1 priso: um breve resgate histrico de sua trajetria

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1 priso: um breve resgate histrico de sua trajetria
A ressocialização como finalidade da prisão:
algumas considerações sobre seu significado
Resocialization as the purpose of prison: some considerations on its meaning
Eliana Ribeiro Faustino 1
Sandra Regina Abreu Pires 2
Resumo: Este texto aborda o ideal ressocializador que nasce com a prisão
moderna em fins do século XVIII e se consolida, ao longo destes três séculos,
como finalidade primordial declarada para o cárcere. Dentro dele, mapeia os
significados que o termo ressocialização assume nesta trajetória, significados
estes majoritariamente pertinentes ao universo da Criminologia Tradicional, e
conclui que, apesar das diferentes nuances que assume historicamente, dentro
deste universo ele denota essencialmente uma reforma moral do condenado que
o habilite a viver na sociedade extramuros em harmonia com os padrões sociais
instituídos. Apresenta também algumas considerações críticas a este ideal
ressocializador, recorrendo primordialmente a algumas teses de Alessandro
Baratta, criminologista italiano e um dos precursores da Criminologia Crítica.
Neste âmbito, conclui pela necessidade de avanços ainda maiores na direção da
reconstrução do termo sob uma perspectiva crítica, procedimento fundamental à
necessária contraposição às concepções conservadoras que ainda se mostram
hegemônicas dentro do sistema penal/penitenciário brasileiro.
Palavras-chave: prisão; ressocialização; criminologia tradicional; reintegração
social; Criminologia Crítica.
Introdução
Na literatura pertinente à área penal e penitenciária, é comum nos
depararmos com a afirmativa de que a prisão moderna nasce e se
desenvolve tendo como propósito o atendimento de uma tripla finalidade:
punir, prevenir novos delitos e ressocializar. É comum também a
afirmativa de que a ênfase deveria recair sobre a ressocialização,
finalidade primordial atribuída à prisão moderna desde seu surgimento ao
final do século XVIII.
No entanto, em meio a esta literatura são muito mais raras
publicações que explicitam o entendimento que se possui acerca desse
ideal ressocializador atribuído à prisão. O presente texto se constitui em
1
2
Assistente Social. Mestre em Política Social e Serviço Social pela Universidade
Estadual de Londrina e Especialista em Saúde Pública pela UNICAMP-SP. Docente do
Departamento de Serviço Social da UNIESP-SP. - email: [email protected]
Assistente Social. Mestre e Doutora em Serviço Social pela PUC-SP. Docente do
Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. E-mail
[email protected]
A ressocialização como finalidade da prisão
uma aproximação a esse entendimento que não se mostra unívoco, uma
vez que é dependente da forma como se concebe o crime, o criminoso, a
pena e a própria prisão.
Nesta medida, se propõe a mapear os sentidos atribuídos a ele
desde seu nascimento, envolvendo, assim, uma incursão pelo universo da
criminologia tradicional que, apesar das alterações que se sofre nestes
quase três séculos, ainda hoje informa em bom grau as concepções que se
mostram hegemônicas dentro do sistema penitenciário brasileiro.
Assim, se compõe de dois grandes itens. O primeiro é dedicado
ao nascimento do ideal ressocializador e ao mapeamento das principais
nuances que ele assume historicamente dentro deste universo. No
segundo, apresenta algumas considerações críticas ao ideal
ressocializador sob esta orientação, para o que se recorre primordialmente
a algumas teses de Alessandro Baratta, criminologista italiano e um dos
precursores da Criminologia Crítica.
Com este escopo, o presente texto não tem pretensões de
esgotamento. Ao contrário, se constitui realmente em uma aproximação a
este tema tão polêmico, intentando, porém, reforçar a necessidade de se
continuar no caminho, iniciado por Alessandro Baratta, de reconstrução
do termo ressocialização sob uma perspectiva critica.
O nascimento e o desenvolvimento do ideal ressocializador
Nas abordagens acerca da trajetória histórica das penas é
consensual o reconhecimento de que a prisão, até aproximadamente o
século XVIII, não era entendida, em si, como sanção penal. Sua função
ou principal atribuição era a de manter sob custódia o infrator enquanto a
pena que lhe coubesse não fosse aplicada, emanando disso a configuração
de prisão-custódia.
Essa configuração era adequada ao padrão punitivo adotado até
então, padrão esse denominado por Pires (2005) como Paradigma da
Vingança. Correspondendo à Vingança Privada, à Vingança Divina e à
Vingança Pública, as três fases evolutivas pelas quais a pena teria
passado até aproximadamente o século XVIII, afirma a autora que no
Paradigma da Vingança
[...] a punição (pena) é concebida como vingança pelo mal sofrido
(crime/desvio às normas) e se caracteriza pelo arbítrio, pela
desproporcionalidade entre ofensa e punição, pela diferenciação de
classe na definição e aplicação das penas e pela natureza cruel das
mesmas. Caracteriza-se também por tomar o corpo do condenado
como alvo da punição e por delegar à prisão, de modo
preponderante, a função de custódia – espaço físico destinado
apenas a guardar o condenado, evitando sua fuga, até o momento
da execução da verdadeira pena, comumente de castigos corporais,
de mutilação ou de morte. (PIRES, 2005)
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A partir daquele período histórico essa função de prisão-custódia
começa a ser alterada, passando o cárcere a ser utilizado como espaço
para cumprimento da pena de privação de liberdade. Ou seja, a prisão
passa a se constituir em sanção penal, assumindo a configuração de
prisão-pena.
Essa passagem é uma das manifestações do processo macrosocial em curso naquele momento histórico: o de consolidação do modo
de produção capitalista e da ordem social a ele correspondente. Tal
processo gera novas necessidades sociais e impõe para a burguesia como
sua classe dominante um esforço em empreender e estimular a
substituição de valores, dinâmicas e instituições próprias ao modo de
produção feudal tendo em vista a consecução de seus interesses.
É neste contexto que se tornam inteligíveis as mudanças que
ocorrem no campo penal. A punição, entendida apenas como vingança e
tendo como alvo prioritário o corpo do condenado, não era mais
adequada, tanto do ponto de vista social, como político e econômico. Os
castigos corporais, as mutilações e as penas de morte não tinham mais
funcionalidade social, na medida em que, economicamente, prejudicavam
a manutenção de uma mão de obra apta ao trabalho e, politicamente, não
mais cumpriam a função de intimidação, como evidenciou Foucault
(1997) em relação ao suplício.
Era necessário instituir uma nova forma de punição que melhor
se adequasse às necessidades capitalistas. Esta nova forma era a privação
de liberdade que se tornou, a partir de então e cada vez mais
intensamente, na alternativa “universal e excelente de punição e
disciplinamento, por privar o individuo de um dos maiores bens jurídicos
- o direito de ir e vir”. (ALMEIDA, 2008, p.04).
Para seu cumprimento era preciso que as prisões tivessem uma
estrutura e uma dinâmica diferente das existentes em períodos históricos
anteriores. Começa a nascer, então, a prisão-pena ou prisão moderna e,
junto com ela, o ideal ressocializador, ambos informados por um novo
paradigma de entendimento de crime, de criminoso e de pena.
Determinados de modo mais direto pelo processo de substituição
de paradigmas e, em termos macro-sociais, pelo de consolidação do
modo de produção capitalista e da ordem social a ele correspondente, o
nascimento da prisão moderna e do ideal ressocializador assinalam ainda
a passagem do período das vinganças para o denominado período
humanitário enquanto nova fase da evolução história das penas
Esta nova fase é caracterizada por um movimento de reação
crítica ao sistema penal existente e de defesa em prol de reformas penais,
tendo como cimento ideológico idéias liberais clássicas. Tais idéias são
assumidas por vários pensadores da época, dentre eles Cesare Beccaria
que é considerado o principal representante do período humanitário.
Em sua obra “Dos Delitos e das Penas”, publicada em 1764,
Beccaria parte da premissa liberal de que o indivíduo é um ser de
sociedade, livre, consciente e racional. Com esta natureza, seu
comportamento deveria reger-se pelo contrato social, isto é, pelas normas
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e leis criadas pelos homens para que fosse possível viver em sociedade
com segurança e cuja obediência, portanto, é condição sine qua non para
a sua preservação.
Partindo desta premissa, o crime, sendo manifestação do
comportamento do indivíduo, é considerado um ato igualmente livre e
consciente. Este ato provoca um mal à vítima, mas, acima de tudo, à
sociedade, pois representa um rompimento com as leis instituídas por
intermédio do contrato social.
Funda-se aí o direito de punir e, por conseguinte, a justificativa
para a existência da pena. O Estado, como representante de toda a
sociedade ligada pelo contrato social, deve, em seu nome, impor aos
infratores uma justa retribuição ao mal causado. A justa retribuição é a
pena, cujo objetivo é evitar que o criminoso repita novas infrações e
inibir que outros cidadãos violem as leis criadas socialmente. A pena tem,
assim, um caráter de defesa social e, até por isso, não poderia ter como
finalidade apenas a punição e a prevenção de novos delitos. Deveria
possibilitar primordialmente a recuperação ou ressocialização do infrator,
o que o tornaria apto a regressar ao convívio social comportando-se
dentro dos padrões instituídos.
Neste sentido, neste período humanitário a recuperação ou
ressocialização tem a conotação de uma reforma moral a ser empreendida
na prisão durante o cumprimento da pena privativa de liberdade.
Inspiradas no sistema de mosteiros da Idade Média, as prisões impunham
ao condenado, em menor ou maior grau, o isolamento, o silêncio e a
leitura da bíblia e, nestas condições, a ressocialização ou reforma moral
seria resultado de um processo individual de reflexão e de
arrependimento que o infrator efetivaria sobre si mesmo. Esse processo
seria possível pelo fato de que, sendo ele um ser racional e consciente,
também poderia, racional e conscientemente, arrepender-se do mal
praticado e, por conseguinte, empreender autotransformações.
Em síntese, sob um discurso liberal clássico “que sustentava ser o
homem um indivíduo livre e senhor de si mesmo” (DIAS, 1990, p. 28),
mas devendo obediência ao contrato firmado socialmente, a prisão se põe
como lugar para reforma daqueles que, de modo voluntário e consciente,
romperam com tal contrato. O objetivo da prisão era defender e proteger
a sociedade contra aqueles que violaram o pacto social e, para isso, era
necessário que ela possibilitasse a recuperação ou ressocialização do
condenado. È por isso que a prisão é a forma punitiva que melhor
correspondia a este discurso: enquanto espaço de cumprimento da pena
privativa de liberdade, através dela seria possível, ao mesmo tempo, punir
o infrator (pela retirada da liberdade que era considerada o maior bem do
indivíduo) e outorgar a ele as condições necessárias para que efetivasse
sobre si mesmo uma reforma moral que permitiria seu retorno à
sociedade extramuros em condições de obedecer às normas sociais
instituídas.
Esse significado de recuperação ou ressocialização sofre
alterações na medida em que, notadamente a partir de meados do século
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XIX, faz-se sentir cada vez mais fortemente a influência do pensamento
conservador de base positivista no campo penal e penitenciário. Tal
orientação foi assumida exemplarmente pela Escola Positivista Italiana
do Direito Penal, cujas teses se tornam hegemônicas na nova fase da
evolução das penas que se inicia naquele momento histórico: o período
criminológico ou científico.
Inaugurada pelo médico psiquiatra e criminalista italiano Cesare
Lombroso 3 , a Escola Positivista Italiana do Direito Penal dirige seus
esforços para o exame do criminoso e de sua personalidade. No entanto,
esses esforços têm como parâmetro os postulados cientificistas surgidos
no transcorrer do século XIX e a decorrente tendência em aplicar ao
estudo do criminoso os mesmos métodos das ciências naturais.
Sob este parâmetro, o agente do crime não é mais visualizado
como um indivíduo amoral que rompeu com as normas sociais de forma
consciente e livre. Ao invés de amoral, ele é tido como um “anormal”,
isto é, detentor de uma anormalidade de ordem natural e de fundo
hereditário que o qualifica, ao mesmo tempo, como um doente e um ser
primitivo/atávico 4 . Abordando este aspecto, Lima (2006, p. 45) afirma
que “concebendo [a] personalidade como conjunto de elementos
psicofísicos que determina o ajustamento do indivíduo ao meio em que
vive, [se] entenderá que anomalias hereditárias, neurológicas ou psíquicas
desempenham papel principal na formação da personalidade do
delinqüente e, assim, na prática do crime”.
Por conseguinte, o crime não é mais interpretado como ato
consciente e livre do indivíduo, mas como manifestação da personalidade
de seres biologicamente anormais, condição que autoriza a defesa de que
os mesmos precisam ser tratados mais do que punidos. Sob este prisma, a
finalidade da pena continua sendo a recuperação ou ressocialização, mas
ela não é mais resultado de um processo individual de reflexão
processado pelo infrator com vistas ao arrependimento pelo mal causado
a vitima e a sociedade. Agora ela se torna sinônimo de “cura”, a ser
alcançada mediante um tratamento a ser efetuado durante o cumprimento
de pena.
Em decorrência, a natureza e a finalidade da prisão se modificam
substancialmente. Ela não é mais o local destinado à segregação do
infrator para que este, com seus próprios recursos, processe o
arrependimento. A prisão é agora o espaço privilegiado para que
profissionais especialmente qualificados realizem sobre ele um
tratamento penal, profissionais esses que “de início, exatamente pelo tipo
3
4
Representante, segundo Lima (2006), da fase antropológica da Escola Positivista
Italiana do Direito Penal. São também considerados fundadores desta Escola os
italianos Enrico Ferri, representante da fase sociológica (Sociologia Criminal), e
Raffaele Garófalo, representante da fase jurídica.
O criminoso é, “tanto do ponto de vista físico como mental, um atávico: portador de
características herdadas de ascendentes remotos e que se apresenta ainda não ‘evoluído’
como as ‘pessoas normais’” (LIMA, 2006, p. 47).
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A ressocialização como finalidade da prisão
de orientação assumida pela Escola Positivista, [são basicamente] da área
médica, em especial da psiquiatria” (LIMA, 2006, p. 51).
São eles que, a partir do estudo aprofundado da personalidade do
infrator e do diagnóstico das “anomalias hereditárias, neurológicas ou
psíquicas” que causaram seu comportamento criminoso, efetuarão sua
classificação e aplicarão sobre ele terapias consideradas adequadas para
atingir o fim almejado. Por via de conseqüência, depreende-se que a
recuperação ou ressocialização continua sendo concebida como sinônimo
de uma reforma moral que facultaria ao infrator, no seu retorno à
sociedade extramuros, uma vivência dentro dos padrões de normalidade
instituídos. No entanto, apreendida sob uma lógica médica-psiquiátrica,
ela assume uma conotação diferenciada em relação ao período
humanitário: a recuperação, ressocialização ou reforma é resultado de um
processo de cura ao qual o infrator é submetido na prisão mediante ações
dos profissionais nela inseridos.
No decurso dos séculos XIX e XX vão surgindo novas Escolas
Penais que, opondo-se a estas concepções correspondentes à Escola
Positivista Italiana do Direito Penal, fornecem novas teses explicativas
para o crime e para seus agentes. Por força dos debates que se instalam 5 ,
a supremacia da explicação do crime como um fenômeno de ordem
natural e do criminoso como um ser biologicamente anormal sofre um
gradativo refluxo.
No entanto, isso não representa uma ruptura com o padrão de
entendimento de crime, de criminoso, de pena e de prisão que impera no
início do período criminológico sob influência quase que exclusiva da
Escola Positivista Italiana do Direito Penal. Ao contrário, uma vez que as
novas escolas tendem a se manter majoritariamente dentro do mesmo
universo conservador, o que se observa é muito mais um aperfeiçoamento
ou modernização desse padrão, contribuindo para a construção de uma
criminologia que pode ser denominada de tradicional por pautar-se em
um corpo conceitual e ideológico de orientação igualmente conservadora.
É desta criminologia que emana o discurso ressocializador que
permeia o pensamento criminológico nos séculos XIX e XX e que ainda
hoje se conserva hegemônico no âmbito do sistema penal e penitenciário.
Por este discurso, ainda que o agente do crime não seja mais concebido
como um ser biologicamente anormal, ele continua sendo apreendido sob
uma ótica de inferioridade moral – uma espécie de doente social, posto
que é incapaz de viver dentro dos padrões de normalidade como os
demais membros da sociedade.
Por conseguinte, sua recuperação ou ressocialização (agora
recebendo denominações como reabilitação, reeducação, reintegração e
outras) continua sendo sinônimo de reforma moral. Esta, por sua vez,
continua sendo dependente de um tratamento penal, entendido por
Magnabosco (1998, p.15) como
5
Os quais, evidentemente, acompanham e expressam as mudanças que se processam na
própria realidade social.
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ponto de união entre o direito penal e a criminologia e [que]
compreende um conjunto de medidas sociológicas, educativas,
psicológicas e de métodos científicos que são usados em ações
junto ao delinqüente com o objetivo de tentar modelar sua
personalidade, preparar sua reinserção social e prevenir a
reincidência.
De fato, na medida em que o crime não é mais concebido como
um fenômeno de ordem natural, cujas causas residem majoritariamente
em fatores biogenéticos, mas resultado de múltiplas determinações,
incluindo as de caráter social, impõe-se agora a necessidade de ampliação
da equipe técnica a existir no interior das prisões. Impõe-se a necessidade
de recrutar profissionais de outras áreas de conhecimento que, junto com
os da área médica-psiquiátrica, serão responsáveis pelas medidas e ações
que consubstanciam o tratamento penal.
O trabalho destes profissionais continua demandando
obrigatoriamente o estudo aprofundado da personalidade do delinqüente,
mas um estudo que agora deve ter um caráter multidisciplinar para a
formulação do diagnóstico das múltiplas determinações causais do
comportamento criminoso. Continua envolvendo ainda, com base nestes
estudos e diagnósticos, a definição de um plano de tratamento adequado à
consecução do objetivo da pena que é a recuperação ou ressocialização
do condenado. Dito de outro modo, um tratamento que, em última
instância, nada mais é que o resultado esperado da reforma moral a ser
empreendida sobre o condenado no interior das prisões.
É essa concepção que, a nosso ver, está na base do sistema
progressivo de cumprimento de pena que surge no século XIX e que é
adotado ainda nos dias atuais no Brasil e em vários outros países.
Introduzindo o elemento de “vontade” do indivíduo encarcerado,
objetiva, através da passagem do mesmo por fases de cumprimento mais
rígidas para menos rígidas, sua moldagem para um futuro retorno não
conflituoso com a sociedade instituída. Isto é, repetindo Magnabosco
(1998, p.15), objetiva “modelar sua personalidade, preparar sua
reinserção social e prevenir a reincidência”.
É também essa concepção que nos parece ser a base orientadora
do documento “Conceitos Norteadores da Proposta do Modelo
Institucional para o Centro de Observação Criminológica”
disponibilizado pela Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça por
meio da Coordenadoria de Estabelecimentos Penitenciários do Estado de
São Paulo 6 .
6
Tivemos acesso a uma cópia parcial deste documento, na qual não constam o autor, a
data de elaboração ou o contexto de sua divulgação. Porém, por suas características,
inferimos que o mesmo deve ter sido divulgado como material didático de algum curso
realizado na década de 1980, pois a Coordenadoria de Estabelecimentos Penitenciários
do Estado (COESP) foi criada no ano de 1979 e, em março de 1991, as unidades
prisionais de São Paulo passaram a ser responsabilidade da Secretaria de Segurança
Pública. Esclarece-se que atualmente tal responsabilidade é da Secretaria de
Administração Penitenciária (SAP), criada em 1993.
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A ressocialização como finalidade da prisão
Pautado quase que exclusivamente em materiais elaborados por
Suraia Daher, este documento expressa o entendimento de que o objetivo
social da execução penal é a Reabilitação, definida como “processo
educativo e recriativo do indivíduo preso visando ao discernimento
quanto a atitude anti-social e a prática de ações contrárias à lei frente a
sua responsabilidade social” (SÃO PAULO, COESP, [198_], p. 1).
Este processo maior de Reabilitação envolveria três outros
intermediários: Reeducação, Reintegração Social e Ressocialização, cada
qual a ser desenvolvido nos diferentes estágios progressivos de
cumprimento de pena. Assim, nas unidades destinadas ao cumprimento
de pena privativa de liberdade em Regime Fechado se efetivaria a
primeira fase da Reabilitação que seria a de Reeducação, isto é, “processo
formal e informal de desenvolvimento, em instituições penais, formando
o conjunto de Terapêutica Social e as ações da Segurança e Disciplina,
compatíveis com o modelo terapêutico” (SÃO PAULO, COESP, [198_],
p. 1).
Na seqüência viria o segundo processo, a ser desenvolvido no
interior dos estabelecimentos destinados ao cumprimento de pena
privativa de liberdade em Regime Semi-Aberto, Aberto ou sob outras
formas que implicam cumprimento de pena em liberdade (livramento
condicional, por exemplo). Trata-se da Reintegração Social, definida
como
‘processo formal’, [realizado] através de ‘Terapêutica Social’,
visando [em relação ao condenado] seu crescimento e/ou
desenvolvimento de compreensão dos seus papeis, sua interação
com o meio sócio-cultural, bem como se possíveis mudanças de
comportamento lhe permitam, para ‘ressocializar-se’, não reincidir
em conduta anti-social e manter-se, e à sua família, como produto
de seu trabalho. (SÃO PAULO, COESP, [198_], p. 1-2)
Tendo passado e tendo sido “instrumentalizado” por estes dois
estágios, o condenado ingressaria na terceira fase: a Ressocialização,
concebida como “processo informal auto-desenvolvido pelo ex-apenado,
já no convívio social [...], e que se efetiva pelo progressivo e contínuo
exercício de papéis nos grupos de convivência, objetivando sua plena
participação social” (SÃO PAULO, COESP, [198_], p. 2)
Como pode ser observado, embora concebidos como processos
distintos, a Reeducação, a Reintegração Social e a Ressocialização
comparecem no documento como etapas seqüenciais que dependem da
realização, dentro das unidades penais, de uma Terapêutica Social. Isto é,
de um “processo formal, desenvolvido [...] através do enfoque bio-psicosocial, visando a instrumentalizar o presidiário para a busca de possíveis
mudanças comportamentais e habilitação em termos educacionais e
profissionais” (SÃO PAULO, COESP, [198_], p. 1)
Nesta medida, é possível afirmar que todos os processos acima
mencionados visam resultados comuns. São eles: o reconhecimento de
que ato cometido, pelo qual o indivíduo foi condenado, se constitui em
conduta anti-social e, portanto, prejudicial à sociedade; o reconhecimento
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Eliana Ribeiro Faustino e Sandra Regina Abreu Pires
e posterior desempenho de papéis sociais adequados à vida extramuros; a
concretização de mudanças de comportamento que permitam uma
harmoniosa “interação com o meio sócio-cultural” fora do cárcere; e a
não reincidência criminal.
Enfim, traduzindo a orientação antes mencionada que emana da
Criminologia Tradicional, o resultado postulado pelo documento é que o
cárcere transforme (ou re-transforme) o indivíduo em um trabalhador
consciente de seus deveres e obediente aos padrões sociais vigentes,
lembrando Michael Foucault (1997, p. 208) em sua tese de que a prisão é,
“antes de tudo, uma empresa de modificações de indivíduos”.
.Abordando este assunto, Pires (2005) também afirma que é este
o significado subjacente aos diferentes termos utilizados para descrever a
finalidade da prisão. Para a autora, ainda que reeducação, reintegração,
ressocialização, reabilitação e outros vocábulos afins possam ser
empregados em outros contextos com significados distintos, no sistema
penal e penitenciário eles apontam, em última instância, para
um processo (re)educativo a ser desenvolvido no interior das
unidades penais, pelo qual o individuo seja (re)habitado para viver
novamente em sociedade. (Re)aprendizado de ditames sociais que
oportuniza o (re)conhecimento, por parte do individuo, de suas
atitudes anti-sociais e contrárias à lei, permitindo a consecução de
mudanças comportamentais que, por sua vez, permitirão sua (re)
adaptação aos padrões socialmente aceitos. (PIRES, 2005, s/p.)
Este posicionamento é também compartilhado por Alvino Sá
(2005, p. 12), para quem termos como “’tratamento’, ‘recuperação’ e
‘reabilitação’ estão relacionados a uma forma tradicional de interpretar a
conduta criminosa, forma essa apoiada na idéia de que tal conduta é fruto
de algum desajuste ou desvio de comportamento por parte do infrator”.
Pressupõe que a mudança deva ocorrer somente por parte do preso para
que esse possa, então, adaptar-se à sociedade considerada perfeita.
A seguir, apresenta-se uma crítica mais detalhada a essa forma
tradicional de interpretar a conduta criminosa e, portanto, ao discurso
ressocializador que nasce em fins do século XVIII e que, com as devidas
adequações, perdura até os dias de hoje.
Alguns apontamentos críticos ao ideal ressocializador
Como mencionado, o surgimento da prisão moderna só pode ser
verdadeiramente compreendido no contexto do processo macro-social de
instalação e consolidação do modo de produção capitalista. Em
substituição aos castigos corporais, às mutilações e às penas capitais que
não tinham mais funcionalidade social, era necessário engendrar um novo
sistema punitivo e nele cumpria papel principal o aprisionamento. Nascia,
então, a prisão moderna cumprindo uma dupla função para a sociedade
emergente: por um lado, segregar aqueles indivíduos que podiam, seja
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A ressocialização como finalidade da prisão
pela contestação ou pela resistência pacífica, ameaçar a ordem que se
instalava e, por outro, aproveitá-los para o trabalho necessário à
acumulação do capital.
É sob esta perspectiva que as primeiras prisões, algumas surgindo
antes mesmo do século XVIII, se assemelhavam a depósitos que
abrigavam “marginalizados” de toda a ordem: prostitutas, loucos,
mendigos, ladrões e outros. É também sob esta perspectiva que, quase
que concomitantemente, surgem as Workhouses (Casas de Trabalho) com
o objetivo explícito de punir os que se recusavam ao trabalho e, através
disso, intimidar os demais membros da sociedade. Como concluem
Rusche e Kircheimer (2004), o objetivo dela era o de explorar a força de
trabalho e de contribuir para sua posterior sujeição ao mercado
capitalista.
Este objetivo continua inerente à prisão mesmo quando, em fins
do século XVIII e início do século XIX, nos marcos do mencionado
período humanitário, se espalham por todo o continente europeu e
americano uma série de reformas penais e, dentro delas, a adoção de
diferentes modelos de prisão.
No modelo prisional de Auburn 7 , por exemplo, o trabalho
continua figurando como elemento essencial na recuperação do
condenado, embora o cárcere já não se destinasse mais, pelo menos não
abertamente, a recolher os que se recusavam ao trabalho. Surgindo em
um momento em que o modo de produção capitalista já havia se instalado
e caminhava para a consolidação, o Sistema de Auburn é coerente com
um contexto de acelerado desenvolvimento econômico-industrial,
levando Lemgruber (1997, p. 02) a declarar que a criação do mesmo
“orientou-se, sobretudo, pela motivação econômica de explorar o trabalho
dos presos”. Para obtenção de um trabalho lucrativo era necessária a
utilização de máquinas de grande porte e em grandes espaços físicos e só
o trabalho coletivo corresponderia a tais exigências. Na mesma linha de
raciocínio, Rusche e Kirchheimer (2004, p. 183) afirmam que
este método de confinamento solitário à noite e trabalho coletivo
nas oficinas durante o dia permitiu a organização dos prisioneiros
com o máximo de eficiência industrial. Com a difusão gradual da
maquinaria, este método teve uma vantagem tremenda sobre
qualquer sistema celular.
Porém, como demonstram os estudos de Michael Foucault, a
funcionalidade da prisão não se restringe a essa dimensão econômica. Ao
lado dela, e somando-se a ela, há a dimensão política, visando, através do
controle e da disciplina, a sujeição do condenado. Para o autor, na
7
O modelo de Auburn se originou no Estado de Nova York em 1.818 com a construção
de uma penitenciária na cidade americana com o mesmo nome. Nele se impunha ao
preso o trabalho dentro da cela ou fora dela durante o dia e um isolamento total durante
o período noturno. Rusche e Kirchheimer (2004, p. 183) afirmam que este sistema se
“tornou praticamente sinônimo de administração penal americana”, sendo adotado em
quase todas as prisões daquele país.
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sociedade moderna a obediência e a hierarquia, intrínsecas às relações de
poder, permitem a utilização de mecanismos e ferramentas que produzem
efeitos positivos no controle e sujeição do indivíduo, sem violar a
estrutura física do corpo. Isto se dá pela disciplina que implica na
docilidade e na utilidade dos corpos:
A disciplina aumenta as forças do corpo em termos econômicos de
utilidade, e diminui essas mesmas forças em termos políticos de
obediência. Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz
dele por um lado “aptidão”, uma capacidade que ela procura
aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia
resultar disso, instaurando uma relação de sujeição. Se a exploração
econômica separa a força e o produto de trabalho, digamos que a
coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma
aptidão aumentada e uma dominação acentuada. Golpe de força
eficiente e racionalizador da sociedade moderna, no seu modo
específico de instaurar mecanismos estimuladores de condutas
desejáveis. (FOUCAULT, 1997, p.119)
Como se observa, o autor chama a atenção para o duplo intento
da disciplina. Por um lado, a utilidade dos corpos no sentido de
produzirem mais e em melhores condições de eficiência/eficácia,
atendendo ao propósito de acumulação capitalista e, por outro, no sentido
político, a docilidade para aceitar a ordem estabelecida, sustentando,
assim, a hierarquia social e o comando por parte da classe dominante.
Desse modo, a utilidade econômica não se desvincula da utilidade
política, contribuindo, ambas, para o mesmo fim: a adaptação do
indivíduo às relações sociais estabelecidas.
Para o autor, isto não se aplica apenas aos encarcerados. A
disciplina é a forma de controle utilizada não só nas prisões, mas também
nas fábricas, nas escolas e nas organizações militares, entre outras. É por
isso que, se referindo ao Panóptico 8 , afirma que, com algumas
adequações, ele pôde ser utilizado para diferentes fins, como hospitais,
fábricas e escolas. Nas palavras de Foucault (1997, p. 170), “é polivalente
em todas as suas aplicações: Serve para emendar os prisioneiros, mas
também para cuidar dos doentes, instruir os estudantes, guardar os loucos,
fiscalizar os operários, fazer trabalhar os mendigos e ociosos”.
Partindo do princípio de que a disciplina e o controle são
inerentes às instituições capitalistas, suas prisões não poderiam ter um
papel diferente. Como declaram Rusche e Kircheimer (2004, p.153),
“todo sistema de produção tende a descobrir e a utilizar sistemas
punitivos que correspondem às próprias relações de produção” e a forma
punitiva que melhor correspondia às nascentes relações burguesas era
8
Modelo de prisão proposto por Jeremy Benthan no século XVIII. A arquitetura do
Panóptico consistia na disposição das celas ao redor de uma torre central, onde ficava o
responsável pela vigilância, permitindo o “olhar sem ser visto”. O prisioneiro não podia
ver o vigilante, o que gerava para ele a impressão constante de estar sendo vigiado.
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A ressocialização como finalidade da prisão
justamente a prisão-pena e seu ideal ressocializador. A seguinte
afirmativa de Dias (1990, p. 28) ilustra exemplarmente isso:
[a prisão é] uma Instituição que deve se tornar senhor de tudo o que
pode acontecer a um homem, e esta certeza correspondia à
sociedade disciplinar que surge no fim do século XVIII, em meio
às pregações de um discurso social e político que sustentava ser o
homem um indivíduo livre e senhor de si mesmo. Uma sociedade
disciplinar que organiza o espaço e sua ocupação, marca e controla
o tempo, vigia e registra tanto o indivíduo como sua conduta e sua
vontade. Assim, o que esta sociedade esperava da prisão por ela
fundada, era a ressocializaçao de indivíduos indisciplinados, isto é,
treinar seus corpos e almas para a obediência, para a vida
disciplinada e servil. Ser também um exemplo para todos,
principalmente é óbvio, para os dominados.
De fato, a sociedade burguesa se instituiu sustentada por um
discurso liberal clássico que, transposto para a área penal, sustentou a
construção de uma nova forma de conceber o crime, o criminoso e a
pena. Essa nova forma, ainda que exaltando o caráter injusto e cruel do
sistema punitivo correspondente à sociedade feudal, encobria a
verdadeira finalidade esperada para a prisão: o acima mencionado
treinamento dos “corpos e almas para a obediência, para a vida
disciplinada e servil”. Dito de outro modo, o tom humanizador do
discurso liberal sob o qual nasce a prisão e o ideal ressocializador não
elimina o fato de que “prisão moderna é, antes de tudo, uma empresa de
modificações de indivíduos” (FOUCAULT, 1997, p. 208) para o capital.
Como pontuado anteriormente, é isso que está na base de sua
declarada finalidade de recuperar ou ressocializar o delinqüente,
finalidade esta conservada em toda a trajetória evolutiva da prisão desde
o século XVIII até os dias atuais. Como também pontuado, mesmo com
as mudanças processadas no decurso desta trajetória evolutiva nas formas
de se conceber o crime, o criminoso, a pena e a própria prisão, não se
verificou alterações no sentido subjacente a essa finalidade. Ou seja, a
recuperação ou ressocialização se manteve sempre como sinônimo de
uma reforma moral do condenado com vistas a uma vivência posterior na
sociedade extramuros regulada e em conformidade com os padrões
sociais instituídos.
De um ponto de vista crítico, se não restam dúvidas de que este
foi o papel historicamente delegado à prisão moderna, não há igualmente
dúvidas de que em seus quase três séculos de existência o mesmo não tem
sido cumprido. Como disse Foucault (1997), a prisão é um espaço de
contradição por produzir delinqüência enquanto busca a ressocialização e,
assim, ao invés de alcançar a ressocialização como objetivo declarado da
prisão, ela só é capaz de contribuir para a
[...] manutenção da delinqüência, na indução do interno a se tornar
reincidente; ela transforma o infrator ocasional com seus pequenos
delitos e ilegalidades em delinqüente habitual; a organização da
102
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Eliana Ribeiro Faustino e Sandra Regina Abreu Pires
“sociedade do cárcere” ajuda a promover a solidariedade entre os
internos para o mundo do crime e da delinqüência. (FOUCAULT,
1997, p. 240)
Confirmando esta afirmativa, em meio a estudos acerca da prisão
é freqüente a exposição de argumentos ressaltando sua ineficácia para
fins ressocializadores, estando dentre eles os altos índices de reincidência
criminal, os efeitos nocivos que a cultura prisional exerce sobre o
condenado e sua posterior estigmatização na sociedade extramuros.
Realmente, a segregação do preso em relação à sociedade; a
perda dos vínculos familiares e afetivos; a forçosa adaptação do sujeito à
vida no cárcere e a decorrente incorporação de valores, normas e regras
típicos da prisão; a adoção de comportamentos correspondentes à cultura
prisional que fortalecem a perda de capacidade do preso para a vida em
liberdade, enfim, estas e outras condições adversas inerentes ao
aprisionamento fazem com que sejam cada vez mais comuns afirmativas
como a abaixo:
A ressocialização não pode ser conseguida numa instituição como a
prisão. Os centros de execução penal, as penitenciarias, tendem a
converter-se num microcosmo no qual se reproduzem a se agravam
as graves contradições que existem no sistema social exterior (…).
A pena privativa de liberdade não ressocializa o recluso, impedindo
sua plena reincorporação ao meio social. (MIRABETTE, 2000, p.
24)
Compartilhando deste entendimento, Alessandro Baratta (2007)
afirma que o tratamento reeducativo e ressocializador como fim último da
pena, bem como a possibilidade de fazer do cárcere lugar e meio de
ressocialização, foi se perdendo quase que completamente diante, por um
lado, dos escassos resultados que o cárcere tem apresentado em termos de
reabilitação e, de outro, das transformações que ocorreram nas últimas
décadas.
Uma dessas transformações é a crise do Welfare State que “se
espalhou em todo o mundo ocidental entre os anos de 70 e 80 e suprimiu
boa parte da base material dos recursos econômicos destinados a
sustentar uma política prisional de ressocialização efetiva” (BARATTA,
2007, p. 01). A outra transformação apontada pelo autor é a de que, frente
às ameaças terroristas, vários países têm efetivado contra-reformas de
caráter mais repressivo, as quais têm incidido negativamente exatamente
sobre aspectos que teriam potencial para facilitar a ressocialização. A
seguinte colocação de Garland (apud ARGUELO, 2006, p.01) aborda
este aspecto:
Nas últimas décadas, houve um recrudescimento das estratégias de
contenção repressiva das classes consideradas potencialmente
perigosas em quase todos os países ocidentais. As medidas que
configuram tal postura são pouco originais e singularmente
violentas: condenações mais severas, encarceramento massivo, leis
Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009
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A ressocialização como finalidade da prisão
que estabelecem condenações obrigatórias mínimas e perpetuidade
automática no terceiro crime (three strikes and you re out),
estigmatização penal, restrições à liberdade condicional, leis que
autorizam prisões de segurança máxima, reintrodução de castigos
corporais, multiplicação de delitos aos quais são aplicáveis pena de
morte, encarceramento de crianças (aplicação de legislação
criminal adulta aos menores de 16 anos), políticas de tolerância
zero, etc.
Tendo isso em vista, Baratta (2007) afirma que já é consensual
entre os especialistas o reconhecimento da incapacidade da prisão no que
se refere à ressocialização do condenado. Tal consenso não se estende,
porém, aos rumos que deveriam ser dados à prisão, sendo possível
apontar quanto a isso duas grandes posições, nominadas pelo autor de
realista e de idealista.
Partindo da premissa de que a prisão não é capaz de se constituir
em espaço de ressocialização, os adeptos da posição realista defendem
que o máximo que ela pode fazer é neutralizar o delinqüente. Em
decorrência, fazem coro ao discurso oficial da prisão como prevenção
especial negativa (neutralização ou incapacitação do delinqüente) que
está na base do acima citado recrudescimento das estratégias de
contenção repressiva. No extremo oposto estão os que se inserem na
posição idealista que permanecem na defesa da prisão como espaço de
prevenção especial positiva (ressocialização). Mesmo admitindo seu
fracasso para este fim, advogam que é preciso manter a idéia da
ressocialização, já que seu abandono acabaria reforçando o caráter
punitivo da pena, dando à prisão a única função de excluir da sociedade
aqueles que são considerados delinqüentes.
Para Baratta (2007) nenhum desses dois pólos é aceitável. Para
ele, a prisão, do modo como se apresenta, é realmente incapaz de
promover a ressocialização; ao contrário, o que ela tem produzido
realmente são obstáculos ao alcance deste objetivo. No entanto, apesar
desse reconhecimento, sustenta que o intuito não deve ser abandonado,
mas reconstruído e, nesta reconstrução, propõe a substituição dos termos
ressocialização e tratamento pelo de reintegração social.
Um dos argumentos para esta substituição é o próprio significado
subjacente a estes termos. A seu ver, ressocialização e tratamento
denotam “uma postura passiva do detento e ativa das instituições: são
heranças anacrônicas da velha criminologia positivista que tinha o
condenado como um indivíduo anormal e inferior que precisava ser (re)
adaptado à sociedade, considerando acriticamente esta como ‘boa’ e
aquele como ‘mau’”. (BARATTA, 2007, p. 3). Em oposição, o termo
reintegração social pressupõe a igualdade entre as partes envolvidas no
processo, já que requer a “abertura de um processo de comunicação e
interação entre a prisão e a sociedade, no qual os cidadãos reclusos se
reconheçam na sociedade e esta, por sua vez, se reconheça na prisão”
(BARATTA, 2007, p. 03).
104
Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009
Eliana Ribeiro Faustino e Sandra Regina Abreu Pires
Concordando com este posicionamento acerca da terminologia
reintegração social, Alvino Sá acrescenta que a oposição aos termos
reabilitação e ressocialização dá-se pela responsabilidade que a sociedade
passa a ter neste processo. Em suas palavras, “pela reintegração social, a
sociedade (re) inclui aqueles que ela excluiu, através de estratégias nas
quais esses excluídos tenham uma participação ativa, isto é, não como
meros ‘objetos de assistência’, mas como sujeitos”. (SÁ, 2005, p. 11)
Outro aspecto abordado por Alessandro Baratta (2007, p. 02) em
seus argumentos em prol da reconstrução do termo reintegração é a
questão das condições de cárcere. Em sua opinião, tanto sob o prisma da
integração social como do criminoso, “a melhor prisão é, sem dúvida, a
que não existe”, uma vez que não há nenhuma prisão boa o suficiente
para atingir a reintegração. No entanto, “existem algumas piores do que
outras” e, assim, qualquer ação que possa fazer com que a vida no cárcere
seja menos precária e menos prejudicial ao condenado deve ser
considerada com atenção. Dito de outro modo, “não se pode conseguir a
reintegração social do sentenciado através do cumprimento da pena,
entretanto se deve buscá-la apesar dela; ou seja, tornando menos precárias
as condições de vida no cárcere, condições essas que dificultam o alcance
dessa reintegração. (BARATTA, 2007, p. 02)
Ainda que estas ações devam ser valorizadas, ressalta-se que não
se trata da defesa de um reformismo que se restringiria apenas a produzir
“uma prisão melhor”, mas de inserir isso em uma política maior que
caminhe para a direção de um “menos cárcere”. Dentro disso, além da já
pontuada abertura do cárcere para a sociedade e da sociedade para o
cárcere, Baratta (2007, p. 02-03) situa
[...] uma drástica redução da pena, bem como atingir, ao mesmo
tempo, o máximo de progresso das possibilidades já existentes do
regime carcerário aberto e de real prática e realização dos direitos
dos apenados à educação, ao trabalho e à assistência social, e
desenvolver cada vez mais essas possibilidades na esfera do
legislativo e da administração penitenciária.
Esse aspecto dos direitos dos apenados é valorizado pelo autor,
tendo em vista o reconhecimento de que a população carcerária, em sua
maioria, pertence a grupos sociais excluídos da “sociedade ativa por
causa dos mecanismos de mercado que regulam o mundo do trabalho”
(BARATTA, 2007, p. 03). Esta condição é resultado de um processo
secundário de marginalização que interfere no processo primário e, desse
modo, a reintegração do apenado à sociedade significa,
[...] antes de tudo, corrigir as condições de exclusão social, desses
setores, para que conduzi-los a uma vida pós-penitenciária não
signifique, simplesmente, como quase sempre acontece, o regresso
à reincidência criminal, ou o à marginalização secundária e, a partir
daí, uma vez mais, a volta à prisão. (BARATTA, 2007, p.03)
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A ressocialização como finalidade da prisão
Para que isso seja possível, o autor postula que dentro da citada
reconstrução do termo tratamento haja sua vinculação à idéia de benefício
ao preso. Ou seja, advoga como necessário que todas as ações que
possam ser desenvolvidas dentro do sistema prisional sejam encaradas
pela ótica de direitos dos presos e que este sistema propicie a eles
uma série de benefícios que vão desde instrução, inclusive
profissional, até assistência médica e psicológica para
proporcionar-lhes uma oportunidade de reintegração e não mais
como um aspecto da disciplina carcerária – compensando, dessa
forma, situações de carência e privação, quase sempre freqüentes
na história de vida dos sentenciados, antes de seu ingresso na senda
do crime (BARATTA, 2007, p.03)
Como se observa a partir dessa exposição feita sobre o
posicionamento de Alessandro Baratta, na proposta de ressocialização por
ele defendida há a preocupação com os resultados que a pena surte na
vida do condenado e seu efeito estigmatizante. Concordando com tal
proposta, acrescentamos que enquanto o cárcere for necessário
socialmente ele deve, ao menos, ser útil para o indivíduo, envolvendo,
desse modo, um tratamento humanizador que procura combater a
negatividade gerada por ele e pela privação de liberdade no sentenciado.
Isto é, para nós, o caminho a ser percorrido enquanto não se atingir o
ideal de se viver em uma sociedade sem cárcere é a adoção de um
modelo ressocializador [que] propugna, portanto, pela
neutralização, na medida do possível, dos efeitos nocivos inerentes
ao castigo, por meio de uma melhora substancial ao seu regime
de cumprimento e de execução e, sobretudo, sugere uma
intervenção positiva no condenado que, longe de estigmatizálo com uma marca indelével, o habilite para integrar-se e
participar da sociedade, de forma digna e ativa, sem traumas,
limitações ou condicionamentos especiais. (MOLINA, 1998, p.
383)
Considerações Finais
Quando se pensa em prisão, a primeira imagem que tende a vir à
mente das pessoas é a de um local de muros altos, cinza, com portões
pesados e grades que separam os “bons” dos “maus”. Na medida em que
o mundo da prisão é distante da realidade da maioria das pessoas, é
também tendência acreditar-se que os indivíduos que lá se encontram
foram neutralizados, não mais representando perigo para o restante da
sociedade.
Esta falsa imagem é abalada quando se toma conhecimento, em
particular pela mídia, da ocorrência de rebeliões, de fugas ou de outros
episódios do gênero, assim como das condições subumanas em que
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Eliana Ribeiro Faustino e Sandra Regina Abreu Pires
vivem as pessoas lá segregadas. Nessas ocasiões é igualmente comum o
acirramento do debate acerca da capacidade da prisão no que tange ao
alcance da ressocialização como finalidade historicamente atribuída a ela.
A elevação dos índices de reincidência criminal, o
reconhecimento dos efeitos negativos do cárcere sobre o condenado e sua
vida após o aprisionamento, a contradição evidente entre segregar, punir
e ressocializar, dentre outros, tem levado especialistas, e parte da
sociedade, a concluir que o objetivo de ressocializar através da prisão já
nasceu fadado ao fracasso.
Tal conclusão tem servido de argumento para a defesa e adoção
de políticas de embrutecimento do sistema penal e penitenciário, da qual
tomam parte a proposição de legislação mais severa, a proliferação de
presídios de segurança máxima, a criação do Regime Disciplinar
Diferenciado e outras medidas que enfatizam muito mais a neutralização
do delinqüente do que sua ressocialização.
Frente a isso é que se põe o dilema exposto por Alessandro
Baratta. Diante, por um lado, da incapacidade comprovada da prisão para
o alcance da ressocialização e, por outro, da direção que se observa de
substituição deste ideal pelo de neutralização do delinqüente, qual a
posição a se adotar?
A nosso ver e concordando com o autor, não se trata de
abandonar o ideal ressocializador em prol de políticas de contenção
repressiva. Não se trata também de persistir em uma ressocialização que,
informada pela criminologia tradicional-conservadora intente a adaptação
incondicional do condenado aos padrões sociais instituídos. Esses dois
caminhos se mostram igualmente inócuos, inclusive no que se refere ao
enfrentamento dos prejuízos adicionais que o cárcere produz em termos
micro e macro-sociais.
Novamente concordando com o autor, entendemos que a saída
que se põe é a substituição desta ressocialização correspondente à
criminologia tradicional-conservadora por uma nova concepção
informadora de ações que, ao máximo possível dentro dos limites
objetivos e subjetivos que a realidade social e o sistema penitenciário
impõem, possa enfrentar tais prejuízos. Isto é, se o movimento histórico
não nos outorga a possibilidade real de uma sociedade sem cárcere, a
direção há de ser a construção de uma política efetiva de “menos cárcere”
e nisso se inclui também ações profissionais que possam combater os
efeitos dos processos de exclusão social que atinge a maioria da
população carcerária. Repetindo Molina (1998, p. 383), o caminho a ser
percorrido é a adoção de um
modelo ressocializador [que] propugna, portanto, pela
neutralização, na medida do possível, dos efeitos nocivos inerentes
ao castigo, por meio de uma melhora substancial ao seu regime
de cumprimento e de execução e, sobretudo, sugere uma
intervenção positiva no condenado que, longe de estigmatizálo com uma marca indelével, o habilite para integrar-se e
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A ressocialização como finalidade da prisão
participar da sociedade, de forma digna e ativa, sem traumas,
limitações ou condicionamentos especiais.
Tomando parte da construção de uma política efetiva de “menos
cárcere”, é condição sine qua non a reconstrução crítica, defendida por
Alessandro Baratta, do termo ressocialização. Substituindo-o ou não pelo
termo reintegração social, é necessário que se avance no debate de suas
teses, bem como das de outros estudiosos da Criminologia Crítica,
intentando a necessária contraposição às concepções conservadoras que
ainda hoje se mostram hegemônicas dentro do sistema penal e
penitenciário brasileiro.
Esta é, a nosso ver, uma condição também sine qua non para a
formulação de propostas concretas e viáveis para o sistema penal e
penitenciário brasileiro, propostas estas que não sejam ingênuas quanto à
possibilidade de se romper com a funcionalidade do cárcere às relações
sociais capitalistas ainda em sua vigência, mas que, como disse
Alessandro Baratta, mesmo se tendo clareza da impossibilidade de
alcançar-se a reintegração social do sentenciado através do cárcere,
intente buscá-la apesar dele.
Abstract: The subject of this text is the resocializating ideal that is originated
with modern prison at the end of the 18th century and is consolidated, along these
three centuries, as a declared essential purpose for prison. Within this subject, it
presents a survey of the meanings that the term “resocialization” has in this
trajectory, meanings that are considered relevant to the Traditional Criminology
universe. Concerning this subject, it concludes that within this universe, despite
the different nuances that it assumes historically, resocialization denotes
essentially a moral reform of the convicted, enabling him/her to live in an
extramural society in accordance with established social patterns. It also presents
some critical considerations about this resocializating ideal, resorting to
Alessandro Baratta, one of the predecessors of Critical Criminology. In this
sense, it concludes for the need of improvements towards the reconstruction of
the term “resocialization” under a critical perspective, which is a fundamental
procedure for counteracting the conservative concepts which are still hegemonic
in the Brazilian penal/penitentiary system.
Key words: prison; resocialization; traditional criminology; social reintegration;
Critical Criminology.
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A ressocialização como finalidade da prisão
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