro, a solução para os problemas do desacordo entre o querido e o declarado não vem dos recônditos cantos da psique dos contratantes, mas precisamente daquilo o que Emilio Betti denomina tipicidade social, consistente num juízo valorativo ético e econômico que a consciência social idealiza sobre um tipo negocial,83 o que revela o equívoco de se contemplar a salvaguarda irrestrita da vontade como um corolário perfeito do princípio da autonomia privada: Entre o dogma da vontade e tutela da autonomia privada, não há, de fato, coincidência necessária: nem sempre é verdade que para garantir o respeito substancial da autonomia, da liberdade e, portanto, dos interesses dos contraentes, seja preciso prestar absoluto e incondicionado 84 obséquio às suas tomadas de posição psíquicas. 81 AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 371 e 372. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1. 30ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 184. 83 BETTI, Emilio. Op. cit., p. 278-279. 84 ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 143. 82 34 Por outro lado, levada a aplicação dessa teoria a conseqüências extremas, chegarse-ia ao ponto de se criar situações injustas e contraditórias. Ora, se é mesmo a vontade interna das partes que atua como fonte de validade dos negócios jurídicos, não seria nenhum absurdo dizer-se que qualquer das partes poderia retroceder o seu consentimento até o cumprimento das obrigações contratuais assumidas, ao argumento de agir em conformidade com a prerrogativa que a autonomia da vontade lhe confere. Realmente: Se é a vontade interna dos contratantes que dá origem aos efeitos jurídicos do ato, não passando a declaração de simples meio pelo qual aquela vem ao conhecimento de terceiros, cada um pode modificar sua vontade até o momento de sua realização, o que torna a teoria clássica, além de falsa, sob o ponto de vista teórico (por repousar sobre a ficção da onipotência da vontade), perigosa para o crédito público, na medida em que permite, em nome de uma vontade secreta, a anulação de um contrato que a 85 contraparte acreditava válido. Vicente Ráo questiona a relevância prática e científica da supervalorização do elemento espiritual dos negócios jurídicos, sobretudo porque o seu aspecto objetivo – aquilo que desperta o sentido de confiança na declaração negocial e nas expectativas legítimas das partes – é, amiúde, muito mais pertinente para a interpretação do seu conteúdo do que os dados de ordem subjetiva. O mesmo jurista ainda lembra que o Direito Romano clássico jamais deu grande importância para o elemento subjetivo dos contratos, o que é evidenciado pelo fato de que as noções de novação, de compensação, e de doação foram construídas sem que se recorresse ao aspecto interno do consentimento, e que a incorporação do animus como um traço característico da validade de algumas figuras jurídicas só ocorreu com as compilações justinianéias.86 Por fim, acrescenta: ‘Toda essa corrente de animus é produto da decadência bizantina, fruto típico das abstrações metafísicas dos jurisconsultos do Oriente; e provou, mais, que o direito clássico ignorava tão rica nomenclatura; e se aos jurisconsultos clássicos o animus específico não se afigurou necessário 85 86 BECKER, Anelise. Op. cit., p. 45. RÁO, Vicente. Op. cit., p. 166. 35 para um instituto ou outro, é muito provável que também 87 não o seja para nós, modernos’. A bem da verdade, o apego excessivo às idéias voluntaristas representa um elemento inibidor do comércio jurídico e, em última análise, um importante fator de insegurança para as relações jurídicas. Ao lado disso, não se deve perder de vista que a consideração da teoria da vontade a pontos extremos teria como efeito o aprisionamento daquele a quem se dirigiu a manifestação de vontade aos subjetivismos, às incertezas e à própria malícia do declarante. Outro problema que jamais pôde ser resolvido pelos prosélitos da teoria subjetiva diz com a dificuldade, senão a impossibilidade, de se aferir a real intenção do agente por ocasião da conclusão do negócio jurídico. Depois da saturação da fase subjetivista, a teoria da declaração (Erklärungstheorie) foi elaborada em oposição à teoria da vontade para advogar a precedência do conteúdo declarado no negócio jurídico em detrimento do íntimo querer do declarante sempre que um e outro não coincidirem. Com a atenção voltada para o extremo oposto do iter constitutivo da manifestação de vontade, essa teoria almejou emprestar maior segurança, concretude e dinamismo às relações jurídicas, de maneira a alforriar o comércio jurídico de obstáculos psíquicos e de metáforas de caráter mitológico.88 Essa teoria, sem dúvidas, proporcionou uma margem de segurança satisfatória para o comércio jurídico, na medida em que a validade do negócio jurídico deixava de ter como apoio a onipotência do querer das partes a fim de voltar-se para a vontade declarada. Na perspectiva dessa teoria, “qualquer declaração obriga, ainda que por mero gracejo”.89 Quer dizer, o negócio jurídico busca o seu fundamento não mais no íntimo querer das partes, mas naquilo que foi declarado como querido. Dir-se-ia, à vista desarmada, que a teoria da declaração libertou as relações negociais da influência perniciosa do elemento subjetivo e, 87 Idem.. Op. loc. cit.. BETTI, Emilio. Op. cit., p. 91. 89 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 332. 88 36 portanto, assegurou uma significativa zona de segurança jurídica para o regime dos contratos. Entretanto, a aparente segurança da teoria da declaração gerou numerosos inconvenientes no mundo jurídico, pois no afã de eliminar a ascendência da vontade nos negócios jurídicos, acabou ampliando a sua influência, uma vez que “privilegiando a declaração, bilateralizou o dogma da vontade, fazendo transparecer as intenções de ambas as partes”.90 Ademais, o prestígio inflexível da vontade declarada obstruiu por completo a análise do processo de formação do elemento subjetivo nos atos negociais, desprezando a sua relevância como parte integrante da própria declaração que dá vida à relação jurídica91 e aniquilando os fundamentos da teoria dos vícios de consentimento, donde convir-se como pertinente a advertência de Vicente Ráo: Por mais respeitável que se afigure o propósito de imprimir segurança às relações disciplinadas pelo direito, nem por isso poder-se-á desconhecer a função fundamental dos elementos volitivos na formação e na eficácia dos atos jurídicos, mesmo que se reduza o campo de aplicação dessa teoria aos atos inter vivos, ou, tão-só, aos contratos bilaterais, admitindo-se, ainda apenas dentro destes limites, como regra, o predomínio da declaração sobre a vontade, 92 em caso de conflito. A verdade é que ambas as teorias – voluntarista e da declaração – contêm um vício genético insuperável, porque buscam isolar em partes distintas um fenômeno que não pode ser apreendido senão através da análise conjunta de todos os seus componentes. Do ponto de vista metodológico, trata-se de uma opção distinta, a qual, sem desprezar o íntimo querer e a vontade exteriorizada no negócio jurídico, atribui a cada qual o seu justo valor. Antônio Junqueira de Azevedo, a propósito dessa afirmação, acrescenta: Certamente, a declaração é o resultado do processo volitivo interno, mas, ao ser proferida, ela o incorpora, absorve- 90 BECKER, Anelise. Op. cit., p. 46. RUGGIERO, Op. cit., p. 330. 92 RÁO, Vicente. Op. cit., p. 170. 91 37 o, de forma que se pode afirmar que esse processo volitivo não é elemento do negócio. A vontade poderá, depois, influenciar a validade do negócio e às vezes também a eficácia, mas, tomada como iter do querer, ela não faz parte, existencialmente, do negócio jurídico; ela fica inteiramente 93 absorvida pela declaração, que é o seu resultado. Essa comutação metodológica da interpretação dos negócios jurídicos resulta na tendência de relativização do papel da vontade, que, sem eliminá-la do quadro conclusivo dos negócios jurídicos, deixa de tutelá-la no seu aspecto interno e volátil, mas como o limiar de um processo que encontra o seu ápice na declaração negocial, cujos efeitos produzidos ater-se-ão menos ao que se quis ou ao que se disse querer e mais às expectativas legítimas e ao grau de confiabilidade que o negócio jurídico suscitou no ambiente social. A final de contas, como alguém já disse, “ninguém contrata no vácuo”, o que importa em admitir que os negócios jurídicos são um fenômeno social e que sua interpretação não pode ser feita sem que se permita a influência do contexto coletivo no qual os seus efeitos serão produzidos: O critério exato para a procurada classificação, não se deduz do espírito interior do declarante, olhando, por assim dizer, para trás, para a gênese psicológica individual, mas olhando para diante, para o ambiente social externo, no qual a declaração é emitida e é chamada a produzir os 94 seus efeitos e a atingir os seus fins. A antiga querela doutrinária acerca da precedência da vontade interna ou da declaração cedeu espaço para a idéia de tutela objetiva da confiança (Vertrauensgebot). Realmente, a manifestação de vontade não pode ser encarada como o fiel da balança e elemento de legitimação dos efeitos produzidos pelo negócio jurídico, porque, nos tempos de hoje, a ordem jurídica atribui importância preponderante às expectativas legítimas decorrentes do vínculo contratual, de modo a valorizar a confiança e os sentidos ético e social corredios no ambiente coletivo. 93 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico – Existência, Validade e Eficácia. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 82. 94 BETTI, Emilio. Op. cit., p. 217. 38 “A natureza e as características do negócio jurídico residem fundamentalmente no comportamento objetivo do agente, como auto-regulamento de seus próprios interesses”.95 Vale dizer – em conformidade com a teoria preceptiva, cunhada pela genialidade de Emilio Betti96 – que o negócio jurídico é um meio de autodeterminação dos objetivos práticos que às partes interessam atingir, que será validado pelo ordenamento jurídico a par dum juízo valorativo de sua função econômico-social. Ou seja, o fim prático que o negócio contratual visa a concretizar pressupõe a avaliação de sua compatibilidade com os preceitos éticos e sociais que presidem a consciência coletiva. Quer dizer: Deixou de parecer contraditório admitir a possibilidade de que declarações não mais queridas adquiram, na sociedade, o conteúdo e o significado de preceitos, obrigatórios para quem os emitiu, senão a título de vontade, a título de auto-responsabilidade pela confiança razoável 97 radicada nos ‘outros’ a quem a declaração era destinada. Enzo Roppo prefere identificar a teoria preceptiva dos negócios jurídicos como a moderna tendência de objetivação dos contratos, cujos efeitos típicos são determinados pelo elemento externo e visível que o vínculo negocial faz transparecer e ser reconhecido pelo outro contratante: A característica é a de ligar os efeitos e o tratamento jurídico das relações aos elementos objetivos, exterior e socialmente reconhecíveis, dos atos pelos quais as relações se constituem, muito mais que aos elementos de psicologia individual, às atitudes mentais que permanecem no foro íntimo, numa palavra, à vontade das partes: com a conseqüência de que, em caso de conflito entre o ‘subjetivo’ e ‘objetivo’, entre as efetivas posições da psique e da vontade do contraente e aquilo que socialmente transparece e é percebido pelo outro contraente, tende-se a atribuir prevalências a este último, sacrificando, assim, a vontade à 98 declaração . 95 AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 372. BETTI, Emilio. Op. cit., passim. 97 BECKER, Anelise. Op. cit., p. 47. 98 ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 298 e 299. 96 39 Cuida-se da tutela da aparência socialmente reconhecível de uma situação jurídica que suscitou a criação de expectativas legítimas quanto à produção dos efeitos esperados pelas partes. A pedra de toque da teoria da confiança funda-se nos deveres de lealdade, correção e probidade de quem, direta ou indiretamente, contribuiu para a criação de uma expectativa legítima de tantos quantos tenham confiado nos efeitos do negócio jurídico. Com efeito, as regras de interpretação da manifestação de vontade desapegam-se das incertezas do subjetivismo e da rigidez estática da declaração, concebendo o contrato como um ato negocial decorrente da conjugação de duas declarações que visam à realização de um fim uniforme e em harmonia com a ordem jurídica. A manifestação de vontade ganha vida exterior através da declaração e preserva a sua relevância como parte indispensável do processo de formação dos contratos, o que, além de não eliminar a tutela dos defeitos dos negócios jurídicos decorrentes dos vícios de consentimento, acaba por reafirmá-la em conformidade com a consideração objetiva dos resultados práticos queridos pelas partes. Nesse mesmo sentido a opinião de Cláudia Lima Marques: A teoria da vontade concentrava-se no indivíduo, aquele que emite erroneamente sua vontade, concentrava-se no momento da criação do contrato; a teoria da confiança concentra-se também em um indivíduo, qual seja o que recebe a declaração de vontade, em sua boa-fé ou má-fé, mas tem como fim proteger os efeitos do contrato e assegurar, através da ação do direito, a proteção dos 99 legítimos interesses e a segurança das relações jurídicas. Essa nova perspectiva interpretativa dos negócios jurídicos, devotada à valorização do comportamento negocial das partes e à confiança recíproca despertada pelo vínculo contratual, também é sublinhada por Leonardo Mattietto: A interpretação dos atos jurídicos em geral deve levar em conta não apenas as declarações que hajam feito as pessoas que deles tenham participado. Tampouco a tarefa do intérprete se resume a perquirir a vontade expressada, veiculada por meio da declaração. É preciso buscar o entendimento de cada ato no ambiente em que ele foi 99 MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p. 127. 40 celebrado – no complexo de seus motivos e circunstâncias, 100 bem como no contexto do próprio ordenamento jurídico . “A função da vontade negocial, aqui, é a de pressuposto de atuação da norma jurídica que a tenha por suporte fático (...) Uma vez preenchido o suporte fático, a manifestação de vontade é reconhecida pelo Direito e ingressa no mundo jurídico”.101 Assim, menos importante do que a defesa irrestrita da pureza da vontade como reflexo da autonomia privada, os efeitos do contrato e, em particular, a sua força obrigatória, são deslocados para o sentido de adequação do negócio à ordem jurídica, de maneira que “o que importa não é saber como o contrato se sustenta dogmaticamente e sim, como melhor estará instrumentalizado para o controle das relações negociais”.102 100 MATTIETTO, Leonardo de Andrade. Op. cit.. BECKER, Anelise.Op. cit., p. 53. 102 WIDER, Roberto. Op. cit. 101 41 CAPÍTULO 2 – O DOLO NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS 2.1. CONCEITO E PRESSUPOSTOS Dolo é o expediente malicioso utilizado para induzir uma pessoa a expressar a sua vontade de maneira distinta da que faria se melhor conhecesse a realidade ou as particularidades do negócio. O conceito jurídico do dolo civil foi concebido como uma falta intencional levada a efeito com o objetivo de extorquir de alguém a aceitação dum ato que lhe é prejudicial. Isso deixa às claras, logo à primeira vista, que o dolo congloba no seu plano conceitual a idéia de desvalor à boa-fé e ao espírito de lealdade que deve animar a participação das partes num negócio. No campo semântico, o dolo é associado a diversas conotações distintas, tais como a fraude, a culpa e a usurpação, conquanto o mais comum seja compreendê-lo como signo de tudo aquilo que é contrário à boa-fé.103 O último sentido, embora usual e corredio, é amplo demais para assentar os limites conceituais do dolo, vício de consentimento e causa de anulação dos negócios jurídicos. E é-o porque, como será visto nas linhas seguintes, 103 A título de ilustração, é de se ver que o Dicionário Aurélio designa a expressão “boa-fé” como “a ausência de intenção dolosa” (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI. Versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Novembro de 1999). 42 nem sempre a atuação em desconformidade com a boa-fé contamina o negócio jurídico com o vício do dolo, pois há casos em que o comportamento doloso é irrelevante para a formação do consentimento da vítima e outros em que o ordenamento jurídico prevê uma sanção diferente. A propósito dessa imprescindível demarcação do terreno dogmático do dolo civil, é oportuno trazer à tona a pertinente advertência de Cossio y Corral: Por isso se impõe separar perfeitamente de um conceito genérico de dolo, relativo a qualquer maquinação, engano, artifício ou fraude, outro conceito mais específico que se limita a qualquer atuação conscientemente dirigida a 104 produzir antijuridicamente um dano a outrem. Dentro desse aspecto, o dolo “consiste nas práticas ou manobras maliciosamente levadas a efeito por uma parte, a fim de conseguir da outra uma emissão de vontade que lhe traga proveito, ou a terceiro”,105 a “falsa representação à qual uma pessoa é induzida por malícia, ardil ou fraude de outrem”,106 “o expediente malicioso que induz alguém a praticar certo negócio jurídico”,107 “o artifício desonesto, anterior ou concomitante ao contrato, cujo objetivo é o de levar alguém a contratar por meio de uma convicção falseada por êste artifício”,108 ou, ainda, “causa de não-validade dos atos jurídicos, é o ato, positivo, ou negativo, com que, conscientemente, se induz, se mantém, ou se confirma outrem em representação errônea”.109 Martinho Garcez, por inspiração das obras clássicas dos antigos, preconizava que o “dolo, como define Labeo (L. 1, § 1, ff. de dólo) é o artifício, a astúcia, a maquinação, de que alguém ser serve para enganar a outro e obriga-lo a praticar uma ação que sem isso não 104 COSSÍO Y CORRAL, Alfonso. El Dolo em el Derecho Civil. Granada: Editorial Comares, 2005, p. 7. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. I. 12ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 359. 106 WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil Brasileiro – Introdução e Parte Geral. 9ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 202. 107 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil, Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 336. 108 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil , Volume I. 4ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, p. 438. 109 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado, Tomo IV. 1ª edição atualizada. São Paulo: Bookseller, 2000, p. 390. 105 43 praticaria”.110 Judith Martins-Costa observa que qualquer artifício desleal encontrará no dolo a causa indicativa do erro provocado: O artifício traduz-se pelo emprego de quaisquer expedientes ou maquinações tendentes a desfigurar a verdade, ou realidade da situação, desfigurando-a ou criando apa111 rências ilusórias. O Código Civil Brasileiro em vigor, a exemplo do anterior, não conceituou o dolo. E andou bem. É porque não é tarefa do legislador se imiscuir na criação de conceitos, os quais, não raras vezes, são imperfeitos e quase sempre casuísticos, o que impede a sua adaptação à evolução histórica das sociedades e do Direito. Por tais motivos é que a criação dos conceitos pertinentes às figuras e aos institutos jurídicos constitui tarefa que toca à doutrina. Exemplo dos inconvenientes trazidos pelos conceitos legais é visto no Código Napoleão, que definiu o dolo nas convenções civis do seguinte modo: O dolo é uma causa de nulidade da convenção quando as manobras praticadas por uma das partes são tais, que fica evidente que, sem essas manobras, a outra parte não teria feito o contrato. O dolo não se presume e deve ser 112 provado. O dolo não é um vício de consentimento, mas a causa desse vício.113 Vale dizer que o comportamento malicioso utilizado para a obtenção do assentimento da vítima é o fato gerador duma declaração de vontade em desconformidade com a vontade interna. “O agente doloso induz o outro em erro; mas o erro é apenas, como diz SALEILLES, o meio pelo qual o autor do dolo atua sobre a vontade.”114 110 GARCEZ, Martinho. Nulidades dos Atos Jurídicos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1910, p. 204. 111 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Volume V, Tomo I. Sálvio de Figueiredo Teixeira (coordenador). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 604-605. 112 Art. 1116 do Código Civil Francês (tradução livre). 113 TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 183 e FLOUR, Jacques; AUBERT, Jean-Luc. Op. cit., p. 144. No mesmo sentido, Francisco Amaral ajunta que “a rigor, o dolo não é vício de vontade, mas causa do vício de vontade” (AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 489). 114 BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, Volume I. 12ª edição. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1959, p. 273. 44 A malícia dos homens é inesgotável e tem encontrado terreno fértil nos tempos atuais, em que predomina uma vertiginosa profusão de informações e em que o culto à ideologia consumista se expande num ritmo sem precedentes. Por isso, a despeito de sua semelhança dogmática com o erro, o dolo na formação dos negócios jurídicos deve ser interpretado com amplitude maior, de maneira a englobar não só a desconformidade entre a vontade e a declaração incidente sobre a natureza ou sobre as qualidades essenciais do objeto e da pessoa, a fim de abarcar também toda tramóia arquitetada para afastar do conhecimento da vítima alguma circunstância determinante para a conclusão do contrato. De quanto se disse acerca dos requisitos da relevância do dolo, emerge, com clareza, em que sentido a tutela do contraente induzido maliciosamente em erro é mais ampla do que a do contraente caído num erro não provocado por outros: diferentemente da parte caída em erro espontâneo, a parte enganada pode pedir a anulação do contrato, ainda que as falsas apresentações da realidade a que foi induzida 115 pelo dolo não sejam ‘essenciais’. Com efeito, a análise da influência da prática dolosa na aceitação do lesado não pode prender-se a uma criteriosa e rígida predefinição, sem que se corra o risco de se excluírem situações particularmente dignas de atenção pelo Direito. É por isso que a noção do dolo nos negócios jurídicos que prevalece nos dias de hoje deve-se ao esforço de abstração da doutrina – que se empenhou em definir quadros de interpretação suscetíveis de açambarcar ocorrências potenciais – e ao sentido pragmático da obra jurisprudencial. É claro, também, que a definição do dolo como causa anulatória dos negócios jurídicos não pode ser associada à idéia de antítese da má-fé, conforme as linhas precedentes deste trabalho já afirmaram, pois, não fosse assim, uma de duas: o dolo estaria em tudo; ou, o que parece mais provável, não estaria em lugar algum. Trata-se, aqui, como propõe a sabedoria popular, de se achar um ponto “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, para que a compreensão do dolo não tenha uma amplitude de impossível 115 ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 240-241. 45 inteligibilidade, mas que também não seja muito restrita, a ponto de reduzir em demasia o seu campo de aplicação. A melhor síntese desse necessário meio-termo na definição do dolo civil foi expressa pelo notável Georges Ripert, que afirmou: Em todos os tempos o dolo foi definido como o ato culpável que pode revestir as formas mais diversas, ‘qualquer mau caminho para enganar alguém’, diz Domat. Se, nos exemplos dados pelos antigos autores, os casos de ‘falcatrua’ (tricherie) são sempre os mesmos, no mundo moderno, hábil no disfarce, os casos de dolo não têm número. Vão desde a escroquerie delituosa até às simples 116 declarações enganosas. Na França, por exemplo, foi necessário um intenso trabalho de interpretação para revelar a dimensão semântica da expressão “manobras praticadas por uma das partes” empregada pelo artigo 1116 do Code. Destarte, face à necessidade de uma marcação conceitual objetiva, capaz de sobreviver à indefectível marcha do tempo e às intempéries da história, essa expressão (“manobras praticadas por uma das partes”) foi permeada com grande fluidez, com o fito de traduzir “o emprego de certos artifícios ou de uma certa encenação”,117 ou, ainda, qualquer maquinação usada para obter o consentimento do cocontratante para a conclusão do ajuste contratual.118 Não é ocioso destacar que o dolo possui uma sensível diferença do erro, pois enquanto este constitui um engano que surge espontaneamente durante a formação do consentimento da parte, o dolo é um engano provocado por aquele a quem se dirige a declaração de vontade ou por um terceiro. Esse traço distintivo é copiosamente reconhecido pela doutrina, para quem o dolo “é o erro intencionalmente provocado na vítima pelo autor do dolo, ou por terceiro”119 ou “a indução em erro de uma parte do negócio jurídico”.120 É dizer, “instigado pela intenção de enganar, o autor mune-se da 116 RIPERT, Georges. Op. cit., p. 100. FLOUR, Jacques; AUBERT, Jean-Luc. Op. cit., p. 146. 118 TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 185. 119 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso, 1º Vol., cit., p. 193. 120 COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 335. 117 46 vontade de induzir o outro ao erro, usando de artifícios não grosseiros ou perceptíveis ‘prima facie’”,121 razão pela qual trata-se, pois, de um ato ilícito, considerado aqui como causa que faz desviar a vontade da sua reta determinação, provocando um erro”122. Conforme pontua a lição de Pontes de Miranda, “em todo dolo há indução em erro, provocando-o, reforçando-o, ou apenas deixando que persista; é plus”.123 De fato: O dolo em muito se avizinha do erro, e, se representa uma limitação à eficácia do ato jurídico, isso ocorre porque a vontade que o constituiu manifestou-se enganada. Entretanto, enquanto no erro o engano é espontâneo, no dolo é provocado. Ele advém do embuste do outro contratante, de sua malícia, de sua manha no sentido de 124 ludibriar a vítima. Ademais, um expressivo contingente doutrinário entende que a caracterização do dolo depende do advento de um prejuízo causado à vítima, vale dizer, de um dano material ou imaterial sofrido pelo declarante. Calha lembrar, neste passo, que a lição de Clóvis Bevilaqua pautava-se nessa mesma direção, definindo o dolo como “o artifício ou expediente astucioso, empregado para induzir alguém à prática de um ato, que o prejudica, e aproveita o autor do dolo ou a terceiro”.125 Vê-se, ainda, que o entendimento doutrinário corrente enfatiza que “dolo é o artifício ou expediente astucioso empregado para induzir alguém à prática de um ato que o prejudica, aproveitando ao autor do dolo ou a terceiro”126, pois “busca o prejuízo do induzido ou ‘deceptus’ e o proveito próprio ou de terceiros”.127 Essa tendência interpretativa também está presente no direito alienígena, havendo quem diga que “constitui dolo tudo que seja contrário aos ditames da honestidade e tenha por fim enganar alguém: uma vontade maldosa que opera ardilosamente, para induzir ou manter alguém em engano ou para prejudicar o enganado, dando proveito ao 121 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 107. RUGGIERO, Roberto de. Op. cit., p. 346. 123 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 394 e 395. 124 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Volume 1, cit., p. 193. 125 BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil, Volume I, p. 273. 126 AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 489. 127 RIZZARDO, Arnaldo. Op. cit., p. 107. 122 47 enganador”.128. “E, realmente, o concurso de uma manobra desleal, e de um prejuízo desta advinda, determina evidentemente a natureza do dolo e o seu objeto”.129 Nada obstante, essa opinião não parece coerente, por partir de uma premissa de fato errônea. É porque o dolo, no mais das vezes, atua no complexo psíquico da vítima de forma a induzi-la à prática de um ato negocial, o qual, não fosse o expediente malicioso empregado, não se teria realizado ou teria sido feito em bases distintas. Nesse caso – e em função da conduta mendaz praticada pelo enganador –, o objetivo da ordem jurídica é proteger a pureza da manifestação de vontade, para amoldá-la, tanto quanto possível, à real intenção do agente, independentemente da verificação de um prejuízo decorrente da desconformidade entre a declaração e o íntimo querer da vítima, como forma de reação ao aspecto ilícito e delituoso do ato praticado por aquele que o negócios jurídico aproveita. A sanção que o ordenamento jurídico prevê para o dolo civil tem subjacente um juízo de reprovação contra o comportamento malicioso do destinatário da declaração, uma espécie de “punição-sanção”,130 donde ser correto inferir-se que esse vício de consentimento deve ser reconhecido ainda que não se constate um prejuízo concreto imposto à vítima. Por exemplo, imagine-se que A almeja adquirir um imóvel pertencente a B, que não tem a menor intenção de aliená-lo. Sabedor do desinteresse do proprietário, A instiga B a vender o imóvel, afirmando, falsamente, que em pouco tempo uma fábrica poluente se instalaria na localidade, redundando na abrupta queda do preço de mercado do bem e na redução da qualidade de vida na região. B, então, propõe-se a comprar o imóvel, oferecendo por ele o seu atual preço de mercado, equivalente a X. Nesse caso, A não sofreu prejuízo nenhum, porque recebeu pelo bem o seu justo valor de mercado, ao passo em que B, de igual sorte, não obteve qualquer vantagem exagerada por ocasião da 128 RUGGIERO, Roberto de. Op. cit., p. 346. LOMONACO, Giovanni. Instituzioni di Diritto Civile Italiano, 5º Volume. 2ª edição. Nápoles: Nicola Jovene & C.º, 1895, p. 55. 130 BETOULLE, Jérôme. LÁspect “Délictuel” du Dol Dans la Formation des Contrats. Disponível em www.courdecassation.fr. Acesso em 24 de novembro de 2004. 129 48 conclusão do negócio, eis que não pagou menos do que pagaria acaso o vendedor quisesse efetivamente alienar a coisa. Neste exemplo, a prática dolosa aparece nitidamente configurada e dá ensejo à anulação do negócio jurídico, embora, a rigor, o adquirente não tenha obtido nenhum proveito econômico desproporcional em detrimento do vendedor. É oportuno observar, a outro tanto, que a ocorrência de um prejuízo econômico ou moral não é alçada pela lei como condição essencial à caracterização do dolo nos negócios jurídicos, que se contenta com o nexo causal que interliga a conduta dolosa e a declaração de vontade em desconformidade com o íntimo querer do declarante, sendo aplicável, aqui, o conhecido brocardo que recomenda ao intérprete não distinguir onde a lei não distinguiu. João Manuel de Carvalho Santos, com seu aguçado espírito prático, também tinha por dispensável a presença de um prejuízo em desfavor da parte enganada, tendo por suficiente a desconformidade entre a vontade e a declaração em benefício da contraparte: Basta que o artifício tenha sido empregado para induzir a pessoa a efetuar um negócio jurídico, o que não seria conseguido, na convicção do agente do dolo, de outra maneira. O que se visa, afinal, não é um prejuízo, mas sim obter para si ou para outrem certa vantagem que, aliás, pode algumas vezes não redundar em prejuízo ou dano à 131 pessoa iludida. O dolo nos negócios jurídicos exige o concurso de quatro pressupostos, sejam eles: a) a intenção de induzir o declarante à prática do negócio jurídico; b) a gravidade dos artifícios fraudulentos; c) o nexo causal entre as manobras dolosas e a conclusão do negócio; d) e que os expedientes maliciosos tenham sido empregados pelo outro contratante ou por ele conhecidos, quando provenientes de terceiros.132 131 SANTOS, J. M. de Carvalho. Código Civil Brasileiro Interpretado, Volume II. 11ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1982, p. 329. No mesmo sentido: MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 396. 132 Neste sentido: LOPES, Miguel Maria de Serpa. Op. cit., p. 439; MONTEIRO, Washington de Barros. Curso, 1º Vol., cit., p. 196; e GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, Vol. 1. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 362. 49 O primeiro pressuposto é mais do que óbvio, porque a definição do dolo congloba em seu contexto a prática de manobras maliciosas em razão das quais uma pessoa é induzida a assentir na conclusão de um ato, conquanto se melhor conhecesse a realidade não o teria concluído, ou, mesmo que o concluísse, fá-lo-ia em condições negociais distintas. Não foi por menos que Clóvis Bevilaqua lembrava que “o dolo é um ato ilícito intencional, e só por esta consideração provocaria a reação do direito”.133 O segundo pressuposto diz com a gravidade dos artifícios empregados pelo outro contratante ou pelo terceiro estranho ao vínculo negocial. A configuração do dolo pressupõe que a tramóia dolosa tenha gravidade e seriedade suficientes para infundir no ânimo da vítima a decisão de celebrar o negócio. Isso se deve porque o nosso Direito, até um determinado limite, é complacente com o comportamento manhoso e astuto utilizado por uma parte no intuito de persuadir a outra na formação de um contrato. Mas o exagero tolerável é aquele sem artifícios,134 a que se convencionou chamar de dolus bonus, que “é a gabança, por vezes exagerada, que o alienante faz daquilo que oferece à venda; é a propaganda, o reclamo levado a efeito com o intuito de seduzir o adquirente”.135 Nesses casos, a prática de que se utilizou o contratante, embora mendaz e revestida por uma dose de malícia, não foi grave o bastante para influenciar na formação da determinação contratual do declarante, haja vista que, em semelhantes circunstâncias, somente uma pessoa de credulidade exagerada ou por demais desatenta136 se deixaria iludir. Desse jeito, tão-só o dolus malus é que rende azo à anulação do negócio jurídico ou, 133 BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil, Volume I, cit., p. 273. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso, 1º Vol., cit., p. 197. 135 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 195. 136 Flour e Aubert entendem que a credulidade excessiva da vítima pode torná-la indigna de proteção legal, não tanto pela inexistência das manobras dolosas, mas porque o caso seria de erro inescusável, que se tem toda vez que as verdadeiras condições que influenciaram o negócio poderiam ser facilmente conhecidas pelo declarante, de maneira que a desconformidade entre a vontade e o querer seria tributada exclusivamente à sua desatenção ou desleixo (FLOUR, Jacques; AUBERT, Jean-Luc. Op. cit., p. 146). 134 50 conforme o caso, à indenização por perdas e danos, porque se trata de um ato de gravidade suficientemente intensa para induzir a parte enganada a assentir com o contrato. O terceiro pressuposto consiste na relação de causa efeito entre a conduta dolosa do ludibriador e a manifestação de vontade da vítima, sem a qual o negócio jurídico não se teria concluído. Cuida-se do dolo principal, que é a causa determinante da manifestação de vontade do celebrante e que, quando presente, tem como efeito a anulabilidade do negócio jurídico. O Código Civil também reconhece uma figura alternativa a que chamou de dolo acidental, que é aquele que, a seu despeito, o negócio teria sido feito, mas de outro modo. O último pressuposto diz com a imprescindibilidade de que as manobras maliciosas tenham partido do sujeito a quem a declaração de vontade se dirigiu. Ou seja, é essencial que o comportamento doloso que deu origem à declaração volitiva viciada tenha sido praticado pelo outro contratante. A ordem jurídica, portanto, obsta a anulação do negócio quando o artifício manhoso é proveniente de um fato praticado por terceiros, salvo se conhecido ou reconhecível pela outra parte. 2.2. O DOLO PRINCIPAL E O DOLO ACIDENTAL Dolo principal, dolo essencial, ou, ainda, dolo causal, é a conduta maliciosa ou o expediente astucioso que constitui a causa do negócio jurídico, de modo que, não fosse por ele, o lesado não teria celebrado o negócio contratual. O dolo principal, que também é designado como dolus causam dans, é aquele “que atua como motivo determinante do consentimento”137 e que “supõe que o engano tenha sido tal que, senão tivesse havido, a manifestação de vontade da outra pessoa não teria 137 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil, Volume III, Tomo I. Sálvio de Figueiredo Teixeira (coordenador). 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 135. 51 ocorrido”.138 Ele se caracteriza, assim, como um liame causal entre a maquinação dolosa dirigida contra a vítima e o seu aprazimento na constituição do negócio jurídico. Alguns autores entendem que somente o dolo principal, causa determinante do negócio jurídico, deve ser considerado um vício de consentimento, ao argumento de que o dolo acidental, por ser incapaz de exercer influência decisiva no íntimo querer do lesado, seria um ato ilícito, “que gera, para seu agente, uma obrigação de reparar o prejuízo causado à vítima”.139 Silvio de Salvo Venosa comunga desse pensamento, a dizer que “no dolo essencial há vício do consentimento, enquanto no dolo acidental há ato ilícito que gera responsabilidade para o culpado”.140 Entretanto, essa opinião não parece aceitável e tampouco razoável. Reduzir-se a dimensão interpretativa do dolo acidental de maneira a amoldá-lo na idéia de ilícito negocial constitui um desvio de perspectiva. É porque o distanciamento do íntimo querer da declaração invariavelmente implicará num vício de consentimento, independentemente do papel determinante que a maquinação mendaz exerceu para a adesão da vítima ao negócio. Dito de outra forma, a única distinção que importa, neste caso, diz com os efeitos decorrentes das manobras concebidas para extorquir a declaração negocial da vítima, porque, seja principal ou meramente acidental, ainda assim o ato doloso terá subtraído a expressão consciente da vontade do declarante, constituindo, por conseguinte, um autêntico vício de consentimento, o qual facultará ao lesado, conforme as circunstâncias do caso concreto, a anulação do negócio jurídico ou simplesmente a reparação do prejuízo. Não há, por tais motivos, nenhuma distinção de grau ou de intensidade entre o dolo principal e o dolo acidental, senão a importância causal de um e outro para a determinação 138 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado, Tomo IV. 1ª edição atualizada. São Paulo: Bookseller, 2000, p. 392. 139 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 194. 140 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil, Vol. 1. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2003, p. 445. No mesmo sentido: AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 491 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 135. 52 do assentimento da vítima. A opinião de Cossio y Corral em nada discrepa desse entendimento, como se vê transcrito abaixo: A nosso juízo, tanto o dolo essencial ou principal como o incidental, são da mesma gravidade e natureza, diferenciando-se um do outro somente quanto ao objeto: se este é um elemento essencial do negócio, haverá dolo principal, e o contrato será nulo, se é algum elemento secundário, dolo incidental, que dará lugar tão só a 141 indenização por perdas e danos. A dicotomia entre o dolo principal e o dolo acidental foi consagrada expressamente pelo Código Civil, como se vê de seu artigo 145, cuja redação preconiza: “São os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando este for a sua causa”.142 Com efeito, “o dolo é principal quando causa determinante do ato. Sem ele, o deceptus não teria declarado a vontade; opera, assim, como fator decisivo na formação do consentimento”,143 pois “conduz o agente à declaração de vontade, fundado naquelas injunções maliciosas, o que de outra maneira dito significa que o dolo só tem o efeito de anular o negócio jurídico quando chegue a viciar e desnaturar a declaração de vontade”,144 de modo que “a parte somente realiza o negócio jurídico porque foi enganada”.145 Cuidase, dessa maneira, da “causa eficiente do ato, sua única razão, o dolo que o origina e que sem ele não se teria concluído”,146 “a força propulsora da manifestação da vontade viciada”.147 Dolo acidental, dolo incidente, ou dolus incidens, é aquele que, a seu despeito, o declarante teria consentido na formação do negócio jurídico, embora de forma diferente; isto é, não fosse a manobra ardilosa empregada, ainda assim o declarante teria querido 141 COSSÍO Y CORRAL, Alfonso. Op. cit., p. 204 (tradução livre). O Código Civil revogado previa: “Art. 92. Os atos jurídicos são anuláveis por dolo, quando este for a sua causa”. 143 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 18ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 423. 144 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 360-361. 145 COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 335. 146 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso, 1º Vol., cit., p. 196. 147 NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., p. 267. 142 53 concluir o contrato, só que de forma diferente. Eis a regra que o Código Civil Brasileiro preconiza: Art. 146. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o negócio 148 seria realizado, embora por outro modo. A doutrina brasileira não discrepa, senão em pontos epidérmicos, da noção conceitual e dos efeitos decorrentes da não-essencialidade do dolo na conclusão dos negócios jurídicos. Arnoldo Wald observa que “o dolo acidental ou incidente é juridicamente relevante, mas não torna o negócio anulável, podendo todavia o prejudicado responsabilizar o culpado pelos prejuízos sofridos”.149 O dolus incidens é o que “não influi como causa determinante da declaração de vontade, pois, a despeito dos expedientes empregados, o ato se teria realizado, embora de outra maneira”.150 Neste mesmo sentido, tanto quanto à noção, quanto às conseqüências, Washington de Barros Monteiro diz que “o dolus incidens (dolo incidente ou acidental) é aquele que leva a vítima a realizar o ato, porém em condições mais onerosas ou menos vantajosas.”151 Em outras palavras, “o dolo é acidental quando não afeta a declaração de vontade na sua motivação, mas provoca desvios, que a modificam dentro de certos limites”.152 Fábio Ulhoa Coelho, com conotação mais pragmática, propõe a distinção entre o dolo principal, determinante da conclusão do negócio jurídico, e o dolo acidental da seguinte forma: Quando a parte vítima do dolo não teria praticado o negócio jurídico caso tivesse percebido, a tempo, o engodo, ele é inválido. Se, por outro lado, a parte foi enganada acerca do aspecto não-essencial do negócio ou de seu objeto, e o teria praticado mesmo sabendo da verdade dos fatos, terá direito de ser indenizada pelos danos que sofrer, preser153 vando-se a validade do negócio jurídico. 148 O Código Civil de 1916 dispunha: “Art. 93. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos. É acidental o dolo, quando a seu despeito o ato se teria praticado, embora por outro modo”. 149 WALD, Arnoldo. Introdução e Parte Geral, cit., p. 203. 150 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Op. cit., p. 440. 151 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso, 1º Vol., cit., p. 196. 152 GOMES, Orlando. Introdução, cit., p. 423. 153 COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 335. 54 Vale a pena trazer à baila a lição de Silvio Rodrigues, à conta da notável didática e simplicidade com que sintetiza as dessemelhanças entre os dolos causal e incidental e a importância dessa distinção para o Direito Civil: Nas duas hipóteses, existe a deliberação de um contratante de iludir o outro. Na primeira, apenas o artifício faz gerar uma anuência que jazia inerte e que de modo algum se manifestaria sem o embuste; na segunda, ao contrário, o consentimento viria de qualquer maneira, só que, dada a incidência do dolo, o negócio se faz de maneira mais onerosa para a vítima do engano. Naquela, o vício do querer enseja a anulação do negócio; nesta, o ato ilícito 154 defere a oportunidade de pedir reparação do dano. Assunto intrincado é distinguir o dolo principal daquilo que se deve ter por dolo acidental, tendo em vista a imprecisão dos lindes que separam essas figuras e a natural dificuldade de se investigar o verdadeiro querer da vítima, que nasce e toma forma nas profundezas imponderáveis do pensamento humano. “De qualquer forma, a diferenciação entre essas duas modalidades é árdua. A tarefa cabe ao juiz que a examina no sopesamento das provas”.155 Caio Mário da Silva Pereira, a outro tanto, adverte: A distinção entre o dolo principal e o dolo incidente é sutil, e às vezes difícil de se conseguir na prática. A questão deverá ser solvida assentando-se que é de ser deixado ao prudente arbítrio do juiz fixar quando ocorre o dolo principal, conducente à anulação do ato, ou quando incidente o dolo, impositivo de perdas e danos apenas, e aplicá-los, flexível e humanamente sob a inspiração de uma exigência de 156 moralidade para os negócios. É forçoso lembrar que o Código Civil, antes mesmo de exortar o intérprete a valer-se da boa-fé objetiva como instrumento de interpretação dos negócios jurídicos e como parâmetro valorativo do comportamento das partes, estabelece no artigo 112 que “nas 154 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 194. VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 446. 156 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 361. 155 55 declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”.157 Em última análise, importa aqui, mais do que em outros pontos, o bom senso e a prudência do julgador, a quem não será consentido furtar-se da análise das particularidades da hipótese concreta e das condições pessoais de quem se arroga vítima do engano, mas que tampouco deverá desconsiderar os elementos objetivos exteriorizados pelo negócio contratual, sob pena de se imiscuir em conjeturas e ilações que transformariam a atividade interpretativa num ato divinatório ou numa comédia de erros. Desse modo, ao juiz tocará a tarefa de reconstruir o conteúdo típico do negócio em conformidade com a sua função econômico-social, de modo que os efeitos jurídicos que busca produzir possam se alforriar da influência do império absoluto da vontade para ancorarem-se nas exigências éticas da coletividade. Essa linha de interpretação constitui um modo de ver que transcende o plano subjetivo do negócio e valoriza a função típica que visa a exercer no meio coletivo. Trata-se, como já se viu, daquilo o que Emílio Betti chamou de tipicidade social, consistente na adequação do ato negocial às expectativas econômicas e éticas da sociedade. Em tais condições, a tipicidade social, quer dizer, a função econômica e socialmente relevante desempenhada pelo negócio jurídico, é o nexo de ligação entre o exercício da prerrogativa conferida pela autonomia privada e os efeitos que a ordem jurídica supõe dignos de tutela.158 Francisco Amaral igualmente propõe uma metodologia interpretativa que vai além do critério subjetivo, que fica a meio caminho das intempéries voluntaristas e da implacável prevalência do elemento declarado, concluindo que a única via possível é a precedência 157 A codificação revogada dispunha que: “Art. 85. Nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da sua linguagem”. 158 BETTI, Emilio. Op. cit., p. 76-77. 56 dos critérios que valorizam a confiança e a responsabilidade que as partes devem assumir quando da declaração de vontade. Essas as palavras do autor: A interpretação que adotar o critério subjetivo, procurando a intenção pura dos declarantes, desenvolverá uma pesquisa histórica, visando reconstruir o pensamento e os objetivos dos declarantes. Já a interpretação que adote o critério objetivo buscará um sentido, um significado preciso, concreto, contido na declaração negocial, independentemente da vontade psicológica dos agentes. Essas duas tendências opostas são temperadas por duas posições intermediárias, respectivamente, a teoria da responsabilidade – segundo a qual o declarante é responsável, se agir com culpa, pelos prejuízos causados ao destinatário – e a teoria da confiança, que afirma ser válida a declaração conforme a confiança que tenha despertado no destinatário. A esses critérios deve-se acrescentar o princípio da boa-fé que traduz a ‘correção, a lisura, retidão ou lealdade recíproca com que as pessoas devem agir no exercício dos seus direitos ou no cumprimento de suas obrigações. Tais critérios, o respeito à boa-fé e à confiança dos destinatários, assim como a responsabilidade de declarante, devem combinar-se no sentido de se precisar a intenção do agente consubstanciada na declaração, não a simples intenção ou vontade interna, psicológica. A interpretação jurídica não deve procurar a vontade interna das partes, mas sim a vontade expressa objetivamente na declaração, 159 com o sentido que for objetivo para as partes. De qualquer modo, a plausibilidade jurídica da distinção entre o dolo principal e o dolo acidental, que há muito acompanha a tradição jurídica brasileira, e a sua perspectiva atual – particularmente em razão da entrada em vigor do novo Código Civil, que consagrou diversos princípios e cláusulas gerais voltados à valorização da boa-fé e da confiança nas relações contratuais e das expectativas sociais despertadas pelos negócios jurídicos no meio coletivo – é assunto que será pontualmente revisto à frente, no capítulo 3, item 3.2. 2.3. O SILÊNCIO INTENCIONAL Além dos atos comissivos, positivos, empregados com o fito de induzir uma pessoa à conclusão de um negócio jurídico, as condutas omissivas também podem caracterizar, 159 AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 407. 57 em dadas circunstâncias, o dolo civil. “O ato doloso pode ser positivo ou negativo. Basta deixar-se de comunicar a falsidade, se a pessoa está em erro. Se ela, se soubesse, não manifestaria a vontade, e o agente sabe, dolo há.”160 O dolo apresenta-se sob várias modalidades. Pode ser positivo ou comissivo, quando consiste em uma ação enganadora, e negativo ou omissivo, quando se traduz em uma omissão, um silêncio, do declaratário ou de terceiro, do erro do declarante, quando existia dever de elucidá-lo. Neste caso, é preciso que o silêncio intencional da parte seja de tal importância que, sem ele, o ato não se teria celebrado (CC, art. 94). O legislador equiparou a omissão 161 dolosa à ação dolosa. Chama-se dolo por omissão, silêncio intencional, ou dolo negativo, o silêncio consciente que uma das partes mantém a respeito de algum fato ou circunstância que a outra ignora, a qual, acaso conhecida, impediria a formação do contrato ou, então, implicaria na modificação das suas condições gerais.162 O Código Civil Brasileiro preconiza: Art. 147. Nos negócios jurídicos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela o negócio não 163 se teria celebrado. Silvio de Salvo Venosa prefere definir o silêncio intencional como “a ausência maliciosa de ação para incutir falsa idéia ao declaratário”.164 Vale dizer: O mecanismo psíquico do dolo, por ação ou omissão, é o mesmo, e se verifica na utilização de um processo malicioso de convencimento, que produza na vítima um estado de erro ou ignorância, determinante de uma declaração de 165 vontade que não seria obtida de outra maneira. Dentro dessa perspectiva, a doutrina aponta quatro elementos que devem coexistir para caracterizar o dolo por omissão, extraídos da exegese do artigo 147 do Código Civil 160 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 396. AMARAL, Francisco Amaral. Op. cit., p. 490. 162 RIPERT, Georges. Op. cit., p. 101. 163 O Código Civil de 1916 tinha a seguinte redação: “Art. 94. Nos atos bilaterais o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela se não teria celebrado o contrato”. 164 VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 447. 165 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 360. 161 58 atual e do artigo 94 da codificação de 1916, quais sejam: a) a intenção de induzir o declarante a se desviar de seu íntimo querer; b) o silêncio acerca de circunstância ignorada pelo declarante; c) a relação de causa e efeito entre a reticência do agente e a conclusão do negócio jurídico; d) e que a omissão dolosa tenha sido praticada pelo próprio participante do ato negocial e não por terceiro.166 A bem da verdade, a menção aos elementos característicos do dolo por omissão tem um mérito muito mais didático do que necessariamente hermenêutico, porque a análise do comportamento omissivo e da sua influência para a celebração do ato negocial fica a cargo de um critério valorativo fincado nos postulados de boa-fé e de confiança que devem presidir as relações contratuais. Isto é, segundo Emilio Betti, “no ambiente social hodierno, sensível às exigências de solidariedade civil, as partes devem, em todo o caso, comportar-se segundo as regras de correção.”167 O dolo por omissão constitui o silêncio sobre uma circunstância que, por força da lei, pelos usos do comércio ou em decorrência da natureza do negócio, o contratante reticente era obrigado a revelar a outra parte. Assim deve ser porque, aos olhos do Direito, é indiferente a natureza positiva ou negativa da tramóia empregada pelo enganador, bastando que ela tenha sido suficientemente intensa para extorquir da vítima uma declaração de vontade em desconformidade com aquilo o que lhe inspirava o íntimo querer. Veja-se, a propósito, a acertada ponderação de Caio Mário da Silva Pereira: Pode alguém proceder de maneira ativa, falseando a verdade, e se diz que procede por ação ou omissão. Mas é igualmente doloso, nos atos bilaterais, o silêncio a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, a sonegação da verdade, quando, por omissão de circunstâncias, alguém conduz outrem a uma declaração proveitosa a suas conveniências, sub conditione, porém de 168 se provar que sem ela, o contrato não se teria celebrado. 166 Neste sentido: GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit., p. 363; LOPES, Miguel Maria de Serpa. Op. cit., p. 440; AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 490, nota n. 18; e VENOSA. Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 447. Silvio Rodrigues aponta esses quatro elementos do dolo negativo e ainda acrescenta outro: a imprescindibilidade da bilateralidade do negócio jurídico (RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 197). 167 BETTI, Emílio. Op. cit., p. 359. 168 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 360. 59 Com efeito, “a reticência é omissão dolosa (dolo passivo ou omissivo), sempre que o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra haja ignorado seja a causa da celebração do contrato, que, sem essa omissão, não seria estipulado”.169 De igual modo Enzo Roppo diz que: O engano pode assumir, segundo as circunstâncias, formas diversas: pode tratar-se de uma pura e simples mentira; pode consistir numa mentira acompanhada de uma ‘emcenação’ mais ou menos complexa, idônea a conferir-lhe credibilidade; pode, também, identificar-se com o silêncio ou a reticência: mais precisamente, com o silenciar, ou como o deixar na ambig6uidade, fatos que – em consideração das circunstâncias e das relações existentes entre as partes – deveriam ter sido, pelo princípio de boa fé précontratual (...), comunicados à outra parte, ou então 170 esclarecidos. De mais a mais, também se deve compreender como dolosa a exploração do engano involuntário da vítima, que acontece quando o sujeito aproveita-se desse engano ou mantém conscientemente o co-contratante em erro, deixando de alertá-lo sobre o falso juízo que faz acerca de alguma circunstância relevante do negócio. Neste caso, a omissão dolosa não é empregada para induzir a vítima a erro, isto é, para fazer nascer um engano em benefício do destinatário da declaração, mas para afastá-la da melhor ou inteira compreensão da realidade. Esse assunto – dada a sua importância na atualidade, que deixou de considerar a lealdade, a boa-fé e a probidade como simples preceitos morais recomendáveis aos contratantes a fim de consagrá-los expressamente em nossa ordem jurídica como autênticos deveres que devem se estender ao longo de toda a atividade contratual – será mais uma vez abordado no item 3.3, quando a interpretação clássica do dolo por omissão será confrontada com as mais recentes diretrizes negociais do Direito Civil. 169 170 GOMES, Orlando. Introdução, cit., p. 423. ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 239-240. 60 2.4. O DOLO PRATICADO POR TERCEIRO Toda vez que os expedientes maliciosos determinantes da conclusão do contrato são praticados por pessoa estranha à relação negocial, ou seja, quando provierem “de quem não seja parte do negócio jurídico”,171 diz-se cuidar-se de dolo de terceiro, eis que “pode ocorrer, contudo, que terceiro fora da eficácia direta do negócio aja com dolo”.172 A noção de terceiro é restrita, compreendendo tão-só aquele que se afigura efetivamente estranho à relação contratual, porquanto, segundo Ana Luiza Maia Nevares, “deve ser entendido como terceiro somente quem não intervém direta, nem indiretamente no negócio, sendo contraente tanto aquele que estipula em pessoa quanto o que intervém no ato por meio de representante”.173 Como se trata de um comportamento engendrado por pessoa estranha ao laço contratual, não se há falar na anulação do negócio jurídico sempre que o ato doloso tiver origem na conduta de terceiro. Isso se deve porque, não fosse assim, no afã de preservar o querer íntimo da parte enganada, o ordenamento jurídico poria a perder a expectativa legítima e a confiança que a contraparte depositou no negócio. Como dizem os usos populares, seria o mesmo que “dar com uma mão para tirar com a outra”. Por tais motivos é que “de regra, o dolo que conduz à ineficácia do ato é o que provém da outra parte, e não de terceiro, cujo procedimento fundamentará apenas a obrigação de indenizar o prejudicado”.174 Isto é, “se o dolo foi de terceiro e o figurante não soube do que se passou, o ato jurídico não é anulável por dolo. Se o figurante soube do dolo do terceiro, o que foi 171 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 147. VENOSA. Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 448. 173 NEVARES, Ana Luiza Maia. O erro, o dolo, a lesão e o estado de perigo no novo Código Civil. A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional. Gustavo Mendes Tepedino (organizador)... et al. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 269. 174 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 361. 172 61 vítima pode pedir a anulação”.175 “O dolo não constitui uma causa de anulação do ato a não ser quando os artifícios foram praticados pela outra parte contraente, ou pelo menos que ela tenha participado nele, direta ou indiretamente”.176 Oportuna, a propósito dessa idéia, a opinião de Roberto de Ruggiero: É, porém, necessário que o dolo, se teve lugar num negócio jurídico bilateral, provenha da outra parte, pois desde que provenha de um terceiro que lhe seja estranho, é irrelevante quanto à validade do negócio e apenas poderá dar lugar a uma ação de indenização contra o terceiro autor do engano, isto ao passo que quanto às relações dos contraentes entre si tem influência exclusiva (podendo até e porventura anular o ato, nos casos extremos) o erro originado pelo dolo. Por outro lado, entende-se que, ainda quando usado por um terceiro, o dolo constitui motivo de anulação quando o outro contraente o conhecia, quando 177 para vantagem própria nele comparticipa. O dolo arquitetado pelo terceiro não permite a anulação do negócio jurídico, embora, conforme as circunstâncias do caso, a parte prejudicada possa fazer jus à reparação do prejuízo sofrido. Porém, o negócio jurídico será anulável sempre que a parte a quem a sua conclusão aproveita soubesse, ou tivesse meios para saber, do artifício ludibriante assestado pelo terceiro. A regra escrita no Estatuto Civil é essa: Art. 148. Pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a parte a quem aproveito dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas 178 as perdas e danos da parte a quem ludibriou. Vê-se, destarte, que o Código Civil atual assomou um importante avanço no trato normativo do assunto, porque estendeu o espectro de atuação da vontade da lei para além dos casos em que a parte beneficiada tinha conhecimento, abarcando também aqueles em 175 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 399. SANTOS, J.M. de Carvalho. Op. cit., p. 333. 177 RUGGIERO, Roberto de. Op. cit., p. 347. 178 O Código Civil decaído previa: “Art. 95. Pode também ser anulado o ato por dolo de terceiro, se uma das partes o soube”. 176 62 que devesse ter conhecimento do ardil feito pelo terceiro no intuito de influenciar a determinação do aprazimento da vítima. O aproveitamento de que cogita a lei, obtido por aquele a quem se dirige a declaração de vontade, não se refere necessariamente à conquista de um ganho econômico, mas ao próprio convencimento ou indução na conclusão do negócio jurídico, donde inferir-se que “o benefício pode consistir no simples interesse na realização do negócio, embora sem vantagem patrimonial”.179 No Direito Civil francês, a interpretação do dolo nos contratos – particularmente em razão da originalidade histórica do Code Civil e da importância que atribui ao elemento psíquico dos atos jurídicos em geral – possui uma forte ascendência romanista. Essa compreensão do dolo civil deve-se ao seu caráter delituoso, que suscitou no âmbito doutrinário e jurisprudencial a sua associação com as idéias de responsabilidade e de boafé. Dessa forma, a anulação dos contratos contaminados pelo vício doloso dispensaria uma ênfase menor para a maquinação maliciosa praticada, que induziu a vítima a consentir na conclusão do negócio, que ficaria centrada nos objetivos de punição do autor do dolo e de reparação dos danos causados.180 No entanto, por influência do Direito Canônico, o aspecto delituoso do dolo nos negócios jurídicos foi amainado em detrimento da perspectiva valorativa da vontade das partes. O dolo, portanto, abandonou o seu caráter preponderantemente ilícito para, à semelhança do erro, ser enquadrado como um vício de consentimento, estribado na discrepância entre a vontade real e a declaração e remediado pela sanção de nulidade relativa da convenção contratual. A despeito disso, ainda hoje a natureza ilícito-penal do dolo nos contratos representa um elemento sensível na ordem jurídica francesa, tendo em 179 AMARAL, Francisco, Op. cit. p. 491. LARROUMET, Christian. Op. cit., p. 304-305; TERRÉ, François; SIMLER; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 188. 180 63 vista que “o exame do juiz aplica-se muito menos sobre o consentimento da pessoa que foi enganada do que sobre o ato daquela que enganou.”181 Por tais razões é que o modelo francês, secundado por diversas legislações ocidentais, considera imprescindível à anulação do ato a prova de que o comportamento doloso proveio de uma das partes, donde excluírem-se, dessa forma, as artimanhas maliciosas arquitetadas por terceiros. Neste sentido, a Corte de Cassação da França já decidiu reiteradas vezes ser imprescindível que as manobras dolosas sejam diretamente imputáveis ao co-contratante, pois, quando provenientes de terceiro, só é dado à vítima pleitear perdas e danos,182 sobretudo porque assim o exige o artigo 1116 do Code.183 Dessarte, “o dolo é uma causa de nulidade emanada do co-contratante (art. 1116). Se ele é um fato de terceiro, dará lugar unicamente às perdas e danos”.184 Fica evidente, portanto, o caráter punitivo que ainda hoje impregna a interpretação do dolo como causa anulatória dos negócios jurídicos, inclusive entre nós, visto que, não fosse assim – e quisesse a lei tão-só proteger a correlação entre a vontade interna e a declaração –, a sanção de anulação seria imposta independentemente do expediente malicioso ter partido ou não de pessoa estranha ao vínculo contratual. Realmente, “se se tratasse unicamente da alteração do consentimento da vítima, pouco importaria a personalidade do autor do dolo”,185 mormente porque, no plano psicológico, “o dolo de um terceiro pode ter exercido, sobre a vontade da vítima, a mesma influência determinante que o do co-contratante”.186 181 RIPERT, Georges. Op. cit., p. 100. Câmara Comercial, julgamento de 10 de março de 1981, Bull civ., IV, nº 128, p. 99 (TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 188). 183 Câmara Comercial, julgamento de 23 de novembro de 1993, Bull civ., nº 421, D. 1994. (Idem. Op. cit., p. 188). 184 Idem. Op. cit., p. 100. No mesmo sentido: RIPERT, Georges. Op. cit., p. 100. 185 RIPERT, Georges. Op. cit., p. 100. 186 FLOUR, Jacques; AUBERT, Jean-Luc. Op. cit., p. 144 (tradução livre). 182 64 No Direito brasileiro, antes da entrada em vigor da codificação atual, o dolo suscetível de anular os negócios jurídicos era aquele que provinha de uma das partes ou de um terceiro, com o conhecimento daquelas. Orlando Gomes explicou: A vontade maliciosa que determina o erro pode ser do outro contratante, ou de terceiro. Somente quando o dolo é praticado por uma das partes, dá causa à anulação do contrato. Assim também deveria ser quando emanasse de 187 terceiro, mas o é, apenas, se a parte o conheceu. De se ver que, no período que antecedeu a primeira codificação civil, a tendência da doutrina brasileira inclinava-se a recusar esse traço característico do dolo, haja vista que, independentemente da origem da empreitada maliciosa, a presença desse fator desviante da manifestação de vontade deveria bastar para a anulação do negócio. Martinho Garcez ressentia-se da opção legislativa dos códigos francês e italiano, os quais só toleravam a alegação de invalidade dos contratos quando o comportamento doloso proviesse das partes ou de um ato praticado por terceiro com o conhecimento de qualquer delas: Apesar do respeito que nos merecem esses dois venerandos monumentos da sabedoria jurídica do século passado, não nos parece aceitável a distinção e nem nos convencem as razões com que alguns escritores procuram justificá-la, porque, ou seja o dolo praticado por uma das partes contratantes, ou seja por um terceiro, ele vicia o contrato na sua essência, por falta de exato conhecimento de causa ou de objeto, dando lugar ao erro, vicio insanável de todo 188 contrato. A única maneira de se eliminar esse aparente paradoxo no quadrante normativo dos defeitos dos negócios jurídicos é reconhecer que, em matéria de dolo, se é verdade que a sanção anulatória busca tutelar a conformidade entre a vontade interna e a declaração, também é certo que, em casos tais, o fundamento da anulação do ato negocial transcende a simples salvaguarda da exatidão do ato de vontade para desvelar um juízo de desvalor 187 188 GOMES, Orlando. Introdução, cit., p. 421. GARCEZ, Martinho. Op. cit., p. 216. 65 reagente ao aspecto delituoso do comportamento daquele que usou de uma tramóia para induzir a contraparte ao erro. “Na realidade, a instituição do dolo não tende unicamente a proteger a vítima, mas se mostra como uma ‘punição-sanção’ que o próprio Código civil, pela formulação do artigo 1116, reserva ao co-contratante culpado”.189 Ademais, mesmo que se abstraísse a irrefutável conclusão de que, em tais hipóteses, a ordem jurídica privilegia menos a correlação entre o íntimo querer e a vontade declarada para dar maior ênfase ao aspecto delituoso e ilícito do enganador, ainda assim, a bem da segurança das relações jurídicas, a opção legislativa que interdita a anulação do contrato quando o dolo provém de terceiro parece acertada e plausível. Nesse caso, o ordenamento jurídico tolerou um mal menor (a manutenção de um negócio celebrado por conta de um ato doloso engendrado por terceiro) para evitar um mal maior (abalo das relações jurídicas e frustração das expectativas legítimas despertadas no meio social). Com inteira razão, a esse propósito, Enzo Roppo observa que, no caso do dolo praticado por terceiro, “a lei considera prevalente o interesse à tutela da confiança (que é – repete-se – tutela da posição individual de uma parte da relação, mas, mais ainda, tutela do interesse geral do sistema a uma segura, e por isso dinâmica, circulação da riqueza)”190. Assim, por igual, a anotação de Humberto Theodoro Júnior: Se, então, a parte não conhece o dolo que terceiro empregou sobre o co-contratante, nem tem elementos para suspeitar de sua existência, não há como privá-lo das vantagens jurídicas que o negócio lhe proporcionou. Nesse sistema, antes de proteger quem erra, fortuita ou dolosamente, é preciso examinar a situação do outro contratante, para que a tutela de um não se transforme em 191 castigo imerecido de outrem. 189 BETOULLE, Jérôme. Op. cit.. ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 241. 191 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 149. 190 66 Porém, quando se cuida do dolo praticado no intuito de formação de um negócio jurídico unilateral ou de um contrato unilateral, notadamente nos casos de testamento192 e de doação,193 o assunto é cuidado de modo diferente. Isso se deve porque, nos atos gratuitos, a par da natureza desinteressada e espontânea do negócio, o consentimento do autor da liberalidade deve estar cercado de maior proteção. Realmente, nos atos benéficos, como não há prestações co-respectivas e somente uma das partes experimenta um sacrifício econômico, ao passo em que a outra só recolhe vantagens, é natural que o respeito à harmonia entre o que se quis e o que se disse querer seja mais intenso. Diria, por conta disso, Georges Ripert A jurisprudência mostra-se particularmente severa nestes atos para apreciar a liberdade da vontade expressa pelo doador. Anula por sugestão ou captação as liberalidades ditadas por manobras artificiosas ou alegações falsas, quer estas manobras ou alegações emanem do próprio 194 donatário ou dum terceiro qualquer. . Pontes de Miranda destacava que “em se tratando de manifestações nãoreceptícias de vontade, não há pensar-se em alter: o ato jurídico irradia a sua eficácia, a 192 Segundo Orlando Gomes: “Nos negócios unilaterais, o dolo há de provir necessariamente de outrem que não o agente. Modalidade interessante do dolo é a que pode ocorrer no testamento sob a forma de captação. Aquele que emprega artifícios ou maquinações para que o testador o contemple age dolosamente” (GOMES, Orlando. Introdução, p. 421, nota n. 11). 193 Sob a perspectiva normativa do Código Civil Francês, a doação não é um contrato, mas um ato jurídico catalogado no Título II do Livro III como uma das “diferentes maneiras de se adquirir a propriedade”, ao lado dos testamentos. A razão primordial disso se deve à controvertida questão da aceitação nas doações puras. De acordo com Paulo Luiz Netto Lôbo, “diante da realidade existencial de doações feitas sem necessidade de aceitação, o chamado Código Napoleônico, que tanta influência exerceu sobre as codificações ulteriores, optou por excluir a doação do elenco dos contratos. Vivia-se o momento da exasperação da vontade individual, da conseqüente sacralidade do esquema clássico do contrato, assentado nas vontades livres de ofertar e aceitar, sendo compreensível a perplexidade ante um instituto com pretensão a ser concebido como contrato, mas que dispensava a aceitação em determinadas situações” (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Comentários ao Código Civil, Volume 6. Antônio Junqueira de Azevedo (coordenador). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 279-280). Planiol e Ripert anotam que o projeto original do Code regulamentava a doação como um contrato. Durante a tramitação do projeto perante o Conselho de Estado, o Primeiro Cônsul, Napoleão Bonaparte, exigiu a sua alteração sob a alegação de que um contrato “impõe obrigações recíprocas aos contratantes”, o que não seria aplicável no caso da doação, em que somente o doador se obriga, sem nada receber em retorno (RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 185 -186, nota n. 183). 194 RIPERT, Georges. Op. cit., p. 290. 67 favor de alguém, que talvez o ignore. Por conseguinte, há a anulabilidade por dolo, ainda que de terceiro e ignorando-o o beneficiado.”195 De fato: A regra do art. 148 se refere especificamente aos negócios bilaterais, como o contrato. Neles é que o dolo só atua como causa de anulação quando a parte a que aproveita, dele tenha tido, ou devesse ter conhecimento. Nos negócios unilaterais, como a renúncia à herança ou reconhecimento de paternidade, não há outro contratante a se apontar como o sujeito da relação jurídica que irá se aproveitar do dolo alheio. Não quer isso dizer, todavia, que seja irrelevante o dolo de terceiro sobre a vontade declarada em negócio unilateral. O que não ocorre é a 196 submissão da espécie às exigências do art. 148. O dolo de terceiro nos negócios gratuitos normalmente se expressa pela captação da vontade ou sugestão, o que a jurisprudência francesa define como manobras desleais dirigidas contra o declarante com o fim de persuadi-lo a consentir na conclusão dum ato de liberalidade.197 Isso se deve porque os atos de liberalidade, à vista do caráter gratuito e de sua inspiração motivada por intuito contemplativo ou de reconhecimento do merecimento do destinatário, devem ser animados por uma manifestação de vontade absolutamente espontânea e compatível com o íntimo querer do declarante, livre de peias e íntegra em sua pureza, como pondera Georges Ripert: O Código Civil faz dos atos a título gratuito uma categoria que obedece a regras especiais. Impõe, neste caso, o respeito do pensamento desinteressado, exigindo do doador uma consciência particular do seu ato (art. 901), uma capacidade especial (arts. 904-905), um sacrifício irrevogável (art. 894), pedindo ao donatário gratidão para com o doador (art. 955), protegendo a família deste contra 198 as liberalidades excessivas (art. 913 e segs.). A espontaneidade que deve estar presente nos atos de liberalidade justifica que se atribua ao dolo praticado por terceiro uma importância diversamente maior da que se tem nos negócios que envolvem trocas recíprocas de prestações. Assim sendo, a par da 195 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 390. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. citl, p. 153. 197 LARROUMET, Christian. Op. cit., p. 317. 198 RIPERT, Georges. Op. cit., p. 290. 196 68 natureza benéfica do ato, o ordenamento jurídico busca tutelar de maneira mais intensa a boa-fé do declarante, de modo a atingir os comportamentos dolosos que, embora provenientes de terceiros e desconhecidos do alvo da liberalidade, tenham bastado para induzir a aceitação do declarante. Bem de ver, a propósito, o exemplar acórdão da 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, assim ementado: TESTAMENTO PÚBLICO – ANULAÇÃO DO TESTAMENTO – CAPTAÇÃO DA VONTADE DO ESTADOR – DOLO – CARACTERIZAÇÃO – LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – INOCORRÊNCIA Testamento público. Anulação do ato. Captação dolosa da vontade da testadora. Caracterização. Acervo probatório inconteste. Inocorrência. Litigância de má-fé. Recurso parcialmente provido. O planejamento de maliciosa captação da vontade da testadora, implementada por pessoas que, além de exercerem a administração de seus imóveis, passaram a gerir toda a situação financeira da finada, buscando, por diversos meios, inclusive psicológicos, dirigir sua livre manifestação volitiva, é causa suficiente para ensejar a anulação do testamento resultante de ato doloso. Acervo probatório aos autos colacionado demonstra, de modo inequívoco, que as apelantes muniram-se de inumeros artifícios para, ao final, obterem vantagem ilícita na 199 sucessão da falecida testadora. As razões de decidir desse julgado enfatizaram com muita clareza a importância que natureza gratuita do negócio possui para a interpretação do caráter decisivo e determinante do comportamento malicioso do terceiro: Desse modo, se além de exercer a simpatia pessoal o captador reforça seus atos persuasivos com medidas fraudulentas, configura-se de pronto a hipótese de captação dolosa, e o ato é passível de anulação. O que se procura combater não é a captação, mas o dolo. Assim é que, nesse contesto, alguns jurisperitos têm, com exemplos, procurado caracterizar o sentido dessas manobras dolosas, capazes de tornar anulável o ato de última vontade, incluindo, entre elas, as mentiras, as calúnias levantadas contra herdeiros legítimos, a interceptação de cartas, o abuso de influência ou de autoridade, o afastamento propositado de membros da família e dos amigos do testador, a despedida de seus criados, a ingerência assídua em seus negócios etc. 199 TJ-RJ, 12ª Câmara Cível, Apelação Cível n. 3.846/2000, Relator Desembargador Wellington Jones Paiva, j. 10.10.2000. 69 Desse jeito, em decorrência do caráter não oneroso e desinteressado dos negócios gratuitos, a pureza da expressão da vontade do declarante é um signo indicativo da espontaneidade do ato de liberalidade, o que justifica maior rigor na interpretação da influência da conduta dolosa de terceiros no afã de conseguir o aprazimento do declarante. 2.5. O DOLO DO REPRESENTANTE O dolo do representante é aquele decorrente da conduta empreendida por quem a lei ou a parte confere poderes para atuar em seu nome, risco e proveito. O dolo que provém do representante difere fundamentalmente da atuação maliciosa de terceiro, pois aquele, atuando nos limites concedidos pelos poderes de que está investido, faz com que se considere o negócio jurídico concluído pelo próprio representado,200 ao passo que, no último caso, as injunções maliciosas são praticadas por um estranho ao vínculo negocial. Seria insensatez negar o avanço dogmático do Código Civil atual em relação ao anterior, que não fazia distinção entre a representação legal, ou necessária, e a representação convencional, dispondo que, em qualquer situação, o dolo do representante de uma das partes só obrigava o representado até o montante do proveito econômico obtido. Como se vê, o Estatuto Civil vigente, ao contrário, disciplina a matéria com maior coerência e eqüidade: Art. 149. O dolo do representante legal de uma das partes só obriga o representado a responder civilmente até a importância do proveito que teve; se, porém, o dolo for do representante convencional, o representado responderá 201 solidariamente com ele por perdas e danos. 200 NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit. p. 270. A redação do Código Civil de 1916 era a seguinte: “Art. 96. O dolo do representante de uma das partes só obriga o representado a responder civilmente até a importância do proveito que teve”. 201 70 Infere-se que a repercussão sobre a validade do negócio jurídico será sempre a mesma, quer se trate de comportamento doloso praticado por um terceiro no exercício de representação legal, quer se cuide de caso de representação convencional. Quer dizer: a anulação do contrato será deferida se o ato doloso for a causa do negócio, ou, então, quando o dolo for acidental, haverá somente a reparação do prejuízo até o limite do proveito conquistado por quem foi beneficiado pelo negócio. À toda evidência, o novo trato legislativo do assunto parece muito mais justo e conveniente, na medida em que busca equacionar o dever de reparação de danos em conformidade com a participação causal de cada um dos partícipes do ato. A única distinção que se deve fazer entre os efeitos do comportamento doloso do representante necessário e do convencional é que, no último caso – quando a representação tiver origem contratual – o representado responderá solidariamente com o representante pelo prejuízo causado à parte lesada. Como resumiu Fábio Ulhoa Coelho: Em se tratando, assim, de negócio jurídico marcado por dolo acidental imputável a representante de uma das partes, esta poderá vir a responder pelas perdas e danos decorrentes limitada ou ilimitadamente, dependendo da natureza da representação: enquanto o absolutamente incapaz responde no limite do proveito que lhe trouxe o 202 negócio, o mandante responde ilimitadamente. Silvio de Salvo Venosa enfatiza o acerto do legislador na edição do Código Civil ao preconizar disciplinas jurídicas distintas para o dolo proveniente do representante legal e do representante convencional, porquanto “é injusto que a lei sobrecarregue os representados pelas conseqüências de atitude que não é sua e para a qual não concorreram”.203 A “raison d’être” dessa diferença de temperamento na atribuição de responsabilidades deve-se à natureza contratual da representação convencional, que permite presumir que o representado escolheu mal aquele a quem tocaria representá-lo no 202 203 COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 337. VENOSA, Silvio de Salvo. Op. cit., p. 448. 71 negócio, caracterizando a chamada culpa in eligendo, resultante da escolha inadequada ou negligente do representante. 2.6. A TORPEZA BILATERAL O dolo bilateral, dolo de ambas as partes, ou, ainda, torpeza bilateral, ocorre toda vez que os protagonistas do negócio se valem de práticas maliciosas com o objetivo de se enganarem mutuamente na expectativa de conquistar vantagens. O dolo bilateral é manifestado pelas práticas maliciosas reciprocamente engendradas pelas partes com o intuito de se induzirem, reciprocamente, a erro. Assim é que o artigo 150 do Código Civil prevê que “se ambas as partes procederem como dolo, nenhuma pode alegá-lo para anular o negócio, ou reclamar indenização”.204 “Em tal hipótese, nenhuma das partes pode invocá-la em seu benefício, o dolo comum é reciprocamente compensado”.205 Realmente, “se ambas as partes se houverem reciprocamente enganado, compensam-se os dolos respectivos”206 e “verifica-se, nesse caso, a neutralização”,207 com “a consagração da regra – nemo propriam turpitudinem allegans”.208 A Lei Civil não faz distinção entre o dolo essencial, ou principal, e o dolo acidental para proibir a alegação em juízo de fatos oriundos da torpeza bilateral das partes. É porque a nossa tradição jurídica não distingue a intensidade ou a natureza determinante dos expedientes fraudulentos, de maneira que quando ambos os agentes agem sob o signo do dolo, nenhum nem outro poderá alegar qualquer coisa em juízo. 204 O artigo 97 do Código Civil de 1916 previa: “Se ambas as partes procederam com dolo, nenhuma pode alegá-lo, para anular o ato, ou reclamar indenização”. 205 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso, 1º Vol., cit., p. 199. 206 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 362. 207 GOMES, Orlando. Introdução, cit., p. 424. 208 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Op. cit., p. 442. 72 Na verdade, o ordenamento jurídico visa a assegurar o primado da boa-fé, que seria eliminado com o reconhecimento de uma demanda judicial assestada por quem foi prejudicado na mesma medida em que também prejudicou. “Pouco importa que uma parte tenha procedido com dolo essencial e a outra apenas com o acidental. O certo é que ambas procederam com dolo, não havendo boa-fé, a defender”.209 É induvidoso admitir, aqui sim, que um irremediável paradoxo seria instalado no ordenamento jurídico, porque se daria proteção jurídica a uma situação que contradiz o próprio Direito e o senso de probidade e lealdade que deve cercar o comportamento das partes. A final de contas, o que é antijurídico, à margem da legalidade, não pode ser digno de nenhuma proteção jurídica. O que se deve atentar é para a bilateralidade da infração cometida. Se ambos os contratantes praticaram dolo essencial, ambos teriam ação para invalidar o negócio, de sorte que o direito potestativo de um se compensa com o do outro; se ambos cometeram dolo acidental, cada qual pode reclamar perdas e danos do co-contratante, e também aqui se teria condições de falar-se em compensação dos dolos; se um praticou dolo principal e o outro dolo acidental, um teria direito de invalidar o contrato e o outro teria direito de exigir do primeiro perdas e danos, e mesmo não havendo inteira homogeneidade das pretensões contrapostas, o certo é que as duas partes procederam como recíproca má-fé, cada qual intentando prejudicar a outra, o que seria suficiente para justificar a 210 retração da lei diante da torpeza bilateral. À vista disso, como o efeito prático do dolo é subtrair a validade do negócio jurídico, inclusive por conta de sua particular contrariedade à boa-fé, pareceria contraditório se o Direito interviesse no afã de admitir o desfazimento de um contrato ou para proporcionar uma indenização em prol de quem tanto foi enganado quanto enganou. Não fosse assim, premiar-se-ia o contratante mais habilidoso na arte da solércia ou que tivesse em mãos um leque maior de artimanhas. Pior seria, ainda, tentar-se proteger a parte menos culpada ou decidir-se pela conduta mais dolosa, opções que sujeitariam a solução da lide a um 209 210 SANTOS, J. M. de Carvalho. Op. cit., p. 352. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 162-163. 73 irrealizável escrutínio pelos remotos rincões do psiquismo dos agentes e, no fim das contas, poriam a boa-fé e os preceitos éticos que animam a vida em sociedade num inadmissível plano secundário. Por outro lado, semelhante raciocínio daria ao julgador um imenso poder de investigação subjetiva para aferir a envergadura da participação maliciosa das partes na formação do ato negocial, como se a predisposição de uma delas em aceitar o contrato pudesse legitimar, aos olhos de nosso ordenamento jurídico, a conduta dolosa da outra. É que “o juiz, ao abordar o pensamento da constante moralização das relações contratuais, não mede cientificamente a força da vontade. Não se trata aqui dum problema de física, mas do respeito pela moral”.211 Para melhor ilustrar, pense-se no caso de um sujeito que, a fim de adquirir a qualquer custo um determinado imóvel, faz saber ao proprietário que o bem corre o risco de desvalorização com a falsa notícia da construção de um prédio no terreno vizinho. Receoso de uma perda patrimonial, o dono do imóvel concorda em vender o bem, mas, no afã de obter um preço melhor, sonega ao comprador a informação de que a res vendita está localizada numa área de constantes inundações. Ora, sem que se cogite de saber se a mentira divulgada pelo comprador ou se o silêncio doloso do vendedor atuou como fator decisivo para a formação do contrato, o fato é que ambas as partes se houveram com malícia, em desconformidade com a boa-fé, cada qual querendo obter da contraparte uma declaração de vontade desencontrada para conquistar uma vantagem indevida. É plausível concluir, neste caso, que se ambas as partes agiram em contradição com o espírito de boafé e retidão que deve permear as relações contratuais, nada poderão pedir ou alegar, sob pena de se legitimar, em juízo, o que o Direito quis reprimir. 211 RIPERT, Georges. Op. cit., p. 103. 74 Clóvis Bevilaqua, em convincentes linhas, sublinha o quanto supérflua e contrária ao ordenamento jurídico seria a alegação em juízo do dolo bilateral: A lei procura amparar a boa fé, contra os ardis maliciosos. Quando não há boa fé a defender, porque ambas as partes são culpadas, por se quererem prejudicar uma a outra, a lei se retrai, ou somente intervém, quando o ato for criminoso. Além disso, ninguém pode tirar vantagem do próprio dolo, nem o direito pode dar apoio à malícia de uma para ferir a da outra parte... Estes casos se compensam dois a dois, a saber: o dolo por omissão se compensa com o dolo por omissão ou comissão, e vice-versa; o dolo principal de uma parte se compensa com o dolo acidental ou principal da outra, e viceversa’. As distinções, que alguns autores faze, nesta mate212 ria, não se ajustam com o dispositivo do nosso Código. O comportamento doloso de ambas as partes, com efeito, denota uma prática indigna e incompatível com o padrão ético minimante exigido para o convívio no meio coletivo, o que explica o tom implacável da regra do artigo 150 do Código Civil. Aliás, a tônica dessa normativa é plenamente condizente com a idéia há muito conhecida entre nós, que associa a aplicação da lei ao sentido de “dizer o Direito”, isto é, de atribuir ao caso concreto uma solução conforme a ordem jurídica. Por tais razões, como a torpeza bilateral é um fato que repugna ao Direito, não se afigura lícito, e muito menos justo, falar-se em anulação ou em perdas e danos quando o negócio contratual é entabulado sob o signo da atuação dolosa de ambas as partes, pelo que “quando ambos os contraentes se tenham mutuamente enganado, nenhum deles pode agir contra o outro, compensando-se o dolo de cada um com o do adversário”.213 Com razão a advertência de Silvio Rodrigues: Velho preceito do direito romano, comum a várias legislações, estriba-se no princípio de que in pari causa turpitudinis cessat repetitio. Não se trata de compensação de dolos, mas sim de desprezo do Poder Público, que fecha os ouvidos ao clamar daqueles que, baseados em sua 214 própria torpeza, pretendem obter a proteção jurisdicional. 212 BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil, Volume I, cit., p. 276-277. RUGGIERO, Roberto de. Op. cit., p. 347-348. 214 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 198. 213 75 Daí porque a ratio da lei foi prestigiar a atuação contratual revestida pelo senso comum de retidão, boa-fé e probidade, de modo a evitar que alguém, que obrou com malícia, se beneficie do próprio comportamento pretérito para pedir a anulação do negócio ou o arbitramento de uma indenização. Quem ludibriou não pode censurar quem também o ludibriou. “A regra do direito é a de que ninguém pode alegar em seu proveito a própria torpeza. Portanto, quem agiu como dolo não pode invocá-lo para furtar-se aos efeitos do ato jurídico”.215 Em outros termos: “quem dolo fez, por dolo não pode agir”.216 215 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Validade. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 136. 216 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 405. 76 CAPÍTULO 3 – REFLEXOS DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA NO DOLO CIVIL 3.1. O CHAMADO DOLUS BONUS As linhas precedentes deixaram bastante claro que o dolo é um vício de consentimento cuja configuração exige que os expedientes maliciosos ou as artimanhas praticadas tenham gravidade e seriedade suficientes para incutir na vítima a intenção de contratar. Esse pressuposto essencial à alegação do dolo civil é conhecido como dolus malus, expressão latina que designa a conduta astuciosa e falaz que influencia de maneira decisiva a vontade da vítima.217 Diz-se, desse modo, que a anulação do negócio jurídico exige que a maquinação dolosa tramada por quem o ato contratual aproveita tenha sido intensa o bastante para determinar o consentimento de quem foi enganado. Diria Caio Mário da Silva Pereira que: Este dolo, aludido nas fontes, e erigido em defeito subjetivo do ato jurídico pelo direito moderno, é o dolus malus caracterizado pela perversidade de propósito, e não o dolus bonus, ou inocente, que consiste em blandícias, no apregoamento publicitário de qualidades na utilização de artifícios menos graves que uma parte adote para levar a outra a 218 contratar, ou para obter melhores proveitos do ajuste. 217 218 As bases gerais do dolus malus já foram delineadas no item 2.1 desta dissertação. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 360. 77 Por isso, e a contrario sensu, toda vez que os expedientes ardilosos empregados se exteriorizam por práticas não-exageradas ou despidas de intensidade suficiente para persuadir uma pessoa em idênticas circunstâncias, diz-se tratar-se de dolus bonus. O dolus bonus consiste numa prática maliciosa usada para persuadir o contratante a aceitar o negócio, a qual, em razão de sua pouca gravidade, é tolerada pelo ordenamento jurídico. “Esse dolo tolerado é o que os romanos chamavam dolus bonus, em oposição ao dolo mais grave, que seria o dolus malus. Aquele não induz a nulidade, pois quem nele incorre o faz por sua própria culpa, ou por uma simpleza de espírito inconcebível.”219 De fato, a dicotomia entre o dolo bom e o dolo mal remonta ao Direito Romano clássico,220 mas integra a tradição jurídica ocidental, porquanto “embora para a moral o embuste ou a mentira, ainda que pequenos, sejam censuráveis, para o direito há um dolo menos intenso, que é tolerado, a par de um mais grave, que é repelido”.221 Fábio Ulhoa Coelho explica que essa opção normativa se deve porque “o dolo de pouca intensidade não deve redundar defeito do negócio para segurança das relações jurídicas”.222 Na realidade, se é verdade que as partes devem se comportar de modo reto e leal por todo o período das negociações preliminares, agindo com probidade e boa-fé, também é certo que cada um dos contratantes busca fazer um negócio compatível com as suas expectativas econômicas e com as suas conveniências pessoais, de modo a recolher, tanto quanto possível, melhores condições e maiores vantagens. Não se deve ser ingênuo a ponto de criticar o sujeito que, no afã de convencer a contraparte das vantagens do 219 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 195. Serpa Lopes, num interessantíssimo apanhado histórico do assunto, explica que “o dolo, como motivo de anulação do ato jurídico, era desconhecido na Grécia antiga. Apareceu em Roma, introduzido pelo pretor Aquilius Gallus, que o erigiu em motivo de nulidade, permitindo a actio de dolo, sendo provável que dele haja partido igualmente a exceptio doli. Depois disso, então, procurou-se dar-lhe uma noção precisa, e estabeleceuse, então, a distinção entre o dolus bonus e o dolus malus. O primeiro era a solércia; os romanos não consideravam malignidade o pregão de vantagens da mercadoria oferecida à venda, e todos os demais meios de reclame, inclusive o silêncio, em casos em que se não era obrigado a falar” (LOPES, Miguel Maria de Serpa. Op. cit., p. 437). 221 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 195. 222 COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 336. 220 78 negócio, emprega adjetivos em demasia ou usa metáforas exageradas para entoar as qualidades do produto que oferece. Não é absurdo nenhum dizer, com efeito, que uma dose de malícia ao longo das tratativas, mais do que coisa tolerada, é um comportamento inerente àqueles que contratam. Inteiramente pertinente, a propósito dessa ilação, a advertência de Carvalho Santos: É natural, observa ALVES MOREIRA, que o vendedor faça sobressair o valor e as qualidades do objeto, e que o comprador procure fazer avultar os seus defeitos, como é natural que contra tais expedientes todos estejam prevenidos, em virtude da sua normalidade, não devendo conseqüentemente atribuir-se eficácia jurídica ao uso deles, até no caso em que uma das partes haja sido prejudicada. A habitualidade dessa prática não lhe retira o caráter imoral. Mas enquanto reprovado pela moral, não o é pela lei, mêsmo porque esta não pode sancionar todos os preceitos da moral e também, como nota GIORGI, porque seria contrário ao interesse geral da sociedade rescindir os contratos por leve simulação ou dissimulação... Uma outra circunstância precisa ser levada em conta: o dolo tolerado, podendo ser facilmente verificado, não exige senão uma prudência ordinária e prática comum de negócios para ser evitado; e a lei não pode levar seus escrúpulos ao ponto de defender a ingenuidade ou simplicidade das pessoas, únicas hipóteses em que estas serão vítimas de dolo dessa natureza. Tanto mais quanto, como ficou dito, o seu dever era estarem prevenidas contra essa prática tão 223 habitual. O dolus bonus, como se observa, constitui uma garantia em prol do comércio jurídico, que visa a bloquear a anulação do negócio jurídico quando o expediente doloso exercido pelo contratante consubstancia um pregão excessivo ou um anúncio desmedido das vantagens da avença, permitindo inferir-se que a aceitação se originou da credulidade incontida ou de um descuido inescusável do co-contratante. Com a introdução de um quadro valorativo renovado na ordem jurídica brasileira, propiciada, em grande parte, pela hermenêutica constitucional do Direito Civil, a dicotomia entre o dolus malus e o dolus bonus precisa ser repensada. O item 3.1 do primeiro capítulo esquadrinhou o percurso histórico feito até se chegar, na atualidade, na tendência de 223 SANTOS, J. M. de Carvalho. Op. cit., p. 343 e 344. 79 objetivação dos negócios jurídicos, com o primado da teoria da confiança. Nestes tempos atuais, no embate entre o que se disse e aquilo que, no íntimo, se quis, a ordem jurídica volta-se para a proteção da confiança e as expectativas legítimas que a declaração de vontade criou para as partes. Dentro dessa perspectiva, surge um ponto de tensão entre a concepção clássica do dolus bonus e as bases axiológicas em que se funda o Direito Civil contemporâneo. É porque em decorrência da pouca incisão do comportamento doloso ou da demasiada ingenuidade do declarante, o dolus bonus tem como efeito atribuir a responsabilidade pelo afastamento da vontade interna da declaração ao próprio lesado. Essa tendência da doutrina é ressaltada por Washington de Barros Monteiro, para quem são “admissíveis essas manifestações no giro diário dos negócios, porque, como um pouco de diligência, um pouco de perspicácia, podem ser dissipadas.” 224 François Terré, Philippe Simler e Yves Lequette observam que essa solução, presa ao aspecto delituoso do dolo e apegada ao grau de intensidade da conduta do agente, procede da idéia de que qualquer indivíduo tem o dever de se informar e de proceder a um mínimo de verificação antes e no momento da formação do contrato.225 É impossível não perceber que esse aspecto dual do dolo, que reivindica a segurança jurídica como pano de fundo, mascara um resquício do sistema individualista e liberal que impregnou a construção do sistema jurídico ocidental moderno, ancorado no império do indivíduo e inspirado por um modelo abstrato e ideal de contratante,226 imune a considerações de índole subjetiva e isolado do contexto sócio-econômico em que se desenvolve a relação contratual. O critério decisivo da natureza inocente ou maliciosa do comportamento contratual é fundado num fator meramente objetivo, que abstrai as particularidades do caso concreto e as circunstâncias pessoais de quem se alega vítima, para erigir um padrão de atuação e de 224 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso, 1º Vol., cit., p. 197. TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 185. 226 NOGUERO, David. Op. cit.. 225 80 prudência fundados no conceito de bom pai de família, que tem em conta a conduta abstrata do homem médio. Conseqüentemente, o dolus bonus ocorre quando uma pessoa imbuída de poder de cautela mediano – que se poderia esperar de qualquer indivíduo nas mesmas circunstâncias – não daria crédito à gabação desmedida ou ao pregão exagerado das vantagens do contrato enunciadas pela contraparte, caso em que a desconformidade entre a vontade e a declaração deve ser imputada à própria incúria ou ao descuido do contratante. Vale dizer: “não bastam para enganar os reclames espalhafatosos (e.g., a melhor geladeira do mundo, o melhor café do Brasil, a lâmina que não se gasta), ou vagos, ou imprecisos”.227 A lição de Enzo Roppo, ademais, assoma: Em regra não é tal – e não leva, pois, à anulação do contrato – aquele dolo que se traduz na genérica exaltação, para além do verdadeiro e do verossímil, da qualidade daquilo que se oferece ou se promete (o assim chamado ‘dolus bonus’), justamente porque, nenhuma pessoa de bom senso, medianamente esperta e ajuizada, seria levada a concluir o contrato, só por efeito de semelhantes 228 jactâncias, tão usuais na práxis comercial . Nada obstante, é relevante indagar até que ponto essa distinção ainda é pertinente na atualidade, em que se respiram os ares de uma nova codificação civil e em que bafejam os ventos da constitucionalização do Direito Civil. Trata-se de problema de extrema importância, porquanto o novo contexto axiológico que preside o Direito Civil antepôs-se como uma conseqüência reflexa da inevitável superação da febre dogmática, cuja ideologia de purificação científica e metodológica deslocou o centro de gravidade das relações jurídicas para o entorno do paradigma do indivíduo. Analisado o problema da influência do dolo na conclusão dos negócios jurídicos, é induvidoso que as tratativas iniciais são um momento crucial, porque é a partir da 227 228 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 389. ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 240. 81 convergência dos interesses contrapostos das partes229 que o contrato ganha vida e corpo aos olhos da ordem jurídica. É natural que exista no plano pré-contratual um clima de tensão entre as partes, cada qual almejando a conclusão do negócio de maneira mais vantajosa para si. Mas não parece justo dizer que essa natural oposição possa proporcionar às partes um bill de imunidade para o exercício de um individualismo inaceitável e isolado da própria unidade do contrato. Aliás, é exatamente o inverso. O fato de existirem interesses contrapostos que buscam se conciliar ao longo das tratativas salienta com maior relevo a necessidade da confiança recíproca e da colaboração dos contraentes para a adequação do conteúdo negocial aos objetivos práticos almejados por ambos, como lembra Luiz Edson Fachin: A valorização da confiança corresponde a dar primazia à pessoa que está criando vínculos jurídicos, e propicia verificar que desencadeando esse processo, a chegada à conclusão de um contrato pode ser exteriorizada através de diversos modos, não sendo exigível, necessariamente, a formulação escrita, bastando o consentimento por atos e mesmo omissões juridicamente relevantes, pois o próprio silêncio pode apresentar valor jurídico quando a parte 230 privar-se do dever de falar . Desse jeito, a linha de separação entre o dolo inocente e o dolus malus tem sido paulatinamente apagada na atualidade. Na França, por exemplo, essa dicotomia sofreu um forte recuo pela obra da jurisprudência, que se inclinou a considerar escusável o erro do contratante quando o seu consentimento foi obtido arrebatado por um ato malicioso do cocontratante, independentemente da intensidade dos ardis engendrados. Deve-se assomar a essa guinada de rumos dos tribunais franceses, por igual, a ascensão de leis de proteção 229 Fala-se, aqui, de contraposição de interesses na acepção empregada por Orlando Gomes: “No contrato, porém, singulariza-se pela circunstância de que as vontades que o formam correspondem a interesses contrapostos. Na acepção lata, o consentimento significa a integração das vontades distintas. Na acepção restrita, a vontade de cada parte. Integradas as vontades, dá-se o acordo, que consiste, pois, na fusão de duas declarações, distintas e coincidentes” (GOMES, Orlando. Contratos, cit., p. 48). 230 FACHIN, Luis Edson. O “aggiornamento” do direito civil brasileiro e a confiança negocial. Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Luis Edson Fachin (organizador)... et al. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 117 e 118. 82 aos consumidores, cada vez mais devotadas a coibir a publicidade enganosa, que, outrora caracterizada como dolus bonus, hoje é fortemente reprimida .231 Jérôme Betoulle anota: É conveniente de qualquer modo observar que o campo de aplicação desse “dolo tolerado” está consideravelmente estreitado com a legislação contemporânea, protetora do consumidor, que exalta a transparência e a obrigação geral de informação (...) e que considera a simples afirmação “suscetível de induzir em erro” contida em um anúncio 232 publicitário uma fonte de responsabilidade penal. Entre nós, também, especialmente após a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, a dualidade entre o “dolo bom” e o “dolo mal” – a qual Carvalho Santos já vaticinava “carecer de utilidade prática”233 – sofreu uma grande e importante atrofia. É porque na perspectiva globalizada, em que predominam as contratações em massa e os regimes de monopólio ou de quase-monopólio, o dolus malus usualmente se apresenta na forma da publicidade enganosa, produzida com a finalidade de divulgar, de maneira desmedida, as qualidades e as utilidades de um bem ou de um serviço, ou, ainda, as vantagens potenciais que a aceitação do negócio pode proporcionar ao consumidor. De fato, no espectro das relações de consumo, a Lei n. 8.078/90 preconiza: Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1.º É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços. Parece não haver dúvidas que a exegese dessa norma remete o intérprete à noção comum do dolo civil, por envolver uma falsa compreensão das circunstâncias do contrato em razão de um ato deliberadamente praticado pelo fornecedor de produtos ou serviços, com a finalidade de manter o consumidor em erro. A inevitável associação dogmática da 231 TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 186. BETOULLE, Jérôme. Op. cit.. 233 SANTOS, J. M. de Carvalho. Op. cit., p. 327. 232 83 interpretação da publicidade enganosa com o dolo também é realçada por Cláudia Lima Marques, que acrescenta: A característica principal da publicidade enganosa, segundo o CDC, é ser suscetível de induzir ao erro o consumidor, mesmo através de suas ‘omissões’. A interpretação dessa norma deve ser necessariamente ampla, uma vez que o ‘erro’ é a falsa noção da realidade, falsa noção esta potencial formada na mente do consumidor por ação da 234 publicidade. Não se pode, entretanto, imaginar que a redução do espaço para a alegação do dolo inocente estaria restrita às relações de consumo, sob pena de se mitigar de modo inaceitável e injustificado a eficácia do princípio da boa-fé objetiva. E mais: não fosse assim, o legislador teria limitado expressamente a abrangência desse princípio, para restringi-lo aos contratos de consumo. Mas, à evidência, não foi esse o caso. Por tais motivos, mesmo fora das relações consumeristas, a exaltação irreal das qualidades e vantagens do negócio – independentemente de se aquilatar a sua intensidade e desde que suficiente para extorquir o aprazimento da vítima – importa na violação do princípio da boa-fé objetiva, consagrado no Código Civil em três oportunidades: Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. É de clareza ofuscante que a atuação do princípio da boa-fé objetiva não pode ficar aprisionada no campo das relações de consumo, uma vez que o período da puntuação, que antecede o entabulamento definitivo do contrato, deve ser permeado pela recíproca 234 MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p. 347. 84 confiança das partes235 – quer se trate de uma relação consumerista ou não. E assim parece ser porque o elemento fiduciário é o mais importante fundamento do princípio da boa-fé objetiva,236 já que “a concepção moderna das obrigações contratuais impõe a ambos os contratantes o dever de lealdade e boa-fé, devendo prevalecer sobretudo a transparência nas disposições convencionais”.237 Deveras: A distinção doutrinária não tem mais sentido atualmente. No plano das relações de consumo, inclusive, o instituto do dolo inocente afronta disposições legais que responsabilizam o fornecedor por propaganda enganosa (CDC, art. 37, §§ 1º e 3º), e, por isso, não se pode sustentar. Mesmo no plano das relações civis e comerciais, não sujeitas ao Código de Defesa do Consumidor, a exigência de boa-fé dos contratantes, ressaltada na codificação de 2002, é 238 incompatível com a tolerância do dolus bonus. É forçoso reconhecer que a objetivação da noção de boa-fé nos contratos, no que diz respeito ao período das tratativas, atua como fonte criadora de um dever de conduta239 que impõe às partes a obrigação de agir com lealdade, probidade e espírito de colaboração, para que o engajamento contratual se concretize em conformidade com o que se poderia legitimamente esperar em circunstâncias semelhantes. Aliás, essa idéia de colaboração entre os contraentes não é coisa nova entre nós. Depois de identificar o princípio da boa-fé objetiva como uma expressão do interesse social de segurança das relações jurídicas, Orlando Gomes anota que “indo mais adiante, aventa-se a idéia de que 235 Judith Martins-Costa explica que a origem etimológica do vocábulo “confiança” provém da expressão latina “cum fides”, que, literalmente, significa “com fé”, daí que a boa-fé, ou seja, a “bona fides”, designa “uma confiança adjetivada ou qualificada como ‘boa’, isto é, como justa, correta ou virtuosa” (MARTINS-COSTA, Judith. Op. cit., p. 38). 236 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A Boa-fé e a Violação Positiva do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 48. 237 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 120. 238 COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 336. 239 A doutrina mais prestigiada identifica no princípio da boa-fé objetiva três funções: interpretativa, ou hermenêutico-integrativa; de criação de deveres jurídicos anexos, ou instrumentais; e de limite para o exercício de direitos subjetivos (v. MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. 1ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 381-509; SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Op. cit., p. 36-106; NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 224-235; MARTINS, Flávio Alves. A Boa-fé Objetiva e sua Formalização no Direito das Obrigações Brasileiro. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2000, p. 73-92; e MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p. 105-116). 85 entre o credor e o devedor é necessária a colaboração, um ajudando o outro na execução do contrato”.240 Por isso, “para toda relação jurídica, vige o princípio de não defraudar a confiança da outra parte, assim como os deveres de recíproca consideração e observação da confiança”,241 razão pela qual o dolo empregado pelo contratante, mesmo que o desejasse inocente, poderá resultar na anulação do negócio jurídico sempre que – por conta da confiança e da expectativa geradas pelos reclamos publicitários ou pelo pregão excessivo do bem ou do serviço – for capaz de extorquir do declarante uma manifestação de vontade em desarmonia com o que o senso comum e a boa-fé teriam por correto esperar. Com efeito, a valorização do clima de confiança recíproca que deve estar à frente das relações contratuais impõe uma modulação, ou uma virada de eixos, na interpretação da dialética dicotomia entre o dolus malus e o dolus bonus, de forma a direcionar os efeitos objetivos do negócio jurídico àquilo o que seria razoável esperar em situações idênticas e a assegurar a simetria das vantagens e dos ônus do acordo. Note-se que a incidência da boa-fé objetiva, neste caso, não visa a atuar como um fator de restauração do equilíbrio das prestações ou de realização da justiça contratual, mas como uma referência valorativa para a determinação do padrão de comportamento que os contratantes devem observar, desde as negociações preliminares até o integral adimplemento das obrigações contratuais. “Estabeleceu-se, assim, um novo patamar de conduta, de respeito no mercado, que não admite mais sequer o dolus bonus do vendedor, do atendente, do representante autônomo dos fornecedores, face ao dever legal”.242 Com efeito, a relação dual entre o “dolo mau” e o dolo tolerado tem como fiel da balança o clima de confiança vertido pelo princípio da boa-fé objetiva, que tem como critério valorativo o comportamento contratual capaz de suscitar no espírito da contraparte a 240 GOMES, Orlando. Contratos, cit., p. 46. MARTINS, Flávio Alves. Op. cit., p. 80. 242 MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p. 111. 241 86 expectativa legítima e razoável de alcançar as vantagens e os objetivos que inspiraram a aceitação do contrato. Vale, aqui, neste passo, lembrar a opinião de Emílio Betti, para quem a solução dessa dicotomia recai na investigação dos pontos de vista dominantes na sociedade, quer dizer, dos efeitos que comumente, em iguais circunstâncias, seria legítimo acreditar seriam produzidos: O critério de delimitação entre o dolo ilícito (aquilo a que os romanos chamavam dolus malus) e a velhacaria lícita (a que chamavam dolus bonus), deduz-se da correção que as partes são obrigadas a observar no decorrer das negociações (...); e a diagnose para ver se a astúcia usada no caso deixava de pé a correção de uma das partes e apenas comprometia o senso crítico e a autoresponsabilidade de contraparte, deve ser referida aos pontos de vista dominantes numa sociedade, como é a 243 dos nossos dias, na prática corrente do comércio. No mesmo sentido, entre nós, Fábio Ulhoa Coelho advoga que o sentido valorativo da confiança nas relações contratuais, mais do que um postulado de Justiça, representa um elemento de segurança jurídica: A sociedade envolve um número incontável, imensamente complexo e formalmente imprevisível de relações sociais, não se podendo, por isso, prever o conjunto de ocorrências futuras. A confiança, assim, age no sentido de diminuir tal complexidade, reduzindo, para o sujeito, a insegurança quanto ao futuro. Com ela, o sujeito tem condições de projetar sua atuação conforme um conjunto relativamente pequeno de possibilidades, excluindo do seu planejamento aquilo que confia – mais do que espera – que não 244 acontecerá. Em verdade, embora podada em seu vigor pela limitação imposta pela boa-fé e pelo interesse social da tutela objetiva da confiança, a distinção entre o dolus bonus e o dolus malus não pode ser ignorada pelo Direito Civil, dada a necessidade de se demarcar a malícia puramente hipotética, ilusória e presente tão-só no espírito da pretensa vítima, dos expedientes mendazes que, mesmo que breves e pouco intensos, tenham bastado para apartar a expressão da vontade do declarante de sua real intenção. Na verdade, os 243 244 BETTI, Emílio. Op. cit., p. 357. SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Op. cit., p. 49. 87 conceitos do dolo malicioso e do dolo inocente são úteis para a construção de um paradigma axiológico da influência que o expediente doloso exerceu na manifestação de vontade da vítima, consoante enfatiza Humberto Theodoro Júnior: Penso, todavia, que quase sempre será pela maior ou menor gravidade do erro induzido que se chegará a um juízo consistente acerca de sua influência, ou não, sobre a decisão de contratar. Assim, embora não seja tão importante, nos tempos atuais, a distinção entre o dolus bonus e o dolus malus, pode ser utilizada como critério auxiliar para se pesquisar sua efetiva repercussão sobre o 245 processo causal da declaração de vontade. É induvidosa, por via de conseqüência, a valia da distinção entre o dolus malus e o dolus bonus como critério valorativo para a análise da maior ou menor ascendência que o pregão exagerado das vantagens do contrato exerceu na formação da vontade negocial da contraparte. Mas não se pode afastar por inteiro a plausibilidade de se investigar as particularidades do caso concreto, notadamente sob a perspectiva das condições pessoais do contratante ludibriado, a fim de se ter em conta a sua origem social e econômica, idade, saúde, índole e todas as demais circunstâncias que estão no entorno do negócio.246 Isto é: A natureza dos artifícios deve ser objeto de acurada atenção, tendo-se em conta as circunstâncias da hipótese ocorrente, os usos e praxes comerciais, lembrando GIORGI que o dolo é sempre grave, quando, por exemplo, o negociante emprega algum artifício que mude o aspecto exterior da coisa vendida, como no caso do indivíduo que apregoa qualidades raríssimas de pássaros, comuns, cujas penas habilmente coloriu. Com relação às qualidades pessoais da vítima, é preciso se levar em conta a idade, a instrução da pessoa enganada, as relações entre ela e o outro contraente, convindo não esquecer, como nota GIORGI, que algumas fraudes, que iludiriam qualquer pessoa, não poderiam escapar a um comerciante, que por sua condição deve melhor saber dos manejos que é fértil a malícia das pessoas dedicadas a 247 negócios. 245 THEODORO JÚNIOR. Humberto. Op. cit., p. 118 e 119. TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 308. 247 SANTOS, J. M. de Carvalho. Op. cit. p. 332-333. No mesmo sentido, Cossío y Corral destaca que “para determinar a gravidade e a transcendência de tais manobras e artifícios insidiosos, há que se ter em conta não só a concepção objetiva que aos mesmos haveria de dar-se na normalidade dos casos, mas, sobretudo, as condições da pessoa a cujo engano se tenham dirigido. É preciso ter em conta a mentalidade da vítima, seu caráter e circunstâncias que tenham podido influir em sua vontade” (COSSÍO Y CORRAL, Alfonso. Op. cit., p. 192-193). 246 88 Com efeito, a boa-fé objetiva e o seu sentido de valorização da confiança devem marcar as relações contratuais na atualidade, de maneira que os interesses em jogo transcendam o quadrante da individualidade para a construção de um padrão de comportamento capaz de permitir a realização dos objetivos práticos almejados pelos contratantes. 3.2. RELEITURA CRÍTICA DO DOLO ACIDENTAL Este estudo já apresentou a demarcação teórica entre o dolo principal, ou causal, que é o expediente malicioso que atua como motivo determinante da firmação do contrato, sem o qual não teria o declarante aprazido em contratar, e o dolo acidental, ou incidente, o qual, a seu despeito, o negócio seria concluído, só que de maneira distinta.248 O dolo principal, previsto no artigo 145 do Código Civil, considera que a prática ardilosa foi o fato gerador da manifestação da vontade da vítima, de modo que, não fosse por isso, o negócio não seria concluído. O dolo acidental, reconhecido no artigo 146 do Código Civil, considera que face à predisposição do declarante em celebrar o contrato, o expediente malicioso simplesmente serviu ao propósito de influir na formação do contrato em condições diferentes das que seriam aceitas. Diria Francisco Amaral: A principal distinção é a que existe entre o dolo principal ou determinante ou essencial (dolus causam dans) e o dolo incidental ou acidental (dolus incidens). Verifica-se o primeiro quando é determinante do ato. É dolo vício. Sem ele não haveria declaração de vontade. A sanção é a anulabilidade do ato. O segundo é o que – não se constituindo em razão determinante do ato, pois que sem ele, ou apesar dele, o negócio se teria realizado, embora em condições diversas, 249 não torna anulável o ato (CC, art. 93). 248 249 V. capítulo 2, item 2.2., supra. AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 490. 89 Quando se trata, pois, do dolo principal, a solércia do contratante desperta na vítima a aceitação do contrato, ao passo em que, no dolus incidens, “a pessoa queria o ato, sem dúvida, mas não daquele modo por que o praticou”.250 Mas até que ponto a classificação da lei – atrelada, em grande parte, à investigação subjetiva da inclinação da parte enganada em contratar – é compatível com o estágio atual do Direito Civil? Essa pergunta é de implacável importância para a disciplina dos contratos, máxime nos tempos presentes, em que “o valor fundamental deixou de ser a vontade individual, o suporte fático-jurídico das situações patrimoniais que importava regular, dando lugar à pessoa humana e à dignidade que lhe é intrínseca”.251 É de se ver que a distinção entre o dolo principal e o dolo incidente, conquanto há muito tempo consagrada em nossa cultura jurídica, é contrária as fontes romanas clássicas e sequer está presente no Direito germânico.252 Na França, essa dualidade de efeitos do dolo civil esbarrou em importantes objeções doutrinárias e chegou a ser taxada de meramente artificial253, haja vista que a sua aceitação redundaria em “obscurecer a teoria e propor aos juízes uma distinção impossível, de fato, e injusta nos seus resultados.254 De fato, é difícil não reconhecer que a prática de uma maquinação dolosa, independentemente da propensão da vítima em contratar, resultará na conclusão dum negócio inconciliável com o que seria querido em outras circunstâncias. Por tais razões é que, com razão, diz-se que, mesmo quando o dolo é acidental, o resultado é a celebração de um outro contrato, diverso do que a vítima almejava concluir.255 No caso do dolo acidental, o negócio que a parte ludibriada quis fazer era substancialmente distinto daquele que, ao final, foi celebrado, donde inferir-se ao menos a 250 SANTOS, J. M. de Carvalho. Op. cit., p. 340. MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 109. 252 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 393. 253 V. TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 190 e FLOUR, Jacques Flour; AUBERT, Jean-Luc. Op. cit., p. 148. 254 RIPERT, Georges. Op. cit., p. 100. 255 TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p.190. 251 90 priori que a dicotomia entre o dolo principal e o dolo acidental é no mínimo insidiosa, tendo em vista que o seu fundamento se sustenta na pressuposição de uma realidade ficta. É porque o traço distintivo entre essas duas figuras é ancorado no nexo de causalidade entre o expediente ardiloso empreendido pelo enganador e a declaração de vontade da vítima, razão pela qual, presente o liame causal entre o artifício falaz e o aprazimento do declarante, diz-se haver o dolo principal, que dá azo à anulação do negócio jurídico; ao contrário, toda vez que a aceitação da vítima sobreviria de qualquer maneira, ainda que não houvesse o comportamento doloso da outra parte, o caso é de dolo acidental, que não permite o desfazimento do ato negocial, mas atribui ao lesado o direito à reparação dos danos causados. Mesmo assim, e sem embargo da influência que o ardil engendrado pelo autor do dolo exerceu para a formação do contrato, é inegável notar que o consentimento da vítima foi exteriorizado em bases objetivamente diferentes das que seriam aceitas houvesse um melhor conhecimento da realidade e das circunstâncias do negócio. Nesta hipótese, a confiança de uma das partes e as expectativas legítimas que depositou no negócio foram vilipendiadas por influência do comportamento doloso e contrário ao sentido de probidade e ética que deveria estar presente em todo percurso das negociações. Com efeito, a distinção entre o dolo principal e o dolo acidental contém uma vigorosa contradição, tendo em vista que se o que se pretende é tutelar a pureza da manifestação de vontade, pouca ou nenhuma importância terá a predisposição da parte em ajustar o contrato, do mesmo modo que – para mal comparar – de nada adianta um homicida justificar o seu ato com o argumento de que a vítima estava inclinada a morrer. A verdade é que o caráter delituoso do dolo civil se emparelha com o comportamento que contradiz a boa-fé e o clima de confiança que devem presidir as relações contratuais, criando um núcleo comum entre os fins colimados pelo tratamento normativo dos vícios de 91 consentimento e a ordem principiológica que disciplina a atividade contratual. Assemelhase mais acertado reconhecer maior importância à conduta do ludibriador e ao seu desvalor ético-social, que contraria a ordem principiológica em que se ancora o Direito Civil atual. Fica superada, por tais razões, a interpretação dogmática clássica, mais interessada em investigações subjetivas e na correlação entre a prática dolosa e a propensão da vítima em celebrar o negócio. Em outras palavras, o vício de consentimento existirá a despeito de qualquer outra consideração, desde que o expediente doloso tenha influenciado o agente a contratar de maneira diferente da que desejaria se não fosse ludibriado. Cóssio y Corral, em crítica digna de citação, enfatiza: O que ocorre é que esta distinção não deve ser arbitrária: o contrato é querido como um todo, não só em suas partes principais, como nas secundárias. Não há, portanto, razão para manter conceitualmente esta distinção: no fundo se trata simplesmente de uma faculdade reconhecida ao arbítrio judicial, que poderá determinar em cada caso, à vista das circunstâncias concretas, se procede a declaração de nulidade, ou simplesmente a indenização de 256 danos e prejuízos. Esta proposta de releitura crítica da distinção entre o dolo principal e o dolo acidental ganha maior relevo e intensidade quando confrontada com a influência da teoria da tutela objetiva da confiança e com a influência do princípio da boa-fé objetiva na exegese e na integração dos negócios jurídicos. A importância dessa discussão é sublinhada por Humberto Theodoro Júnior, que ainda observa: No entanto, até mesmo no campo do dolo e da coação, o regime do atual Código prestigia a teoria da confiança e não dispensa a culpa do beneficiário para a configuração do vício do consentimento... Como se vê, o sistema geral dos vícios de consentimento, na evolução do Código de 1916, para o atual, submeteu-se, predominantemente, à teoria da confiança, onde o destaque maior é conferido à boa-fé, à lealdade, e à 257 segurança das relações jurídicas. 256 257 COSSÍO Y CORRAL, Alfonso. Op. cit., p. 204. THEODORO JÚNIOR. Humberto. Op. cit., p. 27 e 28. 92 Em outras palavras, o dolo civil contém uma pesada carga de ilicitude, que se revela por uma prática antagônica à boa-fé e incompatível com a confiança que a vítima depositou nos negócio jurídico, o que permite afirmar que o ato doloso de quem se beneficiou com a declaração errônea de vontade, mesmo que usado para extorquir o consentimento de quem já se predispunha a contratar, poderá ensejar, em dadas hipóteses, a anulação do negócio. Abstraída a natural dificuldade de se aferir, caso a caso, a vontade interna de quem se diz enganado para se concluir pela sua pré-determinação em anuir com o ajuste negocial, é evidente que a simples formação de um contrato em bases diferentes das que, em outras circunstâncias, haveria de querer o declarante constitui um desvio no percurso da vontade, que deságua num consentimento desfigurado. Por isso, antes de se imiscuir numa aventura subjetiva pelo microcosmo do íntimo querer da vítima, 258 o intérprete deve devotar-se à consideração objetiva dos efeitos que o negócio jurídico deveria, dentro da normalidade e à luz de seu sentido ético social, ter aptidão para concretizar. Valem transcrever, mais uma vez, as palavras de Emílio Betti: É decisiva para a interpretação a impressão que, de acordo com os pontos de vista sociais correntes, a conduta de uma das partes deva suscitar na outra, a quem se destinava, nas circunstâncias de tempo e de lugar da formação e celebração do negócio, em conformidade com 259 a estrutura típica deste. Dentro dessa linha de entendimento é que Antônio Junqueira de Azevedo, ao cunhar a sua teoria estrutural, observa que “o que caracteriza o negócio jurídico é o fato de ser uma manifestação de vontade qualificada por circunstâncias que fazem com que ele 258 Tereza Negreiros lembra que “é precisamente com base na boa-fé objetiva que se justifica, à luz da referida teoria, a criação de vínculo obrigacional resultante de uma radical objetivização da vontade. Trata-se de identificar o suporte fático da vontade, em total desconsideração pelo seu lastro psicológico ou subjetivo” (NEGREIROS, Teresa. Op. cit., p. 244). 259 BETTI, Emilio. Op. cit., p. 181. 93 seja visto socialmente como dirigido à produção de efeitos jurídicos”.260 Daí poder-se dizer que o princípio da boa-fé objetiva atua, nesses casos, como o ponto determinante do padrão comportamental assentado nos signos de lealdade, ética e probidade, que concita o contratante a uma atuação negocial voltada tanto à realização dos seus interesses quanto os da contraparte, de modo que a relação contratual deixa de ser vista como um receptáculo de direitos e obrigações para ser compreendida em sua dimensão total, como um complexo unitário e indivisível. Trata-se, em última instância, da proteção da confiança como um autêntico valor jurídico,261 que, apartado de ponderações subjetivas, busca construir uma linha média de comportamento compatível com a boa-fé, extravasando os postulados metafísicos da ética e reivindicando eficácia normativa plena.262 Por isso, o princípio da boa-fé objetiva erige um complexo de deveres jurídicos atribuídos aos partícipes do vínculo contratual, aos quais se impõe uma atuação permeada pelo senso de lealdade, integridade, responsabilidade e confiança. Cláudia Lima Marques observa: Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação ‘refletida’, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo 263 contratual e a realização dos interesses das partes. Bruno Lewicki enfatiza que o princípio da boa-fé objetiva, quando empregado à luz dos valores encartados na Constituição Federal, pode ter o mérito de inaugurar uma nova compreensão do Direito das Obrigações, “cumprindo um papel transformador semelhante 260 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Op. cit., p. 124. SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Op. cit., p. 50. 262 Judith Martins-Costa afirma: “Contudo, como insistentemente tenho referido, a boa-fé objetiva é mais do que apelo à ética, é noção técnico-operativa que se especifica, no campo de função ora examinado, como o dever do juiz de tornar concreto o mandamento de respeito à recíproca confiança às partes contratantes, por forma a não permitir que o contrato atinja finalidade oposta ou divergente daquela para o qual foi criado” (MARTINSCOSTA, Judith. A Boa-Fé, cit., p. 437). 263 MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p. 107. 261 94 ao que a doutrina vem destinando a função social, no campo da propriedade, e para a visão instrumental da família”.264 Desse modo, a deformação da vontade contratual, gerada pela prática falaz engendrada por um dos contratantes, tem como efeito o distanciamento do conteúdo do negócio do resultado prático que a parte lesada supunha conquistar. Entretanto, como já se viu, constitui tarefa das mais árduas determinar até que ponto ou à conta de quais critérios, não fosse o comportamento doloso de quem foi favorecido pelo contrato, o declarante estaria predisposto a contratar. Isso se deve porque quando se trata do dolo acidental, o contrato a que a vítima se dispunha a celebrar não era o mesmo que, afinal, acabou por aceitar, pelo que é impossível afirmar-se com base em elementos psíquicos ou subjetivos que o ato contratual ter-se-ia formado de qualquer jeito, conquanto que de modo diferente. Toda essa ponderação impõe a elaboração de novos limites demarcatórios entre o dolo principal e o dolo incidental, porquanto na disciplina contratual da atualidade os objetivos do contrato deixam de ser um consectário exclusivo da voluntariedade dos seus protagonistas para adequar-se aos postulados sócio-econômicos da sociedade e aos resultados práticos que, conforme o tipo negocial, seria lícito e razoável esperar. Neste ponto se antepõe, como aqui já parece bastante claro, a função interpretativa, ou hermenêutico-integrativa,265 da boa-fé objetiva. Os passos essenciais à plena realização desta técnica hermenêutica se iniciam com a constatação de que, na interpretação das normas contratuais, deve cuidar o juiz de considerá-las como um conjunto significativo, partindo, para tal escopo, do complexo contratual concretamente presente – o complexo de direitos e deveres instrumentalmente postos para a consecução de certa finalidade e da função 266 social que lhes é cometida. 264 LEWICKI, Bruno. Panorama da boa-fé objetiva. Problemas de Direito Civil-Constitucional. Gustavo Mendes Tepedino (organizador)... et al. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 55-75. 265 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé, cit., p. 428. 266 Idem. Op. cit., p. 430. 95 Assim deve ser porque a inauguração de uma nova ordem de princípios de matiz constitucional, voltados à promoção e à tutela de valores assentados na dignidade humana, na solidariedade e na função social, também implicou na superação do ideário individualista e patrimonialista que informava, até então, o Direito Civil brasileiro. Por isso, se é verdade que, longe dum espírito dogmático, a distinção entre o dolo principal e o dolo incidental ainda deve subsistir em nosso ordenamento jurídico, também é correto dizer que a aferição da predisposição do contratante em celebrar o negócio jurídico não pode mais ancorar-se no critério do império absoluto da vontade. De fato, Pietro Perlingieri pondera: Não é possível, portanto, um discurso unitário sobre a autonomia privada: a unidade é axiológica, porque unitário é o ordenamento centrado no valor da pessoa, mas é justamente essa conformação do ordenamento que impõe um tratamento diversificado para atos e atividades que em modo diferenciado tocam esse valor e regulamentam situações ora existenciais, ora patrimoniais, ora umas e 267 outras juntas. Insista-se: em casos tais, o baluarte, o norte de interpretação é a boa-fé objetiva, que atua como paradigma do comportamento probo, ético e responsável, devotado à valorização da confiança recíproca e do clima de lealdade que devem permear o processo obrigacional, no fito de preservar as expectativas legítimas e razoáveis das partes. Trata-se, em última instância, de se alforriar a configuração do dolus incidens dos imponderáveis rincões da mente humana para se encontrar o nexo de causalidade entre a maquinação dolosa e a exteriorização da vontade no exame objetivo do caso concreto, de maneira a se fixar os limites da anulabilidade do negócio jurídico em conformidade com os objetivos práticos e com as expectativas legítimas que qualquer pessoa, em idênticas 267 PERLINGIERI, Pietro. Op. cit., p. 276-277. 96 circunstâncias, teria por razoável esperar. Tal é a opinião de Paulo Neves Soto, que observa: Tal regra de interpretação objetiva da vontade realiza uma verdadeira superação dos debates que buscavam pela vontade, e interesse meramente privado da parte como referência para interpretação contratual. A partir do art. 113 do novo CC o que passará a importar é o modo como se conduzem as partes em relação ao negocio e, neste sentido, a lealdade se impõe mesmo quando a vontade é manifestamente diversa, pois a conduta de boa268 fé passa a ser um limite à liberdade individual. A confiança que deve temperar toda a extensão da contratação – desde as primeiras tratativas até a completa exação das prestações materiais a que as partes se obrigaram – toma o lugar do subjetivismo que imperava na perspectiva civilista clássica e que outrora marcava o ponto limite entre a essencialidade e a acidentalidade do dolo. Com a inevitável superação do dogma da vontade, os negócios jurídicos, e particularmente os contratos, deixam de realizar o que as partes quiseram para concretizar aquilo o que, em iguais condições e de acordo com o paradigma da boa-fé objetiva, a qualquer um seria lícito e legítimo esperar. Uma última nota: a reformulação interpretativa aqui proposta não elimina as fronteiras que existem entre o dolo principal e o dolo acidental, como se pretendesse condensar essas duas figuras numa só; o que se propõe é modular os critérios de interpretação do dolo principal e do dolo incidens para bases objetivas, libertas da influência do psiquismo dos contraentes; assim, o emprego da confiança como critério determinante absolverá o intérprete da tarefa de empreender uma viagem metafísica no mundo nebuloso da vontade das partes, à cata de conjeturas e indícios, a fim de se voltar para a intenção consubstanciada na declaração de vontade,269 o que importa, em outras palavras, em se 268 SOTO, Paulo Neves. Op. cit., p. 247-265. Lembre-se que o Código Civil preconiza: “Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”. 269 97 reconhecer o primado da boa-fé objetiva e a valorização da função sócio-econômica dos negócios jurídicos. 3.3. O NOVO PANORAMA INTERPRETATIVO DO DOLO POR OMISSÃO Até que limite, ao longo das tratativas, um contratante pode omitir da contraparte informações ou detalhes do negócio que, se conhecidos, impediriam a sua conclusão ou importariam na sua celebração em condições diversas? A resposta a essa indagação se torna ainda mais difícil quando se tem em mente que nos contratos onerosos – que representam a esmagadora maioria da realidade atual – ambas as partes almejam fazer um negócio o mais vantajoso o possível, quer dizer, que lhes assegure ganhos maiores e encargos menores. Ora, a ninguém é dado pensar, com ingenuidade, que o contraente deve revelar ao co-contratante tudo o que estiver relacionado ao negócio, o que não importa em dizer, porém, que as negociações preliminares devam ser levadas a efeito sob os signos do egoísmo desmedido e da irrefletida sanha de lucro. Essa questão é de dramática pertinência, pois o Código Civil admite que se desfaça o negócio jurídico sempre que uma das partes silencia a respeito de um fato ou de uma qualidade determinante: Art. 147. Nos negócios jurídicos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela o negócio não se teria 270 celebrado. Os limites do silêncio nos contratos aturdiram os comentadores do Code e os tribunais franceses por mais de um século. O espírito liberal que envolveu a edição do Código Napoleão, baseado no mito da igualdade e da liberdade, contradizia a idéia de que 270 O Código de 1916, por sua vez, dispunha: “Art. 94. Nos atos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela não se teria celebrado o contrato”. 98 um sujeito devesse revelar à contraparte detalhes do negócio com os quais ela própria sequer se preocupou. O paradoxo dessa inflexão tem repercutido até na jurisprudência francesa mais recente, que, embora adote um conceito muito amplo para o dolo civil,271 a ponto de julgar, por exemplo, que “o erro provocado pelo dolo pode ser levado em consideração mesmo se ele não incidir sobre a substância da coisa que constitui objeto do contrato”,272 recusa-se a admitir que o silêncio de um dos contratantes importe em vício de consentimento. Veredictos da Corte de Cassação da França já decidiram que “a simples reticência (...) por si só é insuficiente para constituir um dolo”, 273 hipótese em que o lesado até pode obter a anulação do contrato, mas com fundamento no erro, eis que o dolo supõe um engano provocado por um ato positivo. Depois de muita vacilação,274 os tribunais franceses evoluíram para considerar anulável o contrato “quando a reticência consiste na ocultação de um fato que era impossível ao outro contratante ter conhecimento por seus próprios meios”.275 Tato é assim que nos dias de hoje a reticência é considerada “uma das formas normais do dolo.”276 Esse ciclo evolutivo do Direito Civil francês, a despeito da contribuição doutrinária, também pode ser tributado a dois fatores: o primeiro refere-se à proliferação de leis que promoveram o comportamento de lealdade e boa-fé dos contratantes e, portanto, proibiram a admissão de uma postura contratual omissiva e circunstancialmente dolosa; em segundo lugar, ocorreu uma virada de rumo dos critérios de interpretação dos tribunais, que passaram a associar a conduta dolosa à idéia de má-fé, que contradiz a expectativa de boa-fé que deve estar presente na atmosfera da formação dos contratos. Georges Ripert 271 V. LARROUMET, Christian. Op. cit., p. 308; e TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Simler. Op. cit., p. 189. 272 FRANÇA. Corte de Cassação. Recurso de Cassação. 3ª Câmara Civil. Paris, 20 de outubro de 1974 (TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Simler. Op. cit., p. 189, nota n. 5) (tradução livre). 273 FRANÇA. Corte de Cassação. Recurso de Cassação. Paris, 17 de fevereiro de 1874, S. 1874.1.248 (Ibidem, loc. cit., nota n. 6) (tradução livre). 274 FLOUR, Jacques; AUBERT, Jean-Luc. Op. cit., p. 146. 275 FRANÇA. Corte de Cassação. Recurso de Cassação. Câmara Comercial. Paris, 2 de março de 1959. Bull civ., III, nº 113. (TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Simler. Op. cit., p. 189). 276 V. FLOUR, Jacques Flour; AUBERT, Jean-Luc. Op. cit., p. 147. 99 enfatizava que a lealdade e a ética são ideais indispensáveis às relações jurídicas que envolvem a atribuição recíproca de encargos e vantagens, sob pena de violação da boa-fé: Partindo desta idéia pode-se chegar a encontrar uma causa de nulidade na simples omissão, isto é, no silêncio guardado por uma das partes sobre um fato que a outra parte ignora, e que se o conhecesse modificaria profundamente as suas intenções. Diz-se em geral que a omissão não constitui dolo. Não se pode sustentar princípio tão imoral. O que é verdade é que, na maior parte dos contratos, há oposição de interesses entre os contratantes. Cada um é o guarda dos seus próprios interesses e deve, por conseguinte, informar-se. Não há, pois, nada de culpável no fato de não dar à outra parte as informações que ela própria devia ter procurado obter. Mas a solução muda e a omissão torna-se culpável se uma das partes tem o dever de consciência de falar sob pena de abusar da 277 ignorância da outra. Outra questão que já suscitou querelas doutrinárias intermináveis refere-se a saber se o dever de informar existe somente quando a lei expressamente o impõe ou se essa regra de conduta tem origem implícita em nosso ordenamento jurídico. Dir-se-ia, num primeiro impulso, que quem se mantém reticente no momento da firmação do contrato não pode influir no aprazimento da outra parte, exatamente porque o silêncio, como ato negativo, não produz efeito algum no processo de exteriorização da vontade da outra parte. Mas, como é sabido, em torno de qualquer negócio jurídico gravita uma série de fatos e circunstâncias que invariavelmente irá repercutir no aspecto econômico do ato negocial e, conforme o caso, no próprio assentimento dos agentes. É o exemplo do sujeito que adquire de outro um imóvel sem sabê-lo situado em área de risco de enchentes. Essa circunstância, acaso conhecida com antecedência pelo comprador, de certo produziria uma das seguintes conseqüências: a) o adquirente abortaria o negócio; b) ou, mesmo que desejasse levar à frente o propósito de adquirir o bem, ofereceria por ele um preço proporcional ao déficit de qualidade constatado. 277 RIPERT, Georges. Op. cit., p. 101 e 102. 100 Pontes de Miranda dizia que “a regra é, porém, a de que, de ordinário, não há dever de comunicação, razão porque se tem de conceber, a par da anulabilidade por erro, ou pelo dolo, a redibição.”278 Mesmo a doutrina mais recente parece não ser de todo antipática à idéia liberal em que se inspira a admissão do silêncio intencional nos contratos, exceto nos casos em que preexiste o dever de informar, como observa Silvio de Salvo Venosa: Desse modo, concluímos que, apesar de o silêncio, por si só, não gerar efeito jurídico algum, quando há dever de informar, pode caracterizar dolo omissivo. Esse dever de informar decorre de cada caso concreto, do prudente exame do juiz. Nesse aspecto, avulta de importância o critério do julgador para identificar o dolus 279 bonus, ou dolo inocente, distinguindo-o do dolus malus. Entretanto, nestes tempos atuais, em que a dignidade da pessoa humana é fundamento republicano280 e em que o contrato detém uma função social,281 não se afigura razoável aceitar que o limite para a vigência dos deveres de lealdade e de informação tenha origem em regras expressas predispostas no ordenamento jurídico. Dizer-se o contrário importaria na destruição de um dos paradigmas que inspira as relações contratuais na atualidade, calcado na valorização da confiança recíproca das partes e na proteção de suas legítimas expectativas. E realmente não poderia ser de outro modo. Em primeiro lugar porque, a despeito de omissivo ou comissivo, o dolo é um vício de consentimento que repercute no trajeto percorrido pelo consentimento da vítima com idêntica intensidade e relevância: O mecanismo psíquico do dolo, por ação ou omissão, é o mesmo, e se verifica na utilização de um processo malicioso de convencimento, que produza na vítima um estado de erro ou de ignorância, determinante de uma declaração 282 de vontade que não seria obtida de outra maneira. 278 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 397. VENOSA, Silvio de Salvo. Op. cit., p. 448. 280 O artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal prevê que, dentre outros fundamentos, a República Federativa do Brasil é baseada na dignidade da pessoa humana. 281 O Código Civil preconiza no artigo 421 que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. 282 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 360. 279 101 É, por isso, indiferente a natureza positiva ou negativa do expediente doloso empregado para extorquir do agente uma declaração de vontade discordante do seu íntimo querer. Como argumento de reforço, vale dar destaque à memorável opinião de Clóvis Bevilaqua, autor intelectual do Código Civil Brasileiro de 1916, que jamais ousou afirmar que o dever de informar estaria condicionado à prévia imposição legal: Para que se dê a omissão dolosa, não basta o silêncio de uma das partes sobre alguma circunstância anterior, ou a respeito de alguma qualidade do objeto do contrato. É necessário que a omissão seja tal que, seja ela, não se 283 teria celebrado o ato. Na vertente dessa conclusão também está a opinião de Caio Mário da Silva Pereira, para quem o meio de manifestação do dolo tem importância secundária, bastando que o expediente doloso – comissivo ou omissivo – tenha tido intensidade suficiente para apartar o consentimento das bases que seriam queridas, não fosse o erro provocado: Não importa, repetimos, seja o procedimento doloso uma ação ou omissão. O que se tem de indagar é se o dolo foi a causa determinante do ato, dolus causam dans, chamado dolo principal, que conduz o agente à declaração de vontade, fundado naquelas injunções maliciosas, o que de outra maneira dito significa que o dolo só tem o efeito de anular o negócio jurídico quando chegue a viciar e 284 desnaturar a declaração de vontade. Em segundo lugar, é de se ver que o dever de informação e, portanto, de não silenciar, antes de uma questão de política e casuísmo legislativos, é um postulado de ordem geral, que decorre do clima de boa-fé com que os contratantes devem agir durante a fase das tratativas.285 Fala-se, aqui, das idéias de lealdade e de cooperação que se esperam presentes no comportamento dos contratantes, que permitem considerar o 283 BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil, Volume I, cit., p. 274. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 360. 285 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 196. 284 102 silêncio e o embuste como artimanhas dolosas que conspurcam a confiança e as legítimas expectativas que a contraparte depositou no negócio.286 Note-se que a associação das idéias de lealdade e de boa-fé como fatores decisivos para a configuração da omissão dolosa já era advogada há muito por Carvalho Santos, como desvelam as linhas transcritas abaixo: A lei pode não obrigar a parte a falar, porém os usos do comércio e a boa-fé, ao contrário, podem perfeitamente equiparar o silêncio a uma ação dolosa, por furtar ao conhecimento do outro contratante uma circunstância de natureza tal, que, se conhecida, naturalmente obstaria a formação do contrato.287 A atmosfera de confiança recíproca que deve temperar as negociações que antecedem a constituição do vínculo contratual não pode ter a sua exigibilidade jungida à preexistência de disposição legal específica que compila as partes a serem leais e a adotar um padrão de comportamento inspirado pela boa-fé, sob pena de se perenizar um mito, notabilizado em razão da interpretação a contrario sensu de alguns dispositivos normativos que impõem, de modo expresso e específico, o dever de não silenciar. É o caso do artigo 765 do Código Civil, que estatui: Art. 765. O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como 288 das circunstâncias e declarações a ele concernentes. O fato é que, tempos atrás, ancorado numa ótica puramente dogmática, semelhante raciocínio até poderia reivindicar algum sentido lógico, mas, a bem da verdade, o Direito Civil atual não mais se compraz com o comportamento individualista lastreado na máxima “o que não está proibido presume-se permitido”. Realmente, “quando o contrato supõe uma confiança recíproca entre as partes, a obrigação de informar exatamente o contratante 286 NOGUERO, David. Op. cit.. SANTOS, J. M. de Carvalho. Op. cit., p. 343. 288 O Código Civil revogado também tinha regra idêntica: “Art. 1443. O segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”. 287 103 torna-se uma obrigação jurídica e a omissão uma causa legal de nulidade do contrato”,289 uma vez que “no campo das obrigações, o dever de dizer a verdade é genérico, porque o clima do contrato exige a boa-fé dos contratantes”.290 Isto importa em concluir-se que o dolo fica configurado quando uma das partes se omite acerca de um aspecto do negócio que, por imposição da lei, dos usos do comércio ou mesmo das circunstâncias negociais, estava obrigada a revelar ao co-contratante: Às vezes o dever de esclarecimento integra a natureza mesma do contrato, como se dá, por exemplo, no seguro de vida, em que o segurado não pode deixar de revelar os problemas graves de saúde acaso existentes em relação à sua pessoa. Mas, em caráter geral, mesmo sem o expresso dever específico de prestar certas informações, tornou-se modernamente um princípio das relações contratuais a exigência de que as partes se comportem durante a conclusão e a execução do contrato segundo a boa-fé e a probidade (art. 422). Desse princípio de lealdade, que a lei institucionalizou, decorre um recíproco dever de informação a respeito de qualquer circunstância relevante para o negócio, de forma que nenhuma das partes pode reter só para si o conhecimento de tais circunstâncias. Descumpri-lo faz com que, mesmo não engendrando maquinações enganosas, a parte cometa dolo civil. Sempre, pois, que um contratante cale intencionalmente sobre circunstâncias essenciais para o consentimento do 291 outro, pratica um ‘silêncio desleal’. Dentro dessa perspectiva, a tutela da confiança, como elemento preponderante para a atuação do princípio da boa-fé objetiva, se manifesta com clareza invencível, pois é evidente que o objetivo da lei não se cinge a sancionar a perfeição do consentimento em si, na pressuposição de que foi extorquido através de um expediente malicioso e reticente engendrado pelo sujeito a quem se dirigiu a declaração de vontade, mas igualmente resguardar a expectativa legítima de concretização dos efeitos práticos a que se destinava 289 RIPERT, Georges. Op. cit., p. 102. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 196. 291 JÚNIOR, Humberto Theodoro. Op. cit., p. 142-143. 290 104 o negócio jurídico. A jurisprudência dos tribunais tem valorizado o aspecto da confiança nas relações negociais, como se vê do aresto transcrito abaixo: ESTABELECIMENTO DE ENSINO TRANSFERÊNCIA DE QUOTAS ANULAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO MÁ-FÉ INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS EMBARGOS INFRINGENTES. Ação Ordinária. Rescisão de negócio jurídico. Dolo de aproveitamento e induzimento em erro escusável. Dolo intenso ao aproveitar-se a embargante da justificada inexperiência das embargadas. Confiança depositada pelas embargadas em quem agia com rematada má-fé, ocultando fatos e dados que, se conhecidos das adquirentes e celebrantes do negócio jurídico, certamente o mesmo não se consumaria. Colégio sem autorização para funcionar com contrato de locação findo, sem provocação de sua renovação. Cabimento de rescisão contratual, com perdas e danos. Improvimento dos embar292 gos, mantida a decisão embargada. E assim deve ser porquanto “os usos do comércio e a boa-fé podem equiparar o silêncio a uma ação dolosa nos negócios jurídicos bilaterais, por furtar ao conhecimento do outro contratante uma circunstância de natureza tal que, se conhecida, naturalmente obstaria a formação do contrato”.293 A outro tanto, Bruno Lewicki enfatiza: Em nossa massificada sociedade de consumo, onde tornase utópico imaginar que haja espaço para o debate acerca das disposições dos contratos, cada vez mais ‘estandardizados’, sobreleva-se para as partes o dever de prestarem e o direito de receberem toda e qualquer informação que afigure-se necessária para diminuir os riscos e assegurar que todos alcancem os objetivos almejados. No mais das vezes, a forma encontrada para adimplir esta obrigação é a publicidade, verdadeira ponte que, se bem utilizada, pode ser a mais hábil maneira de ultrapassar o ‘abismo informativo’ que separa as partes 294 contratantes. A eficácia normativa do dever de não silenciar, ou de dizer a verdade – leia-se: a sua exigibilidade concreta – deriva imediatamente da boa-fé objetiva, na forma de deveres de cooperação e proteção dos recíprocos interesses, dirigidos a ambos os partícipes do 292 TJ-RJ, 10ª Câmara Cível, Embargos Infringentes n. 2002.005.00167, Relator Desembargador Gérson Arraes, j. 02.07.2003. 293 NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., p. 268. 294 LEWICKI, Bruno. Op. cit., p. 69. 105 vínculo contratual.295 Neste aspecto, o Código de Defesa do Consumidor exerceu um papel fundamental, de maneira a contribuir decisivamente para a evolução da disciplina dos contratos no Brasil, não somente por ter encerrado, textualmente, o dever de informar como garantia contratual geral, como também pelo fato de ter alçado o princípio da boa-fé objetiva como paradigma valorativo das relações de consumo. A tal respeito, Cláudia Lima Marques ajunta: Esta inversão de papéis, isto é, a imposição pelo CDC ao fornecedor do dever de informar sobre o produto ou serviço que oferece (suas características, seus riscos, sua qualidade) e sobre o contrato que vinculará o consumidor, inverteu a regra do ‘caveat emptor’ (que ordenava ao consumidor uma atitude ativa: se quer saber detalhes sobre o plano de saúde, informe-se, descubra o contrato registrado em cartório no Rio de Janeiro ou São Paulo... atue ou nada poderá alegar) para a regra do ‘caveat vendictor’ (que ordena ao vendedor ou corretor de planos de saúde que informe sobre o conteúdo desse, riscos, exclusões, limitações 296 etc.). Parece claro, desse jeito, que o silêncio é uma das formas de exteriorização do dolo nas relações negociais, pelo que, aparelhada essa conclusão com o acervo de princípios informativo da disciplina contratual, é chegada a hora do intérprete se despojar do velho ideário liberal, que apregoava o egoísmo e o utilitarismo no campo dos contratos, para descortinar uma nova era no Direito Civil, qualificada pela boa-fé e pela confiança recíproca dos partícipes do negócio contratual. 295 296 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé, cit., p. 438-439. MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p. 111. 106 CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora no fluir do desenvolvimento deste trabalho várias conclusões já tenham sido estabelecidas, e longe de atingirmos a pretensão de esgotar o assunto em todos os seus matizes, cabe estabelecer algumas inferências à guisa de conclusão. Construído sob a inspiração de uma ideologia metafísica, apartada da consideração de fatores concretos, o princípio da autonomia privada expressa a materialização da liberdade individual, numa acepção dinâmica e voltada à autotutela dos interesses das partes através da criação, da modificação ou da extinção de relações jurídicas. Essa concepção, francamente liberal e conscientemente desvinculada dos fatores materiais de desigualdade entre as pessoas, está, na atualidade, subjugada pelo soerguimento de outros princípios jurídicos que, a par da fenomenologia dos contratos de adesão, ou standard, e dos casos de contratação obrigatória, em que se subtrai a liberdade contratual das partes, reduziu a pujança e a extensão absoluta da autonomia privada. Nesta mesma toada, a vontade e o papel que desempenha na estrutura dos negócios jurídicos – antes um valor em si próprio: a medida e o fundamento da força obrigatória dos contratos – foram redirecionados para a compreensão da declaração volitiva como uma etapa no plano conclusivo dos atos negociais, meio de apreensão dos resultados práticos tutelados na 107 ordem jurídica, conforme o tipo e a natureza do ajuste contratual e a confiança que razoável e legitimamente se tinha a expectativa que fossem produzidos. Essas conclusões são de implacável importância para o estudo dogmático do dolo nestes tempos atuais, não só para fins de interpretação e de integração, como igualmente para a análise de sua tessitura funcional na condição de vício de consentimento, que deriva da desconformidade entre a vontade interna e a declaração da vítima, cujo conceito foi forjado com a fluidez necessária para se adaptar aos avanços tecnológicos e à capacidade da inteligência humana de criar outras formas de ardis maliciosos. Ademais, a diversidade conceitual entre o dolo principal e o dolo acidental deve apegar-se a um critério objetivo, longe dos subjetivismos imponderáveis do declarante, na mesma medida em que o silêncio, mesmo que involuntário, caracteriza um expediente doloso, toda vez que tenha sido capaz de influir na determinação da vontade da vítima. Por outro lado, o negócio jurídico só será anulável se a injunção maliciosa tiver sido praticada diretamente pela parte a quem a declaração volitiva se dirige ou no caso em que tivesse ou devesse ter conhecimento da solércia empreendida por terceiros ou pelo representante. Dado o caráter de desvalor ao ordenamento jurídico, quando ambas as partes tiverem agido com dolo, nenhuma delas pode reclamar em juízo a anulação ou indenização concernente ao negócio jurídico que concluíram, por se estar diante da chamada torpeza bilateral. Nestes tempos contemporâneos, em que o papel da vontade é relativizado à concretização da função ou utilidade social dos contratos e em que a boa-fé objetiva é cláusula geral de conduta contratual, a secular dicotomia entre o dolus bonus (dolo inocente) e o dolus malus (dolo culpável) cede terreno para a primazia da realização de outros valores e princípios que põem em xeque a tradicional tolerância do ordenamento jurídico com a gabação exagerada ou com o pregão falseado comumente usado no comércio jurídico. Isso se deve porque o clima que deve temperar as negociações 108 preliminares, que antecedem a conclusão definitiva dos contratos, e o padrão comportamental erigido pelo princípio da boa-fé objetiva não são indulgentes com a atuação dolosa capaz de destruir a confiança depositada pelo co-contratante nos efeitos concretos que legitimamente esperava que fossem realizados. Da mesma maneira, quando se volta a atenção para o aspecto delituoso da manifestação material do dolo, é inegável que se cuida de um contraponto à atuação refletida, preocupada, de respeito aos interesses legítimos e às expectativas razoáveis do parceiro contratual, o que evidencia uma prática contrária à boa-fé. Isto é, como toda conduta dolosa importa numa oposição à boa-fé objetiva, surpreende-se questionável na atualidade a vivacidade funcional da classificação do dolo em principal e acidental, visto que a predisposição da vítima em aceitar um negócio não tem o condão de justificar a afirmação de sua validade quando feito em bases objetivamente distintas. Essa conclusão não importa em liquidar essa dicotomia clássica: trata, somente, de reivindicar a sua reequação conforme a linha de conduta inspirada pela atuação de boa-fé, no molde da nova ordem principiológica introduzida no Direito Civil contemporâneo. Finalmente, mercê do padrão de comportamento ético inspirado pelo princípio da boa-fé objetiva e mesmo à míngua de disposição legal expressa, é fácil concluir que a figura do dolo por omissão, ou silêncio intencional, não mais merece complacência do intérprete, na pressuposição de que o dolo, quando manifestado pela solércia reticente do enganador, é tanto culpável e repugnante quanto a prática maliciosa positiva. Induzida, pois, pela objetivação da boa-fé em nosso ordenamento jurídico, torna-se indiferente, senão ocioso, cogitar-se da natureza omissiva ou comissiva do ato doloso, bastando que se constate a violação do dever de informação. 109 REFERÊNCIAS AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 3ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico – Existência, Validade e Eficácia. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002. BECKER, Anelise. Teoria Geral da Lesão nos Contratos. São Paulo: Saraiva, 2000. BETTI, Emilio. 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