O Dolo no Negócio Jurídico

Transcrição

O Dolo no Negócio Jurídico
1
CENTRO UNIVERSITÁRIO FLUMINENSE – UNIFLU
FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM DIREITO
O DOLO NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS SOB A PERSPECTIVA DA BOA-FÉ
ROGÉRIO NUNES DE OLIVEIRA
CAMPOS DOS GOYTACAZES
2006
2
O DOLO NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS SOB A PERSPECTIVA DA BOA-FÉ
Dissertação apresentada como exigência final
do Curso de Mestrado em Direito do Programa
de Pós-Graduação do Centro Universitário
Fluminense – UNIFLU – Faculdade de Direito
de Campos, sob a orientação do Dr. Leonardo
Mattietto.
CAMPOS DOS GOYTACAZES
2006
3
Dedico as linhas seguintes aos meus filhos,
Maria Gabriela e Fabiano, aos quais soneguei
muitas manhãs, tardes e noites empenhadas na
conclusão deste trabalho.
À Roberta, pela compreensão, companheirismo
e incentivo que me foram tão caros.
Aos meus pais, Estela Maria e Fabiano, e ao
meu irmão, Ricardo, pelo apoio habitual e pelo
constante estímulo em minha vida.
4
Agradeço aos amigos Vanessa Ribeiro Corrêa e
João Paulo de Aguiar Sampaio Souza, por sua
indizível generosidade e pela impagável
companhia, tanto nos bons quanto nos maus
momentos.
Aqui ficam, também, meus agradecimentos
perenes aos colegas do Centro Universitário
Fluminense – Uniflu – Faculdade de Direito de
Campos, formadores de alunos e de cidadãos.
5
RESUMO
Para o Direito Civil, a vontade é elemento de capital importância, pois constitui a fonte
criadora dos negócios jurídicos e, até certo ponto, a medida dos efeitos desejados pelos
agentes. Dentro da perspectiva contemporânea, em que o princípio da autonomia privada,
grande baluarte dos contratos nos séculos XIX e XX, é sobreposto por princípios de
inspiração social, o estudo dos vícios de consentimento, particularmente do dolo, ganha
vigor em respeito à tutela objetiva da confiança dos contratantes e para a concretização dos
efeitos jurídicos legitimamente esperados pela sociedade. É porque, no plano conceitual,
dolo é o expediente malicioso empregado com o fim de obter o consentimento da vítima.
Dentro dessa perspectiva, o desenvolvimento da aplicação do princípio da boa-fé objetiva
produz importantes reflexos sobre as tradicionais distinções feitas entre o dolo principal e o
dolo acidental e sobre as figuras do dolus bonus e do silêncio intencional. Desse modo, o
princípio da boa-fé objetiva impõe aos contratantes um comportamento leal e honesto, a fim
de atuar sobre o dolo civil como um instrumento de redefinição do campo da anulabilidade
dos negócios jurídicos e de abandonar a noção subjetivista e individualista tradicional para
transformar-se em fonte de interpretação das declarações de vontade, de inspiração de
confiança recíproca entre as partes e de criação de deveres positivos.
6
RÉSUMÉ
Pour le droit civil, la volonté est un element d’importance capitalle, car il constituit la source
créateur des affaires juridiques, jusqu’à un certain point, la mesure des effects souhaitables
por les agents. Dans la perspective contemporaine, le principe de l’autonomie privée,
grande bastion des contrats dans les siècles XIX et XX, est surpassé pour des principes
d’inspiration sociale et l’étude des vices du consentement, en particulier ceux du dol, gagne
viguer avec la protection objective de la confiance des contractants et la matérialisation des
effets juridiques légitimement attendues pour la societé. C’est parce que, dans le plan des
concepts, le dol est la manoeuvre déloyale ou frauduleuse employée avec l’objetif d’obtenir
le consentement de la victime. Dans cette perspective, le dévelopment de l’application du
principe de la bonne foi objetif produit importants reflets sur les tradictionales distintions fait
entre le dol principal et le dol incident et sur les figures du dolus bonus et de la réticence. De
cette façon, le principe de la bonne foi objetif demande des contractants un comportement
leal et hônet, pour agir sour le dol civil comme un instrument de rédefinition du champ de
l’annulabilité des affaires juridiques et d’abandonner la notion subjectiviste et individualiste
traditionnelle, pour devenir une source d’interpretation des déclarations de volonté,
d’inspiration de la confiance réciproque dans les parties et de création de devoires positifs.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8-9.
CAPÍTULO 1 – A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE COMO ELEMENTO ESSENCIAL À
FORMAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS...................................................................10-40.
1.1. O princípio da autonomia privada como fundamento da força obrigatória dos
contratos....................................................................................................................11-21.
1.2. O declínio do princípio da autonomia privada.................................................21-30.
1.3. O caminho do subjetivismo à tutela objetiva da confiança............................30-40.
CAPÍTULO 2 – O DOLO NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS...............................................41-75.
2.1. Conceito e pressupostos..................................................................................41-50.
2.2. O dolo principal e o dolo acidental...................................................................50-56.
2.3. O silêncio intencional........................................................................................56-59.
2.4. O dolo praticado por terceiro............................................................................60-69.
2.5. O dolo do representante...................................................................................69-71.
2.6. A torpeza bilateral..............................................................................................71-75.
CAPÍTULO 3 – REFLEXOS DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA NO DOLO
CIVIL...................................................................................................................................76-105.
3.1. O chamado dolus bonus..................................................................................76-88.
3.2. Releitura crítica do dolo acidental....................................................................88-97.
3.3. O novo panorama interpretativo do dolo por omissão.................................97-105.
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................106-108.
REFERÊNCIAS................................................................................................................109-114.
8
INTRODUÇÃO
O presente trabalho apresenta como tema o dolo nos negócios jurídicos, sob a
perspectiva da boa-fé objetiva. Este estudo se justifica porque o negócio jurídico
concretizado sob o signo da malícia e do desapego à boa-fé representa um ato de desvalor
às idéias de lealdade e ética que devem presidir as relações negociais na atualidade, em
que o Direito intervém para sobrepor a igualdade e sentido de probidade nos contratos.
O tema escolhido, longe de ser simples, enseja um espaço privilegiado para
discussão voltada à construção de um diálogo funcional entre o alinhamento dogmático do
dolo e os valores recentemente introduzidos em nossa ordem jurídica, fundados, em
essência, na tutela da pessoa e na solidariedade social. O diálogo que se propõe é
elaborado através da demarcação dos pontos de equilíbrio entre a construção normativa do
dolo – cuja expressão conceitual, entre nós, remonta a mais de três séculos – e a miríade
de princípios de matiz social e de dignidade constitucional que impregnam a manifestação
do Direito Civil na época em que vivemos.
A par dessas considerações, o primeiro capítulo aborda a relevância e o papel
empenhado pela declaração de vontade nos negócios jurídicos, particularmente como
elemento criador e fundamento da força obrigatória dos contratos. O capítulo segundo
cuida da análise e interpretação do dolo à luz do Código Civil vigente, passando em revista,
9
de modo crítico, a sua compleição dogmática em confronto com a nova ordem
principiológica que permeia o Direito Civil. O último capítulo busca o estabelecimento de um
ponto de interseção entre o dolo nos negócios jurídicos e o princípio da boa-fé objetiva,
pondo em revista o dolus bonus, o dolo acidental e o silêncio intencional, na perspectiva de
nosso ordenamento jurídico nos dias de hoje.
10
CAPÍTULO 1 – A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE COMO ELEMENTO ESSENCIAL À
FORMAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
A vontade tem um papel de grande importância nas manifestações sociais. É ela
que move o indivíduo na concretização material dos impulsos básicos da vida humana; é
ela, ainda, que atua como elemento determinante das mais refinadas e agudas expressões
do nosso cotidiano; e é ela, enfim, que compreende o elo de ligação espiritual entre o
conhecer e o querer e permite “uma tomada de posição do sujeito frente ao mundo”.1 Tratase, como se vê, de um assunto de extensão ampla e que interessa tanto ao direito quanto à
psicologia, à ética e à filosofia.2
Aos olhos do Direito, além de elemento essencial para a formação dos atos jurídicos
em geral, a vontade age como fundamento da força criadora das obrigações, cuja
expressão reproduz a última instância de um complexo processo volitivo dirigido a um
resultado prático. Entretanto, a vontade, em si, como porção imponderável da manifestação
humana, não tem relevância alguma para o Direito: só no momento em que se exterioriza e
desencadeia um fato criador, modificativo ou extintivo de uma relação jurídica é que o
Direito lhe reconhece relevância.3
1
DALL’AGNOL, Darlei. Ética e Linguagem: uma introdução ao tractatus de Wittgenstein. 2ª edição.
Florianópolis: Unisinos, 1994, p. 47.
2
AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 3ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 335-336.
3
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil, Vol. 1.São Paulo: Bookseller, p. 322.
11
Por tais motivos, a análise da atuação da vontade na conclusão dos negócios
jurídicos e, em especial, dos contratos4 é de implacável relevância jurídica, sobretudo nos
tempos atuais, que são o testemunho de uma “crise generalizada da razão prática”,5 capaz
de abalar os grandiosos baluartes tradicionais do Direito Civil, como sejam a família, a
propriedade e o contrato.6
1.1. O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA COMO FUNDAMENTO DA FORÇA
OBRIGATÓRIA DOS CONTRATOS
Nos códigos modernos, a vontade é contemplada como o arcabouço fundamental
sobre o qual se desenvolve a ordem jurídica, a “base de todo o edifício social e jurídico”.7
Isso se deve porque, por obra de uma tradição secular, a declaração de vontade é
sinônimo da liberdade, um valor essencial do Direito e atributo natural titulado por todas as
pessoas. A fim de explicar a influência que a escola do Direito Natural exerceu sobre a
construção do princípio da autonomia privada, Georges Ripert destacou que “a obrigação
assumida não é mais do que uma manifestação do direito natural que assiste a todo o
homem de se obrigar e, portanto, de manifestar uma liberdade que ele não pôde alienar”.8
No momento em que se desenvolveu a sua base teórica, o princípio da autonomia
privada incorporou a ideologia do voluntarismo como expressão por excelência da
4
V. GARCEZ NETO, Martinho. Temas Atuais de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 37. O autor
ainda acrescenta: “De fato, contrato significa acordo de vontades, de duas ou mais pessoas; vale dizer, envolve
matéria em que a suprema lei é a vontade das partes, que dita o direito, que elege a regra jurídica mediante a
qual vai regular-se o próprio contrato ou os vínculos que se criam, salvo mediante restrições em defesa dos
incapazes, da moral ou do interesse público”.
5
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma leitura civil-constitucional dos danos
morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 60.
6
FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 22-23.
7
BECKER, Anelise. Teoria Geral da Lesão nos Contratos. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 16.
8
RIPERT, Georges. A Regra Moral nas Obrigações Civis. São Paulo: Bookseller, 2000, p. 54.
12
liberdade dos indivíduos, que “transformavam em ato toda a potência de suas vontades”9.
Maria Celina Bodin de Moraes, com acuidade, assinala:
Liberdade e autonomia privada foram, durante muito
tempo, consideradas, do ponto de vista do Direito Civil,
como conceitos sinônimos. De fato, era muito simples
traduzir uma pela outra quando se estava referindo apenas
à igualdade formal, no âmbito de situações patrimoniais;
simples, porque se dava ao indivíduo, a todo e qualquer indivíduo, amplo poder de disposição, desde que, evidentemente, ele possuísse bens para contratar, bens para testar,
10
bens para adquirir, bens para dividir.
Daí que, para alguns autores, o princípio da autonomia privada é uma das
manifestações da autonomia da vontade, já que, de modo particular, compreenderia a força
criadora do ânimo humano na formação de um vínculo obrigacional. Nada obstante, a
autonomia da vontade é uma expressão mais ampla, que designa uma aspiração subjetiva
e psicológica, ao passo em que a autonomia privada representa a própria concretização do
poder da vontade num sentido dinâmico, voltado para o impulso criador de um fato jurídico
“de um modo objetivo, concreto e real”.11
Portanto, a autonomia privada é um princípio jurídico que concretiza a faculdade que
o ordenamento jurídico confere às pessoas para a autotutela dos seus interesses através
da criação, da modificação ou da extinção de uma relação jurídica. Esse princípio, surgido
com o Humanismo, ganhou notoriedade no século XVII, com a Escola do Direito Natural, e
pressupõe que “cada indivíduo, enquanto sujeito de direito, goza da liberdade de se obrigar
ou não, sendo pela sua vontade consciente que ele se obriga”.12 Silvio Rodrigues anota
que a autonomia da vontade implica “na prerrogativa conferida aos indivíduos de criarem
relações na órbita do direito, desde que se submetam às regras impostas pela lei e que
9
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 6ª edição. São Paulo: Malheiros, 2001,
p. 126.
10
MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 102.
11
AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 337-338. O mesmo autor ainda lembra que o habitat natural da autonomia
privada é, por excelência, o negócio jurídico, ao passo em que comumente a autonomia da vontade tem sede
nos atos jurídicos (Idem. Op. cit., p. 362-363).
12
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 3ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian 2001, p.
737.
13
seus fins coincidam com o interesse geral, ou não o contradigam”.13 Com acerto, Arnoldo
Wald pondera que esse princípio apresenta-se sob a forma da liberdade de contratar,
consistente na faculdade de realizar ou não determinado contrato, e da liberdade
contratual, composta pela possibilidade de fixação do conteúdo do contrato.14
Nesse mesmo sentido, Francisco Amaral explica que “a autonomia privada é o
poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações
de que participam, estabelecendo-lhes o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica.”15 Caio
Mário da Silva Pereira enfatiza que o princípio da força obrigatória, reflexo da autonomia
privada, espelha implicitamente o máximo de subjetivismo que a ordem legal é capaz de
idealizar: “uma centelha de criação, tão forte e tão profunda, que não comporta retratação.”16 É, enfim, a “liberdade dos sujeitos de determinar com a sua vontade, eventualmente
aliada à vontade de uma contraparte no ‘consenso’ contratual, o conteúdo das obrigações
que se pretende assumir, das modificações que se pretende introduzir no seu patrimônio”.17
Emilio Betti opunha-se à tendência de se antever a autonomia privada como um ato
de criação, pois, como se cuida de uma prerrogativa dada pela ordem jurídica, ela não
pode criar nada, por se limitar a “realizar a hipótese de fato de uma norma já existente,
dando vida, entre particulares, àquela relação jurídica que essa norma estabelece”.18
Sob o enfoque clássico, o princípio da autonomia privada é dotado de um caráter
essencialmente subjetivo e invariavelmente psíquico, associado ao “poder dos indivíduos
de suscitar, mediante declaração de vontade, efeitos reconhecidos e tutelados pela ordem
jurídica. No exercício desse poder, toda pessoa capaz tem aptidão para provocar o
13
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 3. 27ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 15.
WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil Brasileiro – Obrigações e Contratos. 12ª edição. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1996, p. 162.
15
AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 337.
16
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. III. 10ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001,
p. 6.
17
ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 128.
18
BETTI, Emilio. Teoria Geral do Negócio Jurídico, Tomo I. Campinas: LZN, 2003, p. 73-74.
14
14
nascimento de um direito, ou para obrigar-se”.19 Washington de Barros Monteiro explicava
que através do manejo do princípio da autonomia da vontade:
Têm os contratantes ampla liberdade para estipular o que
lhes convenha, fazendo assim do contrato verdadeira
norma jurídica, já que o mesmo faz lei entre as partes. Em
virtude desse princípio, que é a chave do sistema
individualista e o elemento mais colorido na conclusão dos
contratos, são as partes livres de contratar, contraindo ou
20
não o vínculo obrigacional.
Na tradição jurídica contemporânea, a autonomia privada desperta a noção de
instrumento de circulação de riquezas e, em última análise, de tráfego jurídico do direito de
propriedade,21 de modo a expressar o espírito patrimonialista e individualista que inspirou a
sua consagração no Code, “centrada no império subjetivo do vínculo”.22 O grande Clóvis
Bevilaqua, em colorida metáfora, explicou a densidade e a importância da autonomia
privada na ótica tradicional na disciplina contratual:
Desprendida a personalidade individual da nebulosa do
coletivismo primitivo, robustecida, enlarguecida, toma o vôo,
como prole emplumada, que abandona as alenturas
enervantes do ninho, e começa, por meio dos contratos, na
faina de aproximar as utilidades criadas ou apreendidas
das necessidades sentidas. E, para realizar essa empresa,
vai, progressivamente, estendendo o circulo de sua ação.
Hoje um povo, amanhã um grupo de nações vizinhas, mais
tarde um continente e, finalmente, o globo inteiro recebem
23
as malhas vigorosas da rede imensa do comércio.
19
GOMES, Orlando. Contratos. 18ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 22.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, 5º Vol., 2ª parte. 30ª edição. São Paulo: Saraiva,
1998, p. 9.
21
Eros Grau observa que “a verdade, no entanto, é que tais valores não estão dispostos em situação simétrica,
sendo mais correto observar que a liberdade de contratar não é senão um corolário da propriedade privada dos
bens de produção. Isso porque a liberdade de contratar tem o sentido precípuo de viabilizar a realização dos
efeitos e virtualidades da propriedade individual dos bens de produção. Em outros termos: o princípio da
liberdade de contratar é instrumental do princípio da propriedade privada dos bens de produção” (GRAU, Eros
Roberto, Op. cit., p.125). No mesmo sentido, Enzo Roppo acrescenta que, sob o ângulo do Código Napoleão,
“o instituto do contrato assume, num certo sentido, uma posição não autônoma, mas subordinada, servil,
relativamente à propriedade, que se apresenta como instituto-base, em torno do qual e em função do qual são
ordenados todos os outros: o contrato, em suma, surge na consideração do legislador só no seu papel de
instrumento (um dos instrumentos, a colocar ao lado de outros susceptíveis de desempenhar a mesma função,
como por exemplo a sucessão mortis causa, que não por acaso são contemplados no mesmo livro) de
transferência de direitos sobre coisas e, portanto, em primeiro lugar, o direito de propriedade” (ROPPO, Enzo
Op. cit., p. 42).
22
BECKER, Anelise Becker, Op. cit., p. 19.
23
BEVILAQUA, Clóvis. Direito das Obrigações. Edição histórica. São Paulo: Red Livros, 2000, p. 211 e 212.
20
15
Mas tamanha pujança e abrangência só foram possíveis por obra de um processo
histórico secular,24 que, com o advento da Revolução Francesa, em 1789, transformou a
convenção em base de toda a autoridade entre os homens e postou a manifestação de
vontade num patamar de igualdade com as fontes formais do Direito, como se a ordem
jurídica delegasse uma parcela de sua competência normativa para os indivíduos, aos
quais tocaria construir o vínculo contratual em conformidade com os seus interesses e
conveniências. Pertinente, aqui, a reflexão de Martinho Garcez Neto:
O Código napoleônico consagrou em texto especial essa
concepção filosófico-jurídica que dominou por largo tempo:
‘les conventions légalement formées’ –– reza o art. 1.134,
al. 1ª do código citado –– ‘tiennent lieu de lois à ceux qui les
ont faites’. E Savatier, dissertando a esse respeito, podia dizer que a palavra lei, ali, não está empregada levianamente, mas como verdadeira homenagem à liberdade humana,
cuja prerrogativa essencial era a de poder criar o direito.
Nessa liberdade, inata a cada homem, há uma espécie de
delegação do legislador. E é investido de tal poder da
vontade que o indivíduo constrói o direito civil contratual, a
25
cujo serviço são colocados os Tribunais e a força pública.
Por conseqüência, o Código Civil Francês permeou o princípio da autonomia
privada com um sentido capaz de atribuir às pessoas um vasto potencial de autoregulamentação de seus interesses, no interior de um espaço preservado pela ordem
jurídica para a expansão plena e absoluta do individualismo, que só encontraria refreio nos
limites externos impostos pela ordem pública e pelos bons costumes.26 Em tal perspectiva,
o papel do ordenamento jurídico no âmbito da atividade contratual seria reduzidíssimo, na
medida em que se restringiria a demarcar o campo de atuação da liberdade de contratar,
24
Georges Ripert sintetiza com grande eloqüência a evolução lenta e gradual do teórico necessário à
construção do princípio da autonomia privada, ressaltando que “para chegar a esta concepção da vontade
soberana, criando ela própria e unicamente pela sua força direitos e obrigações, foi preciso que na obra lenta
dos séculos a filosofia espiritualizasse o direito para desembaraçar a vontade pura das formas materiais pelas
quais se dava, que a religião cristã impusesse aos homens a fé na palavra escrupulosamente guardada, que a
doutrina do direito natural ensinasse a superioridade do contrato, fundando a própria sociedade sobre o
contrato, que a teoria do individualismo liberal afirmasse a concordância dos interesses privados livremente
debatidos sobre o bem público” (RIPERT, Georges. Op. cit., p. 53).
25
GARCEZ NETO, Martinho. Op. cit., p. 45.
26
O Código Napoleão preconiza: “Art. 6. Não se pode derrogar, através das convenções particulares, as leis
que interessam à ordem pública e aos bons costumes” (nossa tradução livre).
16
dentro do qual todo egoísmo seria útil e qualquer proveito econômico, por mais exagerado
que parecesse, seria justo, porque amparados no exercício soberano da vontade e no gozo
dos atributos da liberdade.
Ao lado de seu fundamento, enraizado, como se viu, na liberdade como um valor
jurídico, algumas teorias buscaram vincular o princípio da autonomia privada a ideologias
devotadas a justificar a sua existência e o seu sentido prático. Alicerçadas em doutrinas
econômicas e de filosofia política, essas teorias conceberam a autonomia privada “como
produto e como instrumento de um processo político e econômico baseado na liberdade e
na igualdade formal, com positivação jurídica nos direitos subjetivos de propriedade e de
liberdade de iniciativa econômica”.27
Filosoficamente, a autonomia privada seria um postulado da liberdade natural de
que todas as pessoas são dotadas, que preexistiria independentemente do seu
reconhecimento expresso nas ordens jurídicas. Nos meados dos séculos XVIII e XIX, dada
a influência da concepção contratual da origem da sociedade e por reflexo da filosofia
iluminista que desabrochava, o contrato foi tido como um instrumento capaz de permitir a
explicação de todo sistema jurídico, desde o regime matrimonial – atravessando o direito
sucessório, no qual a sucessão legal seria um testamento tácito do defunto – até a
identificação da nacionalidade como um efeito decorrente de um contrato ajustado entre o
súdito e o Estado.28 A respeito da acepção absoluta, Martinho Garcez Neto assoma:
O princípio da autonomia da vontade parte do pressuposto
de que os interesses privados, livremente discutidos,
harmonizam-se com o bem-estar público e do contrato não
pode surgir injustiça alguma, desde que as obrigações são
assumidas livremente...
Colhe-se, assim, que o princípio da autonomia da vontade, não é senão, em matéria de contratos, a aplicação das
idéias individualistas apregoadas pela revolução francesa
29
e que tiveram apogeu no século XIX.
27
AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 348.
TERRÉ, François; SIMLER, Philippe Simler; LEQUETTE, Yves. Droit Civil – Les obligations. 6ª edição. Paris:
Dalloz, 1996, p. 23.
29
AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 348.
28
17
A ótica político-filosófica contempla a autonomia privada como um fim em si mesmo,
a razão e a medida do usufruto da liberdade do homem, porque baseada na manifestação
livre da vontade na qualidade de fonte criadora de direitos. Entrementes, Jean-Luc Aubert e
Jacques Flour30 denunciam a fragilidade dessa teoria, pois a autonomia privada, antes de
um preceito jusnaturalista e instrumento único da realização da ordem jurídica, é um
produto construído pela dogmática jurídica e uma conseqüência natural da evolução do
direito positivo.
Por outro lado, o simplismo e o pragmatismo com que as doutrinas econômicas
idealizaram a autonomia privada também produziram um forte impacto na disciplina dos
contratos no período moderno, porquanto a idéia geral do liberalismo permitiu aos homens
organizar livremente a troca de riquezas e de serviços e, na ótica jurídica, transformou a
livre contratação como o instrumento soberano para o desenvolvimento de relações mais
justas e socialmente úteis. John Gilissen associa os efeitos implacáveis do princípio da
autonomia da vontade no curso dos séculos XVIII e XIX à influência exercida pelo ideário
da economia mercantilista sobre as ordens jurídicas:
As fórmulas ‘laissez faire, laissez passer’ e a lei da oferta e
da procura repousam essencialmente sobre a liberdade
contratual. É a idade de ouro da liberdade absoluta das
convenções entre vendedores e compradores, entre
patrões e operários, entre senhorios e inquilinos, etc., com
a conseqüência da obrigação de as executar, mesmo se
elas se revelassem injustas ou socialmente graves ou
perigosas. Pois, então, estava-se convencido de que todo
31
o compromisso livremente querido era justo.
Mesmo hoje respeitáveis setores da doutrina vêm no desenvolvimento econômico a
justificativa mais importante do princípio da autonomia privada,32 como é o caso, entre nós,
30
FLOUR, Jacques; AUBERT, Jean-Luc. Droit Civil – Les Obligaciones – 1. L’acte Juridique. 7ª edição. Paris:
Armand Colin, 1996, p. 71.
31
GILISSEN, John. Op. cit., p. 738-739.
32
V. LARROUMET, Christian. Droit Civil – Les Obligations – Le Contrat, Tomo 3. 4ª edição. Paris: Economica,
1998, p. 93.
18
do festejado Caio Mário da Silva Pereira, que, em ilustrativa passagem de suas Instituições
de Direito Civil, afirma:
O mundo moderno é o mundo do contrato. E a vida moderna o é também, e em tão alta escala que, se se fizesse
abstração por um momento do fenômeno contratual na
civilização de nosso tempo, a conseqüência seria a estagnação da vida social. O homo economicus estancaria
suas atividades. É o contrato que proporciona a subsistência de toda a gente. Sem ele, a vida individual regrediria, a atividade do homem limitar-se-ia aos momentos
33
primários.
A doutrina econômica, desse jeito, divulgava a idéia de que os indivíduos são os
melhores juízes de seus próprios interesses, pois, como diria um aforismo liberal, “quando
alguém decide alguma coisa a respeito do outro é sempre possível que lhe faça alguma
injustiça, mas toda a injustiça é impossível quando ele decide por si próprio”.34
Todavia, a profundidade dessa ideologia, consagrada na célebre frase atribuída a
Fouillée – “qui dit contractuel dit juste” – põe em evidência, ao mesmo tempo, o
reconhecimento e o exagero da fórmula conceitual do princípio da autonomia privada. É
porque a vontade não é capaz de criar mais do que uma justiça objetiva e tarifária, donde
dizer-se que “o sistema individualista conduziu a se forjar um modelo abstrato de
contratante: o bom pai de família. A idéia consiste em postular uma igualdade teórica entre
todos os contratantes, sem realmente levar em consideração suas particularidades”.35 Isso
levou Eduardo Nóvoa Monreal a afirmar cuidar-se de um princípio devotado à criação de
normas abstratas para homens abstratos.36
Como instrumento por excelência para a troca de riquezas e para o tráfego jurídico
do direito de propriedade, o contrato se transformou no mais auspicioso elemento da
33
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 4-5.
RIPERT, Georges. Op. cit., p. 54.
35
NOGUERO, David. Le code civil e le contrat. Disponível em www.courdecassation.fr. Acesso em 26 de abril
de 2004 (tradução livre).
36
MONREAL, Eduardo Novoa. O Direito como Obstáculo à Transformação Social. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 1998, p. 100.
34
19
economia e do comércio. O ordenamento jurídico seria um mero garantidor das regras do
jogo, livremente definidas pelos particulares e dotadas de força obrigatória, das quais
surgiria um vínculo contratual indissolúvel, que, quando ameaçado, “deveria o Estado vir
em socorro do credor, colocando toda a força pública à sua disposição para compelir o
devedor a cumpri-lo”.37
Clóvis Bevilaqua, em harmonia com o período histórico em que elaborou a sua obra
doutrinária, reconhecia que o ordenamento jurídico tinha por objetivo atuar em prol dos
fracos e que o direito obrigacional deveria buscar inspiração na equidade, de maneira a
tornar os seus preceitos mais flexíveis e compatíveis com o elemento ético, apesar de não
perder de vista o vigor absoluto do princípio da autonomia da vontade como elemento
fiador da força obrigatória dos contratos:
A intervenção do direito se faz necessária nesse momento,
em que a falta de congruência atual dos interesses ameaça
impedir a execução das obrigações contraídas.
Em nome de um interesse mais ato, ele vem sustentar o
contrato uma vez firmado; sem ele, os acordos raramente
se executariam, quando constassem de alguma relação
mais extensa do que uma simples permuta concluída num
38
só ato.
Esse sentido absoluto atribuído ao princípio da autonomia privada era insensível à
realidade porque sublimava a influência que os fatores sociais exerciam sobre as relações
contratuais. O paradoxo dessa linha de pensamento, ancorada na valorização incondicional
do livre-arbítrio dos homens, foi descortinado quando a realidade social revelou que a regra
da liberdade contratual tanto poderia produzir efeitos bons, aptos à determinação de
relações jurídicas justas e socialmente úteis, como também abomináveis e deletérios.
Georges Ripert conseguiu condensar com retórica incisiva a dimensão contraditória
que o princípio da autonomia privada, levado às últimas conseqüências, é capaz de
37
38
BECKER, Anelise. Op. cit., p. 28.
BEVILAQUA, Clóvis. Op. cit., p. 213, nota n. 2.
20
promover no ordenamento jurídico. Vejam-se, a título de ilustração, as palavras desse
jurista francês:
Será permitido explorar a fraqueza física e moral do
próximo, a necessidade em que ele está de concluir, a
perversão temporária da sua inteligência ou da sua
vontade? Pode o contrato, instrumento de troca das
riquezas e dos serviços, servir para a exploração do
homem pelo homem, consagrar o enriquecimento injusto
39
dum dos contratantes com prejuízo do outro?.
Seja dito, a bem da verdade, que ainda nos dias de hoje o princípio da autonomia
privada é digna de vassalagem pela linha de pensamento de alguns compartimentos da
jurisprudência e da doutrina como um dogma intocável. Quer dizer, mesmo depois da
superação da febre dogmática e da proliferação, na atualidade, de uma ordem de princípios
que valorizam a confiança e o equilíbrio nos contratos, o absolutismo da autonomia privada,
assentado no milenar princípio do pacta sunt servanda, ainda é um tabu. Vale a pena
transcrever a ementa de um julgado:
AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. CARTÃO DE
CRÉDITO. CLÁUSULA CONTRATUAL. REVISÃO.
IMPOSSIBILIDADE. JUROS LEGAIS. INAPLICABILIDADE. PRINCÍPIOS DA AUTONOMIA DA VONTADE E
DA FORÇA OBRIGATÓRIA DOS CONTRATOS.
Civil. Cartão de crédito. Revisão de cláusulas contratuais.
Impossibilidade. Juros legais. Inaplicabilidade. Ausência de
regulamentação. Conseqüência.
As cláusulas contratuais não podem ser alteradas judicialmente, para beneficiar a parte que não cumpre a obrigação
a seu cargo.
Se a norma constitucional que estabelece a limitação dos
juros não é auto-aplicável e se o valor do financiamento é
buscado no mercado bancário, sobre ele incidem os juros
do referido mercado, que são repassados ao usuário do
cartão de crédito por sua administradora. Recurso a que se
40
nega provimento.
As razões de decidir do acórdão enfatizaram, em tom implacável, o poderio e o
prestígio da autonomia privada como uma expressão da liberdade individual e definiram a
39
RIPERT, Georges. Op. cit., p. 54.
TJ-RJ, 14ª Câmara Cível, Embargos Infringentes n. 16/2003, Relator Desembargador Marlan Marinho, j.
10.04.2002.
40
21
vontade como o elemento determinante e fundamento da força obrigatória das obrigações
contratuais:
De se observar que o financiamento do saldo devedor é
opção do titular do cartão de crédito... Poderia o embargante, conforme esclareceu a embargada (f. 157), ter
se socorrido de outras alternativas para quitar sua fatura
mensal, não sendo, pois, obrigado a aceitar o percentual
de encargos contratuais previamente informados pela
administradora do cartão. Preferindo, no entanto, utilizar-se
da comodidade que tal cláusula lhe proporciona, não pode
agora dela libertar-se, imputando-lhe a pecha de abusiva...
Afastadas, assim, a abusividade da aludida cláusula e a
conseqüente aplicação do art. 51, IV, do C.D.C., volta-se a
atenção para a liberdade conferida às partes de comporem
elas mesmas os seus interesses...
A inarredável conclusão a que se chega é a de que o embargante beneficiou-se do contrato, fazendo uso do cartão
de crédito, para comprar os bens e contratar serviços, segundo a sua exclusiva conveniência. Portanto, deixando de
honrar os pagamentos a que se obrigou, não pode, agora,
pretender a revisão das cláusulas contratuais e beneficiar41
se da sua comprovada e reiterada inadimplência.
Ao abrigo das perspectivas clássica e moderna, por conseguinte, infere-se que a
autonomia privada foi elevada ao patamar mais alto da disciplina contratual e deificada
como expressão final do processo de construção do consenso das partes, atributos
capazes de excluir a revisão do conteúdo dos contratos legalmente formados em respeito à
manifestação de vontade que lhes deu vida.
1.2. O DECLÍNIO DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA
O princípio da autonomia da vontade, porém, mascarou uma ideologia fundada
numa igualdade meramente formal, como se as pessoas, dotadas de idêntica liberdade,
tivessem, por esse motivo, iguais oportunidades. “Atrás do encanto da fórmula, todavia,
escondem-se tão-somente o liberalismo econômico e a tradução em regras jurídicas de
41
Ibidem.
22
relações de força mercantil,”42 razão pela qual foi impossível dissimular que a igualdade,
formalmente considerada, não teria outro efeito que não permitir que o mais forte, de fato
ou de espírito, ditasse a sua própria lei em seu benefício exclusivo, redundando na máxima
que vaticina: “o que se diz contratual não se diz forçosamente justo”.43
As chances de desequilíbrio na conclusão contratual guardam relação diretamente
proporcional com a desigualdade material entre os contratantes, em moldes que quanto
maior a diferença entre as partes tanto maior será o risco de prejuízo para o lado mais débil.
Em certa medida, o consenso na formação dos negócios jurídicos, e em especial nos
contratos, contradiz a sua própria raiz semântica, que designa “conformidade, acordo ou
concordância de idéias”,44 transformando as negociações preliminares, como alude, com
acerto, Anelise Becker, num jogo de poder e de pressão:
o consenso quase nunca é o ponto de encontro de duas
vontades que, tendo dialogado, encontraram uma base de
entendimento, mas sim a resultante da intensidade e
eficácia dos meios de pressão com que cada um procurou
levar o outro a cedências em relação às suas posições
iniciais: negociar não é um exercício de razão, mas um
45
exercício de poder .
Esse cenário tornou inevitável a revisão da abstração excessiva da compreensão da
autonomia privada, a qual, forjada por séculos de tradição jurídica e consagrada em
centenas de textos normativos, erigiu uma barreira intransponível que punha a relação
contratual a salvo de qualquer análise de conteúdo pelo Estado (juiz), a quem se interditava
considerar fatores externos pertinentes à desigualdade entre os contratantes, mesmo que o
negócio consubstanciasse um palco de injustiças e de iniqüidades. Foi preciso que o
contrato se adaptasse a um novo contexto econômico-social, nomeadamente em razão
42
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de janeiro:
Renovar, 1999, p. 19.
43
NOGUERO, David. Op. cit. (tradução livre).
44
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI. Versão 3.0. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, Novembro de 1999.
45
BECKER, Anelise. Op. cit., p. 66.
23
dos fenômenos da contratação em massa e da diversificação e expansão dos meios de
informação e comunicação.
A autonomia privada, entronada como dogma criador dos negócios jurídicos, perdeu
o seu caráter mitológico de outros tempos, na medida em que os aspectos com que se
exterioriza – a liberdade de contratar propriamente dita e a liberdade de estipulação do
conteúdo material do contrato – foram abalados por variadas exceções, como nos casos da
obrigação de contratar, em que a faculdade de abstenção de participar de um contrato é
subtraída de um dos contratantes, e dos contratos de adesão, que não permitem ao
aderente tomar parte na determinação do conteúdo do negócio. É porque “de tal modo se
abusou dessa liberdade, sobretudo em algumas espécies contratuais, que a reação cobrou
forças, inspirando medidas legislativas tendentes a limitá-las energicamente”.46 E Martinho
Garcez Neto exclamou:
E parecerá até ridículo falar-se de uma igualdade tão
utópica, como seja a igualdade jurídica, em tese apenas,
dos contratantes, desde que ela não impede, antes facilita e
fomenta o desate de desigualdades reais, concretas, de
fácil constatação. E se, hodiernamente, não se pode negar
que, apenas em reduzida minoria, existe a possibilidade de
livre discussão das cláusulas de um contrato; se, na
verdade, a imensa maioria dos contratos são impostos,
como lei da parte mais forte imposta à mais fraca, que
apenas tem a liberdade de aderir ao contrato, isto é, de
aceitá-lo como lhe é oferecido, sem que o possa discutir e
impugnar, certamente a tão apregoada igualdade dos
contratantes não passa de uma fábula, de que se vale o
contratante mais forte para explorar e oprimir o mais fraco,
47
menos favorecido pela situação econômica e social.
Tudo isso contribuiu para redimensionar, ou equacionar ao seu devido lugar, o papel
da vontade no Direito das Obrigações, que deixa de ser um fim em si mesmo para ser
reconhecido como parte integrante da etapa conclusiva dos negócios contratuais. Alguns
chegaram a falar na morte do contrato. Isso, de fato, seria um exagero e não passou,
quando muito, duma metáfora criada para simbolizar que os novos tempos reclamam por
46
47
GOMES, Orlando. Op. cit., p. 26.
GARCEZ NETO, Martinho. Op. cit., p. 46.
24
um novo paradigma na disciplina dos contratos. Conveniente, aqui, a opinião de Enzo
Roppo, que diz:
Se, em alguns aspectos, o contrato se mostra atualmente
em declínio, noutros aspectos, o seu papel conhece uma
expansão e um relançamento; o contrato não está ‘morto’,
mas está simplesmente ‘diferente’ de como era no
passado; e mais que de um retorno ‘do contrato ao status’,
parece legítimo falar de uma passagem de um modelo de
contrato a um novo modelo de contrato, adequado às
48
exigências dos novos tempos.
A instituição contratual, desse jeito, foi redesenhada pela influência de uma nova
era, na qual o vínculo obrigacional não tem mais o seu caráter unilateral e utilitarista de
outrora, a fim de ser interpretado como um instrumento devotado a propiciar a realização
dos mútuos interesses das partes. Nada morreu, sem dúvidas:
O contrato não morreu nem tende a desaparecer. A
sociedade é que mudou, tanto do ponto de vista social
como do econômico e, conseqüentemente, do jurídico. É
preciso que o Direito não fique alheio a essa mudança,
aguardando institutos com o perfil que herdamos dos
romanos, atualizado na fase das codificações do século
XIX. A propósito, o último grande movimento reformista do
Direito Privado no mundo ocidental ocorreu com a
recepção do Direito Romano, o que, convenhamos, não se
coaduna com o dinamismo que a sociedade, em constante
49
transformação, está a exigir da ciência do Direito.
A liberdade contratual sofre, hoje, severas limitações50 e o individualismo sem freios
que, em outra época, corrompia os seus fundamentos foi remodelado a par de novos
valores e objetivos, muitos deles de matiz constitucional.51 e 52. Dito em outros termos, isso
48
ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 347.
GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos e; FINK, Daniel Roberto;
FILOMENO, José Geraldo Brito; WATANABE, Kazuo; NERY JÚNIOR, Nelson; DENARI, Zelmo. Código
Brasileiro de Defesa do Consumidor. 8ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 503.
50
Enzo Roppo lembra que, de fato, o papel da vontade sofreu um processo de erosão, embora isso não tenha
implicado, de per si, na subtração da liberdade econômica dos sujeitos, tratando-se, antes disso, duma
providência devotada a “adequar as suas formas de exercício, para torná-las mais funcionais às novas
condições do mercado capitalista” (Idem. Op. cit., p. 311).
51
Neste sentido: AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 354, onde se lê: “Ora, se por um lado vemos a redução ou
anulação do individualismo subjacente aos postulados liberais do direito civil burguês, por outro lado, temos o
reconhecimento constitucional desses mesmos postulados, revestidos, é certo, de uma dimensão pública, geral
e funcional, no sentido de que, integrados na ordem econômica e social, servem como instrumentos de
desenvolvimento e justiça social”.
52
Valem destaque, em especial, os fundamentos republicanos da dignidade humana, os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (art. 1º, incisos III, IV e V, da Constituição Federal) e os
49
25
implica em asseverar que “a vontade continua essencial à formação dos negócios jurídicos,
mas sua importância e força diminuíram, levando à relativização da noção de força
obrigatória e da intangibilidade do conteúdo do contrato.”53
Há, pois, uma evolução na qual, após termos abandonado
a caracterização do contrato como manifestação ilimitada
da liberdade individual, demos-lhe uma nova conceituação
em que prepondera, ou deveria preponderar, sobre a intenção e a vontade individual de cada um dos contratantes, o
consenso que entre eles se formou, sem que seja lícito, a
qualquer um deles, tirar uma vantagem maior do que a racionalmente aceitável, tanto no momento da celebração do
contrato, como em todo período da sua execução, quando
se trata de convenções com efeitos duradouros ou
54
diferidos.
Assim, o desenho conceitual da autonomia privada foi refeito desde os seus
fundamentos e de seus limites externos até à própria compleição interna dos contratos, o
que Orlando Gomes denomina esquema legal.55 Em outras palavras, houve uma alteração
de forma e de conteúdo, que transformou profundamente a fisionomia tradicional da
atividade contratual. Segundo Francisco Amaral:
O problema da autonomia privada é, portanto e somente,
um problema de limites que se colocam, por exemplo, com
o dever ou a proibição de contratar, a necessidade de
aceitar regulamentos predeterminados, a inserção ou
substituição de cláusulas contratuais, o princípio da boa-fé,
os preceitos de ordem pública, os bons costumes, a justiça
contratual, as disposições sobre abuso de direito etc., tudo
isso passou a representar as exigências crescentes de
56
solidariedade e de socialidade .
objetivos da República Federativa do Brasil, consistentes na construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, na erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e a promoção
do bem comum, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e outros meios discriminatórios (art. 3º,
incisos I, III e IV, da Constituição Federal).
53
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 3ª edição. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1999, p. 122.
54
WALD, Arnoldo. O Novo Código Civil e a Evolução do Regime Jurídico dos Contratos. Rivista di Diritto
Dell’Integrazione e Unificazione del Diritto in Europa e in America Latina. Roma, n. 16/2003: Mucchi Editore, p.
87-107.
55
Cf. GOMES, Orlando. Op. cit., p. 29.
56
AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 355.
26
Segue-se que nos contratos de adesão, ou standard,57 e naqueles em que uma das
partes atua no mercado de bens ou serviços em regimes de monopólio legal e de fato,58 ou
de quase-monopólio,59 a importância da manifestação de vontade do aderente ou do que
se vê na contingência de não poder se abster de contratar é bastante mitigada,
especialmente quando se pensa na autonomia privada como um meio de autoregulamentação dos próprios interesses dos contratantes. É porque, em casos tais, o
assentimento na conclusão negocial, emitida pela parte em posição de sujeição, dirige-se
simplesmente à aceitação do vínculo, sem que se lhe possibilite debater previamente o
conteúdo do negócio, suprimindo-se, desse modo, uma parte fundamental do iter de
formação dos contratos, que é o período de discussões e de concessões recíprocas que
antecede a celebração do pacto, denominado tratativas, ou negociações preliminares.
Oportuna, aqui, a observação de Georges Ripert acerca da realidade negocial presente
nos contratos de adesão:
Consentir num contrato é debater as suas cláusulas com a
outra parte depois duma luta mais ou menos dura, cuja
convenção traduzirá as alternativas. Aderir é submeter-se
ao contrato estabelecido e submeter a sua vontade
protestando no íntimo contra a dura lei que lhe é imposta.
Num tal contrato há sempre uma espécie de vício
permanente do consentimento, revelado pela própria
natureza do contrato. Que há de contratual neste ato
jurídico ? É na realidade a expressão duma autoridade
privada. O único ato de vontade do aderente consiste em
colocar-se em situação tal que a lei da outra parte venha a
se aplicar. O aderente entra neste círculo estreito que a
vontade da outra parte é soberana. E, quando pratica
aquele ato de vontade, o aderente é levado a isso pela
imperiosa necessidade de contratar. É uma graça de mau
60
gosto dizer-lhe: tu quiseste.
É evidente que os contratos feitos num ambiente de monopólio, em que predomina
a contratação obrigatória, assim como nos casos dos contratos de adesão, um aspecto
57
ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 312.
O monopólio de fato, segundo Orlando Gomes, é aquele caso que “embora não seja de monopólios, nasce
tal como se fosse, por exemplo, a das companhias de seguros em relação aos seguros obrigatórios” (GOMES,
Orlando. Op. cit., p. 27).
59
TERRÉ, François Terré; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 31.
60
RIPERT, Georges. Op. cit., p. 112 e 113.
58
27
primordial da autonomia privada é alijado, pois a parte mais vulnerável é tolhida do poder
de deliberação dos efeitos do negócio de que participa. E isso, por si só, já se assemelha
suficiente para justificar a reconstrução de uma nova noção de ordem pública para permitir
a intervenção estatal nos contratos, em que o paradigma do indivíduo é substituído pelo
paradigma social, como “instrumento de cooperação entre os indivíduos no interesse
comum dos mesmos e da própria sociedade”.61 Vale também afirmar:
A liberdade contratual não é reconhecida senão porque a
troca dos produtos e dos serviços nos aparece com a mais
justa e a mais fácil organização das relações sociais. Se,
em certos casos, esta liberdade leva à exploração injusta
dos fracos pelos fortes, é preciso quebrá-la. Não é por não
ter natureza contratual que o contrato de adesão é
62
suspeito, é, pelo contrário, por ser contrato.
Dentro dessa ordem de coisas, notadamente depois da segunda Grande Guerra,
com a massificação das relações de consumo, o mundo testemunhou o surgimento de um
sem-número de leis destinadas à tutela de determinadas relações jurídicas e de certos
tipos contratuais, que usurparam a centralidade do Código Civil e a sua primazia como
estatuto fundamental do direito privado. David Noguéro, em feliz alusão, destaca que “em
1804, o contrato é um pilar do Código civil. Em 2004, o Código civil é um pilar do direito dos
contratos”.63 A propósito disso, Roberto Wider também pondera:
Se antes a liberdade de contratar representava o axioma
máximo da autonomia (rectius – liberdade) individual, hoje,
este direito deixa de representar um poder reconhecido a
um indivíduo, para instrumentalizar uma política econômica
do Estado, na defesa e proteção dos mais fracos,
representada no exemplo mais paradigmático que é a
64
proteção dos consumidores.
61
WALD, Arnoldo. O Novo Código Civil, cit, p. 99.
RIPERT, Georges. Op. cit., p. 116.
63
NOGUERO, David. Op. cit..
64
WIDER. Roberto. O Direito dos Contratos e a Autonomia da Vontade. A Proteção Especial dos
Consumidores. Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 54, p. 13-33,
jan/mar, 2003.
62
28
Despontaram, com isso, diversas leis especiais de vocação setorial, voltadas à
disciplina exaustiva de determinadas relações jurídicas reputadas dignas de tratamento
especial pelo ordenamento jurídico, como foi o caso, por exemplo, do Decreto n. 22.626/33
(Lei da Usura), da Lei de Loteamentos (Decreto-lei n. 58/37), do Estatuto da Terra (Lei n.
4.132/62), das sucessivas leis de locações de imóveis urbanos, do Código de Defesa do
Consumidor (Lei n. 8.078/90), do recente Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/01), que, dentre
outras conseqüências, redundaram no arrefecimento do princípio do pacta sunt servanda,
grande baluarte dos contratos,consoante alude Cláudia Lima Marques:
Como se observa, o postulado da força obrigatória dos contratos encontra-se muito modificado pelas novas tendências
sociais da noção de contrato. O papel dominante agora é o
da lei, a qual com seu intervencionismo restringe cada vez
65
mais o espaço para a autonomia da vontade .
Neste compasso, por igual, deu-se conta que até mesmo as relações contratuais,
além da satisfação das metas econômicas das partes, também buscam, de maneira
mediata, a realização de outros objetivos que, não raro, transcendem o campo patrimonial.
Realmente, várias são as hipóteses em que os contratos dirigem-se à promoção de
valores, que, embora secundários para a determinação do elemento causal, têm relevância
direta aos olhos do ordenamento jurídico. Fala-se, por isso, na utilidade social dos
contratos66 ou, entre nós, em função social.67
Francisco Amaral explica que a função social representa o “não-individual”, um
critério de valoração de situações jurídicas conexas ao desenvolvimento das atividades
econômicas, que “sistematicamente, atua no âmbito dos fins básicos da propriedade, da
garantia de liberdade e, conseqüentemente, da afirmação da pessoa”,68 “isto é, o direito
deixa o ideal positivista (e dedutivo) da ciência, reconhece a influência do social (costume,
65
MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p. 126.
V. FLOUR, Jacques; AUBERT, Jean-Luc. Op. cit., p. 67. No mesmo sentido: TERRÉ, François; SIMLER,
Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 27.
67
V. artigo 421 do Código Civil.
68
AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 357.
66
29
moralidade, harmonia, tradição) e passa a assumir proposições ideológicas, ao concentrar
seus esforços na solução dos problemas.”69
“A evolução jurídica demonstra que o contrato perdeu a sua característica
tradicional, da concepção clássica, isto é, deixou de ser individual e passou a assumir, na
modernidade, feição nova, de instituto jurídico social”.70 Leonardo Mattietto enfatiza que “o
princípio da autonomia privada, com as suas variantes de autodeterminação e autovinculação, cedeu lugar a um novo direito obrigacional, que acolhe no seu próprio âmago
os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da boa-fé objetiva”.71
Enoque Ribeiro dos Santos ressalta:
Na verdade, os negócios jurídicos tendem a se apresentar
de forma mais humanística e a se socializar no futuro,
nesses novos tempos de enaltecimento dos direitos
humanos fundamentais da pessoa humana. Toda plêiade
de contratos, desde os mais modestos e freqüentes até os
mais sofisticados, que envolvem poderosas multinacionais
tendem a coibir os atos de exploração e de abusos aos
72
mais fracos economicamente .
Paulo Neves Soto advoga a precedência do enfoque civil-constitucional na disciplina
dos contratos e destaca que foi a partir da aplicação do princípio da função social que se
buscou a superação do voluntarismo, iniciada por meio de leis especiais que disciplinavam
setores do direito privado, como foi o caso do Código de Defesa do Consumidor, até atingir
um ponto de desequilíbrio entre a realidade social e o ordenamento jurídico, em que a
Constituição se sobrepôs como “fonte e filtro das decisões legais ordinárias, judiciais e
administrativas”.73
69
MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p. 104.
GARCEZ NETO, Martinho. Op. cit.l, p. 50.
71
MATTIETTO, Leonardo de Andrade. O papel da vontade nas situações jurídicas patrimoniais: o negócio
jurídico e o novo Código Civil. Diálogos sobre Direito Civil – Construindo a Racionalidade Contemporânea.
Carmem Lucia Silveira Ramos (organizadora)... et al. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 23-39.
72
SANTOS, Enoque Ribeiro. A Função Social do Contrato e o Direito do Trabalho. Revista LTr, Vol. 67. São
Paulo, n. 12, p. 110-132, dez/2003.
73
SOTO, Paulo Neves. Novos perfis do direito contratual. Diálogos sobre Direito Civil – Construindo a
Racionalidade Contemporânea. Carmem Lucia Silveira Ramos (organizadora)... et al. Rio de Janeiro: Renovar,
2002, p. 247-265.
70
30
Isso parece explicar porque, na atualidade, a relevância do papel da vontade voltase menos para o elemento exterior da vontade e mais para a confiança que a própria
declaração em si, dentro de dadas circunstâncias e condições, tornaria razoável e legítimo
esperar. Em outras palavras, a ordem jurídica passa a apegar-se ao conteúdo objetivo do
contrato e aos efeitos que razoavelmente deveria suscitar. Trata-se da chamada
objetivação,74 ou publicização do contrato,75 que significa “um capítulo novo de sua
evolução, já que, através de sua longa vida, tem ele passado por numerosas
vicissitudes”.76 Enzo Roppo anota:
Para que um tal objetivo seja conseguido, o contrato não
pode mais configurar-se como o reino da vontade individual, a expressão direta da personalidade do seu autor,
exposto, por isso, a sofrer, de forma imediata, os reflexos de
tudo quanto pertence à esfera daquela personalidade e
daquela vontade; para servir o sistema da produção e da
distribuição de massa, o contrato deve, antes, tornar-se,
tanto quanto possível, autônomo da esfera psicológica e
subjetiva em geral do seu autor, insensível ao que nesta se
manifesta e sensível sobretudo ao que se manifesta no ambiente social, nas condições objetivas do mercado: o comtrato deve transformar-se em instrumento objetivo e impessoal, para adequar-se à objetividade e impessoalidade do
77
moderno sistema de relações econômicas .
O jurista contemporâneo não pode perder de vista que os contratos têm uma função
importantíssima no modus vivendi do mundo ocidental, cada dia mais dinâmico,
massificado e cercado por um impressionante conjunto de informações. Os contratos,
assim, permitem que os indivíduos presidam o destino dos seus interesses através da
determinação dos objetivos práticos que almejam atingir com o negócio. É por isso que
falar na morte ou na extinção do contrato é um exagero retórico, que deve ser interpretado
como um signo conotativo das mudanças sofridas pelo Direito Civil na atualidade.
74
ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 309-310.
GARCEZ NETO, Martinho. Op. cit., p. 48.
76
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit. p. 13.
77
ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 309.
75
31
1.3. O CAMINHO DO SUBJETIVISMO À TUTELA OBJETIVA DA CONFIANÇA
O processo volitivo percorre um indecifrável caminho desde as mais remotas
entranhas do querer do agente até o momento em que se revela ao mundo exterior com a
manifestação de vontade. A declaração é a exteriorização dum elemento mais importante e
decisivo, qual seria a vontade do agente, a “base e fundamento do ato, sua razão de ser, a
alma do negócio jurídico”.78 A dualidade entre o ato exterior e o evento psíquico que lhe deu
origem é bastante conhecida da filosofia e da lingüística, que há muito se dedicam à
decifração da relação entre conteúdo e forma e entre significante e significado. A própria
Bíblia Sagrada, em conhecido aforismo da segunda epístola de São Paulo aos Coríntios,
adverte que “a letra mata, mas o espírito vivifica” (Coríntios II, 3,6).
Em Direito, mais precisamente, fala-se que o processo volitivo é composto por dois
elementos: a vontade interna, consistente no íntimo querer do sujeito, devotada à criação, à
modificação ou à extinção de um direito; e a declaração, consubstanciada na exteriorização
da vontade interna no momento da celebração do ato.
Vicente Ráo aprofundou o estudo da fenomenologia jurídica da manifestação de
vontade e decompôs o iter do processo de formação do consentimento em três planos
distintos, que chamou de elementos volitivos, que se iniciam no plano psíquico do agente,
percorrem-lhe as veredas do pensamento e terminam na aceitação do negócio, com a
materialização da declaração:
Consistem, pois, tais elementos: a) na vontade consciente
de se alcançar o bem que se conhece, ou seja, na autodeterminação de obtê-lo; b) na vontade de declarar a vontade
propriamente dita; c) na vontade do que se contém na
79
declaração ou nas declarações efetivamente produzidas.
78
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, 1º Vol. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 1981, p.
184.
79
RÁO, Vicente. Ato Jurídico. 4ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 175 e 176.
32
O caminho que a manifestação de vontade segue, não raro, encontra acidentes de
percurso, e aquilo o que verdadeiramente se quis dizer se distancia do que se disse querer;
em outras palavras, acontece um conflito entre a vontade interna do sujeito e a declaração
aposta no negócio, assunto que merece especial atenção para se determinar quais partes
desse mesmo fenômeno devem prevalecer e por quais motivos.
Ao longo do tempo, muitas teorias reivindicaram o mérito de oferecer a solução mais
adequada e justa para dirimir os termos do problema decorrente da falta de correlação
entre a vontade íntima do sujeito e a declaração: algumas penderam para a supremacia do
elemento subjetivo, em detrimento do conteúdo declarado no negócio jurídico; outras
deram primazia ao aspecto objetivo da manifestação de vontade.
A teoria subjetiva, ou da vontade (Willenstheorie), a partir da observação do negócio
jurídico como um ato essencialmente voluntário, destinado à construção de relações
jurídicas reconhecidas pela ordem jurídica, considera que a conformidade entre o íntimo
querer do agente e a declaração é um pressuposto de validade inafastável, cuja ausência
implicaria em sua invalidade. A discrepância entre o querer íntimo e o manifestado na
declaração de vontade seria um fato inaceitável, que, quando muito, redundaria na criação
de um simples arremedo de negócio jurídico. Dito de outro modo:
A declaração de uma vontade não existente, ou não
verdadeira, ou inválida, mais não significaria do que a
aparência de uma declaração de vontade; e quando em
vontade se fala, deve-se entender que de determinação ou
ânimo se trata, dirigido, direta e imediatamente, à
80
consecução dos efeitos jurídicos do ato praticado.
Desse jeito, diante da divergência entre a vontade interna e a vontade declarada, é
aquela que deve prevalecer, porquanto, diriam os subjetivistas, “o negócio jurídico é
80
RÁO, Vicente. Op. cit., p. 164.
33
essencialmente vontade, a que deve corresponder exatamente a sua forma de declaração,
que é simples instrumento de manifestação dessa vontade”.81
Não são poucas as críticas à concepção da teoria da vontade, cunhada no apogeu
do individualismo e empenhada essencialmente à exclusiva salvaguarda dos interesses do
declarante, a qual, afetada pelo culto absolutista ao princípio da autonomia privada, relegou
para um plano secundário – ou mesmo até de uma completa irrelevância jurídica –, as
expectativas legítimas e o sentido de confiança que o ato negocial suscitou no âmbito
social. “Ela é capaz de semear grande insegurança no meio em que a declaração se
projeta e, portanto, na sociedade, pois qualquer negócio, aparentemente consolidado, pode
vir a se desfazer se uma das partes demonstrar que com ele concordou inspirada em
erro”.82 Demais disto, a premissa em que se apóia a teoria voluntarista é equivocada, tendo
em mira que não se pode afirmar existir simetria entre a vontade do agente e o princípio da
autonomia privada, como se houvesse, entre ambos, uma harmoniosa e necessária
relação de causa e efeito.
De fato, não raro, a solução para os problemas do desacordo entre o querido e o
declarado não vem dos recônditos cantos da psique dos contratantes, mas precisamente
daquilo o que Emilio Betti denomina tipicidade social, consistente num juízo valorativo ético
e econômico que a consciência social idealiza sobre um tipo negocial,83 o que revela o
equívoco de se contemplar a salvaguarda irrestrita da vontade como um corolário perfeito
do princípio da autonomia privada:
Entre o dogma da vontade e tutela da autonomia privada,
não há, de fato, coincidência necessária: nem sempre é
verdade que para garantir o respeito substancial da
autonomia, da liberdade e, portanto, dos interesses dos
contraentes, seja preciso prestar absoluto e incondicionado
84
obséquio às suas tomadas de posição psíquicas.
81
AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 371 e 372.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1. 30ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 184.
83
BETTI, Emilio. Op. cit., p. 278-279.
84
ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 143.
82
34
Por outro lado, levada a aplicação dessa teoria a conseqüências extremas, chegarse-ia ao ponto de se criar situações injustas e contraditórias. Ora, se é mesmo a vontade
interna das partes que atua como fonte de validade dos negócios jurídicos, não seria
nenhum absurdo dizer-se que qualquer das partes poderia retroceder o seu consentimento
até o cumprimento das obrigações contratuais assumidas, ao argumento de agir em
conformidade com a prerrogativa que a autonomia da vontade lhe confere. Realmente:
Se é a vontade interna dos contratantes que dá origem
aos efeitos jurídicos do ato, não passando a declaração de
simples meio pelo qual aquela vem ao conhecimento de
terceiros, cada um pode modificar sua vontade até o
momento de sua realização, o que torna a teoria clássica,
além de falsa, sob o ponto de vista teórico (por repousar
sobre a ficção da onipotência da vontade), perigosa para o
crédito público, na medida em que permite, em nome de
uma vontade secreta, a anulação de um contrato que a
85
contraparte acreditava válido.
Vicente Ráo questiona a relevância prática e científica da supervalorização do
elemento espiritual dos negócios jurídicos, sobretudo porque o seu aspecto objetivo –
aquilo que desperta o sentido de confiança na declaração negocial e nas expectativas
legítimas das partes – é, amiúde, muito mais pertinente para a interpretação do seu
conteúdo do que os dados de ordem subjetiva. O mesmo jurista ainda lembra que o Direito
Romano clássico jamais deu grande importância para o elemento subjetivo dos contratos, o
que é evidenciado pelo fato de que as noções de novação, de compensação, e de doação
foram construídas sem que se recorresse ao aspecto interno do consentimento, e que a
incorporação do animus como um traço característico da validade de algumas figuras
jurídicas só ocorreu com as compilações justinianéias.86 Por fim, acrescenta:
‘Toda essa corrente de animus é produto da decadência
bizantina, fruto típico das abstrações metafísicas dos jurisconsultos do Oriente; e provou, mais, que o direito clássico
ignorava tão rica nomenclatura; e se aos jurisconsultos
clássicos o animus específico não se afigurou necessário
85
86
BECKER, Anelise. Op. cit., p. 45.
RÁO, Vicente. Op. cit., p. 166.
35
para um instituto ou outro, é muito provável que também
87
não o seja para nós, modernos’.
A bem da verdade, o apego excessivo às idéias voluntaristas representa um
elemento inibidor do comércio jurídico e, em última análise, um importante fator de
insegurança para as relações jurídicas. Ao lado disso, não se deve perder de vista que a
consideração da teoria da vontade a pontos extremos teria como efeito o aprisionamento
daquele a quem se dirigiu a manifestação de vontade aos subjetivismos, às incertezas e à
própria malícia do declarante. Outro problema que jamais pôde ser resolvido pelos
prosélitos da teoria subjetiva diz com a dificuldade, senão a impossibilidade, de se aferir a
real intenção do agente por ocasião da conclusão do negócio jurídico.
Depois da saturação da fase subjetivista, a teoria da declaração (Erklärungstheorie)
foi elaborada em oposição à teoria da vontade para advogar a precedência do conteúdo
declarado no negócio jurídico em detrimento do íntimo querer do declarante sempre que
um e outro não coincidirem. Com a atenção voltada para o extremo oposto do iter
constitutivo da manifestação de vontade, essa teoria almejou emprestar maior segurança,
concretude e dinamismo às relações jurídicas, de maneira a alforriar o comércio jurídico de
obstáculos psíquicos e de metáforas de caráter mitológico.88
Essa teoria, sem dúvidas, proporcionou uma margem de segurança satisfatória para
o comércio jurídico, na medida em que a validade do negócio jurídico deixava de ter como
apoio a onipotência do querer das partes a fim de voltar-se para a vontade declarada. Na
perspectiva dessa teoria, “qualquer declaração obriga, ainda que por mero gracejo”.89 Quer
dizer, o negócio jurídico busca o seu fundamento não mais no íntimo querer das partes,
mas naquilo que foi declarado como querido. Dir-se-ia, à vista desarmada, que a teoria da
declaração libertou as relações negociais da influência perniciosa do elemento subjetivo e,
87
Idem.. Op. loc. cit..
BETTI, Emilio. Op. cit., p. 91.
89
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 332.
88
36
portanto, assegurou uma significativa zona de segurança jurídica para o regime dos
contratos. Entretanto, a aparente segurança da teoria da declaração gerou numerosos
inconvenientes no mundo jurídico, pois no afã de eliminar a ascendência da vontade nos
negócios jurídicos, acabou ampliando a sua influência, uma vez que “privilegiando a
declaração, bilateralizou o dogma da vontade, fazendo transparecer as intenções de ambas
as partes”.90
Ademais, o prestígio inflexível da vontade declarada obstruiu por completo a análise
do processo de formação do elemento subjetivo nos atos negociais, desprezando a sua
relevância como parte integrante da própria declaração que dá vida à relação jurídica91 e
aniquilando os fundamentos da teoria dos vícios de consentimento, donde convir-se como
pertinente a advertência de Vicente Ráo:
Por mais respeitável que se afigure o propósito de imprimir
segurança às relações disciplinadas pelo direito, nem por
isso poder-se-á desconhecer a função fundamental dos
elementos volitivos na formação e na eficácia dos atos
jurídicos, mesmo que se reduza o campo de aplicação
dessa teoria aos atos inter vivos, ou, tão-só, aos contratos
bilaterais, admitindo-se, ainda apenas dentro destes limites,
como regra, o predomínio da declaração sobre a vontade,
92
em caso de conflito.
A verdade é que ambas as teorias – voluntarista e da declaração – contêm um vício
genético insuperável, porque buscam isolar em partes distintas um fenômeno que não
pode ser apreendido senão através da análise conjunta de todos os seus componentes. Do
ponto de vista metodológico, trata-se de uma opção distinta, a qual, sem desprezar o íntimo
querer e a vontade exteriorizada no negócio jurídico, atribui a cada qual o seu justo valor.
Antônio Junqueira de Azevedo, a propósito dessa afirmação, acrescenta:
Certamente, a declaração é o resultado do processo volitivo interno, mas, ao ser proferida, ela o incorpora, absorve-
90
BECKER, Anelise. Op. cit., p. 46.
RUGGIERO, Op. cit., p. 330.
92
RÁO, Vicente. Op. cit., p. 170.
91
37
o, de forma que se pode afirmar que esse processo volitivo
não é elemento do negócio. A vontade poderá, depois,
influenciar a validade do negócio e às vezes também a eficácia, mas, tomada como iter do querer, ela não faz parte,
existencialmente, do negócio jurídico; ela fica inteiramente
93
absorvida pela declaração, que é o seu resultado.
Essa comutação metodológica da interpretação dos negócios jurídicos resulta na
tendência de relativização do papel da vontade, que, sem eliminá-la do quadro conclusivo
dos negócios jurídicos, deixa de tutelá-la no seu aspecto interno e volátil, mas como o limiar
de um processo que encontra o seu ápice na declaração negocial, cujos efeitos produzidos
ater-se-ão menos ao que se quis ou ao que se disse querer e mais às expectativas
legítimas e ao grau de confiabilidade que o negócio jurídico suscitou no ambiente social. A
final de contas, como alguém já disse, “ninguém contrata no vácuo”, o que importa em
admitir que os negócios jurídicos são um fenômeno social e que sua interpretação não
pode ser feita sem que se permita a influência do contexto coletivo no qual os seus efeitos
serão produzidos:
O critério exato para a procurada classificação, não se
deduz do espírito interior do declarante, olhando, por assim
dizer, para trás, para a gênese psicológica individual, mas
olhando para diante, para o ambiente social externo, no
qual a declaração é emitida e é chamada a produzir os
94
seus efeitos e a atingir os seus fins.
A antiga querela doutrinária acerca da precedência da vontade interna ou da
declaração cedeu espaço para a idéia de tutela objetiva da confiança (Vertrauensgebot).
Realmente, a manifestação de vontade não pode ser encarada como o fiel da balança e
elemento de legitimação dos efeitos produzidos pelo negócio jurídico, porque, nos tempos
de hoje, a ordem jurídica atribui importância preponderante às expectativas legítimas
decorrentes do vínculo contratual, de modo a valorizar a confiança e os sentidos ético e
social corredios no ambiente coletivo.
93
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico – Existência, Validade e Eficácia. 4ª edição. São Paulo:
Saraiva, 2002, p. 82.
94
BETTI, Emilio. Op. cit., p. 217.
38
“A natureza e as características do negócio jurídico residem fundamentalmente no
comportamento objetivo do agente, como auto-regulamento de seus próprios interesses”.95
Vale dizer – em conformidade com a teoria preceptiva, cunhada pela genialidade de Emilio
Betti96 – que o negócio jurídico é um meio de autodeterminação dos objetivos práticos que
às partes interessam atingir, que será validado pelo ordenamento jurídico a par dum juízo
valorativo de sua função econômico-social. Ou seja, o fim prático que o negócio contratual
visa a concretizar pressupõe a avaliação de sua compatibilidade com os preceitos éticos e
sociais que presidem a consciência coletiva. Quer dizer:
Deixou de parecer contraditório admitir a possibilidade de
que declarações não mais queridas adquiram, na
sociedade, o conteúdo e o significado de preceitos,
obrigatórios para quem os emitiu, senão a título de vontade,
a título de auto-responsabilidade pela confiança razoável
97
radicada nos ‘outros’ a quem a declaração era destinada.
Enzo Roppo prefere identificar a teoria preceptiva dos negócios jurídicos como a
moderna tendência de objetivação dos contratos, cujos efeitos típicos são determinados
pelo elemento externo e visível que o vínculo negocial faz transparecer e ser reconhecido
pelo outro contratante:
A característica é a de ligar os efeitos e o tratamento jurídico
das relações aos elementos objetivos, exterior e socialmente reconhecíveis, dos atos pelos quais as relações se
constituem, muito mais que aos elementos de psicologia
individual, às atitudes mentais que permanecem no foro
íntimo, numa palavra, à vontade das partes: com a conseqüência de que, em caso de conflito entre o ‘subjetivo’ e
‘objetivo’, entre as efetivas posições da psique e da vontade do contraente e aquilo que socialmente transparece e
é percebido pelo outro contraente, tende-se a atribuir
prevalências a este último, sacrificando, assim, a vontade à
98
declaração .
95
AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 372.
BETTI, Emilio. Op. cit., passim.
97
BECKER, Anelise. Op. cit., p. 47.
98
ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 298 e 299.
96
39
Cuida-se da tutela da aparência socialmente reconhecível de uma situação jurídica
que suscitou a criação de expectativas legítimas quanto à produção dos efeitos esperados
pelas partes. A pedra de toque da teoria da confiança funda-se nos deveres de lealdade,
correção e probidade de quem, direta ou indiretamente, contribuiu para a criação de uma
expectativa legítima de tantos quantos tenham confiado nos efeitos do negócio jurídico.
Com efeito, as regras de interpretação da manifestação de vontade desapegam-se
das incertezas do subjetivismo e da rigidez estática da declaração, concebendo o contrato
como um ato negocial decorrente da conjugação de duas declarações que visam à
realização de um fim uniforme e em harmonia com a ordem jurídica. A manifestação de
vontade ganha vida exterior através da declaração e preserva a sua relevância como parte
indispensável do processo de formação dos contratos, o que, além de não eliminar a tutela
dos defeitos dos negócios jurídicos decorrentes dos vícios de consentimento, acaba por
reafirmá-la em conformidade com a consideração objetiva dos resultados práticos queridos
pelas partes. Nesse mesmo sentido a opinião de Cláudia Lima Marques:
A teoria da vontade concentrava-se no indivíduo, aquele
que emite erroneamente sua vontade, concentrava-se no
momento da criação do contrato; a teoria da confiança
concentra-se também em um indivíduo, qual seja o que
recebe a declaração de vontade, em sua boa-fé ou má-fé,
mas tem como fim proteger os efeitos do contrato e
assegurar, através da ação do direito, a proteção dos
99
legítimos interesses e a segurança das relações jurídicas.
Essa nova perspectiva interpretativa dos negócios jurídicos, devotada à valorização
do comportamento negocial das partes e à confiança recíproca despertada pelo vínculo
contratual, também é sublinhada por Leonardo Mattietto:
A interpretação dos atos jurídicos em geral deve levar em
conta não apenas as declarações que hajam feito as
pessoas que deles tenham participado. Tampouco a tarefa
do intérprete se resume a perquirir a vontade expressada,
veiculada por meio da declaração. É preciso buscar o
entendimento de cada ato no ambiente em que ele foi
99
MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p. 127.
40
celebrado – no complexo de seus motivos e circunstâncias,
100
bem como no contexto do próprio ordenamento jurídico .
“A função da vontade negocial, aqui, é a de pressuposto de atuação da norma
jurídica que a tenha por suporte fático (...) Uma vez preenchido o suporte fático, a
manifestação de vontade é reconhecida pelo Direito e ingressa no mundo jurídico”.101
Assim, menos importante do que a defesa irrestrita da pureza da vontade como reflexo da
autonomia privada, os efeitos do contrato e, em particular, a sua força obrigatória, são
deslocados para o sentido de adequação do negócio à ordem jurídica, de maneira que “o
que importa não é saber como o contrato se sustenta dogmaticamente e sim, como melhor
estará instrumentalizado para o controle das relações negociais”.102
100
MATTIETTO, Leonardo de Andrade. Op. cit..
BECKER, Anelise.Op. cit., p. 53.
102
WIDER, Roberto. Op. cit.
101
41
CAPÍTULO 2 – O DOLO NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
2.1. CONCEITO E PRESSUPOSTOS
Dolo é o expediente malicioso utilizado para induzir uma pessoa a expressar a sua
vontade de maneira distinta da que faria se melhor conhecesse a realidade ou as
particularidades do negócio. O conceito jurídico do dolo civil foi concebido como uma falta
intencional levada a efeito com o objetivo de extorquir de alguém a aceitação dum ato que
lhe é prejudicial. Isso deixa às claras, logo à primeira vista, que o dolo congloba no seu
plano conceitual a idéia de desvalor à boa-fé e ao espírito de lealdade que deve animar a
participação das partes num negócio.
No campo semântico, o dolo é associado a diversas conotações distintas, tais como
a fraude, a culpa e a usurpação, conquanto o mais comum seja compreendê-lo como signo
de tudo aquilo que é contrário à boa-fé.103 O último sentido, embora usual e corredio, é
amplo demais para assentar os limites conceituais do dolo, vício de consentimento e causa
de anulação dos negócios jurídicos. E é-o porque, como será visto nas linhas seguintes,
103
A título de ilustração, é de se ver que o Dicionário Aurélio designa a expressão “boa-fé” como “a ausência de
intenção dolosa” (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI. Versão
3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Novembro de 1999).
42
nem sempre a atuação em desconformidade com a boa-fé contamina o negócio jurídico
com o vício do dolo, pois há casos em que o comportamento doloso é irrelevante para a
formação do consentimento da vítima e outros em que o ordenamento jurídico prevê uma
sanção diferente. A propósito dessa imprescindível demarcação do terreno dogmático do
dolo civil, é oportuno trazer à tona a pertinente advertência de Cossio y Corral:
Por isso se impõe separar perfeitamente de um conceito
genérico de dolo, relativo a qualquer maquinação, engano,
artifício ou fraude, outro conceito mais específico que se
limita a qualquer atuação conscientemente dirigida a
104
produzir antijuridicamente um dano a outrem.
Dentro desse aspecto, o dolo “consiste nas práticas ou manobras maliciosamente
levadas a efeito por uma parte, a fim de conseguir da outra uma emissão de vontade que
lhe traga proveito, ou a terceiro”,105 a “falsa representação à qual uma pessoa é induzida
por malícia, ardil ou fraude de outrem”,106 “o expediente malicioso que induz alguém a
praticar certo negócio jurídico”,107 “o artifício desonesto, anterior ou concomitante ao
contrato, cujo objetivo é o de levar alguém a contratar por meio de uma convicção falseada
por êste artifício”,108 ou, ainda, “causa de não-validade dos atos jurídicos, é o ato, positivo,
ou negativo, com que, conscientemente, se induz, se mantém, ou se confirma outrem em
representação errônea”.109
Martinho Garcez, por inspiração das obras clássicas dos antigos, preconizava que o
“dolo, como define Labeo (L. 1, § 1, ff. de dólo) é o artifício, a astúcia, a maquinação, de que
alguém ser serve para enganar a outro e obriga-lo a praticar uma ação que sem isso não
104
COSSÍO Y CORRAL, Alfonso. El Dolo em el Derecho Civil. Granada: Editorial Comares, 2005, p. 7.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. I. 12ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1990,
p. 359.
106
WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil Brasileiro – Introdução e Parte Geral. 9ª edição. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002, p. 202.
107
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil, Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 336.
108
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil , Volume I. 4ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1962, p. 438.
109
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado, Tomo IV. 1ª edição atualizada. São
Paulo: Bookseller, 2000, p. 390.
105
43
praticaria”.110 Judith Martins-Costa observa que qualquer artifício desleal encontrará no dolo
a causa indicativa do erro provocado:
O artifício traduz-se pelo emprego de quaisquer expedientes ou maquinações tendentes a desfigurar a verdade,
ou realidade da situação, desfigurando-a ou criando apa111
rências ilusórias.
O Código Civil Brasileiro em vigor, a exemplo do anterior, não conceituou o dolo. E
andou bem. É porque não é tarefa do legislador se imiscuir na criação de conceitos, os
quais, não raras vezes, são imperfeitos e quase sempre casuísticos, o que impede a sua
adaptação à evolução histórica das sociedades e do Direito. Por tais motivos é que a
criação dos conceitos pertinentes às figuras e aos institutos jurídicos constitui tarefa que
toca à doutrina. Exemplo dos inconvenientes trazidos pelos conceitos legais é visto no
Código Napoleão, que definiu o dolo nas convenções civis do seguinte modo:
O dolo é uma causa de nulidade da convenção quando as
manobras praticadas por uma das partes são tais, que fica
evidente que, sem essas manobras, a outra parte não teria
feito o contrato. O dolo não se presume e deve ser
112
provado.
O dolo não é um vício de consentimento, mas a causa desse vício.113 Vale dizer que
o comportamento malicioso utilizado para a obtenção do assentimento da vítima é o fato
gerador duma declaração de vontade em desconformidade com a vontade interna. “O
agente doloso induz o outro em erro; mas o erro é apenas, como diz SALEILLES, o meio
pelo qual o autor do dolo atua sobre a vontade.”114
110
GARCEZ, Martinho. Nulidades dos Atos Jurídicos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos,
1910, p. 204.
111
MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Volume V, Tomo I. Sálvio de Figueiredo
Teixeira (coordenador). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 604-605.
112
Art. 1116 do Código Civil Francês (tradução livre).
113
TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 183 e FLOUR, Jacques; AUBERT,
Jean-Luc. Op. cit., p. 144. No mesmo sentido, Francisco Amaral ajunta que “a rigor, o dolo não é vício de
vontade, mas causa do vício de vontade” (AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 489).
114
BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, Volume I. 12ª edição. São
Paulo: Livraria Francisco Alves, 1959, p. 273.
44
A malícia dos homens é inesgotável e tem encontrado terreno fértil nos tempos
atuais, em que predomina uma vertiginosa profusão de informações e em que o culto à
ideologia consumista se expande num ritmo sem precedentes. Por isso, a despeito de sua
semelhança dogmática com o erro, o dolo na formação dos negócios jurídicos deve ser
interpretado com amplitude maior, de maneira a englobar não só a desconformidade entre
a vontade e a declaração incidente sobre a natureza ou sobre as qualidades essenciais do
objeto e da pessoa, a fim de abarcar também toda tramóia arquitetada para afastar do
conhecimento da vítima alguma circunstância determinante para a conclusão do contrato.
De quanto se disse acerca dos requisitos da relevância do
dolo, emerge, com clareza, em que sentido a tutela do
contraente induzido maliciosamente em erro é mais ampla
do que a do contraente caído num erro não provocado por
outros: diferentemente da parte caída em erro espontâneo,
a parte enganada pode pedir a anulação do contrato, ainda
que as falsas apresentações da realidade a que foi induzida
115
pelo dolo não sejam ‘essenciais’.
Com efeito, a análise da influência da prática dolosa na aceitação do lesado não
pode prender-se a uma criteriosa e rígida predefinição, sem que se corra o risco de se
excluírem situações particularmente dignas de atenção pelo Direito. É por isso que a noção
do dolo nos negócios jurídicos que prevalece nos dias de hoje deve-se ao esforço de
abstração da doutrina – que se empenhou em definir quadros de interpretação suscetíveis
de açambarcar ocorrências potenciais – e ao sentido pragmático da obra jurisprudencial.
É claro, também, que a definição do dolo como causa anulatória dos negócios
jurídicos não pode ser associada à idéia de antítese da má-fé, conforme as linhas
precedentes deste trabalho já afirmaram, pois, não fosse assim, uma de duas: o dolo
estaria em tudo; ou, o que parece mais provável, não estaria em lugar algum. Trata-se,
aqui, como propõe a sabedoria popular, de se achar um ponto “nem tanto ao mar, nem
tanto à terra”, para que a compreensão do dolo não tenha uma amplitude de impossível
115
ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 240-241.
45
inteligibilidade, mas que também não seja muito restrita, a ponto de reduzir em demasia o
seu campo de aplicação. A melhor síntese desse necessário meio-termo na definição do
dolo civil foi expressa pelo notável Georges Ripert, que afirmou:
Em todos os tempos o dolo foi definido como o ato culpável
que pode revestir as formas mais diversas, ‘qualquer mau
caminho para enganar alguém’, diz Domat. Se, nos
exemplos dados pelos antigos autores, os casos de
‘falcatrua’ (tricherie) são sempre os mesmos, no mundo
moderno, hábil no disfarce, os casos de dolo não têm
número. Vão desde a escroquerie delituosa até às simples
116
declarações enganosas.
Na França, por exemplo, foi necessário um intenso trabalho de interpretação para
revelar a dimensão semântica da expressão “manobras praticadas por uma das partes”
empregada pelo artigo 1116 do Code. Destarte, face à necessidade de uma marcação
conceitual objetiva, capaz de sobreviver à indefectível marcha do tempo e às intempéries
da história, essa expressão (“manobras praticadas por uma das partes”) foi permeada com
grande fluidez, com o fito de traduzir “o emprego de certos artifícios ou de uma certa
encenação”,117 ou, ainda, qualquer maquinação usada para obter o consentimento do cocontratante para a conclusão do ajuste contratual.118
Não é ocioso destacar que o dolo possui uma sensível diferença do erro, pois
enquanto este constitui um engano que surge espontaneamente durante a formação do
consentimento da parte, o dolo é um engano provocado por aquele a quem se dirige a
declaração de vontade ou por um terceiro. Esse traço distintivo é copiosamente
reconhecido pela doutrina, para quem o dolo “é o erro intencionalmente provocado na
vítima pelo autor do dolo, ou por terceiro”119 ou “a indução em erro de uma parte do
negócio jurídico”.120 É dizer, “instigado pela intenção de enganar, o autor mune-se da
116
RIPERT, Georges. Op. cit., p. 100.
FLOUR, Jacques; AUBERT, Jean-Luc. Op. cit., p. 146.
118
TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 185.
119
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso, 1º Vol., cit., p. 193.
120
COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 335.
117
46
vontade de induzir o outro ao erro, usando de artifícios não grosseiros ou perceptíveis
‘prima facie’”,121 razão pela qual trata-se, pois, de um ato ilícito, considerado aqui como
causa que faz desviar a vontade da sua reta determinação, provocando um erro”122.
Conforme pontua a lição de Pontes de Miranda, “em todo dolo há indução em erro,
provocando-o, reforçando-o, ou apenas deixando que persista; é plus”.123 De fato:
O dolo em muito se avizinha do erro, e, se representa uma
limitação à eficácia do ato jurídico, isso ocorre porque a
vontade que o constituiu manifestou-se enganada.
Entretanto, enquanto no erro o engano é espontâneo, no
dolo é provocado. Ele advém do embuste do outro
contratante, de sua malícia, de sua manha no sentido de
124
ludibriar a vítima.
Ademais, um expressivo contingente doutrinário entende que a caracterização do
dolo depende do advento de um prejuízo causado à vítima, vale dizer, de um dano material
ou imaterial sofrido pelo declarante. Calha lembrar, neste passo, que a lição de Clóvis
Bevilaqua pautava-se nessa mesma direção, definindo o dolo como “o artifício ou
expediente astucioso, empregado para induzir alguém à prática de um ato, que o prejudica,
e aproveita o autor do dolo ou a terceiro”.125 Vê-se, ainda, que o entendimento doutrinário
corrente enfatiza que “dolo é o artifício ou expediente astucioso empregado para induzir
alguém à prática de um ato que o prejudica, aproveitando ao autor do dolo ou a terceiro”126,
pois “busca o prejuízo do induzido ou ‘deceptus’ e o proveito próprio ou de terceiros”.127
Essa tendência interpretativa também está presente no direito alienígena, havendo
quem diga que “constitui dolo tudo que seja contrário aos ditames da honestidade e tenha
por fim enganar alguém: uma vontade maldosa que opera ardilosamente, para induzir ou
manter alguém em engano ou para prejudicar o enganado, dando proveito ao
121
RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 107.
RUGGIERO, Roberto de. Op. cit., p. 346.
123
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 394 e 395.
124
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Volume 1, cit., p. 193.
125
BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil, Volume I, p. 273.
126
AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 489.
127
RIZZARDO, Arnaldo. Op. cit., p. 107.
122
47
enganador”.128. “E, realmente, o concurso de uma manobra desleal, e de um prejuízo desta
advinda, determina evidentemente a natureza do dolo e o seu objeto”.129
Nada obstante, essa opinião não parece coerente, por partir de uma premissa de
fato errônea. É porque o dolo, no mais das vezes, atua no complexo psíquico da vítima de
forma a induzi-la à prática de um ato negocial, o qual, não fosse o expediente malicioso
empregado, não se teria realizado ou teria sido feito em bases distintas. Nesse caso – e em
função da conduta mendaz praticada pelo enganador –, o objetivo da ordem jurídica é
proteger a pureza da manifestação de vontade, para amoldá-la, tanto quanto possível, à
real intenção do agente, independentemente da verificação de um prejuízo decorrente da
desconformidade entre a declaração e o íntimo querer da vítima, como forma de reação ao
aspecto ilícito e delituoso do ato praticado por aquele que o negócios jurídico aproveita. A
sanção que o ordenamento jurídico prevê para o dolo civil tem subjacente um juízo de
reprovação contra o comportamento malicioso do destinatário da declaração, uma espécie
de “punição-sanção”,130 donde ser correto inferir-se que esse vício de consentimento deve
ser reconhecido ainda que não se constate um prejuízo concreto imposto à vítima.
Por exemplo, imagine-se que A almeja adquirir um imóvel pertencente a B, que não
tem a menor intenção de aliená-lo. Sabedor do desinteresse do proprietário, A instiga B a
vender o imóvel, afirmando, falsamente, que em pouco tempo uma fábrica poluente se
instalaria na localidade, redundando na abrupta queda do preço de mercado do bem e na
redução da qualidade de vida na região. B, então, propõe-se a comprar o imóvel,
oferecendo por ele o seu atual preço de mercado, equivalente a X. Nesse caso, A não
sofreu prejuízo nenhum, porque recebeu pelo bem o seu justo valor de mercado, ao passo
em que B, de igual sorte, não obteve qualquer vantagem exagerada por ocasião da
128
RUGGIERO, Roberto de. Op. cit., p. 346.
LOMONACO, Giovanni. Instituzioni di Diritto Civile Italiano, 5º Volume. 2ª edição. Nápoles: Nicola Jovene &
C.º, 1895, p. 55.
130
BETOULLE, Jérôme. LÁspect “Délictuel” du Dol Dans la Formation des Contrats. Disponível em
www.courdecassation.fr. Acesso em 24 de novembro de 2004.
129
48
conclusão do negócio, eis que não pagou menos do que pagaria acaso o vendedor
quisesse efetivamente alienar a coisa. Neste exemplo, a prática dolosa aparece
nitidamente configurada e dá ensejo à anulação do negócio jurídico, embora, a rigor, o
adquirente não tenha obtido nenhum proveito econômico desproporcional em detrimento
do vendedor.
É oportuno observar, a outro tanto, que a ocorrência de um prejuízo econômico ou
moral não é alçada pela lei como condição essencial à caracterização do dolo nos negócios
jurídicos, que se contenta com o nexo causal que interliga a conduta dolosa e a declaração
de vontade em desconformidade com o íntimo querer do declarante, sendo aplicável, aqui,
o conhecido brocardo que recomenda ao intérprete não distinguir onde a lei não distinguiu.
João Manuel de Carvalho Santos, com seu aguçado espírito prático, também tinha
por dispensável a presença de um prejuízo em desfavor da parte enganada, tendo por
suficiente a desconformidade entre a vontade e a declaração em benefício da contraparte:
Basta que o artifício tenha sido empregado para induzir a
pessoa a efetuar um negócio jurídico, o que não seria
conseguido, na convicção do agente do dolo, de outra
maneira. O que se visa, afinal, não é um prejuízo, mas sim
obter para si ou para outrem certa vantagem que, aliás,
pode algumas vezes não redundar em prejuízo ou dano à
131
pessoa iludida.
O dolo nos negócios jurídicos exige o concurso de quatro pressupostos, sejam eles:
a) a intenção de induzir o declarante à prática do negócio jurídico; b) a gravidade dos
artifícios fraudulentos; c) o nexo causal entre as manobras dolosas e a conclusão do
negócio; d) e que os expedientes maliciosos tenham sido empregados pelo outro
contratante ou por ele conhecidos, quando provenientes de terceiros.132
131
SANTOS, J. M. de Carvalho. Código Civil Brasileiro Interpretado, Volume II. 11ª edição. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1982, p. 329. No mesmo sentido: MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 396.
132
Neste sentido: LOPES, Miguel Maria de Serpa. Op. cit., p. 439; MONTEIRO, Washington de Barros. Curso,
1º Vol., cit., p. 196; e GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, Vol.
1. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 362.
49
O primeiro pressuposto é mais do que óbvio, porque a definição do dolo congloba
em seu contexto a prática de manobras maliciosas em razão das quais uma pessoa é
induzida a assentir na conclusão de um ato, conquanto se melhor conhecesse a realidade
não o teria concluído, ou, mesmo que o concluísse, fá-lo-ia em condições negociais
distintas. Não foi por menos que Clóvis Bevilaqua lembrava que “o dolo é um ato ilícito
intencional, e só por esta consideração provocaria a reação do direito”.133
O segundo pressuposto diz com a gravidade dos artifícios empregados pelo outro
contratante ou pelo terceiro estranho ao vínculo negocial. A configuração do dolo pressupõe
que a tramóia dolosa tenha gravidade e seriedade suficientes para infundir no ânimo da
vítima a decisão de celebrar o negócio. Isso se deve porque o nosso Direito, até um
determinado limite, é complacente com o comportamento manhoso e astuto utilizado por
uma parte no intuito de persuadir a outra na formação de um contrato.
Mas o exagero tolerável é aquele sem artifícios,134 a que se convencionou chamar
de dolus bonus, que “é a gabança, por vezes exagerada, que o alienante faz daquilo que
oferece à venda; é a propaganda, o reclamo levado a efeito com o intuito de seduzir o
adquirente”.135 Nesses casos, a prática de que se utilizou o contratante, embora mendaz e
revestida por uma dose de malícia, não foi grave o bastante para influenciar na formação
da determinação contratual do declarante, haja vista que, em semelhantes circunstâncias,
somente uma pessoa de credulidade exagerada ou por demais desatenta136 se deixaria
iludir. Desse jeito, tão-só o dolus malus é que rende azo à anulação do negócio jurídico ou,
133
BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil, Volume I, cit., p. 273.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso, 1º Vol., cit., p. 197.
135
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 195.
136
Flour e Aubert entendem que a credulidade excessiva da vítima pode torná-la indigna de proteção legal, não
tanto pela inexistência das manobras dolosas, mas porque o caso seria de erro inescusável, que se tem toda
vez que as verdadeiras condições que influenciaram o negócio poderiam ser facilmente conhecidas pelo
declarante, de maneira que a desconformidade entre a vontade e o querer seria tributada exclusivamente à sua
desatenção ou desleixo (FLOUR, Jacques; AUBERT, Jean-Luc. Op. cit., p. 146).
134
50
conforme o caso, à indenização por perdas e danos, porque se trata de um ato de
gravidade suficientemente intensa para induzir a parte enganada a assentir com o contrato.
O terceiro pressuposto consiste na relação de causa efeito entre a conduta dolosa
do ludibriador e a manifestação de vontade da vítima, sem a qual o negócio jurídico não se
teria concluído. Cuida-se do dolo principal, que é a causa determinante da manifestação de
vontade do celebrante e que, quando presente, tem como efeito a anulabilidade do negócio
jurídico. O Código Civil também reconhece uma figura alternativa a que chamou de dolo
acidental, que é aquele que, a seu despeito, o negócio teria sido feito, mas de outro modo.
O último pressuposto diz com a imprescindibilidade de que as manobras maliciosas
tenham partido do sujeito a quem a declaração de vontade se dirigiu. Ou seja, é essencial
que o comportamento doloso que deu origem à declaração volitiva viciada tenha sido
praticado pelo outro contratante. A ordem jurídica, portanto, obsta a anulação do negócio
quando o artifício manhoso é proveniente de um fato praticado por terceiros, salvo se
conhecido ou reconhecível pela outra parte.
2.2. O DOLO PRINCIPAL E O DOLO ACIDENTAL
Dolo principal, dolo essencial, ou, ainda, dolo causal, é a conduta maliciosa ou o
expediente astucioso que constitui a causa do negócio jurídico, de modo que, não fosse por
ele, o lesado não teria celebrado o negócio contratual.
O dolo principal, que também é designado como dolus causam dans, é aquele “que
atua como motivo determinante do consentimento”137 e que “supõe que o engano tenha
sido tal que, senão tivesse havido, a manifestação de vontade da outra pessoa não teria
137
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil, Volume III, Tomo I. Sálvio de
Figueiredo Teixeira (coordenador). 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 135.
51
ocorrido”.138 Ele se caracteriza, assim, como um liame causal entre a maquinação dolosa
dirigida contra a vítima e o seu aprazimento na constituição do negócio jurídico.
Alguns autores entendem que somente o dolo principal, causa determinante do
negócio jurídico, deve ser considerado um vício de consentimento, ao argumento de que o
dolo acidental, por ser incapaz de exercer influência decisiva no íntimo querer do lesado,
seria um ato ilícito, “que gera, para seu agente, uma obrigação de reparar o prejuízo
causado à vítima”.139 Silvio de Salvo Venosa comunga desse pensamento, a dizer que “no
dolo essencial há vício do consentimento, enquanto no dolo acidental há ato ilícito que gera
responsabilidade para o culpado”.140
Entretanto, essa opinião não parece aceitável e tampouco razoável. Reduzir-se a
dimensão interpretativa do dolo acidental de maneira a amoldá-lo na idéia de ilícito negocial
constitui um desvio de perspectiva. É porque o distanciamento do íntimo querer da
declaração invariavelmente implicará num vício de consentimento, independentemente do
papel determinante que a maquinação mendaz exerceu para a adesão da vítima ao
negócio. Dito de outra forma, a única distinção que importa, neste caso, diz com os efeitos
decorrentes das manobras concebidas para extorquir a declaração negocial da vítima,
porque, seja principal ou meramente acidental, ainda assim o ato doloso terá subtraído a
expressão consciente da vontade do declarante, constituindo, por conseguinte, um
autêntico vício de consentimento, o qual facultará ao lesado, conforme as circunstâncias do
caso concreto, a anulação do negócio jurídico ou simplesmente a reparação do prejuízo.
Não há, por tais motivos, nenhuma distinção de grau ou de intensidade entre o dolo
principal e o dolo acidental, senão a importância causal de um e outro para a determinação
138
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado, Tomo IV. 1ª edição atualizada. São
Paulo: Bookseller, 2000, p. 392.
139
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 194.
140
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil, Vol. 1. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2003, p. 445. No mesmo sentido:
AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 491 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 135.
52
do assentimento da vítima. A opinião de Cossio y Corral em nada discrepa desse
entendimento, como se vê transcrito abaixo:
A nosso juízo, tanto o dolo essencial ou principal como o
incidental, são da mesma gravidade e natureza,
diferenciando-se um do outro somente quanto ao objeto:
se este é um elemento essencial do negócio, haverá dolo
principal, e o contrato será nulo, se é algum elemento
secundário, dolo incidental, que dará lugar tão só a
141
indenização por perdas e danos.
A dicotomia entre o dolo principal e o dolo acidental foi consagrada expressamente
pelo Código Civil, como se vê de seu artigo 145, cuja redação preconiza: “São os negócios
jurídicos anuláveis por dolo, quando este for a sua causa”.142
Com efeito, “o dolo é principal quando causa determinante do ato. Sem ele, o
deceptus não teria declarado a vontade; opera, assim, como fator decisivo na formação do
consentimento”,143 pois “conduz o agente à declaração de vontade, fundado naquelas
injunções maliciosas, o que de outra maneira dito significa que o dolo só tem o efeito de
anular o negócio jurídico quando chegue a viciar e desnaturar a declaração de vontade”,144
de modo que “a parte somente realiza o negócio jurídico porque foi enganada”.145 Cuidase, dessa maneira, da “causa eficiente do ato, sua única razão, o dolo que o origina e que
sem ele não se teria concluído”,146 “a força propulsora da manifestação da vontade
viciada”.147
Dolo acidental, dolo incidente, ou dolus incidens, é aquele que, a seu despeito, o
declarante teria consentido na formação do negócio jurídico, embora de forma diferente;
isto é, não fosse a manobra ardilosa empregada, ainda assim o declarante teria querido
141
COSSÍO Y CORRAL, Alfonso. Op. cit., p. 204 (tradução livre).
O Código Civil revogado previa: “Art. 92. Os atos jurídicos são anuláveis por dolo, quando este for a sua
causa”.
143
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 18ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 423.
144
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 360-361.
145
COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 335.
146
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso, 1º Vol., cit., p. 196.
147
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., p. 267.
142
53
concluir o contrato, só que de forma diferente. Eis a regra que o Código Civil Brasileiro
preconiza:
Art. 146. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas
e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o negócio
148
seria realizado, embora por outro modo.
A doutrina brasileira não discrepa, senão em pontos epidérmicos, da noção
conceitual e dos efeitos decorrentes da não-essencialidade do dolo na conclusão dos
negócios jurídicos. Arnoldo Wald observa que “o dolo acidental ou incidente é juridicamente
relevante, mas não torna o negócio anulável, podendo todavia o prejudicado
responsabilizar o culpado pelos prejuízos sofridos”.149 O dolus incidens é o que “não influi
como causa determinante da declaração de vontade, pois, a despeito dos expedientes
empregados, o ato se teria realizado, embora de outra maneira”.150
Neste mesmo sentido, tanto quanto à noção, quanto às conseqüências, Washington
de Barros Monteiro diz que “o dolus incidens (dolo incidente ou acidental) é aquele que leva
a vítima a realizar o ato, porém em condições mais onerosas ou menos vantajosas.”151 Em
outras palavras, “o dolo é acidental quando não afeta a declaração de vontade na sua
motivação, mas provoca desvios, que a modificam dentro de certos limites”.152 Fábio Ulhoa
Coelho, com conotação mais pragmática, propõe a distinção entre o dolo principal,
determinante da conclusão do negócio jurídico, e o dolo acidental da seguinte forma:
Quando a parte vítima do dolo não teria praticado o negócio
jurídico caso tivesse percebido, a tempo, o engodo, ele é
inválido. Se, por outro lado, a parte foi enganada acerca do
aspecto não-essencial do negócio ou de seu objeto, e o
teria praticado mesmo sabendo da verdade dos fatos, terá
direito de ser indenizada pelos danos que sofrer, preser153
vando-se a validade do negócio jurídico.
148
O Código Civil de 1916 dispunha: “Art. 93. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos. É
acidental o dolo, quando a seu despeito o ato se teria praticado, embora por outro modo”.
149
WALD, Arnoldo. Introdução e Parte Geral, cit., p. 203.
150
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Op. cit., p. 440.
151
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso, 1º Vol., cit., p. 196.
152
GOMES, Orlando. Introdução, cit., p. 423.
153
COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 335.
54
Vale a pena trazer à baila a lição de Silvio Rodrigues, à conta da notável didática e
simplicidade com que sintetiza as dessemelhanças entre os dolos causal e incidental e a
importância dessa distinção para o Direito Civil:
Nas duas hipóteses, existe a deliberação de um contratante
de iludir o outro. Na primeira, apenas o artifício faz gerar
uma anuência que jazia inerte e que de modo algum se
manifestaria sem o embuste; na segunda, ao contrário, o
consentimento viria de qualquer maneira, só que, dada a
incidência do dolo, o negócio se faz de maneira mais
onerosa para a vítima do engano. Naquela, o vício do
querer enseja a anulação do negócio; nesta, o ato ilícito
154
defere a oportunidade de pedir reparação do dano.
Assunto intrincado é distinguir o dolo principal daquilo que se deve ter por dolo
acidental, tendo em vista a imprecisão dos lindes que separam essas figuras e a natural
dificuldade de se investigar o verdadeiro querer da vítima, que nasce e toma forma nas
profundezas imponderáveis do pensamento humano. “De qualquer forma, a diferenciação
entre essas duas modalidades é árdua. A tarefa cabe ao juiz que a examina no
sopesamento das provas”.155 Caio Mário da Silva Pereira, a outro tanto, adverte:
A distinção entre o dolo principal e o dolo incidente é sutil, e
às vezes difícil de se conseguir na prática. A questão
deverá ser solvida assentando-se que é de ser deixado ao
prudente arbítrio do juiz fixar quando ocorre o dolo principal,
conducente à anulação do ato, ou quando incidente o dolo,
impositivo de perdas e danos apenas, e aplicá-los, flexível e
humanamente sob a inspiração de uma exigência de
156
moralidade para os negócios.
É forçoso lembrar que o Código Civil, antes mesmo de exortar o intérprete a valer-se
da boa-fé objetiva como instrumento de interpretação dos negócios jurídicos e como
parâmetro valorativo do comportamento das partes, estabelece no artigo 112 que “nas
154
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 194.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 446.
156
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 361.
155
55
declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao
sentido literal da linguagem”.157
Em última análise, importa aqui, mais do que em outros pontos, o bom senso e a
prudência do julgador, a quem não será consentido furtar-se da análise das particularidades
da hipótese concreta e das condições pessoais de quem se arroga vítima do engano, mas
que tampouco deverá desconsiderar os elementos objetivos exteriorizados pelo negócio
contratual, sob pena de se imiscuir em conjeturas e ilações que transformariam a atividade
interpretativa num ato divinatório ou numa comédia de erros. Desse modo, ao juiz tocará a
tarefa de reconstruir o conteúdo típico do negócio em conformidade com a sua função
econômico-social, de modo que os efeitos jurídicos que busca produzir possam se alforriar
da influência do império absoluto da vontade para ancorarem-se nas exigências éticas da
coletividade.
Essa linha de interpretação constitui um modo de ver que transcende o plano
subjetivo do negócio e valoriza a função típica que visa a exercer no meio coletivo. Trata-se,
como já se viu, daquilo o que Emílio Betti chamou de tipicidade social, consistente na
adequação do ato negocial às expectativas econômicas e éticas da sociedade. Em tais
condições, a tipicidade social, quer dizer, a função econômica e socialmente relevante
desempenhada pelo negócio jurídico, é o nexo de ligação entre o exercício da prerrogativa
conferida pela autonomia privada e os efeitos que a ordem jurídica supõe dignos de
tutela.158
Francisco Amaral igualmente propõe uma metodologia interpretativa que vai além
do critério subjetivo, que fica a meio caminho das intempéries voluntaristas e da implacável
prevalência do elemento declarado, concluindo que a única via possível é a precedência
157
A codificação revogada dispunha que: “Art. 85. Nas declarações de vontade se atenderá mais à sua
intenção que ao sentido literal da sua linguagem”.
158
BETTI, Emilio. Op. cit., p. 76-77.
56
dos critérios que valorizam a confiança e a responsabilidade que as partes devem assumir
quando da declaração de vontade. Essas as palavras do autor:
A interpretação que adotar o critério subjetivo, procurando a
intenção pura dos declarantes, desenvolverá uma pesquisa
histórica, visando reconstruir o pensamento e os objetivos
dos declarantes. Já a interpretação que adote o critério objetivo buscará um sentido, um significado preciso, concreto,
contido na declaração negocial, independentemente da
vontade psicológica dos agentes.
Essas duas tendências opostas são temperadas por duas
posições intermediárias, respectivamente, a teoria da responsabilidade – segundo a qual o declarante é responsável, se agir com culpa, pelos prejuízos causados ao destinatário – e a teoria da confiança, que afirma ser válida a
declaração conforme a confiança que tenha despertado no
destinatário. A esses critérios deve-se acrescentar o princípio da boa-fé que traduz a ‘correção, a lisura, retidão ou
lealdade recíproca com que as pessoas devem agir no
exercício dos seus direitos ou no cumprimento de suas
obrigações.
Tais critérios, o respeito à boa-fé e à confiança dos destinatários, assim como a responsabilidade de declarante,
devem combinar-se no sentido de se precisar a intenção do
agente consubstanciada na declaração, não a simples
intenção ou vontade interna, psicológica. A interpretação
jurídica não deve procurar a vontade interna das partes,
mas sim a vontade expressa objetivamente na declaração,
159
com o sentido que for objetivo para as partes.
De qualquer modo, a plausibilidade jurídica da distinção entre o dolo principal e o
dolo acidental, que há muito acompanha a tradição jurídica brasileira, e a sua perspectiva
atual – particularmente em razão da entrada em vigor do novo Código Civil, que consagrou
diversos princípios e cláusulas gerais voltados à valorização da boa-fé e da confiança nas
relações contratuais e das expectativas sociais despertadas pelos negócios jurídicos no
meio coletivo – é assunto que será pontualmente revisto à frente, no capítulo 3, item 3.2.
2.3. O SILÊNCIO INTENCIONAL
Além dos atos comissivos, positivos, empregados com o fito de induzir uma pessoa
à conclusão de um negócio jurídico, as condutas omissivas também podem caracterizar,
159
AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 407.
57
em dadas circunstâncias, o dolo civil. “O ato doloso pode ser positivo ou negativo. Basta
deixar-se de comunicar a falsidade, se a pessoa está em erro. Se ela, se soubesse, não
manifestaria a vontade, e o agente sabe, dolo há.”160
O dolo apresenta-se sob várias modalidades. Pode ser
positivo ou comissivo, quando consiste em uma ação
enganadora, e negativo ou omissivo, quando se traduz em
uma omissão, um silêncio, do declaratário ou de terceiro,
do erro do declarante, quando existia dever de elucidá-lo.
Neste caso, é preciso que o silêncio intencional da parte
seja de tal importância que, sem ele, o ato não se teria
celebrado (CC, art. 94). O legislador equiparou a omissão
161
dolosa à ação dolosa.
Chama-se dolo por omissão, silêncio intencional, ou dolo negativo, o silêncio
consciente que uma das partes mantém a respeito de algum fato ou circunstância que a
outra ignora, a qual, acaso conhecida, impediria a formação do contrato ou, então,
implicaria na modificação das suas condições gerais.162 O Código Civil Brasileiro preconiza:
Art. 147. Nos negócios jurídicos bilaterais, o silêncio
intencional de uma das partes a respeito de fato ou
qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui
omissão dolosa, provando-se que sem ela o negócio não
163
se teria celebrado.
Silvio de Salvo Venosa prefere definir o silêncio intencional como “a ausência
maliciosa de ação para incutir falsa idéia ao declaratário”.164 Vale dizer:
O mecanismo psíquico do dolo, por ação ou omissão, é o
mesmo, e se verifica na utilização de um processo malicioso de convencimento, que produza na vítima um estado
de erro ou ignorância, determinante de uma declaração de
165
vontade que não seria obtida de outra maneira.
Dentro dessa perspectiva, a doutrina aponta quatro elementos que devem coexistir
para caracterizar o dolo por omissão, extraídos da exegese do artigo 147 do Código Civil
160
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 396.
AMARAL, Francisco Amaral. Op. cit., p. 490.
162
RIPERT, Georges. Op. cit., p. 101.
163
O Código Civil de 1916 tinha a seguinte redação: “Art. 94. Nos atos bilaterais o silêncio intencional de uma
das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se
que sem ela se não teria celebrado o contrato”.
164
VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 447.
165
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 360.
161
58
atual e do artigo 94 da codificação de 1916, quais sejam: a) a intenção de induzir o
declarante a se desviar de seu íntimo querer; b) o silêncio acerca de circunstância ignorada
pelo declarante; c) a relação de causa e efeito entre a reticência do agente e a conclusão
do negócio jurídico; d) e que a omissão dolosa tenha sido praticada pelo próprio
participante do ato negocial e não por terceiro.166 A bem da verdade, a menção aos
elementos característicos do dolo por omissão tem um mérito muito mais didático do que
necessariamente hermenêutico, porque a análise do comportamento omissivo e da sua
influência para a celebração do ato negocial fica a cargo de um critério valorativo fincado
nos postulados de boa-fé e de confiança que devem presidir as relações contratuais. Isto é,
segundo Emilio Betti, “no ambiente social hodierno, sensível às exigências de solidariedade
civil, as partes devem, em todo o caso, comportar-se segundo as regras de correção.”167
O dolo por omissão constitui o silêncio sobre uma circunstância que, por força da lei,
pelos usos do comércio ou em decorrência da natureza do negócio, o contratante reticente
era obrigado a revelar a outra parte. Assim deve ser porque, aos olhos do Direito, é
indiferente a natureza positiva ou negativa da tramóia empregada pelo enganador,
bastando que ela tenha sido suficientemente intensa para extorquir da vítima uma
declaração de vontade em desconformidade com aquilo o que lhe inspirava o íntimo
querer. Veja-se, a propósito, a acertada ponderação de Caio Mário da Silva Pereira:
Pode alguém proceder de maneira ativa, falseando a
verdade, e se diz que procede por ação ou omissão. Mas é
igualmente doloso, nos atos bilaterais, o silêncio a respeito
de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, a
sonegação da verdade, quando, por omissão de
circunstâncias, alguém conduz outrem a uma declaração
proveitosa a suas conveniências, sub conditione, porém de
168
se provar que sem ela, o contrato não se teria celebrado.
166
Neste sentido: GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit., p. 363; LOPES, Miguel
Maria de Serpa. Op. cit., p. 440; AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 490, nota n. 18; e VENOSA. Sílvio de Salvo.
Op. cit., p. 447. Silvio Rodrigues aponta esses quatro elementos do dolo negativo e ainda acrescenta outro: a
imprescindibilidade da bilateralidade do negócio jurídico (RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 197).
167
BETTI, Emílio. Op. cit., p. 359.
168
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 360.
59
Com efeito, “a reticência é omissão dolosa (dolo passivo ou omissivo), sempre que
o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra haja
ignorado seja a causa da celebração do contrato, que, sem essa omissão, não seria
estipulado”.169 De igual modo Enzo Roppo diz que:
O engano pode assumir, segundo as circunstâncias, formas diversas: pode tratar-se de uma pura e simples mentira; pode consistir numa mentira acompanhada de uma ‘emcenação’ mais ou menos complexa, idônea a conferir-lhe
credibilidade; pode, também, identificar-se com o silêncio
ou a reticência: mais precisamente, com o silenciar, ou como o deixar na ambig6uidade, fatos que – em consideração das circunstâncias e das relações existentes entre as
partes – deveriam ter sido, pelo princípio de boa fé précontratual (...), comunicados à outra parte, ou então
170
esclarecidos.
De mais a mais, também se deve compreender como dolosa a exploração do
engano involuntário da vítima, que acontece quando o sujeito aproveita-se desse engano
ou mantém conscientemente o co-contratante em erro, deixando de alertá-lo sobre o falso
juízo que faz acerca de alguma circunstância relevante do negócio. Neste caso, a omissão
dolosa não é empregada para induzir a vítima a erro, isto é, para fazer nascer um engano
em benefício do destinatário da declaração, mas para afastá-la da melhor ou inteira
compreensão da realidade.
Esse assunto – dada a sua importância na atualidade, que deixou de considerar a
lealdade, a boa-fé e a probidade como simples preceitos morais recomendáveis aos
contratantes a fim de consagrá-los expressamente em nossa ordem jurídica como
autênticos deveres que devem se estender ao longo de toda a atividade contratual – será
mais uma vez abordado no item 3.3, quando a interpretação clássica do dolo por omissão
será confrontada com as mais recentes diretrizes negociais do Direito Civil.
169
170
GOMES, Orlando. Introdução, cit., p. 423.
ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 239-240.
60
2.4. O DOLO PRATICADO POR TERCEIRO
Toda vez que os expedientes maliciosos determinantes da conclusão do contrato
são praticados por pessoa estranha à relação negocial, ou seja, quando provierem “de
quem não seja parte do negócio jurídico”,171 diz-se cuidar-se de dolo de terceiro, eis que
“pode ocorrer, contudo, que terceiro fora da eficácia direta do negócio aja com dolo”.172 A
noção de terceiro é restrita, compreendendo tão-só aquele que se afigura efetivamente
estranho à relação contratual, porquanto, segundo Ana Luiza Maia Nevares, “deve ser
entendido como terceiro somente quem não intervém direta, nem indiretamente no
negócio, sendo contraente tanto aquele que estipula em pessoa quanto o que intervém no
ato por meio de representante”.173
Como se trata de um comportamento engendrado por pessoa estranha ao laço
contratual, não se há falar na anulação do negócio jurídico sempre que o ato doloso tiver
origem na conduta de terceiro. Isso se deve porque, não fosse assim, no afã de preservar o
querer íntimo da parte enganada, o ordenamento jurídico poria a perder a expectativa
legítima e a confiança que a contraparte depositou no negócio. Como dizem os usos
populares, seria o mesmo que “dar com uma mão para tirar com a outra”. Por tais motivos
é que “de regra, o dolo que conduz à ineficácia do ato é o que provém da outra parte, e não
de terceiro, cujo procedimento fundamentará apenas a obrigação de indenizar o
prejudicado”.174 Isto é, “se o dolo foi de terceiro e o figurante não soube do que se passou,
o ato jurídico não é anulável por dolo. Se o figurante soube do dolo do terceiro, o que foi
171
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 147.
VENOSA. Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 448.
173
NEVARES, Ana Luiza Maia. O erro, o dolo, a lesão e o estado de perigo no novo Código Civil. A Parte Geral
do Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional. Gustavo Mendes Tepedino (organizador)...
et al. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 269.
174
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 361.
172
61
vítima pode pedir a anulação”.175 “O dolo não constitui uma causa de anulação do ato a
não ser quando os artifícios foram praticados pela outra parte contraente, ou pelo menos
que ela tenha participado nele, direta ou indiretamente”.176 Oportuna, a propósito dessa
idéia, a opinião de Roberto de Ruggiero:
É, porém, necessário que o dolo, se teve lugar num
negócio jurídico bilateral, provenha da outra parte, pois
desde que provenha de um terceiro que lhe seja estranho,
é irrelevante quanto à validade do negócio e apenas poderá
dar lugar a uma ação de indenização contra o terceiro autor
do engano, isto ao passo que quanto às relações dos
contraentes entre si tem influência exclusiva (podendo até e
porventura anular o ato, nos casos extremos) o erro
originado pelo dolo. Por outro lado, entende-se que, ainda
quando usado por um terceiro, o dolo constitui motivo de
anulação quando o outro contraente o conhecia, quando
177
para vantagem própria nele comparticipa.
O dolo arquitetado pelo terceiro não permite a anulação do negócio jurídico, embora,
conforme as circunstâncias do caso, a parte prejudicada possa fazer jus à reparação do
prejuízo sofrido. Porém, o negócio jurídico será anulável sempre que a parte a quem a sua
conclusão aproveita soubesse, ou tivesse meios para saber, do artifício ludibriante
assestado pelo terceiro. A regra escrita no Estatuto Civil é essa:
Art. 148. Pode também ser anulado o negócio jurídico por
dolo de terceiro, se a parte a quem aproveito dele tivesse
ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que
subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas
178
as perdas e danos da parte a quem ludibriou.
Vê-se, destarte, que o Código Civil atual assomou um importante avanço no trato
normativo do assunto, porque estendeu o espectro de atuação da vontade da lei para além
dos casos em que a parte beneficiada tinha conhecimento, abarcando também aqueles em
175
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 399.
SANTOS, J.M. de Carvalho. Op. cit., p. 333.
177
RUGGIERO, Roberto de. Op. cit., p. 347.
178
O Código Civil decaído previa: “Art. 95. Pode também ser anulado o ato por dolo de terceiro, se uma das
partes o soube”.
176
62
que devesse ter conhecimento do ardil feito pelo terceiro no intuito de influenciar a
determinação do aprazimento da vítima.
O aproveitamento de que cogita a lei, obtido por aquele a quem se dirige a
declaração de vontade, não se refere necessariamente à conquista de um ganho
econômico, mas ao próprio convencimento ou indução na conclusão do negócio jurídico,
donde inferir-se que “o benefício pode consistir no simples interesse na realização do
negócio, embora sem vantagem patrimonial”.179
No Direito Civil francês, a interpretação do dolo nos contratos – particularmente em
razão da originalidade histórica do Code Civil e da importância que atribui ao elemento
psíquico dos atos jurídicos em geral – possui uma forte ascendência romanista. Essa
compreensão do dolo civil deve-se ao seu caráter delituoso, que suscitou no âmbito
doutrinário e jurisprudencial a sua associação com as idéias de responsabilidade e de boafé. Dessa forma, a anulação dos contratos contaminados pelo vício doloso dispensaria uma
ênfase menor para a maquinação maliciosa praticada, que induziu a vítima a consentir na
conclusão do negócio, que ficaria centrada nos objetivos de punição do autor do dolo e de
reparação dos danos causados.180
No entanto, por influência do Direito Canônico, o aspecto delituoso do dolo nos
negócios jurídicos foi amainado em detrimento da perspectiva valorativa da vontade das
partes. O dolo, portanto, abandonou o seu caráter preponderantemente ilícito para, à
semelhança do erro, ser enquadrado como um vício de consentimento, estribado na
discrepância entre a vontade real e a declaração e remediado pela sanção de nulidade
relativa da convenção contratual. A despeito disso, ainda hoje a natureza ilícito-penal do
dolo nos contratos representa um elemento sensível na ordem jurídica francesa, tendo em
179
AMARAL, Francisco, Op. cit. p. 491.
LARROUMET, Christian. Op. cit., p. 304-305; TERRÉ, François; SIMLER; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p.
188.
180
63
vista que “o exame do juiz aplica-se muito menos sobre o consentimento da pessoa que foi
enganada do que sobre o ato daquela que enganou.”181
Por tais razões é que o modelo francês, secundado por diversas legislações
ocidentais, considera imprescindível à anulação do ato a prova de que o comportamento
doloso proveio de uma das partes, donde excluírem-se, dessa forma, as artimanhas
maliciosas arquitetadas por terceiros.
Neste sentido, a Corte de Cassação da França já decidiu reiteradas vezes ser
imprescindível que as manobras dolosas sejam diretamente imputáveis ao co-contratante,
pois, quando provenientes de terceiro, só é dado à vítima pleitear perdas e danos,182
sobretudo porque assim o exige o artigo 1116 do Code.183 Dessarte, “o dolo é uma causa
de nulidade emanada do co-contratante (art. 1116). Se ele é um fato de terceiro, dará lugar
unicamente às perdas e danos”.184
Fica evidente, portanto, o caráter punitivo que ainda hoje impregna a interpretação
do dolo como causa anulatória dos negócios jurídicos, inclusive entre nós, visto que, não
fosse assim – e quisesse a lei tão-só proteger a correlação entre a vontade interna e a
declaração –, a sanção de anulação seria imposta independentemente do expediente
malicioso ter partido ou não de pessoa estranha ao vínculo contratual.
Realmente, “se se tratasse unicamente da alteração do consentimento da vítima,
pouco importaria a personalidade do autor do dolo”,185 mormente porque, no plano
psicológico, “o dolo de um terceiro pode ter exercido, sobre a vontade da vítima, a mesma
influência determinante que o do co-contratante”.186
181
RIPERT, Georges. Op. cit., p. 100.
Câmara Comercial, julgamento de 10 de março de 1981, Bull civ., IV, nº 128, p. 99 (TERRÉ, François;
SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 188).
183
Câmara Comercial, julgamento de 23 de novembro de 1993, Bull civ., nº 421, D. 1994. (Idem. Op. cit., p.
188).
184
Idem. Op. cit., p. 100. No mesmo sentido: RIPERT, Georges. Op. cit., p. 100.
185
RIPERT, Georges. Op. cit., p. 100.
186
FLOUR, Jacques; AUBERT, Jean-Luc. Op. cit., p. 144 (tradução livre).
182
64
No Direito brasileiro, antes da entrada em vigor da codificação atual, o dolo
suscetível de anular os negócios jurídicos era aquele que provinha de uma das partes ou
de um terceiro, com o conhecimento daquelas. Orlando Gomes explicou:
A vontade maliciosa que determina o erro pode ser do outro
contratante, ou de terceiro. Somente quando o dolo é
praticado por uma das partes, dá causa à anulação do
contrato. Assim também deveria ser quando emanasse de
187
terceiro, mas o é, apenas, se a parte o conheceu.
De se ver que, no período que antecedeu a primeira codificação civil, a tendência da
doutrina brasileira inclinava-se a recusar esse traço característico do dolo, haja vista que,
independentemente da origem da empreitada maliciosa, a presença desse fator desviante
da manifestação de vontade deveria bastar para a anulação do negócio.
Martinho Garcez ressentia-se da opção legislativa dos códigos francês e italiano, os
quais só toleravam a alegação de invalidade dos contratos quando o comportamento
doloso proviesse das partes ou de um ato praticado por terceiro com o conhecimento de
qualquer delas:
Apesar do respeito que nos merecem esses dois venerandos monumentos da sabedoria jurídica do século passado,
não nos parece aceitável a distinção e nem nos convencem
as razões com que alguns escritores procuram justificá-la,
porque, ou seja o dolo praticado por uma das partes
contratantes, ou seja por um terceiro, ele vicia o contrato na
sua essência, por falta de exato conhecimento de causa ou
de objeto, dando lugar ao erro, vicio insanável de todo
188
contrato.
A única maneira de se eliminar esse aparente paradoxo no quadrante normativo dos
defeitos dos negócios jurídicos é reconhecer que, em matéria de dolo, se é verdade que a
sanção anulatória busca tutelar a conformidade entre a vontade interna e a declaração,
também é certo que, em casos tais, o fundamento da anulação do ato negocial transcende
a simples salvaguarda da exatidão do ato de vontade para desvelar um juízo de desvalor
187
188
GOMES, Orlando. Introdução, cit., p. 421.
GARCEZ, Martinho. Op. cit., p. 216.
65
reagente ao aspecto delituoso do comportamento daquele que usou de uma tramóia para
induzir a contraparte ao erro. “Na realidade, a instituição do dolo não tende unicamente a
proteger a vítima, mas se mostra como uma ‘punição-sanção’ que o próprio Código civil,
pela formulação do artigo 1116, reserva ao co-contratante culpado”.189
Ademais, mesmo que se abstraísse a irrefutável conclusão de que, em tais
hipóteses, a ordem jurídica privilegia menos a correlação entre o íntimo querer e a vontade
declarada para dar maior ênfase ao aspecto delituoso e ilícito do enganador, ainda assim, a
bem da segurança das relações jurídicas, a opção legislativa que interdita a anulação do
contrato quando o dolo provém de terceiro parece acertada e plausível. Nesse caso, o
ordenamento jurídico tolerou um mal menor (a manutenção de um negócio celebrado por
conta de um ato doloso engendrado por terceiro) para evitar um mal maior (abalo das
relações jurídicas e frustração das expectativas legítimas despertadas no meio social).
Com inteira razão, a esse propósito, Enzo Roppo observa que, no caso do dolo
praticado por terceiro, “a lei considera prevalente o interesse à tutela da confiança (que é –
repete-se – tutela da posição individual de uma parte da relação, mas, mais ainda, tutela do
interesse geral do sistema a uma segura, e por isso dinâmica, circulação da riqueza)”190.
Assim, por igual, a anotação de Humberto Theodoro Júnior:
Se, então, a parte não conhece o dolo que terceiro
empregou sobre o co-contratante, nem tem elementos para
suspeitar de sua existência, não há como privá-lo das
vantagens jurídicas que o negócio lhe proporcionou. Nesse
sistema, antes de proteger quem erra, fortuita ou
dolosamente, é preciso examinar a situação do outro
contratante, para que a tutela de um não se transforme em
191
castigo imerecido de outrem.
189
BETOULLE, Jérôme. Op. cit..
ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 241.
191
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 149.
190
66
Porém, quando se cuida do dolo praticado no intuito de formação de um negócio
jurídico unilateral ou de um contrato unilateral, notadamente nos casos de testamento192 e
de doação,193 o assunto é cuidado de modo diferente. Isso se deve porque, nos atos
gratuitos, a par da natureza desinteressada e espontânea do negócio, o consentimento do
autor da liberalidade deve estar cercado de maior proteção.
Realmente, nos atos benéficos, como não há prestações co-respectivas e somente
uma das partes experimenta um sacrifício econômico, ao passo em que a outra só recolhe
vantagens, é natural que o respeito à harmonia entre o que se quis e o que se disse querer
seja mais intenso. Diria, por conta disso, Georges Ripert
A jurisprudência mostra-se particularmente severa nestes
atos para apreciar a liberdade da vontade expressa pelo
doador. Anula por sugestão ou captação as liberalidades
ditadas por manobras artificiosas ou alegações falsas, quer
estas manobras ou alegações emanem do próprio
194
donatário ou dum terceiro qualquer. .
Pontes de Miranda destacava que “em se tratando de manifestações nãoreceptícias de vontade, não há pensar-se em alter: o ato jurídico irradia a sua eficácia, a
192
Segundo Orlando Gomes: “Nos negócios unilaterais, o dolo há de provir necessariamente de outrem que
não o agente. Modalidade interessante do dolo é a que pode ocorrer no testamento sob a forma de captação.
Aquele que emprega artifícios ou maquinações para que o testador o contemple age dolosamente” (GOMES,
Orlando. Introdução, p. 421, nota n. 11).
193
Sob a perspectiva normativa do Código Civil Francês, a doação não é um contrato, mas um ato jurídico
catalogado no Título II do Livro III como uma das “diferentes maneiras de se adquirir a propriedade”, ao lado
dos testamentos. A razão primordial disso se deve à controvertida questão da aceitação nas doações puras. De
acordo com Paulo Luiz Netto Lôbo, “diante da realidade existencial de doações feitas sem necessidade de
aceitação, o chamado Código Napoleônico, que tanta influência exerceu sobre as codificações ulteriores, optou
por excluir a doação do elenco dos contratos. Vivia-se o momento da exasperação da vontade individual, da
conseqüente sacralidade do esquema clássico do contrato, assentado nas vontades livres de ofertar e aceitar,
sendo compreensível a perplexidade ante um instituto com pretensão a ser concebido como contrato, mas que
dispensava a aceitação em determinadas situações” (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Comentários ao Código Civil,
Volume 6. Antônio Junqueira de Azevedo (coordenador). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 279-280). Planiol e Ripert
anotam que o projeto original do Code regulamentava a doação como um contrato. Durante a tramitação do
projeto perante o Conselho de Estado, o Primeiro Cônsul, Napoleão Bonaparte, exigiu a sua alteração sob a
alegação de que um contrato “impõe obrigações recíprocas aos contratantes”, o que não seria aplicável no
caso da doação, em que somente o doador se obriga, sem nada receber em retorno (RODRIGUES, Silvio.
Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 185 -186, nota n. 183).
194
RIPERT, Georges. Op. cit., p. 290.
67
favor de alguém, que talvez o ignore. Por conseguinte, há a anulabilidade por dolo, ainda
que de terceiro e ignorando-o o beneficiado.”195 De fato:
A regra do art. 148 se refere especificamente aos negócios
bilaterais, como o contrato. Neles é que o dolo só atua
como causa de anulação quando a parte a que aproveita,
dele tenha tido, ou devesse ter conhecimento. Nos
negócios unilaterais, como a renúncia à herança ou
reconhecimento de paternidade, não há outro contratante a
se apontar como o sujeito da relação jurídica que irá se
aproveitar do dolo alheio. Não quer isso dizer, todavia, que
seja irrelevante o dolo de terceiro sobre a vontade
declarada em negócio unilateral. O que não ocorre é a
196
submissão da espécie às exigências do art. 148.
O dolo de terceiro nos negócios gratuitos normalmente se expressa pela captação
da vontade ou sugestão, o que a jurisprudência francesa define como manobras desleais
dirigidas contra o declarante com o fim de persuadi-lo a consentir na conclusão dum ato de
liberalidade.197 Isso se deve porque os atos de liberalidade, à vista do caráter gratuito e de
sua inspiração motivada por intuito contemplativo ou de reconhecimento do merecimento
do destinatário, devem ser animados por uma manifestação de vontade absolutamente
espontânea e compatível com o íntimo querer do declarante, livre de peias e íntegra em
sua pureza, como pondera Georges Ripert:
O Código Civil faz dos atos a título gratuito uma categoria
que obedece a regras especiais. Impõe, neste caso, o
respeito do pensamento desinteressado, exigindo do
doador uma consciência particular do seu ato (art. 901),
uma capacidade especial (arts. 904-905), um sacrifício
irrevogável (art. 894), pedindo ao donatário gratidão para
com o doador (art. 955), protegendo a família deste contra
198
as liberalidades excessivas (art. 913 e segs.).
A espontaneidade que deve estar presente nos atos de liberalidade justifica que se
atribua ao dolo praticado por terceiro uma importância diversamente maior da que se tem
nos negócios que envolvem trocas recíprocas de prestações. Assim sendo, a par da
195
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 390.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. citl, p. 153.
197
LARROUMET, Christian. Op. cit., p. 317.
198
RIPERT, Georges. Op. cit., p. 290.
196
68
natureza benéfica do ato, o ordenamento jurídico busca tutelar de maneira mais intensa a
boa-fé do declarante, de modo a atingir os comportamentos dolosos que, embora
provenientes de terceiros e desconhecidos do alvo da liberalidade, tenham bastado para
induzir a aceitação do declarante. Bem de ver, a propósito, o exemplar acórdão da 12ª
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, assim ementado:
TESTAMENTO PÚBLICO – ANULAÇÃO DO TESTAMENTO – CAPTAÇÃO DA VONTADE DO ESTADOR – DOLO
– CARACTERIZAÇÃO – LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – INOCORRÊNCIA
Testamento público. Anulação do ato. Captação dolosa da
vontade da testadora. Caracterização. Acervo probatório inconteste. Inocorrência. Litigância de má-fé. Recurso parcialmente provido.
O planejamento de maliciosa captação da vontade da testadora, implementada por pessoas que, além de exercerem a
administração de seus imóveis, passaram a gerir toda a
situação financeira da finada, buscando, por diversos meios, inclusive psicológicos, dirigir sua livre manifestação volitiva, é causa suficiente para ensejar a anulação do testamento resultante de ato doloso.
Acervo probatório aos autos colacionado demonstra, de
modo inequívoco, que as apelantes muniram-se de inumeros artifícios para, ao final, obterem vantagem ilícita na
199
sucessão da falecida testadora.
As razões de decidir desse julgado enfatizaram com muita clareza a importância
que natureza gratuita do negócio possui para a interpretação do caráter decisivo e
determinante do comportamento malicioso do terceiro:
Desse modo, se além de exercer a simpatia pessoal o
captador reforça seus atos persuasivos com medidas
fraudulentas, configura-se de pronto a hipótese de captação
dolosa, e o ato é passível de anulação. O que se procura
combater não é a captação, mas o dolo.
Assim é que, nesse contesto, alguns jurisperitos têm, com
exemplos, procurado caracterizar o sentido dessas
manobras dolosas, capazes de tornar anulável o ato de
última vontade, incluindo, entre elas, as mentiras, as
calúnias levantadas contra herdeiros legítimos, a
interceptação de cartas, o abuso de influência ou de
autoridade, o afastamento propositado de membros da
família e dos amigos do testador, a despedida de seus
criados, a ingerência assídua em seus negócios etc.
199
TJ-RJ, 12ª Câmara Cível, Apelação Cível n. 3.846/2000, Relator Desembargador Wellington Jones Paiva, j.
10.10.2000.
69
Desse jeito, em decorrência do caráter não oneroso e desinteressado dos negócios
gratuitos, a pureza da expressão da vontade do declarante é um signo indicativo da
espontaneidade do ato de liberalidade, o que justifica maior rigor na interpretação da
influência da conduta dolosa de terceiros no afã de conseguir o aprazimento do declarante.
2.5. O DOLO DO REPRESENTANTE
O dolo do representante é aquele decorrente da conduta empreendida por quem a
lei ou a parte confere poderes para atuar em seu nome, risco e proveito. O dolo que
provém do representante difere fundamentalmente da atuação maliciosa de terceiro, pois
aquele, atuando nos limites concedidos pelos poderes de que está investido, faz com que
se considere o negócio jurídico concluído pelo próprio representado,200 ao passo que, no
último caso, as injunções maliciosas são praticadas por um estranho ao vínculo negocial.
Seria insensatez negar o avanço dogmático do Código Civil atual em relação ao
anterior, que não fazia distinção entre a representação legal, ou necessária, e a
representação convencional, dispondo que, em qualquer situação, o dolo do representante
de uma das partes só obrigava o representado até o montante do proveito econômico
obtido. Como se vê, o Estatuto Civil vigente, ao contrário, disciplina a matéria com maior
coerência e eqüidade:
Art. 149. O dolo do representante legal de uma das partes
só obriga o representado a responder civilmente até a
importância do proveito que teve; se, porém, o dolo for do
representante convencional, o representado responderá
201
solidariamente com ele por perdas e danos.
200
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit. p. 270.
A redação do Código Civil de 1916 era a seguinte: “Art. 96. O dolo do representante de uma das partes só
obriga o representado a responder civilmente até a importância do proveito que teve”.
201
70
Infere-se que a repercussão sobre a validade do negócio jurídico será sempre a
mesma, quer se trate de comportamento doloso praticado por um terceiro no exercício de
representação legal, quer se cuide de caso de representação convencional. Quer dizer: a
anulação do contrato será deferida se o ato doloso for a causa do negócio, ou, então,
quando o dolo for acidental, haverá somente a reparação do prejuízo até o limite do
proveito conquistado por quem foi beneficiado pelo negócio.
À toda evidência, o novo trato legislativo do assunto parece muito mais justo e
conveniente, na medida em que busca equacionar o dever de reparação de danos em
conformidade com a participação causal de cada um dos partícipes do ato. A única
distinção que se deve fazer entre os efeitos do comportamento doloso do representante
necessário e do convencional é que, no último caso – quando a representação tiver origem
contratual – o representado responderá solidariamente com o representante pelo prejuízo
causado à parte lesada. Como resumiu Fábio Ulhoa Coelho:
Em se tratando, assim, de negócio jurídico marcado por
dolo acidental imputável a representante de uma das
partes, esta poderá vir a responder pelas perdas e danos
decorrentes limitada ou ilimitadamente, dependendo da
natureza da representação: enquanto o absolutamente
incapaz responde no limite do proveito que lhe trouxe o
202
negócio, o mandante responde ilimitadamente.
Silvio de Salvo Venosa enfatiza o acerto do legislador na edição do Código Civil ao
preconizar disciplinas jurídicas distintas para o dolo proveniente do representante legal e do
representante convencional, porquanto “é injusto que a lei sobrecarregue os representados
pelas conseqüências de atitude que não é sua e para a qual não concorreram”.203
A “raison d’être” dessa diferença de temperamento na atribuição de
responsabilidades deve-se à natureza contratual da representação convencional, que
permite presumir que o representado escolheu mal aquele a quem tocaria representá-lo no
202
203
COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 337.
VENOSA, Silvio de Salvo. Op. cit., p. 448.
71
negócio, caracterizando a chamada culpa in eligendo, resultante da escolha inadequada ou
negligente do representante.
2.6. A TORPEZA BILATERAL
O dolo bilateral, dolo de ambas as partes, ou, ainda, torpeza bilateral, ocorre toda
vez que os protagonistas do negócio se valem de práticas maliciosas com o objetivo de se
enganarem mutuamente na expectativa de conquistar vantagens. O dolo bilateral é
manifestado pelas práticas maliciosas reciprocamente engendradas pelas partes com o
intuito de se induzirem, reciprocamente, a erro. Assim é que o artigo 150 do Código Civil
prevê que “se ambas as partes procederem como dolo, nenhuma pode alegá-lo para
anular o negócio, ou reclamar indenização”.204
“Em tal hipótese, nenhuma das partes pode invocá-la em seu benefício, o dolo
comum é reciprocamente compensado”.205 Realmente, “se ambas as partes se houverem
reciprocamente enganado, compensam-se os dolos respectivos”206 e “verifica-se, nesse
caso, a neutralização”,207 com “a consagração da regra – nemo propriam turpitudinem
allegans”.208
A Lei Civil não faz distinção entre o dolo essencial, ou principal, e o dolo acidental
para proibir a alegação em juízo de fatos oriundos da torpeza bilateral das partes. É porque
a nossa tradição jurídica não distingue a intensidade ou a natureza determinante dos
expedientes fraudulentos, de maneira que quando ambos os agentes agem sob o signo do
dolo, nenhum nem outro poderá alegar qualquer coisa em juízo.
204
O artigo 97 do Código Civil de 1916 previa: “Se ambas as partes procederam com dolo, nenhuma pode
alegá-lo, para anular o ato, ou reclamar indenização”.
205
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso, 1º Vol., cit., p. 199.
206
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 362.
207
GOMES, Orlando. Introdução, cit., p. 424.
208
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Op. cit., p. 442.
72
Na verdade, o ordenamento jurídico visa a assegurar o primado da boa-fé, que seria
eliminado com o reconhecimento de uma demanda judicial assestada por quem foi
prejudicado na mesma medida em que também prejudicou. “Pouco importa que uma parte
tenha procedido com dolo essencial e a outra apenas com o acidental. O certo é que
ambas procederam com dolo, não havendo boa-fé, a defender”.209
É induvidoso admitir, aqui sim, que um irremediável paradoxo seria instalado no
ordenamento jurídico, porque se daria proteção jurídica a uma situação que contradiz o
próprio Direito e o senso de probidade e lealdade que deve cercar o comportamento das
partes. A final de contas, o que é antijurídico, à margem da legalidade, não pode ser digno
de nenhuma proteção jurídica.
O que se deve atentar é para a bilateralidade da infração
cometida. Se ambos os contratantes praticaram dolo
essencial, ambos teriam ação para invalidar o negócio, de
sorte que o direito potestativo de um se compensa com o
do outro; se ambos cometeram dolo acidental, cada qual
pode reclamar perdas e danos do co-contratante, e
também aqui se teria condições de falar-se em
compensação dos dolos; se um praticou dolo principal e o
outro dolo acidental, um teria direito de invalidar o contrato e
o outro teria direito de exigir do primeiro perdas e danos, e
mesmo não havendo inteira homogeneidade das
pretensões contrapostas, o certo é que as duas partes
procederam como recíproca má-fé, cada qual intentando
prejudicar a outra, o que seria suficiente para justificar a
210
retração da lei diante da torpeza bilateral.
À vista disso, como o efeito prático do dolo é subtrair a validade do negócio jurídico,
inclusive por conta de sua particular contrariedade à boa-fé, pareceria contraditório se o
Direito interviesse no afã de admitir o desfazimento de um contrato ou para proporcionar
uma indenização em prol de quem tanto foi enganado quanto enganou. Não fosse assim,
premiar-se-ia o contratante mais habilidoso na arte da solércia ou que tivesse em mãos um
leque maior de artimanhas. Pior seria, ainda, tentar-se proteger a parte menos culpada ou
decidir-se pela conduta mais dolosa, opções que sujeitariam a solução da lide a um
209
210
SANTOS, J. M. de Carvalho. Op. cit., p. 352.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 162-163.
73
irrealizável escrutínio pelos remotos rincões do psiquismo dos agentes e, no fim das contas,
poriam a boa-fé e os preceitos éticos que animam a vida em sociedade num inadmissível
plano secundário.
Por outro lado, semelhante raciocínio daria ao julgador um imenso poder de
investigação subjetiva para aferir a envergadura da participação maliciosa das partes na
formação do ato negocial, como se a predisposição de uma delas em aceitar o contrato
pudesse legitimar, aos olhos de nosso ordenamento jurídico, a conduta dolosa da outra. É
que “o juiz, ao abordar o pensamento da constante moralização das relações contratuais,
não mede cientificamente a força da vontade. Não se trata aqui dum problema de física,
mas do respeito pela moral”.211
Para melhor ilustrar, pense-se no caso de um sujeito que, a fim de adquirir a
qualquer custo um determinado imóvel, faz saber ao proprietário que o bem corre o risco
de desvalorização com a falsa notícia da construção de um prédio no terreno vizinho.
Receoso de uma perda patrimonial, o dono do imóvel concorda em vender o bem, mas, no
afã de obter um preço melhor, sonega ao comprador a informação de que a res vendita
está localizada numa área de constantes inundações. Ora, sem que se cogite de saber se
a mentira divulgada pelo comprador ou se o silêncio doloso do vendedor atuou como fator
decisivo para a formação do contrato, o fato é que ambas as partes se houveram com
malícia, em desconformidade com a boa-fé, cada qual querendo obter da contraparte uma
declaração de vontade desencontrada para conquistar uma vantagem indevida. É plausível
concluir, neste caso, que se ambas as partes agiram em contradição com o espírito de boafé e retidão que deve permear as relações contratuais, nada poderão pedir ou alegar, sob
pena de se legitimar, em juízo, o que o Direito quis reprimir.
211
RIPERT, Georges. Op. cit., p. 103.
74
Clóvis Bevilaqua, em convincentes linhas, sublinha o quanto supérflua e contrária ao
ordenamento jurídico seria a alegação em juízo do dolo bilateral:
A lei procura amparar a boa fé, contra os ardis maliciosos.
Quando não há boa fé a defender, porque ambas as partes
são culpadas, por se quererem prejudicar uma a outra, a lei
se retrai, ou somente intervém, quando o ato for criminoso.
Além disso, ninguém pode tirar vantagem do próprio dolo,
nem o direito pode dar apoio à malícia de uma para ferir a
da outra parte...
Estes casos se compensam dois a dois, a saber: o dolo por
omissão se compensa com o dolo por omissão ou comissão, e vice-versa; o dolo principal de uma parte se compensa com o dolo acidental ou principal da outra, e viceversa’. As distinções, que alguns autores faze, nesta mate212
ria, não se ajustam com o dispositivo do nosso Código.
O comportamento doloso de ambas as partes, com efeito, denota uma prática
indigna e incompatível com o padrão ético minimante exigido para o convívio no meio
coletivo, o que explica o tom implacável da regra do artigo 150 do Código Civil. Aliás, a
tônica dessa normativa é plenamente condizente com a idéia há muito conhecida entre
nós, que associa a aplicação da lei ao sentido de “dizer o Direito”, isto é, de atribuir ao caso
concreto uma solução conforme a ordem jurídica. Por tais razões, como a torpeza bilateral
é um fato que repugna ao Direito, não se afigura lícito, e muito menos justo, falar-se em
anulação ou em perdas e danos quando o negócio contratual é entabulado sob o signo da
atuação dolosa de ambas as partes, pelo que “quando ambos os contraentes se tenham
mutuamente enganado, nenhum deles pode agir contra o outro, compensando-se o dolo
de cada um com o do adversário”.213 Com razão a advertência de Silvio Rodrigues:
Velho preceito do direito romano, comum a várias legislações, estriba-se no princípio de que in pari causa turpitudinis cessat repetitio. Não se trata de compensação de
dolos, mas sim de desprezo do Poder Público, que fecha
os ouvidos ao clamar daqueles que, baseados em sua
214
própria torpeza, pretendem obter a proteção jurisdicional.
212
BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil, Volume I, cit., p. 276-277.
RUGGIERO, Roberto de. Op. cit., p. 347-348.
214
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 198.
213
75
Daí porque a ratio da lei foi prestigiar a atuação contratual revestida pelo senso
comum de retidão, boa-fé e probidade, de modo a evitar que alguém, que obrou com
malícia, se beneficie do próprio comportamento pretérito para pedir a anulação do negócio
ou o arbitramento de uma indenização. Quem ludibriou não pode censurar quem também o
ludibriou. “A regra do direito é a de que ninguém pode alegar em seu proveito a própria
torpeza. Portanto, quem agiu como dolo não pode invocá-lo para furtar-se aos efeitos do
ato jurídico”.215 Em outros termos: “quem dolo fez, por dolo não pode agir”.216
215
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Validade. 4ª edição. São Paulo: Saraiva,
2000, p. 136.
216
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 405.
76
CAPÍTULO 3 – REFLEXOS DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA NO DOLO CIVIL
3.1. O CHAMADO DOLUS BONUS
As linhas precedentes deixaram bastante claro que o dolo é um vício de
consentimento cuja configuração exige que os expedientes maliciosos ou as artimanhas
praticadas tenham gravidade e seriedade suficientes para incutir na vítima a intenção de
contratar. Esse pressuposto essencial à alegação do dolo civil é conhecido como dolus
malus, expressão latina que designa a conduta astuciosa e falaz que influencia de maneira
decisiva a vontade da vítima.217 Diz-se, desse modo, que a anulação do negócio jurídico
exige que a maquinação dolosa tramada por quem o ato contratual aproveita tenha sido
intensa o bastante para determinar o consentimento de quem foi enganado. Diria Caio
Mário da Silva Pereira que:
Este dolo, aludido nas fontes, e erigido em defeito subjetivo
do ato jurídico pelo direito moderno, é o dolus malus
caracterizado pela perversidade de propósito, e não o dolus
bonus, ou inocente, que consiste em blandícias, no apregoamento publicitário de qualidades na utilização de artifícios
menos graves que uma parte adote para levar a outra a
218
contratar, ou para obter melhores proveitos do ajuste.
217
218
As bases gerais do dolus malus já foram delineadas no item 2.1 desta dissertação.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 360.
77
Por isso, e a contrario sensu, toda vez que os expedientes ardilosos empregados se
exteriorizam por práticas não-exageradas ou despidas de intensidade suficiente para
persuadir uma pessoa em idênticas circunstâncias, diz-se tratar-se de dolus bonus. O dolus
bonus consiste numa prática maliciosa usada para persuadir o contratante a aceitar o
negócio, a qual, em razão de sua pouca gravidade, é tolerada pelo ordenamento jurídico.
“Esse dolo tolerado é o que os romanos chamavam dolus bonus, em oposição ao
dolo mais grave, que seria o dolus malus. Aquele não induz a nulidade, pois quem nele
incorre o faz por sua própria culpa, ou por uma simpleza de espírito inconcebível.”219 De
fato, a dicotomia entre o dolo bom e o dolo mal remonta ao Direito Romano clássico,220
mas integra a tradição jurídica ocidental, porquanto “embora para a moral o embuste ou a
mentira, ainda que pequenos, sejam censuráveis, para o direito há um dolo menos intenso,
que é tolerado, a par de um mais grave, que é repelido”.221 Fábio Ulhoa Coelho explica que
essa opção normativa se deve porque “o dolo de pouca intensidade não deve redundar
defeito do negócio para segurança das relações jurídicas”.222
Na realidade, se é verdade que as partes devem se comportar de modo reto e leal
por todo o período das negociações preliminares, agindo com probidade e boa-fé, também
é certo que cada um dos contratantes busca fazer um negócio compatível com as suas
expectativas econômicas e com as suas conveniências pessoais, de modo a recolher, tanto
quanto possível, melhores condições e maiores vantagens. Não se deve ser ingênuo a
ponto de criticar o sujeito que, no afã de convencer a contraparte das vantagens do
219
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 195.
Serpa Lopes, num interessantíssimo apanhado histórico do assunto, explica que “o dolo, como motivo de
anulação do ato jurídico, era desconhecido na Grécia antiga. Apareceu em Roma, introduzido pelo pretor
Aquilius Gallus, que o erigiu em motivo de nulidade, permitindo a actio de dolo, sendo provável que dele haja
partido igualmente a exceptio doli. Depois disso, então, procurou-se dar-lhe uma noção precisa, e estabeleceuse, então, a distinção entre o dolus bonus e o dolus malus. O primeiro era a solércia; os romanos não
consideravam malignidade o pregão de vantagens da mercadoria oferecida à venda, e todos os demais meios
de reclame, inclusive o silêncio, em casos em que se não era obrigado a falar” (LOPES, Miguel Maria de Serpa.
Op. cit., p. 437).
221
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 195.
222
COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 336.
220
78
negócio, emprega adjetivos em demasia ou usa metáforas exageradas para entoar as
qualidades do produto que oferece. Não é absurdo nenhum dizer, com efeito, que uma
dose de malícia ao longo das tratativas, mais do que coisa tolerada, é um comportamento
inerente àqueles que contratam. Inteiramente pertinente, a propósito dessa ilação, a
advertência de Carvalho Santos:
É natural, observa ALVES MOREIRA, que o vendedor faça
sobressair o valor e as qualidades do objeto, e que o comprador procure fazer avultar os seus defeitos, como é natural que contra tais expedientes todos estejam prevenidos,
em virtude da sua normalidade, não devendo conseqüentemente atribuir-se eficácia jurídica ao uso deles, até no
caso em que uma das partes haja sido prejudicada.
A habitualidade dessa prática não lhe retira o caráter imoral.
Mas enquanto reprovado pela moral, não o é pela lei, mêsmo porque esta não pode sancionar todos os preceitos da
moral e também, como nota GIORGI, porque seria contrário
ao interesse geral da sociedade rescindir os contratos por
leve simulação ou dissimulação...
Uma outra circunstância precisa ser levada em conta: o dolo tolerado, podendo ser facilmente verificado, não exige senão uma prudência ordinária e prática comum de negócios
para ser evitado; e a lei não pode levar seus escrúpulos ao
ponto de defender a ingenuidade ou simplicidade das pessoas, únicas hipóteses em que estas serão vítimas de dolo
dessa natureza. Tanto mais quanto, como ficou dito, o seu
dever era estarem prevenidas contra essa prática tão
223
habitual.
O dolus bonus, como se observa, constitui uma garantia em prol do comércio
jurídico, que visa a bloquear a anulação do negócio jurídico quando o expediente doloso
exercido pelo contratante consubstancia um pregão excessivo ou um anúncio desmedido
das vantagens da avença, permitindo inferir-se que a aceitação se originou da credulidade
incontida ou de um descuido inescusável do co-contratante.
Com a introdução de um quadro valorativo renovado na ordem jurídica brasileira,
propiciada, em grande parte, pela hermenêutica constitucional do Direito Civil, a dicotomia
entre o dolus malus e o dolus bonus precisa ser repensada. O item 3.1 do primeiro capítulo
esquadrinhou o percurso histórico feito até se chegar, na atualidade, na tendência de
223
SANTOS, J. M. de Carvalho. Op. cit., p. 343 e 344.
79
objetivação dos negócios jurídicos, com o primado da teoria da confiança. Nestes tempos
atuais, no embate entre o que se disse e aquilo que, no íntimo, se quis, a ordem jurídica
volta-se para a proteção da confiança e as expectativas legítimas que a declaração de
vontade criou para as partes. Dentro dessa perspectiva, surge um ponto de tensão entre a
concepção clássica do dolus bonus e as bases axiológicas em que se funda o Direito Civil
contemporâneo. É porque em decorrência da pouca incisão do comportamento doloso ou
da demasiada ingenuidade do declarante, o dolus bonus tem como efeito atribuir a
responsabilidade pelo afastamento da vontade interna da declaração ao próprio lesado.
Essa tendência da doutrina é ressaltada por Washington de Barros Monteiro, para
quem são “admissíveis essas manifestações no giro diário dos negócios, porque, como um
pouco de diligência, um pouco de perspicácia, podem ser dissipadas.” 224 François Terré,
Philippe Simler e Yves Lequette observam que essa solução, presa ao aspecto delituoso
do dolo e apegada ao grau de intensidade da conduta do agente, procede da idéia de que
qualquer indivíduo tem o dever de se informar e de proceder a um mínimo de verificação
antes e no momento da formação do contrato.225
É impossível não perceber que esse aspecto dual do dolo, que reivindica a
segurança jurídica como pano de fundo, mascara um resquício do sistema individualista e
liberal que impregnou a construção do sistema jurídico ocidental moderno, ancorado no
império do indivíduo e inspirado por um modelo abstrato e ideal de contratante,226 imune a
considerações de índole subjetiva e isolado do contexto sócio-econômico em que se
desenvolve a relação contratual.
O critério decisivo da natureza inocente ou maliciosa do comportamento contratual é
fundado num fator meramente objetivo, que abstrai as particularidades do caso concreto e
as circunstâncias pessoais de quem se alega vítima, para erigir um padrão de atuação e de
224
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso, 1º Vol., cit., p. 197.
TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 185.
226
NOGUERO, David. Op. cit..
225
80
prudência fundados no conceito de bom pai de família, que tem em conta a conduta
abstrata do homem médio. Conseqüentemente, o dolus bonus ocorre quando uma pessoa
imbuída de poder de cautela mediano – que se poderia esperar de qualquer indivíduo nas
mesmas circunstâncias – não daria crédito à gabação desmedida ou ao pregão exagerado
das vantagens do contrato enunciadas pela contraparte, caso em que a desconformidade
entre a vontade e a declaração deve ser imputada à própria incúria ou ao descuido do
contratante. Vale dizer: “não bastam para enganar os reclames espalhafatosos (e.g., a
melhor geladeira do mundo, o melhor café do Brasil, a lâmina que não se gasta), ou vagos,
ou imprecisos”.227 A lição de Enzo Roppo, ademais, assoma:
Em regra não é tal – e não leva, pois, à anulação do
contrato – aquele dolo que se traduz na genérica exaltação,
para além do verdadeiro e do verossímil, da qualidade
daquilo que se oferece ou se promete (o assim chamado
‘dolus bonus’), justamente porque, nenhuma pessoa de
bom senso, medianamente esperta e ajuizada, seria levada
a concluir o contrato, só por efeito de semelhantes
228
jactâncias, tão usuais na práxis comercial .
Nada obstante, é relevante indagar até que ponto essa distinção ainda é pertinente
na atualidade, em que se respiram os ares de uma nova codificação civil e em que bafejam
os ventos da constitucionalização do Direito Civil. Trata-se de problema de extrema
importância, porquanto o novo contexto axiológico que preside o Direito Civil antepôs-se
como uma conseqüência reflexa da inevitável superação da febre dogmática, cuja ideologia
de purificação científica e metodológica deslocou o centro de gravidade das relações
jurídicas para o entorno do paradigma do indivíduo.
Analisado o problema da influência do dolo na conclusão dos negócios jurídicos, é
induvidoso que as tratativas iniciais são um momento crucial, porque é a partir da
227
228
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 389.
ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 240.
81
convergência dos interesses contrapostos das partes229 que o contrato ganha vida e corpo
aos olhos da ordem jurídica. É natural que exista no plano pré-contratual um clima de
tensão entre as partes, cada qual almejando a conclusão do negócio de maneira mais
vantajosa para si. Mas não parece justo dizer que essa natural oposição possa
proporcionar às partes um bill de imunidade para o exercício de um individualismo
inaceitável e isolado da própria unidade do contrato. Aliás, é exatamente o inverso. O fato
de existirem interesses contrapostos que buscam se conciliar ao longo das tratativas
salienta com maior relevo a necessidade da confiança recíproca e da colaboração dos
contraentes para a adequação do conteúdo negocial aos objetivos práticos almejados por
ambos, como lembra Luiz Edson Fachin:
A valorização da confiança corresponde a dar primazia à
pessoa que está criando vínculos jurídicos, e propicia
verificar que desencadeando esse processo, a chegada à
conclusão de um contrato pode ser exteriorizada através de
diversos modos, não sendo exigível, necessariamente, a
formulação escrita, bastando o consentimento por atos e
mesmo omissões juridicamente relevantes, pois o próprio
silêncio pode apresentar valor jurídico quando a parte
230
privar-se do dever de falar .
Desse jeito, a linha de separação entre o dolo inocente e o dolus malus tem sido
paulatinamente apagada na atualidade. Na França, por exemplo, essa dicotomia sofreu um
forte recuo pela obra da jurisprudência, que se inclinou a considerar escusável o erro do
contratante quando o seu consentimento foi obtido arrebatado por um ato malicioso do cocontratante, independentemente da intensidade dos ardis engendrados. Deve-se assomar
a essa guinada de rumos dos tribunais franceses, por igual, a ascensão de leis de proteção
229
Fala-se, aqui, de contraposição de interesses na acepção empregada por Orlando Gomes: “No contrato,
porém, singulariza-se pela circunstância de que as vontades que o formam correspondem a interesses
contrapostos. Na acepção lata, o consentimento significa a integração das vontades distintas. Na acepção
restrita, a vontade de cada parte. Integradas as vontades, dá-se o acordo, que consiste, pois, na fusão de duas
declarações, distintas e coincidentes” (GOMES, Orlando. Contratos, cit., p. 48).
230
FACHIN, Luis Edson. O “aggiornamento” do direito civil brasileiro e a confiança negocial. Repensando
Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Luis Edson Fachin (organizador)... et al. Rio de
Janeiro: Renovar, 1998, p. 117 e 118.
82
aos consumidores, cada vez mais devotadas a coibir a publicidade enganosa, que, outrora
caracterizada como dolus bonus, hoje é fortemente reprimida .231 Jérôme Betoulle anota:
É conveniente de qualquer modo observar que o campo
de aplicação desse “dolo tolerado” está consideravelmente
estreitado com a legislação contemporânea, protetora do
consumidor, que exalta a transparência e a obrigação geral
de informação (...) e que considera a simples afirmação
“suscetível de induzir em erro” contida em um anúncio
232
publicitário uma fonte de responsabilidade penal.
Entre nós, também, especialmente após a entrada em vigor do Código de Defesa
do Consumidor, a dualidade entre o “dolo bom” e o “dolo mal” – a qual Carvalho Santos já
vaticinava “carecer de utilidade prática”233 – sofreu uma grande e importante atrofia. É
porque na perspectiva globalizada, em que predominam as contratações em massa e os
regimes de monopólio ou de quase-monopólio, o dolus malus usualmente se apresenta na
forma da publicidade enganosa, produzida com a finalidade de divulgar, de maneira
desmedida, as qualidades e as utilidades de um bem ou de um serviço, ou, ainda, as
vantagens potenciais que a aceitação do negócio pode proporcionar ao consumidor. De
fato, no espectro das relações de consumo, a Lei n. 8.078/90 preconiza:
Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
§ 1.º É enganosa qualquer modalidade de informação ou
comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente
falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão,
capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades,
origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e
serviços.
Parece não haver dúvidas que a exegese dessa norma remete o intérprete à noção
comum do dolo civil, por envolver uma falsa compreensão das circunstâncias do contrato
em razão de um ato deliberadamente praticado pelo fornecedor de produtos ou serviços,
com a finalidade de manter o consumidor em erro. A inevitável associação dogmática da
231
TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 186.
BETOULLE, Jérôme. Op. cit..
233
SANTOS, J. M. de Carvalho. Op. cit., p. 327.
232
83
interpretação da publicidade enganosa com o dolo também é realçada por Cláudia Lima
Marques, que acrescenta:
A característica principal da publicidade enganosa, segundo
o CDC, é ser suscetível de induzir ao erro o consumidor,
mesmo através de suas ‘omissões’. A interpretação dessa
norma deve ser necessariamente ampla, uma vez que o
‘erro’ é a falsa noção da realidade, falsa noção esta
potencial formada na mente do consumidor por ação da
234
publicidade.
Não se pode, entretanto, imaginar que a redução do espaço para a alegação do
dolo inocente estaria restrita às relações de consumo, sob pena de se mitigar de modo
inaceitável e injustificado a eficácia do princípio da boa-fé objetiva. E mais: não fosse assim,
o legislador teria limitado expressamente a abrangência desse princípio, para restringi-lo
aos contratos de consumo. Mas, à evidência, não foi esse o caso. Por tais motivos, mesmo
fora das relações consumeristas, a exaltação irreal das qualidades e vantagens do negócio
– independentemente de se aquilatar a sua intensidade e desde que suficiente para
extorquir o aprazimento da vítima – importa na violação do princípio da boa-fé objetiva,
consagrado no Código Civil em três oportunidades:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados
conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito
que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou
pelos bons costumes.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim
na conclusão do contrato, como em sua execução, os
princípios de probidade e boa-fé.
É de clareza ofuscante que a atuação do princípio da boa-fé objetiva não pode ficar
aprisionada no campo das relações de consumo, uma vez que o período da puntuação,
que antecede o entabulamento definitivo do contrato, deve ser permeado pela recíproca
234
MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p. 347.
84
confiança das partes235 – quer se trate de uma relação consumerista ou não. E assim
parece ser porque o elemento fiduciário é o mais importante fundamento do princípio da
boa-fé objetiva,236 já que “a concepção moderna das obrigações contratuais impõe a
ambos os contratantes o dever de lealdade e boa-fé, devendo prevalecer sobretudo a
transparência nas disposições convencionais”.237 Deveras:
A distinção doutrinária não tem mais sentido atualmente.
No plano das relações de consumo, inclusive, o instituto do
dolo inocente afronta disposições legais que responsabilizam o fornecedor por propaganda enganosa (CDC, art.
37, §§ 1º e 3º), e, por isso, não se pode sustentar. Mesmo
no plano das relações civis e comerciais, não sujeitas ao
Código de Defesa do Consumidor, a exigência de boa-fé
dos contratantes, ressaltada na codificação de 2002, é
238
incompatível com a tolerância do dolus bonus.
É forçoso reconhecer que a objetivação da noção de boa-fé nos contratos, no que
diz respeito ao período das tratativas, atua como fonte criadora de um dever de conduta239
que impõe às partes a obrigação de agir com lealdade, probidade e espírito de
colaboração, para que o engajamento contratual se concretize em conformidade com o que
se poderia legitimamente esperar em circunstâncias semelhantes. Aliás, essa idéia de
colaboração entre os contraentes não é coisa nova entre nós. Depois de identificar o
princípio da boa-fé objetiva como uma expressão do interesse social de segurança das
relações jurídicas, Orlando Gomes anota que “indo mais adiante, aventa-se a idéia de que
235
Judith Martins-Costa explica que a origem etimológica do vocábulo “confiança” provém da expressão latina
“cum fides”, que, literalmente, significa “com fé”, daí que a boa-fé, ou seja, a “bona fides”, designa “uma
confiança adjetivada ou qualificada como ‘boa’, isto é, como justa, correta ou virtuosa” (MARTINS-COSTA,
Judith. Op. cit., p. 38).
236
SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A Boa-fé e a Violação Positiva do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002,
p. 48.
237
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 120.
238
COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 336.
239
A doutrina mais prestigiada identifica no princípio da boa-fé objetiva três funções: interpretativa, ou
hermenêutico-integrativa; de criação de deveres jurídicos anexos, ou instrumentais; e de limite para o exercício
de direitos subjetivos (v. MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. 1ª edição, 2ª tiragem. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 381-509; SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Op. cit., p. 36-106;
NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé. Rio de
Janeiro: Renovar, 1998, p. 224-235; MARTINS, Flávio Alves. A Boa-fé Objetiva e sua Formalização no Direito
das Obrigações Brasileiro. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2000, p. 73-92; e MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p.
105-116).
85
entre o credor e o devedor é necessária a colaboração, um ajudando o outro na execução
do contrato”.240
Por isso, “para toda relação jurídica, vige o princípio de não defraudar a confiança da
outra parte, assim como os deveres de recíproca consideração e observação da
confiança”,241 razão pela qual o dolo empregado pelo contratante, mesmo que o desejasse
inocente, poderá resultar na anulação do negócio jurídico sempre que – por conta da
confiança e da expectativa geradas pelos reclamos publicitários ou pelo pregão excessivo
do bem ou do serviço – for capaz de extorquir do declarante uma manifestação de vontade
em desarmonia com o que o senso comum e a boa-fé teriam por correto esperar.
Com efeito, a valorização do clima de confiança recíproca que deve estar à frente
das relações contratuais impõe uma modulação, ou uma virada de eixos, na interpretação
da dialética dicotomia entre o dolus malus e o dolus bonus, de forma a direcionar os efeitos
objetivos do negócio jurídico àquilo o que seria razoável esperar em situações idênticas e a
assegurar a simetria das vantagens e dos ônus do acordo. Note-se que a incidência da
boa-fé objetiva, neste caso, não visa a atuar como um fator de restauração do equilíbrio das
prestações ou de realização da justiça contratual, mas como uma referência valorativa para
a determinação do padrão de comportamento que os contratantes devem observar, desde
as negociações preliminares até o integral adimplemento das obrigações contratuais.
“Estabeleceu-se, assim, um novo patamar de conduta, de respeito no mercado, que não
admite mais sequer o dolus bonus do vendedor, do atendente, do representante autônomo
dos fornecedores, face ao dever legal”.242
Com efeito, a relação dual entre o “dolo mau” e o dolo tolerado tem como fiel da
balança o clima de confiança vertido pelo princípio da boa-fé objetiva, que tem como critério
valorativo o comportamento contratual capaz de suscitar no espírito da contraparte a
240
GOMES, Orlando. Contratos, cit., p. 46.
MARTINS, Flávio Alves. Op. cit., p. 80.
242
MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p. 111.
241
86
expectativa legítima e razoável de alcançar as vantagens e os objetivos que inspiraram a
aceitação do contrato. Vale, aqui, neste passo, lembrar a opinião de Emílio Betti, para quem
a solução dessa dicotomia recai na investigação dos pontos de vista dominantes na
sociedade, quer dizer, dos efeitos que comumente, em iguais circunstâncias, seria legítimo
acreditar seriam produzidos:
O critério de delimitação entre o dolo ilícito (aquilo a que os
romanos chamavam dolus malus) e a velhacaria lícita (a
que chamavam dolus bonus), deduz-se da correção que
as partes são obrigadas a observar no decorrer das
negociações (...); e a diagnose para ver se a astúcia usada
no caso deixava de pé a correção de uma das partes e
apenas comprometia o senso crítico e a autoresponsabilidade de contraparte, deve ser referida aos
pontos de vista dominantes numa sociedade, como é a
243
dos nossos dias, na prática corrente do comércio.
No mesmo sentido, entre nós, Fábio Ulhoa Coelho advoga que o sentido valorativo
da confiança nas relações contratuais, mais do que um postulado de Justiça, representa
um elemento de segurança jurídica:
A sociedade envolve um número incontável, imensamente
complexo e formalmente imprevisível de relações sociais,
não se podendo, por isso, prever o conjunto de ocorrências
futuras. A confiança, assim, age no sentido de diminuir tal
complexidade, reduzindo, para o sujeito, a insegurança
quanto ao futuro. Com ela, o sujeito tem condições de
projetar sua atuação conforme um conjunto relativamente
pequeno de possibilidades, excluindo do seu planejamento
aquilo que confia – mais do que espera – que não
244
acontecerá.
Em verdade, embora podada em seu vigor pela limitação imposta pela boa-fé e pelo
interesse social da tutela objetiva da confiança, a distinção entre o dolus bonus e o dolus
malus não pode ser ignorada pelo Direito Civil, dada a necessidade de se demarcar a
malícia puramente hipotética, ilusória e presente tão-só no espírito da pretensa vítima, dos
expedientes mendazes que, mesmo que breves e pouco intensos, tenham bastado para
apartar a expressão da vontade do declarante de sua real intenção. Na verdade, os
243
244
BETTI, Emílio. Op. cit., p. 357.
SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Op. cit., p. 49.
87
conceitos do dolo malicioso e do dolo inocente são úteis para a construção de um
paradigma axiológico da influência que o expediente doloso exerceu na manifestação de
vontade da vítima, consoante enfatiza Humberto Theodoro Júnior:
Penso, todavia, que quase sempre será pela maior ou
menor gravidade do erro induzido que se chegará a um
juízo consistente acerca de sua influência, ou não, sobre a
decisão de contratar. Assim, embora não seja tão
importante, nos tempos atuais, a distinção entre o dolus
bonus e o dolus malus, pode ser utilizada como critério
auxiliar para se pesquisar sua efetiva repercussão sobre o
245
processo causal da declaração de vontade.
É induvidosa, por via de conseqüência, a valia da distinção entre o dolus malus e o
dolus bonus como critério valorativo para a análise da maior ou menor ascendência que o
pregão exagerado das vantagens do contrato exerceu na formação da vontade negocial da
contraparte. Mas não se pode afastar por inteiro a plausibilidade de se investigar as
particularidades do caso concreto, notadamente sob a perspectiva das condições pessoais
do contratante ludibriado, a fim de se ter em conta a sua origem social e econômica, idade,
saúde, índole e todas as demais circunstâncias que estão no entorno do negócio.246 Isto é:
A natureza dos artifícios deve ser objeto de acurada atenção, tendo-se em conta as circunstâncias da hipótese ocorrente, os usos e praxes comerciais, lembrando GIORGI
que o dolo é sempre grave, quando, por exemplo, o negociante emprega algum artifício que mude o aspecto exterior
da coisa vendida, como no caso do indivíduo que apregoa
qualidades raríssimas de pássaros, comuns, cujas penas
habilmente coloriu.
Com relação às qualidades pessoais da vítima, é preciso se
levar em conta a idade, a instrução da pessoa enganada,
as relações entre ela e o outro contraente, convindo não esquecer, como nota GIORGI, que algumas fraudes, que iludiriam qualquer pessoa, não poderiam escapar a um comerciante, que por sua condição deve melhor saber dos
manejos que é fértil a malícia das pessoas dedicadas a
247
negócios.
245
THEODORO JÚNIOR. Humberto. Op. cit., p. 118 e 119.
TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 308.
247
SANTOS, J. M. de Carvalho. Op. cit. p. 332-333. No mesmo sentido, Cossío y Corral destaca que “para
determinar a gravidade e a transcendência de tais manobras e artifícios insidiosos, há que se ter em conta não
só a concepção objetiva que aos mesmos haveria de dar-se na normalidade dos casos, mas, sobretudo, as
condições da pessoa a cujo engano se tenham dirigido. É preciso ter em conta a mentalidade da vítima, seu
caráter e circunstâncias que tenham podido influir em sua vontade” (COSSÍO Y CORRAL, Alfonso. Op. cit., p.
192-193).
246
88
Com efeito, a boa-fé objetiva e o seu sentido de valorização da confiança devem
marcar as relações contratuais na atualidade, de maneira que os interesses em jogo
transcendam o quadrante da individualidade para a construção de um padrão de
comportamento capaz de permitir a realização dos objetivos práticos almejados pelos
contratantes.
3.2. RELEITURA CRÍTICA DO DOLO ACIDENTAL
Este estudo já apresentou a demarcação teórica entre o dolo principal, ou causal,
que é o expediente malicioso que atua como motivo determinante da firmação do contrato,
sem o qual não teria o declarante aprazido em contratar, e o dolo acidental, ou incidente, o
qual, a seu despeito, o negócio seria concluído, só que de maneira distinta.248 O dolo
principal, previsto no artigo 145 do Código Civil, considera que a prática ardilosa foi o fato
gerador da manifestação da vontade da vítima, de modo que, não fosse por isso, o negócio
não seria concluído. O dolo acidental, reconhecido no artigo 146 do Código Civil, considera
que face à predisposição do declarante em celebrar o contrato, o expediente malicioso
simplesmente serviu ao propósito de influir na formação do contrato em condições
diferentes das que seriam aceitas. Diria Francisco Amaral:
A principal distinção é a que existe entre o dolo principal ou
determinante ou essencial (dolus causam dans) e o dolo
incidental ou acidental (dolus incidens). Verifica-se o primeiro quando é determinante do ato. É dolo vício. Sem ele não
haveria declaração de vontade. A sanção é a anulabilidade
do ato. O segundo é o que – não se constituindo em razão
determinante do ato, pois que sem ele, ou apesar dele, o
negócio se teria realizado, embora em condições diversas,
249
não torna anulável o ato (CC, art. 93).
248
249
V. capítulo 2, item 2.2., supra.
AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 490.
89
Quando se trata, pois, do dolo principal, a solércia do contratante desperta na vítima
a aceitação do contrato, ao passo em que, no dolus incidens, “a pessoa queria o ato, sem
dúvida, mas não daquele modo por que o praticou”.250 Mas até que ponto a classificação
da lei – atrelada, em grande parte, à investigação subjetiva da inclinação da parte
enganada em contratar – é compatível com o estágio atual do Direito Civil? Essa pergunta
é de implacável importância para a disciplina dos contratos, máxime nos tempos presentes,
em que “o valor fundamental deixou de ser a vontade individual, o suporte fático-jurídico
das situações patrimoniais que importava regular, dando lugar à pessoa humana e à
dignidade que lhe é intrínseca”.251
É de se ver que a distinção entre o dolo principal e o dolo incidente, conquanto há
muito tempo consagrada em nossa cultura jurídica, é contrária as fontes romanas clássicas
e sequer está presente no Direito germânico.252 Na França, essa dualidade de efeitos do
dolo civil esbarrou em importantes objeções doutrinárias e chegou a ser taxada de
meramente artificial253, haja vista que a sua aceitação redundaria em “obscurecer a teoria e
propor aos juízes uma distinção impossível, de fato, e injusta nos seus resultados.254 De
fato, é difícil não reconhecer que a prática de uma maquinação dolosa, independentemente
da propensão da vítima em contratar, resultará na conclusão dum negócio inconciliável com
o que seria querido em outras circunstâncias. Por tais razões é que, com razão, diz-se que,
mesmo quando o dolo é acidental, o resultado é a celebração de um outro contrato, diverso
do que a vítima almejava concluir.255
No caso do dolo acidental, o negócio que a parte ludibriada quis fazer era
substancialmente distinto daquele que, ao final, foi celebrado, donde inferir-se ao menos a
250
SANTOS, J. M. de Carvalho. Op. cit., p. 340.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 109.
252
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 393.
253
V. TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p. 190 e FLOUR, Jacques Flour;
AUBERT, Jean-Luc. Op. cit., p. 148.
254
RIPERT, Georges. Op. cit., p. 100.
255
TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Yves. Op. cit., p.190.
251
90
priori que a dicotomia entre o dolo principal e o dolo acidental é no mínimo insidiosa, tendo
em vista que o seu fundamento se sustenta na pressuposição de uma realidade ficta. É
porque o traço distintivo entre essas duas figuras é ancorado no nexo de causalidade entre
o expediente ardiloso empreendido pelo enganador e a declaração de vontade da vítima,
razão pela qual, presente o liame causal entre o artifício falaz e o aprazimento do
declarante, diz-se haver o dolo principal, que dá azo à anulação do negócio jurídico; ao
contrário, toda vez que a aceitação da vítima sobreviria de qualquer maneira, ainda que
não houvesse o comportamento doloso da outra parte, o caso é de dolo acidental, que não
permite o desfazimento do ato negocial, mas atribui ao lesado o direito à reparação dos
danos causados.
Mesmo assim, e sem embargo da influência que o ardil engendrado pelo autor do
dolo exerceu para a formação do contrato, é inegável notar que o consentimento da vítima
foi exteriorizado em bases objetivamente diferentes das que seriam aceitas houvesse um
melhor conhecimento da realidade e das circunstâncias do negócio. Nesta hipótese, a
confiança de uma das partes e as expectativas legítimas que depositou no negócio foram
vilipendiadas por influência do comportamento doloso e contrário ao sentido de probidade e
ética que deveria estar presente em todo percurso das negociações.
Com efeito, a distinção entre o dolo principal e o dolo acidental contém uma vigorosa
contradição, tendo em vista que se o que se pretende é tutelar a pureza da manifestação
de vontade, pouca ou nenhuma importância terá a predisposição da parte em ajustar o
contrato, do mesmo modo que – para mal comparar – de nada adianta um homicida
justificar o seu ato com o argumento de que a vítima estava inclinada a morrer. A verdade é
que o caráter delituoso do dolo civil se emparelha com o comportamento que contradiz a
boa-fé e o clima de confiança que devem presidir as relações contratuais, criando um
núcleo comum entre os fins colimados pelo tratamento normativo dos vícios de
91
consentimento e a ordem principiológica que disciplina a atividade contratual. Assemelhase mais acertado reconhecer maior importância à conduta do ludibriador e ao seu desvalor
ético-social, que contraria a ordem principiológica em que se ancora o Direito Civil atual.
Fica superada, por tais razões, a interpretação dogmática clássica, mais interessada em
investigações subjetivas e na correlação entre a prática dolosa e a propensão da vítima em
celebrar o negócio. Em outras palavras, o vício de consentimento existirá a despeito de
qualquer outra consideração, desde que o expediente doloso tenha influenciado o agente a
contratar de maneira diferente da que desejaria se não fosse ludibriado. Cóssio y Corral,
em crítica digna de citação, enfatiza:
O que ocorre é que esta distinção não deve ser arbitrária: o
contrato é querido como um todo, não só em suas partes
principais, como nas secundárias. Não há, portanto, razão
para manter conceitualmente esta distinção: no fundo se
trata simplesmente de uma faculdade reconhecida ao
arbítrio judicial, que poderá determinar em cada caso, à
vista das circunstâncias concretas, se procede a
declaração de nulidade, ou simplesmente a indenização de
256
danos e prejuízos.
Esta proposta de releitura crítica da distinção entre o dolo principal e o dolo acidental
ganha maior relevo e intensidade quando confrontada com a influência da teoria da tutela
objetiva da confiança e com a influência do princípio da boa-fé objetiva na exegese e na
integração dos negócios jurídicos. A importância dessa discussão é sublinhada por
Humberto Theodoro Júnior, que ainda observa:
No entanto, até mesmo no campo do dolo e da coação, o
regime do atual Código prestigia a teoria da confiança e
não dispensa a culpa do beneficiário para a configuração
do vício do consentimento...
Como se vê, o sistema geral dos vícios de consentimento,
na evolução do Código de 1916, para o atual, submeteu-se,
predominantemente, à teoria da confiança, onde o
destaque maior é conferido à boa-fé, à lealdade, e à
257
segurança das relações jurídicas.
256
257
COSSÍO Y CORRAL, Alfonso. Op. cit., p. 204.
THEODORO JÚNIOR. Humberto. Op. cit., p. 27 e 28.
92
Em outras palavras, o dolo civil contém uma pesada carga de ilicitude, que se revela
por uma prática antagônica à boa-fé e incompatível com a confiança que a vítima depositou
nos negócio jurídico, o que permite afirmar que o ato doloso de quem se beneficiou com a
declaração errônea de vontade, mesmo que usado para extorquir o consentimento de
quem já se predispunha a contratar, poderá ensejar, em dadas hipóteses, a anulação do
negócio.
Abstraída a natural dificuldade de se aferir, caso a caso, a vontade interna de quem
se diz enganado para se concluir pela sua pré-determinação em anuir com o ajuste
negocial, é evidente que a simples formação de um contrato em bases diferentes das que,
em outras circunstâncias, haveria de querer o declarante constitui um desvio no percurso
da vontade, que deságua num consentimento desfigurado. Por isso, antes de se imiscuir
numa aventura subjetiva pelo microcosmo do íntimo querer da vítima, 258 o intérprete deve
devotar-se à consideração objetiva dos efeitos que o negócio jurídico deveria, dentro da
normalidade e à luz de seu sentido ético social, ter aptidão para concretizar. Valem
transcrever, mais uma vez, as palavras de Emílio Betti:
É decisiva para a interpretação a impressão que, de acordo
com os pontos de vista sociais correntes, a conduta de
uma das partes deva suscitar na outra, a quem se
destinava, nas circunstâncias de tempo e de lugar da
formação e celebração do negócio, em conformidade com
259
a estrutura típica deste.
Dentro dessa linha de entendimento é que Antônio Junqueira de Azevedo, ao
cunhar a sua teoria estrutural, observa que “o que caracteriza o negócio jurídico é o fato de
ser uma manifestação de vontade qualificada por circunstâncias que fazem com que ele
258
Tereza Negreiros lembra que “é precisamente com base na boa-fé objetiva que se justifica, à luz da referida
teoria, a criação de vínculo obrigacional resultante de uma radical objetivização da vontade. Trata-se de
identificar o suporte fático da vontade, em total desconsideração pelo seu lastro psicológico ou subjetivo”
(NEGREIROS, Teresa. Op. cit., p. 244).
259
BETTI, Emilio. Op. cit., p. 181.
93
seja visto socialmente como dirigido à produção de efeitos jurídicos”.260 Daí poder-se dizer
que o princípio da boa-fé objetiva atua, nesses casos, como o ponto determinante do
padrão comportamental assentado nos signos de lealdade, ética e probidade, que concita o
contratante a uma atuação negocial voltada tanto à realização dos seus interesses quanto
os da contraparte, de modo que a relação contratual deixa de ser vista como um
receptáculo de direitos e obrigações para ser compreendida em sua dimensão total, como
um complexo unitário e indivisível.
Trata-se, em última instância, da proteção da confiança como um autêntico valor
jurídico,261 que, apartado de ponderações subjetivas, busca construir uma linha média de
comportamento compatível com a boa-fé, extravasando os postulados metafísicos da ética
e reivindicando eficácia normativa plena.262 Por isso, o princípio da boa-fé objetiva erige um
complexo de deveres jurídicos atribuídos aos partícipes do vínculo contratual, aos quais se
impõe uma atuação permeada pelo senso de lealdade, integridade, responsabilidade e
confiança. Cláudia Lima Marques observa:
Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação ‘refletida’,
uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro
contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo
com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar
lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir
o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo
263
contratual e a realização dos interesses das partes.
Bruno Lewicki enfatiza que o princípio da boa-fé objetiva, quando empregado à luz
dos valores encartados na Constituição Federal, pode ter o mérito de inaugurar uma nova
compreensão do Direito das Obrigações, “cumprindo um papel transformador semelhante
260
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Op. cit., p. 124.
SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Op. cit., p. 50.
262
Judith Martins-Costa afirma: “Contudo, como insistentemente tenho referido, a boa-fé objetiva é mais do que
apelo à ética, é noção técnico-operativa que se especifica, no campo de função ora examinado, como o dever
do juiz de tornar concreto o mandamento de respeito à recíproca confiança às partes contratantes, por forma a
não permitir que o contrato atinja finalidade oposta ou divergente daquela para o qual foi criado” (MARTINSCOSTA, Judith. A Boa-Fé, cit., p. 437).
263
MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p. 107.
261
94
ao que a doutrina vem destinando a função social, no campo da propriedade, e para a
visão instrumental da família”.264
Desse modo, a deformação da vontade contratual, gerada pela prática falaz
engendrada por um dos contratantes, tem como efeito o distanciamento do conteúdo do
negócio do resultado prático que a parte lesada supunha conquistar. Entretanto, como já se
viu, constitui tarefa das mais árduas determinar até que ponto ou à conta de quais critérios,
não fosse o comportamento doloso de quem foi favorecido pelo contrato, o declarante
estaria predisposto a contratar. Isso se deve porque quando se trata do dolo acidental, o
contrato a que a vítima se dispunha a celebrar não era o mesmo que, afinal, acabou por
aceitar, pelo que é impossível afirmar-se com base em elementos psíquicos ou subjetivos
que o ato contratual ter-se-ia formado de qualquer jeito, conquanto que de modo diferente.
Toda essa ponderação impõe a elaboração de novos limites demarcatórios entre o
dolo principal e o dolo incidental, porquanto na disciplina contratual da atualidade os
objetivos do contrato deixam de ser um consectário exclusivo da voluntariedade dos seus
protagonistas para adequar-se aos postulados sócio-econômicos da sociedade e aos
resultados práticos que, conforme o tipo negocial, seria lícito e razoável esperar. Neste
ponto se antepõe, como aqui já parece bastante claro, a função interpretativa, ou
hermenêutico-integrativa,265 da boa-fé objetiva.
Os passos essenciais à plena realização desta técnica hermenêutica se iniciam com a constatação de que, na interpretação das normas contratuais, deve cuidar o juiz de
considerá-las como um conjunto significativo, partindo, para
tal escopo, do complexo contratual concretamente presente
– o complexo de direitos e deveres instrumentalmente postos para a consecução de certa finalidade e da função
266
social que lhes é cometida.
264
LEWICKI, Bruno. Panorama da boa-fé objetiva. Problemas de Direito Civil-Constitucional. Gustavo Mendes
Tepedino (organizador)... et al. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 55-75.
265
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé, cit., p. 428.
266
Idem. Op. cit., p. 430.
95
Assim deve ser porque a inauguração de uma nova ordem de princípios de matiz
constitucional, voltados à promoção e à tutela de valores assentados na dignidade humana,
na solidariedade e na função social, também implicou na superação do ideário individualista
e patrimonialista que informava, até então, o Direito Civil brasileiro.
Por isso, se é verdade que, longe dum espírito dogmático, a distinção entre o dolo
principal e o dolo incidental ainda deve subsistir em nosso ordenamento jurídico, também é
correto dizer que a aferição da predisposição do contratante em celebrar o negócio jurídico
não pode mais ancorar-se no critério do império absoluto da vontade. De fato, Pietro
Perlingieri pondera:
Não é possível, portanto, um discurso unitário sobre a
autonomia privada: a unidade é axiológica, porque unitário
é o ordenamento centrado no valor da pessoa, mas é
justamente essa conformação do ordenamento que impõe
um tratamento diversificado para atos e atividades que em
modo diferenciado tocam esse valor e regulamentam
situações ora existenciais, ora patrimoniais, ora umas e
267
outras juntas.
Insista-se: em casos tais, o baluarte, o norte de interpretação é a boa-fé objetiva,
que atua como paradigma do comportamento probo, ético e responsável, devotado à
valorização da confiança recíproca e do clima de lealdade que devem permear o processo
obrigacional, no fito de preservar as expectativas legítimas e razoáveis das partes.
Trata-se, em última instância, de se alforriar a configuração do dolus incidens dos
imponderáveis rincões da mente humana para se encontrar o nexo de causalidade entre a
maquinação dolosa e a exteriorização da vontade no exame objetivo do caso concreto, de
maneira a se fixar os limites da anulabilidade do negócio jurídico em conformidade com os
objetivos práticos e com as expectativas legítimas que qualquer pessoa, em idênticas
267
PERLINGIERI, Pietro. Op. cit., p. 276-277.
96
circunstâncias, teria por razoável esperar. Tal é a opinião de Paulo Neves Soto, que
observa:
Tal regra de interpretação objetiva da vontade realiza uma
verdadeira superação dos debates que buscavam pela
vontade, e interesse meramente privado da parte como
referência para interpretação contratual.
A partir do art. 113 do novo CC o que passará a importar é
o modo como se conduzem as partes em relação ao negocio e, neste sentido, a lealdade se impõe mesmo quando a
vontade é manifestamente diversa, pois a conduta de boa268
fé passa a ser um limite à liberdade individual.
A confiança que deve temperar toda a extensão da contratação – desde as
primeiras tratativas até a completa exação das prestações materiais a que as partes se
obrigaram – toma o lugar do subjetivismo que imperava na perspectiva civilista clássica e
que outrora marcava o ponto limite entre a essencialidade e a acidentalidade do dolo. Com
a inevitável superação do dogma da vontade, os negócios jurídicos, e particularmente os
contratos, deixam de realizar o que as partes quiseram para concretizar aquilo o que, em
iguais condições e de acordo com o paradigma da boa-fé objetiva, a qualquer um seria
lícito e legítimo esperar.
Uma última nota: a reformulação interpretativa aqui proposta não elimina as
fronteiras que existem entre o dolo principal e o dolo acidental, como se pretendesse
condensar essas duas figuras numa só; o que se propõe é modular os critérios de
interpretação do dolo principal e do dolo incidens para bases objetivas, libertas da influência
do psiquismo dos contraentes; assim, o emprego da confiança como critério determinante
absolverá o intérprete da tarefa de empreender uma viagem metafísica no mundo nebuloso
da vontade das partes, à cata de conjeturas e indícios, a fim de se voltar para a intenção
consubstanciada na declaração de vontade,269 o que importa, em outras palavras, em se
268
SOTO, Paulo Neves. Op. cit., p. 247-265.
Lembre-se que o Código Civil preconiza: “Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção
nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”.
269
97
reconhecer o primado da boa-fé objetiva e a valorização da função sócio-econômica dos
negócios jurídicos.
3.3. O NOVO PANORAMA INTERPRETATIVO DO DOLO POR OMISSÃO
Até que limite, ao longo das tratativas, um contratante pode omitir da contraparte
informações ou detalhes do negócio que, se conhecidos, impediriam a sua conclusão ou
importariam na sua celebração em condições diversas? A resposta a essa indagação se
torna ainda mais difícil quando se tem em mente que nos contratos onerosos – que
representam a esmagadora maioria da realidade atual – ambas as partes almejam fazer
um negócio o mais vantajoso o possível, quer dizer, que lhes assegure ganhos maiores e
encargos menores. Ora, a ninguém é dado pensar, com ingenuidade, que o contraente
deve revelar ao co-contratante tudo o que estiver relacionado ao negócio, o que não
importa em dizer, porém, que as negociações preliminares devam ser levadas a efeito sob
os signos do egoísmo desmedido e da irrefletida sanha de lucro. Essa questão é de
dramática pertinência, pois o Código Civil admite que se desfaça o negócio jurídico sempre
que uma das partes silencia a respeito de um fato ou de uma qualidade determinante:
Art. 147. Nos negócios jurídicos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade
que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa,
provando-se que sem ela o negócio não se teria
270
celebrado.
Os limites do silêncio nos contratos aturdiram os comentadores do Code e os
tribunais franceses por mais de um século. O espírito liberal que envolveu a edição do
Código Napoleão, baseado no mito da igualdade e da liberdade, contradizia a idéia de que
270
O Código de 1916, por sua vez, dispunha: “Art. 94. Nos atos bilaterais, o silêncio intencional de uma das
partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se
que sem ela não se teria celebrado o contrato”.
98
um sujeito devesse revelar à contraparte detalhes do negócio com os quais ela própria
sequer se preocupou. O paradoxo dessa inflexão tem repercutido até na jurisprudência
francesa mais recente, que, embora adote um conceito muito amplo para o dolo civil,271 a
ponto de julgar, por exemplo, que “o erro provocado pelo dolo pode ser levado em
consideração mesmo se ele não incidir sobre a substância da coisa que constitui objeto do
contrato”,272 recusa-se a admitir que o silêncio de um dos contratantes importe em vício de
consentimento. Veredictos da Corte de Cassação da França já decidiram que “a simples
reticência (...) por si só é insuficiente para constituir um dolo”, 273 hipótese em que o lesado
até pode obter a anulação do contrato, mas com fundamento no erro, eis que o dolo supõe
um engano provocado por um ato positivo. Depois de muita vacilação,274 os tribunais
franceses evoluíram para considerar anulável o contrato “quando a reticência consiste na
ocultação de um fato que era impossível ao outro contratante ter conhecimento por seus
próprios meios”.275 Tato é assim que nos dias de hoje a reticência é considerada “uma das
formas normais do dolo.”276
Esse ciclo evolutivo do Direito Civil francês, a despeito da contribuição doutrinária,
também pode ser tributado a dois fatores: o primeiro refere-se à proliferação de leis que
promoveram o comportamento de lealdade e boa-fé dos contratantes e, portanto, proibiram
a admissão de uma postura contratual omissiva e circunstancialmente dolosa; em segundo
lugar, ocorreu uma virada de rumo dos critérios de interpretação dos tribunais, que
passaram a associar a conduta dolosa à idéia de má-fé, que contradiz a expectativa de
boa-fé que deve estar presente na atmosfera da formação dos contratos. Georges Ripert
271
V. LARROUMET, Christian. Op. cit., p. 308; e TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Simler. Op.
cit., p. 189.
272
FRANÇA. Corte de Cassação. Recurso de Cassação. 3ª Câmara Civil. Paris, 20 de outubro de 1974
(TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Simler. Op. cit., p. 189, nota n. 5) (tradução livre).
273
FRANÇA. Corte de Cassação. Recurso de Cassação. Paris, 17 de fevereiro de 1874, S. 1874.1.248
(Ibidem, loc. cit., nota n. 6) (tradução livre).
274
FLOUR, Jacques; AUBERT, Jean-Luc. Op. cit., p. 146.
275
FRANÇA. Corte de Cassação. Recurso de Cassação. Câmara Comercial. Paris, 2 de março de 1959. Bull
civ., III, nº 113. (TERRÉ, François; SIMLER, Philippe; LEQUETTE, Simler. Op. cit., p. 189).
276
V. FLOUR, Jacques Flour; AUBERT, Jean-Luc. Op. cit., p. 147.
99
enfatizava que a lealdade e a ética são ideais indispensáveis às relações jurídicas que
envolvem a atribuição recíproca de encargos e vantagens, sob pena de violação da boa-fé:
Partindo desta idéia pode-se chegar a encontrar uma causa
de nulidade na simples omissão, isto é, no silêncio
guardado por uma das partes sobre um fato que a outra
parte ignora, e que se o conhecesse modificaria
profundamente as suas intenções. Diz-se em geral que a
omissão não constitui dolo. Não se pode sustentar princípio
tão imoral. O que é verdade é que, na maior parte dos
contratos, há oposição de interesses entre os contratantes.
Cada um é o guarda dos seus próprios interesses e deve,
por conseguinte, informar-se. Não há, pois, nada de
culpável no fato de não dar à outra parte as informações
que ela própria devia ter procurado obter. Mas a solução
muda e a omissão torna-se culpável se uma das partes tem
o dever de consciência de falar sob pena de abusar da
277
ignorância da outra.
Outra questão que já suscitou querelas doutrinárias intermináveis refere-se a saber
se o dever de informar existe somente quando a lei expressamente o impõe ou se essa
regra de conduta tem origem implícita em nosso ordenamento jurídico. Dir-se-ia, num
primeiro impulso, que quem se mantém reticente no momento da firmação do contrato não
pode influir no aprazimento da outra parte, exatamente porque o silêncio, como ato
negativo, não produz efeito algum no processo de exteriorização da vontade da outra parte.
Mas, como é sabido, em torno de qualquer negócio jurídico gravita uma série de fatos e
circunstâncias que invariavelmente irá repercutir no aspecto econômico do ato negocial e,
conforme o caso, no próprio assentimento dos agentes. É o exemplo do sujeito que adquire
de outro um imóvel sem sabê-lo situado em área de risco de enchentes. Essa
circunstância, acaso conhecida com antecedência pelo comprador, de certo produziria uma
das seguintes conseqüências: a) o adquirente abortaria o negócio; b) ou, mesmo que
desejasse levar à frente o propósito de adquirir o bem, ofereceria por ele um preço
proporcional ao déficit de qualidade constatado.
277
RIPERT, Georges. Op. cit., p. 101 e 102.
100
Pontes de Miranda dizia que “a regra é, porém, a de que, de ordinário, não há dever
de comunicação, razão porque se tem de conceber, a par da anulabilidade por erro, ou pelo
dolo, a redibição.”278 Mesmo a doutrina mais recente parece não ser de todo antipática à
idéia liberal em que se inspira a admissão do silêncio intencional nos contratos, exceto nos
casos em que preexiste o dever de informar, como observa Silvio de Salvo Venosa:
Desse modo, concluímos que, apesar de o silêncio, por si
só, não gerar efeito jurídico algum, quando há dever de
informar, pode caracterizar dolo omissivo.
Esse dever de informar decorre de cada caso concreto, do
prudente exame do juiz. Nesse aspecto, avulta de
importância o critério do julgador para identificar o dolus
279
bonus, ou dolo inocente, distinguindo-o do dolus malus.
Entretanto, nestes tempos atuais, em que a dignidade da pessoa humana é
fundamento republicano280 e em que o contrato detém uma função social,281 não se afigura
razoável aceitar que o limite para a vigência dos deveres de lealdade e de informação
tenha origem em regras expressas predispostas no ordenamento jurídico. Dizer-se o
contrário importaria na destruição de um dos paradigmas que inspira as relações
contratuais na atualidade, calcado na valorização da confiança recíproca das partes e na
proteção de suas legítimas expectativas.
E realmente não poderia ser de outro modo. Em primeiro lugar porque, a despeito
de omissivo ou comissivo, o dolo é um vício de consentimento que repercute no trajeto
percorrido pelo consentimento da vítima com idêntica intensidade e relevância:
O mecanismo psíquico do dolo, por ação ou omissão, é o
mesmo, e se verifica na utilização de um processo malicioso de convencimento, que produza na vítima um estado
de erro ou de ignorância, determinante de uma declaração
282
de vontade que não seria obtida de outra maneira.
278
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 397.
VENOSA, Silvio de Salvo. Op. cit., p. 448.
280
O artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal prevê que, dentre outros fundamentos, a República Federativa
do Brasil é baseada na dignidade da pessoa humana.
281
O Código Civil preconiza no artigo 421 que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da
função social do contrato”.
282
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 360.
279
101
É, por isso, indiferente a natureza positiva ou negativa do expediente doloso
empregado para extorquir do agente uma declaração de vontade discordante do seu íntimo
querer. Como argumento de reforço, vale dar destaque à memorável opinião de Clóvis
Bevilaqua, autor intelectual do Código Civil Brasileiro de 1916, que jamais ousou afirmar
que o dever de informar estaria condicionado à prévia imposição legal:
Para que se dê a omissão dolosa, não basta o silêncio de
uma das partes sobre alguma circunstância anterior, ou a
respeito de alguma qualidade do objeto do contrato. É
necessário que a omissão seja tal que, seja ela, não se
283
teria celebrado o ato.
Na vertente dessa conclusão também está a opinião de Caio Mário da Silva Pereira,
para quem o meio de manifestação do dolo tem importância secundária, bastando que o
expediente doloso – comissivo ou omissivo – tenha tido intensidade suficiente para apartar
o consentimento das bases que seriam queridas, não fosse o erro provocado:
Não importa, repetimos, seja o procedimento doloso uma
ação ou omissão. O que se tem de indagar é se o dolo foi a
causa determinante do ato, dolus causam dans, chamado
dolo principal, que conduz o agente à declaração de
vontade, fundado naquelas injunções maliciosas, o que de
outra maneira dito significa que o dolo só tem o efeito de
anular o negócio jurídico quando chegue a viciar e
284
desnaturar a declaração de vontade.
Em segundo lugar, é de se ver que o dever de informação e, portanto, de não
silenciar, antes de uma questão de política e casuísmo legislativos, é um postulado de
ordem geral, que decorre do clima de boa-fé com que os contratantes devem agir durante a
fase das tratativas.285 Fala-se, aqui, das idéias de lealdade e de cooperação que se
esperam presentes no comportamento dos contratantes, que permitem considerar o
283
BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil, Volume I, cit., p. 274.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições, Vol. I, cit., p. 360.
285
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 196.
284
102
silêncio e o embuste como artimanhas dolosas que conspurcam a confiança e as legítimas
expectativas que a contraparte depositou no negócio.286
Note-se que a associação das idéias de lealdade e de boa-fé como fatores
decisivos para a configuração da omissão dolosa já era advogada há muito por Carvalho
Santos, como desvelam as linhas transcritas abaixo:
A lei pode não obrigar a parte a falar, porém os usos do
comércio e a boa-fé, ao contrário, podem perfeitamente
equiparar o silêncio a uma ação dolosa, por furtar ao
conhecimento do outro contratante uma circunstância de
natureza tal, que, se conhecida, naturalmente obstaria a
formação do contrato.287
A atmosfera de confiança recíproca que deve temperar as negociações que
antecedem a constituição do vínculo contratual não pode ter a sua exigibilidade jungida à
preexistência de disposição legal específica que compila as partes a serem leais e a adotar
um padrão de comportamento inspirado pela boa-fé, sob pena de se perenizar um mito,
notabilizado em razão da interpretação a contrario sensu de alguns dispositivos normativos
que impõem, de modo expresso e específico, o dever de não silenciar. É o caso do artigo
765 do Código Civil, que estatui:
Art. 765. O segurado e o segurador são obrigados a
guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais
estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como
288
das circunstâncias e declarações a ele concernentes.
O fato é que, tempos atrás, ancorado numa ótica puramente dogmática, semelhante
raciocínio até poderia reivindicar algum sentido lógico, mas, a bem da verdade, o Direito
Civil atual não mais se compraz com o comportamento individualista lastreado na máxima
“o que não está proibido presume-se permitido”. Realmente, “quando o contrato supõe uma
confiança recíproca entre as partes, a obrigação de informar exatamente o contratante
286
NOGUERO, David. Op. cit..
SANTOS, J. M. de Carvalho. Op. cit., p. 343.
288
O Código Civil revogado também tinha regra idêntica: “Art. 1443. O segurado e o segurador são obrigados a
guardar no contrato a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e
declarações a ele concernentes”.
287
103
torna-se uma obrigação jurídica e a omissão uma causa legal de nulidade do contrato”,289
uma vez que “no campo das obrigações, o dever de dizer a verdade é genérico, porque o
clima do contrato exige a boa-fé dos contratantes”.290 Isto importa em concluir-se que o
dolo fica configurado quando uma das partes se omite acerca de um aspecto do negócio
que, por imposição da lei, dos usos do comércio ou mesmo das circunstâncias negociais,
estava obrigada a revelar ao co-contratante:
Às vezes o dever de esclarecimento integra a natureza
mesma do contrato, como se dá, por exemplo, no seguro
de vida, em que o segurado não pode deixar de revelar os
problemas graves de saúde acaso existentes em relação à
sua pessoa. Mas, em caráter geral, mesmo sem o
expresso dever específico de prestar certas informações,
tornou-se modernamente um princípio das relações
contratuais a exigência de que as partes se comportem
durante a conclusão e a execução do contrato segundo a
boa-fé e a probidade (art. 422).
Desse princípio de lealdade, que a lei institucionalizou,
decorre um recíproco dever de informação a respeito de
qualquer circunstância relevante para o negócio, de forma
que nenhuma das partes pode reter só para si o
conhecimento de tais circunstâncias.
Descumpri-lo faz com que, mesmo não engendrando
maquinações enganosas, a parte cometa dolo civil.
Sempre, pois, que um contratante cale intencionalmente
sobre circunstâncias essenciais para o consentimento do
291
outro, pratica um ‘silêncio desleal’.
Dentro dessa perspectiva, a tutela da confiança, como elemento preponderante
para a atuação do princípio da boa-fé objetiva, se manifesta com clareza invencível, pois é
evidente que o objetivo da lei não se cinge a sancionar a perfeição do consentimento em si,
na pressuposição de que foi extorquido através de um expediente malicioso e reticente
engendrado pelo sujeito a quem se dirigiu a declaração de vontade, mas igualmente
resguardar a expectativa legítima de concretização dos efeitos práticos a que se destinava
289
RIPERT, Georges. Op. cit., p. 102.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. 1, cit., p. 196.
291
JÚNIOR, Humberto Theodoro. Op. cit., p. 142-143.
290
104
o negócio jurídico. A jurisprudência dos tribunais tem valorizado o aspecto da confiança nas
relações negociais, como se vê do aresto transcrito abaixo:
ESTABELECIMENTO DE ENSINO
TRANSFERÊNCIA DE QUOTAS
ANULAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
MÁ-FÉ
INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS
EMBARGOS INFRINGENTES. Ação Ordinária. Rescisão
de negócio jurídico. Dolo de aproveitamento e induzimento
em erro escusável. Dolo intenso ao aproveitar-se a embargante da justificada inexperiência das embargadas. Confiança depositada pelas embargadas em quem agia com
rematada má-fé, ocultando fatos e dados que, se conhecidos das adquirentes e celebrantes do negócio jurídico,
certamente o mesmo não se consumaria. Colégio sem
autorização para funcionar com contrato de locação findo,
sem provocação de sua renovação. Cabimento de rescisão
contratual, com perdas e danos. Improvimento dos embar292
gos, mantida a decisão embargada.
E assim deve ser porquanto “os usos do comércio e a boa-fé podem equiparar o
silêncio a uma ação dolosa nos negócios jurídicos bilaterais, por furtar ao conhecimento do
outro contratante uma circunstância de natureza tal que, se conhecida, naturalmente
obstaria a formação do contrato”.293 A outro tanto, Bruno Lewicki enfatiza:
Em nossa massificada sociedade de consumo, onde tornase utópico imaginar que haja espaço para o debate acerca
das disposições dos contratos, cada vez mais
‘estandardizados’, sobreleva-se para as partes o dever de
prestarem e o direito de receberem toda e qualquer
informação que afigure-se necessária para diminuir os
riscos e assegurar que todos alcancem os objetivos
almejados. No mais das vezes, a forma encontrada para
adimplir esta obrigação é a publicidade, verdadeira ponte
que, se bem utilizada, pode ser a mais hábil maneira de
ultrapassar o ‘abismo informativo’ que separa as partes
294
contratantes.
A eficácia normativa do dever de não silenciar, ou de dizer a verdade – leia-se: a sua
exigibilidade concreta – deriva imediatamente da boa-fé objetiva, na forma de deveres de
cooperação e proteção dos recíprocos interesses, dirigidos a ambos os partícipes do
292
TJ-RJ, 10ª Câmara Cível, Embargos Infringentes n. 2002.005.00167, Relator Desembargador Gérson
Arraes, j. 02.07.2003.
293
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., p. 268.
294
LEWICKI, Bruno. Op. cit., p. 69.
105
vínculo contratual.295 Neste aspecto, o Código de Defesa do Consumidor exerceu um papel
fundamental, de maneira a contribuir decisivamente para a evolução da disciplina dos
contratos no Brasil, não somente por ter encerrado, textualmente, o dever de informar
como garantia contratual geral, como também pelo fato de ter alçado o princípio da boa-fé
objetiva como paradigma valorativo das relações de consumo. A tal respeito, Cláudia Lima
Marques ajunta:
Esta inversão de papéis, isto é, a imposição pelo CDC ao
fornecedor do dever de informar sobre o produto ou serviço
que oferece (suas características, seus riscos, sua qualidade) e sobre o contrato que vinculará o consumidor, inverteu a regra do ‘caveat emptor’ (que ordenava ao consumidor uma atitude ativa: se quer saber detalhes sobre o plano
de saúde, informe-se, descubra o contrato registrado em
cartório no Rio de Janeiro ou São Paulo... atue ou nada
poderá alegar) para a regra do ‘caveat vendictor’ (que ordena ao vendedor ou corretor de planos de saúde que informe sobre o conteúdo desse, riscos, exclusões, limitações
296
etc.).
Parece claro, desse jeito, que o silêncio é uma das formas de exteriorização do dolo
nas relações negociais, pelo que, aparelhada essa conclusão com o acervo de princípios
informativo da disciplina contratual, é chegada a hora do intérprete se despojar do velho
ideário liberal, que apregoava o egoísmo e o utilitarismo no campo dos contratos, para
descortinar uma nova era no Direito Civil, qualificada pela boa-fé e pela confiança recíproca
dos partícipes do negócio contratual.
295
296
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé, cit., p. 438-439.
MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p. 111.
106
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora no fluir do desenvolvimento deste trabalho várias conclusões já tenham sido
estabelecidas, e longe de atingirmos a pretensão de esgotar o assunto em todos os seus
matizes, cabe estabelecer algumas inferências à guisa de conclusão.
Construído sob a inspiração de uma ideologia metafísica, apartada da consideração
de fatores concretos, o princípio da autonomia privada expressa a materialização da
liberdade individual, numa acepção dinâmica e voltada à autotutela dos interesses das
partes através da criação, da modificação ou da extinção de relações jurídicas. Essa
concepção, francamente liberal e conscientemente desvinculada dos fatores materiais de
desigualdade entre as pessoas, está, na atualidade, subjugada pelo soerguimento de
outros princípios jurídicos que, a par da fenomenologia dos contratos de adesão, ou
standard, e dos casos de contratação obrigatória, em que se subtrai a liberdade contratual
das partes, reduziu a pujança e a extensão absoluta da autonomia privada. Nesta mesma
toada, a vontade e o papel que desempenha na estrutura dos negócios jurídicos – antes
um valor em si próprio: a medida e o fundamento da força obrigatória dos contratos – foram
redirecionados para a compreensão da declaração volitiva como uma etapa no plano
conclusivo dos atos negociais, meio de apreensão dos resultados práticos tutelados na
107
ordem jurídica, conforme o tipo e a natureza do ajuste contratual e a confiança que razoável
e legitimamente se tinha a expectativa que fossem produzidos.
Essas conclusões são de implacável importância para o estudo dogmático do dolo
nestes tempos atuais, não só para fins de interpretação e de integração, como igualmente
para a análise de sua tessitura funcional na condição de vício de consentimento, que deriva
da desconformidade entre a vontade interna e a declaração da vítima, cujo conceito foi
forjado com a fluidez necessária para se adaptar aos avanços tecnológicos e à capacidade
da inteligência humana de criar outras formas de ardis maliciosos. Ademais, a diversidade
conceitual entre o dolo principal e o dolo acidental deve apegar-se a um critério objetivo,
longe dos subjetivismos imponderáveis do declarante, na mesma medida em que o
silêncio, mesmo que involuntário, caracteriza um expediente doloso, toda vez que tenha
sido capaz de influir na determinação da vontade da vítima. Por outro lado, o negócio
jurídico só será anulável se a injunção maliciosa tiver sido praticada diretamente pela parte
a quem a declaração volitiva se dirige ou no caso em que tivesse ou devesse ter
conhecimento da solércia empreendida por terceiros ou pelo representante. Dado o caráter
de desvalor ao ordenamento jurídico, quando ambas as partes tiverem agido com dolo,
nenhuma delas pode reclamar em juízo a anulação ou indenização concernente ao
negócio jurídico que concluíram, por se estar diante da chamada torpeza bilateral.
Nestes tempos contemporâneos, em que o papel da vontade é relativizado à
concretização da função ou utilidade social dos contratos e em que a boa-fé objetiva é
cláusula geral de conduta contratual, a secular dicotomia entre o dolus bonus (dolo
inocente) e o dolus malus (dolo culpável) cede terreno para a primazia da realização de
outros valores e princípios que põem em xeque a tradicional tolerância do ordenamento
jurídico com a gabação exagerada ou com o pregão falseado comumente usado no
comércio jurídico. Isso se deve porque o clima que deve temperar as negociações
108
preliminares, que antecedem a conclusão definitiva dos contratos, e o padrão
comportamental erigido pelo princípio da boa-fé objetiva não são indulgentes com a
atuação dolosa capaz de destruir a confiança depositada pelo co-contratante nos efeitos
concretos que legitimamente esperava que fossem realizados.
Da mesma maneira, quando se volta a atenção para o aspecto delituoso da
manifestação material do dolo, é inegável que se cuida de um contraponto à atuação
refletida, preocupada, de respeito aos interesses legítimos e às expectativas razoáveis do
parceiro contratual, o que evidencia uma prática contrária à boa-fé. Isto é, como toda
conduta dolosa importa numa oposição à boa-fé objetiva, surpreende-se questionável na
atualidade a vivacidade funcional da classificação do dolo em principal e acidental, visto
que a predisposição da vítima em aceitar um negócio não tem o condão de justificar a
afirmação de sua validade quando feito em bases objetivamente distintas. Essa conclusão
não importa em liquidar essa dicotomia clássica: trata, somente, de reivindicar a sua reequação conforme a linha de conduta inspirada pela atuação de boa-fé, no molde da nova
ordem principiológica introduzida no Direito Civil contemporâneo.
Finalmente, mercê do padrão de comportamento ético inspirado pelo princípio da
boa-fé objetiva e mesmo à míngua de disposição legal expressa, é fácil concluir que a
figura do dolo por omissão, ou silêncio intencional, não mais merece complacência do
intérprete, na pressuposição de que o dolo, quando manifestado pela solércia reticente do
enganador, é tanto culpável e repugnante quanto a prática maliciosa positiva. Induzida,
pois, pela objetivação da boa-fé em nosso ordenamento jurídico, torna-se indiferente,
senão ocioso, cogitar-se da natureza omissiva ou comissiva do ato doloso, bastando que
se constate a violação do dever de informação.
109
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