Marcia Eckert Miranda - XXIV Simpósio Nacional de História

Transcrição

Marcia Eckert Miranda - XXIV Simpósio Nacional de História
Associação Nacional de História – ANPUH
XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - 2007
Fronteira, guerra e tributos: Rio Grande de São Pedro do Sul (1750-1825)
Marcia Eckert Miranda∗
Resumo: O texto tem por objetivo discutir da inserção do Rio Grande do Sul da construção
do Estado brasileiro através da análise das características do sistema de contratos régios e dos
conflitos gerados pela sua abolição e pela construção de um novo sistema fiscal, analisados
enquanto indicadores das transformações nas relações entre setores da elite regional e o centro
político do Império. Busca-se demonstrar que o sistema de contratos régios foi utilizado
como mecanismo de cooptação de setores da elite regional.
Palavras-chave: Fiscalidade – Guerra – Rio Grande do Sul.
Abstract: The main objective of this work is to discuss the insertion and role of Rio Grande
do Sul in the Brazilian nation through an analysis of the regal contracts system’s
characteristics and the conflicts generated by it’s abolition and by the building of a new fiscal
system, analyzed as indicatives of the transformations of the relation between both regional
elite and the Empire’s political center sections. It’s purpose is also to demonstrate that the
regal contracts system was used as a co-optation mechanism by the regional elites.
Keywords: Fiscal policy – War – Rio Grande do Sul.
Produto da fronteira em eterno litígio, o Rio Grande de São Pedro foi marcado
desde o início da ocupação européia pela disputa entre as coroas ibéricas, pela instabilidade
do domínio e pela conformação de uma sociedade militarizada, na qual a guerra, o comércio,
o contrabando e o controle de homens e rebanhos eram oportunidades de enriquecimento e
fontes do poder. Objetivos comuns na manutenção e na expansão do domínio forjaram a
aliança entre a elite da capitania e o governo central, a qual foi abalada, a partir da década de
1820. O texto tem por objetivo analisar as transformações nas relações entre setores da elite
sul-rio-grandense e o centro político através das características e mudanças do sistema de
contratos régios. Busca-se demonstrar que esse sistema, ao lado de outras práticas, foi um
instrumento utilizado pelo Estado para a cooptação de setores da elite sul-rio-grandense,
acompanhando a intensa diversificação da sociedade rio-grandense no início do século XIX.
1. Fronteira e guerra
Região de choque entre as coroas ibéricas, a insegurança e as guerras cotidianas
foram fatores sempre presentes no Rio Grande de São Pedro. Zona desprovida de atrativos
econômicos que a vinculassem ao comércio com a metrópole, o início da ocupação e
povoamento dessa região esteve associado a necessidades estratégicas decorrentes da
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Doutora em Economia Aplicada - UNICAMP, Professora do curso de Ciências Econômicas da Unisinos,
Historiógrafa do Museu Julio de Castilhos, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul.
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fundação da Colônia do Sacramento e do intento de delimitar a colônia lusa por fronteiras
naturais. A constante ameaça à Sacramento, a extração do couro e a formação de tropas de
gado para a região mineradora estimularam a apropriação do território através da concessão
de sesmarias e da oficialização da ocupação portuguesa em 1737.
Tendo a ocupação atendido a motivações de ordem estratégico-militar, a
concessão de sesmarias em retribuição a serviços estabeleceu as bases para a concentração das
terras por militares. Característica acentuada pela intensa presença de tropas de primeira e
segunda linhas mobilizadas para a defesa de Sacramento, para a demarcação de limites do
Tratado de Madri (1750), para as guerras de reconquista entre 1763 e 1777 e para a
demarcação do Tratado de Santo Ildefonso (1777).
Paralelamente, constituía-se um grupo heterogêneo de despossuídos que formava
a mão-de-obra livre das estâncias e a massa de “soldados” para as milícias privadas dos
estancieiros. O poder dos estancieiros tinha por alicerce o controle sobre terras e rebanhos e
dos recursos necessários à defesa de suas propriedades e da região: homens, alimentos,
cavalos e armas. A expansão do domínio e a sua defesa forjaram alianças entre os estancieiros
e o Estado luso, incapaz de mobilizar as forças necessárias para o empreendimento.
Apesar da historiografia destacar o papel dos estancieiros como poder privado
associado à Coroa, a sociedade da capitania era muito mais complexa, conformada também
por lavradores, charqueadores e negociantes (OSÓRIO, 1999).
O fomento à imigração de açorianos e à agricultura na década de 1750 atendia à
necessidade de povoar a região, dotando-a de recursos para a guerra, ou seja, homens para a
formação de milícias e alimentos para a manutenção das tropas. Assim, o desenvolvimento da
triticultura atendia às necessidades da Coroa e a imigração não se contrapunha ao poder dos
estancieiros (ZARTH, 2002).
As charqueadas começaram a ser estabelecidas a partir de 1780, concentrando-se
na região litorânea, usando intensamente mão-de-obra escrava no beneficiamento da carne,
couro, graxa entre outros produtos. Com a exportação de charque, principalmente para os
mercados do Rio de Janeiro e Bahia, ampliaram-se as relações comerciais e o valor das
importações (CHAVES, 2004). Assim, os charqueadores e comerciantes, ao lado dos
estanceiros, estabeleceram-se como um setor da elite econômica da capitania nos últimos anos
do período colonial (OSÓRIO, 1999).
Mas, se os interesses do Estado metropolitano e dos diferentes setores da
sociedade rio-grandense se interpenetravam, nem sempre estavam em sintonia. Mesmo em
períodos de paz, a posição fronteiriça obrigava a manutenção de um grande efetivo de tropas
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de primeira linha e a mobilizações freqüente das milícias. Se os períodos de conflito criavam
oportunidades para a ampliação das estâncias e dos rebanhos e para o enriquecimento dos
milicianos e soldados com a divisão do botim, também acarretavam num pesado ônus. As
constantes requisições de animais, carretas, trigo e outros recursos para a manutenção das
forças mobilizadas eram seguidamente apontadas como motivo de ruína dos agricultores que
também eram afastados de suas lavouras quando do deslocamento das milícias.
Assim, a guerra era a origem da riqueza e da ruína dos lavradores e estanceiros,
motivadora da cooperação e do conflito entre diferentes setores da sociedade rio-grandense e
a Coroa ao longo do período colonial. Nessa relação, os contratos régios foram um importante
instrumento de cooptação e de mobilização de recursos para a guerra.
2. Contratos régios: negócio e cooptação
O sistema de contratos régios, ou seja, o arrendamento do poder de exercício de
certos direitos como a cobrança de tributos e a exploração de monopólios, era um instrumento
típico do Antigo Regime, utilizado em Portugal e nas suas possessões ultramarinas
(BELLOTTO, 1986). Esses contratos eram estabelecidos entre a Coroa e indivíduos ou
companhias, normalmente vendidos em hasta pública àqueles que fizessem os maiores lances,
geralmente por três anos (ALDEN, 1968). Quando as ofertas fossem inferiores àquelas da
arrematação anterior ou não surgissem interessados, a Fazenda Real se encarregava de
“administrá-los”. Os arrematadores adiantavam à Coroa a quantia acertada em prestações
(“quartéis”), lucrando com a diferença entre esta e o que pudessem extrair dos súditos. Com
esse sistema, a Coroa buscava garantir um fluxo regular de renda monetária (BELLOTTO,
1986) e superar as limitações de quadros e de recursos para fazer chegar ao contribuinte seu
braço arrecadador, ao mesmo tempo em que buscava fazer convergir seus interesses com os
dos grandes comerciantes. A cargo do contratador corriam todas as despesas decorrentes da
arrecadação.
Numa região periférica e conturbada como o Rio Grande do Sul, a análise desses
contratos ganha relevância especialmente em dois aspectos: pelo estreitamento dos laços entre
setores da elite da capitania e o centro político através da participação nos negócios régios e
pelo controle de recursos necessários para a guerra. Nessa capitania, destacavam-se em
importância os contratos dos registros de Viamão e Santa Vitória, dos dízimos reais, do quinto
do couro e gado em pé e de munício das tropas.
Os registros eram postos aduaneiros situados estrategicamente no cruzamento de
rios e passagens acidentadas e, no Rio Grande de São Pedro, localizavam-se no caminho das
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tropas de gado que partiam em direção a Sorocaba (ALDEN, 1968), onde eram cobradas taxas
de passagem sobre cada cabeça de gado. O Registro de Viamão ou Guarda Velha de Viamão,
instalado próximo à margem esquerda do Rio dos Sinos, foi rematado pela primeira vez em
1752 (AHRS, F1197, fl.183-187v). A partir de 1773, o contrato desse Registro passou a ser
rematado junto ao do Registro de Santa Vitória, o qual havia sido criado um ano antes e que
se manteve em funcionamento até aproximadamente em 1848.
Os dízimos reais incidiam em 10% os sobre produtos agrícolas, pescado e
pecuária produzidos no ano, sobre o lucro líquido de qualquer atividade comercial e sobre os
vencimentos dos titulares de cargo ou ofício público (OLIVEIRA, 1964). No Rio Grande do
Sul, rematou-se esse contrato a partir de 1747, incidindo sobre a produção agrícola, a criação
de animais e o pescado.
O quinto dos couros e gado em pé correspondia a 20% do valor do couro vendido
para fora da capitania, na razão de uma em cada cinco unidades. Como a arrecadação desse
tributo envolvia elevados custos decorrentes da manutenção de armazéns, de empregados e de
escravos, para torná-lo mais atrativo aos negociantes, a Coroa passou a rematá-lo em anexo ao
contrato do munício das tropas.
O contrato de munício obrigava o fornecimento de alimentos às tropas de
primeira linha. Os gêneros eram entregues em locais pré-determinados, conforme preço
estabelecendo por arroba de carne e por libra de farinha a ser pago pela Fazenda Real ao
contratante. O primeiro contrato data de 1754 (AHRS, F1242, fl. 164v).
Apesar de negócio lucrativo, a relação entre as autoridades da capitania, os
contratadores, os negociantes interessados nos contratos, os subcontratadores e os
contribuintes era permeada de tensões, coação, negociações e conchavos. Assim, os contratos
régios eram um negócio com diversas facetas. As autoridades locais criticavam o sistema, tido
como lesivo aos contribuintes e à Fazenda Real. Para os negociantes, os contratos eram a
garantia de lucros elevados e concediam poder e privilégios. Já os lavradores e os criadores de
animais ficavam à mercê do arbítrio dos administradores e “ramistas”.
Segundo Osório, os contratos serviram como mecanismo de integração mercantil
do Rio Grande do Sul com o Rio de Janeiro, prática viabilizada pelo monopólio desse negócio
pelos comerciantes de grosso daquela praça, pelo menos a partir da segunda metade da década
de 1760 (OSÓRIO, 1999). No entanto, a trajetória do negócio e a identificação dos
contratadores evidenciam que a participação expressiva de residentes na Capitania de São
Pedro na rematação dos contratos dos dízimos e do munício das tropas, especialmente em
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conjunturas de conflito aberto ou em que era necessária a mobilização militar.1 Assim, o
predomínio de contratadores residentes ou não-residentes divide-se em três períodos,
configurando padrões distintos de relacionamento do centro do governo com setores
mercantis da metrópole, da capital da colônia e de suas regiões periféricas como o Rio Grande
de São Pedro.
É principalmente através da trajetória dos contratos dos dízimos reais que se
evidencia a importância de seu controle pelos estancieiros e comerciantes residentes em
períodos de guerra. O grupo de contratos dos dízimos abrange o período de 1747 a 1824. Nos
primeiros anos, de 1747 a 1783, os principais arrematantes foram negociantes residentes no
Reino e de outras localidades da Colônia, mas, com a participação expressiva de residentes no
Continente. No triênio imediato à Guerra Guaranítica entre 1756-1758, o contrato foi
rematado pelo José Pinheiro Soares do Lago e, nos primeiros anos da ocupação espanhola
entre 1765 e 1767, arrematado por Manuel Fernandes Vieira em sociedade com o Capitão
Manuel Bento da Rocha, Antônio Moreira da Cruz e Mateus Inácio da Silveira (MIRANDA,
2006). Com exceção dos dois últimos rematantes, todos eram estancieiros sediados no Rio
Grande, dedicados à criação e à comercialização de gado, especialmente o muar.
No entanto, nesse período, a análise dos contratos dos dízimos exige uma
observação mais acurada. Nos primeiros anos, os contratos rematados no Conselho
Ultramarino em Lisboa abrangiam amplos territórios, incluindo São Paulo, Santos, Laguna,
Rio Grande de São Pedro e a comarca de Paranaguá. Estes contratos, rematados por
comerciantes do Reino e de outras praças como o Rio de Janeiro, foram revendidos em ramos
a diversos subcontratadores. Levando-se em conta as vendas do ramo dos dízimos do Rio
Grande de São Pedro, observa-se a participação de residentes foi ainda mais expressiva,
monopolizando praticamente toda a década de 1750. No triênio de 1750-1753, este ramo foi
comprado por Manuel Jorge (AHRS, F1242, fl. 29-30v) e os dois triênios seguintes, 17531754 e 1754-1756, os ramos do Continente foram adquiridos José Pinheiro Soares do Lago
(AHRS, F1242, fl. 53-5v; 74v-77), ambos moradores do Rio Grande de São Pedro. No caso
de José Soares do Lago, seja através da compra do ramo do Continente ou da rematação do
contrato principal, esse estancieiro manteve ininterruptamente o direito de arrecadar o dízimo
nesse território de 1753 a 1758. Esse negócio era um instrumento importante para o
alargamento da riqueza dos estancieiros, pois o tributo era pago sob a forma de cabeças de
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As observações que seguem têm por base o levantamento de contratos dos registros, de munício das tropas, do
quinto dos couros e do gado em pé, dos dízimos localizados nos Registros Gerais da Fazenda Real e
correspondência da Junta da Fazenda (AHRS) e na correspondência da Junta da Fazenda (AN).
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gado cavalar, vacum e muar, contribuindo para o aumento dos rebanhos do contratador,
quando o comércio de animais com outras regiões era a principal atividade econômica da
capitania.
Entre 1784 e 1808, houve o domínio absoluto dos negociantes do Rio de Janeiro,
quando, após o Tratado de Santo Ildefonso (1777), seguiu-se uma fase em que predominou a
paz. Mas, a partir de 1810, o contrato dos dízimos passou a ser monopolizado por um
negociante da capitania e seus sócios até a sua extinção em 1821. Em 1810, Antônio Soares
de Paiva e José Vieira da Cunha remataram o contrato dos dízimos diretamente no Conselho
da Fazenda no Rio de Janeiro. Tendo Vieira falecido poucos dias após a rematação, novos
sócios foram encontrados entre negociantes do Rio de Janeiro (AN, IF2 43 – Ofício da Junta
da Fazenda Real de 30/08/1810).
Nos dois triênios seguintes, 1813-1815 e 1816-1818, Paiva novamente arrematou
o contrato dos dízimos no Conselho da Fazenda do Rio de Janeiro, dessa vez em sociedade
com dois de seus filhos, Antônio e Israel (AHRS, F1191, fl.107, 267). Os contratos dos
triênios de 1819 a 1824 foram obtidos pelo Decreto de 07 de novembro de 1818 pela mesma
companhia. Se a situação instável da fronteira devido ao movimento
artiguista podia
prejudicar os negócios, a guerra também motivava ganhos extraordinários, sendo os
contratadores dos dízimos agentes destacados na introdução de gado oriental no território luso
(GOLIN, 2002).
Em 1821, um dos últimos atos de D. João VI ao deixar o Brasil foi a assinatura
do Decreto de 16 de abril que modificou o sistema de arrecadação dos dízimos: todas
prorrogações foram anuladas e os rematantes convidados a renunciar aos contratos correntes.
Consultados, Soares de Paiva e seus filhos não concordaram em abrir mão do triênio em curso
nem do triênio seguinte, alegando que estes já haviam sido negociados com os “ramistas”. A
partir de recurso da Junta da Capitania ao Conselho da Fazenda, foi estabelecida a validade o
contrato para o primeiro triênio e a anulação do segundo, apesar dos protestos de Antônio
Soares de Paiva (AHRS, CV, doc. 5071). A abolição desse sistema também atingia a diversos
outros segmentos da sociedade, pois o contrato dos dízimos era dentre todos o que
apresentava uma maior interpenetração dos interesses do Estado e de setores da elite local,
através da venda dos ramos do contrato.2 Os “ramistas” ou “dizimeiros” compravam um
“ramo”, passando a exercer todos direitos previstos na arrematação na região especificada, o
que também podia ser muito lucrativo.
2
Os contratos de compra e venda dos ramos dos dízimos reais foram localizados nos livros dos tabelionatos no
APRS e no ofício da Junta da Fazenda ao Tesouro Nacional de 12/08/1822 - AN – IJJ2 340.
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O negócio do munício, por estar associado ao fornecimento dos recursos
essenciais para a manutenção das tropas, por sua longa duração e pelo controle exercido por
negociantes rio-grandenses, também é um indicador do peso do poder local na sua relação
com o poder central. O contrato do munício foi controlado de 1754 a 1777, ou seja, no
período de maior instabilidade do domínio, por estancieiros e comerciantes residentes no Rio
Grande do Sul (AHRS, F1242, fl. 31-164v; F1243, fl. 213-226; F1244, fl. 124-140). Esse
controle, principalmente quando exercido por estancieiros, era estratégico num período
sacudido por vários episódios de conflitos armados que obrigavam a mobilização de grandes
contingentes militares. Nesses anos, o munício foi dominado por estancieiros como Manuel
Fernandes Vieira, Manuel Bento da Rocha e Manuel Fernandes de Melo e pelo negociante
Antônio Rodrigues Guimarães, todos residentes na capitania (MIRANDA, 2006).
Entre 1780 a 1821, esse contrato foi rematado exclusivamente por negociantes do
Rio de Janeiro e do Reino. Mas, certamente, além da paz, é possível que o contrato tenha se
tornado mais lucrativo em decorrência da decisão da Junta da Fazenda do Rio de Janeiro em
1785 que restringia a obrigação do munício às tropas dos quartéis das vilas e aos índios da
Aldeia dos Anjos, desobrigando os contratadores de abastecer as tropas destacadas.
Desanexado do quinto a partir de 1822, o contrato do munício das tropas passou a ser
rematado em ramos (Porto Alegre, Rio Pardo, São Gabriel, Província de Missões e guardas
das fronteiras) apenas por contratadores locais (AN, maço IJJ2 341 - Provisão de 16/01/1823).
A Fazenda Nacional encarregava-se do provimento em Rio Grande, na fronteira do Alegrete,
no departamento de Entre Rios e em Bagé.
Assim, a partir da década de 1820, o controle desses contratos ficara nas mãos de
homens poderosos, estancieiros e comerciantes abastados, que tinham uma atuação política
destacada, atuando no Conselho Administrativo, no Conselho Geral da Província ou na
Assembléia Provincial. Entre esses se encontravam um importante negociante, Antônio José
da Silva Guimarães, um grande charqueador, Antônio José Gonçalves Chaves, e um
estancieiro, Bibiano José Carneiro da Fontoura (MIRANDA, 2006).
Item importante da folha militar da capitania, a permanência do contrato de
munício sob o controle de comerciantes e estancieiros rio-grandenses é um indicativo do
poder local, cuja capacidade de mobilizar recursos, aliada ao prestígio militar, alicerçava a
autonomia dos estanceiros frente ao poder central (GUAZELLI, 1998) e ampliava a inserção
dos comerciantes como setor da elite econômica.
Observa-se assim, um claro movimento cujo sentido era dirigido pelas
conjunturas de guerra ou de paz. Em tempos de guerra (1737-1780), ainda que os contratos
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pudessem ser menos atrativos, frente à necessidade do acesso direto aos recursos essenciais à
mobilização militar, a Coroa franqueara o controle dos dízimos e do munício aos estancieiros
e comerciantes da capitania. Em tempos de paz (1780-1810), os imperativos militares ficavam
em segundo plano em relação aos interesses econômicos vinculados à exploração desse ramo
de negócios, favorecendo as propostas de negociantes vinculados ao comércio de grosso trato
atuando nas praças do Rio de Janeiro e de Lisboa.
A transferência da Corte para o Rio de Janeiro criou a oportunidade para uma
nova inflexão, quando o controle de recursos estratégicos (homens, animais, alimentos,
armas) e uma nova conjuntura de conflito na região platina viabilizaram a inserção de setores
da elite da capitania nos negócios do Estado e na administração local, redefinindo posições,
estabelecendo novos laços. No Rio Grande de São Pedro, a expansão da atividade
charqueadora e o crescimento da população diversificaram os interesses locais. Nessa
conjuntura, as relações entre o centro político no Rio de Janeiro e as elites sul-rio-grandenses
também se modificaram, sendo os contratos régios utilizados como instrumento de cooptação
de setores relevantes.
Assim, a análise desses contratos nos leva a reexaminar a idéia de “interiorização
da metrópole”, através da estruturação da Corte no Brasil e do “enraizamento de interesses
portugueses” com a acomodação das elites coloniais a partir do Rio de Janeiro, cujos
comerciantes estabeleciam as bases para seu papel destacado no processo de emancipação
política (DIAS, 1986, p. 165).
A instalação da Corte no Rio de Janeiro não criou um poder fortemente centralizado,
controlado pela burocracia e pelos interesses mercantis daquela praça, mas abriu espaço para
a inserção de novos setores, para o estabelecimento de novas alianças e interesses e de
relações permeadas por novas tensões. O Rio Grande de São Pedro, elevado à Capitania Geral
em 1809, não ficou à margem dessas transformações. Por um lado, a política joanina na
região do Rio da Prata a partir da década de 1810 serviu de base para a retomada das alianças
com os estancieiros, mas também abriu espaço para a inserção dos novos setores da elite
econômica da capitania. O controle dos contratos dos dízimos e do munício das tropas
aproximou a Coroa e os detentores dos recursos indispensáveis para a mobilização e
manutenção da política expansionista e alicerçou o apoio necessário numa região crivada de
idéias liberais, onde a penetração de projetos de reformas sociais e estruturais a partir do Prata
era uma possibilidade. Assim, as oportunidades e lucros decorrentes das intervenções
militares na Banda Oriental (1811 e 1816) forjaram as bases para a adesão da elite riograndense à monarquia e à dinastia de Bragança.
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Mas, extinção do sistema de contratos e as mudanças do início da década de 1820
alijaram interesses e instituíram novos parâmetros de relacionamento entre o setor privado e o
Estado que se formava. As transformações do sistema de arrecadação envolveram mudanças
na natureza dos tributos, na sua base de incidência e na distribuição do ônus tributário. Desse
modo, essas novas relações entre o centro político e os diferentes setores da elite sul-riograndense são condição para que se possa buscar compreender o intrincado jogo de interesses
e de forças que se bateram contra e a favor do projeto de Estado que estava sendo gestado no
Rio de Janeiro. Processo esse que não se desenrolou de forma pacífica ou linear de acordo
com os parâmetros definidos no centro político, mas, como a análise dos contratos
demonstrou, permeado de tensões e contradições.
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