1 priso: um breve resgate histrico de sua trajetria
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1 priso: um breve resgate histrico de sua trajetria
A ressocialização como finalidade da prisão: algumas considerações sobre seu significado Resocialization as the purpose of prison: some considerations on its meaning Eliana Ribeiro Faustino 1 Sandra Regina Abreu Pires 2 Resumo: Este texto aborda o ideal ressocializador que nasce com a prisão moderna em fins do século XVIII e se consolida, ao longo destes três séculos, como finalidade primordial declarada para o cárcere. Dentro dele, mapeia os significados que o termo ressocialização assume nesta trajetória, significados estes majoritariamente pertinentes ao universo da Criminologia Tradicional, e conclui que, apesar das diferentes nuances que assume historicamente, dentro deste universo ele denota essencialmente uma reforma moral do condenado que o habilite a viver na sociedade extramuros em harmonia com os padrões sociais instituídos. Apresenta também algumas considerações críticas a este ideal ressocializador, recorrendo primordialmente a algumas teses de Alessandro Baratta, criminologista italiano e um dos precursores da Criminologia Crítica. Neste âmbito, conclui pela necessidade de avanços ainda maiores na direção da reconstrução do termo sob uma perspectiva crítica, procedimento fundamental à necessária contraposição às concepções conservadoras que ainda se mostram hegemônicas dentro do sistema penal/penitenciário brasileiro. Palavras-chave: prisão; ressocialização; criminologia tradicional; reintegração social; Criminologia Crítica. Introdução Na literatura pertinente à área penal e penitenciária, é comum nos depararmos com a afirmativa de que a prisão moderna nasce e se desenvolve tendo como propósito o atendimento de uma tripla finalidade: punir, prevenir novos delitos e ressocializar. É comum também a afirmativa de que a ênfase deveria recair sobre a ressocialização, finalidade primordial atribuída à prisão moderna desde seu surgimento ao final do século XVIII. No entanto, em meio a esta literatura são muito mais raras publicações que explicitam o entendimento que se possui acerca desse ideal ressocializador atribuído à prisão. O presente texto se constitui em 1 2 Assistente Social. Mestre em Política Social e Serviço Social pela Universidade Estadual de Londrina e Especialista em Saúde Pública pela UNICAMP-SP. Docente do Departamento de Serviço Social da UNIESP-SP. - email: [email protected] Assistente Social. Mestre e Doutora em Serviço Social pela PUC-SP. Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. E-mail [email protected] A ressocialização como finalidade da prisão uma aproximação a esse entendimento que não se mostra unívoco, uma vez que é dependente da forma como se concebe o crime, o criminoso, a pena e a própria prisão. Nesta medida, se propõe a mapear os sentidos atribuídos a ele desde seu nascimento, envolvendo, assim, uma incursão pelo universo da criminologia tradicional que, apesar das alterações que se sofre nestes quase três séculos, ainda hoje informa em bom grau as concepções que se mostram hegemônicas dentro do sistema penitenciário brasileiro. Assim, se compõe de dois grandes itens. O primeiro é dedicado ao nascimento do ideal ressocializador e ao mapeamento das principais nuances que ele assume historicamente dentro deste universo. No segundo, apresenta algumas considerações críticas ao ideal ressocializador sob esta orientação, para o que se recorre primordialmente a algumas teses de Alessandro Baratta, criminologista italiano e um dos precursores da Criminologia Crítica. Com este escopo, o presente texto não tem pretensões de esgotamento. Ao contrário, se constitui realmente em uma aproximação a este tema tão polêmico, intentando, porém, reforçar a necessidade de se continuar no caminho, iniciado por Alessandro Baratta, de reconstrução do termo ressocialização sob uma perspectiva critica. O nascimento e o desenvolvimento do ideal ressocializador Nas abordagens acerca da trajetória histórica das penas é consensual o reconhecimento de que a prisão, até aproximadamente o século XVIII, não era entendida, em si, como sanção penal. Sua função ou principal atribuição era a de manter sob custódia o infrator enquanto a pena que lhe coubesse não fosse aplicada, emanando disso a configuração de prisão-custódia. Essa configuração era adequada ao padrão punitivo adotado até então, padrão esse denominado por Pires (2005) como Paradigma da Vingança. Correspondendo à Vingança Privada, à Vingança Divina e à Vingança Pública, as três fases evolutivas pelas quais a pena teria passado até aproximadamente o século XVIII, afirma a autora que no Paradigma da Vingança [...] a punição (pena) é concebida como vingança pelo mal sofrido (crime/desvio às normas) e se caracteriza pelo arbítrio, pela desproporcionalidade entre ofensa e punição, pela diferenciação de classe na definição e aplicação das penas e pela natureza cruel das mesmas. Caracteriza-se também por tomar o corpo do condenado como alvo da punição e por delegar à prisão, de modo preponderante, a função de custódia – espaço físico destinado apenas a guardar o condenado, evitando sua fuga, até o momento da execução da verdadeira pena, comumente de castigos corporais, de mutilação ou de morte. (PIRES, 2005) 92 Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 Eliana Ribeiro Faustino e Sandra Regina Abreu Pires A partir daquele período histórico essa função de prisão-custódia começa a ser alterada, passando o cárcere a ser utilizado como espaço para cumprimento da pena de privação de liberdade. Ou seja, a prisão passa a se constituir em sanção penal, assumindo a configuração de prisão-pena. Essa passagem é uma das manifestações do processo macrosocial em curso naquele momento histórico: o de consolidação do modo de produção capitalista e da ordem social a ele correspondente. Tal processo gera novas necessidades sociais e impõe para a burguesia como sua classe dominante um esforço em empreender e estimular a substituição de valores, dinâmicas e instituições próprias ao modo de produção feudal tendo em vista a consecução de seus interesses. É neste contexto que se tornam inteligíveis as mudanças que ocorrem no campo penal. A punição, entendida apenas como vingança e tendo como alvo prioritário o corpo do condenado, não era mais adequada, tanto do ponto de vista social, como político e econômico. Os castigos corporais, as mutilações e as penas de morte não tinham mais funcionalidade social, na medida em que, economicamente, prejudicavam a manutenção de uma mão de obra apta ao trabalho e, politicamente, não mais cumpriam a função de intimidação, como evidenciou Foucault (1997) em relação ao suplício. Era necessário instituir uma nova forma de punição que melhor se adequasse às necessidades capitalistas. Esta nova forma era a privação de liberdade que se tornou, a partir de então e cada vez mais intensamente, na alternativa “universal e excelente de punição e disciplinamento, por privar o individuo de um dos maiores bens jurídicos - o direito de ir e vir”. (ALMEIDA, 2008, p.04). Para seu cumprimento era preciso que as prisões tivessem uma estrutura e uma dinâmica diferente das existentes em períodos históricos anteriores. Começa a nascer, então, a prisão-pena ou prisão moderna e, junto com ela, o ideal ressocializador, ambos informados por um novo paradigma de entendimento de crime, de criminoso e de pena. Determinados de modo mais direto pelo processo de substituição de paradigmas e, em termos macro-sociais, pelo de consolidação do modo de produção capitalista e da ordem social a ele correspondente, o nascimento da prisão moderna e do ideal ressocializador assinalam ainda a passagem do período das vinganças para o denominado período humanitário enquanto nova fase da evolução história das penas Esta nova fase é caracterizada por um movimento de reação crítica ao sistema penal existente e de defesa em prol de reformas penais, tendo como cimento ideológico idéias liberais clássicas. Tais idéias são assumidas por vários pensadores da época, dentre eles Cesare Beccaria que é considerado o principal representante do período humanitário. Em sua obra “Dos Delitos e das Penas”, publicada em 1764, Beccaria parte da premissa liberal de que o indivíduo é um ser de sociedade, livre, consciente e racional. Com esta natureza, seu comportamento deveria reger-se pelo contrato social, isto é, pelas normas Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 93 A ressocialização como finalidade da prisão e leis criadas pelos homens para que fosse possível viver em sociedade com segurança e cuja obediência, portanto, é condição sine qua non para a sua preservação. Partindo desta premissa, o crime, sendo manifestação do comportamento do indivíduo, é considerado um ato igualmente livre e consciente. Este ato provoca um mal à vítima, mas, acima de tudo, à sociedade, pois representa um rompimento com as leis instituídas por intermédio do contrato social. Funda-se aí o direito de punir e, por conseguinte, a justificativa para a existência da pena. O Estado, como representante de toda a sociedade ligada pelo contrato social, deve, em seu nome, impor aos infratores uma justa retribuição ao mal causado. A justa retribuição é a pena, cujo objetivo é evitar que o criminoso repita novas infrações e inibir que outros cidadãos violem as leis criadas socialmente. A pena tem, assim, um caráter de defesa social e, até por isso, não poderia ter como finalidade apenas a punição e a prevenção de novos delitos. Deveria possibilitar primordialmente a recuperação ou ressocialização do infrator, o que o tornaria apto a regressar ao convívio social comportando-se dentro dos padrões instituídos. Neste sentido, neste período humanitário a recuperação ou ressocialização tem a conotação de uma reforma moral a ser empreendida na prisão durante o cumprimento da pena privativa de liberdade. Inspiradas no sistema de mosteiros da Idade Média, as prisões impunham ao condenado, em menor ou maior grau, o isolamento, o silêncio e a leitura da bíblia e, nestas condições, a ressocialização ou reforma moral seria resultado de um processo individual de reflexão e de arrependimento que o infrator efetivaria sobre si mesmo. Esse processo seria possível pelo fato de que, sendo ele um ser racional e consciente, também poderia, racional e conscientemente, arrepender-se do mal praticado e, por conseguinte, empreender autotransformações. Em síntese, sob um discurso liberal clássico “que sustentava ser o homem um indivíduo livre e senhor de si mesmo” (DIAS, 1990, p. 28), mas devendo obediência ao contrato firmado socialmente, a prisão se põe como lugar para reforma daqueles que, de modo voluntário e consciente, romperam com tal contrato. O objetivo da prisão era defender e proteger a sociedade contra aqueles que violaram o pacto social e, para isso, era necessário que ela possibilitasse a recuperação ou ressocialização do condenado. È por isso que a prisão é a forma punitiva que melhor correspondia a este discurso: enquanto espaço de cumprimento da pena privativa de liberdade, através dela seria possível, ao mesmo tempo, punir o infrator (pela retirada da liberdade que era considerada o maior bem do indivíduo) e outorgar a ele as condições necessárias para que efetivasse sobre si mesmo uma reforma moral que permitiria seu retorno à sociedade extramuros em condições de obedecer às normas sociais instituídas. Esse significado de recuperação ou ressocialização sofre alterações na medida em que, notadamente a partir de meados do século 94 Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 Eliana Ribeiro Faustino e Sandra Regina Abreu Pires XIX, faz-se sentir cada vez mais fortemente a influência do pensamento conservador de base positivista no campo penal e penitenciário. Tal orientação foi assumida exemplarmente pela Escola Positivista Italiana do Direito Penal, cujas teses se tornam hegemônicas na nova fase da evolução das penas que se inicia naquele momento histórico: o período criminológico ou científico. Inaugurada pelo médico psiquiatra e criminalista italiano Cesare Lombroso 3 , a Escola Positivista Italiana do Direito Penal dirige seus esforços para o exame do criminoso e de sua personalidade. No entanto, esses esforços têm como parâmetro os postulados cientificistas surgidos no transcorrer do século XIX e a decorrente tendência em aplicar ao estudo do criminoso os mesmos métodos das ciências naturais. Sob este parâmetro, o agente do crime não é mais visualizado como um indivíduo amoral que rompeu com as normas sociais de forma consciente e livre. Ao invés de amoral, ele é tido como um “anormal”, isto é, detentor de uma anormalidade de ordem natural e de fundo hereditário que o qualifica, ao mesmo tempo, como um doente e um ser primitivo/atávico 4 . Abordando este aspecto, Lima (2006, p. 45) afirma que “concebendo [a] personalidade como conjunto de elementos psicofísicos que determina o ajustamento do indivíduo ao meio em que vive, [se] entenderá que anomalias hereditárias, neurológicas ou psíquicas desempenham papel principal na formação da personalidade do delinqüente e, assim, na prática do crime”. Por conseguinte, o crime não é mais interpretado como ato consciente e livre do indivíduo, mas como manifestação da personalidade de seres biologicamente anormais, condição que autoriza a defesa de que os mesmos precisam ser tratados mais do que punidos. Sob este prisma, a finalidade da pena continua sendo a recuperação ou ressocialização, mas ela não é mais resultado de um processo individual de reflexão processado pelo infrator com vistas ao arrependimento pelo mal causado a vitima e a sociedade. Agora ela se torna sinônimo de “cura”, a ser alcançada mediante um tratamento a ser efetuado durante o cumprimento de pena. Em decorrência, a natureza e a finalidade da prisão se modificam substancialmente. Ela não é mais o local destinado à segregação do infrator para que este, com seus próprios recursos, processe o arrependimento. A prisão é agora o espaço privilegiado para que profissionais especialmente qualificados realizem sobre ele um tratamento penal, profissionais esses que “de início, exatamente pelo tipo 3 4 Representante, segundo Lima (2006), da fase antropológica da Escola Positivista Italiana do Direito Penal. São também considerados fundadores desta Escola os italianos Enrico Ferri, representante da fase sociológica (Sociologia Criminal), e Raffaele Garófalo, representante da fase jurídica. O criminoso é, “tanto do ponto de vista físico como mental, um atávico: portador de características herdadas de ascendentes remotos e que se apresenta ainda não ‘evoluído’ como as ‘pessoas normais’” (LIMA, 2006, p. 47). Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 95 A ressocialização como finalidade da prisão de orientação assumida pela Escola Positivista, [são basicamente] da área médica, em especial da psiquiatria” (LIMA, 2006, p. 51). São eles que, a partir do estudo aprofundado da personalidade do infrator e do diagnóstico das “anomalias hereditárias, neurológicas ou psíquicas” que causaram seu comportamento criminoso, efetuarão sua classificação e aplicarão sobre ele terapias consideradas adequadas para atingir o fim almejado. Por via de conseqüência, depreende-se que a recuperação ou ressocialização continua sendo concebida como sinônimo de uma reforma moral que facultaria ao infrator, no seu retorno à sociedade extramuros, uma vivência dentro dos padrões de normalidade instituídos. No entanto, apreendida sob uma lógica médica-psiquiátrica, ela assume uma conotação diferenciada em relação ao período humanitário: a recuperação, ressocialização ou reforma é resultado de um processo de cura ao qual o infrator é submetido na prisão mediante ações dos profissionais nela inseridos. No decurso dos séculos XIX e XX vão surgindo novas Escolas Penais que, opondo-se a estas concepções correspondentes à Escola Positivista Italiana do Direito Penal, fornecem novas teses explicativas para o crime e para seus agentes. Por força dos debates que se instalam 5 , a supremacia da explicação do crime como um fenômeno de ordem natural e do criminoso como um ser biologicamente anormal sofre um gradativo refluxo. No entanto, isso não representa uma ruptura com o padrão de entendimento de crime, de criminoso, de pena e de prisão que impera no início do período criminológico sob influência quase que exclusiva da Escola Positivista Italiana do Direito Penal. Ao contrário, uma vez que as novas escolas tendem a se manter majoritariamente dentro do mesmo universo conservador, o que se observa é muito mais um aperfeiçoamento ou modernização desse padrão, contribuindo para a construção de uma criminologia que pode ser denominada de tradicional por pautar-se em um corpo conceitual e ideológico de orientação igualmente conservadora. É desta criminologia que emana o discurso ressocializador que permeia o pensamento criminológico nos séculos XIX e XX e que ainda hoje se conserva hegemônico no âmbito do sistema penal e penitenciário. Por este discurso, ainda que o agente do crime não seja mais concebido como um ser biologicamente anormal, ele continua sendo apreendido sob uma ótica de inferioridade moral – uma espécie de doente social, posto que é incapaz de viver dentro dos padrões de normalidade como os demais membros da sociedade. Por conseguinte, sua recuperação ou ressocialização (agora recebendo denominações como reabilitação, reeducação, reintegração e outras) continua sendo sinônimo de reforma moral. Esta, por sua vez, continua sendo dependente de um tratamento penal, entendido por Magnabosco (1998, p.15) como 5 Os quais, evidentemente, acompanham e expressam as mudanças que se processam na própria realidade social. 96 Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 Eliana Ribeiro Faustino e Sandra Regina Abreu Pires ponto de união entre o direito penal e a criminologia e [que] compreende um conjunto de medidas sociológicas, educativas, psicológicas e de métodos científicos que são usados em ações junto ao delinqüente com o objetivo de tentar modelar sua personalidade, preparar sua reinserção social e prevenir a reincidência. De fato, na medida em que o crime não é mais concebido como um fenômeno de ordem natural, cujas causas residem majoritariamente em fatores biogenéticos, mas resultado de múltiplas determinações, incluindo as de caráter social, impõe-se agora a necessidade de ampliação da equipe técnica a existir no interior das prisões. Impõe-se a necessidade de recrutar profissionais de outras áreas de conhecimento que, junto com os da área médica-psiquiátrica, serão responsáveis pelas medidas e ações que consubstanciam o tratamento penal. O trabalho destes profissionais continua demandando obrigatoriamente o estudo aprofundado da personalidade do delinqüente, mas um estudo que agora deve ter um caráter multidisciplinar para a formulação do diagnóstico das múltiplas determinações causais do comportamento criminoso. Continua envolvendo ainda, com base nestes estudos e diagnósticos, a definição de um plano de tratamento adequado à consecução do objetivo da pena que é a recuperação ou ressocialização do condenado. Dito de outro modo, um tratamento que, em última instância, nada mais é que o resultado esperado da reforma moral a ser empreendida sobre o condenado no interior das prisões. É essa concepção que, a nosso ver, está na base do sistema progressivo de cumprimento de pena que surge no século XIX e que é adotado ainda nos dias atuais no Brasil e em vários outros países. Introduzindo o elemento de “vontade” do indivíduo encarcerado, objetiva, através da passagem do mesmo por fases de cumprimento mais rígidas para menos rígidas, sua moldagem para um futuro retorno não conflituoso com a sociedade instituída. Isto é, repetindo Magnabosco (1998, p.15), objetiva “modelar sua personalidade, preparar sua reinserção social e prevenir a reincidência”. É também essa concepção que nos parece ser a base orientadora do documento “Conceitos Norteadores da Proposta do Modelo Institucional para o Centro de Observação Criminológica” disponibilizado pela Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça por meio da Coordenadoria de Estabelecimentos Penitenciários do Estado de São Paulo 6 . 6 Tivemos acesso a uma cópia parcial deste documento, na qual não constam o autor, a data de elaboração ou o contexto de sua divulgação. Porém, por suas características, inferimos que o mesmo deve ter sido divulgado como material didático de algum curso realizado na década de 1980, pois a Coordenadoria de Estabelecimentos Penitenciários do Estado (COESP) foi criada no ano de 1979 e, em março de 1991, as unidades prisionais de São Paulo passaram a ser responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública. Esclarece-se que atualmente tal responsabilidade é da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), criada em 1993. Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 97 A ressocialização como finalidade da prisão Pautado quase que exclusivamente em materiais elaborados por Suraia Daher, este documento expressa o entendimento de que o objetivo social da execução penal é a Reabilitação, definida como “processo educativo e recriativo do indivíduo preso visando ao discernimento quanto a atitude anti-social e a prática de ações contrárias à lei frente a sua responsabilidade social” (SÃO PAULO, COESP, [198_], p. 1). Este processo maior de Reabilitação envolveria três outros intermediários: Reeducação, Reintegração Social e Ressocialização, cada qual a ser desenvolvido nos diferentes estágios progressivos de cumprimento de pena. Assim, nas unidades destinadas ao cumprimento de pena privativa de liberdade em Regime Fechado se efetivaria a primeira fase da Reabilitação que seria a de Reeducação, isto é, “processo formal e informal de desenvolvimento, em instituições penais, formando o conjunto de Terapêutica Social e as ações da Segurança e Disciplina, compatíveis com o modelo terapêutico” (SÃO PAULO, COESP, [198_], p. 1). Na seqüência viria o segundo processo, a ser desenvolvido no interior dos estabelecimentos destinados ao cumprimento de pena privativa de liberdade em Regime Semi-Aberto, Aberto ou sob outras formas que implicam cumprimento de pena em liberdade (livramento condicional, por exemplo). Trata-se da Reintegração Social, definida como ‘processo formal’, [realizado] através de ‘Terapêutica Social’, visando [em relação ao condenado] seu crescimento e/ou desenvolvimento de compreensão dos seus papeis, sua interação com o meio sócio-cultural, bem como se possíveis mudanças de comportamento lhe permitam, para ‘ressocializar-se’, não reincidir em conduta anti-social e manter-se, e à sua família, como produto de seu trabalho. (SÃO PAULO, COESP, [198_], p. 1-2) Tendo passado e tendo sido “instrumentalizado” por estes dois estágios, o condenado ingressaria na terceira fase: a Ressocialização, concebida como “processo informal auto-desenvolvido pelo ex-apenado, já no convívio social [...], e que se efetiva pelo progressivo e contínuo exercício de papéis nos grupos de convivência, objetivando sua plena participação social” (SÃO PAULO, COESP, [198_], p. 2) Como pode ser observado, embora concebidos como processos distintos, a Reeducação, a Reintegração Social e a Ressocialização comparecem no documento como etapas seqüenciais que dependem da realização, dentro das unidades penais, de uma Terapêutica Social. Isto é, de um “processo formal, desenvolvido [...] através do enfoque bio-psicosocial, visando a instrumentalizar o presidiário para a busca de possíveis mudanças comportamentais e habilitação em termos educacionais e profissionais” (SÃO PAULO, COESP, [198_], p. 1) Nesta medida, é possível afirmar que todos os processos acima mencionados visam resultados comuns. São eles: o reconhecimento de que ato cometido, pelo qual o indivíduo foi condenado, se constitui em conduta anti-social e, portanto, prejudicial à sociedade; o reconhecimento 98 Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 Eliana Ribeiro Faustino e Sandra Regina Abreu Pires e posterior desempenho de papéis sociais adequados à vida extramuros; a concretização de mudanças de comportamento que permitam uma harmoniosa “interação com o meio sócio-cultural” fora do cárcere; e a não reincidência criminal. Enfim, traduzindo a orientação antes mencionada que emana da Criminologia Tradicional, o resultado postulado pelo documento é que o cárcere transforme (ou re-transforme) o indivíduo em um trabalhador consciente de seus deveres e obediente aos padrões sociais vigentes, lembrando Michael Foucault (1997, p. 208) em sua tese de que a prisão é, “antes de tudo, uma empresa de modificações de indivíduos”. .Abordando este assunto, Pires (2005) também afirma que é este o significado subjacente aos diferentes termos utilizados para descrever a finalidade da prisão. Para a autora, ainda que reeducação, reintegração, ressocialização, reabilitação e outros vocábulos afins possam ser empregados em outros contextos com significados distintos, no sistema penal e penitenciário eles apontam, em última instância, para um processo (re)educativo a ser desenvolvido no interior das unidades penais, pelo qual o individuo seja (re)habitado para viver novamente em sociedade. (Re)aprendizado de ditames sociais que oportuniza o (re)conhecimento, por parte do individuo, de suas atitudes anti-sociais e contrárias à lei, permitindo a consecução de mudanças comportamentais que, por sua vez, permitirão sua (re) adaptação aos padrões socialmente aceitos. (PIRES, 2005, s/p.) Este posicionamento é também compartilhado por Alvino Sá (2005, p. 12), para quem termos como “’tratamento’, ‘recuperação’ e ‘reabilitação’ estão relacionados a uma forma tradicional de interpretar a conduta criminosa, forma essa apoiada na idéia de que tal conduta é fruto de algum desajuste ou desvio de comportamento por parte do infrator”. Pressupõe que a mudança deva ocorrer somente por parte do preso para que esse possa, então, adaptar-se à sociedade considerada perfeita. A seguir, apresenta-se uma crítica mais detalhada a essa forma tradicional de interpretar a conduta criminosa e, portanto, ao discurso ressocializador que nasce em fins do século XVIII e que, com as devidas adequações, perdura até os dias de hoje. Alguns apontamentos críticos ao ideal ressocializador Como mencionado, o surgimento da prisão moderna só pode ser verdadeiramente compreendido no contexto do processo macro-social de instalação e consolidação do modo de produção capitalista. Em substituição aos castigos corporais, às mutilações e às penas capitais que não tinham mais funcionalidade social, era necessário engendrar um novo sistema punitivo e nele cumpria papel principal o aprisionamento. Nascia, então, a prisão moderna cumprindo uma dupla função para a sociedade emergente: por um lado, segregar aqueles indivíduos que podiam, seja Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 99 A ressocialização como finalidade da prisão pela contestação ou pela resistência pacífica, ameaçar a ordem que se instalava e, por outro, aproveitá-los para o trabalho necessário à acumulação do capital. É sob esta perspectiva que as primeiras prisões, algumas surgindo antes mesmo do século XVIII, se assemelhavam a depósitos que abrigavam “marginalizados” de toda a ordem: prostitutas, loucos, mendigos, ladrões e outros. É também sob esta perspectiva que, quase que concomitantemente, surgem as Workhouses (Casas de Trabalho) com o objetivo explícito de punir os que se recusavam ao trabalho e, através disso, intimidar os demais membros da sociedade. Como concluem Rusche e Kircheimer (2004), o objetivo dela era o de explorar a força de trabalho e de contribuir para sua posterior sujeição ao mercado capitalista. Este objetivo continua inerente à prisão mesmo quando, em fins do século XVIII e início do século XIX, nos marcos do mencionado período humanitário, se espalham por todo o continente europeu e americano uma série de reformas penais e, dentro delas, a adoção de diferentes modelos de prisão. No modelo prisional de Auburn 7 , por exemplo, o trabalho continua figurando como elemento essencial na recuperação do condenado, embora o cárcere já não se destinasse mais, pelo menos não abertamente, a recolher os que se recusavam ao trabalho. Surgindo em um momento em que o modo de produção capitalista já havia se instalado e caminhava para a consolidação, o Sistema de Auburn é coerente com um contexto de acelerado desenvolvimento econômico-industrial, levando Lemgruber (1997, p. 02) a declarar que a criação do mesmo “orientou-se, sobretudo, pela motivação econômica de explorar o trabalho dos presos”. Para obtenção de um trabalho lucrativo era necessária a utilização de máquinas de grande porte e em grandes espaços físicos e só o trabalho coletivo corresponderia a tais exigências. Na mesma linha de raciocínio, Rusche e Kirchheimer (2004, p. 183) afirmam que este método de confinamento solitário à noite e trabalho coletivo nas oficinas durante o dia permitiu a organização dos prisioneiros com o máximo de eficiência industrial. Com a difusão gradual da maquinaria, este método teve uma vantagem tremenda sobre qualquer sistema celular. Porém, como demonstram os estudos de Michael Foucault, a funcionalidade da prisão não se restringe a essa dimensão econômica. Ao lado dela, e somando-se a ela, há a dimensão política, visando, através do controle e da disciplina, a sujeição do condenado. Para o autor, na 7 O modelo de Auburn se originou no Estado de Nova York em 1.818 com a construção de uma penitenciária na cidade americana com o mesmo nome. Nele se impunha ao preso o trabalho dentro da cela ou fora dela durante o dia e um isolamento total durante o período noturno. Rusche e Kirchheimer (2004, p. 183) afirmam que este sistema se “tornou praticamente sinônimo de administração penal americana”, sendo adotado em quase todas as prisões daquele país. 100 Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 Eliana Ribeiro Faustino e Sandra Regina Abreu Pires sociedade moderna a obediência e a hierarquia, intrínsecas às relações de poder, permitem a utilização de mecanismos e ferramentas que produzem efeitos positivos no controle e sujeição do indivíduo, sem violar a estrutura física do corpo. Isto se dá pela disciplina que implica na docilidade e na utilidade dos corpos: A disciplina aumenta as forças do corpo em termos econômicos de utilidade, e diminui essas mesmas forças em termos políticos de obediência. Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado “aptidão”, uma capacidade que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, instaurando uma relação de sujeição. Se a exploração econômica separa a força e o produto de trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada. Golpe de força eficiente e racionalizador da sociedade moderna, no seu modo específico de instaurar mecanismos estimuladores de condutas desejáveis. (FOUCAULT, 1997, p.119) Como se observa, o autor chama a atenção para o duplo intento da disciplina. Por um lado, a utilidade dos corpos no sentido de produzirem mais e em melhores condições de eficiência/eficácia, atendendo ao propósito de acumulação capitalista e, por outro, no sentido político, a docilidade para aceitar a ordem estabelecida, sustentando, assim, a hierarquia social e o comando por parte da classe dominante. Desse modo, a utilidade econômica não se desvincula da utilidade política, contribuindo, ambas, para o mesmo fim: a adaptação do indivíduo às relações sociais estabelecidas. Para o autor, isto não se aplica apenas aos encarcerados. A disciplina é a forma de controle utilizada não só nas prisões, mas também nas fábricas, nas escolas e nas organizações militares, entre outras. É por isso que, se referindo ao Panóptico 8 , afirma que, com algumas adequações, ele pôde ser utilizado para diferentes fins, como hospitais, fábricas e escolas. Nas palavras de Foucault (1997, p. 170), “é polivalente em todas as suas aplicações: Serve para emendar os prisioneiros, mas também para cuidar dos doentes, instruir os estudantes, guardar os loucos, fiscalizar os operários, fazer trabalhar os mendigos e ociosos”. Partindo do princípio de que a disciplina e o controle são inerentes às instituições capitalistas, suas prisões não poderiam ter um papel diferente. Como declaram Rusche e Kircheimer (2004, p.153), “todo sistema de produção tende a descobrir e a utilizar sistemas punitivos que correspondem às próprias relações de produção” e a forma punitiva que melhor correspondia às nascentes relações burguesas era 8 Modelo de prisão proposto por Jeremy Benthan no século XVIII. A arquitetura do Panóptico consistia na disposição das celas ao redor de uma torre central, onde ficava o responsável pela vigilância, permitindo o “olhar sem ser visto”. O prisioneiro não podia ver o vigilante, o que gerava para ele a impressão constante de estar sendo vigiado. Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 101 A ressocialização como finalidade da prisão justamente a prisão-pena e seu ideal ressocializador. A seguinte afirmativa de Dias (1990, p. 28) ilustra exemplarmente isso: [a prisão é] uma Instituição que deve se tornar senhor de tudo o que pode acontecer a um homem, e esta certeza correspondia à sociedade disciplinar que surge no fim do século XVIII, em meio às pregações de um discurso social e político que sustentava ser o homem um indivíduo livre e senhor de si mesmo. Uma sociedade disciplinar que organiza o espaço e sua ocupação, marca e controla o tempo, vigia e registra tanto o indivíduo como sua conduta e sua vontade. Assim, o que esta sociedade esperava da prisão por ela fundada, era a ressocializaçao de indivíduos indisciplinados, isto é, treinar seus corpos e almas para a obediência, para a vida disciplinada e servil. Ser também um exemplo para todos, principalmente é óbvio, para os dominados. De fato, a sociedade burguesa se instituiu sustentada por um discurso liberal clássico que, transposto para a área penal, sustentou a construção de uma nova forma de conceber o crime, o criminoso e a pena. Essa nova forma, ainda que exaltando o caráter injusto e cruel do sistema punitivo correspondente à sociedade feudal, encobria a verdadeira finalidade esperada para a prisão: o acima mencionado treinamento dos “corpos e almas para a obediência, para a vida disciplinada e servil”. Dito de outro modo, o tom humanizador do discurso liberal sob o qual nasce a prisão e o ideal ressocializador não elimina o fato de que “prisão moderna é, antes de tudo, uma empresa de modificações de indivíduos” (FOUCAULT, 1997, p. 208) para o capital. Como pontuado anteriormente, é isso que está na base de sua declarada finalidade de recuperar ou ressocializar o delinqüente, finalidade esta conservada em toda a trajetória evolutiva da prisão desde o século XVIII até os dias atuais. Como também pontuado, mesmo com as mudanças processadas no decurso desta trajetória evolutiva nas formas de se conceber o crime, o criminoso, a pena e a própria prisão, não se verificou alterações no sentido subjacente a essa finalidade. Ou seja, a recuperação ou ressocialização se manteve sempre como sinônimo de uma reforma moral do condenado com vistas a uma vivência posterior na sociedade extramuros regulada e em conformidade com os padrões sociais instituídos. De um ponto de vista crítico, se não restam dúvidas de que este foi o papel historicamente delegado à prisão moderna, não há igualmente dúvidas de que em seus quase três séculos de existência o mesmo não tem sido cumprido. Como disse Foucault (1997), a prisão é um espaço de contradição por produzir delinqüência enquanto busca a ressocialização e, assim, ao invés de alcançar a ressocialização como objetivo declarado da prisão, ela só é capaz de contribuir para a [...] manutenção da delinqüência, na indução do interno a se tornar reincidente; ela transforma o infrator ocasional com seus pequenos delitos e ilegalidades em delinqüente habitual; a organização da 102 Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 Eliana Ribeiro Faustino e Sandra Regina Abreu Pires “sociedade do cárcere” ajuda a promover a solidariedade entre os internos para o mundo do crime e da delinqüência. (FOUCAULT, 1997, p. 240) Confirmando esta afirmativa, em meio a estudos acerca da prisão é freqüente a exposição de argumentos ressaltando sua ineficácia para fins ressocializadores, estando dentre eles os altos índices de reincidência criminal, os efeitos nocivos que a cultura prisional exerce sobre o condenado e sua posterior estigmatização na sociedade extramuros. Realmente, a segregação do preso em relação à sociedade; a perda dos vínculos familiares e afetivos; a forçosa adaptação do sujeito à vida no cárcere e a decorrente incorporação de valores, normas e regras típicos da prisão; a adoção de comportamentos correspondentes à cultura prisional que fortalecem a perda de capacidade do preso para a vida em liberdade, enfim, estas e outras condições adversas inerentes ao aprisionamento fazem com que sejam cada vez mais comuns afirmativas como a abaixo: A ressocialização não pode ser conseguida numa instituição como a prisão. Os centros de execução penal, as penitenciarias, tendem a converter-se num microcosmo no qual se reproduzem a se agravam as graves contradições que existem no sistema social exterior (…). A pena privativa de liberdade não ressocializa o recluso, impedindo sua plena reincorporação ao meio social. (MIRABETTE, 2000, p. 24) Compartilhando deste entendimento, Alessandro Baratta (2007) afirma que o tratamento reeducativo e ressocializador como fim último da pena, bem como a possibilidade de fazer do cárcere lugar e meio de ressocialização, foi se perdendo quase que completamente diante, por um lado, dos escassos resultados que o cárcere tem apresentado em termos de reabilitação e, de outro, das transformações que ocorreram nas últimas décadas. Uma dessas transformações é a crise do Welfare State que “se espalhou em todo o mundo ocidental entre os anos de 70 e 80 e suprimiu boa parte da base material dos recursos econômicos destinados a sustentar uma política prisional de ressocialização efetiva” (BARATTA, 2007, p. 01). A outra transformação apontada pelo autor é a de que, frente às ameaças terroristas, vários países têm efetivado contra-reformas de caráter mais repressivo, as quais têm incidido negativamente exatamente sobre aspectos que teriam potencial para facilitar a ressocialização. A seguinte colocação de Garland (apud ARGUELO, 2006, p.01) aborda este aspecto: Nas últimas décadas, houve um recrudescimento das estratégias de contenção repressiva das classes consideradas potencialmente perigosas em quase todos os países ocidentais. As medidas que configuram tal postura são pouco originais e singularmente violentas: condenações mais severas, encarceramento massivo, leis Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 103 A ressocialização como finalidade da prisão que estabelecem condenações obrigatórias mínimas e perpetuidade automática no terceiro crime (three strikes and you re out), estigmatização penal, restrições à liberdade condicional, leis que autorizam prisões de segurança máxima, reintrodução de castigos corporais, multiplicação de delitos aos quais são aplicáveis pena de morte, encarceramento de crianças (aplicação de legislação criminal adulta aos menores de 16 anos), políticas de tolerância zero, etc. Tendo isso em vista, Baratta (2007) afirma que já é consensual entre os especialistas o reconhecimento da incapacidade da prisão no que se refere à ressocialização do condenado. Tal consenso não se estende, porém, aos rumos que deveriam ser dados à prisão, sendo possível apontar quanto a isso duas grandes posições, nominadas pelo autor de realista e de idealista. Partindo da premissa de que a prisão não é capaz de se constituir em espaço de ressocialização, os adeptos da posição realista defendem que o máximo que ela pode fazer é neutralizar o delinqüente. Em decorrência, fazem coro ao discurso oficial da prisão como prevenção especial negativa (neutralização ou incapacitação do delinqüente) que está na base do acima citado recrudescimento das estratégias de contenção repressiva. No extremo oposto estão os que se inserem na posição idealista que permanecem na defesa da prisão como espaço de prevenção especial positiva (ressocialização). Mesmo admitindo seu fracasso para este fim, advogam que é preciso manter a idéia da ressocialização, já que seu abandono acabaria reforçando o caráter punitivo da pena, dando à prisão a única função de excluir da sociedade aqueles que são considerados delinqüentes. Para Baratta (2007) nenhum desses dois pólos é aceitável. Para ele, a prisão, do modo como se apresenta, é realmente incapaz de promover a ressocialização; ao contrário, o que ela tem produzido realmente são obstáculos ao alcance deste objetivo. No entanto, apesar desse reconhecimento, sustenta que o intuito não deve ser abandonado, mas reconstruído e, nesta reconstrução, propõe a substituição dos termos ressocialização e tratamento pelo de reintegração social. Um dos argumentos para esta substituição é o próprio significado subjacente a estes termos. A seu ver, ressocialização e tratamento denotam “uma postura passiva do detento e ativa das instituições: são heranças anacrônicas da velha criminologia positivista que tinha o condenado como um indivíduo anormal e inferior que precisava ser (re) adaptado à sociedade, considerando acriticamente esta como ‘boa’ e aquele como ‘mau’”. (BARATTA, 2007, p. 3). Em oposição, o termo reintegração social pressupõe a igualdade entre as partes envolvidas no processo, já que requer a “abertura de um processo de comunicação e interação entre a prisão e a sociedade, no qual os cidadãos reclusos se reconheçam na sociedade e esta, por sua vez, se reconheça na prisão” (BARATTA, 2007, p. 03). 104 Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 Eliana Ribeiro Faustino e Sandra Regina Abreu Pires Concordando com este posicionamento acerca da terminologia reintegração social, Alvino Sá acrescenta que a oposição aos termos reabilitação e ressocialização dá-se pela responsabilidade que a sociedade passa a ter neste processo. Em suas palavras, “pela reintegração social, a sociedade (re) inclui aqueles que ela excluiu, através de estratégias nas quais esses excluídos tenham uma participação ativa, isto é, não como meros ‘objetos de assistência’, mas como sujeitos”. (SÁ, 2005, p. 11) Outro aspecto abordado por Alessandro Baratta (2007, p. 02) em seus argumentos em prol da reconstrução do termo reintegração é a questão das condições de cárcere. Em sua opinião, tanto sob o prisma da integração social como do criminoso, “a melhor prisão é, sem dúvida, a que não existe”, uma vez que não há nenhuma prisão boa o suficiente para atingir a reintegração. No entanto, “existem algumas piores do que outras” e, assim, qualquer ação que possa fazer com que a vida no cárcere seja menos precária e menos prejudicial ao condenado deve ser considerada com atenção. Dito de outro modo, “não se pode conseguir a reintegração social do sentenciado através do cumprimento da pena, entretanto se deve buscá-la apesar dela; ou seja, tornando menos precárias as condições de vida no cárcere, condições essas que dificultam o alcance dessa reintegração. (BARATTA, 2007, p. 02) Ainda que estas ações devam ser valorizadas, ressalta-se que não se trata da defesa de um reformismo que se restringiria apenas a produzir “uma prisão melhor”, mas de inserir isso em uma política maior que caminhe para a direção de um “menos cárcere”. Dentro disso, além da já pontuada abertura do cárcere para a sociedade e da sociedade para o cárcere, Baratta (2007, p. 02-03) situa [...] uma drástica redução da pena, bem como atingir, ao mesmo tempo, o máximo de progresso das possibilidades já existentes do regime carcerário aberto e de real prática e realização dos direitos dos apenados à educação, ao trabalho e à assistência social, e desenvolver cada vez mais essas possibilidades na esfera do legislativo e da administração penitenciária. Esse aspecto dos direitos dos apenados é valorizado pelo autor, tendo em vista o reconhecimento de que a população carcerária, em sua maioria, pertence a grupos sociais excluídos da “sociedade ativa por causa dos mecanismos de mercado que regulam o mundo do trabalho” (BARATTA, 2007, p. 03). Esta condição é resultado de um processo secundário de marginalização que interfere no processo primário e, desse modo, a reintegração do apenado à sociedade significa, [...] antes de tudo, corrigir as condições de exclusão social, desses setores, para que conduzi-los a uma vida pós-penitenciária não signifique, simplesmente, como quase sempre acontece, o regresso à reincidência criminal, ou o à marginalização secundária e, a partir daí, uma vez mais, a volta à prisão. (BARATTA, 2007, p.03) Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 105 A ressocialização como finalidade da prisão Para que isso seja possível, o autor postula que dentro da citada reconstrução do termo tratamento haja sua vinculação à idéia de benefício ao preso. Ou seja, advoga como necessário que todas as ações que possam ser desenvolvidas dentro do sistema prisional sejam encaradas pela ótica de direitos dos presos e que este sistema propicie a eles uma série de benefícios que vão desde instrução, inclusive profissional, até assistência médica e psicológica para proporcionar-lhes uma oportunidade de reintegração e não mais como um aspecto da disciplina carcerária – compensando, dessa forma, situações de carência e privação, quase sempre freqüentes na história de vida dos sentenciados, antes de seu ingresso na senda do crime (BARATTA, 2007, p.03) Como se observa a partir dessa exposição feita sobre o posicionamento de Alessandro Baratta, na proposta de ressocialização por ele defendida há a preocupação com os resultados que a pena surte na vida do condenado e seu efeito estigmatizante. Concordando com tal proposta, acrescentamos que enquanto o cárcere for necessário socialmente ele deve, ao menos, ser útil para o indivíduo, envolvendo, desse modo, um tratamento humanizador que procura combater a negatividade gerada por ele e pela privação de liberdade no sentenciado. Isto é, para nós, o caminho a ser percorrido enquanto não se atingir o ideal de se viver em uma sociedade sem cárcere é a adoção de um modelo ressocializador [que] propugna, portanto, pela neutralização, na medida do possível, dos efeitos nocivos inerentes ao castigo, por meio de uma melhora substancial ao seu regime de cumprimento e de execução e, sobretudo, sugere uma intervenção positiva no condenado que, longe de estigmatizálo com uma marca indelével, o habilite para integrar-se e participar da sociedade, de forma digna e ativa, sem traumas, limitações ou condicionamentos especiais. (MOLINA, 1998, p. 383) Considerações Finais Quando se pensa em prisão, a primeira imagem que tende a vir à mente das pessoas é a de um local de muros altos, cinza, com portões pesados e grades que separam os “bons” dos “maus”. Na medida em que o mundo da prisão é distante da realidade da maioria das pessoas, é também tendência acreditar-se que os indivíduos que lá se encontram foram neutralizados, não mais representando perigo para o restante da sociedade. Esta falsa imagem é abalada quando se toma conhecimento, em particular pela mídia, da ocorrência de rebeliões, de fugas ou de outros episódios do gênero, assim como das condições subumanas em que 106 Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 Eliana Ribeiro Faustino e Sandra Regina Abreu Pires vivem as pessoas lá segregadas. Nessas ocasiões é igualmente comum o acirramento do debate acerca da capacidade da prisão no que tange ao alcance da ressocialização como finalidade historicamente atribuída a ela. A elevação dos índices de reincidência criminal, o reconhecimento dos efeitos negativos do cárcere sobre o condenado e sua vida após o aprisionamento, a contradição evidente entre segregar, punir e ressocializar, dentre outros, tem levado especialistas, e parte da sociedade, a concluir que o objetivo de ressocializar através da prisão já nasceu fadado ao fracasso. Tal conclusão tem servido de argumento para a defesa e adoção de políticas de embrutecimento do sistema penal e penitenciário, da qual tomam parte a proposição de legislação mais severa, a proliferação de presídios de segurança máxima, a criação do Regime Disciplinar Diferenciado e outras medidas que enfatizam muito mais a neutralização do delinqüente do que sua ressocialização. Frente a isso é que se põe o dilema exposto por Alessandro Baratta. Diante, por um lado, da incapacidade comprovada da prisão para o alcance da ressocialização e, por outro, da direção que se observa de substituição deste ideal pelo de neutralização do delinqüente, qual a posição a se adotar? A nosso ver e concordando com o autor, não se trata de abandonar o ideal ressocializador em prol de políticas de contenção repressiva. Não se trata também de persistir em uma ressocialização que, informada pela criminologia tradicional-conservadora intente a adaptação incondicional do condenado aos padrões sociais instituídos. Esses dois caminhos se mostram igualmente inócuos, inclusive no que se refere ao enfrentamento dos prejuízos adicionais que o cárcere produz em termos micro e macro-sociais. Novamente concordando com o autor, entendemos que a saída que se põe é a substituição desta ressocialização correspondente à criminologia tradicional-conservadora por uma nova concepção informadora de ações que, ao máximo possível dentro dos limites objetivos e subjetivos que a realidade social e o sistema penitenciário impõem, possa enfrentar tais prejuízos. Isto é, se o movimento histórico não nos outorga a possibilidade real de uma sociedade sem cárcere, a direção há de ser a construção de uma política efetiva de “menos cárcere” e nisso se inclui também ações profissionais que possam combater os efeitos dos processos de exclusão social que atinge a maioria da população carcerária. Repetindo Molina (1998, p. 383), o caminho a ser percorrido é a adoção de um modelo ressocializador [que] propugna, portanto, pela neutralização, na medida do possível, dos efeitos nocivos inerentes ao castigo, por meio de uma melhora substancial ao seu regime de cumprimento e de execução e, sobretudo, sugere uma intervenção positiva no condenado que, longe de estigmatizálo com uma marca indelével, o habilite para integrar-se e Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 107 A ressocialização como finalidade da prisão participar da sociedade, de forma digna e ativa, sem traumas, limitações ou condicionamentos especiais. Tomando parte da construção de uma política efetiva de “menos cárcere”, é condição sine qua non a reconstrução crítica, defendida por Alessandro Baratta, do termo ressocialização. Substituindo-o ou não pelo termo reintegração social, é necessário que se avance no debate de suas teses, bem como das de outros estudiosos da Criminologia Crítica, intentando a necessária contraposição às concepções conservadoras que ainda hoje se mostram hegemônicas dentro do sistema penal e penitenciário brasileiro. Esta é, a nosso ver, uma condição também sine qua non para a formulação de propostas concretas e viáveis para o sistema penal e penitenciário brasileiro, propostas estas que não sejam ingênuas quanto à possibilidade de se romper com a funcionalidade do cárcere às relações sociais capitalistas ainda em sua vigência, mas que, como disse Alessandro Baratta, mesmo se tendo clareza da impossibilidade de alcançar-se a reintegração social do sentenciado através do cárcere, intente buscá-la apesar dele. Abstract: The subject of this text is the resocializating ideal that is originated with modern prison at the end of the 18th century and is consolidated, along these three centuries, as a declared essential purpose for prison. Within this subject, it presents a survey of the meanings that the term “resocialization” has in this trajectory, meanings that are considered relevant to the Traditional Criminology universe. Concerning this subject, it concludes that within this universe, despite the different nuances that it assumes historically, resocialization denotes essentially a moral reform of the convicted, enabling him/her to live in an extramural society in accordance with established social patterns. It also presents some critical considerations about this resocializating ideal, resorting to Alessandro Baratta, one of the predecessors of Critical Criminology. In this sense, it concludes for the need of improvements towards the reconstruction of the term “resocialization” under a critical perspective, which is a fundamental procedure for counteracting the conservative concepts which are still hegemonic in the Brazilian penal/penitentiary system. Key words: prison; resocialization; traditional criminology; social reintegration; Critical Criminology. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Adriana, R. de. Os dois lados da grade. Disponível em <http://www.franca.unesp.br/Os%20Dois%20Lados%20%20Da520Grad e.pdf>. Acesso em 10/jan/08. 108 Sociedade em Debate, Pelotas, 15(2):91-109, jul.-dez./2009 Eliana Ribeiro Faustino e Sandra Regina Abreu Pires ARGUELLO, Katie. Uma abordagem criminológica – Crítica das finalidades subjacentes à Pena de Prisão. In: Revista Espaço Acadêmico, nº 67, Dez 2006. BARATTA, Alessandro. Ressocialização ou Controle Social: Uma Abordagem Crítica de “Reintegração Social” do Sentenciado. 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