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Deficiência de Proteína C
em grávida
14
com coagulopatia de consumo
Carla Basílio*, Fátima Abreu**, Jorge Tavares***
* Interna Complementar
** Assistente Hospitalar
** Director de Serviço de Anestesiologia do Hospital S. João e Professor Catedrático da Faculdade de Medicina do Porto
Departamento de Anestesiologia e Cuidados Intensivos do Hospital de S. João - Porto
Resumo | Abstract
As alterações fisiológicas na hemostase durante a gravidez geram um estado de hipercoagulabilidade que condiciona
um maior risco de fenómenos tromboembólicos. A presença de uma trombofilia, hereditária ou adquirida, aumenta este
risco e traduz-se num aumento da morbilidade e mortalidade.
O caso clínico descrito refere-se a uma grávida com história de trombose venosa que apresenta um quadro de
tromboembolismo pulmonar e isquemia aguda dos membros inferiores, complicado por coagulação intravascular disseminada
e morte fetal tardia. O estudo pró-trombótico revelou uma hemofilia hereditária: deficiência de proteína C.
A Proteína C é um inibidor major da coagulação. Os indivíduos com deficiência de Proteína C têm um risco de
trombose venosa superior ao da população em geral e este risco aumenta durante a gravidez e puerpério.
Palavras Chave: Deficiência de Proteína C; Anestesia; Trombofilia; Gravidez.
Normal pregnancy is associated with acquired changes in haemostatic factors that contribute to the hypercoagulable state.
Thrombophilia, acquired or inherited, increase the risk of thromboembolic events, with higher morbility and mortality.
The authors report a case of a pregnant patient with protein C deficiency. She had a history of venous thrombosis with
subsequent pulmonary embolism and acute limb ischaemia complicated with disseminated intravascular coagulation and fetal loss.
The laboratory tests revealed a protein C deficiency.
Protein C is a major anticoagulant. The risk for thrombotic events is greater in patients with protein C deficiency, rather
than in the general population and increase during pregnancy and the puerperium.
Key words: Protein C deficiency; Anaesthesia;Thrombophilia; Pregnancy.
CORRESPONDÊNCIA:
Carla Basílio
Praça Fernando campos nº 90, 2º andar Hab.13
4425 Maia
Tlm.: 966 181 293
E-mail: [email protected]
Revista SPA ‘ vol. 14 ‘ nº 3 ‘ Outubro 2005
Introdução
As alterações fisiológicas na hemostase durante a gravidez
proporcionam um mecanismo protector que minimiza a
hemorragia durante o parto, mas, ao mesmo tempo, geram
um estado de hipercoagulabilidade com aumento do risco
trombótico (6 vezes maior que nas mulheres não grávidas).[1,2]
A trombofilia, hereditária ou adquirida, é um estado
patológico caracterizado por uma tendência para fenómenos
trombóticos.[1]
É apresentado um caso clínico de deficiência de
proteína C (trombofilia hereditária) em grávida com história
de fenómenos trombóticos que desenvolveu um quadro
de coagulação intravascular disseminada (CID) e morte
fetal tardia e que condicionou sequelas permanentes graves.
A Proteína C é uma glicoproteína dependente da
vitamina K, sintetizada no fígado; é um inibidor major da
coagulação cuja acção contraria a produção de trombina
pela actividade inibitória dos factores Va e VIIIa e é potenciada
pela actividade do co-factor Proteína S. O complexo
trombomodulina-trombina activa a Proteína C resultando
numa incapacidade de converter o fibrinogénio em fibrina
e de activar o Factor VIII e as plaquetas.[3] Durante a gravidez
o seu nível mantém-se inalterado ou apresenta um ligeiro
aumento, enquanto se verifica uma diminuição do nível de
Proteína S.[1]
A Deficiência de Proteína C é uma trombofilia
hereditária rara, autossómica dominante, presente em 0,2
-0,4% da população[1,4] e em cerca de 3% da população
com história de tromboembolismo.[4,5] No Tipo I, mais
frequente, verifica-se uma redução da função biológica e
imunológica da proteína. O Tipo II caracteriza-se por níveis
antigénicos de Proteína C normais, embora com actividade
funcional diminuída. Os homozigóticos apresentam a
“Síndrome de Púrpura Fulminante Fetal”, em regra, fatal nos
primeiros dias de vida. O diagnóstico laboratorial de
Deficiência de Proteína C baseia-se nos níveis biológicos
e imunológicos de proteína C.[5]
Os indivíduos com Deficiência de Proteína C têm
um risco de trombose venosa 3 a 6 vezes superior ao da
população em geral; a percentagem de tromboembolismo
durante gravidez e puerpério é de 3-10% e 7-19%,
respectivamente.[6] As trombofilias hereditárias estão
também associadas a abortamentos recorrentes, elevado
risco de morte fetal tardia in útero, restrição de crescimento
fetal, pré-eclampsia e complicações vasculares tardias.[1,4]
O tromboembolismo é uma das causas mais
importantes de morbilidade e mortalidade materna. O
período de maior risco é no pós-parto. Apenas 20% das
gravidezes não medicadas de mulheres com trombofilia
resultam em nados vivos,[1] pelo que é recomendada uma
tromboprofilaxia adequada.
A abordagem anestésica dos portadores de
trombofilias com regimes terapêuticos ou profiláticos de
tromboembolismo exige cuidados específicos na execução
de técnicas loco-regionais. Estas são potencialmente
vantajosas em termos de morbilidade e mortalidade, mas
precisam de ser ajustadas e planeadas.[7,8] O anestesiologista
também deve estar atento à incidência aumentada de
trombose venosa profunda (TVP) e tromboembolismo
pulmonar (TEP), com o uso preventivo de meias de
contenção elástica e analgesia eficaz para mobilização
precoce.[7]
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Caso Clínico
Doente de 23 anos, sexo feminino, grávida de 31 semanas,
admitida na sala de emergência do HSJ, agitada, desorientada,
pouco colaborante, com frequência cardíaca de 85
batimentos/min, tensão arterial de 146/78mmHg, frequência
respiratória de 36 ciclos/min e tiragem intercostal; auscultação
cardiopulmonar normal; membros inferiores frios, cianosados
com preenchimento capilar prolongado; hemorragia
espontânea nasal e gengival. Antecedentes de internamento,
duas semanas antes, por trombose venosa profunda do
membro inferior, medicada com heparina que a doente não
fez. Antecedentes pessoais e familiares irrelevantes.
O estudo analítico efectuado revelou:
GV 3.96X1012/L, Hb 13.5 g/dl, Htc 38.2%, Leucócitos
10.04X109/L, Neutrófilos 59.6%, Linfócitos 36.5%, Plaquetas
62X109/L, pH 7.15, pCO2 29.2 mmHg, pO2 57.4 mmHg,
HCO2¯ 10.0 mmol/L, SO2 78.4%, Lactatos 9.8 mmol/L,
aPTT 53.4 seg,T. Quick 15.2 seg, P&P 1.5 U/ml, Fibrinogénio
77.0 mg/dl, D-Dímeros > 231.3 g/ml. O ecocardiograma
transtorácico, na admissão, mostrou disfunção ventricular
direita e comunicação interauricular. A ecografia obstétrica
revelou feto morto in útero.
Dado o estado de agitação e a insuficiência
respiratória, a doente foi intubada na sala de emergência
com administração de tiopental (5 mg/kg) e succinilcolina
(1 mg/kg), em sequência rápida, seguida de perfusão
endovenosa de midazolam (6mg/hora). Foram administrados
glóbulos rubros, plaquetas, plasma fresco e fibrinogénio.
Foi transferida para o bloco operatório para extracção de
feto morto por cesariana sob anestesia geral endovenosa
mantida com fentanil (3 g/kg) e midazolam em perfusão. A
cirurgia decorreu sem intercorrências. No pós-operatório
foi internada na UCI desenvolvendo disfunção multiorgânica.
Ao 18º dia foi transferida para a enfermaria após amputação
do membro inferior esquerdo. O estudo analítico efectuado
durante o internamento revelou: Atc lúpico negativo, Atc
anticardiolipina (IgG e IgM) normal, homocisteína normal,
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AT-III normal, Resist. PCA negativo, Proteína S 0.3 U/mL
(0.50-1.40 U/mL), Proteína C 0.44 U/mL (0,75-1,25 U/mL).
Teve alta hospitalar ao 20º dia.
O diagnóstico de Deficiência de Proteína C foi
confirmado 6 meses depois (Proteína C: 0,17 U/mL).
Discussão
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A doente, grávida de 31 semanas, foi admitida na
sala de emergência com evidência de insuficiência respiratória,
alteração do estado de consciência, sinais de isquemia dos
membros inferiores e hemorragia espontânea. A história
de trombose venosa profunda recente orientou o diagnóstico
para um quadro de tromboembolismo complicado com
CID e feto morto.
A suspeita de tromboembolismo pulmonar como
causa da insuficiência respiratória apresentada pela doente
na sala de emergência foi confirmada pela evidência de
disfunção ventricular direita no ecocardiograma. A
probabilidade de ocorrência de tromboembolia arterial,
existente nos estados de hipercoagulabilidade,[5] é aumentada
pela presença de comunicação interauricular, a qual foi
confirmada pelo ecocardiograma.
A relação causa-efeito entre morte fetal e quadro de CID
não está completamente entendida. Por um lado, a trombofilia
materna pode ser factor de risco para a morte fetal tardia
através da trombose dos vasos deciduais e enfartes
placentários com a consequente alteração da circulação
placentária e baixa perfusão sanguínea. Por outro lado, as
complicações obstétricas podem facilmente activar a
hemostase de forma excessiva, com risco de ocorrer CID
e falência multiorgânica.[1] No entanto, o feto morto in
útero é certamente um factor que perpetua um estado de
CID, pelo que a sua extracção é mandatória e urgente.
O diagnóstico prévio de trombose venosa profunda
dos membros inferiores motivou a prescrição de
hipocoagulação com doses terapêuticas de heparina durante
6 meses. No entanto, a doente não seguiu a prescrição
terapêutica, o que pode ter contribuido para a recidiva dos
fenómenos trombóticos. As grávidas com trombofilia devem
efectuar uma profilaxia adequada com 4000-5000 UI antiXa
de heparina de baixo peso molecular ou 7500 UI de heparina
não fraccionada cada 8-12 horas por via subcutânea, a partir
do 1º ou 2º trimestre de gravidez e até 6 semanas pósparto, podendo a heparina ser substituída por anticoagulantes
orais, mantendo um INR entre 2.0-3.0, durante a
amamentação.[2]
Do ponto de vista anestésico, foi preponderante
a atitude no pré-operatório, com manutenção de um estado
hemodinâmico e respiratório estáveis e a correcção da
coagulação com a administração de sangue e derivados, e
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durante o acto cirúrgico, com a manutenção anestésica.
À excepção da isquemia irreversível de um dos
membros, com necessidade de amputação, pelos fenómenos
tromboembólicos arteriais, não se verificaram outras sequelas
permanentes.
Os testes diagnósticos de trombofilia não são
fidedignos no decurso dos fenómenos trombóticos e durante
o uso de anticoagulantes, pelo que estes só devem ser
realizados cerca de um mês após interrupção do tratamento
hipocoagulante.[9] Por isso, embora o estudo pró-trombótico
durante o internamento da doente revelasse uma diminuição
dos níveis de proteína C, o diagnóstico definitivo apenas foi
possível após 6 meses.
Conclusão
O caso clínico apresentado demonstra a elevada morbilidade
associada aos fenómenos tromboembólicos e complicações
obstétricas associadas em situações de trombofilia.
A gravidez é um factor de risco para fenómenos
trombóticos, o que justifica o crescente interesse da
trombofilia em Obstetrícia. O estudo de trombofilia em
mulheres em idade fértil com história familiar ou pessoal
de trombose venosa e/ou complicações obstétricas é
sustentado por alguns estudos que também corroboram a
realização de tromboprofilaxia durante a gravidez. [1]
A heparina não fraccionada e a heparina de baixo
peso molecular são os fármacos de eleição no tratamento
e profilaxia de tromboembolismo venoso na gravidez,
embora sejam necessários mais estudos para estabelecer
o tipo de heparina mais eficaz e segura.[1] A aspirina usase nas grávidas que apresentam défices neurológicos focais
ou enfartes cerebrais.[2]
As questões relacionadas com a anestesia e a
deficiência de proteína C, assim como em todas as
trombofilias, estão pouco documentadas. No entanto, o seu
reconhecimento e abordagem em procedimentos electivos
e de urgência revestem-se de extrema importância na
redução da morbilidade e mortalidade perioperatórias. As
opções anestésicas são particularizadas ao contexto clínico.
O recurso a um bloqueio neuroaxial deve resultar da
possibilidade do cumprimento das normas estabelecidas
para o seu uso em doentes hipocoagulados.
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