Referências - cbp- círculo brasileiro de psicanálise

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Referências - cbp- círculo brasileiro de psicanálise
ESTUDOS DE
PSICANÁLISE
ISSN - 0100-3437
Publicação do
Círculo Brasileiro de Psicanálise
Estudos de Psicanálise
Belo Horizonte-MG
N. 40
P. 15 – 142
Dezembro/2013
REVISTA
ESTUDOS DE
PSICANÁLISE
Indexada em:
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Esta revista é encaminhada como doação para todas as bibliotecas
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Os artigos são de total responsabilidade dos autores.
F ic ha C ata l o g r á f ic a
ESTUDOS DE PSICANÁLISE. Belo Horizonte. Círculo Brasileiro de Psicanálise,
n. 40, dez. 2013. 142 p.
Semestral. ISSN: 0100-3437 – 28 x 21cm
1. Psicanálise – periódicos
Revista Estudos de Psicanálise
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Sumário
11
Editorial
15
Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais
Some caracteristics about love relations in nowdays
Ana Cristina Teixeira da Costa Salles
Nina Rosa Artuzo Sanches
Rosa Maria Gouvêa Abras
21
O primata perverso polimorfo
The polymorphous perverse primate
Anchyses Jobim Lopes
31
As per-versões na clínica psicanalítica
The per-versions in the psychoanalityc clinic
Cibele Prado Barbieri
37
Vínculos entre modernidade,
ética e subjetivação no pensamento de Freud
Links between modernity,
ethics and subjectivity in Freud’s works
Eduardo Leal Cunha
Joel Birman
49
O inapanhável objeto do savoir-faire na análise
The elusory object of know-how in analysis
Erik Porge
Traduçao: Elisa dos Mares Guia-Menendez
Mariana Valério Orlandi
63
Holograma dinâmico recursivo para uma teoria
topográfica da relação psicanalítica
Dynamic Recursive Hologram for
a Typographical Theory of Psychoanalytical Relationship
Gabriele Lenti
Tradução: Otavio A. Peixoto, B.A., M.A.
71
O setting analítico na clínica cotidiana
Analytical setting in everyday clinic
Glória Barros
79
A criança, o artista e o analisando:
a psicanálise e a invenção de mundos
The child, the artist and the analyzed:
psychoanalysis and worlds creation
Luciana Knijnik
85
De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza”
From Simone de Beauvoir to “Fifty shades of gray”
Maria Carolina Bellico Fonseca
91
O contador de histórias: vínculos e identificações
The Storyteller: Identification and Bonds
Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski
Luís Antônio Franckowiak Pokorski
101
O outro da dor
The partner of the pain
Ricardo Azevedo Barreto
107
Alguns pensa-res sobre estados subjetivos
de desafio ao processo analítico
Some thoughts about subjective states that defy the
psychoanalytical process
Stetina Trani de Meneses e Dacorso
113
Das relações entre o empobrecimento psíquico
e o empobrecimento material
About the relations between the psychic impoverishment and
material impoverishment
Valéria Wanda da Silva Fonsêca
119
Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion
Reflection about the “theory of thinking”, by Bion
Waleska Pessato Farenzena Fochesatto
123
O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento
psíquico: distinguindo dois tipos de violência
Monitoring of major psychological distress in adolescents:
distinguishing two types of violence
Wilfried Gontran
Stéphanie Mousset
Marília Etienne Arreguy
137
Normas de publicação
141
Roteiro de avaliação dos artigos
Editorial
Um jardim de pétalas de lágrimas
Uma estação de secas lágrimas...
Quem é o ser humano contemporâneo? É alguém que se constitui de modo singular?
Como a psicanálise pode contribuir para sua compreensão? Por que a psicanálise é muito antagonizada em alguns ambientes? A psicanálise não tem o que dizer sobre a hiperatividade, a
dislexia, o autismo, entre tantas e tantas formas de existir das quais, não de modo raro, alguns
discursos se arvoram de modo global do saber? A psicanálise pode desabar em desvalia por
causa do utilitarismo em prol de uma suposta evolução científico-cultural-social-tecnicista?
As explicações genéticas e da estrutura cerebral abarcam quase tudo, e há muito pouco para a
psicanálise e seus questionamentos em respeito ao humano? Freud não mais explica? Como os
psicanalistas entendem os laços sociais atuais? O mundo se desumanizou?
As pétalas das lágrimas...
Por que não falar, chorar, sorrir, reconhecer enigmas e trabalhar conflitos? A psicanálise
desvenda... Não nada conforme a correnteza. Não promete saúde, bem-estar, sucesso, completude, felicidade plena... Para os psicanalistas, nem todas as pessoas são analisáveis... nem tudo
é analisável... e acessível. A psicanálise possibilita uma escuta eticamente aprofundada do ser
humano nas particularidades de seus desejos, seus limites, suas travessias... e respeita a busca
de cada um.
São as indagações que mobilizam a cenografia e a topografia psicanalíticas. Nosso labor
é desalienar... Nosso trabalho é com o que não se localiza na consciência, o que está externo ao
“saber que se sabe”. E escrevemos sobre o que nos resta... como seres humanos! A linguagem?
É nosso “tesouro de significantes”... nas aventuras das modalidades do subjetivar-se nos fios
enovelados da comunicação.
Com a graça da Palavra, de suas ruas e avenidas, encorpando o estado da arte psicanalítica, a revista Estudos de Psicanálise, em seu segundo número de 2013 (n. 40), tem encanto
próprio e científico, contando atualmente com seis editores muito dedicados ao compromisso da psicanálise com o ser humano e a sociedade: Anchyses Jobim Lopes (CBP-RJ), Cibele
Prado Barbieri (CPB), Isabela Santoro Campanário (CPMG), Marcelo Wanderley Bouwman
(CPP), Noeli Reck Maggi (CPRS) e a minha pessoa, Ricardo Azevedo Barreto (CPS).
Agradecemos à Diretoria 2012-2014 do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), presidido pela estimada e competente Stetina Trani de Meneses e Dacorso (CBP-RJ), aos conselhos
consultivo e editorial da revista, aos editores que nos antecederam, por desbravar espaços e
construir pontes, a todos os profissionais que trabalharam direta ou indiretamente conosco
para o desenvolvimento da qualidade técnico-científica e de linguagem da revista, aos autores
deste número de nossa publicação por suas valiosas contribuições e aos nossos leitores a partir
dos quais se constrói um campo de interlocução interminável.
Presenteamos a todos com este mais novo acervo de escritos da revista Estudos de Psicanálise, cuja beleza intrínseca também se expressa na sensível capa que o veste, fotografia de
uma pintura de Maria da Conceição Azevedo Barreto, Ceiça, que desvela a busca do autoconhecimento do ser no que redesenha, reconstitui ou reinventa da experiência sentida com seus
pincéis e tintas... de vida.
O jardim...
Enfim, nosso ofício na psicanálise... na clínica, na escrita, em diferentes contextos... é
com as vivas lágrimas... os afetos. O contato com o humano, ser da linguagem, desnuda os
excessos das “folhagens” de modo poético. Surgem transformações, as pétalas das lágrimas, as
flores em suas tonalidades e nuanças... As rosas têm espinhos... Como um jardim de pétalas de
lágrimas, apresentamos, nesta revista, um pouco do pulsar da existência num tempo em que
não é incomum a coisificação do ser. Nossa resistência, em um sentido político de reconfiguração de forças, é lutar para a sobrevivência do humano.
Muito obrigado aos que nos acompanham.
Ricardo Azevedo Barreto
Editor
Sán d or Ferenczi, 1873–193 3
Para Ferenczi seria preciso
tornar a técnica mais elástica,
de maneira a favorecer a expressão afetiva.
O privilégio dado à expressão de afetos
na análise provocou, assim, uma ampliação
cada vez maior dos limites do permitido
na clínica, chegando-se à formulação
de um princípio de relaxamento
como contraponto ao de abstinência (1927).
Ferenczi introduz seu projeto
de “soltar as línguas” nas análises,
implicando e convocando o analista
à adoção de um estilo clínico diferenciado,
resgatando a criatividade do analisando,
exercitando a sua capacidade de brincar,
fantasiar e imaginar. Ele aborda o conceito
de contratransferência como algo que não
dificultaria a análise, mas que faz parte
da própria técnica a ser empregada.
O manejo técnico deve dosar bem a empatia
e a capacidade de “sentir com”, e o processo
é conduzido melhor a partir da análise
pessoal do analista, que o capacitará para
avaliar a situação analítica a distância.
Esse é o entendimento que Ferenczi
tem do analista elástico.
(BARROS, Glória)
Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais
Algumas características
dos laços amorosos nos dias atuais
Some characteristics about love relation nowadays
Ana Cristina Teixeira da Costa Salles
Nina Rosa Artuzo Sanches
Rosa Maria Gouvêa Abras
Resumo
Através de conceitos freudianos e lacanianos e usando de exemplos da clínica, as autoras analisam as mudanças nas relações amorosas nos dias atuais.
Palavras-chave: Relação anaclítica, Relação narcísica, Objeto-fetiche, Objeto-devastação, Geração Y.
Introdução
A psicanálise tem um discurso próprio, resultante de mais de um século de produção
teórico-clínica de Freud e seus seguidores. Se,
de início, ela causou escândalo, com sua nova
visão de homem e suas relações, com o passar do tempo, seu discurso foi sendo maciçamente assimilado pela cultura, correndo risco de perder sua virulência e sua capacidade
de inovação. Essa absorção se fez notar de forma mais enfática a partir dos anos cinquenta.
Em relação à vida amorosa, em que a
sexualidade faz seus laços, vemos com frequência a incorporação de conceitos psicanalíticos ser usada pelo discurso social,
com o objetivo de julgar e medir o grau de
adaptação e patologia dos relacionamentos.
A apropriação da psicanálise por ideologias
de cunho moralizante, ao propor um ideal
de felicidade amorosa, nada mais faz do que
tentar transformá-la em um instrumento de
controle social no sentido da higienização e
medicalização da vida privada.
Como Freud, pensamos que a felicidade
não está na programação do homem (O mal-estar na civilização, Freud, 1974, p. 94), não
cabendo ao psicanalista estabelecer modelos
para um casal feliz e adaptado.
Em vez de propormos um discurso fechado sobre a sexualidade e a vida amorosa,
pensamos ampliar nossa escuta para podermos captar o que ocorre hoje, neste início de
século, tomando a sexualidade em sentido
lato, assim como as variações quanto às formas de escolhas próprias do nosso tempo.
As grandes mudanças sociais, políticas,
tecnológicas e científicas das últimas décadas transformaram as sociedades ocidentais
em sociedades globalizadas onde quem dita
às regras é o mercado.
Baumann define a vida líquida na sociedade “líquido-moderna” como uma “vida
de consumo” que projeta o mundo e todos
os seus fragmentos animados e inanimados
como objetos de consumo” (Baumann,
2007, p. 16).
Segundo Pereira Mendes (2013, p. 1)
Se a sociedade freudiana era vitoriana e patriarcal, favorecendo a histeria e o mascaramento
das pulsões e do desejo, a sociedade atual, que
teve lugar a partir da década de 60, se notabiliza pela radicalização das sensações e pelo
deslizamento veloz em torno de novos objetos
de desejo, proporcionando o aparecimento do
gozo, da depressão e das montagens perversas.
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 15–20 | Dezembro/2013
15
Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais
Nos dias atuais, ou seja, tempo da hipermodernidade, verifica-se uma diversidade
tanto na composição quanto nas formas de
relacionamentos. Existe um número considerável de pessoas adultas que moram sozinhas. Cresce
também consideravelmente o número de
mulheres que não desejam mais ter filhos
(Revista Veja, maio 2013). O casamento tradicional homem-mulher, onde o homem é o
provedor, e a mulher é principalmente a espectadora e suporte da vida do marido e dos
filhos, não é mais o único modelo. A entrada
da mulher no mercado de trabalho mudou
radicalmente as relações familiares.
Ao mesmo tempo, avanços tecnológicos transformaram a noção de concepção e
paternidade, através de pesquisas e estudos
no campo da infertilidade proporcionando
o aparecimento de famílias monoparentais,
onde a presença do pai não tem mais o mesmo peso de antigamente. Outra grande mudança diz respeito à legalização das relações
homoafetivas e a adoção de crianças por casais homossexuais.
O discurso amoroso do século XXI
O discurso amoroso do século XXI, decorrente das mudanças advindas da nova moral
cultural e das características das sociedades
de consumo apresenta traços particulares:
as relações são instáveis e fugazes, o objeto
amoroso é descartável como qualquer objeto
na lógica do consumo.
As relações têm que ser light no sentido da
falta de compromisso, mas ao mesmo tempo
têm de ser algo da ordem de um excesso e
do espetacular. Não há diferença entre o público e o privado, Encontros e rompimentos
são vividos e totalmente compartilhados nas
redes sociais.
Como disse Baumann (2007, p. 11),
[...] ligações frouxas e compromissos revogáveis
são os preceitos que orientam os laços entre os
indivíduos. Ligar-se ligeiramente a qualquer
coisa que se apresente e abandoná-la rapida16
mente é o que conta. Viver no presente e pelo
presente obtendo o máximo de satisfação possível, evitando as inquietudes e sofrimentos,
priorizando os finais rápidos e indolores, pois
sem eles seria impossível recomeçar é um imperativo.
Evitar o luto, atenuar a dor, diminuir a angústia e calar o sofrimento frente às perdas e
decepções afetivas são as soluções mais buscadas atualmente.
Quanto aos namoros, alguns mantêm o
padrão tradicional como um treinamento
para um futuro compromisso, mas, na maioria das vezes, ninguém é responsável por
ninguém... Cada um que cuide de si e procure se defender dos sofrimentos da separação.
Frente a tantas transformações da era vitoriana aos dias atuais, gostaríamos de saber
o que mudou nos registros simbólico e imaginário.
As eleições amorosas ainda seguem os
mesmos padrões descritos por Freud e Lacan?
Tipos de escolhas de objetos em Freud
Em Freud vamos encontrar dois tipos de escolha de objeto: a escolha de objeto narcísica e a escolha de objeto anaclítica (FREUD,
1974, p. 94). Na escolha de objeto narcísica
o modelo é a relação do indivíduo consigo
mesmo. É uma relação marcada pela onipotência, onde as limitações, os enganos e os
erros são vividos como ofensa pessoal.
Na escolha de objeto anaclítica, a pulsão
sexual está apoiada na pulsão de autoconservação. É uma escolha regressiva e complementar — mulher que alimenta e homem
que protege. Infantilizante para um, acentua
o papel parental do outro.
A escolha narcísica ativa está do lado
masculino, e a escolha anaclítica, passiva,
está do lado do feminino Em relação à mulher, Freud estabeleceu duas condições que
determinam a escolha. O objeto deverá ser
um substituto paterno: o complexo de castração leva a mulher a se afastar da mãe (a
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Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais
quem atribui à falta de um pênis) e a achar
no pai uma posição de descanso.
O homem deve redundar num filho: que
seu homem seja um pai e que seu homem
seja um filho. A síntese deve caminhar para a
resolução da maternidade: seu homem é pai
de seu filho.
Dentro dessa perspectiva, a escolha conjugal é correlativa às fixações infantis, marcas deixadas pelo encontro com os pais. Se
para Freud o encontro com o objeto é sempre um reencontro, o laço amoroso teria um
valor de um sintoma, tentativa de restituição
e montagem de um fantasma. Nos interessa
saber se encontraremos hoje as mesmas condições descritas por Freud, isto é, o peso do
operador narcísico e do complexo de Édipo
nas eleições do objeto.
Um exemplo
da mulher freudiana do século XIX
Isabel Orléans de Bragança, Condessa d’Eu,
nasceu em 13 jul. 1847. Com 4 anos foi reconhecida como herdeira da Coroa brasileira.
Cresceu como princesa que teria de fortalecer o princípio monárquico, apesar de ser
mulher... Ser mulher naquela época significava “o belo defeito da natureza”, “o vaso frágil” no qual o homem depositava sua semente. A inferioridade feminina era um dado
natural, e o marido seu guardião e tutor por
excelência.
Isabel era uma criança gorda, dócil, obediente e bondosa. Sua mãe era pacata e religiosa. Seu pai, o imperador Dom Pedro II,
embora a valorizasse como filha, parecia incapaz de aceitá-la como sua sucessora. Aos
19 anos se casa com Dom Gastão d’Eu, conde francês, em um casamento arranjado, mas
por quem se apaixonou imediatamente. Ele
era carinhoso, e ela fazia tudo para agradá-lo. Isabel era o retrato acabado da noiva romântica do século XIX.
Gastão queria participar da política e dos
negócios da corte, mas Dom Pedro o impedia. Isabel, por seu lado, era totalmente desinteressada pelo reino. Nada do que dissesse
respeito à vida pública parecia preocupá-la.
Isabel confirmava as impressões do pai: lugar
da mulher era não na política, mas em casa.
Só lhe importava a vida privada, o ninho dos
pombos. Quando Gastão parte para a Guerra
do Paraguai, ela escreve: “Meu querido, meu
bem-amado, meu amigo, meu tudo”. Sem rodeios, dizia-lhe que sentia falta de suas carícias e da cama vazia. Com o nascimento
dos filhos, passam a viver cada vez mais uma
vida burguesa. Diferentemente dos casamentos das elites, eram amigos, companheiros e
dormiam juntos. Quando Gastão parte para
uma viagem, Isabel lhe escreve: “Vou me deitar bem só! Bem triste e bem saudosa!!! Boa
noite querido do meu coração!!!”.
Isabel detestava substituir o pai quando
ele viajava. Nada queria saber sobre a abolição dos escravos e o movimento republicano.
A oposição a acusava de pouco inteligente,
histérica, fanática religiosa e incompetente.
Acusava o casal de fútil e egoísta. Após a Proclamação da República, a família parte para
o exílio.
As contribuições de Lacan
Lacan, em sua teorização, contribuiu para a
compreensão freudiana ao mostrar que o sujeito pode ficar preso numa captura narcísica,
para evitar o encontro angustiante do que ele é
como objeto para o Outro. No início, essa captura narcísica inscreve-se no sujeito quando ele
reflete a imagem que corresponde ao desejo dos
pais ou da família e está articulada à constituição do sujeito como um tempo lógico e estruturante, o Estádio do espelho, em que sua imagem refletida é autenticada pelo Outro. Essa
ilusão narcísica de completude é a condição
necessária do sujeito e sua inscrição no campo
do Outro, no simbólico. Corre-se, entretanto, o
risco de se ficar preso no imaginário, ao ideal,
numa alienação à imagem e, portanto, detido,
paralisado. O encontro com o desejo do outro é
sempre enigmático e angustiante para o sujeito,
pois nunca se sabe o que pode advir. As relações
amorosas, que são expressões de laços sociais,
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Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais
geralmente refletem essa forma de vínculo alienante em que o sujeito evita a renúncia de ser
o objeto imaginário que obtura a falta do Outro, renúncia que possibilita o acesso ao desejo
(Salles; Ceccarelli, 2010, p. 22).
Para Lacan, a escolha narcisista é marcada
pelo imaginário: elege-se um semelhante. É
um tipo de eleição ativa, onde o que importa
para o sujeito é amar; não importa se o outro
ama ou não. Já na escolha anaclítica, o que
importa é ser amado. Faz-se a escolha de um
outro que o apoia e quer. É mais uma relação
com o grande Outro.
A posição anaclítica é a que melhor convém ao homem, pois é ele que tem algo para
satisfazer a mulher. A mulher encontra nele
o objeto que lhe falta. O que Lacan evidencia é o poder feminino que se funda sobre a
pobreza, o não ter e, em nome da falta, obter,
pedir e perseguir. Nessa relação o homem
sofre por não poder deixar de dar à mulher o
objeto que lhe falta.
A mulher sofre de duas faltas: a falta-a-ser, que constitui todo ser humano e a falta
de um significante, que define a feminilidade. Por isso, ela se aproxima do homem na
relação amorosa pedindo que ele a defina. Se
uma mulher aspira encontrar seu homem,
é precisamente como uma consequência de
não “ser toda” e precisar de uma ancoragem
para seu ser e para o seu gozo. Para isso, ela
aceita ser as diversas mascaradas, inclusive a
“masoquista”; “ela é capaz de dar tudo para
o homem, seu corpo, sua alma, seus bens”
(Zalcberg, 2007, p. 141). Uma mulher faz
tudo para ser amada. Ela, na falta de definição, precisa de palavras, palavras de amor,
e se elas não vêm, advém uma verdadeira
devastação que, ao final das contas, revive o
relacionamento mortífero com a figura materna na infância.
A mulher é para o homem um sintoma
(objeto a). Por isso, o sintoma do homem (o
de que só pode amar uma parte da mulher,
nunca ela por inteiro) tem uma profunda
repercussão sobre a mulher. Para ela, trata18
-se de uma devastação, nunca ser amada por
inteiro. Por isso também, o amor é tão insistente e tão importante para a mulher, assim
como as palavras de amor, que representam
para ela uma restauração narcísica. O sentimento de perda de amor é muitas vezes vivido como uma devastação.
Uma mulher lacaniana - a devastação
Eles estão por volta dos trinta anos. Ele é
profissional liberal bem-sucedido, preocupado com a aparência, mora sozinho. Ela é
funcionária pública federal com alto salário.
Muito bonita, mora com os pais. Estão juntos há seis anos, mas ele não quer casar. A
justificativa dele é “preciso de liberdade”. Ele
exige que ela se apresente sempre impecável,
que tenha um bom carro, que se exercite, que
mantenha o peso. Controla o tempo todo o
que ela come. Viajam muito e sempre dividem todas as contas. Ela cuida da casa dele,
desde a decoração até as contas, lavanderia,
supermercado, empresta seu carro quando o
dele vai para a oficina. Ele sai semanalmente
sozinho para encontrar os amigos e as amigas. Muitas vezes ela o leva e busca nesses
encontros. Quando ele chega em casa e não a
encontra, liga reclamando que não tem nada
para comer. Certa noite, ao sair da casa dele
às duas da madrugada, teve um pneu furado
e a roda do carro quebrada, em uma rua escura e perigosa. Teve de resolver o problema
com o porteiro de um prédio. Não pode ligar para o namorado, porque ele sempre avisa quando ela sai da sua casa “não me ligue
quando chegar em casa, porque já vou estar
dormindo”. Devastada, chega ao analista.
Para finalizar, mais algumas questões
Um homem faz da mulher o objeto a como
mais-de-gozar em sua fantasia, mas o inverso
não é verdadeiro. Os objetos a na fantasia de
uma mulher são seus filhos. Como fica essa
máxima psicanalítica nos dias atuais? Como
dissemos anteriormente, cresce o número
de pessoas solteiras que moram sozinhas e
de mulheres que não querem mais ser mães.
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Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais
E qual é o novo fetiche dessas mulheres? A
carreira? O próprio corpo perfeito? A independência financeira?
Uma das afirmações psicanalíticas é que
o homem chega ao amor através do sexo,
e a mulher chega ao sexo através do amor.
Como fica isso hoje? Na atualidade, uma das
dimensões do masculino está atrofiada: o cavalheirismo. As mulheres se ressentem, por
outro lado, estão bem mais ativas e arrojadas
quanto à abordagem sexual dispensando a
corte masculina e até a dimensão do amor
na relação.
A clínica demonstra que geralmente as relações anaclíticas têm mais estabilidade e duração, enquanto as relações narcísicas, muito
embora mostrem um alto teor de atração sexual, em geral têm uma durabilidade menor,
pois são atravessadas por um alto grau de
agressividade e competitividade,
Existe também uma certa incongruência entre o discurso e a prática nas escolhas
amorosas atuais. Estamos nos referindo agora aos mais jovens. A escolha é predominantemente narcísica, mas as queixas são de
falta de cuidado, atenção, isto é, a demanda
é anaclítica. Os relacionamentos são abertos, fugazes, mas se invade a privacidade do
outro através de telefone, email, GPS, crises
de ciúmes por causa de mensagens, telefonemas não atendidos, porque a pessoa não está
onde disseque estaria.
Um novo fenômeno que se apresenta é a
geração Y. Nascida após a década de 1980 e
conhecida como geração do milênio ou da
internet, usufruiu dos confortos e dos avanços tecnológicos desconhecidos pelos pais. Já
foi acusada de ser distraída, egoísta, superficial e incapaz de sustentar a longo prazo um
compromisso profissional ou amoroso. Não
é que não tenha valores morais, pois defende
intensamente o meio ambiente. Eo calor com
que participou dos movimentos políticos
que ocorreram em junho deste ano, nos fez
ter finalmente mais esperança nessa geração.
Para finalizar, pensamos que houve de
fato mudanças radicais da era vitoriana aos
dias atuais, que afetaram principalmente as
relações amorosas. Entretanto, permanece o
desejo de fazer vínculos, a tentativa de sair
da solidão e, cada um, à sua maneira, tenta
iludir o desamparo e a incompletude, pois
o amor, afinal, é ainda o que consegue fazer
laço entre o real e o simbólico.
Abstract
The authors analyze changing in nowadays
love relationships, using Freudian and Lacanian concepts, besides clinical vignettes.
Keywords: Anaclitic relations, Narcissistic relations, Fetish-object, Devastation-object , Y
Generation
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S ob r e as Autoras
Ana Cristina Teixeira da Costa Salles
Psicóloga. Especialista em psicologia clínica.
Psicanalista. Sócia do CPMG.
Nina Rosa Artuzo Sanches
Psicóloga. Especialista em psicologia clínica.
Psicanalista. Sócia do CPMG.
E-mail: [email protected]
Rosa Maria Gouvêa Abras
Psicóloga. Especialista em psicologia clínica.
Psicanalista. Sócia do CPMG.
Endereço para correspondência
Ana Cristina T. C. Salles
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30150-320 - Belo Horizonte/MG
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Rosa Maria Gouvêa Abras
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30130-160 - Belo Horizonte/MG
E-mail: [email protected]
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O primata perverso polimorfo
O primata perverso polimorfo1
The polymorphous perverse primate
Anchyses Jobim Lopes
Em homenagem aos chipanzés e bonobos
que, ao contrário do que acontece em nosso país,
são vítimas de: governos corruptos,
multinacionais sem ética e caçadores inescrupulosos;
de modo que serão extintos breve em seu meio natural
e só restarão em parques protegidos e zoológicos.
Resumo
A influência de Darwin no pensamento freudiano. Conhecimentos atuais sobre a evolução
dos grandes primatas. As descobertas feitas nas últimas décadas sobre o comportamento de
chipanzés e bonobos. Paralelos entre o comportamento sexual e agressivo dessas espécies
com o dos seres humanos. Releitura de algumas teses de Totem e tabu a partir desses novos
conhecimentos. Filogênese do complexo de Édipo. A dualidade agressiva e erótica da espécie humana.
Palavras-chave: Darwinismo, Grandes primatas, Chipanzés e bonobos, Agressividade e sexualidade, Totem e tabu, Édipo.
Introdução:
Freud e o retorno a Darwin
Freud teve grande influência da obra de
Charles Darwin. A bibliografia das obras
completas de Freud cita todos os livros do
pai da ideia de seleção natural, inclusive cartas e a autobiografia. Utilizada ao longo de
toda a sua obra, Freud classifica o darwinismo como uma das três feridas narcísicas da
humanidade, precedida pela copernicana
e sucedida pela da psicanálise. Copérnico,
Darwin e Freud, os três estão no mesmo plano quanto ao processo de crítica dos pilares
judaico-cristãos do ocidente, e é o último da
trinca quem mais de uma vez afirma isso.
Mais diretamente, a hipótese freudiana do
processo de antropogênese, iniciado em To-
tem e tabu e ainda inconcluso ao tempo de
Moisés e monoteísmo, tem sua semente no
projeto darwinista.
Além das grandes teses sociais antropológicas, também ocorreu o interesse de Freud
por mudanças físicas específicas ocorridas
durante a evolução da espécie humana. Menos discutidos que os temas da horda primeva e do assassinato do pai primevo, são suas
considerações sobre a importância do surgimento do bipedismo para o da repressão. Reflexões que se iniciam em uma carta a Fliess,
de 14 de novembro de1897:
Frequentemente suspeitei de que algo orgânico
possuía um papel na repressão [...] a noção estava ligada com a mudança da função do olfa-
1. Trabalho parcialmente apresentado no XX Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise e XXXI Jornada de
Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, Belo Horizonte, 26/28 de setembro de 2013.
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21
O primata perverso polimorfo
to: o andar ereto foi adotado, o nariz levantouse do chão ao mesmo tempo em que um número de sensações, que antes eram interessantes,
se tornou repulsivas — por um processo ainda
desconhecido por mim (FREUD, 1978, p. 268).
Freud cultivava com esmero a lei de
Haeckel de que a ontogênese segue a filogênese. Considerando que à época de Freud
pouquíssimo se sabia sobre as linhagens de
homídios pré-humanos e muito pouco sobre o comportamento dos grandes primatas
nossos parentes mais próximos, sendo uma
espécie inteira ainda viva na África completamente desconhecida — os bonobos —,
é plausível que a obra freudiana não tenha
especulado mais nessa vertente, por absoluta
incapacidade de se fundamentar em dados
objetivos. Desse modo, além dos já mencionados temas abordados em Totem e tabu,
não foi muito mais do que a relação entre repressão2 e bipedismo que pode ser utilizado
por Freud para hipóteses sobre o processo de
antropogênese. Contudo, tal tema de estudo
é pertinente ao projeto freudiano.
Ao contrário do que se possa impensadamente concluir, estudar o papel de processos
físicos implica a defesa não de comportamentos instintuais inatos, mas sim da adaptabilidade a partir do surgimento de sociedades e formas de agir e sentir muito mais
2. Os temas do olfato, do bipedismo e sua relação com
a repressão são retomados várias vezes, até serem
extensamente discutidos em O mal-estar na civilização, publicação de 1930 (FREUD, 1978). Há que tomar cuidado com a imprecisão dos termos repressão
(Unterdrückung) e recalque (Verdrändung), ainda
mais nas edições brasileiras, calcadas na inglesa e
que traduzem ambos os termos por “repressão”. Em
princípio repressão diferiria de recalque por ser este
último inconsciente, contudo mencionam Laplanche
e Pontalis no Vocabulário de psicanálise que repressão
“é um termo cujo uso é mal codificado” (1978, p. 419).
Apesar de nos atermos no presente texto ao termo
“repressão” quando supomos que difere do recalque
no texto freudiano, a descrição de Freud sobre olfato
e bipedismo relata uma conduta que é inconscientemente determinada.
22
ricas, recriadas de modo diferente por cada
um a cada geração, isto é, na plasticidade da
pulsão.
Considerações gerais sobre nossos primos
Ciência muito mais recente, a primatologia,
o estudo dos grandes primatas, seus corpos,
mas, acima de tudo sua psicologia e suas sociedades, trazem novidades interessantíssimas para uma complementação da linhagem
psicanalítica acima mencionada. Grandes
primatas são nossos primos mais próximos:
orangotangos, gorilas, chipanzés e bonobos.
Ao contrário da asserção atribuída a Darwin,
que tanto ofende os fundamentalistas de várias religiões, não somos parentes próximos,
muito menos descendemos dos macacos. Estes têm rabo, os grandes primatas não (infelizmente não temos em nosso idioma termos
separados, como em inglês, em que monkeys
designa aqueles com cauda e apes os sem
cauda).
Classificada como a superfamília hominoidea surgiu há cerca de 20 milhões de anos,
tendo os orangotangos sido os primeiros a
se mudar para mais longe há 14 milhões, os
gorilas se separaram depois, há 7,5 milhões
e, finalmente, os ancestrais dos chipanzés e
bonobos e os ancestrais dos seres humanos
pediram as contas e foram morar separados
há meros 5,5 milhões de anos. Já chipanzés
e bonobos se separaram entre um milhão e
meio de anos ou talvez bem menos. Em termos evolutivos e na história dos mamíferos
essas distâncias são mínimas. Todos os primos compartilham entre si 97% do DNA,
sendo que com os de primeiro grau — chipanzés e bonobos — temos 98,4% de DNA
igual.
Importante que se acentue que os estudos
comparados, desde a genética até o comportamento e a sociologia dos grandes primatas,
nada tiveram em comum com o nascimento
de pretensos saberes como a sociobiologia e
a psicologia evolutiva. A primeira nasceu do
estudo das abelhas. Partindo daí, a segunda
pegou alguns dogmas pseudodarwiania-
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013
O primata perverso polimorfo
nos e com eles construiu extenso castelo de
cartas, que nada mais é que uma nova vertente do antigo darwinismo social — inclusa sua ramificação nazista — e que, usando
supostas descobertas ditas da neurociência,
racionaliza o neoliberalismo e o patriarcado
como consequências necessárias da natureza
humana. Os autores mais divulgados da primatologia duramente criticam e refutam esta
tal psicologia (RYAN; JETHÁ, 2010; WAAL,
2013), cuja base epistemológica, aliás, é nula.
Entre a existência de um gene e um comportamento específico todas as etapas intermediárias entre material genético e funcionamento cerebral são desconhecidas ou hipotéticas. Fora que todos os fatores ambientais
(leia-se aprendizado, sociedade e cultura)
teriam de ser rigorosamente afastados por
meio de pesquisas com população controle.
Retornando a nossos primos, as diferenças anatômicas entre os chipanzés e os bonobos são muito pequenas, exceto que os
últimos possuem uma cabeleira partida ao
meio. Mas as condutas sociais e sexuais são
acentuadamente diferentes. Uma mudança
geográfica, o aumento de volume do rio Zaire há um milhão e meio de anos ou menos
fez com que um grupo de antepassados de
ambas as espécies ficasse ao norte do rio, separado de outro ao sul. Os do norte sofreram
mudanças climáticas e ambientais mais rigorosas, enquanto os do sul tiveram sorte de
uma ambiente mais estável. Logo os antepassados dos chipanzés modernos evoluíram
mais rápido do que os dos atuais bonobos,
levando a hipótese de que estes estejam mais
próximos do que teriam sido os antepassados tanto de chipanzés quanto dos humanos
(KANO, 1992).
Falando sobre os chipanzés
Os chipanzés, tendo permanecido ao norte,
onde as florestas diminuíram e a savana aumentou, tiveram de descer bastante das árvores para apelar para a caça. Têm uma dieta
onívora, mas apreciam mais uma boa carne
e caçam em grupos liderados por um macho
alfa, e podem ser muito agressivos. São patriarcais, hierarquizados, poligínicos (várias
fêmeas para um macho), embora, com frequência, fêmeas mais velhas conquistem posição de relevo. Apesar de bem menores que
os seres humanos, e extremamente fortes, os
chipanzés podem ser mortais. Ao contrário
do se apregoa, os homens não são os únicos
animais que matam os de sua própria espécie
por prazer. Chipanzés executam ‘chipanzecídios’ em tribos rivais sem benefício aparente.
Apesar dessas características que podem
parecer muito humanas e moralmente negativas, têm uma sociedade com qualidades
até pouco consideradas restritas aos primos
humanos: ajudam velhos e doentes, fêmeas,
e até machos adotam filhotes de pais que
morrem, utilizam e são capazes de inventar
instrumentos simples que transmitem a gerações seguintes. Possuem a capacidade de
empatizar com os sentimentos de outros do
mesmo grupo e mesmo com seres humanos,
quando com eles estabelecem bom relacionamento. Pode-se falar até de luto quando
perdem os mais próximos. A empatia, isto é
a capacidade de se identificar com sentimentos dos outros, também permite que sejam
extremamente manipuladores dos sentimentos alheios. Logo, os chipanzés são excelentes políticos, formando alianças e golpes em
uma sociedade muito hierarquizada. Em um
ambiente mais hostil que seus primos bonobos, os chipanzés tiveram de restringir a
sexualidade quase que somente à reprodução. Tanto pelo fato de que durante a cópula
qualquer animal se torna vulnerável (para
um predador a caça de dois a preço de um),
quanto para manter, entre os machos, a organização social necessária à caça com o mínimo de conflitos.
Entre outras qualidades, os chipanzés
também emitem sons com significados ainda não conhecidos e se reconhecem entre si
pelos sons e pela voz. Identificam a própria
imagem num espelho e são capazes de reconhecer dezenas, até centenas de outros chipanzés por meio de fotografias. Isto é, têm
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013
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O primata perverso polimorfo
um grau surpreendente de individualidade,
mas não um núcleo familiar como o conhecemos. Os filhotes são criados apenas com a
mãe e os irmãos, frequentemente num grupo
isolado do grupo principal.
Mas é relatado que um macho adulto jamais copula com sua mãe biológica ou adotiva, assim como é descrito que, se criado
com uma irmã, biológica ou não, também
não terá relações sexuais com ela. A figura de
pai é desconhecida. Mas sexo entre os pais
e suas filhas biológicas é evitado, porque as
chipanzés fêmeas jovens saem em busca de
outros grupos de sua espécie. Contudo, a sexualidade é focada apenas na reprodução e
muito limitada se comparada à dos bonobos
e humanos. A relação sexual é sempre macho/fêmea e com a penetração por detrás.
Bonobos: uma pouca vergonha!
Os bonobos, ao contrário, têm uma dieta predominantemente de frutas, são igualitários,
não violentos e matriarcais. Têm as mesmas
habilidades sonoras e o reconhecimento da
própria imagem no espelho que seus primos
chipanzés. Apelidados de anarquistas ou hippies da floresta, não são especialistas em
política. Permanecendo em um meio menos
hostil que seus primos chipanzés, puderam
se dedicar mais ao prazer do que à caça. Mas
sua metade ao sul do rio, se por um lado, fornece grande quantidade de frutos, estes mudam sua concentração geográfica com certa
rapidez, o que fez com que os bonobos tivessem de se organizar em grupos maiores que
os chipanzés. Grupos capazes de se deslocar
inteiros e rapidamente, inclusive com fêmeas
e filhotes. Isso justificaria uma organização
social completamente diferente dos chipanzés.
Durante décadas foram escondidos por
seus primos humanos nos zoológicos, dada
a suposta imoralidade de conduta. Por mais
incrível que pareça, exceto para os psicanalistas, que são especialistas em detectar o recalque sexual, os bonobos como espécie só
foram identificados em 1929. O estudo dos
24
bonobos ficou décadas atrás do dos chipanzés porque biólogos e estudiosos humanos
tinham vergonha de pesquisá-los. Imaginese relatar suas descobertas em público. Expô-los em zoológicos, nem pensar.
Os bonobos resolvem todos os conflitos
através do sexo. São especialistas em beijo de
língua (qualidade também dos chipanzés),
atingem o orgasmo inúmeras vezes ao dia. As
fêmeas são sempre sexualmente receptivas,
estejam férteis ou não. Ao contrário de todas
as dos demais primatas, exceto na espécie
humana, as fêmeas também têm o desenvolvimento de seios, não muito grandes, que em
ambas as espécies não têm nenhuma utilidade na amamentação; é apenas um atrativo
sexual. Um excitante bastante razoável do
ponto de vista evolutivo, uma vez que praticam o coito frontal, preferência quase exclusiva, na qual são os únicos primatas além dos
humanos (talvez um menos exclusivo nessa
escolha). Além do beijo de língua, bonobos
são especialistas em: sexo oral, masturbação
mútua, vários tipos de frotteurismo, mas não
é relatado coito anal.
A principal fama (ou má fama) dos bonobos entre os humanos se dá por sua extrema frequência de todos os tipos de relações
sexuais, independentemente do sexo do(a)
parceiro(a). Não se pode falar de homossexualidade na acepção de uma opção exclusiva, porque todos os bonobos são completamente e muito freudianamente bissexuais.
Ao contrário dos chipanzés, cujas fêmeas
se tornam incapazes de sexo por anos após
cada parto, as fêmeas bonobos rapidamente
voltam à atividade.
Logo, nos bonobos a sexualidade não
somente extrapola completamente a reprodução ao contrário dos chipanzés, exímios
e hierarquicamente fixados políticos, todos
os vínculos sociais e todos os conflitos são
explicitamente cimentados e resolvidos com
sexo. Sendo dominantes, as fêmeas resolvem
conflitos de poder e outros com sexo entre
elas. O status social dos machos deriva do de
sua mãe.
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013
O primata perverso polimorfo
Se extrapolássemos conceitos humanos
como pedofilia, os bonobos seriam acusados
de realizá-la, mas sem cópula, começando
com a estimulação genital nos bebês. Contudo também possuem a restrição absoluta
ao sexo adulto genital com penetração entre
mãe e filho dos chipanzés.
Nascimento do tabu do incesto?
Para os psicanalistas o que mais chama a
atenção no comportamento com os primos
é a existência do ‘núcleo duro’ do tabu do incesto tal como foi descrito por Lévi-Strauss
(1982) nos seres humanos. Nenhuma cultura humana conhecida, presente ou passada,
admitiu relações sexuais mãe-filho. As relações pai-filha não são proibidas em muitas
culturas, tal com não o são no Levítico. O
limite entre comportamentos inatos e adquiridos atinge aqui seu limite. Em outras tantas
culturas como a egípcia, durante milênios o
casamento entre irmãos era a regra na família real e na nobreza, principalmente porque
a linhagem real passava por via materna. Os
faraós precisavam se casar com suas irmãs
porque elas seriam as verdadeiras herdeiras
do trono. Esse costume permaneceu até a
conquista grega e romana do Egito. A última rainha, a famosa Cleópatra VII, antes de
conhecer César e Marco Antônio, foi casada
com dois de seus irmãos.
Apesar de tudo, em muitos aspectos Freud
ainda era homem de seu tempo. Bem eurocêntrico como todo bom europeu, sua obra
se fundamenta numa separação rígida entre
natureza e cultura. O mito do pai primevo e
a origem da proibição do incesto em Totem e
Tabu (FREUD, 1978) caracterizariam o momento exclusivamente humano da passagem
de natureza a cultura. Foi a ideia que seguiu o
pai da antropologia cultural. Mas exclama o
primatólogo mais conhecido, Frans de Waal
(2013): “quão longe do alvo estava Lévi-Strauss” (WAAL, 2013, p. 71). Contudo, como
escreveu outro dos principais primatólogos,
descrito pelo mesmo Waal como o cientista
japonês que por mais tempo com bonobos
em seu meu meio ambiente, Takaioshi Kano
(1992):
[...] mecanismos psicológicos e sociais para
evitar o incesto existem em todos os primatas
[...] a sociedade primata evoluiu ao longo de
um eixo de “evitação do incesto” [...] longe de
ser comportamento avançado único, humanamente produzido, evitação do incesto é comportamento que surgiu ao longo da evolução
primata (KANO, 1992, p. 2).
O tabu do incesto entre mãe-filho de nossos primos pode ser explicado tanto biológica quanto psicologicamente. Possivelmente
ambas as explicações se complementam.
Chipanzés não se tornam adultos pelo
menos antes dos doze anos. Quase o mesmo ocorre entre os bonobos, cujas fêmeas se
tornam sexualmente maduras por volta dos
nove anos e são consideradas adultas entre
os treze ou quatorze anos, quando costumam
ter sua primeira cria. Em ambas as espécies
os filhotes são amamentados por quatro a
cinco anos (chipanzés há relatos de até seis
anos).
A longa infância está muito próxima da
duração entre os humanos, e a amamentação
em muito excede nossos costumes atuais.
Com uma década de infância, uma dependência absoluta da mãe nos primeiros anos e
possuidores de um córtex apenas menor que
o dos humanos e de alguns mamíferos marinhos, se desenvolve extensa memória do
período infantil. Sem se esquecer do vínculo
afetivo estabelecido na amamentação com
mãe e filho se entreolhando.
A memória infantil se sobreporia sobre o
corpo adulto. Isto é, diante de um filhote já
adulto, a mãe sempre o reconheceria como
filhote e, diante da mãe, o filhote sempre se
comportaria como filhote. Como mencionou
Freud em Totem e Tabu ao se referir ao que
impediria o incesto de filhos com suas mães:
uma “imagem inalterada dela preservada em
seu inconsciente” (FREUD, [1913] 1978, p.
16). Não sabemos se essa característica sur-
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013
25
O primata perverso polimorfo
giu primeiramente no antepassado comum
entre chipanzés e bonobos, ou primeiro nos
antepassados dos seres humanos. Ou de um
antepassado comum a todos. De modo que
permanece em aberto o prêmio de quem foi
o primeiro neurótico na história da evolução.
Feminismo primata ou primevo?
Em uma época que se usa a neurociência
para justificar o comportamento humano
como inato, a primatologia vai no sentido
contrário. A conduta sexual dos bonobos, as
estratégias políticas e de caça dos chipanzés,
a invenção de instrumentos, a capacidade de
aprender símbolos geométricos são algumas
das características que embasam a afirmação
de que “comportamento inato é coisa rara
em nossos parentes mais próximos” (WAAL,
2007, p. 149). A afirmação tão repetida pela
psicologia evolutiva de que os homens preferem mulheres jovens porque estão mais
aptas a reproduzir bem, e as mulheres preferem homens mais velhos e de status elevado
porque serão bons provedores para seus filhos não encontra eco na observação de nossos primos. Bonobos e chipanzés preferem
companheiras totalmente maduras. No caso
dos chipanzés, em que a sexualidade é muito mais rarefeita que nos bonobos e apesar
da figura do poderoso chefão no macho alfa,
as jovens suam um bocado para conseguir
sexo até com os betas. Um Berlusconi e suas
prostitutas adolescentes são criação exclusivamente humana.
Nos dois nossos primos as fêmeas possuem francas preferências em relação à busca
de parceiros. Mesmo no caso dos chipanzés,
patriarcais e submetidos a um macho alfa,
frequentemente a astúcia feminina ajuda as
fêmeas a eleger um parceiro nada alfa e a enrolar o chefão. O que caracteriza chipanzés
fêmeas, e muito mais suas primas bonobos, é
dar mais importância ao seu prazer sexual do
que a supostas características genéticas úteis
para a prole. Mas os chipanzés machos alfas
compartilham a obsessão masculina humana
com a fidelidade feminina e, quando tomam
26
o poder, ficam com as fêmeas e simplesmente matam os filhotes do alfa deposto (aqui,
sim, há um comportamento inato, uma vez
que não é possível nenhuma noção de paternidade).
Já os bonobos machos não estão nem aí
para política e conquistas violentas de poder.
Comunitariamente ajudam filhotes de todos,
ainda mais que suas fêmeas frequentemente
são poliândricas e o vínculo de relação mais
forte é exclusivamente mãe-filho, que, como
vimos, é quase tão forte entre os chipanzés.
Mas nestes os vínculos entre machos formando confrarias masculinas é o que detém
o poder.
Se, por um lado, os bonobos fornecem
subsídios para a defesa freudiana da bissexualidade e da libido como mantenedora de todos os vínculos sociais (talvez o que também
permita o maior vínculo entre os machos no
caso dos chipanzés), por outro, parecem o pesadelo do patriarcado humano. Assemelha-se
ao que poderia ter sido o matriarcado originário defendido por Bachofen, citado por Freud
em Totem e tabu. Período anterior à atual cultura patriarcal, à prevalência do monoteísmo,
ao maior desenvolvimento da agricultura e ao
nascimento da escrita.
Quem possui o sexo rei?
Claro que existem imensas diferenças entre
os seres humanos, chipanzés e bonobos. Diferenças ainda maiores em relação a primos
mais afastados como gorilas e orangotangos,
e maiores ainda aos mais distantes gibões.
Entre o sexo masculino e o sexo feminino,
humanos têm um peso médio de 86/74 kg,
chipanzés 40/35 kg, bonobos 35/32 kg, gorilas 160/80 kg, orangotangos 75/37 kg e
gibões10/10 kg. Nota-se que a variação de
peso entre os sexos em humanos, chipanzés e
bonobos é de 20%. Nos gorilas e orangotangos de 100%. Gibões machos e fêmeas têm o
mesmo peso.
Espécies em que os machos são poligínicos e lutam violentamente entre si pelas fêmeas, que passam a ser propriedade exclusiva
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013
O primata perverso polimorfo
sua e passivamente são submetidas ao coito,
os machos têm de ser grandes e fortes para
lutar entre si. Donde gorilas e orangotangos
machos têm o dobro do peso das fêmeas.
Pouco importa que os primeiros tenham um
pênis ereto de 3 cm e os segundos de 4 cm.
Nos gibões, uma espécie que estabelece uma
monogamia absoluta e não há competição
entre os machos, os dois sexos são do mesmo
peso e tamanho.
Já nós e nossos primos mais próximos temos uma variação de peso entre os dois sexos
de 20%. Isso indica um grau leve de competição entre os machos e certa tendência à poliginia e poliandria, se não simultânea, pelo
menos ao longo da vida. Para certos autores
decididamente a monogamia humana total
seria uma imposição antinatural (RYAN; JETHÁ, 2010).
A obsessão freudiana com o pênis se torna digna de nota quando se mede que os
homens têm em média 13/18 cm, proporcionalmente ao peso, o mesmo que bonobos e chipanzés com 7,5 cm. Só que o ato
sexual humano tem uma duração média de
474 segundos, enquanto o de nossos primos
mais próximos dura entre 7 e 15 segundos.
Orangotangos conseguem atingir 60 segundos, mas os campeões são os gorilas com
900 segundos. Do ponto de vista humano
masculino os gorilas não parecem muito invejáveis já que se acasalam poucas vezes por
ano e exclusivamente para reprodução, assim
como pelos dados acima sobre as dimensões
de seus genitais, sendo que os testículos são
internos e do tamanho de um grão de feijão.
Totem e tabu rebobinado
(Totem and taboo reloaded)
Retornemos à hipótese sobre a relação entre
bipedismo e recalque, citada ao início, que
demonstra como Freud se interessava tanto
pelo darwinismo quanto pelo pelos aspectos
físicos da antropogênese, que em Totem e
tabu é abordada a partir da origem do complexo de Édipo. As descobertas sobre nossos
primos chipanzés e bonobos tornam atual
que se repense vários aspectos dessa obra tão
questionada de Freud.
Primeiro, se o tabu do incesto já existe
sob a forma da proibição de relações sexuais
mãe-filho, nuclear segundo Lévi-Strauss,
nossos primos não dispõem de uma figura
paterna. Segundo, há que pensar que a descrição da horda primeva e o assassinato do
pai primevo, segundo Freud, constitui uma
narrativa bem machista, homem que era de
seu século. As mulheres não têm nenhuma
participação no ato de fundação da passagem do natural ao cultural no mito freudiano. Está implícito que constituem mero
objeto do desejo dos machos, sem nenhuma
vontade própria. Para Freud mulher e cultura eram antagônicas a partir do próprio ato
de fundação da humanidade.
O estudo de chipanzés e bonobos mostra
que, ao contrário, a figura materna e seu tabu
do incesto são anteriores ao nascimento da
figura paterna, mesmo que tenha sido essa
a grande criação do processo de antropogênese humano. Chipanzés e bonobos fêmeas
não são nada passivas, levantando a hipótese de que o mito descrito em Totem e tabu
tenha de ser atualizado em relação ao papel
ativo do feminino: possivelmente instigaram
os machos a alianças ou traições entre eles,
formaram vínculos eróticos ou tanáticos não
só com o outro sexo, mas entre elas mesmas,
quem sabe, não deram até mesmo uma mãozinha no assassinato do pai primevo? Mesmo considerando-se que Freud não poderia
inteiramente deixar de ser um homem formado pelo patriarcado de seu tempo, por
um momento questionou se “[...] aqui não
poderia estar o germe do matriarcado, descrito por Bachofen que por sua vez foi substituído pela organização patriarcal da família”
(FREUD, 1978, p. 144).
Desse modo, o mito de Freud e Lacan de
uma lei instituída somente pelo sexo masculino deve ser criticado. Em nossos primos há
um esboço de lei que é passado pela mãe: o
sentimento de fraternidade e cooperação entre os irmãos.
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27
O primata perverso polimorfo
Também existe a hipótese de que, tendo
os chipanzés passado parcialmente à savana e necessitando se organizar para a caça, a
pressão evolutiva que sofreram foi maior que
a dos bonobos. Segundo Kano (1992) tudo indica que os bonobos tenham mudado menos
que os chipanzés em relação ao antepassado
comum de todas as três espécies. Logo, os ancestrais dos humanos, embora possam não ter
tido uma sexualidade tão efusiva quanto a dos
bonobos atuais, provavelmente não a tinham
restrita à reprodução, nem tão dominada pelos machos quanto a dos atuais chipanzés.
Freud chegou a indagar se a aliança entre os irmãos para o assassinato do pai primevo poderia ter sido ‘baseada em atos ou
sentimentos homossexuais, talvez originados durante o período de expulsão da horda’
(FREUD, 1978, p. 144). Tendo por fundamento a hipótese de que os ancestrais humanos teriam características próximas aos
atuais bonobos, algo completamente desconhecido por Freud, pode-se pensar que não
houve um aumento, mas apenas o resultado
de uma já existente disposição a bissexualidade. E sabemos como o tema da bissexualidade era caro a Freud.
Os antepassados dos seres humanos tiveram de abandonar completamente a vida arborícola em favor da savana. A luta pela sobrevivência em um meio mais hostil fez com
que sofressem uma pressão evolutiva muito
maior que seus primos: donde o bipedismo
completo e uma organização social muito
mais complexa para a caça. Organização da
qual faz parte uma atividade sexual permanente, muito mais rica e mais diversificada
do que a dos chipanzés. Ao mesmo tempo,
o bipedismo, tornando os genitais à mostra,
teria sido um dos fundadores da repressão.
Defende Freud em O mal-estar na civilização
(Civilization and its discontents):
Os genitais também produzem uma forte sensação de cheiro que muitos não podem tolerar
e que lhes estraga a relação sexual. Assim devemos achar a raiz mais profunda da repressão
28
sexual, que avança junto com a civilização,
como sendo a defesa orgânica da nova forma
de vida alcançada pela postura ereta do homem, contrária a sua existência animal anterior (FREUD, 1978, p. 106).
Além da complexidade das relações afetivas e eróticas, a ampliação da teia social
só teria sido possível pelo desenvolvimento
da laringe humana. Nossos primos nem de
longe possuem algo parecido. Por outro lado,
tornou o pescoço comprido do ser humano
extremamente vulnerável para qualquer inimigo, humano ou não. Além disso, a laringe comprida frequentemente confunde sua
função fonadora, com a de respiração e a de
alimentação. Antes da era dos antibióticos
um engasgo não resolvido possivelmente
conduzia a uma pneumonia fatal. Se houve
alguma vantagem, foi a criação de um órgão
riquíssimo para o que nos torna mais humanos: a fala. A incapacidade em produzir sons
complexos faz com todas as tentativas de ensinar linguagem a nossos primos sejam por
meio de blocos e símbolos visuais.
Resta a especular, retornando à questão
do bipedismo completo, sua relação com
a repressão sexual e o recalque, sem o qual
não haveria linguagem humana, com sua infinita combinatória de um número finito de
elementos. Sem recalque e recombinação de
significantes e significados não haveria inconsciente, logo não existiriam: arte, poesia,
o sonho infinito (outros mamíferos sonham,
mas enredos fixos, e nossos primos, o que sonham ainda não se sabe), a infinita gama das
emoções e sentimentos humanos, neurose e
loucura.
Além do recalque e do complexo de Édipo, criação freudiana primordial é o conceito
de pulsão em oposição ao de instinto. Mas
não é um psicanalista, e sim o primatologista
mais conhecido, que, falando de nossos primos, descreve:
A beleza de um sistema de respostas emocionais sobre um sistema instintual é a de que seu
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013
O primata perverso polimorfo
resultado não está escrito em uma pedra. O
termo ‘instinto’ refere-se a uma programação
genética que diz aos animais, ou seres humanos, como agir de um modo específico sobre circunstâncias específicas. As emoções, por outro
lado produzem mudanças internas, juntamente com a avaliação da situação e o julgamento
das opções. Não está claro se os seres humanos
e outros primatas possuem instintos no sentido
específico, mas não há dúvida de que possuem
emoções. [...] uma interface inteligente que
media entre a entrada (input) e saída (output)
tomando por base o que é mais importante
para o organismo em determinado momento
(WAAL, 2013, p. 152-153).
Conclusão: o schizo humano
As pesquisas sobre os grandes primatas,
posteriores à obra freudiana, podem subsidiar hipóteses instigantes do fundador da
psicanálise. Não é exclusividade nossa o comentário de que, tendo a linhagem humana
se separado daquela dos antepassados dos
chipanzés e bonobos, que só depois se dividiram em duas espécies, os seres humanos
partilham uma mistura das características
dos dois primos. Basta reler os parágrafos
acima. Somos tanáticos como os chipanzés e
libidinosos como os bonobos.
Ou quase tão libidinosos. Ao contrário
dos de nossos primos que agregam dezenas e pouco mais de uma centena de indivíduos, os grupamentos passaram da ordem
da centena, chegando ao milhar e hoje são
da ordem de milhões. Além da linguagem
hipercomplexa, a organização social exigiu
novas formas de recalque tanto da sexualidade quanto da agressividade que, segundo
Freud foram utilizadas através dos processos
sublimatórios, a favor da cultura.
Mas as formas de repressão sexual extrema, tal como a preconizada pelos monoteísmos, principalmente na doutrina católica,
de relações sexuais exclusivas para a reprodução, e sem concupiscência, só seriam possíveis se fôssemos chipanzés. Modo de repressão, bem seja lembrado, historicamente
recente (LOPES, 2011). Podemos acrescentar que o monoteísmo teria surgido como
derradeiro meio de o patriarcado manter seu
domínio. Se estudos contemporâneos buscam explicar como funcionam, também há
que repensá-los em sua gênese. Mais do que
a coerência de sua obra, houve uma intuição
de Freud nessa direção, que o conduziu a dedicar seus últimos escritos à crítica radical de
ambos. Mesmo assim, a lei paterna tal como
apresentada por Freud e Lacan, que muitas
vezes descambou em defesa de ideias grotescas, necessita de uma revisão crítica ainda
mais cuidadosa.
Mesmo que fosse possível uma sexualidade restrita à reprodução, como defendem
algumas religiões, temos de lembrar que os
chipanzés não são monogâmicos. A relação
da diferença de tamanho entre os dois sexos
nos seres humanos conduz à afirmação tenazmente defendida por Ryan e Jethá (2010)
de que não somos uma espécie exclusivamente monogâmica, mas — discretamente
ou não tanto — polígama. A empedernida defesa freudiana da bissexualidade, hoje
anátema até para organizações de defesa dos
direitos homossexuais, encontra eco na ancestralidade comum aos bonobos.
Por outro, a passagem à savana, à semelhança dos chipanzés, conduziu a um reforço
das tendências agressivas, visto que o sucesso
demográfico dos seres humanos funcionou,
apesar de seu preço altíssimo em termos de
guerras e destruição do meio ambiente.
De um lado Maquiavel, Sade, Nietzsche
e o Freud mais pessimista; do outro, Freud
em sua vertente mais light, Kinsey, Lennon
e algumas feministas. Decididamente somos
uma espécie que precisa de psicanalistas.
Abstract
Influence of Darwin on Freudian thought.
Present knowledge about the evolution of
the apes. Discoveries made over last decades
about chimpanzees and bonobos behaviour.
An appraisal between these species sexual and
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29
O primata perverso polimorfo
aggressive behavior with human behaviour. A
new reading of some Totem and Taboo thesis
through that new information. The Oedipus
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WAAL, F. de. Eu primata. São Paulo: Companhia das
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Anchyses Jobim Lopes
Médico e Bacharel em Filosofia pela UFRJ.
Mestre em Medicina (Psiquiatria) e em Filosofia
pela UFRJ. Doutor em Filosofia pela UFRJ.
Psicanalista. Membro Efetivo do Círculo Brasileiro
de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Presidente do CBP-RJ
nos biênios 2000-2004 e 2008-2012.
Presidente do Círculo Brasileiro
de Psicanálise (CBP) 2004-2006.
Professor Titular II do curso
de Graduação em Psicologia e Especialização
em Teoria e Clínica Psicanalítica
da Universidade Estácio de Sá (UNESA).
Endereço para correspondência
Rua Marechal Mascarenhas de Morais, 132/308
Copacabana - 22030-040 - Rio de Janeiro/RJ
Página: http://www.anchyses.pro.br
E-mail: [email protected]
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30
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013
As per-versões na clínica psicanalítica
As per-versões na clínica psicanalítica
The per-versions in the psychoanalityc clinic
Cibele Prado Barbieri
Resumo
O artigo tem como objetivo trabalhar a incidência de cenas de cunho perverso no tratamento
de sujeitos supostamente neuróticos, permitindo pensar a possibilidade de versões da estrutura perversa.
Palavras-chave: Perversão, Clínica psicanalítica, Fenômeno elementar.
Enquanto tudo não tiver sido dito,
enquanto o objeto como tal
(ou seja, o objeto do gozo)
não tiver sido nomeado, catalogado,
impresso em letras,
é preciso que ele sobreviva
para continuar a ser oferecido
aos golpes do carrasco
que busca seu retalhamento simbólico.
a n dré, 1995, p. 25.
Gostaria de agradecer o convite do Espaço
Moebius para participar desta jornada1 já que
o tema da perversão tem-me ocupado em
muitos momentos, e a interlocução é a melhor possibilidade de esclarecimento das ambiguidades e incertezas teóricas que vivenciamos no exercício da clínica psicanalítica.
Não só a clínica do nosso tempo é marcada pela incidência de atos cujo cunho, perverso ou não, deixa dúvidas como também
o psicanalista vem sendo convocado a dar
parecer na área jurídica a respeito da responsabilidade subjetiva do criminoso. Se o sujeito do ato é um psicótico ou um perverso,
a forma de tratar e julgar esse sujeito deverá
obedecer a estratégias diferentes, de forma
que discutir e avançar nesses temas se torna
fundamental para a elaboração da teoria por
suas consequências práticas, não apenas no
campo da clínica psicanalítica.
Para pensar a perversão em seu desenvolvimento histórico e teórico, remeto a textos
anteriores, onde foram trabalhados.2 Pretendo aqui focalizar questões que considero importantes porque implicam a posição e o ato
do analista diante de sujeitos e cenas por eles
vividas, que nem sempre se definem classicamente como perversas, embora se encaixem
1. XXII Jornada do Espaço Moebius, 25 e 26 de outubro, 2013, com o tema Perversão, Salvador, Bahia.
2. Cito como exemplo, entre outros, os artigos: BARBIERI, C.. O que é perversão? In: PIMENTEL, D.; Araújo, M.
G. (Org.). Interfaces entre a psicanálise e a psiquiatria. Aracaju: Círculo Brasileiro de Psicanálise, 2008. p. 282-299.
Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/cgi-bin/wxis.exe/iah/>; BARBIERI, C. Os enigmas da criminalidade
à luz da psicanálise. Cógito [on line], v. 13, p .8-21, 2012. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sciarttext&pid=S15 19-94792012000100002&lng=pt&nrm=iso>.
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 31–36 | Dezembro/2013
31
As per-versões na clínica psicanalítica
perfeitamente na sua lógica, exigindo reflexão e aprofundamento teórico.
Podemos tentar compreender a perversão
a partir de algumas definições que nos fornecem versões e efeitos possíveis da estrutura e
de seus traços. Tomarei apenas quatro, que
considero fundamentais:
1. Em Freud: A perversão não é uma inversão; é a expressão direta da pulsão parcial.
Nela encontramos o avesso da operação do
recalque, de modo que isso não exclui certos
efeitos de recalque na subjetividade, como
acontece na psicose (FREUD, 1905, 1914,
1923).
2. Em Roudinesco:
A diplopia é uma alteração da visão, uma má
convergência, que faz com que vejamos dois
objetos em lugar de um. Transformação do
bem em mal. A perversão dos costumes. Distúrbio, perturbação. Há perversão da visão na
diplopia (ROUDINESCO apud LITTRÉ, 2008,
p. 9).
Então, a perversão é da ordem da diplopia, o que permite dizer: “eu sei, mas... mesmo assim...”.
3. Em Serge André: A perversão é uma
modalidade discursiva, uma impostura:
[...] a perversão é algo totalmente diferente de
uma entidade clínica: ela é um certo modo de
pensar. Um pensamento cuja essência demonstrativa decorre das relações do perverso com a
fantasia e com a Lei (ANDRÉ, 1995, p. 312).
4. Em Mário Fleig: “Propomos, como hipótese, que a dessubjetivação do sujeito moderno tem incidência no que constitui um
dos fenômenos elementares da perversão”
(FLEIG, 2008, p. 109).
A primeira dessas questões remete à ausência de Verdrangung, o recalque. A Verleugnung, traduzida por recusa, mas também renegação ou rejeição — termos que
implicam a negativização de uma representação — nos diz que a ideia é mantida
32
na consciência, mas ao mesmo tempo sua
veracidade é negada, negativizada. Desmentido — melhor tradução, para Lacan —
inclui a primeira mentira, ao des-mentir a
castração, anulando a operacionalidade do
recalque. De forma que já aí encontramos
a propriedade moebiana de passar do avesso ao direito, do dentro ao fora e vice-versa,
sem extrapolar nenhuma borda. O perverso
satisfaz o que o neurótico recalca.
Temos, ao mesmo tempo, as duas representações opostas e conscientes: diplopia. A
mulher é castrada; mesmo assim, é fálica...
Isso implica a fantasia e a lei; consequentemente, o posicionamento e a estrutura do
sujeito. Serge André, ao definir a perversão
enquanto modalidade discursiva, permite
pensar em termos de uma torção discursiva,
um giro.
Que efeitos subjetivos advêm dessa diplopia? Ou será que a diplopia é, ao contrário, o efeito de uma des-subjetivação, como
propõe Fleig, em que o sujeito surge não dividido pelo desejo, livre dos infortúnios da
castração, para dar vazão aos movimentos
propostos pelas “impulsões” parciais?
A perversão e o desejo perverso estão determinados por um modo particular de gozo que diz
respeito ao sujeito constituído no contexto da
ciência moderna, e por isso concerne a todos
nós (FLEIG, 2008, p. 109).
Esses sujeitos não procuram o psicanalista necessariamente por detectarem sua
compulsão como tal, mas terminam trazendo certos fatos e atos que sugerem algo da
ordem lógica da passagem ao ato perverso,
na medida em que supostamente realizam
uma satisfação direta, desmentindo a castração. Entretanto, nesses atos, fica expressa a
ausência da satisfação própria do ato perverso. Atos cheios de ambiguidade, entre o prazer e a dor, nos quais a única coisa que fica
evidente é a defasagem em relação ao desejo,
à compulsividade e à ausência de sentido,
que os distancia da configuração do sinto-
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 31–36 | Dezembro/2013
As per-versões na clínica psicanalítica
ma neurótico, mas também não corresponde
exatamente ao que conhecemos como satisfação do fetichista, por exemplo.
Encontrei em Fleig uma descrição que
corresponde a esta cena que tento descrever:
A noção de fenômenos elementares advém da
psiquiatria clássica, e Lacan tenta mostrar que
não se trata apenas de um fato ou acontecimento, mas de um motivo que se repete, muitas
vezes de formas disfarçadas, e que se encontra
no interior do delírio, na psicose ou no roteiro perverso como o modo de relação do sujeito
com o objeto. [...] São fenômenos sutis, uma
espécie de aura, impressões, um sentimento,
uma estranheza que antecede o desencadeamento do delírio ou das alucinações. [...] essa
dessubjetivação no campo da perversão aparece na paixão pelo inanimado [...] Aparece também na crescente disseminação das formas de
anonimato na contemporaneidade. O sujeito
se coloca em situações em que seu nome não
aparece, o que não se restringe apenas à clandestinidade. São fenômenos aparentemente
banais, mas que podem indicar aquilo que diz
respeito aos fenômenos elementares da perversão (FLEIG, 2008, p. 59-60).
E mais adiante ele propõe outras questões que nos conduzem a uma mais ampla
dimensão.
Um aspecto interessante é a interrogação que
o sujeito perverso introduz no campo das normas sociais: é um sujeito que se situa fora das
normas e quer impor suas próprias normas?
Seria um sujeito fora-da-lei e que, ao mesmo
tempo, impõe uma outra lei? Qual é o estatuto
da lei? Não estaria ele mesmo submetido a essa
outra lei, ou seja, uma espécie de roteiro pelo
qual está tomado e que precisa do outro para
ser colocado em cena?
O próprio sujeito perverso está submetido a
um roteiro particular, ele segue uma lei muito
mais rígida do que as leis que ele contesta [...]
(FLEIG, 2008, p. 60).
Como exemplo, poderia mencionar um
jovem, filho exemplar, que divide com a mãe
as “funções paternas”, “empregado padrão”
respeitado e competente, moral inquestionável, que ciclicamente “sai de si mesmo” (sic)
e, mesmo não sendo usuário tradicional, se
envolve em orgias regadas a drogas diversas,
que geralmente terminam sem sexo e, invariavelmente, num caos financeiro e moral
devastador, mas “só-depois” do ato, quando
ele “volta a si”. Posso dizer que o trabalho associativo da análise evolui satisfatoriamente,
durante muito tempo, com relação a sua vida
amorosa, questões familiares, seus becos
sem saída, sua posição subjetiva, ideais, enfim, como a análise de um “bom neurótico”.
Mas a repetição reiterada desse roteiro, que
ao longo da análise se reconstitui ciclicamente, não fornece associações. Parece que
ali o simbólico não alcança e tem o aspecto
de atuação perversa, como Fleig a descreve e
explica.
Mas poderia ser relida como “gozo parasitário”, assim chamado por Isidoro Vegh,
no sentido da “tentação pulsional” ou, quem
sabe, do “mandato”?
Isidoro Vegh, tratando da questão das intervenções do analista, utiliza o modelo da
informática para pensar essas questões através de um “diagrama de fluxo”. Seu diagrama
começa por duas entradas: uma no campo
da “vida”, no sentido do pulsional, e outra no
campo da “linguagem”, no sentido da fala. As
duas se encaminham em direção ao “falasser”
(parletre). Nas duas vertentes — no campo do
real e no campo do simbólico —, para aceder
à condição de sujeito, de ser falante, temos de
passar pelo que ele chama de “operador lógico da castração”, ou então, de “processador
do inconsciente”. Aquilo que escapar à castração permanecerá atuante enquanto “gozo
parasitário”. Na vertente do Real, ele gera
efeitos de “tentação pulsional” e, no campo
da linguagem, seus efeitos são “Mandatos”
ao estilo superegoico.
A “tentação pulsional” é silenciosa, insistente e gera efeitos de ato, enquanto o “Man-
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33
As per-versões na clínica psicanalítica
dato” em sua articulação entre Ideal e supereu, na vertente da linguagem, gera inibição
e efeitos depressivos: nos dois casos, separando o sujeito de seu desejo. Como exemplo disso, ele cita o usuário de cocaína que,
mesmo desejando, não consegue se libertar
da compulsão ao gozo da droga.
O fenômeno especial da perversão, como
proposto por Fleig, poderia ser entendido
como o que do Real emerge, produzindo efeitos de gozo, na medida em que a castração
não se operou segundo a lógica do recalque.
Tendo falhado o operador lógico da castração, torna-se possível uma torção discursiva,
uma impostura que denota como o sujeito
toma a lei pelo viés daquilo que ela interditaria
se fosse eficaz, ou seja, a tentação pulsional,
34
Coloco o acento na “tentação pulsional”, e
não no “mandato”, pois, neste caso, que norteia minhas formulações, se partirmos da colocação de Vegh, parece que o sujeito trafega
pela via da “vida”, do ser, e não pela via do
falante, da “linguagem”.
No que se refere à cena, parece não haver
interferência direta do supereu no sentido
de um mandato, a não ser que seja enquanto
“sentimento inconsciente de culpa” ou “culpa
muda”, no sentido que Gerez-Ambertin postula. Para ela, “a culpa deambula pelas fronteiras do gozo” (GEREZ-AMBERTIN, 1993,
p. 214). A culpa muda surge da interseção do
Imaginário sobre o Real (I>R), no campo do
gozo do Outro J(A), ex-sistente aos efeitos de
inconsciente.
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 31–36 | Dezembro/2013
As per-versões na clínica psicanalítica
As intervenções interpretativas, no nível
do simbólico, não geram efeitos, e a cena se
repete quase sempre idêntica. Depois do ato,
quando o sujeito reassume seu lugar e tem
de assumir as consequências das ações, surge
a angústia, pois se identifica com o objeto, o
dejeto; cada vez mais distante e apartado do
seu desejo.
O discurso perverso não deixa o sujeito
livre da angústia, como muitos imaginam.
Tanto André quanto Fleig não se cansam de
afirmar que o perverso sofre. O perverso não
é necessariamente aquele que se diverte o
tempo todo, pois não sente nenhuma culpa;
em alguma medida, a pressão da angústia de
castração sempre existe e obriga até mesmo o
psicopata a arquitetar sua solução.
O que pudemos ver até aqui é o fato de
que certas versões da perversão produzem,
em sua ambiguidade, grandes dificuldades
para o analista na sua tentativa de dar conta de um real através de um ato que possa
corresponder ao que se espera do ato de um
analista. Sublinho o “um” analista, já que,
tratando-se de analistas, só se pode falar de
um por um, cada um.
O que Vegh propôs em seu seminário — e
que gerou muita reflexão, questionamento e
até a retomada da reflexão teórica dessa análise em particular — é que, diante da colocação em jogo do real, cabe ao analista uma
intervenção da ordem do real, no Real. Posição à qual não estamos acostumados. Talvez
por isso Lacan tenha falado do horror ao ato
como medida do ato do analista, horror pelo
que de real ele possa carregar em si.
Para finalizar, diria que não sei ao certo
como meu jovem analisante resolveu sua
questão, se realmente resolveu. Só posso
dizer que, em dado momento, sob a mira e
o confronto que as palavras permitiram a
respeito de seu gozo, tomou uma decisão,
literalmente, um novo rumo, no Real. Destituiu-se de tudo que o mantinha e sustentava.
Demitiu-se, zerou suas dívidas, partiu para
outro lugar, na intenção — que espero tenha
sido bem-sucedida — de começar uma nova
vida, despedindo-se da que havia levado até
então.
Teria ele conseguido mudar a direção,
dado um giro na estrutura, de objeto de gozo
se tornar sujeito de seu desejo? Teria o gozo,
finalmente, sucumbido ao “retalhamento
simbólico”? Teriam as minhas intervenções
sido equivalentes a “golpes do carrasco” como
sugere Serge André? Quem sabe, um dia, saberemos.
Abstract
The article aims to work the incidence of perverse nature scenes in the treatment of subjects
supposedly neurotic, allowing the possibility of
perverse structure versions.
Keywords: Perversion, Psychoanalytic clinic,
Elemental phenomenon.
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2013. Inédito.
R ecebido em : 0 6 / 0 9 / 2 0 1 3
A provado em : 2 4 / 1 0 / 2 0 1 3
S obr e a au tor a
Cibele Prado Barbieri
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico
da Bahia. Editora da Revista Cógito
– Publicação Anual do Círculo Psicanalítico
da Bahia.
Endereço para correspondência
Rua João das Botas, 185 / 310
C. M. João das Botas - Canela
41110-160 - Salvador/BA
E-mail: [email protected]
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Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud
Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação
no pensamento de Freud1
Links between modernity, ethics and subjectivity in Freud´s works
Eduardo Leal Cunha
Joel Birman
Resumo
Este artigo pretende indicar a importância da dimensão ética da experiência psicanalítica a
partir do vínculo entre o pensamento de Freud e a modernidade. Para isso, recorremos a formulações de Michel Foucault que nos parecem adequadas à descrição do pensamento ético
freudiano, sobretudo na medida em que o filósofo francês, no comentário de 1984 sobre o
texto de Immanuel Kant em resposta à pergunta “o que é o esclarecimento”, vincula a ética aos
processos de subjetivação, por um lado, e, por outro, ao laço entre a experiência moderna e
a tarefa crítica do pensamento. Com isso, pretende-se destacar a presença na obra freudiana
do vínculo entre os processos de constituição subjetiva e a problematização moral, o que contribuiria para uma compreensão da categoria de sujeito relacionada menos a uma dimensão
psicológica, marcada por noções como as de vontade, consciência e percepção, e sim mais
próxima do que procuramos descrever como sujeito ético, concebido a partir da relação com
o outro e da ação sobre o mundo.
Palavras-chave: Ética, Moral, Psicanálise, Sujeito, Freud.
Abertura
Dizemos hoje com certa tranquilidade que a
psicanálise se afirma como ética, seja a partir
das formulações de Lacan em torno de uma
ética do desejo (LACAN, 1988), seja pela
consideração do contraponto entre técnica
e ética posto em jogo pela reflexão sobre os
modos de atuação do psicanalista em sua clínica (BIRMAN, 1994). Não há, portanto, nenhuma originalidade em tal afirmação. Pelo
contrário, trata-se na atualidade de um lugar
comum no campo psicanalítico. Persiste, no
entanto, a necessidade de explorar o seu sentido, sobretudo em relação ao que se enten-
de por Ética, para que possamos aproveitar
ao máximo as possibilidades abertas por tal
aproximação entre psicanálise e reflexão moral, não apenas quanto ao impacto que possa
ter sobre a clínica e em particular no que diz
respeito à especificidade do ato analítico face
à clínica médica, mas também com relação
ao vínculo entre subjetividade e sociabilidade. Consideramos que a compreensão do
lugar da discussão ética na obra freudiana
— é o que pretendemos demonstrar — tanto
se vincula ao sentido que a ideia de sujeito
tem em seu pensamento e que orienta a sua
postura na clínica, quanto nos remete aos
1. Este trabalho apresenta parte dos resultados de pesquisa desenvolvida em estágio pós-doutoral junto ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ como parte do projeto PROCAD/Novas Fronteiras A
dimensão ética do pensamento psicanalítico e seu impacto no estudo de fenômenos socioculturais, o qual reúne as
universidades federais de Sergipe, Rio de Janeiro e Pará, com o apoio financeiro da CAPES/Ministério da Educação.
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Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud
modos de articulação entre o indivíduo e o
espaço social. Ou seja, destacar a dimensão
ética do pensamento psicanalítico possibilita
reafirmar a implicação recíproca dos registros da cultura e da sociedade na compreensão freudiana do psiquismo.
Tal precisão no entendimento de uma
dimensão ética da psicanálise é importante
para demarcar com mais clareza a distinção
da clínica freudiana em relação às formas de
tratamento moral, localizadas nas origens
do saber psiquiátrico (FOUCAULT, 2006b),
considerando que tais formas ainda se encontram presentes mesmo nas leituras contemporâneas das práticas psicoterapêuticas
como práticas de crescimento pessoal e adequação da performance individual com base
em uma postura pedagógica por parte do terapeuta, as quais, reunidas sob a denominação de psicoterapias breves, pretendem muitas vezes incorporar a psicanálise ou usá-la
como forma de legitimação (COSTA, 1978).
Por outro lado, é preciso considerar que,
na atualidade, a psicanálise é demandada a se
posicionar diante de uma série de questões
que requerem uma posição mais clara sobre
a sua concepção de sujeito e como tal concepção se aproxima ou se distancia da noção
de indivíduo, referido a uma identidade, no
sentido de uma narrativa reflexiva do Eu,
como propõe o sociólogo britânico Anthony
Giddens (2002). Tal definição de indivíduo
se associa precisamente às noções de autonomia e responsabilidade moral, o que mais
uma vez nos requer uma compreensão clara
do uso feito por Freud da reflexão moral.
O objetivo deste artigo é, portanto, tomar
certas indicações foucaultianas sobre as articulações entre ética e subjetivação a partir
da modernidade para compreender, por um
lado, de modo mais preciso a inserção do
pensamento de Freud na tradição crítica da
modernidade, ao lado de autores como Nietzsche e Marxe, por outro lado, evidenciar,
na obra do criador da psicanálise, os laços
entre problematização moral e processos de
subjetivação, mostrando como tais laços se
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articulam a uma compreensão do sujeito que
escapa a qualquer tendência essencializante
ou transcendente e, ao mesmo tempo, fornece ferramentas teóricas para o enfrentamento da questão do reconhecimento no mundo
contemporâneo sem se submeter à lógica do
indivíduo psicológico autocentrado e soberano.
Nesse sentido, também nos aproximamos
das formulações de Renato Mezan, quando
afirma que a psicanálise não deve ter a pretensão de se constituir em um sistema ético
ou filosofia moral, mas destacamos que o impacto da problematização moral ao longo da
aventura freudiana vai além dos três aspectos por ele apontados, a saber:
A incidência dos valores morais sobre a personalidade de cada indivíduo; o vínculo entre estes valores e a sociedade na qual surgem, já que
fazem parte do processo de socialização pelo
qual nos tornamos humanos; e os problemas
éticos que a prática clínica pode colocar para o
analista (MEZAN, 1998, p. 211).
Para justificar nosso argumento, exploraremos inicialmente o lugar da reflexão moral no texto freudiano, procurando destacar
indicações para uma compreensão da categoria de sujeito entendido na sua dimensão
ética, enquanto reflexão permanente sobre
os modos possíveis de ser e de agir. Localizaremos tal entendimento do sujeito na interrogação freudiana sobre as relações entre a
construção do aparato psíquico e os dilemas
morais que acompanham os indivíduos ao
longo de sua vida e que se fazem presentes
na clínica, no discurso dos pacientes capturados por uma contínua interrogação do seu
agir, na qual se revelam, ao mesmo tempo, o
significado dos seus atos e a sua implicação
subjetiva.
Em seguida, discutiremos a inserção de
Freud na experiência moderna a partir de
sua reflexão moral enquanto movimento crítico do pensamento moderno. Recorreremos
a Foucault para explorar uma compreensão
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 37–48 | Dezembro/2013
Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud
da ética em que não apenas a determinação
do comportamento moral é inseparável de
uma problematização da categoria de sujeito e dos modos de construção de si (RAJCHMAN, 1996), mas na qual se coloca em
questão a própria racionalidade moderna da
qual Freud é, ao mesmo tempo, produto inegável e crítico radical (BIRMAN, 2000).
Nesse sentido, procuraremos compreender como as formulações de Michel Foucault
sobre os vínculos entre a modernidade e a
crítica das formas possíveis de existência ao
mesmo tempo que lançam uma luz sobre a
articulação radical entre ética e formas de
subjetivação, nos auxiliam na compreensão
do lugar que a reflexão sobre a moral ocupa na obra freudiana e como ela está estritamente vinculada a uma determinada concepção de sujeito, distante tanto da ideia de
essência quanto de um indivíduo soberano e
senhor de si.
Por fim, indicaremos brevemente em que
medida tal compreensão da dimensão ética do pensamento freudiano o afasta tanto da psicologia da sua época, centrada na
consciência e nos processos psíquicos a ela
relacionados, quanto da filosofia moral ao
mesmo tempo que nos indica elementos
para estabelecer uma perspectiva possível de
intervenção da psicanálise nos debates contemporâneos em torno da ética e do reconhecimento da alteridade.
Freud, o psiquismo e a moral
É preciso distinguir na aproximação do problema da moral em Freud dois eixos teóricos.
O primeiro, explícito, se refere a seu interesse
pela origem dos sistemas morais e religiosos,
no qual se vinculam, por um lado, o código
moral a um regime de interdições fundado
na proibição do incesto e do assassinato a
partir de uma história primeva da sociedade
tal como exposto em Totem e tabu (FREUD,
1986a) e, por outro lado, relaciona certa permanência de um modo de funcionamento
infantil ancorado na onipotência de pensamentos e na preservação da figura do pai
todo-poderoso à busca das ilusões religiosas
(FREUD, 1986b) ou dos sistemas filosóficos
totalizantes (FREUD, 1986c).
O segundo eixo, menos evidente, mas que
deve ser privilegiado em nosso argumento,
se refere à articulação entre o modo de construção do psiquismo, a partir do recalque, e
os valores morais que regulam a sociedade,
orientando as forças da resistência e se materializando nos produtos da cultura europeia
do final do século XIX. Temos aí em vista a
imbricação direta entre a construção do aparato psíquico, no nível individual e ontogenético, e, no nível social e filogenético, o processo civilizatório (VAHLE; CUNHA, 2011).
Tal eixo aparece desde os primeiros escritos
sobre a histeria, quando diz respeito, sobretudo, ao conflito entre o desejo sexual, o qual
naquele momento teórico representa a materialização psíquica da força das pulsões,
e as exigências morais e aspirações éticas
do indivíduo, representadas na maioria das
vezes pelos sentimentos de asco e vergonha
(FREUD; BREUER, 1986). A ação do indivíduo dar-se-á como resultante desse conflito,
o que é demonstrado não apenas pela produção de sintomas, mas por suas escolhas
profissionais ou amorosas, o que fica claro,
por exemplo, na leitura freudiana da vida
de Leonardo da Vinci, no comentário sobre o romance Gradiva, de Wilhelm Jensen
(FREUD, 1986d) ou em sua dita psicologia
do amor (FREUD,1986e, 1986f, 4986g).
Quanto ao primeiro eixo, o interesse de
Freud nos sistemas morais vincula-se diretamente ao seu interesse pela religião, já que
seriam essas as duas formas através das quais
a civilização ocidental busca operar a regulação das pulsões. O problema moral se vinculará, portanto, ao problema da cultura e da
existência do indivíduo em sociedade, o que
aparecerá formulado no texto O mal-estar na
civilização, de 1930, da seguinte forma: como
o homem pode sofrer menos ao viver junto
com outros homens?
Segundo sua proposição, a vida em sociedade e a construção dos laços sociais não se-
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Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud
riam tributárias de nenhuma espécie de dom
natural, sob a forma de um instinto gregário ou do dito sentimento oceânico, vislumbrado por Romain Rolland, interlocutor de
Freud no início desse texto (FREUD, 1986h),
mas ambos se apresentam como problema,
ao mesmo tempo moral e psíquico social e
subjetivo. Moral e social, no que se refere à
necessidade de produção de regras e dispositivos culturais e sociais de regulação da vida
em comum. Subjetivo e psíquico, na medida
em que implica transformações na economia
subjetiva e nos próprios modos de funcionamento do psiquismo, de modo que a satisfação das pulsões não venha a comprometer
a existência do indivíduo ou a vida em comum.
Tal problema de dupla face é ainda tomado por Freud em seu caráter histórico, isto é,
na sua vinculação com as formas de organização social no contexto do seu tempo, o que
fica claro tanto na análise que faz do modelo
de casamento monogâmico em 1908, quando
propõe uma vinculação direta entre o lugar
encontrado para a sexualidade feminina e a
produção da histeria (FREUD, 1986i), quanto em sua análise da guerra (FREUD, 1986j)
e, principalmente, no próprio texto de 1930,
quando o progresso proporcionado pelos
avanços da ciência é contraposto ao mal-estar produzido pelo sentimento de culpa que
regula os impulsos destrutivos presentes no
psiquismo.
Por essa via, então, o primeiro eixo de
consideração da moral na obra freudiana
indicado por nós se articula ao segundo, no
qual é importante ressaltar a associação direta entre as formulações freudianas sobre o
funcionamento do aparelho psíquico, oriundas do enfrentamento clínico do sofrimento
psíquico de seus contemporâneos, e a reflexão sobre temas morais articulados à regulação do viver junto.
Nesse sentido, nos parece evidente o
modo como, ao longo de sua obra, Freud vai
desenhando paulatinamente uma associação direta entre os processos de constituição
40
subjetiva, que são derivados teoricamente
do enfrentamento clínico das formas de sofrimento psíquico que marcam a sociedade
vienense e europeia na passagem entre os
séculos XIX e XX, e a experiência ética ou,
num sentido mais amplo, o campo dos problemas morais, produzindo inclusive a articulação entre certas formas específicas de
adoecimento — como a neurose obsessiva e
histeria — e determinados temas da reflexão
moral.
Tal articulação entre clínica e ética (VAHLE; CUNHA, 2011) se configura na maneira como, em face de cada um dos principais
quadros psicopatológicos apresentados por
seus pacientes — aquilo que Renato Mezan
descreve como matrizes clínicas (MEZAN,
1988) —, a reflexão clínica freudiana e os
desdobramentos teóricos que a seguem e que
procuram dar conta dos processos psíquicos
subjacentes, se fazem sempre tendo em vista
dois registros. O primeiro desses registros é
o propriamente psíquico, referido às formas
de articulação entre afetos e representações,
como os ditos mecanismos de defesa que
serão, por exemplo, diferentes na histeria,
com ênfase no recalque e na conversão, e na
neurose obsessiva, na qual a formação reativa e o isolamento ocupam o centro da cena
(FREUD, 1986k).
No segundo registro, contudo, o que encontramos é uma discussão que escapa aos
limites estritos do que se poderia descrever
como psicologia ou como processos mentais, a qual diz respeito a temas da reflexão
moral e trazem para a investigação sobre os
processos de adoecimento a relação do indivíduo com seus semelhantes, sua inserção
em sociedade e o modo como sua ação e seu
pensamento são determinados em função
dos efeitos que podem produzir sobre a realidade e sobre o outro. Vale ressaltar que tal
imbricação entre funcionamento psíquico e
valores morais surge desde o momento em
que Freud coloca no centro da sua concepção de sujeito o conflito psíquico, dividindo
o indivíduo e descentrando o sujeito a partir
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Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud
do confronto entre as exigências da pulsão e
os limites estabelecidos pelo Eu na sua necessidade de autoconservação, sendo o Eu
nesse momento da obra o lócus da razão, da
consciência e da moralidade.
Desse modo, na discussão sobre a histeria, assume lugar fundamental o papel das
interdições relativas à vida sexual, em particular das mulheres ou os ideais e modelos
de comportamento hegemônicos que estariam na base dos sentimentos de nojo, asco e
vergonha que orientam a ação das forças do
recalque. Assim, Freud é levado a tecer considerações sobre o conflito entre sexualidade
e moral que marcou a sociedade vitoriana e
que resultou em uma moral da renúncia que
marcará profundamente sua concepção do
recalque e da formação do sintoma histérico
(VAHLE; CUNHA, 2011).
Na consideração da sintomatologia obsessiva, vão ser os impulsos destrutivos —
aqueles que sustentam guerras e destruição
— e a ambivalência amor/ódio, em especial
na relação com o pai, que serão objeto da elaboração teórica freudiana e que o levarão a
conceber o mecanismo da formação reativa,
base tanto da formação do caráter individual
quanto da virtude humana da caridade. É
ainda a partir da clínica obsessiva que Freud
vai propor uma hipótese para a constituição e
o funcionamento da consciência moral, para
o que contribuirá ainda sua leitura da paranoia, afecção que ele enquadrava não entre
as ditas psiconeuroses de defesa, mas sim
entre os destinos do narcisismo (VAHLE;
CUNHA, 2011). O funcionamento obsessivo, com seus rituais e proibições, será ainda
referência fundamental para que o inventor
da psicanálise se lance à investigação sobre
as origens da religião e da moralidade, naquilo que descrevemos acima como primeiro
eixo do interesse freudiano pela moral.
É preciso destacar, agora, que o principal
elemento de articulação entre esses dois eixos será a formulação do complexo de Édipo. Será através dessa noção fundamental
que são entrelaçados os dois fios condutores
da consideração freudiana da moralidade,
que podemos descrever rapidamente como
eixos social e clínico, bem como será conduzida a contínua interrogação freudiana da
sociedade moderna, a partir do sofrimento
produzido em seu seio e materializado em
formações de compromisso ou conciliações
entre as ordens da pulsão e da cultura na sintomatologia neurótica.
Com essa noção, central ao pensamento
psicanalítico e responsável por grande parte
do seu impacto sobre o pensamento filosófico e a cultura em geral, esses dois eixos ou
modos de inserir a problematização moral
no campo das discussões sobre os processos de estruturação psíquica são conectados
necessariamente, além de indicar a inserção
necessária de Freud no seu ambiente cultural
e contexto sócio-histórico. Podemos pensar
que, com a formulação do Édipo, e o apoio
na tragédia grega, marco da cultura ocidental, Freud busca em seu ambiente cultural,
não apenas, uma interpretação possível e
universal (MEZAN, 1985) para o conflito
estabelecido entre desejo erótico e vida em
sociedade, o qual apareceria no cerne da
configuração da subjetividade, mas, sobretudo, dar conta da exigência característica da
modernidade de produção de uma normatividade própria.
Na interpretação delineada por Lacan,
a morte do pai indicada pelo complexo de
Édipo, implicaria a gestão da humilhação
do pai produzida como condição de surgimento da experiência moderna e se alinharia como consequência da morte de Deus
anunciada anteriormente por Nietzsche
(BIRMAN, 2000). Ou seja, se com a formulação da existência de um desejo inconsciente, Freud retira do homem moderno,
enquanto ser racional e autoconsciente, a
determinação dos seus próprios atos; com
a enunciação do Édipo, ele procura estabelecer uma equação através da qual tal soberania é deslocada para a rede de trocas simbólicas que ordenariam a vida em sociedade
no Ocidente moderno.
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Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud
Nesse sentido, Freud se apresenta simultaneamente como pensador moderno e
como crítico radical da modernidade. Com
efeito, Freud reconhece o papel central do
indivíduo, mas o coloca em questão na medida em que retira o caráter soberano do eu,
apontando para o inconsciente como verdadeiro campo psíquico, colocando ainda em
questão a racionalidade que fundaria tal experiência moderna e que se materializaria no
discurso objetivante da ciência.
É a partir do lugar de crítico da modernidade que Freud costura um laço indissociável entre, por um lado, o problema da
codificação moral e do sentimento religioso,
a regulação dos laços sociais e a determinação das condições de possibilidade da vida
em sociedade, problemáticas do pensamento moderno, e, por outro lado, a construção
do aparato psíquico e suas vicissitudes, que
incluiria o estabelecimento das formas de
sofrimento psíquico e a centralidade do Outro na ativação do desejo inconsciente que
governa o nosso agir, para além ou aquém
da nossa vontade ou consciência. Com isso,
portanto, Freud subverte qualquer fronteira
que se pretenda estabelecer entre os registros
do indivíduo e da sociedade, consolidando,
assim, o descentramento do sujeito da consciência e colocando o registro ético da experiência subjetiva no centro da compreensão
do funcionamento psíquico.
Foucault: modernidade,
ética e subjetivação
Mas o alcance teórico das formulações freudianas, com todos os desdobramentos que
acabamos de enumerar, não aparece na superfície do seu texto. É, ao contrário, fruto de
um trabalho de análise apenas possível pela
sua contextualização histórica, ou seja, com a
exploração do vínculo, já brevemente apontado, de Freud com o pensamento moderno.
Para tanto, nos parece fundamental o
recurso à obra de Michel Foucault, basicamente por duas razões: em primeiro lugar,
por conta da inscrição da psicanálise na ge42
nealogia da subjetividade, que caracteriza a
modernidade tardia descrita por Foucault
em torno da produção de um dispositivo da
sexualidade, o qual se vincula a uma forma
de subjetivação, de relação consigo, fundada
na interiorização reflexiva tal como disposta
no modelo confessional e no imperativo de
conhecer a si mesmo (FOUCAULT, 1984a);
em segundo lugar, pela problematização da
ética, em função da leitura da própria experiência moderna introduzida por Foucault a
partir do final da década de 1970 e do início
da década de 1980 e que pode ser delimitada
em três movimentos.
No primeiro movimento, se destaca a
distinção entre os registros da ética e da moral. No segundo movimento, a afirmação da
dimensão crítica presente na reflexão ética,
que se enuncia claramente no vínculo estabelecido entre ética e problematização, o
qual é pensado como marca da experiência
moderna. Por fim, o terceiro movimento,
que é a articulação proposta entre a problematização ética e as formas de subjetivação.
Aqui, é preciso destacar duas formulações
centrais que se articulam: por um lado, a distinção delineada entre os registros da ética e
da moralidade e, por outro, a ênfase na compreensão do trabalho ético como uma operação permanente dos sujeitos, na qual a ênfase é colocada não no código moral, mas na
construção de uma relação consigo mesmo
e com os outros, marcada pelo cuidado de
si e pela interrogação permanente sobre os
sentidos e efeitos dos nossos atos e das nossas palavras (FOUCAULT, 1984b; 2006a), ou
seja, “enquanto forma a ser dada à conduta e
à vida” (FOUCAULT, 1994b, p. 674).
É por esse viés que se costura tal perspectiva ética ao deslocamento produzido pelo
filósofo francês entre a categoria de sujeito
e a de formas de subjetivação; e é por conta
da formulação desse entendimento da relação do sujeito com os valores morais e ideais
que regulam a sociedade moderna que Foucault se debruça sobre o mundo helênico e o
modo como neste eram reguladas as relações
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 37–48 | Dezembro/2013
Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud
do sujeito consigo mesmo e com os outros:
“o que Foucault encontra no pensamento
antigo é a ideia de inscrever uma ordem na
própria vida, mas uma ordem imanente, que
não seja sustentada por valores transcendentais ou condicionada do exterior por normas
sociais” (GROS, 2006, p. 643).
Quanto a isso, vale lembrar ainda que,
nas palavras de John Rajchman (1993), o
problema ético se apresenta para Foucault
como uma dificuldade configurada na busca
de uma ética sem articulação com o registro do Bem. Isto é, enquanto o código moral
se assentaria na afirmação de um verdadeiro Bem, no momento em que Foucault põe
em questão a própria ideia de verdade e seu
vínculo com as relações de poder, o trabalho
ético passa a se vincular de modo necessário
a esta relação com as verdades produzidas
historicamente.
Numa outra leitura da relação entre ética
e moral em Foucault, pode-se enunciar que,
enquanto a segunda se vincularia diretamente ao registro do código de valores e ao juízo
sobre o agir, correto ou incorreto, a primeira “estaria marcada, em contrapartida, pela
maneira pela qual o sujeito constituiria ações
e produziria então ativamente práticas de
constituição de si” (BIRMAN, 2010, p. 186)
de modo que o que “estaria em pauta seria
a forma pela qual o sujeito se inscreveria e
se posicionaria no campo do código moral”
(BIRMAN, 2010, p. 186).
Na mesma direção, ao tratar da famosa polêmica estabelecida entre Habermas e
Foucault em torno das críticas do primeiro à
teoria do poder foucaultiana (HABERMAS,
2000), Richard Bernstein (1994) propõe que
encontramos em Foucault, não o fundamento normativo que segundo Habermas seria
necessário à lógica foucaultiana do poder
(mesmo que este não tenha sido em nenhum
momento explicitado ou reconhecido), mas
sim um horizonte ético-político. Esse horizonte pode ser tomado, então, como referência crucial para o trabalho ético permanente,
de interrogação do sujeito sobre o agir e seus
efeitos sem, contudo, jamais se converter em
Bem, isto é, em ponto possível de ancoragem
para o dito código moral.
Aqui, adentramos no segundo movimento referido anteriormente, pois dessa forma,
ainda segundo Bernstein, a postura ética
de Foucault se traduz em uma postura ostensivamente crítica, a qual o filósofo francês apresenta de modo mais visível no texto de 1984, em que comenta o opúsculo de
Kant sobre o esclarecimento (FOUCAULT,
1994a).
Nesse texto, Foucault parte da pequena e
clássica resposta de Immanuel Kant à pergunta “O que é o esclarecimento”, e se apoia
na ideia kantiana de que o que define a época das luzes não é propriamente um tempo
histórico nem seu encadeamento em uma
série de acontecimentos, mas a saída da menoridade, ou seja, a emancipação do homem
racional face à tutela da autoridade, em especial a autoridade religiosa, o que se constitui
ao mesmo tempo em programa da modernidade e tarefa na qual o sujeito moderno
deveria se engajar individualmente, na sua
própria relação consigo mesmo a partir do
uso crítico da razão (FOUCAULT, 1994a). A
partir da ideia de saída da menoridade como
atitude crítica do homem moderno e tarefa
que tem a si mesmo como objeto, Foucault
define, então, essa atitude como aquela que
define a modernidade, um permanente trabalho de interrogação e transformação dos
modos possíveis de existência, ou seja, do
seu ethos, com base no uso crítico da razão.
Com isso, Foucault pretende responder à
acusação de que a crítica à racionalidade moderna e às formas de saber e poder que lhes
são correlatas o empurraria rumo ao irracionalismo. Inversamente, nos diz Foucault, o
que define o esclarecimento e a postura esclarecida do homem moderno é precisamente essa atitude de crítica do pensamento que
interroga as formas possíveis de existência e
permite ao homem executar a tarefa de assumir o controle sobre si mesmo, sair da menoridade e se transformar.
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Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud
A crítica foucaultiana da racionalidade
moderna se materializa então como elogio
do pensamento marcado pela permanente
interrogação de si pelo sujeito. Nesse sentido, ainda no mesmo texto de 1984, Foucault, recorrendo a Baudelaire, descreve a
experiência moderna fundada nessa crítica
permanente como trabalho permanente de
construção de si. Estamos agora no terceiro movimento empreendido por Foucault
rumo ao estabelecimento do que ele entende como a atitude ética que define o sujeito
moderno. Movimento em que, costuram-se,
por fim, os laços existentes entre o trabalho
crítico da razão, a problematização ética e os
modos de subjetivação.
É desse modelo de reflexão ética, definida, portanto, como exercício crítico da razão,
voltado fundamentalmente para a transformação das formas possíveis de existência,
isto é, um modo de reflexão ética na qual
a dimensão nuclear estaria nos processos e
modos de construção da experiência subjetiva, e não no código ou no sentimento moral, que podemos aproximar decisivamente o
pensamento freudiano.
Considerações finais:
ética e subjetivação, clínica e cultura
Talvez se possa identificar, no que se refere
ao lugar da reflexão moral no pensamento
freudiano, deslocamento semelhante ao que
se dá quanto à sua posição face ao discurso
científico que lhe serve de matriz na medida
em que em ambos os deslocamentos tratase, no fim das contas, da sua relação com a
racionalidade moderna, isto é, com o projeto
moderno de domínio da natureza pelo homem a partir da afirmação da razão instrumental. Ou seja, há um primeiro momento,
no qual Freud ainda acredita que o conhecimento adquirido pela ciência, aí incluída
a sua psicanálise, possibilitaria um melhor
equacionamento dos impasses entre as demandas da pulsão e as exigências da civilização, conforme texto de 1908 sobre a moral
sexual civilizada. Trata-se de um momento
44
no qual é possível crer em certo poder preventivo ou pedagógico da psicanálise, no
qual a consciência moral ainda é tomada em
associação com a razão, o interesse e as pulsões de autoconservação.
Essa crença, no entanto, se esvai com a
formulação das pulsões de morte e com o
reconhecimento de uma dimensão mortífera e destrutiva do supereu, o próprio
agente da consciência moral, que se torna
cruel e responsável pelo sentimento de culpa que, ao mesmo tempo em que viabiliza
a manutenção do laço social, conduz o sujeito ao mal-estar que marca a sua inserção
no meio social, segundo Freud, a principal — e a menos compreensível — fonte
do sofrimento dos seus contemporâneos
(FREUD, 1986h).
Com efeito, no domínio da ética tal deslocamento pode ser pensado sob a forma
de um deslizamento da busca da garantia
do bom comportamento moral pelo uso da
razão para a permanente tensão do sujeito
na impossibilidade de conciliar a busca da
satisfação pulsional com a necessidade de
se relacionar com o outro, tal como aparece
na experiência do mal-estar, a qual levaria o
sujeito a um contínuo trabalho de problematização ética da sua relação com o próprio
desejar, sobretudo quando este se refere às
pulsões destrutivas.
Desse modo, o primeiro momento do
discurso freudiano estaria bastante próximo do problema enfrentado pelos fundadores da filosofia moral, na aurora do
pensamento moderno, que procuravam
responder por que o sujeito age de maneira moralmente correta sem a força ou até
mesmo a pressão da sanção e do castigo.
Foi esse problema que os levou a interrogar,
por um lado, os determinantes subjetivos
do comportamento moral, como em Hume,
no que constituiria a base de uma possível
psicologia moral ou, por outro lado, os modos como o bom uso da razão apresenta-se
como condição necessária e suficiente para
o agir reto, como em Kant (RAWLS, 2005).
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Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud
Enquanto isso, o segundo momento do
discurso freudiano, marcado pelos conceitos
de pulsão de morte e pelos desdobramentos
do conceito de supereu, seria precisamente
aquele diante do qual o uso da reflexão foucaultiana nos parece bastante adequado para
compreender a potencialidade presente no
pensamento de Freud em relação ao tipo de
reflexão moral que tem impacto sobre o nosso entendimento do sujeito e que pode nos
ser útil diante de certos impasses da contemporaneidade. Nesse momento não apenas
temas clássicos da filosofia moral, como a
felicidade e o lugar da religião, aparecem em
primeiro plano, o que de certo modo começa
a acontecer já na década de 1910, em especial com Totem e Tabu (FREUD, 1986a), mas
principalmente a discussão de tais temas
passa necessariamente pela problematização
da experiência subjetiva, de modo que o código moral vem a ocupar o lugar secundário
na abordagem freudiana dos temas morais,
enquanto a permanente reflexão sobre os
modos de agir e sobre a relação do sujeito
consigo mesmo assume uma dimensão propriamente ética.
Ou seja, quando a equação do sofrimento humano e a transformação dos seus
modos de estabelecer laço e investir libidinalmente nos objetos precisa se articular
a uma reflexão sobre o seu agir que resulta
na enunciação de uma nova história da sua
construção subjetiva, na qual se descortinam
precisamente a crítica das formas presentes
de existência e a abertura para novas existências possíveis. Tudo isso nos parece bastante
próximo ao que foi sugerido por Foucault
no ensaio sobre o Iluminismo (FOUCAULT,
1994a) como caminho decisivo pelo qual o
pensamento moderno afirma a sua potência
ao tecer um laço entre pensamento crítico,
reflexão sobre a conduta no mundo e processos de subjetivação.
Outro ponto interessante a destacar se
refere à própria categoria de formas ou modos de subjetivação (FOUCAULT, 1984a)
pela qual o sujeito se afirma como destino e
produção, e não mais como essência e origem
(BIRMAN, 2010). Isso pode nos ser bastante
útil para ampliar o alcance de certas formulações freudianas em torno do modo particular como Freud visualiza a história de vida
dos seus pacientes, na medida em que seria
sempre a posteriori, ou seja, a partir da ação
presente e como resultado de um necessário trabalho de construção/reconstrução
(FREUD, 1986l) que o sujeito delinearia as
possibilidades de sua existência.
Com isso, acreditamos poder afirmar que
a ética não se refere, portanto, em Freud,
prioritariamente, ao estabelecimento de uma
regulação do comportamento moral, tampouco da localização de um Ideal, Bem ou
Verdade que possa servir de balizador desse
comportamento ou finalmente da identificação de um sentimento moral que funcione
como garantia de uma relação harmônica
com o outro. Qualquer uma dessas opções
aproximaria Freud e a psicanálise do domínio das visões de mundo, das quais ele insistentemente procurou se afastar. Todas essas
inflexões nos permitem afirmar que, no campo das reflexões sobre a moral, trata-se em
Freud, enfim, não da busca de uma resposta,
mas do enfrentamento do problema da moralidade, pelo viés do imperativo da eticidade.
Esse problema foi articulado a dois outros
temas, aqui apresentados de modo bastante breve, mas que consideramos suficiente
para demarcar a experiência psicanalítica e
a potência do pensamento freudiano a partir de sua inscrição no registro de uma ética
em contraposição a uma filosofia do sujeito
concebido moralmente e garantido pelos
atributos da razão. Por um lado, o tema da
construção do psiquismo e de sua articulação com a experiência subjetiva, ou seja, o
fato de que não há de início nem sujeito nem
psiquê, sendo ambos, psiquismo e subjetividade, construídos ao longo da vida. Por outro lado, o tema do reconhecimento de que
tal construção se dá a partir da relação com o
outro, em uma rede complexa de trocas afetivas e simbólicas.
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Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud
Abstract
This article is intended to indicate the importance of the ethical dimension of the psychoanalytic experience based on the link between
Freud’s thinking and modernity. For this, we
turn to Michel Foucault’s formulations that
seem appropriate to a description of the Freudian ethical thinking, especially as the French
philosopher, in the commentary on the 1984
text of Immanuel Kant in response to the question “What is enlightenment” binds the ethical
processes of subjectivity on the one hand, and
secondly, the link between modern experience and the critical task of thought. With this,
we intend to highlight the presence in Freud’s
works of the link between the processes of subjective constitution and the moral problem,
which would contribute to an understanding
of the subject in which it would not be referred
to a psychological dimension, marked by notions like the will, consciousness and perception, but closer to what we try to describe as a
ethical subject, designed from the relationship
with the other and action upon the world.
Keywords: Ethics, Moral, Psychoanalysis,
Subject, Freud.
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R ecebido em : 0 9 / 0 8 / 2 0 1 3
A provado em : 2 9 / 1 0 / 2 0 1 3
S obre O S au tor E S
Eduardo Leal Cunha
Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ)
e Professor do Núcleo de Pós-Graduação
em Psicologia Social e do Departamento
de Psicologia da UFS.
Joel Birman
Doutor em Filosofia (USP), Professor Titular
do Instituto de Psicologia (UFRJ)
e Professor Adjunto do Instituto
de Medicina Social (UERJ).
Endereço para correspondência
Eduardo Leal Cunha
Praça Camerino, 161/601
Edf. Leonardo da Vinci - São José
49015-060 - Aracaju/SE
E-mail: [email protected]
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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise
O inapanhável objeto
do savoir-faire na análise1
The elusory object of know-how in analysis
Erik Porge
Traduçao: Elisa dos Mares Guia-Menendez
Mariana Valério Orlandi
Resumo
Além das regras técnicas, o savoir-faire (saber-fazer) provém de uma posição ética. O
tato, assim como a disponibilidade, o constitui. Ele encontra sua expressão na regra da
atenção igualmente em suspenso. Esta visa a impedir a compreensão precipitada e favorece a surpresa no discurso, sinais de uma passagem de inconsciente. Ela também indica
que o savoir-faire se encontra ligado ao tempo e ao seu manejo, bem como à existência
da lalíngua (lalangue). No entanto, o savoir-faire não deve se situar somente do lado do
analista, mas também do analisante. A este cabe aprender como lidar com seu fantasma
e seu sintoma. Além disso, o savoir-faire se refere sempre a uma subjetividade, seja ela
do analista ou do analisante, na medida em que o inconsciente é um savoir-faire com a
lalíngua?
Palavras-chave: Saber-fazer, Atenção, Lalangue.
Naquilo que concerne à psicanálise, o savoirfaire pode ser visto de maneira positiva ou
negativa. O lado ruim: no sentido de uma
manipulação indevida da transferência. O
lado bom: no sentido de uma justa apreciação dos posicionamentos da transferência.
Esse aspecto bifacetário do savoir-faire, no
fundo, está correlacionado com o da transferência em si, que às vezes é um fator de resistência e também motor de um querer dizer.
A dupla face da transferência nos mostra que
ela nunca é pura nem purificável, pois está
intricada com a sugestão. No entanto, é recomendável distingui-la. Mas tal distinção não
é fácil e demanda a intervenção de outras
coordenadas. Freud identificou muito bem
tal armadilha em seu artigo A dinâmica da
transferência e busca contorná-la: Buscamos
preservar a independência última do paciente, utilizando a sugestão somente para fazê-lo realizar o trabalho psíquico, que o conduzirá necessariamente a melhorar de maneira
durável a sua condição psíquica (FREUD,
1975).
A fronteira entre uma sugestão arbitrária,
hipnotizante e uma sugestão a serviço do
“trabalho psíquico” pode ser porosa, segundo o dito que os fins justificam os meios. Por
isso, é preciso admitir a existência “de uma
dimensão de sugestão em toda transferência”
(Plon, 1989, p. 91). Nessa ocasião Michel
Plon também cita Lacan:
Nas condições centrais, normais de uma análise, nas neuroses, a transferência é interpretada
com o próprio instrumento da transferência e
1. Título original: L’insaisissable objet du savoir-faire dans l’analyse. In: Essaim. Erès, 2013/1, n. 30, p. 9-23.
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 49–62 | Dezembro/2013
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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise
com base nela mesma. Portanto, ela poderá ser
feita somente a partir de uma posição que lhe é
atribuída na transferência, que o analista analise e intervenha na própria transferência. Para
ser sincero haverá uma margem irredutível de
sugestão, um elemento que será sempre suspeito, que não se atém ao que se passa por fora
— não há como saber — e sim a aquilo que a
própria teoria é capaz de produzir2 (Lacan,
1992, p. 210).
Se, de fato, a transferência pode ser interpretada somente com a própria transferência, existe um círculo vicioso da transferência e da sugestão. Daí então a necessidade,
para encontrar uma saída, de fazer com que a
transferência dependa de outra alavanca teórica (o ponto fixo de Arquimedes que Descartes relembra em sua segunda Meditação),
que foi finalmente nomeado por Lacan, em
1964, o sujeito suposto saber.
É também por essa via que é possível
abordar a questão do savoir-faire na análise.
Um savoir-faire que não se relanceará nos
equivocados sulcos da transferência e da sugestão e que não tomará a máscara de Janus.
Além e aquém
do saber e do fazer associados
A associação destes dois verbos cria uma
nova noção, suplementar à adição de cada
um destes termos. A ordem não é indiferente, porém o savoir-faire (saber-fazer) não é
inverso ao faire-savoir (fazer-saber), expressão que também tem sua pertinência, mas
que concerne outro campo como o da psicose. E o savoir-faire não precisa de faire-savoir.
No “savoir-faire ” existe uma determinação
do fazer pelo saber, mas ela não se esgota.
Longe disso, o sentido do traço da união entre ambos é também um traço de separação.
Mas se o saber determina o fazer, tal fato não
2. Em 1 de março de 1961, p. 210. Ele recoloca a questão em seu seminário L’insu que sait de l’une-bévue
s’aile à mourre, em 17 maio 1977 (LACAN, 2004, p.
124).
50
diz de qual saber nem de qual fazer se trata,
nem que o fazer se origina do saber. No que
concerne ao resultado dessa associação de
dois verbos, ele pode provir seja de um fazer
sem muito saber, seja um saber sem muito
fazer.
O exercício de um fazer pode produzir
um saber, especialmente se o fazer possui
valor de ato, levando em consideração que
o gesto está associado a uma dimensão significante — por exemplo, no caso de César
atravessando o Rubicão —, mesmo se durante o ato o sujeito não perceba o que está
fazendo, pois ele está dividido pelo ato, ele o
transforma, ele não é mais o mesmo antes e
após o ato. A mudança de posição do sujeito
modifica a sua relação com o saber. É o paradigma do ato analítico, o qual Lacan definiu
como a passagem do analisante a analista. De
maneira mais modesta, é também o efeito de
qualquer ato falho, de todo engano,3 que produz uma entrepercepção (entr’apercevoir) de
uma dimensão significante que até então o
sujeito desconhecia.
O fazer pode também encontrar sua origem no saber. É o caso do discurso universitário e de toda formação dita profissional,
em que se coloca em prática um saber constituído. A partir desse ponto de vista, o savoir-faire analítico é uma deglutição de um
saber aprendido em e através de uma análise
pessoal. Trata-se, então, de uma concepção
livresca do saber, produzindo interpretações
prontas para serem usadas (prêtes-à-porter).
Ele se opõe a um saber proveniente de um
agir.
Mas a dimensão do ato deve ser transmitida através de um saber que confere a sua
dimensão significante ao fazer e lhe permite
ser reconhecido como tal. Não saberíamos,
então, estabelecer uma demarcação clara
entre essas duas origens possíveis de um savoir-faire. É preciso se desvencilhar de uma
3. Termo em francês bévue, que significa engano cometido por ignorância. (N.T.).
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 49–62 | Dezembro/2013
O inapanhável objeto do savoir-faire na análise
posição binária entre saber e fazer, que é demasiadamente generalizada. É o que fez Lacan quando, ao escrever a fórmula do sujeito
suposto saber, diferencia e articula o saber
textual, lógico e topológico (o oito interior) e
um saber referencial, “latente”, saber suposto,
assim como o sujeito, nos significantes deste,
aonde o “não sabido se ordena como estrutura do saber” (Lacan, 2003, p. 248-250).
Tal como Freud nos lembra, devemos
abordar cada “novo caso como se nada houvéssemos adquirido de suas primeiras decifrações” (Lacan, 2003, p. 249). Em outro
momento, mas nessa mesma direção, ele
anuncia que é “indispensável que o analista
seja ao menos dois. O analista, para que os
efeitos possam surtir é o analista quem, estes
efeitos, os teoriza” (Lacan, 1974).
Permanecendo em uma oposição entre
saber e fazer, não saberíamos encontrar a
verdade do savoir-faire; ao mesmo tempo a
noção contém uma originalidade e um valor
que não devem ser perdidos de vista. Possivelmente o laço entre o saber e o fazer não
consiste em um laço de dois termos, e é preciso ao menos poder atá-los com um terceiro
termo. Propomos introduzir neste ponto os
termos de gozo e lalíngua (lalangue).
No savoir-faire, o saber e o fazer não podem ser isolados como duas entidades ou
dois elementos conjuntos que, de alguma maneira, complementariam um ao outro. Existe uma alienação, seja um fazer que, por um
lado, exclui o saber e um saber que, por outro
lado, exclui o fazer. Uma parcela do fazer excede o saber, ou o antecipa, quando esse fazer
produz um saber. Ao mesmo tempo, o fazer
pode se mostrar falho com relação ao saber.
A transferência ao analista depende do significante terceiro, mediador, “sujeito suposto
saber”, mas isso pode reforçar a repreensão
da falta de savoir-faire. Mesmo se um savoirfaire é emprestado ao analista, não é o que
encontramos no princípio da transferência.
Não saberíamos estender de maneira natural
a fórmula do sujeito suposto saber em uma
fórmula de um sujeito suposto saber fazer.
O lado do ato
e do fracasso (ratage)
O fato de evocar um savoir-faire em uma
análise — e que ao fazê-lo a noção de ato é
convocada — implica um possível fracasso.
O possível seria, segundo Lacan, um cessar
de se escrever. Sabemos que, desde Aristóteles e sua contribuição à controvérsia dos
futuros contingentes, que o que há de necessário é o possível. É possível que seja A ou
B que vença a batalha naval amanhã, mas é
necessário que seja ou um ou outro. As alternâncias ou pontuações, do cessar de se
escrever e do não cessar de se escrever (assim
como Lacan define o necessário [LACAN,
1982, p. 132) talvez sejam aquilo que separa
a ação do sujeito suposto saber, como figura
necessária, da do savoir-faire, como figura do
possível da transferência.
Contrariamente à definição que busca
que o savoir-faire seja identificado como habilidade, a busca de obter sucesso naquilo
que fazemos em uma análise, o savoir-faire se
aproxima do risco, de uma possível falha, a
aproximação e o fracasso, dimensões ligadas
ao ato analítico. Nesse sentido, o savoir-faire
é exatamente o contrário da aplicação prática
de uma regra teórica universal. Ele não enaltece o saber e não equivale a nenhuma habilidade técnica que seja, mesmo se tratando
de algo bem-vindo.
É também o caso de outros domínios
e não somente da análise, por exemplo, na
arte. Fabricar um quadro não é pintar (COLLINS, 2012).
Em Propos sur la peiture du moine Citrouille-Amère (Anotações sobre a pintura do
monge abóbora-amarga), Shih T’ao exemplifica aquilo que ele chama de “um traço único
do pincel”, familiar à caligrafia e à pintura,
que vai bem além de regras técnicas de execução. Ele representa um verdadeiro ascetismo:
Aonde se encontra a regra? Ela reside em um só
traço do pincel. Em um só traço do pincel encontra-se o principio de todas as coisas, a raiz
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 49–62 | Dezembro/2013
51
O inapanhável objeto do savoir-faire na análise
de Dez Mil Fenômenos, isto é revelado aos Espíritos, mas escondido dos homens, e o século o
ignora. [...] A regra do traço único do pincel é a
ausência de regra que produz a regra, e assim a
regra obtida abrange o universal (T’AO, 1984,
cap. I).
[...]
É na união entre o pincel e a tinta que se produz o ato de pintura: “A tinta deve umedecer
o pincel com a alma, o pincel deve utilizar a
tinta com o espírito. [...] Realizar a união entre
o pincel e a tinta, é resolver a distinção de yin e
yun e se comprometer a ordenar o caos” (T’AO,
1984 cap. V, VII).
Em seu livro sobre um dos maiores pintores chineses, Chu Ta (1626-1705), amigo de
Shih T’ao, Le génie du trait (O gênio do traço),
François Cheng escreve:
Que se trate de caligrafia ou de pintura, na
China, o gênio criador se resume sempre a este
gesto único: traçar o traço. (...) Recordemos que
para os chineses o traço não consiste em uma
finalidade em si. Da mesma forma com que ele
não seria percebido como uma simples linha.
Ele é, ao contrário, uma entidade viva, implicada em uma estrutura global que pretende
tratar do universo em toda sua toda a integralidade (Cheng, 1986, p. 36-39).
Em função das grandes mudanças políticas e familiares, Shu Ta se fechará em um
mutismo absoluto, mas ele mostrará ter uma
extraordinária energia criativa. François
Cheng percebe que para ele o traço representa a “voz de dentro”, ele “dá a palavra à suas
imagens” (Cheng, 1986, p. 39).
Du tait (de taire) au trai il y a l’r. (Do silêncio ao traço, existe o r).
Essa experiência é preciosa para abordarmos aquilo que Lacan chama de “lituraterra”,
“a rasura de traço algum que seja anterior”
(Lacan, 2003, p. 21), a mesma do traço
unário. Ele modifica aquilo que havia apresentado em seu seminário A identificação
(Lacan, 24 jan. 1962) formulando os três
52
tempos no advento do significante: o do traço (do não), o da sua desmarcação, e o da
anulação da desmarcação. Isso gera o advento do significante “não”: não há traço no não.
Em Lituraterra, Lacan conta somente dois
tempos, mas ele fala de uma rasura de traço algum que seja anterior para apontar esse
momento inapanhável “da metade sem par
em que o sujeito subsiste”, e é a caligrafia que
o presentifica:
O escoamento é o remate do traço primário e
daquilo que o apaga. Eu lhe disse: é pela conjunção deles que ele se faz sujeito, mas por aí
se marcam dois tempos. É preciso, pois, que se
distinga nisso a rasura. Rasura de traço algum
que seja anterior, é isso que do litoral faz terra.
Litura pura é o litoral. Produzi-la é reproduzir
essa metade ímpar com que o sujeito subsiste.
Esta é a façanha da caligrafia. Experimentem
fazer essa barra horizontal que é traçada da
esquerda para a direita, para figurar com um
traço o um unário como caractere, e vocês levarão muito tempo para descobrir com que apoio
ela se empreende, com que suspensão ela se
detém. A bem da verdade, é sem chances para
um ocidental. É preciso um embalo que só consegue quem se desliga de seja lá o que for que
faça traço (raye).
Entre centro e ausência, entre saber e gozo, há
litoral que só vira literal quando, essa virada,
vocês podem tomá-la, a mesma, a todo instante. É somente a partir daí que podem tomar-se pelo agente que a sustenta. (Lacan,
2003, p. 21)
Vemos que o savoir-faire não se reduz a
uma habilidade técnica e que um savoir-faire
em diferentes domínios pode produzir efeitos análogos, e nesse ponto, uma virada entre
saber e gozo.
Não é exatamente do que se trata o savoirfaire? Saber fazer uma curva entre saber e
gozo? Não seria o gozo o terceiro termo que
faria traço entre saber e fazer? O único traço
de pincel como o traço unário?
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 49–62 | Dezembro/2013
O inapanhável objeto do savoir-faire na análise
O savoir-faire pode ser ensinado?
O savoir-faire é transmissível como na arte
ou no artesanato? Mais precisamente, quais
seriam os elementos do savoir-faire que poderiam constituir objeto de uma transmissão? E como?
Não me parece contestável o fato de que o
savoir-faire possa ser ensinado durante uma
análise, assim como tudo o que se encontra
ao redor dela, supervisões, apresentações de
paciente, cartéis, passe... É o que então tornaria o savoir-faire indispensável, mas limitado, pois a transmissão de um savoir-faire
analítico não é a transmissão da psicanálise,
concebida como um saber sobre a passagem
da posição de analisante à posição de analista. É nesse sentido que o savoir-faire pode se
converter em uma sugestão e, então, reduzir
a psicanálise a uma espécie de psicoterapia.
Ao publicar A interpretação dos sonhos,
Freud esperava, entretempos, produzir um
“manual” de interpretação, um guia de savoir-faire das interpretações dos sonhos, que
poderia ser utilizado por qualquer pessoa.
É por isso que ele buscará da forma mais
abrangente possível contribuições de outros
analistas, as quais foram incluídas ou não em
sua obra, em uma história complicada (Marinelli; Meyer, 2009). Porém, rapidamente ele se dará conta de que um manual
não poderia substituir uma análise pessoal,
com um terceiro. Todavia, foi preciso esperar 1918 para que Hermann Nunberg recomendasse de antemão a análise pessoal para
exercer a psicanálise, e 1925 para que a IPA
tornasse tal recomendação obrigatória, o que
inscreveria o vínculo entre a análise pessoal
e a aquisição de um savoir-faire. Ao mesmo
tempo que Freud se sentia livre com relação às regras enunciadas, ele declara que a
psicanálise não pode ser ensinada em livros
(FREUD, 1974). Nos dias de hoje, a necessidade de uma análise pessoal para exercer a
psicanálise é um consenso, embora as razões
não sejam sempre as mesmas.
Não seria questão de reduzir a análise do
analista nem suas conexões, supervisões, ao
aprendizado de um savoir-faire. Conceber
as coisas dessa forma consistiria em permanecer em um modelo de análise enquanto
formação profissional. Mesmo sendo difícil
para cada um poder dizer em que a análise
pessoal contribui para o aprendizado do savoir-faire, ela será útil ao analisando se ele se
tornar analista.
Essa foi uma questão colocada durante
um colóquio organizado em novembro de
2011 pela EPFCL4: “Enquanto alguém que
pratica a psicanálise, o que você obteve do
analista que Lacan foi para você?”5 Tentando
responder a essa questão, comecei ressaltando a dificuldade:
Quais pontos eu irei distinguir em Lacan, irei
ler em sua prática para afirmar que eles tiveram tal ou tal efeito na minha prática? Seria eu
capaz de representar aquilo que opera na minha prática? E simultaneamente relatar alguma coisa precisa de minha análise com Lacan?
Assim mesmo, quando eu conseguir estabelecer
esta relação de elementos, permanece somente
o conjunto de traços que “recebi” com outros
traços próprios que farão com que tais traços
não possuam mais o mesmo valor e não serão mais identificáveis enquanto recebidos, ao
menos que eu não me dê conta.6 O recebido é
um re-sabido daquilo que não me dou conta
(PORGE, 2012, p. 41).
Colocados tais limites, retive, entretanto,
certos traços que poderiam entrar no quadro
daquilo que definiria um savoir-faire. Que fique entendido que não é porque retivemos
que os dominamos, e existe uma distância
entre aquilo que se representa de um savoirfaire e aquele que o opera. Vejamos, resumidos, três desses traços.
4. Ecole de Psychanalyse des Foruns du Champ Lacanien.
5. Publicado em: Champ Lacanien, Revue de Psychanalyse, Paris, n. 11, maio 2012, École de Psychanalyse
des Foruns du Champ Lacanien.
6. Termo em francês insu significa “sem se dar conta”.
(N.T.).
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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise
Um valor do savoir-faire que a análise me
ensinou é a do tato. Freud já havia mencionado em “A psicanálise dita selvagem”: “Na
psicanálise, essas regras estritas viriam substituir uma inapanhável qualidade que exige
um dom especial: o “tato médico” (FREUD,
1974, p. 41).
Rudolph Loewenstein é um dos poucos a
ter escrito um artigo inteiro consagrado ao
tato na análise. Ele nos alerta especialmente
contra duas preocupações que, por mais legítimas que sejam, podem prejudicar o processo de análise: uma curiosidade muito grande
em conhecer os pequenos detalhes da história do paciente e um zelo terapêutico que o
torna impaciente. Ele também teve o mérito
de acrescentar:
Uma grande parte das intervenções dos analistas, entre elas, as que pecam contra o tato
psicológico, possuem uma base em comum. É
a transgressão da terapêutica analítica a um
estado da psicoterapia mais primitiva, aquela
que age sobre os pacientes através de bons conselhos, pelo chamado à vontade e pela persuasão (Loewenstein, 1930-1931).
Lacan, que fora analisante de Loewenstein, reconhecia também o valor dessa qualidade, atribuindo-lhe a seguinte definição:
não se apoiar muito nos significantes que fazem mal, manejá-los com discernimento em
sua literalidade.
A análise também me ensinou o valor
de um savoir-faire com as relações interior-exterior, sem abolir a distinção entre privado-público, mas introduzindo nessa relação uma terceira dimensão, uma dimensão
analisante passando ao público. Com Lacan,
uma exterioridade se mostrava convidativa
no próprio consultório do analista. Ela poderia ocorrer mesmo sem ele, mas ele poderia também — com seu estilo inimitável, mas
que ensinava através das surpresas que ele
provocava — modelá-la, ou seja, demonstrar um savoir-faire avec (saber-fazer com):
isso acontecia no encontro com outros ana54
lisantes no consultório do analista, por um
trabalho comum com eles nas instituições,
pela participação nos seminários e, sobretudo, nas apresentações de paciente de Lacan
e de outros analistas. Poderíamos dizer que
isso introduzia uma dimensão de passe na
própria análise e instaurava, assim, o analista
como passador de um discurso, o que é uma
maneira de conceber que o analista seja ao
menos dois.
Finalmente, mas a lista não é exaustiva, se
existe uma coisa que a análise pode ensinar e
que alimenta um savoir-faire, é a disponibilidade do analista, disponibilidade à demanda
de escutar e à própria escuta, que ao encontro do valor da paciência, frequentemente
subestimado.
Essa disponibilidade não é um dom, ela
é uma disposição, ou seja, uma posição do
analista, que separa, diferencia, discerne (o
dizer).7 A dis-posição do analista responde a
uma su-posição em que o objeto é o objeto
que prepara a sua de-su-posição do saber no
final da análise. Por vezes, ela permite pro-posições que são atos.
A disponibilidade do analista encontra
sua expressão na regra fundamental enunciada por Freud, a da atenção igualmente em
suspenso, a gleichschwebende Aufmerksamkeit.8 Nessa expressão, o gleich implica uma
continuidade (a atenção) enquanto o schwebend se aproxima mais de uma descontinuidade (o suspenso). É na verdade uma regra
de in-atenção, tal como entendeu Theodor
Reik em Le psychologue surpris. Relaxando a
sua atenção, desviando-a de um ponto fixo,
esperado, voluntário, colocando-se em estado de inatenção, o analista se torna receptivo ao Einfall, à ideia súbita, à surpresa que é
característica do inconsciente. “Este processo de relaxamento momentâneo da atenção
e do desvio de interesse em outras direções
7. Em francês dis. (N.T.).
8. Para esta tradução e seu comentário, cf. PORGE,
E. Des fondements de la clinique psychanalytique. Toulouse: Erès, 2008, chap. V.
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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise
com o retorno consecutivo do objeto prepara a surpresa” (Reik, 1976, p. 75-78). A regra visa impedir que possamos compreender
muito rápido os dizeres do analisante e colocá-los em pequenas caixas interpretativas
já prontas; a regra favorece a receptividade
da surpresa do discurso, inclusive as que vêm
do analista, como em caso de lapso auditivo
(Verhören) que revela o dizer no que foi ouvido (Clavurier, 2003).
Muito mais que uma regra técnica, tratase, podemos ver, de uma posição ética fundada no aparecimento repentino descontínuo, ao imprevisto, sem que esperemos, das
formações do inconsciente. Elas aparecem
repentinamente e desaparecem logo que
aparecem, na estrutura temporal da escansão, da batida de uma abertura (LACAN,
1979, p. 33).
A regra da atenção igualmente em suspenso se aproxima da regra à qual Descartes se submeteu, de colocar em suspenso os
saberes constituídos e de onde surgiu o cogito enquanto uma espécie de Einfall, muito
mais como um julgamento dedutivo; é o que
o torna vizinho do sujeito do inconsciente,
permitindo ser retomado por Lacan.
A atenção igualmente em suspenso dos
saberes constituídos é, então, um fundamento do savoir-faire. Neste sentido o savoir-faire não se trata de uma soma de saberes de
experiência. Ele visa o contrário, ir contra
as armadilhas da compreensão ligada à experiência. O savoir-faire se revela nessa direção tal como um savoir-ne-pas-faire (saber-não-fazer), uma suspensão do savoir-faire.
A atenção igualmente em suspenso tem uma
função de corte, logo, de pontuação, que
dará sentido ao discurso. Ela é a colocação
em ato do silêncio, e ela é da mesma ordem
da pontuação na sessão.
Ressaltamos que François Jullien aproximou a disponibilidade freudiana àquela que
constitui a base da sabedoria chinesa, para
quem a disponibilidade é “uma disposição
sem posição adotada”, que leva a um desprendimento progressivo. O “conhecimento”
chinês é não tanto buscar ter uma ideia do
que se torna disponível à “(cf. Xunzi, chap.
“Jiebi”)” (Jullien, 2012, p. 36-42). A distância entre a psicanálise e a sabedoria, chinesa ou não, continua preservada, mas a
reconciliação com esse ponto merece nossa
atenção... suspensa.
A referência à atenção igualmente suspensa nos permite afirmar que o savoir-faire
se apoia essencialmente no manejo do tempo
assim como no manejo do dizer. Os dois estão relacionados (LACAN, 1977).9 Não basta
que uma intervenção na análise seja exata,
justa. Ela deve ocorrer no bom momento e
ser colocada de uma boa maneira. Sabemos
que Freud nos lembra o provérbio dizendo
que o leão salta somente uma vez (FREUD,
1975, p. 234); todavia, não se trata de todas
as interpretações, trata-se daquelas que são
“violentas” na questão da fixação de um termo na análise (o que Freud fizera com o Homem dos lobos).
Mesmo sem se tomar por um leão, o analista sabe que o efeito de uma intervenção de
sua parte depende de sua posição na transferência e do tempo lógico em que ele se situa. O termo suspenso nos leva diretamente
ao tempo lógico, pois é após duas escansões
suspensivas que a asserção de uma certeza
pode ser enunciada. Ela é então antecipada
na pressa, no momento de concluir que está
articulado ao instante de ver e ao tempo por
compreender (ao qual podemos assimilar a
perlaboração freudiana).
Se a compreensão daquilo que é dito em
análise deve ser colocada em suspenso, é
porque, assim como no tempo lógico, ela se
funda em uma não compreensão, que encontrará o seu término somente na antecipação,
na pressa do momento de concluir. Ela acontece no après-coup do momento de concluir.
Não basta pronunciar a palavra kairos para
saber captar o bom momento da interpretação. Existem vários kairos no tempo lógico.
9. Le moment de conclure, 15 nov. 1977. Inédito: Le
dire a affaire avec le temps.
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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise
O leão salta várias vezes, de maneira diferente, segundo os tempos lógicos e a topologia
que correspondem a ele, o que Lacan identificou à garrafa de Klein (LACAN, 1965). Na
relação do sujeito ao Outro, em que a garrafa de Klein oferece uma costura possível,
o espaço se encontra em duas dimensões, e
o tempo, em três. A sincronia do momento de ver é a da linguagem como sistema; a
diacronia do tempo para compreender é a
da progressão circular da demanda em torno daquilo que produz um furo, progressão
onde o sentido se inverte em um momento;
enfim, o momento de concluir em torno do
furo é aquele de uma identificação que não
se encontra fundada numa identidade em si,
mas o contrário, numa incomensurabilidade
ao um.
O suspenso que determina o tempo da
interversão da análise opera também, necessariamente, em sua maneira de dizer. Ele não
deve dizer muito, nem de uma maneira qualquer; a interpretação deve ser ágil.
Em nenhum caso uma intervenção analítica
deve ser teórica, sugestiva, ou seja, imperativa,
ele deve ser equivocada. A interpretação analítica não é feita para ser compreendida; ela é
feita para produzir ondas. Então devemos buscar ser discretos e nos lembrar que é melhor calar-se; basta somente escolher (LACAN, 1976,
p. 35).
Além do senso, a interpretação nos remete à distinção do dito e do dizer. “Eu não
te faço dizê-lo. Não reside aí um mínimo de
intervenção interpretativa?” (LACAN, 2003,
p. 492).
Após a introdução do termo lalíngua em
novembro de 1971,10 Lacan cerne ainda mais
10. Lacan, J. Séminaire Le savoir du psychanalyste
(O saber do psicanalista). Esse seminário foi feito na
capela de Sainte-Anne, no mesmo ano mas em alternância com o Seminário …Ou pire, que aconteceu
na Faculdade de Direito do Panthéon. Jacques-Alain
Miller achou melhor publicar, no Seuil, em 2011, uma
56
a maneira pela qual os analistas podem intervir. Lalíngua tece as palavras e os sintomas,
ela é composta do “integral dos equívocos
que uma história deixa persistir” de uma língua entre outras assim que de uma parte de
gozo fálico (LACAN, 11 jun. 1974). Lalíngua
inclui a dita língua materna com uma parcela
estritamente individual. É por essa razão que
“a interpretação deve sempre — da parte do
analista — levar em conta que naquilo que é
dito, existe o sonoro, e que este sonoro deve
consonar com aquilo que dele é de inconsciente” (LACAN, 1976, p. 50).
De outra maneira, é em função da lalíngua que em Les non-dupes errent Lacan
situa novamente a atenção igualmente em
suspenso:
[…] colocarmo-nos neste estado dito pudicamente de atenção flutuante que faz com que
justamente quando o parceiro, lá, o analisante,
ele mesmo emite um pensamento, nós podemos
ter um outro, o que é um feliz azar de onde se
produz um flash; é justamente lá onde a interpretação pode se produzir; quer dizer que, devido ao fato de termos uma atenção flutuante,
nós escutamos o que ele diz muitas vezes do
fato de uma espécie de equívoco, quer dizer, de
uma equivalência material. Nós percebemos o
que ele disse — percebemos, pois somos submetidos a isso — que isto que ele disse poderia ser
parte do Savoir du psychanalyste, à parte, sob o título
Je parle aux murs (Eu falo aos muros) e de incluir o
outro no Seminário …Ou pire, o que mistura as pistas de leitura para os dois seminários. C.f; editorial no
site de Essaim. Por um estudo das questões levantadas
sobre o termo “lalangue”, cf. Dominique Simonney,
“Lalangue en questions”, Essaim, n. 29, outono 2012.
Esse número se intitula precisamente Ce qu’on doit
à lalangue (O que devemos à lalingua) e contém vários outros artigos sobre o tema, de Jean-Pierre Cléro,
Frédéric Pellion, Simone Wiener, Mary McLoughlin,
Paul Henry, Paul Alérini.
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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise
escutado de forma completamente atravessada. E é justamente o escutando de forma completamente atravessada que permitimos que
ele perceba de onde vêm seus pensamentos, sua
semiótica, de onde ela emerge: ela emerge de
nada além do que a ex-istência (ek-sistence)
da lalíngua. Lalingua ex-iste, ex-iste em outros lugares além dos quais ele acredita ser seu
mundo (LACAN, 11 jun. 1974)
Savoir-faire do analisante,
savoir-faire com a lalíngua
Chegando neste ponto, devemos nos perguntar se não deformamos nossa aproximação do savoir-faire privilegiando a parte do
analista e desse fato favorecendo uma linha
muito próxima de uma habilidade deste último em passar sua “direção” da cura para o
progresso da análise, a fim de obter aquilo
que Freud chama de “a convicção certa da
existência do inconsciente” (FREUD, 1975,
p. 264) e para “realizar o trabalho psíquico
que irá conduzir [o paciente] necessariamente a melhorar de maneira durável sua
condição psíquica” (FREUD, 1975, p. 58).
O savoir-faire também não deve se situar
do lado do analisante ? E, além disso, não seria de situá-lo do lado de uma subjetividade,
seja ela do analisante ou seja ela do analista?
O que temos que aprender com o analisante de seu próprio savoir-faire é, na verdade, o que Lacan evoca inúmeras vezes. Por
exemplo, em suas conferências nos Estados
Unidos:
[...] é com meus analisantes que aprendo tudo,
que aprendo o que é a psicanálise. Eu empresto
a eles minhas intervenções, e não meus ensinamentos, exceto se eu sei que eles sabem perfeitamente o que isto quer dizer (LACAN, 1976,
p. 34).
Em seu seminário sobre os problemas
cruciais da psicanálise, ele é ainda mais preciso:
Trazer o paciente a seu fantasma original, não
é fazê-lo aprender: é aprender dele como fazer.
O objeto a e sua relação, em um caso determinado, à divisão do sujeito é o paciente que sabe
fazer e nós estamos no lugar dos resultados na
medida em que os favorecemos (LACAN, 19
maio 1965).
Se existe um savoir-faire do analista, ele
consiste em favorecer o resultado, que é o
analista, resultado do savoir-faire do analisando.
Passando do fantasma ao sintoma, Lacan
considera em seguida o fim da análise como
um savoir-faire do analisante, um “saber fazer com o seu sintoma”, um “saber lidar com
ele, saber manipulá-lo”, “algo que corresponde ao que o homem faz com a sua imagem”
(LACAN, 2004, p. 49-50). “Manipulá-lo”:
ainda é preciso tato.
É um savoir-faire com o seu sintoma que
encontra o limite de uma identificação ao
sintoma, que se pode definir como o limite
que encontra a análise do sintoma, seja ele
um limite às substituições que dão suporte
ao sintoma como metáfora. É um limite aos
confins do simbólico e do real; ele chega até
a análise do sintoma e faz borda no real do
traço unário, quer dizer, no “mesmo”, nisso
que ocupa o mesmo lugar, que se sobrepõe,
segundo o fecho duplo (la double boucle)
deste. Lá se efetua, entre gozo e saber, uma
transformação de litoral a litoral com um depósito, uma precipitação da letra do sintoma
(Porge, 2010, p. 118-119, 128-129, 133,
154).
A virada nesse passe é o próprio lugar do
savoir-faire. E lá ele tem algo a fazer com a
lalíngua:
Lalíngua é o que permite o querer (anseio),
consideramos que não é por acaso que assim
seja o quer de querer, terceira pessoa do indicativo, que o não (non) negativo e o nome (nom)
nominativo também não são por acaso; nem
que deles (d’eux) (d apostrofo antes deste eles
[eux] que designa aqueles dos quais se fala)
seja feito da mesma maneira que o numero
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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise
dois (deux), também não é por acaso e muito menos arbitrário, como diz Saussure. O que
se deve conceber aí é o depósito, o aluvião, a
petrificação que se marca a partir do manejo
por um grupo de sua experiência inconsciente
(LACAN, 1974, p. 189).
Existe uma questão importante, que
curiosamente não perguntamos nunca, que
é esta do significado deste “não é por acaso”,
que Lacan repete também em um outro texto.11 Ele não volta a uma etimologia comum.
Então o quê? Se não é por acaso, é porque há
uma razão. Qual razão? A réson, esta que ressoa, segundo as palavras de Francis Ponge,
revisitado por Lacan que vai até questionar:
“Isto que ressoa é a origem da re (res) com a
qual fazemos a realidade?” (LACAN, 2011,
p. 93). Um eco, uma ressonância primitiva,
uma unidade que seria fixada e multiplicada em várias palavras. Um eco12 teria enviado uma ressonância comum (comme une)
a várias palavras, a vários sons. Trata-se de
um processo que nos faz pensar naquele de
Jean-Pierre Brisset (que inspira Marcel Duchamp). Em A ciência de Deus ou a criação
do homem, ele escreve que “a origem de cada
língua está nesta língua mesma e define assim “a grande Lei ou chave do discurso”:
Existem no discurso inúmeras Leis, desconhecidas até agora, entre as quais a mais importante é a que um som ou uma cadeia de sons
idêntica, inteligível e clara, possa exprimir coisas diferentes, por uma modificação na manei-
11. Lacan, J. Conférence à Genève sur le symptôme
(Conferência à Genebra sobre o sintoma), Le bloc-notes de la psychanalyse, n. 5, Genève, 1985, p. 12: “Ce
n’est pas du tout au hasard que dans lalangue quelle
qu’elle soit dont quelqu’un a reçu la première empreinte, un mot est équivoque. Ce n’est certainement pas
par hasard qu’en français le mot ne se prononce d’une
façon équivoque avec le mot nœud. Ce n’est pas du
tout par hasard que le mot pas, qui en français redouble la négation contrairement à bien d’autres langues
désigne aussi un pas”.
12. Cf. Porge, E. Voix de l’écho. Toulouse: Erès, 2012.
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ra de escrever ou de compreender esses nomes
ou palavras. Todas as ideias enunciadas com
sons semelhantes têm uma mesma origem e se
relacionam todas, dentro de seu princípio, a
um mesmo objeto.
São eles os seguintes sons:
Les dents, la bouche (os dentes, a boca)
Les dents la bouchent. (os dentes a entopem)
L’aidant la bouche. (ajudando a boca)
L’aide en la bouche. (a ajuda na boca)
Laides en la bouche. (feios na boca)
Laid dans la bouche. (feio na boca)
Lait dans la bouche. (leite na boca)
L’est dam le à bouche. (é a barragem à boca)
Les dents-là bouche (os dentes la na boca)13
(Brisset, 2001, p. 702)
A mudança para a ciência-ficção aparece
quando Brisset afirma que a origem do discurso é feita apenas da criação do homem e
que “pela análise das palavras iremos então
escutar falar dos ancestrais que vivem em
nós e por quem vivemos”, estes ancestrais
sendo os sapos e as rãs que coaxam, o coá,
coá transformando-se no quoi? quoi? (o quê?
O quê?) humano.
Como nota Michel Foucault, “estamos no
oposto do processo que consiste em procurar
uma mesma raiz para várias palavras: tratase, por uma unidade atual, de ver proliferar
os estados anteriores que vieram cristalizarse nela”. “A pesquisa de sua origem, segundo
Brisset, não cinge a língua: ela a decompõe e
a multiplica por ela mesma”. É um princípio
de proliferação.
Uma palavra é o paradoxo, o milagre, o maravilhoso azar de um mesmo som que, por razões diferentes, por pessoas diferentes, vivendo
coisas diferentes, é retido ao longo de uma história. É a série improvável do dado que, sete
13. Brisset, J.-P. La science de Dieu ou la création de
l’homme (1900), dans Œuvres complètes, sous la direction de M. Décimo, Dijon, Les Presses du Réel, 2001,
p. 702. Repris dans Les origines humaines (1913), dans
Œuvres complètes, op. cit., p. 1130.
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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise
vezes seguidas, cai do mesmo lado. Pouco importa quem fala, e, quando fala, por que fala,
e utilizando qual vocabulário: os mesmos barulhos, invariavelmente, retidos (Foucault,
2001, p. 604-606).
A ex-istência (ek-sistence) dessa lalíngua
faz borda com o delírio. Este pode encontrar
seu suporte mas também uma forma de limite se nos referimos a Schreber, que quer tornar as vozes dos pássaros milagrosos como
um sentimento autêntico fazendo-os entrar
no painel da homofonia, ou ainda a Louis
Wolfson, que se serve também da lalíngua (o
entrelínguas) para tentar, e conseguir relativamente, fazer barragem às suas vozes.
Essa função de limite ou de borda da lalíngua não é sem relação com a função da letra como Lacan a faz evoluir, especialmente
no que faz mudança no litoral, entre saber
e gozo, literalmente (LACAN, 2003, p. 16).
Precisamente, na passagem citada acima, Lacan fala de “depósito” e de “petrificação” em
relação à lalíngua.
O termo “depósito” já aparecia no L’étourdit (LACAN, 2003, p. 490). Ele se relaciona
com a “precipitação” da letra, que também
aparece na La troisième: “Não há letra sem a
lalíngua [...]. Como é que a lalíngua pode se
precipitar na letra? Isto continua como questão” (LACAN, 1974, p. 194).
Talvez a resposta se encontre na Conferência de Genebra sobre o sintoma: Lacan recorre à metáfora do coador (já presente em
Kant) que peneira o escoamento da água da
lalíngua, depositando os detritos, os pedaços de significantes aos quais a linguagem
se amarra, o coador causando as precipitações de letras, de traços unários na lalíngua.
A passagem de uma língua a outra, o passe,
seria variações do coador da letra, que por
seus buracos deixa passar o Um, o S1, o traço
unário incarnado na lalíngua e que continua
indeciso entre fonema, palavra, frase ou em
todo o pensamento, este Um que o pedaço de
barbante de um nó borromeu suporta (LACAN, 1982, p. 131).
No final de seu Seminário Mais, ainda,
Lacan já avançava que:
A linguagem sem duvida é feita da lalíngua.
É uma elocubração de saber sobre a lalíngua.
Mas o inconsciente é um saber, um savoir-faire
com a lalíngua. E isto que sabemos fazer com
a lalíngua ultrapassa de muito o que podemos
nos dar conta a título de linguagem (LACAN,
1982, p. 127).
Desse ponto de vista, podemos dizer que
Louis Wolfson procede a uma tentativa de
domar a lalíngua e que ele tem sucesso ao
identificá-la a seu sintoma (Wolfson,
1970).
“Isto que sabemos fazer com a lalíngua”
pertence tanto ao analisante quanto ao analista, e mesmo mais ao analisante que ao
analista, pois é ele quem fala. O analista
pode querer se dar conta a título da linguagem, mas ele será sempre ultrapassado pela
lalíngua do analisante. E se ele mesmo fala,
ele torna-se novamente analisante. Um analisante que pode eventualmente produzir do
analista... para o analisante.
O savoir-faire é atado ao parlêtre, esse que
fala sem ser, pois seu ser só se retém à palavra. A análise permite ao analista aprender
algo de um savoir-faire do analisando, do savoir-faire com a lalíngua que ele (o analista)
escuta e age (o analisante).
O savoir-faire é possível, mas esse possível se mostra necessário; seu objeto é esquivo, ele é um fio com o qual se delimita o
objeto.
Longe de ser herdeiro da experiência, o
savoir-faire vai contra a experiência, ele é antes de qualquer coisa um saber-não-fazer e
um não saber fazer ligado à experiência. Ele
é uma suspensão do saber e do fazer, momento de sua escansão. Ele é um saber desfazer (o que é chamado de análise). Desfazer a submissão ao sentido. Ele é o que de
mais íntimo da prática toca ao mais real do
inconsciente como o impossível a dizer nos
dizeres que falam dele.
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O inapanhável objeto do savoir-faire na análise
Abstract
Over and above technical rules, know-how
derives from an ethical position. Tact and receptiveness are its constituent parts. It finds
expression in the rule of equally suspended
attention which guards against a hasty understanding of what is said, preferring surprises as signs of the unconscious. The rule
indicates also that know-how is linked to the
notion of time and its handling as well as to
the existence of lalangue.
Know-how however is not only in the realm of the analyst.
The analysand too must find how to do with
his fantasies and symptom. Finally, is know-how always to be attributed to a subjectivity,
be it that of the analyst’s or the analysand’s,
insofar as the unconscious is know-how with
lalangue?
Keywords: Know-how, Attention, Lalange.
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s ob re o au tor
Erik Porge
Psicanalista em Paris.
Foi membro da EFP (Ecole Freudienne
de Psychanalyse) até a sua dissolução.
Membro da Associação de Psicanálise Encore.
Foi responsável por um CMP
(Centro Médico Psicológico) para crianças
e adolescentes. Autor de vários livros,
traduzidos em outros países, dirige a revista Essaim.
Endereço para correspondência
1, Rue Mizon
75015 - Paris/França
Tel. (33)1 43 22 14 44
E-mail: [email protected]
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R ecebido em : 1 2 / 0 9 / 2 0 1 3
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Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica
Holograma dinâmico recursivo para uma
teoria topográfica da relação psicanalítica
Dynamic Recursive Hologram for a
Typographical Theory of Psychoanalytical Relationship
Gabriele Lenti
Tradução: Otavio A. Peixoto, B.A., M.A.
Resumo
A função narrativa do inconsciente com o intuito de unir a angústia da incerteza e do caos.
A narrativa psicanalítica como uma intertextualidade em que tanto paciente quanto analista
são coautores, emissor e receptor que mutuamente criam um texto aberto, mas não anárquico.
Texto produzido à semelhança da criação poética e a da arte moderna. O trabalho artístico e
da relação analítica assumem uma natureza holográfica em que o todo e as partes se encontram em uma relação em que cada ponto do objeto repete o todo. Cada vez que o emissor,
seja paciente, seja analista, oferece seu material de uma forma ligeiramente diferente do que o
receptor tinha em mente, se estabelece uma incerteza que desorienta e conduz que se reconsidere a mensagem.
Palavras-chave: Narrativa psicanalítica, Emissor e receptor, Obra aberta, Relação paciente/
analista
Uma narrativa complexa
Qualquer pessoa que se dedique ao desenvolvimento científico de hipóteses começa a considerar as suas próprias teorias de forma séria
apenas quando estas podem ser inseridas no
conhecimento a partir de mais de um ponto de
vista.
sigm u n d freu d
Este trabalho é uma “representação dinâmica e virtual” do campo analítico intersubjetivo. No momento presente, os conceitos
energéticos, econômicos e espaciais da psicanálise clássica abrem espaço para o “modelo virtual do holograma recursivo, o qual
requer — apenas no início — o estudo da
relação analítica a partir do vértice narratológico”. Assim sendo, o modelo virtual
direciona a psicanálise relacional para um
novo contexto epistemológico. A chave para
a leitura do meu trabalho é o modelo “pósbioniano”, e os critérios descritivos são de
natureza teórica e clínica. De acordo com
Grotstein,
[...] o inconsciente mostra uma função narrativa; ou seja, uma tendência ou inclinação à
narrativa e à pesquisa relativa à narrativa que
descreve [...] eventos vindouros e experiências
pessoais, bem como buscas por [...] histórias,
mitos e romances com o intuito de unir a angústia da incerteza e do caos (Grotstein,
2010, p. 64).
Investigada à luz dessa ótica, a mente se
revela tanto como um sistema quanto como
um evento. Trata-se de um sistema na medida em que é constituída por uma rede de elementos fortemente interconectados, os quais
são propostos como repetitivos e regulares;
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Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica
mas ela é também um evento, na medida
em que é um fenômeno acidental e singular
que evolui ao longo do tempo. Lucio Russo
(2009) nos lembra que Freud já havia reconhecido essa característica dupla da natureza
da mente. Freud afirmou que
[...] nós esquecemos com muita facilidade que
tudo em nossas vidas ocorre por acaso [...] O
acaso que, no entanto, tem o seu papel no conjunto das leis e das necessidades da natureza
e que não tem relação apenas com os nossos
desejos e nossas ilusões (FREUD, 1974, p. 276).
Uma vez dito isto, podemos afirmar que o
estudo da narrativa analítica pode ser feito a
partir de um vértice semiótico complexo; o
que nos leva a questionar-nos acerca da interpretação do sistema-texto dos dois protagonistas da análise em termos da cooperação
entre a explicitação (emissão) e a compreensão (recepção).
O modelo comunicativo do consultório
desenvolve-se a partir da primeira comunicação entre a mãe e o recém-nascido, a qual
é eficaz na medida em que a criança nasce
equipada com o “equivalente homólogo ou
emocional da sintaxe gerativo-transformacional de Chomsky. Em outras palavras, a
criança nasce como uma entidade semiótica real e é capaz de comunicar-se por intermédio de impulsos e sinais” (Grotstein,
2010, p. 300). O que se revela na análise é um
“texto-dueto” que conta; ou seja, ele torna
possível a comunicação de uma mensagem
articulada, em uma tarefa orientada de forma inequívoca à transmissão de conhecimento. Nessa conversa, a voz da narrativa
é primordialmente a voz do paciente, ainda
que ela seja construída “tanto pelo paciente
quanto pelo analista, através do jogo de reflexões mútuas de ambos, bem como de suposições e de disfarces” (Arrigoni; Barbieri, 1998, p. 5); e também porque “o ‘analista’ está armado com um corpo de teorias
que constituem o andaime para a atividade
do pensamento” (Grotstein, 2010, p. 58).
64
Neste ponto, Wilfred Bion sugere que deveríamos não apenas escutar as manifestações
do hemisfério direito apropriado ao desenvolvimento de emoções, mas também seguir
as informações do hemisfério esquerdo, que
fornece a disciplina e o rigor que são necessários à compreensão (BION, 1973).
Assim sendo, o código de interpretação é
absolutamente fundamental ao conhecimento, ainda que a sua utilização tenha que ser
inserida em um procedimento sensível à “capacidade negativa”; ou seja, à exposição à incerteza. A narrativa analítica apresenta não
somente essas afinidades com a narrativa
literária; na verdade, tanto para a criatividade artística quanto para a análise, é essencial
que se mostre alguma regressão das funções
do ego. “Na fantasia e no sonho, em estados
de intoxicação e fadiga, a regressão funcional reveste-se de uma importância singular;
em particular, ela caracteriza o processo da
inspiração” (Kris, 1967, p. 252.). Outro elemento que é comum às narrativas artística e
analítica é a recuperação da linguagem infantil que se encontra dentro de nós.
Contudo, um elemento de diferença se
relaciona ao fato de que a comunicação psicanalítica é realizada de forma “presencial”,
ao passo que a comunicação literária se desenvolve de modo “ausente”. Entretanto, é
realmente necessário extrair da cooperação
aquilo que o texto não diz com clareza, mas
deixa de maneira implícita, a fim de que as
suas lacunas sejam preenchidas. Essencialmente, é possível estudar a maneira e as condições nas quais a “intertextualidade” é realizada. Isso acontece porque o discurso analítico em ambas as direções (“analista versus
paciente” e “paciente versus analista”) utiliza
o leitor como coautor do arcabouço gerativo
do texto.
Dessa forma, por analogia com a tese narratológica contemporânea, pode-se dizer que
temos um trabalho aberto, que deve levar em
consideração as necessidades semânticas e
pragmáticas do trabalho propriamente dito.
Não há análise dos traços significativos en-
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Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica
volvidos que já não implique um significado
daquilo que é expresso. Basicamente é necessário que se insira o leitor no texto, qualquer
que seja o vértice de análise do qual se deseje
observá-lo.
O estudo do texto compartilhado na análise detecta uma operação que sempre ocorre
quando os falantes interagem: eles inserem
significados intertextuais que permitem ao
receptor tomar uma decisão interpretativa.
Isso ocorre na medida em que a fala possui
um significado virtual que nos permite vislumbrar o contexto de referência do ato comunicativo. Portanto, podemos concordar
com Umberto Eco (1979) quando ele afirma
que o texto é intercalado com aquilo que não
é dito; ou seja, com conteúdos que não são
óbvios na superfície do texto, mas que estão
presentes na compreensão e na interpretação. Isso não significa, todavia, como Peirce talvez tivesse dito, que o leitor (receptor)
esteja livre para atribuir qualquer conteúdo
ao texto expresso. Muito pelo contrário, um
nível de significado está inscrito no texto, o
qual é restrito pela estrutura do texto propriamente dito. Assim sendo, o leitor deve
atualizar o conteúdo por meio de uma série indefinida de movimentos cooperativos.
O texto precisa ser interpretado, até certo
ponto, de forma unívoca, para o benefício
dos leitores, os quais, dessa maneira, não se
sentem como se estivessem à deriva em uma
torrente de significados.
Não deveríamos nos esquecer, contudo,
de que os códigos linguísticos jamais são
os mesmos entre o receptor e o emissor, de
onde surge a necessidade de cooperação por
intermédio de um sistema de operações hipotéticas que percorram ambas as direções
da comunicação. A fim de decodificar um
texto, portanto, é essencial que se disponha
de uma habilidade “circunstancial” que estimule suposições interpretativas, bem como
implicações e jogos linguísticos que sejam
úteis à compreensão.
De acordo com Umberto Eco (1979), é
necessário que o resultado da interpretação
faça parte da bagagem cognitiva do transmissor, o qual seleciona aquilo que o leitor
necessita saber com o intuito de alcançar o
nível da compreensão. É importante que o
emissor possa fornecer um “leitor modelo”,
capaz de permitir a compreensão do texto.
Um leitor modelo é identificado porque se
espera que o receptor da mensagem (texto)
possua uma língua útil, além de habilidades
circunstanciais. O leitor modelo não estará
presente se não for ativamente planejado em
função dos conhecimentos do emissor; ou
seja, o texto deve ser capaz de construir o seu
próprio interlocutor, do contrário não haverá compreensão. Portanto, se faz necessário
na psicanálise que os dois protagonistas do
texto preliminar tenham a mesma aparência,
isto é, que eles compartilhem a mesma “enciclopédia”. Isso significa que os modelos do
mundo do paciente devem coincidir — ao
menos em parte — com os modelos analíticos teóricos utilizados pelo terapeuta.
Os mundos possíveis — tal como a lógica
modal nos lembra — são, na análise, as diversas características da cooperação, as quais
se tornam efetivas, empíricas. O texto — o
mais aberto possível a diferentes interpretações — conduz o seu leitor, contudo, a uma
análise canalizada e não inteiramente anárquica; nesse caso, o autor constrói o consumidor. Afinal, interpretar um texto significa
“reconhecer uma enciclopédia da emissão
que é mais estreita e genérica do que aquela
do destino” (Eco, 1979, p. 63).
Por conseguinte, podemos definir o texto como “um artefato de natureza sintática,
semântica e pragmática cuja interpretação
esperada faz parte do seu projeto gerativo”
(Eco, 1979, p. 63). E devemos lembrar que,
de acordo com uma abordagem construtivista de mundos possíveis até mesmo o mundo real, não é nada além de uma construção
cultural. O discurso analítico é semelhante
àquilo que ocorre no trabalho da arte moderna, no qual a pesquisa e a possibilidade
de mundos possíveis são expressas no nível
mais elevado. Por exemplo, os trabalhos de
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Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica
Berio ou de Stockhausen são muito mais
abertos do que os trabalhos clássicos. Em
outras palavras, na arte moderna a abertura
do trabalho se encontra no apogeu de suas
potencialidades, os códigos são difusos, e as
mensagens são apenas parcialmente decifráveis através do vértice do receptor. De acordo
com a teoria da informação, a arte contemporânea utiliza o “barulho” para abrir o trabalho às possibilidades de interpretação por
parte do interlocutor. Ao contrário, a ordem
tradicional perdeu completamente a sua dignidade de força duradoura para a ciência, e a
arte seguiu o mesmo exemplo, articulandose em direção à incerteza e à dúvida.
É verdade que a leitura de um trabalho a
qualquer momento já foi identificada com a
ambiguidade do texto, mas a abertura nunca
é mostrada como acontece na arte contemporânea. O texto é o portador de uma “forma” tanto para aquele que formula o significado quanto para o consumidor (receptor);
uma forma que fornece ao consumidor uma
autonomia ampla.
Consequentemente, os trabalhos não
são concluídos em um sentido hipotético
oferecido pelo emissor, mas produzem, em
vez disso, um novo significado para cada
utilização posterior. Cada consumidor coloca as suas preferências, a sua bagagem
cultural e a sua “enciclopédia” no significado. Os trabalhos preparados dessa maneira são “trabalhos inacabados”, sempre à
procura daquilo que está faltando para a
sua finalização.
De modo análogo, o analista participa
com as suas teorias clínicas de referência, a
fim de delimitar o caos da interpretação; e
não apenas modelos, mas obviamente também a “poesia” do ato criativo influencia a
reação do consumidor.
É o trabalho que sugere e se realiza a si próprio,
impregnado a cada momento com as contribuições emocionais e imaginativas do intérprete. Se é verdade que, a cada leitura de poesia,
temos um mundo pessoal que tenta ajustar-se
66
a um espírito de lealdade ao mundo do texto,
nos trabalhos poéticos — baseados deliberadamente na sugestão — o texto tem por objetivo
estimular exatamente o mundo pessoal do intérprete de modo a que este possa obter uma
resposta profunda a partir da sua interioridade
(grifo meu) (Eco, 1962, p. 41).
O significado poderia ser facilmente malcompreendido e nos levaria a crer que se
trata da expressão de uma crise alarmante,
que envolve todos os aspectos da cultura
contemporânea, mas isso não ocorre de fato.
Na verdade, a incerteza da interpretação, a
abundância de fenômenos complexos e imprevisíveis e um universo que se apresenta
como múltiplo tornam o horizonte do conhecimento ainda mais pungente.
Quando o analista profere uma interpretação, ele a formula de acordo com suas
teorias e modelos de referência; ou seja, de
acordo com sua própria reação de contratransferência, a qual também é condicionada
pelas experiências que teve até aquele momento. Contudo, permitem-se certos graus
de liberdade no tocante ao que é aceito nesse
conteúdo. O paciente, por sua vez, interpreta
a interpretação. A seguir essa interpretação
se vê afetada por diferentes vértices, o que
permite à interpretação propriamente dita
chegar à sua forma final.
Essencialmente, toda interpretação é reformulada a cada revezamento entre emissor e receptor; como foi dito anteriormente, ela volta para influenciar o emissor que
está produzindo novas informações naquele
momento. Pode-se assim dizer, à luz de uma
perspectiva complexa, que o emissor e o receptor formam um anel recursivo, de maneira que os efeitos do processo interativo
afetam as causas que os geraram. Aqui está
a natureza profunda da interação interpretativa. Ela segue um processo recursivo que
aproxima a cada troca o conhecimento ilimitado que se pode ter de um fato emotivo,
assegurando, dessa forma, uma cooperação
construtiva.
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Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica
De modo instintivo, temos tendência a
formular teorias simplificadas da realidade; mas quando o modelo pretende descrever a interação analítica, ele não pode fazer
concessões à complexidade dos fenômenos
sem criar o risco de que sua natureza seja
dissolvida. A interação analítica consiste da
interpretação e da resposta de contratransferência, que são os dois aspectos do anel
recursivo e discursivo. O discurso analítico,
portanto, expande a questão e a articula em
ambas as direções, de modo que a relação
não é linear.
Hologramas e mais...
Para ver um mundo em um grão de areia
E um céu em uma flor selvagem,
Segure o infinito na palma da mão
E a eternidade em uma hora.
william bl ake
O processo analítico e a arte têm algo a
mais em comum, que está relacionado ao
potencial do conhecimento da realidade, a
saber:
[...] a representação da arte abrangeria o todo e
refletiria o cosmos em si próprio, na medida em
que o individual vive no todo, e o todo está na
vida do indivíduo, e toda representação artística genuína é ela mesma e também o universo,
assim como o universo naquela forma individual e a forma individual como o universo. Em
cada expressão do poeta e em cada criatura da
sua imaginação estão todos os destinos humanos, todas as esperanças, todas as ilusões, dores
e alegrias, bem como a grandeza e a miséria
humanas (Eco, 1962, p. 66).
Esse é outro fenômeno que afeta a complexidade: as realidades do trabalho artístico
e da relação analítica assumem uma natureza
holográfica; assim sendo, o todo e as partes
se encontram em uma relação muito especial
de envolvimento e, como diz Pinson (1985),
cada ponto do objeto repete o todo, o campo
analítico é memorizado pelo holograma e é
incluído no detalhe.
Isso é o que Edgar Morin (1986) chama
de organização hologramática dos sistemas
não lineares, e é o que os psicanalistas clássicos como Kernberg encontram na referência
cruzada da fantasia do indivíduo que surge
novamente naquela do grupo institucional.
O que acontece em um nível local surge
novamente em termos gerais com a mesma
forma; por exemplo, uma clivagem intrapsíquica do paciente individual pode gerar uma
clivagem no campo analítico, a qual por sua
vez reagirá de maneira retroativa na divisão
do indivíduo.
O holograma revela um tipo específico de
organização, “no qual o todo está na parte
que está no todo, e no qual a parte pode ser
mais ou menos capaz de regenerar o todo”
(Morin, 1986, p. 111).
Assim sendo, a complexidade organizacional
do todo requer a complexidade organizacional
das partes; ou seja, os conteúdos analíticos individuais, tais como sintomas, sonhos e métodos relacionais, requerem a complexidade
do todo organizacional de forma recursiva.
As partes possuem a sua própria singularidade, mas elas não são meros elementos ou fragmentos de todos; elas são, isso sim e ao mesmo
tempo, um ‘microtodo’ virtual (os itálicos e a
adaptação do original são meus) (Morin,
1986, p. 112).
Nós acreditamos que essa constelação
não é meramente uma questão de forma
imaginativa, mas sugere uma metáfora espacializada da organização da vida psíquica no campo analítico. Os discursos local e
global — na condição de realidades conscientes e inconscientes — se referem uns aos
outros numa consubstancialidade em que
o momento inicial de sua influência mútua
não pode ser decidido. Na verdade, o campo
analítico é capaz de gerar novos produtos da
interação, realidades essas que não pertencem de fato a apenas um dos atores, mas re-
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 63–70 | Dezembro/2013
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Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica
presentam uma coevolução; ou seja, o terço
analítico intersubjetivo é gerado como uma
fantasia compartilhada tanto pelo paciente
quanto pelo analista (Ogden, 1997); além
disso, ele pode ser demonstrado em um devaneio, em uma fantasia, em um sonho, ou
em uma narrativa (Panizza, 2008).
O que estou dizendo exprime diretamente uma homologia; ou seja, revela a estrutura fractal do discurso analítico, no qual
a relação entre a parte e o todo é capaz de
regenerar cada configuração de significado.
É possível imaginar que um estudo mais
intensivo — compartilhado e influenciado
pela teoria da complexidade — possa nos
auxiliar a compreender melhor os fenômenos interativos do campo analítico como
um todo sem sacrificar uma parte em prol
de uma simplificação, seja reducionista, seja
holística. Podemos também pensar que a
mesma estrutura da memória individual é
organizada como uma condensação holográfica dos significados, para a qual tanto
a livre associação do analisando quanto a
atenção livremente flutuante do analista em
atividade entrariam em declínio no transcurso desse holograma.
Incertezas
Nesse caso, a modalidade da arte lida com
a estrutura profunda do conhecimento, portanto podemos criar hipóteses acerca de uma
relação específica entre complexidade e estética, que a física relativista já indicou no estudo da realidade material e energética. Assim
sendo, a estética é a dimensão profunda, a
linguagem do inefável e do real. A revolução
do significado transcende o imperativo positivista na direção de uma abertura. Por conseguinte, a decomposição cubista e a expansão dinâmica das formas futurísticas deram
à arte a possibilidade de uma descrição ou
interpretação da realidade como um “trabalho vivo”. Até mesmo no campo da escultura,
as formas plásticas de Gabo ou de Lippold
convidam o interlocutor a uma participação
ativa na estrutura do trabalho.
68
De modo semelhante, a arte informal
desconecta as relações causais, bem como os
princípios da lógica Aristotélica; ela é apresentada como uma expressão daquelas reflexões que ocorreram no campo da ciência e de
suas metodologias. Entretanto, é natural que
a arte continue sendo caracterizada como
trabalho — ou seja, que gere significado —
já que consegue expressar a aleatoriedade,
aquilo que é desprovido de forma, o incerto,
até mesmo nas manifestações mais extremas.
Portanto, uma certa direção nas escolhas interpretativas há de seguir o seu rumo. Não há
morte da forma, mas sim uma abertura para
o reino das possibilidades; e isso é o que talvez encontremos ao olhar para uma pintura
de Pollock:
[...] a desordem dos sinais, a desintegração
dos contornos e a explosão das configurações
nos convidam ao jogo pessoal das relações que
podem ser estabelecidas; mas o gesto original,
fixado na marca, nos indica direções que são
fornecidas e nos levam de volta ao autor (Eco,
1962d).
Na relação analítica, cada participante
transfere o seu “idioleto” (isto é, o seu código particular e individual através do qual
ele/a observa o mundo, especialmente aquela fatia do mundo que é a mensagem do seu
interlocutor) apenas para manter o receptor,
a fonte e a verificação de sua congruência
cognitiva. O fenômeno da desorientação que
ocorre cada vez que o autor (seja o analista, seja o analisando) oferece o seu próprio
material em uma forma que é ligeiramente
diferente daquilo que o falante tem em mente é, portanto, fundamental na análise tanto
quanto na arte. Nesse caso se introduz a incerteza que chega mais cedo ou mais tarde
— como na arte informal — a uma versão
original do material inconsciente. Wilfred
Bion (1973) falaria de uma mudança de vértice, o que representa uma maneira única de
enriquecer-se o conhecimento. Na verdade,
a desorientação liberta a linguagem e recon-
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Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica
sidera a mensagem “que nos leva a olhar de
modo diferente para a coisa representada,
mas ao mesmo tempo — como é natural —
até mesmo para o meio de representação e
o código aos quais nos referíamos”, porque
“a arte aumenta a dificuldade e a duração da
percepção, uma vez que ela descreve o objeto
como se o mesmo estivesse sendo visto pela
primeira vez” (Eco, 1968a).
Na psicanálise assim como na arte, já é
hora de implementar uma revolução na forma “e em tal violação imprevisível; se essa
violação se tornar um cânone, ela perderá
sua força como método cognitivo” (Eco,
1968b). Desse modo, se faz necessário reconhecer que, se o analista e o analisando
trabalharem, eles aparecerão na conjuntura
clínica como portadores da
[...] ideologia do outro; isto é, do universo de
conhecimento do receptor e do grupo ao qual
ele/a pertence, bem como de seus sistemas de
expectativas psicológicas, suas atitudes mentais, suas experiências e seus princípios morais
(Eco, 1968c) [ênfase do texto original].
Obviamente, não devemos confundir
ideologia com significado. A ideologia não é
nada além do precipitado de códigos e sinais
que povoam o texto que têm por objetivo explorar aquilo que pode ser conhecido. Portanto, a ideologia — ou modelo analítico —
contribui para a construção de informações
que possam influenciar de modo recursivo
esses próprios códigos e a ideologia.
Assim sendo, o intérprete em atividade
precisa encontrar o universo retórico e ideológico do receptor, a fim de não permitir que
suas próprias intenções sejam perdidas de
maneira permanente.
A leitura do trabalho ocorre em uma oscilação
contínua, através da qual começamos pelo trabalho onde pretendemos descobrir o código original que é sugerido; a seguir, tentamos fazer
uma leitura fidedigna do trabalho, e a partir
daí voltamos uma vez mais aos códigos e voca-
bulários [...] a fim de experimentá-los na mensagem (Eco, 1968d) (grifo do texto original).
Com a constante confrontação entre codificações em oscilação, determina-se um
campo de possibilidades de significado que
aumenta a cada intercâmbio comunicativo
entre o paciente e o analista. Isso gera um
dispositivo que expressa os significados de
maneira contínua, ativando-os em função de
uma lógica que é criativa e decodificadora e
que está, ao mesmo tempo, firmemente ancorada no sentido do texto. Essa comparação
nos faz lembrar mais uma vez da arte informal e da música atonal, para a qual parece
não existir um código compartilhado.
Por conseguinte, assim como nos óculos
de Arman, nas garrafas de Rauschenberg ou
numa bandeira de Johns, tanto na arte de
vanguarda quanto no consultório, os significados transmitidos são muito mais precisos
e circunscritos do que aqueles considerados
plausíveis.
Abstract
How the narrative function of the unconscious, whose purpose is to bond anxiety of uncertainness and of chaos, works. The psychoanalytical narrative as an intertextuality that
both patient and analyst act as coauthors,
as sender and receiver both creating an open
text, but an anarchical one. A text production
that’s similar to poetical creation and modern
art. Artwork and analytical relationship acquire a holographic nature as the whole and
its parts exist in a relationship where each part
of an object reflects its whole. Each time that
the sender, patient or analyst, offers its stuff in
a slightly different way from that the receiver
had in mind, comes a uncertainty which bewilders and leads that the message be reconsidered.
Keywords: Psychoanalytic narrative, Sender and receiver, Open work of art, Patient/
analyst relationship.
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Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica
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1974.
S obr e O autor
Gabriele Lenti
Psicologo. Laureato in Psicologia presso l’Università
degli Studi di Padova. Specialista in Psicologia
Clinica presso la Facoltà di Medicina
e Chirurgia dell’Università di Genova.
Psicoanalista SIPRe - Società Italiana Psicoanalisi
della Relazione - Centro di Genova, parte dell’IFPS
(International Federation of Psychoanalytic
Societies).
Endereço para correspondência
Via XX Settembre n 21/7
Genova, Liguria, Itália
Via Chiaramone n 12/1
Genova-Voltri, Liguria, Italia.
E-mail: [email protected]
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R ecebido em : 1 0 / 0 9 / 2 0 1 3
A provado em : 1 1 / 1 1 / 2 0 1 3
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O setting analítico na clínica cotidiana
O setting analítico na clínica cotidiana
Analytical setting in everyday clinic
Glória Barros
Resumo
Refletimos sobre o setting analítico e o manejo clínico de nossa prática cotidiana, à luz
da teoria psicanalítica. Inicialmente nos referimos à visão freudiana e posteriormente
nos detemos em Ferenczi e Winnicott, dois clássicos nas teorizações sobre o setting/manejo de pacientes com maior comprometimento psíquico ou mesmo resistentes ao processo terapêutico, para facilitar mudanças psíquicas no processo psicanalítico. Alguns
fragmentos de uma análise, de nossa clínica ilustram uma experiência bem-sucedida e
reforçam nosso convencimento de que o movimento do analista é fundamental para o
estabelecimento da comunicação no setting terapêutico. Sua adaptação às necessidades
do paciente constitui fator primordial para o manejo clínico, sendo o manuseio do setting o principal recurso no tratamento de pacientes muito regredidos. O recebimento
inicial mais caloroso, a flexibilização da duração das sessões para ouvi-la e acolhê-la,
e a disponibilidade para atender algumas necessidades manifestadas pela paciente se
mostraram de suma importância. Acredito que a criação de um setting adaptado às
necessidades de Marina durante uma etapa do seu processo analítico, propiciou seu
fortalecimento e seu crescimento.
Palavras-chave: Setting analítico, Psicanálise, Manejo clínico.
Introdução
O setting analítico tem a ver com os dois integrantes do processo analítico: analista e paciente. A sensibilidade do analista é fundamental, e isso tem que levar em consideração
tanto as características do paciente quanto as
do analista, que se derivam de seu próprio
percurso.
Temos nos deparado no exercício da clínica psicanalítica com as múltiplas faces
do sofrimento humano. Situações inusitadas nos colocam frente a desafios que muitas vezes põem em xeque o arsenal teórico
que nos embasa. Diante desse panorama
nos sentimos instigados a fazer uma reflexão teórico-clínica sobre o setting analítico
e seu manejo clínico. No presente estudo
tentaremos tecer considerações sobre algumas situações clínicas especiais que exigiram
mudanças no setting terapêutico. Essas con-
siderações serviram de base ao trabalho que
apresentamos no V Congresso Internacional
de Psicopatologia Fundamental (BARROS,
2012) e posteriormente retrabalhado, no
Círculo Psicanalítico de Pernambuco, por
ocasião de nossa passagem para analista, em
março de 2013. Com várias modificações e
correções, apresentamos agora o texto aos
leitores.
Sobre a técnica psicanalítica:
o setting e o manejo
No campo psicanalítico, o setting é um espaço que se oferece para propiciar a estruturação simbólica dos processos subjetivos
inconscientes, reunindo as condições técnicas básicas para a intervenção psicanalítica.
Nesse campo são englobados todos os elementos organizadores do setting: o espaço
físico de atuação, o contrato estabelecido
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O setting analítico na clínica cotidiana
para seu desenvolvimento, assim como os
princípios da própria relação, transferencial
e contratransferencial, estabelecida entre
analisando e analista.
No seu texto Recordar, repetir e elaborar
(1914) Freud faz um histórico do desenvolvimento da técnica psicanalítica, sublinhando “as alterações de grandes consequências
que a técnica psicanalítica sofreu desde os
primórdios” (FREUD, 1969, p. 193). Ele
concebia o setting analítico, como um lugar
específico para que a relação terapêutica se
desenvolvesse; é composto por um conjunto
de elementos que podem ser compreendidos
como variáveis independentes, que devem
permanecer sob controle, para assegurar o
êxito do tratamento: o analista; o paciente; o
cerimonial; o tempo; o dinheiro; a regra fundamental; a atenção flutuante.
Nos textos Recomendações aos médicos
que exercem a psicanálise (1912) e Sobre o
início do tratamento (1913), Freud ressalta
que o que garante efetivamente a situação
analítica é não tanto os dispositivos proporcionados pelo setting, mas a posição simbólica assumida pelo analista no percurso de
uma análise. Para ele o conjunto de derivações dessa posição interna do analista é que
dá consistência ao tratamento.
No V Congresso Psicanalítico Internacional (1918) Freud recomenda uma mudança
de atitude do analista nos casos em que a análise da transferência não se apresenta como
recurso suficiente para vencer as resistências
e desentravar o processo, e ao analista cabe
adotar uma postura mais ativa. Ele transfere a incumbência de prolongar a duração do
tratamento e de encontrar técnicas capazes
de atestar o sucesso do método analítico para
seus discípulos. E foi Ferenczi quem mais se
destacou nessa tarefa.
A percepção da dificuldade apresentada pelos pacientes bastante regredidos que
frequentavam a clínica de Ferenczi o levou
à formulação de que a técnica e o enquadre
utilizados eram responsáveis pela produção
de “resistências objetivas” à experiência ana72
lítica (FERENCZI, 1921a e 1921b). Ele estabelece a técnica ativa como medida a ser utilizada com pacientes resistentes ao método
interpretativo.
O percurso clínico de Ferenczi é todo
pautado no desafio de acolher o sofrimento
dos pacientes chamados “difíceis” (1926). Ele
conclui que as dificuldades enfrentadas nesses processos eram decorrentes da “insensibilidade” dos analistas, que não queriam
se deixar afetar pelo encontro analítico, se
pronunciando por introduzir a faculdade de
“sentir com”, pelo projeto de “soltar a língua”
(1927).
Para o autor seria preciso tornar a técnica mais elástica, de maneira a favorecer
a expressão afetiva. O privilégio dado à
expressão de afetos na análise provocou,
assim, uma ampliação cada vez maior dos
limites do permitido na clínica, chegandose à formulação de um princípio de relaxamento como contraponto ao de abstinência
(1927).
Ferenczi introduz seu projeto de “soltar
as línguas” nas análises, implicando e convocando o analista à adoção de um estilo clínico diferenciado, resgatando a criatividade
do analisando, exercitando a sua capacidade
de brincar, fantasiar e imaginar. Ele aborda
o conceito de contratransferência como algo
que não dificultaria a análise, mas que faz
parte da própria técnica a ser empregada. O
manejo técnico deve dosar bem a empatia
e a capacidade de “sentir com”, e o processo
é conduzido melhor a partir da análise pessoal do analista, que o capacitará para avaliar a situação analítica a distância. Esse é o
entendimento que Ferenczi tem do analista
elástico.
Seguindo a mesma linha de pensamento
de Ferenczi, Winnicott sentiu que era vital
reexaminar sua técnica, pois suas observações clínicas apontavam para a necessidade
de uma adaptação do setting para promover
uma evolução favorável do paciente e ajudá-lo no fortalecimento e na evolução de sua
personalidade.
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O setting analítico na clínica cotidiana
O trabalho psicanalítico winnicottiano
busca promover o desenvolvimento de aspectos da vida psíquica que não puderam
evoluir em função de falhas no processo inicial, além de valorizar o meio ambiente na
estruturação do self. A adaptação no setting,
na sua visão, auxiliaria os pacientes na busca e no encontro de suas necessidades, favorecendo o estabelecimento de um campo
transferencial propiciador de mudanças.
O manuseio do setting é para Winnicott
(1993) o principal recurso no tratamento de
pacientes muito regredidos. Nas suas teorizações ele “apresenta o manejo como um
elemento importante, facilitador de mudanças psíquicas no paciente”. Um setting diferenciado é utilizado quando estamos diante
de alguns quadros clínicos que apresentam
maior fragilidade psíquica ou quando existem necessidades especiais do ambiente exigindo cuidados mais específicos.
Winnicott nos alerta para não trabalharmos de forma rígida utilizando uma aplicação cega a uma técnica, pois o paciente que
procura análise precisa ser acolhido na sua
dor e, isso ocorre à medida que ele se sente
compreendido no seu sofrimento. Nem todos os pacientes que chegam à clínica buscando ajuda podem ser submetidos a uma
análise. O método que iremos utilizar nesse
processo dependerá das condições psíquicas
e clínicas em que ele se encontra.
A clínica winnicottiana está baseada
numa teoria dos distúrbios psíquicos que
tem como fundamento a teoria do processo
de amadurecimento pessoal do indivíduo.
Winnicott pontua:
Precisamos chegar a uma teoria do amadurecimento normal para podermos ser capazes de
compreender as doenças e as várias imaturidades, uma vez que não nos damos por satisfeitos
a menos que possamos preveni-las e curá-las
(WINNICOTT, 1983, p. 65).
Winnicott (1983) enfatiza a importância
do diagnóstico focando o grau de maturida-
de em que o paciente se encontra para guiar
a ação terapêutica. Para ele é fundamental
basear seu trabalho terapêutico de acordo
com o diagnóstico, permanecendo na elaboração de um diagnóstico, individual e social,
ao longo de todo o processo de tratamento,
pois, assim procedendo, poderemos fazer
uma adaptação no setting se a situação emocional do paciente naquele momento assim
requerer.
Nesse sentido ele afirma:
[...] faço psicanálise quando o diagnóstico é
de que este indivíduo, em seu ambiente, quer
psicanálise [tradicional]. Posso até tentar estabelecer uma cooperação inconsciente, ainda
quando o desejo consciente pela psicanálise
está ausente. Mas, em geral, a psicanálise [cujo
método por excelência é a interpretação do
conflito reprimido inconsciente] é para aqueles
que a querem, necessitam e podem tolerá-la.
(WINNICOTT, 1983, p. 154).
Na visão winnicottiana, para que ocorra
o acolhimento de forma irrestrita, não podemos nos colocar de forma a manter a análise
protegida por um setting rigoroso, pois, dessa forma, correremos no risco de reforçar as
nossas defesas como analista e as defesas do
paciente, impossibilitando o acolhimento radical da loucura. Assim, perderemos de vista
elementos fundamentais que mostrarão todo
o arsenal do sofrimento e da psicopatologia
manifestada pelo paciente.
O analista, na visão de Winnicott, deve
se abster do autoritarismo e da doutrinação,
permitindo uma fruição mesmo desorganizada ao longo das sessões. É fundamental
que o analista vivencie um estado de relaxamento e espontaneidade, acolhendo de
forma ativamente passiva e ativamente expectante os conteúdos emergentes, a fim de
estabelecer uma base de confiança para que
o processo caminhe.
O manuseio do setting é para Winnicott
(1993) o principal recurso no tratamento de
pacientes muito regredidos. Nas suas teori-
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O setting analítico na clínica cotidiana
zações ele “apresenta o manejo como um elemento importante, facilitador de mudanças
psíquicas no paciente”.
Da teoria psicanalítica
à pratica clínica
Nesse contexto, quero apresentar Marina,
paciente que bem se adéqua às nossas reflexões do tema que escolhemos para discutir
neste momento. Minha supervisora havia
me indicado para que Marina continuasse
seu processo terapêutico comigo e, apesar
de saber que iria encurtar duas horas para
chegar ao local de seu tratamento, ela não
se sentia tranquila para fazer essa passagem.
Coincidentemente eu a encontrei na saída de
sua sessão, e esse encontro foi decisivo para
que ela me procurasse depois do parto, já
que estava no final de sua terceira e última
gestação.
Ao chegar para a primeira sessão, Marina
diz “O seu olhar, sorriso e o aperto de mão
no nosso primeiro contato abriram caminho
para que eu decidisse vir até aqui”. Após quatro meses do parto, ela me procura. Vinha
sempre acompanhada de seu bebê e do marido.
Traremos alguns fragmentos da análise de
Marina, que durou cerca de doze anos e, até
hoje, através dos contatos telefônicos mantidos nos seus momentos de alegria e aflição,
constatamos a importância do acolhimento
sustentado ao longo de todo o seu processo
para a manutenção de um campo de confiança e um vínculo transferencial. Marina,
32 anos, odontóloga, era casada, tinha três
filhas, mas não exercia a profissão naquele
momento.
Quando iniciou sua análise comigo, ainda
era grande a sua fragilidade. Depois de alguns anos, conseguiu falar sobre o abuso sexual que havia sofrido na infância e, a partir
daí, esse tema ia e vinha ao longo de muitos
anos de seu processo psicoterapêutico, sendo trabalhado intensamente. Depois de um
tempo de calmaria, esse tema voltava a bailar
novamente com toda a força.
74
Tempo, paciência e tolerância eram vitais
nesse processo, tanto para ela quanto para
mim. Marina caminhava muito lentamente
nas suas elaborações. Nós não poderíamos
ter pressa. Juntas, passamos a viver em muitos momentos uma experiência de mutualidade.
Winnicott (1993) afirma que o paciente
busca no terapeuta as funções de que necessita. Se o terapeuta compreende a situação,
temos um momento mutativo. E nos fala ainda em formas especiais de conduzir o setting
como uma metáfora dos cuidados maternos.
Observa-se que ele privilegia o modelo de
cuidado materno, transportando-o para o
setting, incluindo o analista como parte do
setting, que é visto como o lugar que proporciona o desenvolvimento. Nas situações
vividas neste caso, a analista privilegiou esse
modelo de cuidado a partir da compreensão
do processo de Marina.
Marina havia iniciado sua primeira análise por causa de um quadro depressivo grave.
Com esse acompanhamento, pôde elaborar
e enfrentar o seu medo de engravidar, relacionando seu quadro ao abuso sexual sofrido
aos 5 anos, pelo marido de uma tia. Ela fazia
referência ao fato como “o estrago que esse
fato provocara na sua vida”.
A mãe dizia para Marina esquecer o
ocorrido e, em determinada ocasião, ela foi
obrigada a fazer um tratamento dentário no
tio, como forma de agradecimento e pagamento, pois ele havia transportado no seu
caminhão os móveis de consultório dela.
Marina se sentia desamparada e incompreendida pela família, não acreditava que
sua depressão tivesse relação com o abuso
sofrido, afirmavam que aquilo tudo era “coisa do diabo”. Eles eram evangélicos e diziam
para ela rezar, ter mais fé e que se ela fosse
à igreja não precisaria fazer terapia nem tomar remédios.
Diante de tal situação, como enquadrar
o caso que eu tinha na minha frente me desafiando e me fazendo ver que algumas mudanças no manejo deveriam ser adotadas?
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O setting analítico na clínica cotidiana
A teoria do setting de Winnicott (1993)
estuda a estruturação, a significação, a função e seu manejo pelo analista, inclusive a
possibilidade de sua ruptura parcial ou de
transgressão. Ele também estuda o problema
das falhas do analista e a possibilidade de seu
uso por parte do paciente. A experiência clínica levou Winnicott a reexaminar sua técnica no tratamento de pacientes muito regredidos. Ele pontua:
As necessidades do paciente só podem ser definidas a partir de um diagnóstico psicodinâmico considerando três grupos de pacientes. No
primeiro grupo temos pacientes que operam
como pessoas totais e cujas dificuldades estão
nas relações interpessoais. Estes pacientes podem ser submetidos à análise clássica. Num segundo grupo temos os pacientes depressivos no
qual a totalidade da personalidade está apenas
se esboçando. Em relação ao manejo, devido à
função do amor e ódio, a ideia da sobrevivência do analista aos ataques do paciente é um
fator importante. Num terceiro grupo estão
os pacientes cuja estrutura pessoal ainda não
está fundada de forma segura, e o tratamento
deve lidar com os estágios mais primitivos do
desenvolvimento emocional. A ênfase está no
manejo, funcionando como holding e estes pacientes necessitam de um setting mais regressivo (WINNICOTT, 1993, p. 460).
A cada sessão ia reforçando o diagnóstico
de que Marina se encontrava no terceiro grupo, funcionando de forma primitiva e precisava de um setting mais acolhedor. Dentro da
visão winnicottiana, o setting analítico deve
comportar os aspectos relacionados à mãe-ambiente, em que o analista oferece constância, previsibilidade e confiabilidade, tanto
pelo ambiente físico quanto pela qualidade
do cuidado pessoal, procurando se ajustar às
expectativas do paciente, para possibilitar o
estabelecimento de comunicações mais profundas.
A adaptação do terapeuta às necessidades
do paciente será fator primordial para o ma-
nejo da clínica winnicottiana. No processo
deve ser oferecido um lugar, um momento
e uma abertura para que possa vir à tona a
problemática do paciente, que emergirá na
dependência de muitos elementos, em especial, do movimento do analista para o estabelecimento da comunicação no setting terapêutico.
Desde o início, percebíamos a fragilidade
e o desamparo de Marina e que seu tratamento, além de requerer muito cuidado no
manejo, necessitava de muita disponibilidade nossa na condução do processo.
Suas sessões não poderiam ter o tempo
normal (cinquenta minutos), e assim, suas
sessões duravam em média de uma hora e
meia a duas horas. Desde as primeiras sessões, a paciente trazia uma enxurrada de
sintomas com suas longas histórias e, se não
fosse possível trabalhar grande parte das
questões levantadas, a angústia era tão intensa que requeria depois muitos contatos telefônicos até ela conseguir se acalmar.
As sessões tinham, desde o início, um ritual. Ela sempre trazia um caderno com seus
escritos da semana. Falava sem parar, levantava inicialmente as dificuldades, depois seus
ganhos, seus sonhos e, assim, se sentia mais
calma no final da sessão. Se não fosse assim,
ela saía péssima, não suportando ficar naquele estado por toda a semana, o que muito
lhe pesava e torturava.
Observava que seu nível de tolerância era
baixíssimo e sua mobilidade psíquica muito
pequena. Qualquer tensão não era suportada
por ela, e sua tendência era descarregar no
corpo somatizando. Ela vivia em muitos momentos a possibilidade de entrar em colapso.
Acredito que a criação de um setting
adaptado às necessidades de Marina durante uma etapa do seu processo analítico,
propiciou fortalecimento e crescimento.
Numa sessão, ao chegar com dor de cabeça
por fome, Marina solicitou algo para comer.
Percebi que a fome de Marina era de outra
ordem, mas o seu desconforto físico não permitia que ela conseguisse usufruir da sessão.
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O setting analítico na clínica cotidiana
Por essa razão, lhe ofereci o alimento. A partir desse momento ela começou a restaurar
de forma visível uma subjetividade tão fragmentada, que se fazia presente no corpo.
Essa experiência não só mudou a visão
que a paciente tinha do mundo, das relações
objetais, e de si mesma, mas também reintegrou no seu psiquismo aspectos que até
então se encontravam dissociados. A partir
daí ela aprendeu também a se cuidar e a se
alimentar com mais carinho e cuidado quando se encontrava mais fragilizada. O alimento oferecido resgatava, assim, cuidados bem
primitivos que lhe faltaram na vida.
O analista se encontra no papel de objeto subjetivo, e este é necessário para que
a transferência e contratransferência aconteçam. O vínculo precisa ser estabelecido
para gerar confiabilidade nessa relação e,
dessa forma, o paciente se sentirá “cuidado” como fora (ou não) por sua mãe (ou
outro cuidador) ao longo de sua vida. A
transferência é uma ferramenta que favorece o paciente na construção de uma experiência completa para encontrar o seu eu
individualizado. Marina apresentava um quadro clínico
que tinha uma variedade de sintomas somáticos e/ou psíquicos, em várias ocasiões com
forte intensidade, bem como a necessidade
de uma elaboração para uma transcrição dos
seus sintomas e uma ressignificação no seu
modo de ver a vida. O corpo continuamente se manifestava, para seu desespero. Ora
queimava, ora explodia de angústia, ora ficava num vazio ou outras vezes sufocava, e em
muitas ocasiões era despertado “um desejo
enorme de arrancar a dor das entranhas”, relatava ela.
Em relação a essa questão, Winnicott,
analisando ainda a relação psique-soma, diz
que:
O colapso das defesas leva ao surgimento da
ansiedade manifesta em diversos comportamentos. A doença psicossomática se manifesta
em decorrência de uma fragilidade ou mesmo
76
de um rompimento da relação psique-soma
sendo caracterizada por múltiplos splittings,
múltiplas rupturas, encerrando, contudo, na
sintomatologia, uma insistência na integração da psique com o soma, sendo isso mantido como defesa contra a ameaça da perda da
união psicossomática ou contra alguma forma
de despersonalização (WINNICOTT, 1993, p.
424).
Constantemente Marina apresentava sintomas manifestando dores por todo o corpo.
Eram verdadeiros espasmos que denunciavam o contínuo estado de tensão em que
se encontrava. Junto com as dores surgiam
ímpetos de destruir, arrancar a parte afetada,
como se pudesse lhe trazer algum alívio.
Cada emoção vivida tinha uma expressão no seu corpo. O medo, a insegurança, a
excitação, o ódio se localizavam com excessiva facilidade em um órgão do corpo que
entrava em espasmos. Não suportava muita
tensão. O medo do amanhã vivia sempre a
rondá-la, percebia que não tinha um lugar
para abrigá-la, se sentia desalojada. A cabeça
a esquentar, o peito a explodir os excessos,
as pernas a fraquejar e os pés a querer caminhar, procurando uma saída.
A baixa capacidade de simbolização da
paciente associada à paralisia estagnadora e
ao excesso de excitações — decorrentes tanto
das vivências traumáticas quanto das fantasias da paciente — exigiam continuamente
uma sucessão de tradução do seu sentir. Sem
essa tradução, era impossível dar um passo
para sair da paralisia e do impasse, conseguindo posteriormente fazer novas transcrições no seu modo de viver.
Ao longo do processo desse acompanhamento vivemos momentos mutativos, vitais
para que o processo caminhasse mesmo a
pequenos passos: durante um bom tempo
não era possível para ela se defrontar com
todas as suas experiências emocionais, sob o
risco de ser aniquilada. As emoções surgiam
em muitos momentos, de forma avassaladora, tomando-a por completo. O medo da
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O setting analítico na clínica cotidiana
loucura e o medo de ser aniquilada sempre
pairavam no ar.
O setting, cultivando uma qualidade
de holding, para um cuidar das feridas de
Marina e um aconchego para seu fortalecimento possibilitaram à paciente a construção de vínculos novos com o mundo, com as
pessoas, com o trabalho, vitais para seu crescimento e sua transformação.
Conclusão
São muitos os aspectos importantes que puderam ser trabalhados com Marina no seu
processo psicoterapêutico. Foi necessário
que a analista exercesse a função de espelho olhando para Marina e refletindo para
ela uma imagem com mais nitidez e amorosidade, ajudando-a a olhar o mundo com
um novo olhar e cores mais vivas. Somente
quando a criança olha o espelho-rosto da
mãe e se descobre a si própria nesse espelho, ela poderá se permitir ver o novo e olhar
criativamente o seu mundo.
Inicialmente acreditávamos que Marina
apresentava um quadro depressivo. Posteriormente constatamos que seu quadro era
bem mais complexo e que ela apresentava
uma estrutura borderline requerendo cuidados mais refinados e um manuseio do setting
se adequando às necessidades mais prementes dela. O olhar para a estrutura psíquica da
paciente segundo as ideias winnicottianas favoreceu a instalação de uma relação transferencial propiciando uma boa evolução clínica com seu crescimento e desenvolvimento
emocional.
À medida que o processo analítico evoluía com suas elaborações, o ego de Marina
se fortalecia e, como resultado, passamos a
observar uma mudança clínica. Houve uma
modificação nas suas defesas, que passaram
a funcionar de forma menos primitiva; a paciente não ficou se sentindo mais aprisionada e paralisada nos seus sintomas. O processo analítico forneceu à paciente elementos
que não foram vividos anteriormente: uma
maternagem suficientemente boa, um hol-
ding propiciador do descongelamento das
situações traumáticas iniciais, saindo assim
da paralisia vivida até então. O manejo no
setting possibilitou o resgate da confiança,
passando a dispor de mais recursos internos
para o enfrentamento do mundo.
Marina se sentia sufocada pelas contingências da vida; era difícil dar conta das exigências tanto internas quanto externas, aumentando ainda mais os seus conflitos. Ela
pôde construir na sua análise um caminho
num terreno mais confiável. O vínculo estabelecido abriu espaço para novas relações no
seu cotidiano. O setting analítico teve a função de transformação das suas dores, onde ela
despejava as angústias de seu corpo travado
e dilacerado. Ela foi, aos poucos, no seu processo, construindo novas imagens, refinando
seus valores. A sua mente precisou formular
novos caminhos e formas para fazer frente às
adversidades que a vida lhe impõe.
Na situação analítica vivida, o setting foi
facilitador de mudanças, e o processo analítico pôde ajudar a paciente a funcionar de forma integrada, permitindo que ela entendesse
a sua organização e funcionamento somático e psíquico. Ocorreram muitas mudanças
após um longo tempo de análise, relativas
à sua sexualidade e à forma de enfrentar a
profissão. Era tempo de calmaria, há quatro
anos não retornava ao tema do abuso sexual. Todo o ódio vivido e elaborado no seu
processo analítico foi apaziguado, deixando
marcas profundas.
Entendemos que a transferência estabelecida no setting analítico está intimamente
vinculada à qualidade da experiência afetiva
estabelecida no curso da análise apontando
para a qualidade do encontro afetivo.
A reflexão sobre a função do setting e do
enquadre se mostram, assim, adequada e importante para que se avance pensando sobre
esse importante dispositivo de tratamento no
curso de uma análise. Concluímos, na prática, que precisamos estar atentos, em algumas
situações clínicas, para a necessidade de promover mudanças no manuseio do setting a
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 71–78 | Dezembro/2013
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O setting analítico na clínica cotidiana
fim de obtermos uma resposta clínica mais
favorável para uma boa evolução do processo psicanalítico.
FERENCZI, S. Elasticidade da técnica psicanalítica
(1927). São Paulo: Escuta, 1987.
Abstract
We pondered about the analytical setting and
the clinical handling of our everyday practice under the light of the psychoanalytical
theory. We first referred to the Freudian vision
and, later on, we approached Ferenczi and
Winnicott, two classic authors in the theorizing of setting/handling of patients with larger psychic endangerment or even resistant
against the therapeutic process, so as to facilitate psychic changes in the psychoanalytical
process. Some fragments of an analysis in our
clinic show a well-succeeded experience and
reinforce our certainty that the analyst’s move
is fundamental to establish communication
in the therapeutic setting. His adaptation to
the patient’s needs constitutes the primordial
factor for the clinical handling, with the setting handling being the main resource in the
treatment of much-regressed patients. The
warmest initial reception, the flexibility of the
sessions duration to listen to her, to welcome
her and the availability to assist on some of
the patient’s manifested needs showed to be of
great importance. I believe that the creation
of a setting adapted to Marina’s needs during
a stage in her analytical process provided her
with strengthening and growth.
FERENCZI, S. Prolongamentos da técnica ativa em
Psicanálise (1921b). São Paulo: Escuta, 1987.
Keywords: Analytical setting, Psychoanalysis,
Clinical handling.
S ob r e a au tor a
Referências
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Especiais. Disponível em: <www.fundamentalpsychopathology.org/uploads/files/v_congresso/mr_58_-_
gloria_barros.pdf>. Acesso em: 21 mar. 2013.
FERENCZI, S. Contraindicações da técnica ativa
(1926). São Paulo: Escuta, 1987.
78
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Paulo: Escuta, 1987.
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a psicanálise (1912). In: Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de
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FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (1914). In:
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FREUD, S. Sobre o início do tratamento (1913). In:
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução
de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XII.
WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de
paturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento
emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
WINNICOTT, D. W. Textos selecionados da pediatria
à psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,
1993.
WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa. São Paulo:
Martins Fontes, 1995.
R ecebido em : 1 1 / 0 9 / 2 0 1 3
A provado em : 2 9 / 1 0 / 2 0 1 3
Glória Barros
Psiquiatra. Psicanalista. Especializações
em psiquiatria, psicologia clínica/psicanálise,
medicina psicossomática, homeopatia
e psicoterapia somática/biossíntese.
Membro do Círculo Psicanalítico de Pernambuco
e do Espaço Psicanalítico da Paraíba (EPSI-PB).
Endereço para correspondência
EPSI - Espaço Psicanalítico
Rua Nevinha Cavalcanti, 46 - Miramar
58043-000 - João Pessoa/PB
E-mail: [email protected]
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 71–78 | Dezembro/2013
A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos
A criança, o artista e o analisando:
a psicanálise e a invenção de mundos
The child, the artist and the analyzed: psychoanalysis and worlds creation
Luciana Knijnik
Vou meio dementado e
enxada às costas a cavar no meu quintal
vestígios dos meninos que fomos.
m a n oel de ba rro s
Resumo
Nas linhas redigidas a seguir, o leitor encontrará um exercício reflexivo sobre alguns aspectos
da construção do arcabouço psicanalítico. O arranjo conceitual e prático é apresentado tanto
como decorrência de seu tempo, quanto como produtor de efeitos nos modos de ser, agir e
pensar dos homens e seus mundos. As figuras da criança, do artista e do analisando são tomadas como personagens que emprestam seu corpo à personificação de conceitos e práticas
caras à psicanálise.
Palavras-chave: Psicanálise, Criança, Devir.
Os que estudam psicanálise hoje precisam
viajar no tempo para imaginar um período
em que o mundo era visto como ordenado,
previsível e passível de controle, pois foi precisamente esse o caldo cultural de Sigmund
Freud. Seguramente o engendramento da
psicanálise promoveu muitas rupturas com
os ideais de seu tempo, mas ninguém está
alheio às demandas de seu momento histórico (Figueiredo, 2001). A localização
de Freud na modernidade, ápice da racionalidade científica, nos ajuda a compreender
muitos dos diálogos por ele empreendidos.
Em A questão da análise leiga, ele põe a própria obra em análise:
Nem, naturalmente, posso garantir-lhe que
a forma como é expressa hoje continue a ser
definitiva. A ciência, como se sabe, não é uma
revelação; muito depois dos seus primórdios
ainda lhe faltam os atributos de determina-
ção, imutabilidade e infalibilidade pelos quais
o pensamento humano profundamente anseia.
Mas tal como ela é, é tudo que podemos ter
(FREUD, 1997, p. 218).
Estamos de acordo: os saberes não são um
dado natural, verdade universal, mas uma
produção histórica. Assim, olhar a própria
psicanálise sob essa perspectiva permite que
vislumbremos os compromissos que precisamos manter e as nuances que atualmente
podem ser abandonadas.
Se na época de Freud as mencionadas
tempestades enfrentadas pela psicanálise
envolviam a luta para garantir legitimidade
e espaço, hoje outros céus relampejam. Muitas leituras reduzem a psicanálise ora a passagens historicamente determinadas, ora a
preocupação com o universalismo dos conceitos.
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 79–84 | Dezembro/2013
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A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos
Adotar uma visão reducionista da teoria
psicanalítica é a opção de muitos que buscam a confirmação de ideias previamente
concebidas ou mesmo o prazer das críticas
vazias. Outra possibilidade é potencializar
os conceitos que no contemporâneo operam,
acessando as diversas formas de sofrimento
e abrindo caminhos para a transformação de
cada um e da sociedade em que vivemos. Ou
seja, é colocar as mãos a obrar.
Para tal empreitada não precisamos ir
longe. O próprio Freud em muitas passagens
fornece importantes indicativos dos compromissos fundamentais de sua teoria. Nos Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade, uma
nota de rodapé acrescentada posteriormente, em 1915, merece destaque. Discorrendo
sobre os conceitos de masculino e feminino,
ele diz:
A masculinidade ou a feminilidade puras não
são encontradas nem no sentido psicológico
nem no biológico. Cada pessoa exibe, ao contrário, uma mescla de seus caracteres sexuais
biológicos com os traços biológicos do sexo
oposto, e ainda uma conjugação de atividade e passividade, tanto no caso de esses traços
psíquicos de caráter dependerem dos biológicos, quanto no caso de independerem deles
(FREUD, 1996, p. 97).
Nesse trecho podemos ver um Freud
avesso a determinismos biológicos associando masculinidade e feminilidade não aos órgãos e suas funções, mas a posições ativas e
passivas respectivamente. Enfatiza ainda que
masculinidade e feminilidade não existem
em estado puro, mas enquanto composição.
Enquanto afirma que masculino e feminino
não são determinados exclusivamente pela
anatomia, diz também que há algo da história, da cultura e da dobra que cada um faz de
si em cada composição.
Evidentemente, do final do século XIX até
os dias atuais, muito aconteceu. Hoje podemos olhar para algumas passagens no texto
freudiano e avaliar que estão de acordo com
80
o período em que a teoria foi concebida. De
fato nosso campo é necessariamente aberto
às mudanças na esfera da produção de subjetividade. Abertura que também se verifica
nas reflexões críticas bem fundamentadas
que forçam o pensamento a produzir novos
desenhos e até mesmo novas leituras dos
mesmos escritos de fins de 1800 e início de
1900.
Nesse sentido perguntamos: seria o tão
interrogado complexo de Édipo efetivamente universal, parcial ou mesmo efeito da própria produção psicanalítica? Em O mal-estar
na civilização, o autor dirá:
Não é decisivo, realmente, haver matado o pai
ou deixado de fazê-lo; em ambos os casos temos de nos sentir culpados, pois o sentimento
de culpa é expressão do conflito de ambivalência, da eterna luta entre Eros e o instinto de
destruição ou de morte. Esse conflito é atiçado
quando os seres humanos defrontam a tarefa
de viver juntos; enquanto essa comunidade
assume apenas a forma da família, ele tem de
se manifestar no complexo de Édipo, instituir
a consciência, criar o primeiro sentimento
de culpa [grifo meu] (FREUD, 2010, p. 104).
Na passagem acima, é novamente Freud
quem deixa o caminho livre para o movimento do mundo sem determinações a
priori. Para ele, enquanto a convivência comunitária seguir adotando o formato da família, o complexo de Édipo será necessário.
Resta-nos acrescentar algumas reflexões: podemos inventar outros formatos familiares?
Que modos de convivência em comunidade
estariam por vir? Como manter viva aquela criança aberta à experimentação, vivendo
em comunhão com outros seres? Que crianças a psicanálise também está produzindo?
Devir criança
É tarefa do psicanalista promover um reencontro com a criança que habita em todos?
Evidentemente não estamos a falar de qualquer criança, e sim daquela plena de poten-
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 79–84 | Dezembro/2013
A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos
cialidades que, pela porosidade à ortopedia
das escolas, ao terrorismo de certas igrejas,
à velocidade das grandes cidades, às demandas familiares conflituosas e aos sofrimentos
do mundo, se torna um adulto que não sabe
brincar. Vejamos a demonstração de Manoel
de Barros:
Estranhei muito quando, mais tarde, precisei
de morar na cidade. Na cidade, um dia, contei
para minha mãe que vira na Praça um homem
montado no cavalo de pedra a mostrar uma
faca comprida para o alto. Minha mãe corrigiu
que não era uma faca, era uma espada. E que
o homem era um herói da nossa história. Claro que eu não tinha educação de cidade para
saber que herói era um homem sentado num
cavalo de pedra. Eles eram pessoas antigas da
história que algum dia defenderam a nossa
Pátria. Para mim aqueles homens em cima da
pedra eram sucata. Seriam sucata da história
(BARROS, 2003, p. XV).
No seu artigo Crianceria, Chaim Samuel
Katz (1996) coloca em questão o hábito de
olharmos a criança apenas de um ponto de
vista. Para ele presumir a emergência da figura “a” criança exclusivamente de papai e
mamãe “é supor que as energias-afetos que
constituem ‘psiquismo’ se dirijam desde
sempre, enquanto destinação através destas
imagens capturadoras” (KATZ, 1996, p. 90).
A criança é encharcada de mundo, da cidade
em que vive, do seu momento histórico, da
natureza. Suas experiências estão inseridas
em uma paisagem que extrapola as figuras de
pai e mãe, englobando uma atmosfera mais
ampla que também produz efeitos. Não cabe
negar a importância das figuras de referência,
porém ampliar as coordenadas de investimento pulsional. “Qual ser amado não envolve paisagens, continentes e populações mais
ou menos conhecidos, mais ou menos imaginários?”, pergunta Deleuze (2001, p. 84).
Como diz Katz (1996, p. 90), “criança não
é apenas obedecer aos poderes, mas exercício imanente de potências”. Essa posição
implica um estado de permanente abertura
para o novo rompendo, e não apenas adotando mandatos previamente estabelecidos. Segundo Bergson (2006, p. 96), “a criança é um
pesquisador e um inventor, sempre à espreita de novidade, impaciente pela regra, enfim,
mais próxima da natureza que o homem
feito”. Nessa perspectiva não há clausura em
um vir a ser previamente estabelecido, mas
habitar a posição de devir. Esclarece Saidón:
Quando dizemos devir, não nos referimos à
evolução das ideias ou das transformações dos
corpos ou de suas representações ao longo do
tempo. Falamos em devir para nos referirmos
à transmutação radical de valores que inaugura um pensamento e que se traduz na criação
de territórios existenciais inéditos (SAIDÓN,
2008, p. 91).
Se nessa perspectiva a criança é vista não
como uma esponja inerte que absorve a realidade, mas como produtora de mundos, uma
concepção de inconsciente necessariamente
derivará. Sabemos que Freud não se dedicou
ao trabalho com crianças em sua clínica, o
que não significa dizer que tenha negligenciado esse período da vida. Em suas próprias
palavras:
Sublinhar a importância das primeiras vivências não implica subestimar o peso das vivências posteriores; mas essas posteriores impressões da vida falam com clareza pela boca do paciente, enquanto o médico tem de erguer a voz
em favor da infância (FREUD, 2010, p. 300).
Vale lembrar que o estatuto conferido
à sexualidade infantil, pedra fundamental
da psicanálise, causou frisson na época por
diversas razões. Diana Corso (2012) afirma
que
[...] a descoberta da importância da infância
decorre da existência não só de uma sexualidade infantil, mas de um sujeito sexualmente desejante na infância. Assim, a psicanálise passa
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 79–84 | Dezembro/2013
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A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos
a se conectar com a história do sujeito, de um
ser que desde muito cedo escreve suas páginas
com seus desejos, proibidos e realizados, admitidos e recalcados. A infância recebe em seus
braços tudo aquilo de que se lhe considerava
ainda imune, acrescido do problema de que estas vivências são compreendidas como formadoras, constituintes.1
Ressaltamos aqui esse sujeito desejante
apontado pela autora como aquele que investe nos objetos de seu mundo e os significa
em uma operação paralela e simultânea a sua
própria significação. Assim, a psicanálise nos
fala de um mecanismo inconsciente de constituição de sujeitos, tempos e universos não
somente particulares.
Desse modo, nos debruçamos sobre um
tempo da criança não como aquilo que fomos um dia, um passado perdido, mas como
esse movimento criador do sujeito em sua
esfera relacional potencialmente presente. Tornar-se adulto não suprime a criança,
viva naqueles que exploram ambientes por
meio de trajetos plásticos e desenham seus
próprios mapas. Como diz Manoel de Barros (1999, s/p), “com certeza, a liberdade e a
poesia a gente aprende com as crianças”.
Mil e um dias e noites
A magia do texto freudiano está em sua
abertura para inúmeras leituras. Assim como
em certos momentos a balança pende para
a necessidade de legitimação da psicanálise
no campo da ciência, atendendo às demandas de seu tempo, em tantas outras passagens
podemos encontrar uma concepção de inconsciente como usina de produção de mundos. Sim, “a psicanálise já enfrentou muitas
tempestades” (FREUD, 1996, p. 50).
Cabe a nós, produto e produtores da psicanálise, garantir seu lugar no campo das
1. <http://www.marioedianacorso.com/a-invencaoda-crianca-da-psicanalise-de-sigmund-freud-amelanie-klein>.
82
ciências do devir (SAIDÓN, 2008), para que
possamos estar aliados ao caos e à incerteza,
sem negligenciar a estrutura e o instituído,
tomando-os como trampolins para o engendramento da vida, e não como âncoras que
estancam o movimento.
As crianças, os artistas e os pacientes em
análise bem sabem, pela própria experiência,
o que significa habitar um devir. Nas palavras do psicanalista,
[...] é instalar-se em uma zona de copresença; é
trabalhar em um entorno; é evocar o estranho
em nós com os outros; é a troca que acontece
a uma partícula ao entrar em uma zona de
indeterminabilidade e de potenciais processos
criacionistas (SAIDÓN, 2008, p. 95).
Winnicott concordaria que há algo em
comum entre esses três personagens, quais
sejam a criança, o artista e o analisando, já
que para ele “é no brincar, e talvez apenas no
brincar, que a criança ou o adulto fruem sua
liberdade de criação” (WINNICOTT, 1975,
p. 79). Criação de si e do próprio mundo tal
qual o processo de análise em que, de lamparina em punho, exploramos nossos sótãos
empoeirados, conhecendo e reinventando
nossa própria história. É como diz Bergson
(2006, p. 98): “só se conhece, só se compreende aquilo que se pode, em alguma medida, reinventar”. O divã, tal qual um tapete
mágico, nos leva à exploração de territórios
conhecidos e inusitados. Nesses voos revisitamos o passado com seus personagens, cores e sabores e, por meio da magia do tapete,
vivemos os mil e um futuros por vir. E para
nossa surpresa retornamos com o corpo inteiro, revitalizados pela possibilidade de refazer a nós mesmos a cada dia que o tapete
novamente alça voo.
Abstract
In the forthcoming lines the reader will be
presented to a reflexive exercise about some
aspects of the psychoanalytical dungeon cons-
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 79–84 | Dezembro/2013
A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos
truction. The practical and conceptual framework is disclosed both as a derivative of its time
and as an effects producer in the ways of being,
acting and thinking of men and its worlds. The
figures of the child, the artist and the analyzed are presented as characters that lend their
bodies to the personification of psychoanalysis
precious concepts and practices.
Keywords: Psychoanalysis, Child, Becoming.
de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XXI, p.
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WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de
Janeiro: Imago, 1975.
Recebido em: 01/09/2013
A p r ova d o e m : 2 9 / 1 0 / 2 0 1 3
S ob r e a au tor a
Luciana Knijnik
Psicóloga. Doutoranda do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia Social
e Institucional da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.
Em formação no Círculo Psicanalítico
do Rio Grande do Sul.
Endereço para correspondência
Rua Tomaz Flores, 192/201
90035-200 - Porto Alegre/RS
E-mail: [email protected]
FREUD, S. A questão da análise leiga (1926). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de
Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XX,
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FREUD, S. O futuro de uma ilusão (1927). In: Edição
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Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 79–84 | Dezembro/2013
83
A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos
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Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 79–84 | Dezembro/2013
De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza”
De Simone de Beauvoir
aos “Cinquenta tons de cinza”
From Simone de Beauvoir to the “Fifty Shades of Gray”
Maria Carolina Bellico Fonseca
Resumo
Com base análise do fenômeno editorial Cinquenta tons de cinza, a autora busca compreender
a excitação causada entre as mulheres pelo livro e seus personagens. Ela inicia com o questionamento da possível estrutura do personagem principal, tema de debate constante em várias
rodas femininas. Em seguida, usando os conceitos de fantasia e gozo, busca compreender o
interesse suscitado pela trama que envolve uma relação sadomasoquista e as posições de dominador e submissa chegando, por fim, a discutir o que isso poderia dizer dos encontros
sexuais na contemporaneidade.
Palavras-chave: Perversão, Fantasia, Sexualidade, Gozo.
No final de 2012, o romance em série Cinquenta tons de cinza foi um grande sucesso
editorial; por todo lado, via-se mulheres ou
lendo um dos volumes, ou pegando um para
ler. Mas o que levou um livro tido como literatura menor, romance erótico “fast-food”,
como tem sido chamado por alguns, a um
grande sucesso de vendas?
O movimento feminista eclodido no século passado trouxe frutos que as mulheres
colhem até os nossos dias, como emancipação, sucesso profissional em qualquer tipo
de carreira, destaque em atividades intelectuais, direito a voto, etc. O que leva, então,
ao sucesso um livro que, em pleno século
21, aborda um romance no qual a heroína
precisa se colocar como “submissa” sexualmente em relação a um “dominador”? Essas
e outras aparentes contradições me levaram
à reflexão que se segue.
Através de estudos psicanalíticos sabemos que ao neurótico falta certa concessão
ao gozo, e ao perverso falta a concessão ao
amor, e que numa saída ideal de análise é a
isso que assistimos. Em outras palavras, vemos que a pulsão de morte veiculada pelo
gozo perverso é enlaçada novamente pela
libido e, dessa forma, nem o neurótico necessita tanto do recalque e nem o perverso
do desmentido já que, pela via do amor enlaçado a um pouco de gozo, ambos conseguem
um amansamento da pulsão, um apaziguamento do real do sexo, o que tem estreita
relação com o aforismo de Lacan, citado no
Seminário 20: “Só o amor permite ao gozo
condescender ao desejo” (Lacan, 2004, p.
197). Lembrando Marco Antônio Coutinho
Jorge em um de seus seminários no CPMG
sobre a fantasia, o neurótico, na direção da
cura, se encaminha em direção à perversão,
e o perverso, no sentido oposto.
Sa
Amor
Neurótico
Gozo
Perverso
A oposição entre neurose e perversão
pode ser indicada pela ênfase posta em um
dos dois termos da fantasia: neurose (S) e
perversão (a)
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 85–90 | Dezembro/2013
85
De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza”
• O polo do amor S — polo paterno da
fantasia
• O polo do gozo a — polo materno da
fantasia
Christian Grey, rapaz que por suas práticas sadomasoquistas em tudo lembra um
perverso, era uma pessoa que cresceu com
“uma autoimagem negativa, pensando que
era algum tipo de rejeitado, um selvagem incapaz de ser amado” (James, 2012, livro 3,
p. 479). Filho de uma prostituta viciada e vítima de seu cafetão sádico, foi torturado durante seus quatro primeiros anos até a morte
de sua mãe biológica e posterior adoção por
uma família abastada. Cresce uma criança
arredia, que após anos de silêncio consegue,
através da música, sair da mudez que o acometia desde que foi achado ao lado de sua
mãe morta, com cujo cadáver ficou trancado num apartamento sem comida, por três
dias. Suas vivências com essa mãe submetida a seu cafetão que costumava queimar a
criança com cigarro aceso, trouxe como sequela um pavor de ser tocado, mesmo após
a adoção. Torna-se um adolescente rebelde,
prensado entre a forte demanda pulsional e
o horror ao toque e ao envolvimento afetivo.
Vai de uma passagem ao ato a outra, descontrolado num percurso mortífero até encontrar uma mulher que o introduz no universo
sadomasoquista lhe oferecendo, assim, uma
oportunidade viável “de lidar com a dor do
lado de fora” (James, livro 3, p. 479), uma
proposta sedutora para quem cresceu achando “que merecia apanhar” (James, livro 3,
p. 479). Ao lhe dar uma forma de lidar com
o gozo mortífero, ela o auxilia a “canalizar
sua raiva” e se torna o “centro de seu mundo”. Mas nessa primeira relação Christian era
submisso àquela que era sua dominadora, e
é nessa submissão que ele se “reencontra” e
“descobre a força de que precisava para tomar as rédeas” de sua vida, “ter o controle e
tomar suas próprias decisões”, enfim, se tornar um dominador também. Por outro lado,
foi criada uma situação de assepsia afetiva,
na qual o rapaz evitava se relacionar de ver86
dade com quem quer que fosse. Seus casos
eram puramente sexuais e balizados por um
contrato no qual as duas partes, submissa e
dominador, estabeleciam regras, limites, e a
dor e o sexo substituíam o sexo com amor.
Isso lhe dava uma falsa sensação de liberdade
e controle já que ele só podia transitar dentro
de tais limites.
Tudo correu muito bem até que apareceu
alguém, uma jovem mulher, Anastasia Steele, que fez seu mundo, antes calmo e organizado, virar de cabeça para baixo ao introduzir paulatinamente um novo ingrediente em
sua vida — o amor. Maníaco por controle,
mas seduzido pela situação de embate, ele se
propõe a entrar nessa relação, certo de que
era o senhor da situação; todavia encontra
alguém rebelde, insubmissa e desafiadora, que aos poucos lhe tira o chão. Ela, por
sua vez, é uma moça com autoestima baixa,
inexperiente em relações afetivas, mas que se
sente fortemente atraída pela beleza e pelo
poder representados pelo rapaz e, ao se perceber escolhida por ele (mesmo se sentindo
não merecedora de sua atenção) cede, paga o
preço se submetendo a uma certa dor, a que
lhe era suportável na relação, para ela, erótica.
Como nos mostra Lacan no Seminário 10,
há uma “função — não mediadora, mas mediana — da angústia entre o gozo e o desejo”
(Lacan, 2005, p. 192), e é exatamente o que
ocorre com esses personagens quando, antes
de conseguirem estabelecer os limites balizados em seu desejo, mas já apaixonados, o casal se separa. Gray, antes dominador e senhor
de si e do Outro, apaixonado, se torna cativo,
castrado; na angústia da perda se torna um
sujeito “premido, afetado, implicado no mais
íntimo de si mesmo” (Lacan, 2005, p. 191),
no mais íntimo de seu desejo. Então ele cede
em seu gozo e ascende ao desejo.
Os limites entre dor e prazer são tênues, e
estabelecê-los se torna um desafio que é enfrentado pelos dois. A diferença entre Anastasia e as outras submissas é que esta não
abre mão totalmente de seu jeito de ser, de
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De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza”
sua espontaneidade e, algumas vezes, apesar
de tentar se controlar, faz o que lhe dá vontade e acaba sendo fortemente castigada por
isso. Castigo que aos poucos, vai sendo desejado e provocado por ela, uma vez que acaba
se tornando um ingrediente fortemente erótico na relação dos dois, ou seja, o que antes
era uma forma de gozo do Outro se torna,
ao ser enlaçado pelo amor e pelo desejo, um
tempero desejável na relação a dois.
Afora os ingredientes fortemente romanescos, a trama nos ilustra um pouco o tratamento do gozo da dor pelo amor e a busca
de equilíbrio entre os dois. Sabemos que a sexualidade é perverso-polimorfa na infância
e que a sexualidade adulta tem aí suas raízes que lhe trazem a seiva, a vida. A irrigação da vida sexual de cada um vai depender
do quanto é possível conceder com o gozo
libertando-se das amarras da repressão, cuja
raiz é o recalque. Talvez aqui esteja um dos
interesses do livro: a heroína vive situações
e práticas sexuais que grande parte das mulheres só o faz em fantasias e, de certa forma,
traz para elas uma autorização para a vivência dessas fantasias sem se sentirem doentes
ou culpadas. Alguém já fez, mesmo que num
livro, então também posso, quero ou no íntimo, desejo.
Contudo, não posso deixar de sublinhar
que no livro, mesmo com amor, a mulher
precisou ceder ao controle do homem para
tê-lo, e ele precisou respeitar limite dela para
a dor. Ambos cederam. No entanto, é curiosa
essa cessão de controle e a entrega à submissão, em pleno século 21, quase um século depois de as mulheres terem se rebelado contra
esse papel de submissas e lutado bravamente
por um lugar respeitável ao lado do homem,
lugar de igualdade tanto de direitos quanto
de acesso ao prazer.
Podemos dizer que aqui se trata da submissão como ingrediente erótico, numa revivência do erotismo da fantasia do artigo
de Freud — Uma criança é espancada –— na
qual o dominador substitui o pai desejado do
Édipo, e as surras têm a equivalência simbóli-
ca das relações sexuais. Freud se refere a esse
artigo como um ensaio sobre o masoquismo. Para ele a perversão na infância pode ser
a base para a construção de uma perversão
posterior que pode ser interrompida e permanecer no fundo de um desenvolvimento
sexual normal. A fantasia de espancamento
e “outras fixações perversas análogas” são
resíduos do complexo de Édipo, “cicatrizes”
deixadas por esse processo.
Para Marco Antônio Coutinho Jorge, detecta-se no cerne desse texto de Freud uma
articulação entre amor e gozo (“inerente a
toda fantasia de desejo”), representando a
estrutura interna da fantasia. Segundo ele,
trata-se de:
• Fantasia de completude amorosa na
neurose;
• Fantasia de completude de gozo na perversão.
Para Freud, mais tarde, quando a criança é maior, a leitura substitui o papel de espancamento das crianças — o conteúdo dos
livros traz um novo estímulo às fantasias de
espancamento. Ora, não seria esse um dos
motivos do sucesso dos Cinquenta tons entre
as mulheres de hoje? Não teria o livro para
essas mulheres adultas o mesmo o papel que
um dia teve a fantasia para as crianças? Atração e amor pelo dominador, erotização da
dor, desejo por surras. Freud adoraria isso...
A sexualidade em nosso tempo tem certa
coloração perversa e tem na atração pelo fetiche um ingrediente saboroso como o comprova o sucesso das sex shops. Nossas mães
e avós não queimaram seus sutiãs em vão.
Hoje as mulheres se permitem o exercício
de sua sexualidade e fantasias de forma mais
livre, aberta e, em alguns casos, até banalizada. Para algumas, o sexo casual, sem compromisso, oferece mais interesse que as tradicionais relações entre homens e mulheres
como namoro e casamento, o que não deixa
de ser uma ilusão de estar no controle da relação, da vida; já não são mais abandonadas e
enfraquecidas pelo amor, e o homem romântico é tratado por elas como “chiclete que não
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De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza”
sai do pé” e acaba levando um “end”. Outras
preferem a exposição na Internet ou as relações virtuais e ainda vemos também aquelas
que, almejando ou não uma vida profissional
independente, desejam também um companheiro, um lar e filhos. Mas todas querem ser gostosas, poderosas e, algumas vezes, destruidoras de homens. Não seria essa
uma forma de dominação sádica? Christians
Grays de saias e peitos? Alguns homens concordariam comigo, e tem sido comum ouvir
deles seja em rodas sociais, seja em nossos
consultórios, que hoje é difícil encontrar
mulheres para namorar, casar.
Nesse contexto podemos dizer que, em alguns casos, o amor tem sido prova de fraqueza, quase como o foi outrora para as mulheres guerrilheiras e, até mesmo, para algumas
feministas. Teriam sido as correntes do amor
trocadas por correntes na cama usadas por
mestres mulheres para submeter os homens?
As revistas femininas trazem cada vez mais
receitas e regras para a conquista e submissão do companheiro sexual. É interessante
se compararmos com as revistas femininas
da década de 1950, que davam como receita
para manter um casamento saudável, a quase
total submissão ao homem e a preocupação
com o prazer dele.
Tudo isso é muito contraditório, pois,
apesar de o sexo andar meio banalizado, um
livro como esse romance picante, com fortes
doses de erotismo sadomasoquista, faz um
grande sucesso entre as mulheres, como eu
disse no início deste texto, e se multiplica nas
prateleiras sob títulos diferentes. Faria sentido a parte da relação sádica se o livro não
fosse, no final das contas, uma grande água
com açúcar com um final feliz, dominador e
submissa numa linda relação de amor, com
direito a casamento e filhos. Será que por trás
da tão almejada aparência de poderosa a mulher contemporânea traz em si uma Julieta
em busca de um Romeu com chicote e vara?
Será que algumas mulheres não estariam
se identificando com o homem dos sonhos
clichê, rico, lindo e poderoso (até parece os
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três desejos realizados pelas fadas dos contos
infantis) e bom de cama? (afinal, mocinha é
levada às nuvens em suas relações sexuais...).
Outro fator que pode ser atraente é o poder
demonstrado pela heroína já que, no final,
ela, de certa forma, submete o sádico para
transformá-lo num amante sensacional e
marido ideal...
São muitas as razões desse sucesso de vendas, e não tenho a pretensão de esgotá-las,
porém não deixo de notar uma proximidade
com as fotonovelas de antigamente e mesmo
com as novelas globais em seus ingredientes
romanescos, picantes e na apologia do amor
conquistado após muito sofrimento e batalha da heroína.
Muda a cultura, mudam os costumes,
diminuem as repressões, mas a sexualidade
continua mais perverso-polimorfa do que
nunca e tem encontrado em diferentes graus
de sadismo um ingrediente poderoso.
Abstract
With the analysis of the topped best-seller Fifty
Shades of Gray, the author tries to understand
the excitement caused among women for the
book and its characters. She starts questioning the possible psychic structure of the main
character, subject of constant debate in some
feminine circles. Then, using the concept of
fantasy and enjoyment, she discusses the interest shown by the plot involving a sadistic
and masochistic relation, and the positions of
dominator/submitted, to finally speak about
nowadays sexual meetings.
Keywords: Perversion, Fantasy, Sexuality,
Enjoyment.
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De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza”
Referências
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(1919). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da
tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1996, v. XVII, p. 195-218.
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Janeiro: Intrínseca, 2012a.
James, E. L. Cinquenta tons de liberdade - livro 1. Rio
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James, E. L. Cinquenta tons mais escuros - livro 1.
Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012c.
Jorge, M. A. C. Fundamentos da psicanálise - de
Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Zahar.
Lacan, J. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de
Janeiro: Zahar, 2005.
R ece b ido em : 0 9 / 0 9 / 2 0 1 3
A provado em : 2 9 / 1 0 / 2 0 1 3
S obr e a au tora
Maria Carolina Bellico Fonseca
Psicóloga. Psicanalista.
Mestre em Psicanálise pela UFMG.
Membro do CPMG.
Endereço para correspondência
Rua Santa Rita Durão, 321/511 - Funcionários
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O contador de histórias: vínculos e identificações
O contador de histórias:
vínculos e identificações
The Storyteller: Identification and Bonds
Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski
Luís Antônio Franckowiak Pokorski
Resumo
O presente ensaio pretende examinar os conceitos do vínculo e das identificações presentes na
constituição psíquica do ser humano. Para ilustrar essa constituição psíquica, utilizaremos alguns fragmentos da vida de um menino que, com seis anos de idade, é deixado por sua mãe na
FEBEM, em 1978. Trata-se de uma situação real, que é retratada no filme brasileiro O contador
de histórias, de 2009. Além da história de vida do menino, analisaremos o papel da pedagoga
pesquisadora que exerce as funções materna e paterna, sendo continente aos momentos de
ódio expressos pelo menino e que chega a adotá-lo. Dos autores da psicanálise utilizaremos
Freud, Winnicott e Bion, bem como os que fazem uma releitura deles, por exemplo, Gutfreind,
Nasio e Zimerman.
Palavras-chave:
Vínculo, Identificações, Constituição psíquica, Psicanálise.
Introdução
Nosso texto examina a importância dos vínculos e das identificações na infância e na
adolescência, partindo do filme brasileiro O
contador de histórias. Dirigido por Luiz Villaça (2009), o filme retrata a vida de Roberto Carlos Ramos, que em 1978 passa a frequentar a FEBEM (Fundação Estadual para
o Bem-Estar do Menor), em Belo Horizonte. O personagem Roberto é o décimo filho
de uma senhora que sustentava sua família
trabalhando como lavadeira, em seu casebre. Diante da vida difícil, interna o filho na
FEBEM, onde poderia ter uma vida melhor
e até se tornar doutor, uma vez que a campanha institucional veiculada na televisão, em
cada letra de seu nome, trazia um significado promissor: F de Fé; E de Educação; B de
Bons modos; E de Esperança; M de Moral.
Uma cena muito significativa é quando, de
madrugada, a mãe veste seu pequeno com
carinho e o leva à instituição. Após a assina-
tura digital, por ser analfabeta, a despedida
lhe é negada pela diretora da instituição. Roberto, vendo-a pelo vidro da janela, suplica
que não o deixe ali.
A escolha do filme para o presente texto
se deve a vários motivos. Um deles é o fato de
a obra contar a história de um menino brasileiro, que representa a realidade de várias
crianças que sofrem com as adversidades da
vida desde muito cedo. Igualmente, cabe analisar o papel dos profissionais da instituição,
que, muitas vezes, se mostravam insensíveis
aos sentimentos dos menininhos. O filme
aponta, por outro lado, o papel fundamental
da pedagoga francesa Marguerit, realizando
pesquisas no Brasil, quando encontra Roberto após o resgate em uma de suas muitas
fugas. Ela o fita nos olhos, dirigindo-se a ele
com gentileza e não desiste dele em nenhum
momento.
O filme apresenta Marguerit no exercício
das funções materna e paterna, continente ao
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O contador de histórias: vínculos e identificações
desespero e ao desamparo de Roberto. Aos
poucos, a confiança começa a se estabelecer, além do respeito às escolhas do menino.
Diante do anúncio do retorno de Marguerit
à França, Roberto inunda a casa inteira de
água; contudo, percebe que os limites e o
castigo de secar toda a casa foram merecidos. A atitude de Roberto de ter provocado
o ódio de Marguerit naquela ocasião foi mais
por temer um abandono, o que não se confirmou. Essa atitude de provocar o abandono
é frequente em toda criança já abandonada.
Marguerit o adota e o leva ao seu país, onde
ele estuda e volta formado professor de História, com o endereço de residência de sua
mãe biológica.
Portanto, na primeira parte, pretendemos
descrever a chegada do menino, aos seis anos
de idade, à instiuição FEBEM, o seu período
de adaptação, o significado da separação, o
estabelecimento de escassos vínculos e, logo
em seguida, sua experiência de uma segunda adaptação por pertencer ao grupo de sete
a catorze anos de idade, quando as fugas da
FEBEM passaram a se intensificar, ocasiões
em que os meninos roubavam, cheiravam
cola e usavam outras drogas. Roberto passa
por avaliações psicológicas, recebendo diagnóstico de dislalia, dislexia, discalculia. Em
cada resposta errada, as psicólogas davam
uma bolachinha recheada, o que estimulava
Roberto a não se preocupar com a resposta.
Além disso, com as muitas fugas, recebeu o
diagnóstico de “caso irrecuperável”. As fugas o inspiraram a querer pertencer a um
grupo de meninos de rua mais experientes,
por admirá-los. E como exigência de pertencimento ao grupo, teve que passar pela
prova de ser abusado sexualmente. O sofrimento foi muito intenso, levando-o a tentar
o suicídio, deitando-se nos trilhos de trem.
Após essa vivência amarga, procura a casa
de Marguerit.
Na segunda parte, analisaremos o vínculo com a pesquisadora Marguerit, que, após
um período de provações e silêncios, teve
um comportamento continente, respeitando
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o seu jeito de ser. Roberto lhe conta a sua história, que fica registrada nas fitas do gravador. Nesse laço transferencial, ele conquista
aos poucos, a aprendizagem da leitura e da
escrita, a partir do contato com a história
do personagem Capitão Nemo, por quem
demonstra admiração, encantamento, o que
desperta a sua imaginação sobre as profundezas do mar, que desconhecia.
O filme O contador de histórias nos oportuniza operar com os referenciais da psicanálise. A obra nos possibilita transitar pela
teoria da psicanálise, pelas situações clínicas,
nos ajuda a entender os casos clínicos, nossas
experiências analíticas e as demais situações
da realidade.
Vínculos e identificações
Parece-nos que as situações dos vínculos,
das identificações e das separações podem
expressar e representar um pouco do que
Roberto, do filme O contador de histórias, vivenciou em sua primeira etapa na FEBEM,
em 1978, na cidade de Belo Horizonte, onde
ingressou com seis anos de idade, precisando
aderir às regras da instituição, uma vez que
sua mãe acreditava ser aquela a forma de seu
décimo filho se tornar doutor. Nessa instituição, Roberto não teve sequer espaço e tempo
para poder chorar a saudade sentida.
Vínculo é a capacidade de estabelecer laços, a ligação com o outro, que é imprescindível à constituição psíquica. A psicanálise
consagrou que os primeiros vínculos mãe-bebê são a matriz estrutural das relações
afetivas futuras. Para Zimerman (2001), vínculo, do latim vinculum, significa união, ligadura, atadura, ligação entre as partes que
estão unidas e delimitadas entre si. Quais os
principais autores da psicanálise no estudo
dos vínculos?
Em Freud encontramos apenas as expressões “vínculos emocionais em grupo” e
“vinculação psíquica”. Da vinculação psíquica, em suas Novas conferências introdutórias
sobre a psicanálise (1996), ao descrever A
dissecção da personalidade psíquica, ansieda-
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O contador de histórias: vínculos e identificações
de e vida pulsional, Freud menciona que, nas
fobias, há um deslocamento, que é expresso
temendo-se uma situação externa. A criança,
nessas situações, busca se proteger utilizando
a fuga como forma de proteção, uma vez que
“fugir de um perigo interno é um empreendimento difícil” (FREUD, 1996, p. 88). A ansiedade é retomada por Freud, pela terceira
vez, em 1932. Por volta de 1905, no artigo
Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade,
Freud entende a ansiedade como uma consequência do recalque. Porém, em 1926, em
Inibições, sintomas e ansiedades, Freud apresenta o recalque não mais como origem, mas
como consequência da ansiedade. Em 1932,
define a ansiedade como um estado afetivo
de uma ameaça de perigo, que serve como
forma de autopreservação. A sede da ansiedade é o eu (ego), porque somente o eu (ego)
produz e sente ansiedade, e não as instâncias
do id e do superego:
[...] as três principais espécies de ansiedade, a
realística, a neurótica e a moral, podem com
tanta facilidade ser correlacionadas com as três
relações dependentes que o ego mantém — com
o mundo externo, com o id e com o superego
(FREUD, 1996, p. 89).
O vínculo mãe-bebê é a base para o desenvolvimento da personalidade da criança;
sem o outro, é impossível alguém se constituir como humano/sujeito. Revisando os
referenciais da psicanálise sobre o vínculo,
além de Freud, encontramos várias denominações. Melanie Klein (apud HINSHELWOOD, 1992) qualifica o vínculo como
“elos de ligação” entre mãe-bebê. Bowlby
(2006) enfatiza o vínculo como teoria do
apego, salientando o vínculo afetivo mãe-bebê e os efeitos prejudiciais da privação da
mãe. Winnicott situa a necessidade do olhar
da mãe para que o bebê se veja refletido nesse olhar. “O precursor do espelho é o rosto da
mãe” (WINNICOTT, 1975, p. 153). Pichon-Rivière (2000) descreve a teoria do vínculo,
pontuando as relações patológicas e sadias,
os vínculos e os papéis no grupo, os três D
(depositário, depositante e depositado). Bion
(apud ZIMERMAN, 2010) descreve três vínculos como fundamentais: o do amor, o do
ódio e o do conhecimento.
Em relação à origem da formação conhecimento, segundo Bion (apud ZIMERMAN,
1995), ela se organiza dissociada da formação do pensamento, porém ambas são
[...] uma reação à experiência emocional primitiva decorrente da ausência do objeto. [...]
O Conhecimento progride em função do Pensamento, portanto, para Bion, ‘a incógnita é
desconhecida e, como tal, faz pensar e criar’
(ZIMERMAN, 1995, p. 111).
Aos três vínculos fundamentais de Bion,
Zimerman (2010) acrescenta um quarto
vínculo, o do reconhecimento. Defende que
os quatro vínculos — amor, ódio, conhecimento e reconhecimento — estão sempre interagindo entre si, qualificando-os como sadios ou como patológicos. Zimerman (2010)
desdobra o vínculo do Reconhecimento em
reconhecimento de si mesmo, reconhecimento do outro, ser reconhecido ao outro e
ser reconhecido pelos outros. Em relação ao
reconhecimento de si mesmo, este ocorre no
início da vida, quando o bebê começa a fazer
a diferenciação entre eu e não-eu, na etapa
narcísica. Pode deixar marcas para a vida
adulta, em que a pessoa não consegue distinguir o outro diferente de si mesma ou esse
reconhecimento do outro pode ficar com distorções que são observadas na identificação
projetiva, em que são projetadas dentro do
outro as imagos parentais que habitam o psiquismo de quem projeta.
[...] o reconhecimento de si mesmo, acrescido do reconhecimento do outro, também se
constituem como importantes fatores para a
formação do sentimento de identidade, desde
o seu nascimento até fases evolutivas posteriores. Isso se processa através de uma sadia,
ou de uma prejudicada, evolução de sua ca-
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O contador de histórias: vínculos e identificações
pacidade para pensar e, consequentemente,
de conhecer e reconhecer (ZIMERMAN, 2010,
p. 210).
Ser reconhecido aos outros Zimerman
(2010) justifica como a capacidade da pessoa
de ter vencido a etapa mais primitiva que,
segundo o referencial de Melanie Klein, significa ter feito a passagem da posição esquizoparanoide à posição depressiva, ou seja,
tendo vencido o mundo mágico, da onipotência, aceitado as frustrações, ter adquirido
a percepção total do objeto, e não apenas
parcial, tendo assumido as responsabilidades e os compromissos da vida, sendo grata
ao outro, e, com isso, podendo desenvolver a
capacidade de pensar, aprender e simbolizar
as experiências vividas.
O quarto e último vínculo descrito por
Zimerman (2010) é ser reconhecido pelos outros, quer dizer, ser visto, nomeado, amado,
diferenciado pelos outros; assim, como para a
estrela existir ela precisa ser vista, nós humanos também precisamos desse investimento
do outro. Muitas vezes, em nossos seminários de formação psicanalítica, Natal Fachini
mencionava que o que adoece a pessoa não é
o amor, mas a falta ou a falha no reconhecimento. Zimerman reafirma essa constatação
de Fachini, pontuando que as configurações
psicopatológicas, que abarcam as questões
de “autoestima, de sentimento de identidade
e o da relação com a realidade exterior” se
originam dessa “falência desse tipo de necessidade do sujeito em ser reconhecido” (ZIMERMAN, 2010, p. 212).
Após essa explanação sobre a importância
dos vínculos iniciais da criança com o meio e
vice-versa, ficamos a questionar o estado do
pequeno Roberto, do filme de pano de fundo de nosso texto, sobre a sua “capacidade de
estar só” e a sua “continuidade de ser”. Neste
momento, consideramos importante examinar esses dois conceitos descritos por Winnicott (1990). Na etapa inicial, o bebê é de uma
dependência absoluta e, para evoluir dessa
etapa, precisa de uma mãe “suficientemen94
te boa”. Hipoteticamente, poderíamos dizer
que uma mãe de dez filhos preencheria esse
quesito, até pela repetição das experiências,
não fossem as adversidades da vida, de muita
pobreza, fome e da figura paterna totalmente
ausente, conforme mostra o filme. Para adquirir a “capacidade de estar só”, a criança
precisa ter introjetado o ego auxiliar (a mãe);
com isso, a mãe está presente no psiquismo
da criança, mesmo que ausente no espaço. O
cuidado materno possibilita à criança a capacidade
[...] de ter uma existência pessoal, e assim começa a construir o que pode ser chamado de
continuidade de ser. Na base dessa continuidade de ser, o potencial herdado se desenvolve
gradualmente no indivíduo lactente (WINNICOTT, 1990, p. 53).
Winnicott (1990) acrescenta que, quando
ocorrem falhas no cuidado materno, abremse possibilidades de esse bebê “não vir a
existir” ou a organização do seu ego ser considerada fraca. É importante ressaltar a importância de a mãe poder contar com o pai
da criança nesses momentos iniciais. Cabe
lembrar que as funções do ego são: perceber,
pensar, planejar, lembrar, prestar atenção,
ou seja, todas elas envolvem as questões da
aprendizagem. Em relação à aprendizagem,
nosso personagem fora diagnosticado com
dislexia (mesmo não sabendo ler e escrever),
dislalia, discalculia e, em relação ao comportamento na adolescência, um “caso irrecuperável”. Mas qual o papel das identificações na
constituição psíquica?
O processo identificatório na psicanálise
foi criado por Freud (apud ROUDINESCO;
PLON, 1998) para designar
[...] o processo central pelo qual o sujeito se
constitui e se transforma, assimilando ou se
apropriando, em momentos-chave, de uma
evolução, dos aspectos, atributos ou traços dos
seres humanos que o cercam (ROUDINESCO;
PLON, 1998, p. 363).
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O contador de histórias: vínculos e identificações
As pulsões autoeróticas são básicas, estão
lá desde o início, mas algo deve ser acrescido
a esse autoerotismo, e o que se acrescenta é o
“eu”. Assim, o narcisismo equivale ao nascimento do “eu”. Segundo Garcia-Roza (1995),
a partir de 1920, Freud denomina o autoerotismo de narcisismo primário; nele ainda
não há um eu diferenciado do não eu, mas há
a pulsão sexual satisfazendo-se autoeroticamente no próprio corpo. São ainda características do narcisismo primário a onipotência, a imagem corporal, o eu ideal, o plano
imaginário, as idealizações. No narcisismo
secundário, por sua vez, há uma relação de
objeto, uma identificação com o outro, um
ideal do eu, marcado pelo simbólico. Mas
como se dá a identificação no conceito freudiano?
Para Nasio (1997), a identificação, a partir das categorias freudianas, acontece entre
duas instâncias inconscientes: o eu e o objeto,
podendo ser total ou parcial. Freud denomina de identificação primária a identificação
total do eu com o objeto total. Retoma a précondição mítica, transmitida de geração a
geração, em que o objeto total é o Pai mítico
da horda primeva. Os filhos devoram o pai,
incorporando-o pela boca, para que tenham
a força paterna inteira dentro de si. Nas identificações parciais, o objeto tem um significado de representação inconsciente. Nasio
(1997) assinala o aspecto ou a forma que a
representação assume, podendo ser por um
traço distinto, uma imagem (global ou local)
ou uma emoção.
Na identificação parcial com o traço do
objeto, o eu se identifica com um traço de
um objeto amado, desejado e perdido, ou
até com vários objetos que têm o traço da
sonoridade vocal, do sorriso, do olhar, da
vestimenta, do cabelo, etc. Nasio mostra que
Freud a qualifica
[...] de ‘identificação regressiva’: o eu estabelece, primeiro, um vínculo com o objeto, depois desliga-se dele, volta-se sobre si mesmo,
regride e se decompõe nos traços simbólicos
daquilo que não existe mais (NASIO, 1997,
p. 107).
Na identificação parcial com a imagem
global do objeto, a “representação inconsciente do objeto amado, desejado e perdido
é uma imagem” (NASIO, 1997, p. 107). Em
relação a essa identificação, Nasio (1997) dá
um exemplo do menino que tem um forte
apego com seu gato, ilustrando a identificação patológica na melancolia. Certo dia se
deparou com o gato morto. Passados alguns
dias, o menino começa a apresentar condutas bizarras, adotando atitudes felinas: bebia,
miava e caminhava como gato. O menino
reproduzia a conduta daquele que o deixou,
tornando-se idêntico à sua imagem, vestiuse com a “pele do outro”, uma conduta narcísica. Assim, no exemplo do menino e o gato:
O eu não encontra outra pele senão a anteriormente amada, porque, ao amá-la, refletia-se
nela e amava a si mesmo. Se hoje o menino
melancólico banca o gato, é justamente porque
a imagem de seu gato vivo já era sua própria
imagem (NASIO, 1997, p. 108).
A identificação parcial com a imagem local do objeto e a identificação com o objeto, enquanto emoção, se relacionam ao tipo
de investimento dos histéricos. No primeiro
se destaca a identificação com a imagem da
parte sexual do outro; no segundo o eu identificado com o outro, enquanto emoção, significa que:
Todo sonho, sintoma ou fantasia histéricos
condensa e atualiza uma identificação tríplice:
identificação com o objeto desejado, com o objeto desejante e, por fim, com o objeto de gozo
dos dois amantes (NASIO, 1997, p. 110).
Sabemos que muitas vezes as adversidades da vida da criança interferem em sua
constituição psíquica. McDougall (2001)
utiliza de Christopher Bollas os conceitos
de fado e pulsão de destino. Em relação ao
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O contador de histórias: vínculos e identificações
“fado”, a pessoa não tem controle direto, é
uma situação acidental, externa ao sujeito,
ou seja, é da realidade, são as situações inevitáveis e fatídicas com as quais se depara. Já a
“pulsão de destino” engloba a participação e
a responsabilidade da pessoa para reagir aos
golpes do fado.
McDougall (1996) relata vários casos de
pessoas que, em sua etapa inicial de desenvolvimento, sofreram severos prejuízos em
relação aos cuidados essenciais à constituição psíquica, em que mãe e pai falharam,
afetando sua capacidade para o sonho, a
fantasia, o nomear as emoções ou as dores
físicas ou psíquicas, sofrendo de insônia e
utilizando um pensamento concreto em seus
discursos. No capítulo intitulado Sobre a privação psíquica, McDougall (1996) descreve
que, para poder sonhar, é necessário que o
bebê tenha introjetado uma “tela do seio materno” de confiança e de segurança. Quando
não há essa tela, não há onde e o que projetar. A mãe (ou a pessoa que cuida e acolhe)
representa uma proteção contra os estímulos
transbordantes, especialmente na época da
representação de coisa, isto é, as representações anteriores à palavra.
Portanto, parece-nos importante essa
análise das condições de nosso personagem
do filme O contador de histórias, o Roberto,
que, desde muito cedo, teve que lidar com
situações de desamparo, separações e abandonos em seus vínculos, o que, consequentemente, afetou seu processo de identificações.
Os vínculos, por anos seguidos, se mostravam escassos, inconstantes, violentos e com
pouco investimento do outro. Os profissionais da instituição tratavam cada criança
como uma a mais, e não como ser humano.
Ainda seria possível confiar em outra pessoa? Apesar de todas essas situações, algo
em seu mundo imaginativo e criativo estava
indicando para algumas possibilidades, mesmo que as potencialidades de aprendizagem
estivessem rotuladas como sem alternativa
alguma. Qual a importância da atitude e do
papel da pesquisadora na vida de Roberto?
96
A relação de Marguerit com Roberto pode
ser comparada com a função psicanalítica de
continência, usando a capacidade reverie, as
funções materna e paterna, a confiança e o
respeito?
A pesquisadora continente
A relação de Marguerit e Roberto, após
o tempo do estabelecimento da confiança,
vai modificando a tomada de consciência de
cada um. Descobrem-se gostos, interesses
e limites de cada um, embora, no início, o
medo recíproco ficasse manifesto, mas não
nomeado. A possibilidade de Roberto contar a sua história e escutar parte da história
da pesquisadora fez com que as duas realidades se aproximassem cada vez mais. A
leitura da história do personagem Capitão
Nemo, de Júlio Verne, escrita no século XIX,
foi outro momento marcante nessa relação
de estabelecimento do vínculo e nas identificações. Roberto escuta falar de um mar
profundo e desconhecido, dominado pelo
Capitão Nemo, que vence todos os obstáculos possíveis desse mar. Aliás, a contação
de histórias é um recurso terapêutico milenar. A psicanálise se utiliza há muito desse
recurso, principalmente quando se trata da
análise com crianças. “Narrar é antitraumático, porque cria vínculos e abre espaço para o
inédito” (GOLSE apud GUTFREIND, 2010,
p. 21). Em seu livro, Gutfreind (2010) defende que contar histórias, que podem ser pessoais ou contos infantis, de ficção, possibilita
o exercício da parentalidade, que está ligada
à transmissão de narrativas, a um projeto de
vida e a um sentido da existência.
Possivelmente os vínculos de Marguerit e
Roberto aos poucos foram se intensificando
com o convívio, com a gravação da contação
de histórias, com a aprendizagem da leitura e
da escrita. Os dois idiomas igualmente marcaram a relação: Roberto ensinando algumas
palavras e gírias brasileiras, e Marguerit ensinando francês. Com o passar do tempo, esses
dois personagens foram nascendo para um
novo mundo:
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O contador de histórias: vínculos e identificações
O verdadeiro nascimento não é o biológico. Ele
é afetivo, no desejo maternal, primário e doido
de construir o vínculo. E, depois, com os afetos nas ventas, é que vem a tentativa cultural
de acolher esta sandice maravilhosa (GUTFREIND, 2010, p. 64, grifo nosso).
Parece-nos que, assim como Roberto foi
tomando consciência da vida e da natureza humana, a humanidade teve o seu momento, em que o homem tomou consciência
de si mesmo. Considerando a consciência
mítica uma consciência comunitária, há
uma relação entre o individual e o coletivo. Para Bion (apud ZIMERMAN, 1995),
a produção imaginária coletiva contida no
mito equivale à fantasia inconsciente individual. Em seus estudos, utilizou os mitos
de Édipo, do Éden, da Torre de Babel, dos
Funerais do Rei Ur, da Morte de Palinuro
e os vinculou ao conhecimento, ao amor e
ao ódio (K-L-H). O vínculo emocional entre
mãe e bebê não poderia ser só de amor (L)
e de ódio (H), faltava o desejo da mãe em
compreender/conhecer (K) as necessidades
do bebê, bem como o que Bion denomina
de capacidade de reverie.
O personagem Roberto, mesmo com o
diagnóstico de “caso irrecuperável”, aprendeu a ler e a escrever. Isso sugere que teve
uma mãe (a pesquisadora) que soube dar
as respostas nos momentos adequados. As
angústias do encontro inicial foram suportadas, desintoxicadas e canalizadas, como
uma “mãe suficientemente boa” sabe fazer.
A capacidade reverie da mãe é básica para a
estruturação do psiquismo e para as futuras
aprendizagens da criança. Se essa capacidade
[...] for adequada e suficiente, a criança terá
condições de fazer uma aprendizagem com as
experiências das realizações positivas e negativas impostas pelas privações e frustrações
e, nesse caso, ela desenvolve uma função K,
que possibilita enfrentar novos desafios em
um círculo benéfico de aprender com as experiências, à medida que introjeta a função
K da mãe (BION, apud ZIMERMAN, 1995,
p. 112).
Quando a capacidade reverie da mãe de
acolher, receber, conter, significar, decodificar e nomear for insuficiente, as angústias
que a criança projeta na mãe voltam a ela
como um terror sem nome, o que aumenta
as angústias e impede a introjeção de uma
função K (conhecer/saber). O aprender e o
conhecer necessitam da formação de símbolos, que, por sua vez, permitem à criança
conceituar, generalizar, expandindo, assim,
seu pensamento e conhecimento. Para Bion,
a capacidade de formar símbolos depende
[...] da capacidade do ego em suportar perdas
e substituí-las por símbolos. A capacidade da
criança em suportar perdas, por sua vez, depende do fato de ter havido a passagem da
posição esquizoparanoide para a posição depressiva (BION apud ZIMERMAN, 1995, p.
114).
Bion introduz em seus estudos a noção da
capacidade de reverie a partir de uma mãe
real, uma mãe para conter o bombardeio
de identificações projetivas da criança. A
capacidade de tolerância da criança em relação às frustrações depende de suas “inatas
demandas pulsionais excessivas”, bem como
da “mãe real externa”. Salienta que “esses
dois fatores são indissociados e constituem
o modelo de Bion de ‘continente-contido’, representado pelos símbolos e ” (ZIMERMAN, 1995, p. 91).
A função de conhecer/saber significa tomar consciência da realidade sobre si mesmo, da natureza, do mundo e, em cada experiência emocional, chegar a uma aprendizagem e a um novo conceito. A esse processo
Bion (apud ZIMERMAN, 1995) chama de
“pulsão epistemofílica ao conhecimento das
verdades”, que pode se dar em diferentes planos, por exemplo, conhecimento pessoal,
dos outros, diferentes vínculos dos grupos
entre si, etc. Em O contador de histórias, Ro-
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O contador de histórias: vínculos e identificações
berto teve a sua segunda chance de (re)construir, em seus vínculos, esses três conceitos
fundamentais descritos por Bion: do amor,
do ódio e do conhecimento, dando um novo
sentido e significado a sua vida, uma vez que
a pesquisadora Marguerit pôde ser continente às angústias e ao ódio expressos em diferentes momentos. Marguerit soube dosar suficientemente as funções materna e paterna.
Ou seja, a função materna com a acolhida,
a proteção, a confiança; a função paterna no
estabelecimento e no cumprimento de regras
e limites.
Considerações finais
O ser humano precisa, com frequência, buscar conhecer a sua história, encontrar algum
argumento, alguma palavra que explique o
porquê do fenômeno que o assusta e o que
lhe parece desconhecido. Nesse sentido, a
humanidade tem criado mitos, histórias e
contos de fadas. Bettelheim (1980) diz que
os mitos são respostas taxativas, enquanto
os contos de fadas são respostas sugestivas.
O mito explica a realidade que ainda não foi
justificada pela razão. O mito, mais do que
explicar a realidade, tem a função de tranquilizar e acomodar o homem em um mundo desconhecido e assustador.
As histórias infantis e os contos de fadas deixam à fantasia da criança um espaço para encontrar soluções e para aplicar a
si o que a história tem com a sua vida. Enfim, as soluções são dadas, mas não soletradas. Gillig (1999) refere que, nos contos de
fadas, os monstros e as bruxas representam
personagens temíveis que são as projeções
imaginárias dos fantasmas que a criança traz
consigo: medo de ser devorado, medo de ser
abandonado por seus pais, medo da rivalidade fraterna. Os contos de fadas são importantes para a criança lidar melhor com suas
angústias, projetando-as nessas histórias,
podendo se identificar com os heróis. Além
disso, oportunizam à criança um material
imaginativo, onde buscará imagens e ideias
para lidar com seus conflitos internos, po98
dendo traçar as fronteiras entre a fantasia e
a realidade.
Como bem o salienta Gutfreind (2010),
que realizou suas pesquisas de mestrado,
doutorado e pós-doutorado na França, com
crianças de abrigo e com crianças que tinham família, destacamos a importância da
contação de histórias infantis e das narrativas na constituição da subjetividade. Gutfreind (2010) destaca autores da psicanálise
que percebem no conto um potencial para o
contato com os mais profundos afetos, vínculos e identificações, apontando que Freud
e psicanalistas contemporâneos atribuem ao
conto uma função organizadora do psiquismo. Ou seja, nós nos constituímos de nossas
histórias, de nossas narrativas.
Nosso protagonista Roberto, ao contar a
sua história, em suas narrativas, bem como
em seu apaixonamento pelas profundezas
oceânicas, a partir da história do personagem Capitão Nemo, se tornou um contador
de histórias. E essa possibilidade narrativa
nos remete ao outro, o da escuta; contam-se
histórias para alguém que nos reconhece, alguém que não só ouve, mas alguém que escuta. A experiência analítica em sua essência
é o poder se fazer narrativa, se tecer, se fazer
texto, se fazer sentido, se contar, fazer e se fazer história.
Abstract
This essay intends to examine the concepts of
identification and bonds included in the human psychic constitution. To illustrate this
psychic constitution, we are going to use some
life fragments of a six years old boy, who was
left behind by his mother at FEBEM (State
Foundation for Children Welfare), in 1978. A
real situation reproduced by the 2009’s Brazilian film ‘O contador de histórias’ (The Storyteller). Besides the history of the boy, we are
going to analyze the researcher pedagogue’s
role, performing the functions of mother and
father, which is continent in the moments of
hatred expressed by the boy and adopts him.
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O contador de histórias: vínculos e identificações
We are going to use psychoanalysis authors
such as Freud, Winnicott and Bion, and the
ones that make a rereading of them, as, for
example, Gutfreind, Nasio and Zimerman.
MCDOUGALL, J. Teatros do corpo: o psicossoma em
psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Keywords: Bonds, Identification, Psychic
constitution, Psychoanalyzes.
PICHON-RIVIÈRE, E. Teoria do vínculo. São Paulo:
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O contador de histórias: vínculos e identificações
S ob r e Os au tor e s
Luís Antônio Franckowiak Pokorski
Graduado em Filosofia. Professor de História
e Filosofia no Ensino Médio. Formação no Círculo
Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Doutorando
em Psicologia Social
(Universidad Argentina J. Kennedy).
Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico
do Rio Grande do Sul. Psicopedagoga.
Mestre em Educação pela PUCRS.
Doutoranda em Psicologia Social
(Universidad Argentina J. Kennedy).
Professora Adjunta de Graduação
e Pós-Graduação da Faculdade Porto-Alegrense.
Endereço para correspondência
Av. Assis Brasil, 3532/1012
91010-003 - Porto Alegre/RS
E-mail: [email protected]
[email protected]
100
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O outro da dor
O outro da dor
The partner of the pain
Ricardo Azevedo Barreto
Resumo
Com o objetivo de humanização da assistência, o autor debate sobre algumas concepções da
abordagem psicanalítica acerca da denominada “dor física” do ser humano, sua diferença da
“dor mental” e enfatiza que é questionável falar da dicotomia entre as dimensões física e psicológica da dor. Compreende que a dimensão psíquica está presente na “dor física” do paciente,
e os efeitos do inconsciente podem ser analisados por um psicanalista na equipe de saúde,
quando houver indicação.
Palavras-chave: Psicanálise, Dor, Inconsciente, Humanização, Saúde.
Os fenômenos dolorosos não se restringem
aos seres humanos. Os enigmas da dor são
muitos, assim como se constituem inúmeras
as expressões da experiência dolorosa. Por
exemplo, há quem fale da satisfação com a
dor em si ou o sofrimento próprio, uma espécie de enamoramento. Existem ritos em
diversas culturas humanas que envolvem situações dolorosas. Ocorrem diferentes transtornos psíquicos ou experiências subjetivas
relacionadas à dor. Sinal vital, a dor tem função para a sobrevivência e a adaptação, assim
como pode ser reconhecida em pinturas do
ato de morrer.
Existem muitas formas de a experiência
dolorosa se delinear: dor do parto, cefaleia,
fibromialgia, dor do membro fantasma. A
dor tem inúmeras classificações (central,
periférica, aguda, crônica), pode ter relação
com várias dimensões da existência, como a
alimentação e o estresse, e ser compreendida por múltiplos enfoques. Ainda hoje é comum falar de “dor física” por meio de uma
visão organicista, o que é distinto de uma
compreensão biopsicossocial da dor. Nas reconhecidas modalidades físicas dos fenômenos dolorosos de um ser humano, a psique
está presente, e seus efeitos inconscientes
podem, nos casos indicados, ser acompa-
nhados e trabalhados pela escuta de um psicanalista na equipe de saúde com o intuito de
humanizar a assistência.
Nas publicações especializadas em saúde,
predominam as concepções médicas da dor.
Para a Associação Internacional para o Estudo da Dor, a dor é “uma experiência sensorial
e emocional desagradável, que é decorrente
ou descrita em termos de lesões teciduais”
(TEIXEIRA, 2001, p. 329). Contudo, a culpa e as diferentes expressões de sofrimento
psicológico ou da “alma” não se excluem do
campo das dores humanas, quando os norteadores são as concepções da psicanálise,
da filosofia, da teologia, etc. De acordo com
Dallenbach apud Andrade (1998), Aristóteles concebe a dor, ao lado do prazer, como
uma paixão da alma; além disso, a dor pode
ser considerada um castigo ou uma redenção
no catolicismo.
Freud não tece sistematicamente uma discussão sobre a dor física. Sobre tal temática,
ele fala em Projeto para uma psicologia científica. Aborda a noção de barreira protetora
e menciona a penetração dessa barreira por
sensações físicas, ocorrendo a experiência de
desprazer, relacionando a sensação a traços
de memória (GRZESIAK; URY; DWORKIN,
1996). No mesmo texto, ao se referir à dor,
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O outro da dor
Freud (1990) fala da irrupção de grandes
quantidades no sistema neuronal. Comenta
também a relação entre dor e interrupção de
continuidade, assim como a tendência contra a elevação da tensão e a fuga do sistema
nervoso da dor, entre outros aspectos.
No Rascunho I, Freud (1990, p. 300) faz
uma referência à enxaqueca, vista economicamente por meio da perspectiva da sexualidade: “efeito tóxico produzido pela substância estimulante sexual quando esta não
consegue encontrar descarga suficiente”. No
Rascunho G, Freud (1990) aborda a melancolia e fala de “uma retração para dentro”,
que atua de modo inibidor, estabelecendo
uma analogia com a dor.
Destaque-se que o conceito de barreira
protetora não se mantém fundamental na
psicanálise, mas é importante ao reconhecer o papel da memória da dor do passado
(GRZESIAK; URY; DWORKIN, 1996). Em
Inibições, sintomas e ansiedade, Freud (1990)
aprofunda sua visão. Ao abordar “ansiedade,
dor e luto” nos adendos desse texto, Freud se
refere à “dor interna mental” e à “dor física”.
É significativo o assunto: dor da perda do objeto, dor com estimulação periférica na pele,
dor proveniente de um órgão interno. Freud
acentua a diferença do “sentimento de perda de objeto” das dores oriundas da pele e
de um órgão interno. Arremata, em seguida,
que não é por acaso que se tenha construído
a ideia de “dor interna mental” e tratado de
modo equivalente “o sentimento de perda de
objeto” e a “dor física”, explicando a última
com base na noção de “catexia narcísica do
ponto doloroso.” Comenta que se sabe muito
pouco da dor e afirma:
O único fato do qual temos certeza é que a dor
ocorre em primeiro lugar e como uma coisa
regular sempre que um estímulo que incide
na periferia irrompe através dos dispositivos
do escudo protetor contra estímulos e passa a
atuar como um estímulo instintual [pulsional]
contínuo, contra o qual a ação muscular, que
é em geral efetiva porque afasta do estímulo o
102
ponto que está sendo estimulado, é impotente
[...] (FREUD, 1990, p. 196).
Cabral e Nick (1997) explicam que, para a
psicanálise, a dor resulta do excesso de “acumulação de afeto”. Comentam ainda que a
“dor psíquica” é funcional e sem a presença
do estímulo físico. Dantas (2013) reflete sobre a primeira grande dor, bem como a última dor, tomando como representações a
vida e a morte. Aborda também que o feto
tem aptidões para, de modo precoce, sentir dor física. Anna Freud (1968) pronuncia
que o ego não se defende apenas em relação
à “dor” proveniente de dentro, mas experimenta do mesmo modo a “dor” com origem
no mundo externo.
Para a medicina, a dor tem indiscutível
importância e deve ser avaliada e monitorada nas instituições de saúde. Contudo, a
perspectiva do psicanalista, quando ocorre
indicação de seu atendimento, é a da escuta de quem sente a dor: suas verbalizações e
lamúrias, seus afetos, seus gestos, seus atos,
seu silêncio... o inconsciente. No discurso
médico, os estímulos nociceptivos, os motivos biológicos da dor e a “dor física” são expressões comuns. No discurso psicanalítico,
a dor humana é igualada, às vezes, ao sofrimento, assim como o corpo pode ser compreendido em suas relações com a linguagem; o “sujeito” se depara com os estímulos
externos, contudo também com as ameaças
pulsionais, a conjunção de ambos.
Para o psicanalista, mesmo quando ocorre dano orgânico no ser humano, a carne
lesada tem uma “alma”, o que se percebe
sob diferentes manifestações da psique, por
exemplo, por meio do sentimento de culpa:
“O que eu fiz para merecer isso?” Nas experiências da denominada “dor física”, a pessoa
tem seus investimentos objetais empobrecidos. O mundo externo pode lhe fugir porque
está mergulhada em seu sofrimento, que a
endereça ao inconsciente, ao infantil e à sexualidade, entre outras nuanças. Para a psicanálise, o trabalho não é com a dor, alerta e
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O outro da dor
proteção do organismo, que o médico avalia
e monitora com muito cuidado, mas é com
os desfiladeiros da subjetividade, a pulsão, a
castração, a vida e a morte.
Em Além do princípio do prazer (FREUD,
1990), a ideia de escudo protetor atravessado por excitações de fora reaparece ligada ao
trauma e ao sofrimento físico. O conceito de
catexia é central. Além disso, nessa obra, há
a concepção de pulsão de morte, o que amplia a visão do funcionamento psíquico para
Freud.
[...] em Além do princípio do prazer (1920),
Freud destaca que existem tensões agradáveis.
Ele faz então intervir um fator temporal, ou
seja, que não se deve apenas considerar o nível
de investimento energético, mas também as variações desse investimento, seu ritmo, seu gradiente [...] (BOULANGER, 2006, p. 63).
Existem várias dimensões implicadas no
denominado “sofrimento somático”. A pessoa com “dor física”, bem como com “dor
psíquica”, se apresenta em estado de desamparo psicológico, que é importante que seja
reconhecido e trabalhado pelo psicanalista.
[...] o fato da causação periférica da dor física
pode ser deixado de lado. A transição da dor física para a mental corresponde a uma mudança de catexia narcísica para a catexia de objeto.
Uma representação de objeto que esteja altamente catexizada pela necessidade instintual
[pulsional] desempenha o mesmo papel que
parte do corpo catexizada por um aumento
de estímulo. A natureza contínua do processo
catexial e a impossibilidade de inibi-lo produzem o mesmo estado de desamparo mental [...]
(FREUD, 1990, p. 197).
Parece, por conseguinte, que os conceitos
de desamparo, catexia/investimento e narcisismo são algumas das pistas para os complicados enigmas da dor e seus desdobramentos por meio da escuta de um psicanalista. Fica mais complexo o assunto quando
se pensa nas diferenças entre dores aguda e
crônica, na causação periférica ou central da
dor, nas síndromes dolorosas e suas relações
com a história de vida das pessoas por elas
acometidas, na vivência do membro fantasma, entre outros temas relevantes ao estudo
dos fenômenos dolorosos pela psicanálise.
Existem diversos assuntos entrelaçados ao
se referir à dor. Em Luto e melancolia, Freud
(1990) aproxima luto de melancolia, ressaltando que, na primeira situação, está ausente
a perturbação da autoestima. Menciona que
a disposição para o luto é “dolorosa”. Por outro lado, comenta-se aqui: algumas pessoas
que se queixam de dor parecem enlutadas ou
até desenvolvem um quadro melancólico.
Não se pode falar de uma dicotomia entre soma e psique. A dor que o psicanalista
escuta fala de um ser humano que tem carne
e “alma”. Quem sou eu, dor? Essa é a travessia enigmática da perspectiva psicanalítica,
que considera os fantasmas mentais, “o inconsciente estruturado como linguagem”, o
desamparo, o investimento pulsional, a sexualidade, o narcisismo, a destrutividade, a
castração, o luto e a morte. Por outro lado,
enfatizar a particularidade de cada experiência de dor é reconhecer, por exemplo, que os
estímulos externos ou internos podem ter
uma importância maior ou menor em algumas situações, o que apresenta implicações
clínicas diversas, por exemplo, em relação à
indicação dos profissionais que irão compor
a equipe no atendimento ao paciente.
Na abordagem da histeria, Freud e Breuer
evidenciam que pode haver a apropriação
da dor somática pela neurose (GRZESIAK;
URY; DWORKIN, 1996). Seja ampliada tal
visão para a psicose e a perversão, o que será
posteriormente aprofundado neste texto.
Melhor, então, seria dizer: o fenômeno doloroso desenhado cientificamente como orgânico toma os caminhos da subjetividade e
a denominada “dor física”, porque assim foi
concebida por uma esfera do saber, borra-se
com o “sofrimento da alma” à escuta psicanalítica. Em tal perspectiva, a dor é única:
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O outro da dor
de cada “sujeito” singular com sua história.
No recorte teórico delineado, não se concebe uma “dor física” de um ser humano sem
ser reconhecido o sujeito da dor, sujeito esse
que desconhece em demasia de si e do outro/
Outro, sujeito, em parte, alienado pelo assujeitamento que o marca, às vezes, um “nãosujeito”.
Andrade (1998, p. 117) comenta:
[...] quando a dor evolui de um sistema de
proteção para o de um mecanismo defensivo,
sua finalidade passa a ser de auxiliar a evitar ou afastar sentimentos ou experiências
mais desagradáveis, como: culpa, sofrimentos
frequentes, impulsos agressivos, perda real ou
imaginária.
Como se depreende, o corpo é habitado
pela psique. A dor da carne também apresenta uma ferida anímica ou “dor da alma”.
Para além da temática da dor, Freud (1990)
menciona, inclusive, que alguns analistas
comunicam que a análise para a situação de
doenças orgânicas não é inauspiciosa, já que,
não de modo infrequente, uma dimensão
mental contribui tanto para a origem quanto
para a continuidade de tais doenças.
Roudinesco (2000, p. 9) afirma:
A psicanálise atesta um avanço da civilização
sobre a barbárie. Ela restaura a ideia de que o
homem é livre por sua fala e de que seu destino
não se restringe a seu ser biológico […].
Com base na psicanálise, abordar a temática da dor é complexo. Se Freud não faz
uma apreciação sistemática do que configura
como “dor física”, pensa sobre o infortúnio
das pessoas de modo muito consistente. A
partir do que ensina Freud em O mal-estar
na civilização (1990), indaga-se: não foi tamanho o sofrimento humano decorrente da
restrição das pulsões, dos desejos, que permitiu a construção da civilização? Por outro
lado, percebe-se que hoje algumas pessoas
“necessitam” (os desejos são sentidos como
104
necessidades) da felicidade plena, o que
constitui uma problemática para os seres humanos e seus laços sociais.
Aprofundando a reflexão, o romance familiar é fundamental numa perspectiva psicanalítica. Pode-se citar, entre outros pontos, a importância da travessia, ou não, do
complexo de Édipo, na abordagem do tema.
Com base em Quinet (2002), destaque-se
que, na psicanálise, o diagnóstico estrutural pode ser formulado pelos três modos
de negação do Édipo, que distinguem três
estruturas clínicas: no recalque, nega-se o
elemento, mas o conserva no inconsciente
(neurose); no desmentido, nega-se o elemento, todavia o conserva no fetiche (perversão), e a foraclusão, que é um tipo de
negação que não conserva, inexistindo vestígio ou traço (psicose). Afirma o autor: “Os
dois modos de negação que conservam implicam a admissão do Édipo no simbólico, o
que não acontece na foraclusão” (QUINET,
2002, p. 19).
Henriques (2012, p. 66) comenta:
Neurose, perversão e psicose, ao invés de representarem doenças, representam modos de ser,
portanto, esse diagnóstico não implica uma
patologização, antes denota uma possibilidade
existencial. Essas três estruturas clínicas definiriam modos de subjetivação, em função do
mecanismo psicológico predominante que as
caracterizaria: o “recalque” ou “recalcamento”
(Verdrängung) na neurose; a “recusa”, “renegação”, ou “desmentido” (Verleugnung) na perversão; a “rejeição” ou “foraclusão” (Verwerfung) na psicose [...]
Reconhecendo essas três estruturas clínicas, não se pode deixar de considerar que o
modo de lidar com o que se concebe como
“dor física” pela medicina vai variar conforme a modalidade clínico-estutural da subjetividade do ponto de vista psicanalítico. A
investigação da estrutura clínica e seu manejo no ofício dos psicanalistas são, portanto,
de indiscutível importância.
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 101–106 | Dezembro/2013
O outro da dor
Para a psicanálise, conhecer a dor de
alguém é um percurso a partir da escuta e
da sensibilidade da comunicação profunda
com aquele que se propõe ao autoconhecimento. O profissional não sabe a priori da
dor do outro, mas o escuta e possibilita que
o analisando se escute e se depare com os
efeitos do inconsciente. Desse modo, o psicanalista pode contribuir para a humanização da assistência em saúde. “A análise, sem
que seja um dispositivo de mera adaptação
social, trabalha potencializando os processos de subjetivação [...]” (BARRETO, 2013,
p. 110).
A análise não tem término em sua acepção mais ampla. Expressa Roudinesco (2000,
p. 150): “[...] Como revolução do sentido íntimo, a psicanálise tinha [tem] como vocação primária, por fim, modificar o homem
mostrando que “O eu é outro” [...]”.
Transmutação
A carne sangra
o verbo faz-se carne
a metamorfosear...
O verbo sangra
a carne torna-se palavra
a deslizar...
Carne e verbo sangram
unem-se
desataram-se algum dia?!
Bebe-se da uva
o melhor
o suco
o vinho...
Doce banquete
das metamorfoses
do cotidiano...
R icard o Azeved o Barreto
Abstract
With the goal of humanization of care, the
author discusses some conceptions of the
psychoanalytic approach about the so-called
“physical pain” of the human being, its difference from “mental pain”, and he emphasizes that it is questionable to talk about the
dichotomy between the physical and psychological aspects of the pain. The author understands that the psychic aspect is present
in the “physical pain” of the patient, and the
unconscious effects should be analyzed by a
psychoanalyst in the health team, when there is indication.
Keywords: Psychoanalysis, Pain, Unconsciousness, Humanization, Health.
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Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 101–106 | Dezembro/2013
105
O outro da dor
FREUD, S. Rascunho G. Melancolia (1895). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de
Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v. I.
FREUD, S. Rascunho I. Enxaqueca: aspectos estabelecidos (1895). In: Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Direçãogeral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
Imago, 1990, v. I.
*Uma parte dessas ideias foi apresentada pelo autor
anos atrás em Jornada Interna do Círculo Psicanalítico
de Sergipe (CPS).
R ecebido em : 1 0 / 0 9 / 2 0 1 3
A provado em : 1 6 / 0 9 / 2 0 1 3
SOBRE O AU TOR
FREUD, S. Dois verbetes de enciclopédia (1923). In:
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de
Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v. XVIII.
Ricardo Azevedo Barreto
Membro do Círculo Psicanalítico de Sergipe,
instituição filiada ao Círculo Brasileiro de
Psicanálise. Psicólogo pela USP. Mestre e doutor
(Área: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento
Humano) pela USP. Especialista em Psicologia
Hospitalar pelo CEPSIC da Divisão de Psicologia do
Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP.
Teve experiência de treinamento no Butler Hospital
(RI-USA). Editor da revista Estudos de Psicanálise
do Círculo Brasileiro de Psicanálise no biênio 20082010 e no biênio atual. Coordenador do Programa
de Humanização do Hospital São Lucas em Sergipe.
Professor titular da Universidade Tiradentes (UNIT),
onde ensina nos cursos de Psicologia e Medicina.
FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade (com os
adendos) (1926). In: Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v. XX.
Endereço para correspondência
Avenida Gonçalo Prado Rollemberg, 211/606 - São José
Centro de Saúde Prof. José Augusto Barreto
49010-410 - Aracaju/SE
E-mail: [email protected]
FREUD, S. Luto e melancolia (1917). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme
Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v. XIV.
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Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico
Alguns pensa-res sobre estados subjetivos
de desafio ao processo analítico
Some thoughts about subjective states that defy the psychoanalytical process
Stetina Trani de Meneses e Dacorso
A pesquisa cientifica representa
a forma mais elevada de adaptação
ao princípio da realidade
atingida até o presente.
Ela [pesquisa científica] mostra, como todo o resto,
traços de desejos e de angústias inconscientes
na forma de cegueira para fatos importunos
ou de sua distorção pelo desejo de fazê-los coincidir
com o que se gostaria que fossem.
As forças do superego, a tradição, a autoridade do mestre,
o respeito a uma religião,
estão tampouco do lado da simples verdade.
Toda ciência conserva a marca de sua origem,
da influência pessoal dos mestres
pelos quais ela foi criada e desenvolvida,
da obediência cega ou da revolta das gerações recentes
perante seus predecessores.
SACHS, H. In: SAFOWAN, 1995, p. 102)
Resumo
O presente artigo trabalha com análise da difusão de terapêuticas e exigências do cuidar de
si, que produz consequências na clínica psicanalítica. A difusão da psicanálise produziu uma
cultura psicanalítica, que mesmo para aqueles que a contestam, é utilizada como um senso
comum. Através da observação de atendimentos clínicos e supervisão acadêmica, levantamos
hipótese sobre a forma de estar no mundo e no processo analítico com uma postura de desafio.
Nossa hipótese é que essa atitude é recusa em abrir mão de algo que sentem corresponder à sua
singularidade num mundo massificador de identidades.
Palavras-chave: Cultura psicanalítica, Desafio terapêutico, Cuidar de si, Sintoma, Identificação.
Introdução
O título do presente trabalho se refere a uma
situação que tem ocorrido com certa frequência na clínica. Não são situações que
podem ser analisadas como transferenciais
nem se referem a pessoas que foram em bus-
ca de tratamento contra a sua vontade. São
pessoas que vão em busca de alívio para um
sofrer. Sofrimento que reconhecem ser interno. Percebem seus conflitos psíquicos e suas
consequências em seu cotidiano. Já recorreram a vários especialistas, psiquiatras e psi-
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 107–112 | Dezembro/2013
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Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico
cólogos, além de aconselhamentos; receitas
caseiras e rezas. Têm conhecimento vinculado ao Dr. Google; amigos/parentes psicólogos e/ou psiquiatras; livros de autoajuda;
artigos com “diagnósticos, prognósticos e
terapêuticas”. São antenados nas mudanças
tecnológicas e seu efeito na vida das pessoas.
Têm conhecimento das “descobertas cientificas”; novas patologias e seus respectivos
fármacos. Sem referência a um discurso com
vários termos técnicos, inclusive e principalmente, da psicanálise.
O que acabamos de expor é uma reunião
do discurso de várias pessoas, na faixa etária de 23 a 35 anos. Alguns já passaram em
sua infância por processo terapêutico; outros
têm uma história de frequência a vários consultórios, onde não ficam mais do que um
ano e meio.
Para começar a pensar alguma coisa,
acreditamos ser necessário fazer uma leitura
abrangente da consequência social — e, naturalmente, pessoal também — da difusão de
um saber sobre o sujeito. Vamos iniciar com
uma pequena exposição das diversas análises
sobre um lugar de hegemonia e/ou supremacia da psicanálise na contemporaneidade.
Cultura e difusão da psicanálise
Figueira (1981) analisa o contexto social da
psicanálise. O autor definiu uma cultura da
psicanálise, um fato social que ocorreu como
o pós-boom da psicanálise, sendo definido
por ele como uma difusão da psicanálise até
o limite da saturação. A psicanálise passou
a ser partilhada por um grande número de
pessoas de segmentos culturalmente dominantes. Essa Weltanschauung (Freud,
1932) psicanalítica circula através de um
dialeto de psicologismo, caracterizando-se
por um alto consumo de terapias e fundase na importância que as ideias e os termos
psicanalíticos assumiram enquanto mapa de
orientação para a vida cotidiana e familiar.
Paralelamente à psicanálise surgiram outras linhas terapêuticas. Na sociedade brasileira a teoria freudiana se tornou natural no
108
cotidiano das pessoas: sua raiva, violência,
ciúmes e idiossincrasias são entendidos e explicados sob essa ótica.
Podemos fazer uma breve análise dos antecedentes e propulsores dessa situação. A
sociedade brasileira que cresceu e se desenvolveu sob a visão positivista de A. Comte se
desorganiza quando a psicanálise começa a
ser divulgada em nosso meio. Uma desorganização aliada à angústia social, que crescia
em decorrência das mudanças de valores sociais, culturais e em relação ao pessoal.
A partir da década de 1970 essa modernidade sociocultural trouxe consigo liberdade
de opção e projetos pessoais. Se a mudança
de objetos de consumo pode ser feita prazerosamente, o mesmo não acontece com
modelos e ideais de família e identidade. A
consequência é o aumento da angústia que
dispara um processo de demanda para que
se resolva algo que é da ordem do invisível,
do individual e do subjetivo. Agora o importante é o desejo individual como algo subjetivo e definidor da identidade e singularidade.
Estava instalada a cultura psicanalítica (Figueira, 1981).
Em 2001 Santos publica Quem precisa
de análise hoje?, onde aborda as mudanças
ocorridas nas subjetividades com o processo
acelerado da modernidade. Anteriormente o
trabalho não atropelava a vida pessoal com
suas funções. O trabalho fazia parte da vida.
Os valores que vigoravam eram os tradicionais com ideias conservadoras nas relações
homem/mulher. Os sentimentos eram vistos
como algo próprio, privado e inacessível ao
olhar do outro. Os sentimentos eram considerados individuais e, ao mesmo tempo,
típicos e universais. Os indivíduos deviam
se harmonizar com aquilo que se esperava
deles. Aptidões, vocações e desempenho no
mundo externo eram apresentados de maneira a excluir a elaboração de um desejo
singular. A modernidade trouxe consigo a
liberdade de opção e projetos pessoais.
Sobre os questionamentos teórico-práticos dirigidos à psicanálise, inclusive no
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 107–112 | Dezembro/2013
Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico
interior das universidades, onde ocorre sua
transmissão acadêmica, Santos (2001) constata que não impedem a sua difusão; pelo
contrário, a mantêm nos meios de comunicação. Existe uma fala psicanalítica cotidiana
que serve como suporte explicativo para vida
amorosa e sexual, conflitos e rupturas no casamento, questões com filhos, amigos e patrões.
Um ano antes, em 2000, Fridman escreveu que a pós-modernidade não se limita a
uma atmosfera cultural. Trata-se de um conjunto de mudanças nas configurações institucionais contemporâneas que se estendem
ao trabalho, às narrativas, à produção estética, à subjetividade e à política. Essas mudanças foram acentuadas pelas transformações
ocorridas na tecnologia, durante as últimas
décadas. Fridman aborda as subjetividades
sob a ótica de elementos que contribuem
para com o sentimento de identidade. Tradicionalmente a família, a religião e a raça
é que forneciam ao sujeito o sentimento de
“ser completo”. Hoje cada pessoa tem a tarefa de autoconstituição, e a identidade traz
a marca da transitoriedade. A vida se torna
errática pela multiplicidade e pela fluidez
de valores, projetos, desejos e renúncias. A
autenticidade e o senso de interioridade se
partem em vivências desagregadas. As pessoas se veem impelidas a fazer escolhas entre as novidades ininterruptas do consumo.
A plasticidade do eu é passaporte para viver
êxtases de experiências e sensações que nunca são as últimas.
A disseminação da psicanálise na forma
de uma cultura levou as pessoas a acreditar
que o enfrentamento e o sofrimento decorrentes do aprofundamento interno as levariam a uma situação de bem-estar, harmonia
e liberdade. O não comprimento desse imaginário falsificado provocou a descrença na
psicanálise.
Na clínica...
Não tenho vontade de fazer nada, só dormir,
nem ir para as aulas... Já fiz terapia muito tem-
po, quando criança. Estou indo no psiquiatra
tem uns 3 anos, minha mãe fica muito nervosa, manda eu rezar... Mas eu tenho muita
preguiça, nada é interessante. Sou bipolar, você
precisa resolver isto, será que você consegue?
Já estou assim tem tanto tempo! (Sorri de lado
quase irônico, se anima e curva para frente na
cadeira) Rapaz de 22 anos cursando Comunicação.
Fazendo parte de todo esse contexto contemporâneo exposto de forma tão sintética,
estamos nós... Exercendo nosso oficio, recebendo demandas nem sempre claras. Mais
do que nunca se torna necessário ampliar
nossa escuta e nosso olhar para o que emerge e, se possível, com a mesma interrogação e
curiosidade de nossos antecessores.
Colegas têm produzido, e nós também,
sobre o novo sujeito, os novos sintomas e as
novas demandas. Todos somos convocados
a pensar sobre aqueles que nos chegam à clínica. Muitas vezes, o longo tempo no exercício desse ofício provoca intervenções sem
que paremos para teorizar sobre o nosso ato
analítico.
Mas a clinica e, para muitos de nós, também o mundo acadêmico nos impulsiona
constantemente a construir hipóteses sobre
nosso obrar. Mesmo estando cercados de
diagnósticos do DSM-V, exigências de laudos e discursos medicalizadores do humano,
vamos nos ater neste artigo ao que nos chega
à clínica, aos discursos daqueles que sofrem
e solicitam uma solução “rápida!”.
Voltemos agora nosso olhar interrogativo para a clínica. Para as dinâmicas psíquicas que demandam uma “solução” para suas
questões. Pessoas na faixa de 20 a 35 anos
usam as pesquisas virtuais, redes sociais,
chats e todas as possibilidades de informação virtual para pesquisar sobre seu sofrer
psíquico. Seus sintomas, com diagnósticos
e medicalização, são somados às possíveis
explicações da razão desse sofrer. Percorreram consultórios de psiquiatras e experimentaram drogas com variadas dosagens.
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Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico
Também recorreram a colegas terapeutas
das mais diversas abordagens. Chegam e
nos relatam sua via crucis, nos olham desesperados e dizem “Você tem de resolver
isso”, citam o tempo que têm sofrido, os
tratamentos que não funcionaram e às vezes complementam com a palavra mágica e
imperativa: rápido!
Um sofrer que abarca tédio, angústia, desânimo, às vezes mesclado com uma culpa e
às vezes com uma frieza/isolamento afetivo
“não tenho tesão para nada, nem para transar”. Alguns tiveram episódios de ataques de
pânico, e todos frequentam ou frequentaram
consultórios médicos em busca daquele remédio que resolveria esse sofrer. Dosagens
são aumentadas, fármacos mudados, mas
os quadros permanecem com ligeiras mudanças. Assim, depois de uma longa estrada,
resolvem procurar um psicanalista, “quem
sabe, este tratamento resolve, já fui a tantos...” (ar de duvida e desafio).
Neste ponto, começamos nós a pesquisar, conversar com colegas, revendo antigos
escritos e primeiros mestres. E reencontrei
Medard Boss (1977), em Angústia, culpa e
libertação, quando descreve o quadro psíquico que analisa como “a forma da neurose do futuro imediato”: número crescente
de pessoas que se queixam da insensatez
vazia e tediosa de sua existência, pacientes
com uma fachada fria e lisa de um tédio vazio. Por trás dessa muralha gélida de sentimentos desolados de completa insensatez
da vida, está uma grande dose de angústia.
Um sofrer do tempo vagaroso. A análise de
Boss é que a raiz desse sofrer está ligada à
prepotência atual da tecnologia, pois leva
o ser humano a compreender e se considerar como uma rodinha no aparelho de uma
gigantesca organização social. Todo tédio
inclui um sofrer do tempo vagaroso, uma
secreta saudade de um enraizamento perdido. Frequentemente encobre seu próprio
sentido, utilizando-se do medo dominante
das atividades ininterruptas, diurnas, noturnas ou do embotamento das mais diver110
sas drogas e tranquilizantes. Porém, o autor pontua a singularidade de cada sujeito.
Cada angústia humana tem um “de que”,
do qual tem “medo” e um “pelo que”, pelo
qual ela teme.
Já fui a vários consultórios de terapia. Fiz muitas. O tempo de duração era de 6 meses a 1
ano. Nunca deu resultado nenhum... acho tudo
muito chato, não tenho vontade de fazer nada,
trabalho (empresa familiar) ganho bem, moro
com meus pais porque é mais confortável. Tenho um namorado de 2 anos, mas não estou
apaixonada. O sexo é mais ou menos, mas se
não tiver tá bom também, não tenho muita
vontade. Tenho a sensação de um paredão que
fico atrás, só olhando sem participar de nada.
Não aguento ficar repetindo a mesma coisa o
tempo todo, me cansa! Eu vim para ver se consigo ficar mais tempo em terapia, mas canso
logo... vamos ver. Este tédio é ruim, nada me
anima... (Maria, 30 anos, fisioterapeuta, 1,6
ano em análise).
Discussões não conclusivas
Sigmund Freud escreve em 1909: “A psicanálise não é uma investigação cientifica imparcial, mas uma medida terapêutica. Sua
essência não é provar nada, mas simplesmente alterar alguma coisa” (FREUD, 1979,
p. 112).
As pessoas, filhas de seu tempo, que nos
procuram exigem o “rápido”, o que necessariamente não significa que estejam disponíveis ao trabalho árduo da análise, mesmo
porque o “rápido” não combina com a psicanálise!
Acompanhando o pensamento de Boss,
faz-se necessário que cada sujeito possa ser
analisado no seu tédio e na sua culpa. A intervenção que possibilita que alguém saia
da posição de lamento não é a mesma que
servirá a outra pessoa. É uma demanda de
pessoas desanimadas, descrentes de que algo
possa ser feito. É esse olhar de solicitação
acompanhado de um desafio que tem me
provocado questões.
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 107–112 | Dezembro/2013
Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico
O desafio surge de tal forma que me parece totalmente “cego” a seu detentor, quando descreve sua peregrinação terapêutica,
seu sofrer e o tempo que padece desse mal.
Há um olhar e um meio sorriso como quem
dissesse: “quero ver você dar solução a isso”.
Não me parece o desafio de alguém que diz:
“vou te provar que sei mais” ou “quando
você achar que sabe, lhe destituo...”. É como
se diante de tanta dor, intervenções e explicações sobre seu sofrer, a tábua de salvação é
esse estado psíquico.
Assim, não sei se a questão é ficar discutindo se devemos ou não fazer um diagnóstico, “enquadrando”. Ou ficar no embate de
nos considerarmos como aqueles que possuem uma terapêutica mais eficaz. Ou, então, pensar de forma mais ampla: que nosso
obrar tem um lugar no mundo atual, e aqueles que nos demandam, o fazem a partir de
seu lugar neste mundo, com seus diagnósticos, suas falas definitivas, seus protocolos,
seus resultados imediatos.
Quando recebo essas pessoas, tenho
pensado cada vez mais em Michel Foucault
(1985) e sua definição de biopoder. Foucault
analisou sob vários prismas o poder, a criminalidade, a sexualidade, as ciências-humanas
inclusive a psicanálise. E em todas as análises
a preocupação não era apenas acadêmica;
era daquilo que se apresentava com força na
atualidade (BIRMAN, 2000). Intervenções
em todos os setores da vida para enquadrar,
diagnosticar e controlar. As singularidades
se perdem em prol de uma massificação disfarçada de pseudoliberdade e pseudopoder
decisório. Um saber sobre si e sobre o outro,
que recai naquilo que Freud já contestou:
“Psicanálise não é uma intervenção científica
imparcial” (FREUD, 1979, p. 112).
Questão que me ocorre: Será que esse estar no mundo, ao qual as pessoas se agarram
com ares de desafio, não seria a única coisa
que lhes resta num mundo tão intervencionista? Medicalizado e diagnosticado? Um
“saber” que não tem produzido como consequência um estar no mundo melhor consigo
mesmo.
Frente à rapidez de nosso mundo, com
exigências quase impossíveis de ser cumpridas e com intervenções em todos os setores
da vida humana, esse “adoecer” é sinônimo
de identidade! Essas pessoas percorrem todas as sugestões atuais de tratamento, se recusam a ceder um milímetro que seja de seu
sofrer! A doença é uma forma de resistência.
No lugar de um “saber de si” articulado
ao biopoder e a práticas intervencionistas,
a hipótese é trabalhar com um “cuidar de
si” (BIRMAN, 2000), onde essas formas de
tédio, cansaço e desânimo possam se apresentar e dizer algo, se assim o desejarem.
Sem se sentir ameaçadas de que o “saber de
si” lhes retire o que sentem ser sua marca
identitária.
E para que alguém possa talvez querer
sair desse lugar, é preciso suportar um tempo
para ocorrer outra ordem psíquica, se podemos assim dizer. A psicanálise, à qual essas
pessoas acabam recorrendo, me parece, é um
lugar onde sentem que, apesar de tudo, não
vai lhes tirar, não vai pressionar, enquadrar
naquilo que tanto prezam. Impasses e paradoxos em nossa clínica!!!
Abstract
This article deals with the analysis and dissemination of therapeutic self-care demands that
produces consequences in clinical psychoanalytic. The diffusion of psychoanalysis produced a Psychoanalytic Culture, even for those
who challenge it, which is used as a common
sense. Through observation of clinical cases
and academic supervision, we hypothesized
about the way of being in the world and at the
analytical process with an attitude of defiance.
The hypothesis is: the refusal to give up something they feel to match their uniqueness in a
world full of identity mass leveling.
Keywords: Culture psychoanalytic, Therapeutic challenge, Self-care, Symptom, Identification.
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Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico
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Recebido em : 1 0 / 0 9 / 2 0 1 3
A p r ovado em : 2 9 / 1 0 / 2 0 1 3
S ob r e a au tor a
Stetina Trani de Meneses e Dacorso
Professora Titular do curso
de Psicologia CES-JF/PUC Minas.
Membro Efetivo e Psicanalista
do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção RJ.
Mestre em Letras -Literatura Brasileira CES-JF.
Mestre em Psicologia-Psicanálise AWU-USA.
Membro efetivo do Espaço Brasileiro de Estudos
Psicanalíticos (EBP-RJ). Coordenadora da Formação
em Psicanálise SOBRAP-JF. Presidente do Círculo
Brasileiro de Psicanálise 2012-2014.
Endereço para correspondência
Rua Rei Alberto, 108/901 - Centro
36016-000 - Juiz de Fora/MG
E-mail: [email protected]
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Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 107–112 | Dezembro/2013
Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material
Das relações entre o empobrecimento psíquico
e o empobrecimento material
About the relations between the psychic impoverishment
and material impoverishment
Valéria Wanda da Silva Fonsêca
Resumo
Este artigo apresenta a pesquisa sobre as contribuições da psicanálise junto aos brasileiros
oriundos da população de baixa renda, pouco escolarizada e não familiarizada com o discurso
psicanalítico. Atualiza os questionamentos a respeito da prática da psicanálise: quais as contribuições da psicanálise nessa investigação? O tratamento dessas relações exige um analista avisado, sabedor do seu ofício. Não é uma prática para iniciantes. Nessa clínica as preocupações
freudianas são com a formação dos psicanalistas e com o tratamento, que precisa ser oferecido
nas instituições de analistas e ou financiadas pelo Estado, tal como um projeto público para
combater a tuberculose.
Palavras-chave: Psicanálise aplicada e pobreza; Pobreza; Pobreza e psicanálise, Brasil e psicanalise; Melancolia e pobreza.
A psicanálise: a responsabilidade social
Na pesquisa de doutorado (FONSÊCA,
2013) sobre os efeitos subjetivos da pobreza
material e consequências materiais do empobrecimento psíquico, uma proposta de
teorização em psicanálise sobre os complexos fenômenos que se entrelaçam: o empobrecimento psiquico e o material. Hoje testemunho à experiência de ter desenvolvido
um projeto de tese em teoria psicanalítica. E
isso só se fez possível porque o saber exposto traduziu uma experiência de articulação
subjetiva do desejo de saber sobre a castração, explicitado através da temática sobre os
efeitos subjetivos da pobreza.
A nossa responsabilidade clínica nos permitiu pesquisar e avançar no propósito de
delimitar quais as especificações teóricas da
psicanálise que precisariam ser analisadas
para aplicação nessa temática. Não somos
todos iguais. E a abordagem clínica dessa
população exigiu reflexões sobre estrátegias
de superação no que se refere a um modelo
funcionalista que reduz a complexidade e a
multidimensionalidade de tal fenômeno.
O olhar não pode ser ingênuo, o ideal
de verdade do conhecimento cientifíco não
coube nesse trabalho, e optamos por investigar e reunir os estudos da antropologia, das
ciências sociais, da filosofia, da literatura e da
Biblia sobre a realidade da pobreza brasileira.
São diversas as definições de pobreza. Todos
os pobres são iguais? Todos são deprimidos e
melancólicos? Não. Não é disso que falamos.
O objetivo da pesquisa foi delimitar a
aplicabilidade da psicanálise com brasileiros oriundos da população de baixa renda,
pouco escolarizada e não familiarizada com
o discurso psicanalítico. O acesso dessa população ao tratamento psicanalítico ainda é
restrito. Investigar a constituição do eu e as
consequências para os sujeitos no laço social
exigiu suspender a condição de generalizações das ciências sociais sobre a constatação
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Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material
de que a pobreza material está presente desde sempre na sociedade. Assim, foi possível
analisar e diagnosticar quem são os sujeitos
que experimentam os diversos estágios da
pobreza, inclusive os pobres que vivem entre
os ricos. Todos, que definimos como aqueles sujeitos que precisam ser protegidos pelas
benesses do Estado e ou das famílias abastadas, caso contrário padecerão de uma total
incompetência para gerir a própria vida.
A pobreza material
e o empobrecimento psíquico
A concepção de que a pobreza material tem
como um dos efeitos uma precariedade da
subjetividade, foi tratada nesta pesquisa com
muito cuidado e muitas restrições. Há um
fato sociológico que indica a desigualdade
social e econômica como fator embaraçador
e ou até impedidor de muitos brasileiros no
que diz respeito ao acesso a determinados
bens de consumo, inclusive saúde e educação. A psicanálise, ao pensar os efeitos subjetivos do laço social, afirma a importância
de tal relação, porém toma para si analisar
as especificidades de como cada sujeito se
constitui independentemente da classe social
a que pertence.
Questiona-se a possibilidade de a psicanálise afirmar sua hipótese sobre o conceito
de inconsciente e seus efeitos na subjetividade dos sujeitos que sofrem com a precariedade social e econômica. Cabe à psicanálise
demonstrar que o homem, ser de linguagem,
só pode ter acesso ao que é da ordem da necessidade, do Real, pelo viés do simbólico e
do imaginário. A oferta de cuidado proporcionada, em geral, pelas figuras parentais à
constituição dos meios para formulação de
demanda dirigida ao outro, outro do laço social atualiza o que é da ordem pulsional —
todos através da ação de cuidar, alimentar e
transmitir as regras do pacto civilizatório, ou
seja, exercitar a capacidade de amar. Desde
sempre, há que aprender a contornar os impasses mediante a experiência da castração e
da partilha dos sexos.
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Porém, em alguns sujeitos, a pobreza de
recursos sociais e econômicos para gerir a
própria vida em seu grupo social está associada à precariedade subjetiva e é o indício
de uma posição do sujeito com o seu desejo.
Ao atualizar a condição ser da falta, eles desmascaram também a precariedade do outro
social, que, por ser marcado pela castração,
geralmente vacila na transmissão simbólica
do saber o que fazer com a falta, que é constitucional.
Teorizando sobre o mal-estar da civilização, Freud reconheceu a gravidade da epidemia que se espalha: a miséria neurótica e
o empobrecimento material decorrentes da
dificuldade de muitos de aderir ao modelo
capitalista, à ciência e ao processo de individualismo que se desenvolviam. Freud declarou a contribuição que a clínica psicanalítica
poderia proporcionar a esses sujeitos da modernidade. Simultaneamente, registrou suas
preocupações com a formação dos analistas
para tal prática da psicanálise. Para ele, não
era uma prática para iniciantes, e sim, para
analistas experientes que, com o domínio da
teoria, poderiam se adequar ao necessário
ao tratamento que deveria ser oferecido nas
instituições de psicanálise e financiado pelo
Estado, tal como um projeto público para
combater a tuberculose. A descrença nos
ideais de mestria, encarnados em Deus e nas
figuras de autoridades da sociedade, significou para muitos o desamparo, o abandono e,
consequentemente, a ausência de proteção.
Freud demostrou que, desde as sagradas
escrituras até literatura em geral, o homem
vem se servindo das metáforas para testemunhar e narrar o valor do processo civilizatório no que diz respeito à estruturação e ao
funcionamento do aparelho psíquico. A expressão dos conteúdos conscientes e inconscientes só é possível a partir da instalação de
uma ordem simbólica, que se engendra no
campo da linguagem. Lacan verticaliza o estudo sobre as relações e as fronteiras entre a
psicanálise e a ciência. Apropria-se do modelo da banda de Moebius, a partir da ideia de
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Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material
um dentro e de um fora que se confundem,
para demonstrar a hipótese freudiana sobre o funcionamento do aparelho psíquico,
elaborando conceitos tais como conscientee inconsciente; enunciado e enunciação, e
o pressuposto teórico de que a consciência
moral é o cerne da realidade psíquica.
A satisfação pulsional não se submete à
lei e ao desejo. Faz-se necessária a instituição
de uma realidade moral, de crença em ideais
para que se controle a força pulsional que age
sobre o eu como um imperativo categórico e
que medie as experiências de privação e sofrimento desencadeadas mediante a realidade da castração.
O dinheiro, enquanto objeto fálico, passou a representar o poder que uns têm sobre
os outros, bem como representa o que há de
pior e ou de melhor no caráter das pessoas.
Ter ou não ter dinheiro, mais que o necessário, sempre foi sinônimo de prestígio e inteligência. Ser pobre era uma punição, que só foi
redimida, a partir da história de Jesus Cristo,
que era pobre e o filho de Deus.
Fora desse fato, ao longo da história, as rivalidades, os ódios e até os processos de destruição em muitas sociedades foram associados ao prestígio que o dinheiro daria, inclusive para corromper famílias e indivíduos na
sociedade. Mata-se por dinheiro, para ter o
que é do outro ou por se sentir menosprezado pelo fato de ter mais ou menos posses que
o outro no grupo social.
A psicanálise surge com a ciência e a modernidade. Do modelo patriarcal ao modelo
individualista temos no Brasil ainda uma longa caminhada, mesmo que as leis já tenham
sido alteradas. Alguns grupos instituem as
mudanças sociais, por conta das mudanças
de mentalidade. Mas não há milagres, todos
não mudam simultaneamente ou, melhor
dizendo, alguns nem percebem que o mundo está em movimento. E isso provoca um
descompasso entre os modelos familiares de
resolver os problemas e os orientados pelas
leis. Muitos grupos romperam com padrões
tradicionais de família, de trabalho, da rela-
ção com capital e com a diferença sexual,
e se perderam no âmbito subjetivo, no que
diz respeito à constituição de uma realidade psíquica orientada por uma consciência
moral. São muitos que testemunham a dor
de existir. Os graus diferenciados de pobreza material anunciam que milhões de brasileiros se sentem desadaptados e incapazes
de garantir a própria existência. Muitos não
reagem por se sentirem miseráveis e injustiçados no laço social e precisarão para sempre do amparo do Estado. Alguns outros,
tendo o apoio adequado, poderão se desenvolver e ter uma vida digna. E há ainda poucos que definitivamente sairão da pobreza,
pois através de outros fatores sociais conseguiram restabelecer vínculos amorosos que
recuperam a tessitura do eu, e sendo orientados para demonstrar sua competência
pessoal.
Reconstruímos a rota insistentemente
descrita nos últimos textos de Freud no que
diz respeito à constituição do Eu, indicação
que ressalta a hipótese de que ele tomou o Eu
como conceito central na sua obra.
Temos uma equação lógica: o quanto de
pressão das exigências pulsionais associadas
à precariedade dos recursos externos da civilização, que tem como consequência os diferentes graus de “debilidade” do eu.
Campo da ética:
satisfação das necessidades
— rede da linguagem — discurso
Para relacionar o empobrecimento do Eu e o
empobrecimento econômico e social, partimos do pressuposto de que toda ação humana, particularmente a satisfação das necessidades, se desenrola na rede da linguagem,
em discurso, e no campo da ética. O universo
simbólico é transmitido por meio dos enunciados primordiais, dos códigos e das leis. As
necessidades nunca se apresentam em estado
puro, uma vez que não se tem acesso à ordem natural. Elas precisam ser faladas e sempre perpassadas pelo desejo e pela demanda.
Para Lacan, o que tem status de necessidade
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Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material
e torna possível a existência do homem é a
diferença sexual: masculino e feminino.
A subjetivação da diferença sexual é decorrente dos (diferentes) diversos graus de
investimento libidinal nos objetos e do posicionamento do sujeito (mediante a referida diferença). O complexo de castração é o
motor da renegação, que institui o conflito
constitucional do Eu. Quanto maiores as
exigências pulsionais associadas à precariedade dos recursos externos provindos da civilização, maiores as dificuldades na eficácia
da renúncia pulsional e, consequentemente,
maior ‘debilidade’ do Eu. Essa precariedade
seria fator de adoecimento psíquico, presente nas neuroses, nas psicoses e na melancolia,
que tomamos nesta tese, tal como fez Freud
com os estudos sobre o sentimento de culpa
e o criminoso. A melancolia foi abordada detalhadamente na tese, pelo status que Freud
lhe conferiu — revelar a constituição do Eu
humano — o que lhe possibilitou definir
os limites entre o normal e o patológico no
que diz respeito ao investimento libidinal e
à escolha de objetos, e que a melancolia teria
como uma característica peculiar o medo do
empobrecimento. O desenvolvimento de tal
patologia foi associada ao descrédito na moral social, e a pobreza se alastra nas cidades,
tal como uma epidemia social.
Tais conclusões são resultantes de uma
pesquisa detalhada no texto freudiano. Resgatamos suas recomendações sobre a prática
da psicanálise junto aos pobres. Freud acreditava que a teoria psicanalítica, ao lado de
sua significação científica, apresentava seu
valor como procedimento terapêutico, e demonstrou as possibilidades de ajuda àqueles
que sofrem em sua luta para atender às exigências da civilização. Somos cientes da pertinência da psicanálise em auxiliar a grande
multidão, particularmente aquelas demasiadamente pobres para reembolsar um analista por seu trabalho. Trata-se de uma decisão
politica, particularmente em nossos tempos,
quando os estratos intelectuais da população,
sobremodo inclinados à doença mental, em
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geral, e estão mergulhando irresistivelmente
na pobreza.
Acrescentamos a leitura lacaniana do
contemporâneo, estudo que nos permitiu refletir que cuidados temos de ter na clínica,
na direção do tratamento. O limite da psicanálise reside no tratar do que está submetido à linguagem e, parafraseando Lacan, ter
o cuidado de não encher de sentidos e fazer
ideologias tal como as do mercado e ou da
religião, o que por muitas vezes é melhor calar. Saber que a estratégia do sujeito, que faz
do “seu corpo” um lugar do engano, da possibilidade de unidade ao atender a demanda
do Outro, inclusive do Outro do laço social
indica uma desconsideração, e até uma negação da castração. Que sujeitos são esses que
se encharcam de sentidos e fazem sintomas
que apontam um corpo mortificado pelo
significante, que mesmo que também atrelado ao simbólico, se orienta prioritariamente
pela via do imaginário, por um gozo fantasmático, um gozo com os objetos parciais.
São muitos excessos que os sujeitos expõem em seu corpo: pobreza, obesidade, alcoolismo, as drogadicções em geral, e uma
série de adoecimentos que exacerbam desafio entre a vida e a morte — campo de conflito da sexuação e da castração. Testam os
limites do “corpo vivo”, mesmo que o sujeito
afirme seu horror à morte. São milhares de
coisas que se passam num corpo e que não
se traduzem em sensações psíquicas. Para
Lacan, o humano não goza do seu corpo;
ele é uma representação imaginária, mesmo
que essa imagem dependa de uma amarração simbólica. Antecipadamente propomos
um resumo: a pulsão é a letra incorporada
ao soma, mas é através do sintoma que temos
acesso à sexuação. A pulsão como demanda
do impossível, só ao encontrar a castração,
é que pela via do desejo pode ser resgatada.
A disposição política dos analistas
Encerramos este artigo falando da proposta
inicial: quem é o analista que se preocupa
com as questões da constituição do laço so-
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Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material
cial? Problematizar a posição do psicanalista
— que transpõe os muros de seu consultório
e oferece sua escuta na cidade e nas instituições de saúde, escolares e jurídicas para estender os benefícios da experiência analítica
à população de baixa renda — é reconhecer
que há o risco de que tais práticas se coloquem a serviço de ideais opositores à civilização. Acreditamos, porém, que o investimento na formação e na análise sejam decisivos à abertura de espaços para a prática do
psicanalista com outros profissionais e, além
de possibilitar a verificação dos efeitos terapêuticos positivos, mesmo que o ato do analista não tenha, a priori, nenhuma garantia.
O eixo central da pesquisa está na formação do analista. Preocupações permanentes
relatadas nas obras de Freud e de Lacan.
Chamou-nos atenção a exigência que Freud
fez ao se referir ao tratamento da população
pobre, que fosse feito por analistas experientes. Declarou seu projeto de que se construíssem clínicas de psicanálise para atendimento
dessa população e que nessas instituições se
primasse pela formação dos analistas. Tal
exigência de formação foi considerada como
fundamental, pois seria a única proteção
possível contra o dano causado aos pacientes por pessoas ignorantes e não qualificadas,
sejam leigos, sejam médicos.
Abstract
The objective of this paper is to present research about the role of psychoanalysis with the
Brazilian population that has arisen from poverty, with low educational levels and which
is not familiar to the psychoanalytic discourse. We updated questions about the practice
of psychoanalysis: what are the contributions
of psychoanalysis to this investigation? The
treatment of this relationship requires an experienced analyst, knower of its craft. It’s not
a practice for beginners. At that clinical setting
the freudian concerns are with the academic
formation of psychoanalysts and the treatment itself. Those conditions need to be offered
at psychoanalytical institutions and or state
financed as it would be at a public project to
combat tuberculosis.
Keywords: Aplied psychonalysis, psychoanalysis and poverty, psychoanalysis in Brazil.
Referências
FONSECA, V. W. S. Os efeitos subjetivos da pobreza
material e consequências materiais do empobrecimento psíquico. Tese de doutorado, Programa de PósGraduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2013. 182 f. Disponível em: <www.psicologia.ufrj.br/teoriapsicanalitica>.
R ecebido em : 1 0 / 0 9 / 2 0 1 3
A provado em : 1 8 / 0 9 / 2 0 1 3
SOBRE A AU TOR A
Valeria Wanda da Silva Fonsêca
Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
Mestre em Letras UFJF. Especialista em psicanálise
Teoria e Clínica e em Psicologia Escolar e Infantil
CES-JF. Graduada em Psicologia UNICAP.
Representante do Conselho Regional de Psicologia
no Conselho Municipal de Assistencia Social
de Juiz de Fora/MG.
Endereço para correspondência
Av. Rio Branco 2721/1209 - Centro
36010-012 - Juiz de Fora/MG
E-mail: [email protected]
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Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion
Reflexões sobre a
“teoria do pensar”, de Bion
Reflection about the “theory of thinking”, by Bion
Waleska Pessato Farenzena Fochesatto
Resumo
O artigo surge em decorrência de uma reflexão sobre a teoria do pensar de Bion. A teoria
do pensar não se refere a uma função meramente cognitiva, mas fala da inauguração de um
espaço de autoria. Segundo Bion, a experiência de frustração vivida a partir de um aparelho
psíquico capaz de suportá-la origina um protopensamento, desenvolvendo então um aparelho
psíquico para pensá-lo. Em outras palavras, o pensar surge como uma solução para se lidar
com a frustração. A teoria do pensar possibilita um conhecimento sobre a formação do psiquismo, afinando a escuta para a aquisição da capacidade simbólica.
Palavras-chave: Teoria do pensar, Bion, Psicanálise.
Ao longo da formação psicanalítica entramos
em contato com a obra de alguns importantes psicanalistas que no decorrer do último
século vêm dando continuidade à obra de
Freud. Melanie Klein aprofundou o conceito de fantasia, deu ênfase ao mundo interno, introduziu a ideia de posição. Winnicott
descreveu fenômenos como a regressão à dependência, elaborou o conceito de mãe suficientemente boa, abriu caminho para a análise de pacientes difíceis. Em relação a Bion,
antes de iniciar as leituras sobre sua obra, já
conhecia sua importante contribuição acerca
dos fenômenos grupais. Mas, mesmo assim,
me questionava: Qual a originalidade de suas
contribuições? E foi dessa forma que pensei
em escrever sobre a teoria do pensar, elaborada por ele em 1962.
Segundo Zimerman (1995), no curso das
análises de psicóticos, Bion ficou fortemente tentado a se aprofundar nos problemas de
linguagem e nos problemas da origem e função dos pensamentos. Para tanto, se inspirou
nos postulados de Freud sobre o princípio do
prazer e da realidade, além de ter sido influenciado pelas ideias de Melanie Klein e Ferenczi.
Partindo de Freud, sabemos que o processo primário está ligado à satisfação imediata
das necessidades básicas portanto ligado ao
princípio do prazer, ao passo que o processo secundário está relacionado ao princípio
da realidade, o qual vai se impondo sobre o
princípio do prazer, gerando a capacidade de
adiar a descarga pulsional e abrindo espaço
para a capacidade simbólica.
Segundo Bion, a experiência de frustração
oriunda desse processo — também chamada
de experiência do não seio, vivida a partir de
um aparelho psíquico capaz de suportá-la —
origina um protopensamento desenvolvendo, então, um aparelho psíquico para pensá-lo. Em outras palavras, o pensar surge como
uma saída, uma espécie de solução para se
lidar com a frustração. Mas, se ao contrário
disso, a capacidade de tolerar frustração for
precária, o não seio ou o seio mau deve ser
expulso através do uso maciço de identificações projetivas.
Dessa forma, Zimerman (1995), ao explicar a teoria do pensar de Bion, coloca que, se
o ódio resultante da frustração não exceder
a capacidade do ego do lactante de suportá-
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Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion
-lo, o resultado será uma sadia formação do
pensamento através do que Bion denominou
de função alfa, a qual integra as sensações
provindas dos órgãos dos sentidos com as
respectivas emoções. No entanto, se o ódio
for excessivo, protopensamentos denominados por Bion de elementos beta — experiências sensoriais primitivas e caóticas que não
puderam ser pensadas — encontram saída
através do alívio imediato de descarga, o que
é feito por meio de agitação motora, atuações
ou somatizações, mas que sempre utiliza a
identificação projetiva como mecanismo.
Assim, de acordo com essa teoria, a consciência de si depende da função alfa. Claramente influenciado por Melanie Klein, Bion
coloca que é o êxito da posição depressiva que permite a formação de símbolos, os
quais substituem e representam todas as perdas inevitáveis do curso do desenvolvimento. Consequentemente, a formação de símbolos possibilita a capacidade de abstração e
criatividade, inscrevendo o sujeito no campo
do simbólico.
Bion extraiu o termo função do campo da
matemática e, segundo Zimerman, a equivalência entre ambos é que na matemática
função alude a um elemento variável que satisfaz os termos de uma equação, e do mesmo modo a função alfa representaria uma
incógnita à espera de uma realização para satisfazer-se. Assim, a função alfa, na teoria de
Bion, é a primeira que predominantemente
existe no aparelho psíquico. Ou seja, se o indivíduo tiver capacidade de tolerar frustração, é a função alfa que vai transformar as
primeiras impressões emocionais (prazer e
dor) em elementos alfa. Estes últimos, sendo
processados pela função alfa, abrirão passagem para os pensamentos oníricos, produção
de sonhos, memória e funções do intelecto.
Os elementos alfa é que darão origem ao que
Bion chamou de barreira de contato, tendo a
função de separar interno e externo, inconsciente e consciente, estabelecendo uma espécie de contorno e de alguma forma fornecendo ao sujeito uma sensação de integração.
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Os elementos alfa não são a experiência da
coisa em si, mas uma abstração e uma representação dessa, que enquanto se faz simultaneamente representada em ambas as formas
consciente e inconsciente, fornece à personalidade uma “visão binocular” da experiência,
de onde deriva o “sentimento de confiança” na
sua realidade (MELTZER, 1998, p. 73).
Os elementos beta, ao contrário, se proliferam de forma caótica e constituem o que
Bion chamou de pantalha beta, não possibilitando uma diferenciação entre consciente e
inconsciente, entre fantasia e realidade, não
permitindo a elaboração dos sonhos. Bion
(1994) mostra que nos pacientes psicóticos
prevalece a formação da pantalha beta, bem
como há uma prevalência da posição esquizoparanoide sobre a posição depressiva. Dessa forma, o pensamento adquire uma concretude, uma dureza, capaz de causar danos
reais e precisam ser expulsos imediatamente.
Não há possibilidade de simbolização. Referindo-se aos pensamentos que ainda não
adquiriram um sentido tampouco um nome,
Bion coloca que nos psicóticos predomina o
pensamento vazio, por isso nas situações de
angústia ele vem acompanhado de um estado
psíquico que ele chamou de terror sem nome.
Além das duas formações citadas — alfa
e beta, Bion coloca uma terceira forma possível de subjetivação que veio a denominar
reversão da função alfa. Trata-se de casos
em que a função alfa já opera no psiquismo,
mas, por alguma dor vivida em excesso, ela
recua e produz elementos beta, já diferentes
dos originais. Nesses casos ocorre uma regressão rumo a um pensamento concreto, o
que, segundo Bion, pode regredir ao ponto
de chegar ao nível da linguagem das sensações psíquicas corporais, como ocorre nos
distúrbios psicossomáticos.
Ao propor sua teoria, Bion entende o
pensar como um processo que depende de
dois desenvolvimentos básicos: o primeiro é
o dos pensamentos que requerem um aparelho mental que deles se encarregue, e o se-
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Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion
gundo é o desenvolvimento do aparelho que
inicialmente chamou de faculdade de pensar.
“O pensar passa a existir para dar conta dos
pensamentos” (BION, 1994, p. 128).
Isso significa que para Bion existe um
pensamento que é anterior à capacidade de
pensar e que denominou pensamento sem
pensador. O próprio autor diz que sua teoria
difere de qualquer teoria do pensamento na
medida em que considera o pensar um desenvolvimento imposto à psique pela pressão
dos pensamentos, e não o contrário.
Através do texto Uma teoria sobre o pensar, Bion classifica os pensamentos conforme
sua natureza evolutiva: pré-concepções, concepções e conceitos. Coloca que a concepção
inicia através da conjunção de uma pré-concepção com uma realização. Por exemplo,
quando o bebê é colocado em contato com
o seio real, a pré-concepção, que nada mais
é do que a expectativa inata por um seio —
conhecimento a priori de um seio, se une à
realização, dando origem a uma concepção.
Assim, as concepções estão associadas a uma
experiência emocional de satisfação. O termo pensamento é empregado por Bion para
se referir ao resultado de uma pré-concepção
com uma frustração. Seguindo essa lógica, o
pensamento vazio equivale a uma pré-concepção à espera de uma realização. Nas palavras de Bion:
O modelo que proponho é o de um bebê cuja
expectativa de um seio se una a uma “realização” de um não-seio disponível para satisfação.
Essa união é vivida como um não seio, ou seio
“ausente”, dentro dele. O passo seguinte depende da capacidade de o bebê tolerar frustração.
Depende de que a decisão seja fugir da frustração ou modificá-la (BION, 1994, p. 129).
E modificá-la nesse contexto é abrir caminho para o universo simbólico e, consequentemente, para a capacidade de pensar. O
pensar ao qual Bion se refere não fala de uma
função meramente cognitiva, mas da inauguração de um espaço de autoria que acon-
tece desde muito cedo. Realizações na teoria
bioniana, segundo Zimerman, consistem em
experiências emocionais resultantes de frustrações da onipotência do lactente e, por isso,
ele precisa se voltar para o mundo real (real-ização). Essa realização pode se desenrolar
de forma positiva ou negativa. Na realização
positiva há uma confirmação de que o objeto
necessitado está realmente presente e atende
às suas necessidades. Na realização negativa
o lactante não encontra um seio disponível
para a satisfação, e essa ausência é vivenciada com a presença de um seio ausente mau
dentro dele.
De acordo com a teoria de Bion, o surgimento da capacidade de pensar depende do
quanto de frustração o bebê tem condições
de suportar, e isso também tem relação com
suas inatas demandas pulsionais. Mas, além
disso, Bion afirma que a capacidade de tolerância do bebê em relação às frustrações depende também fundamentalmente da forma
pela qual o cuidador recebe suas identificações projetivas. É aí que introduz a noção
de capacidade de reverie. Reverie vem do
francês, significa ‘sonho’ e, segundo Zimerman (1995), designa uma condição pela qual
a mãe é capaz de captar o que se passa com
seu filho muito mais através de um estado de
sonho e intuição do que propriamente através dos órgãos do sentido. A mãe-reverie é
aquela que consegue acolher, conter e fazer
ressonância com o que é projetado dentro
dela, dando sentido aos elementos beta maciçamente projetados e devolvendo elementos alfa nomeados e significados. Bion parte
da noção de que todos nós temos a priori
recursos para desenvolver o pensar, por isso
diz que há um pensamento em busca de um
pensador. Entretanto, essa capacidade pode
ser desenvolvida ou não, dependendo também da capacidade de reverie do cuidador.
Considerações finais
A produção deste artigo foi uma tentativa de
responder à pergunta introduzida no início,
e ao término é possível constatar a impor-
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Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion
tância desse autor no campo psicanalítico. O
estudo da teoria do pensar possibilita um conhecimento sobre a formação do psiquismo
a partir dos postulados de Bion, afinando a
escuta para a aquisição da capacidade simbólica. Além disso, através dela, é possível
conhecer um pouco do Bion teórico. O Bion
psicanalista aparece claramente no texto Sobre uma experiência pessoal com W. R. Bion,
de Luiz Alberto Py, onde conta pormenores do seu processo analítico realizado com
Bion. Nesse artigo vemos um Bion bem-humorado, perspicaz e sensível na relação com
seu paciente.
A capacidade de pensar depende de uma
dose de frustração e aponta, mais uma vez,
como o nascer, o crescer e o viver são experiências dolorosas na sua essência. Assim
também é o processo analítico: doloroso, na
medida em que nos coloca exatamente numa
posição de consciência de nós mesmos. Por
outro lado, o processo de saber sobre nós mesmos nos permite maior flexibilidade diante
da vida, no sentido de desfazer nós e angústias que nos paralisam e nos aprisionam.
Por fim, também nós enquanto analistas
precisamos dispor da capacidade de reverie
conceituada por Bion, na medida em que nos
cabe conter a angústia e devolvê-la aos pacientes de forma que ela possa ser transformada e nomeada.
Abstract
This paper comes from reflection on the Theory
of Thinking by Bion. A Theory of Thinking
does not simply refer to a cognitive function,
but speaks the opening of a space of authorship. According to Bion, the frustration experienced by a psychic apparatus able to bear it
originates a proto-mental system which develops a psychic apparatus capable for thinking
it. In other words, the thinking comes as a solution to cope with frustration. The Theory of
Thinking enables an understanding of the formation of the psyche, tapering listening to the
acquisition of symbolic capacity.
Keywords: Theory of Thinking, Bion, Psycoanalysis.
Referências
BION, W. R. Estudos psicanalíticos revisados. Tradução: Wellington M. de Melo Dantas. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
MELTZER, D. O desenvolvimento kleiniano III. O significado clínico da obra de Bion. São Paulo: Escuta,
1998.
ZIMERMAN, D. Bion, da teoria a prática. Uma leitura didática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
R ecebido em : 0 8 / 1 0 / 2 0 1 3
A provado em : 2 9 / 1 0 / 2 0 1 3
S ob r e a au tor a
Waleska Pessato Farenzena Fochesatto
Psicóloga. Mestre em Ciências da Saúde pela PUCRS.
Candidata a psicanalista pelo Círculo Psicanalítico
do Rio Grande do Sul.
Endereço para correspondência]
Rua Dr. José Montaury, 325/107 - Centro
95330-000 - Veranópolis/RS
E-mail: [email protected]
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Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 119–122 | Dezembro/2013
O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência
O acompanhamento de adolescentes
em grande sofrimento psíquico:
distinguindo dois tipos de violência1
Monitoring of major psychological distress in adolescents:
distinguishing two types of violence.
Wilfried Gontran
Stéphanie Mousset
Marília Etienne Arreguy
Resumo
O texto discute a adequação dos sistemas de acompanhamento de adolescentes na França,
hoje, apontando sua desadaptação a um grupo de adolescentes caracterizado como “jovens
em conflito com a Lei”. Demonstra também, do ponto de vista metapsicológico, a existência
de duas formas de violência apresentadas pelos jovens, relacionando-as a dificuldades em diferentes etapas da estruturação psíquica.
Palavras-chave: Violência, Adolescência, Lei, Metapsicologia, Sistemas de acompanhamento.
O presente trabalho resulta da constatação
de que os sistemas de acompanhamento na
França, hoje, sejam educativos, sejam sociais, sejam psiquiátricos, não estão adaptados a um tipo de adolescente, ou melhor, a
um número crescente de jovens em conflito
com a Lei (ECA, 1990), que seguidamente recorrem ao ato (BALIER, 1988) de delinquir.
Sua problemática psíquica difere fortemente de outros jovens, também em profundo sofrimento. Entretanto, os dispositivos
que lhe são propostos são os mesmos: não se
pensa (ainda verdadeiramente) nas especificidades desses adolescentes, pois não se leva
em conta sua diferença modificando (oficialmente) o sistema de acompanhamento.
Este trabalho se caracteriza como uma
pesquisa que abrange estudos, debates e per-
cepções que enfocam realidades tanto próximas quanto dissonantes entre a França e o
Brasil no que concerne à tentativa de compreensão do sofrimento de adolescentes institucionalizados. Esperamos que possa trazer
esclarecimentos e mesmo demonstrações, a
fim de contribuir para as mudanças necessárias nas políticas de acompanhamento de
adolescentes.
Essa abordagem responde a uma exigência ética: manter as capacidades de acolhimento desses jovens que, se não se explica
melhor o que os anima, corre-se o risco de
consentir com as políticas que os rejeitam.
Exporemos, então, algumas reflexões que
são apenas premissas de um trabalho a aprofundar. Para isso, começaremos expondo
dois casos clínicos, redigidos pela colega Sté-
1. Trabalho apresentado e debatido na IV Jornada Subjetividade e Educação: conflitos com a lei e com a sociedade
- experiências políticas e clínicas, realizado em 17 de julho de 2013, na Faculdade de Educação da Universidade
Federal Fluminense.
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013
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O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência
phanie Mousset, psicóloga em duas casas de
acolhimento do Ministério da Justiça francesa, de uma equipe supervisionada por Wilfried Gontran há alguns anos. O primeiro
caso ilustra um primeiro tipo de ato violento
que desejamos explicitar, e o segundo, uma
segunda forma de violência, qualitativamente distinta da primeira.
Caso Samir
Samir, 15 anos, é a segunda criança de uma
fratria de três: tem um irmão mais velho e
uma irmãzinha. Ele tem outros meio-irmãos
e meio-irmãs mais velhos, saídos de um casamento anterior de seu pai. Seu pai e sua mãe
nasceram na Tunísia e têm 20 anos de diferença de idade. A mãe de Samir veio para a
França em seguida ao seu casamento. Samir
é um rapaz mais reservado, em que a atitude
em relação ao adulto marca uma contenção
e um respeito notórios, sem por isso impedir
sua autoafirmação. Ele não remete de modo
algum à imagem “adolescente”, provocativa
ou opositora de um jovem de 15 anos. Foi
interpelado por forças policiais por lhes ter
atirado projéteis e, em seguida, ter respondido verbalmente e fisicamente a sua intervenção. Esses fatos aconteceram durante manifestações estudantis. Ele reconhece os fatos
que lhe são atribuídos e não parece buscar
se livrar de sua responsabilidade. Pelo contrário, ele quase não chega a explicar como
pôde chegar a produzir tais gestos contra a
polícia. Samir reconhece sua desconfiança
geral contra as forças de ordem quando elas
patrulham seu quarteirão; uma desconfiança
que justifica pelo fato de já ter sido interpelado pela polícia quando não fazia nada de
errado.
Ele lembra também de casos de jovens
que teriam sido maltratados e insultados por
policiais embora eles não tivessem feito nada
de mal. Apesar de tudo, não é sob um tom de
ódio ou de um sentimento de injustiça que
Samir descreve seu ressentimento em relação
às forças de ordem, ou seja, aos aspectos normativos da sociedade. A palavra mais apro124
priada, segundo ele, é desconfiança. Ele diz
não saber qual trabalho deseja exercer, e não
estar particularmente entusiasmado por nenhuma formação. No entanto, após o último
ano do ensino fundamental [14 anos], considera a possibilidade de entrar no primeiro
ano de uma formação profissional em eletrônica. De modo geral, ele não revela nenhum
centro específico de interesse em seu lazer
nem um campo importante em sua vida ou
em seus valores. Samir diz reconhecer que é
um pouco preguiçoso, identificando o trabalho que poderia fazer em casa ou para ele,
mas frequentemente não tem bastante ensejo
nem energia para se propor objetivos e a eles
se prender.
Pode-se notar, no momento de uma entrevista feita na presença de seu pai, que Samir
não adotava, nessa circunstância, nenhuma
atitude de oposição nem de confronto face
ao discurso que seu pai lhe endereçava, mesmo diante das críticas, às vezes muito duras,
de seu pai (que exprimia toda sua cólera, sua
vergonha e sua incompreensão diante dos
atos praticados por seu filho), Samir não respondeu nem tentou se defender, nem iniciou
uma discussão com seu pai. Entretanto, sua
mãe assegura que dos seus dois filhos, Samir
é o que mais afirma sua personalidade, pois
seu irmão mais novo ousa menos ainda exprimir suas demandas ou aquilo que não lhe
agrada. Samir fez assim a escolha de seguir
os estudos em sua vida profissional, ao contrário de seu irmão mais novo e ao contrário
das expectativas de seu pai.
A mãe de Samir insiste muito sobre os valores da honestidade e da humildade, que ela
tenta inculcar em suas crianças. Ela coloca,
com efeito, como questão de honra, ganhar a
vida através do trabalho, desprezando aqueles que, segundo ela, “aproveitam das bolsas
sociais”. Ela sempre faz referência à injustiça social e à discriminação pelo emprego e
pela habitação, dos quais se sente vitimizada
enquanto mulher magrebina. Para os pais de
Samir, o confronto com a autoridade judicial
é particularmente doloroso e vergonhoso.
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013
O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência
Descrevem, com efeito, sua vida como
sendo guiada pelo trabalho, pela correção,
pelo respeito às leis e à nação (o pai serviu
ao exército sob a bandeira francesa na Indochina). Eles exprimem também uma certa
dor por não poderem usufruir de um reconhecimento social à altura dos esforços que
despendem principalmente devido às suas
condições de habitação.
Esperam também uma melhor posição
socioeconômica para seus filhos, graças aos
estudos. Ora, sobre esse ponto, o pai de Samir lhe diz que ele decepcionou suas esperanças e que o filho não é digno da chance
que lhe foi dada: poder ir à escola e aprender.
Observando os fatos que lhe são censuráveis,
os pais de Samir sustentam discursos divergentes sobre seu filho. Tanto sua mãe insiste
sobre seu caráter razoável e sério, quanto seu
pai o rebaixa em relação às expectativas escolares e pessoais que ele não preenche, repreendendo com agressividade sua imaturidade, sua negligência no trabalho e sua falta
de responsabilidade. O pai declara que sua
conduta em relação às forças de ordem mostram uma total idiotice, enquanto sua mãe
dá prioridade à injustiça social para explicar
o ato de seu filho.
O pai de Samir sublinha, por outro lado,
que nem sempre concorda com as decisões
educativas de sua esposa. Ele mesmo estaria
inclinado a dar menos autorizações para o
filho sair, tenderia a subordinar mais fortemente as compras que ele lhes pede para fazer,
exigir mais rigor nos trabalhos escolares, etc.
O pai tem a tendência nesse nível a repassar
para seus filhos as exigências de vida que ele
mesmo passou sendo jovem, depois adulto.
Após receber sanções socioeducativas por
seu ato transgressivo, Samir se beneficiou
de um prosseguimento educativo em meio
aberto (fora de uma instituição), antes de
passar pelo julgamento do caso. Nós não tivemos, subsequentemente, conhecimento de
novos delitos concernentes a ele.
Samir ilustra o primeiro tipo de ato de delinquência, o mais clássico poder-se-ia dizer,
no qual diríamos, antes de mais nada, ter a
significação de uma transgressão à lei. Poderíamos pensar numa passagem ao ato com
sentido de autoafirmação e de rebeldia por
justiça. Também tratar-se-ia de uma dificuldade particular no processo de inscrição no
laço social, dadas as dificuldades familiares
de inserção socioeconômica em outra cultura. Essa situação, do ponto de vista coletivo,
poderia por sua vez representar certa forma
de privação no nível familiar, que reverberaria numa resposta subjetiva de Samir aos
moldes de uma tendência antissocial, diríamos “normal”, tal como descrita por Winnicott (2000), ou seja, como reação a um ambiente parcialmente hostil, por ser filho de
estrangeiros vivendo de forma relativamente
precária na França.
Mas como considerar essa dificuldade? No
nível do desafio e da contraposição à autoridade. Para que se dê uma inscrição simbólica
das marcas singulares do sujeito na cultura,
seria necessária uma ultrapassagem da figura
paterna, que corresponde ao prolongamento,
à transição necessária da autoridade do pai
em direção à autoridade presente no laço social. Com o fato de transgredir a lei (social)
visando a questionar declaradamente sua
autoridade, tratar-se-ia, para o adolescente
desafiar a legitimidade autoproclamada pelo
pai, ou seja, uma autoridade à qual o adolescente não pretende mais continuar a se dobrar sem algumas explicações paternas. Em
suma, se para a criança trata-se do fato de
que o pai saiba pôr à prova sua autoridade,
para o adolescente tratar-se-á, no presente,
de que se dê conta de sua legitimidade para
exercê-la. Ora, de onde vem a autoridade do
pai? O que funda a lei? Aí está uma questão
que se impõe para os jovens, com qual os
pais em algum momento têm de se haver.
Inscrever-se no laço social, a título de um
indivíduo dito autônomo, quer dizer, responsável por seus atos, necessitaria então de
recolocar a questão da figura paterna tal qual
a criança a apreende, ou seja: é necessário
um pai falicamente potente, notadamente
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013
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O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência
capaz de satisfazer a mãe; um pai com o qual
qual a criança poderá se identificar para que
venha a adquirir sua própria potência fálica.
As lutas entre os pares, oriundas do ciúme,
significam nesse contexto, nem mais nem
menos que uma luta fraterna para vir a ocupar fantasmaticamente (FREUD, 1901) ou,
na falta de uma fantasia, de diferentes formas
na realidade (FREUD, 1996; LACAN, 1966)
— o lugar do pai (FREUD, 1996; LACAN,
1997, 1975).
O momento de o adolescente significar
que essa identificação não é suficiente (pois
o pai é carente para responder sobre o que
cada um deles tem de fazer de sua vida) é
realmente um momento de carência estrutural: o sujeito é só, vive sempre “abandonado”
pelo pai no que diz respeito ao que ele tem a
fazer de seu desejo; essa solitude incontornável é a base da crise adolescente.
Os atos de violência desse primeiro tipo,
que melhor chamaríamos de passagens ao
ato do adolescente, assinalariam que ainda
há de se fazer uma batalha contra o pai, às
vezes, sob o fundo de uma raiva contra ele.
Essa raiva se funda não tanto nas privações
de liberdade (de agir, de pensar, etc.) que o
pai exerce, mas no fato, bem oposto, de que
este fracasse a vir a apoiar, e quem sabe, a dirigir o adolescente até o fim, até seu acesso
à idade adulta. No entanto, espera-se do pai
que não nos acompanhe na idade adulta da
mesma maneira como quando éramos crianças, numa plena segurança confortadora. É
preciso confiar para permitir o amadurecimento do filho, deixando-o errar por si mesmo. Se essa confiança não é explícita, o filho
pode retaliar com seu ato transgressivo, de
modo a tirar do mundo (ou a jogar no mundo, pensando nos projéteis jogados por Samir) aquilo que supostamente marcaria sua
passagem ao status adulto, embora essa tentativa possa ser feita de maneira desastrada,
através de uma passagem ao ato no embate
com a Lei.
Nesse primeiro registro, o da transgressão à Lei, os atos de delinquentes represen126
tariam, em definitivo, um trabalho de luto
do lugar da instância paterna, realizando-se
sob a cena de um social que deve doravante
assumir o controle da autoridade. E, no contexto dos atos de delinquência, o trabalho de
luto não se pôde efetuar de outro modo, por
razões próprias do sujeito em questão, a não
ser no registro do agir.
Aqui, em contraposição à noção psiquiátrica clássica de “passagem ao ato”, também
representativa do que Lacan (1966; 1963a)
definiu como um curto-circuito pulsional,
deve-se precisar aquilo que, em psicanálise,
se chama acting out (LAPLANCHE; PONTALIS, 1995; MIJOLLA et al., 2002), a saber: a colocação em ato de uma verdade que
não se pode dizer, que não se pode formular
no discurso, mas que insiste continuamente. Apesar de não dita, a passagem ao ato
enquanto acting out aporta um endereçamento ao outro; não é gratuita e tem um
sentido, embora sua forma possa ser vista
a priori como equivocada no plano social.
Numa visada mais compreensiva e menos
interpretativa em psicanálise, o agir violento do adolescente tratar-se-ia de um resgate
da função positiva do trauma. Esse resgate
está ligado à passagem da passividade para
a atividade, incluindo os efeitos paradoxais
nas origens da identificação com o agressor
(FERENCZI, 2011).
O ato de delinquência é então pleno de
significação. E é nesse primeiro caso que o
trabalho educacional vai encontrar sua “aclamação”: naquilo que cederá lugar na França a um trabalho educativo fundado numa
grande instituição como a Proteção Judiciária da Juventude.2 Essas instituições seriam
2. É curioso citar que, desde 1945, o aprisionamento
em balneários para adolescentes ainda existe em um
país como a Rússia. Na França e no Brasil, tenta-se
avançar, mas ainda há muitos problemas quanto ao
reconhecimento versus o aprisionamento de jovens.
Há questões contraditórias para o exercício da clínica
psicanalítica nesse contexto, embora acreditemos que
isso não seja completamente impeditivo.
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013
O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência
similares às instituições socioeducativas no
Brasil, portando a contradição de serem ao
mesmo tempo um lugar de aprisionamento, portanto forçado e um lugar de cuidados
com a saúde psíquica e coletiva, cujo convite
ao laço com psicólogos, por exemplo, promoveria um vínculo com o social.
O trabalho analítico consiste, assim, em
extrair do ato de delinquência a verdade de
uma questão colocada ao pai, permitindo ao
adolescente elaborar sua questão em um outro registro que não seja aquele registro radical do agir. De modo que esse ato de endereçamento possa fazer um enlace simbólico na
relação com o outro, de início, o terapeuta.
Nesse primeiro caso, o ato de delinquência corresponde especificamente a um momento adolescente e, a esse título, só poderia
ser transitório, por pouco que o trabalho de
acompanhamento, tal como nós viemos a
descrever, traga seus frutos. Sem isso o sujeito pode confirmar sua inscrição em um
funcionamento delinquente, com a consolidação de uma defesa antissocial (WINNICOTT, 1956) como resposta figurativa de
uma postura de adulto que decide e faz, entretanto, cujas escolhas podem ser destrutivas em relação ao socius. Toda estratégia de
prevenção clínica reside na visada de desviar
o adolescente desta alternativa.
Assim, Samir talvez ilustre com o ato isolado de atirar o projétil contra um policial,
essa tentativa de entrar com força na sociedade, evidentemente uma entrada simbolizada
pelo fato de ser no belo meio dos estudantes,
ou seja, em uma sociedade aqui representada pelos agentes de força de ordem. Essa
sociedade é aquela que seus pais desejariam
tão ardentemente que ele integrasse para
além do que eles mesmos puderam realizar
na sua vida de imigrantes, vida com a qual
permanecem insatisfeitos. Samir, sem desejar, para se orientar em seu seio — e talvez
tomado por essa forma depressiva própria da
passagem pela adolescência — não chega a
afrontar suficientemente o pai, pois se apaga diante dele no lugar de chegar a lhe opor
um desejo que certamente não é o que o pai
idealizou para ele.
Esse caminho, do pai em direção ao social, é fonte de uma profunda angústia que
tenta ser resolvida com a passagem ao ato,
nesse movimento de extração do objeto (o
projétil). A partir dessa extração, o social o
interpela e pode ajudá-lo a puxar o fio das
determinações de seu ato lhe permitindo
elaborar através da palavra sua verdade inconsciente. Isso fará de seu agir um ato que
poderá assumir. Parece-me que o trabalho de
acompanhamento dos adolescentes em conflito com a lei, seja ele assegurado no quadro da Proteção Judiciária da Juventude, seja
em outro lugar, há que pensar, formalizar, de
agora em diante, também às vistas de um segundo tipo usual de violência. O caso Tom
ilustra talvez algumas dessas características.
Caso Tom
Tom tinha 15 anos e meio quando foi institucionalizado. Ele nasceu e viveu, até alguns
meses antes, sob outros trópicos. Órfão de
mãe desde 5 anos, cresceu na rua desde o
9 anos com alguns de seus irmãos mais velhos. Seu pai tinha então tomado a decisão
de deixar a região em que viviam e deixou às
crianças a escolha de segui-lo ou ficar. Procurado por diferentes ocorrências de roubo
e de violência, ele foi encarcerado aos 14
anos. Membros de uma gangue rival sendo
encarcerados na mesma prisão, ele decidiu
proceder em sua transferência para uma região parisiense de modo a se proteger da violência por um acerto de contas. Efetuou uma
primeira passagem pelo bloco dos menores
antes de ser finalmente transferido para um
estabelecimento penitenciário para menores.
Uma atenuação de pena foi, em seguida, colocada em andamento, através de uma colocação em família de acolhimento que durou
três meses. Nós o encontramos pela primeira
vez na detenção, justamente para levantar a
possibilidade dessa transferência.
Tom exprimiu que seu lugar não era ali e
que ele retornaria para a rua atrás da gangue,
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013
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O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência
pois não poderia proceder de outra forma.
Mas tendo sido encarcerado a milhares de
quilômetros da sua casa, quis assim mesmo
tentar a experiência de uma colocação numa
família de acolhimento. Tom pode dizer que
sua família era sobretudo a gangue, já que
conhece o grupo desde pequeno. Seu irmão
mais velho também faz parte da gangue. Tom
chega a anunciar que investir nas atividades
e projetos que lhe propomos seria uma forma de renegar seu pertencimento à gangue,
com quem permanece todo tempo ligado via
internet.
Durante sua colocação, soube que dois de
seus “irmãos” (de gangue) foram assassinados. Tom vive de modo muito violento o fato
de estar separado do grupo e de não poder
se associar a seus outros irmãos para vingar
sua morte. Observamos também que ele fixa
cada vez mais seu pertencimento em sua indumentária, pintando algumas de suas roupas com as cores associadas à gangue. Tom
porta também sobre seu corpo outras marcas de pertencimento através de múltiplas tatuagens. Durante os dois primeiros meses de
sua colocação, ainda que permanentemente
tensionado entre sua lealdade à gangue e à
família de acolhimento, demonstra um investimento positivo nas abordagens educativas empreendidas, assim como nas relações
com os adultos que dele se ocupavam.
Não cometeu nenhuma falta em relação
ao regulamento. Na família de acolhimento,
participa de certos trabalhos com boa vontade, chegando mesmo a gravar seu nome sobre a chapa de concreto de um atelier então
em construção. Às vezes, ele se permite dizer
que poderia muito bem permanecer lá por
dois anos, o tempo de aprender um trabalho.
Na casa, Tom investe particularmente
na atividade de música, na qual ele escreve
canções em memória de seus próximos que
estão mortos (sua mãe e seus irmãos da gangue). Chega a chorar enquanto nos faz escutá-las. Com a educadora encarregada da
inserção, ele evoca sistematicamente a morte
de sua mãe e lhe pergunta se ela crê em Deus.
128
Ele diz que não acredita mais porque passou por muitas coisas. Quando fala da detenção, descreve modalidades de relação aos
outros e às leis que se opõem ao que é esperado dele lá fora, pelos educadores. Ele diz:
“É preciso que você seja o mais forte. Você
não tem escolha, você se deixa bater quando
chega, depois é preciso que você bata para se
fazer respeitar. Você deve ser superior (sic)”.
Para ele, de um certo ponto de vista, é
mais fácil viver a prisão, o cárcere do que a
liberdade: “Te pedem menos coisas. Se quiser, pode ficar fechado em sua cela, você é
livre. Fora, é preciso sempre fazer escolhas,
e há mais exigências. Você deve prestar atenção em como se comporta, em como fala.
Na prisão, há menos histórias; fora, é preciso
sempre se explicar, te pedem sempre mais,
dominam sua cabeça. Na prisão, há os vigias,
se você for pego, vai para o bloco disciplinar,
e depois, acabou. Fora, há os educadores, a
casa de acolhimento, as regras, etc.”.
Tom então afirma estar mais adaptado a
um funcionamento fora das convenções da
relação social. Modalidades binárias e abruptas balizando os limites do permitido e do
interditado são suficientes para ele. As relações são reguladas no fundo pela relação de
força e pela violência. Ele especifica então: “A
gente sabe que você é grande quando está na
prisão. Fora, muitos se fazem de bons, mas
na prisão somente os durões são respeitados.
Você deve sempre dar o primeiro golpe para
mostrar que é o mais forte”.
Para tanto, ele também sabe usar com
fineza da sedução para orientar a relação e
dela tirar benefícios. Ele diz: “A vida é como
uma partida de pôquer. É preciso que os
outros acreditem que você é o mais forte
para que eles te respeitem e algumas vezes é
preciso saber dizer o que eles querem ouvir
para ter o que você quer”. Quando se lembra de sua vida na rua, diz que fez “coisas
graves”, que não quer nomear nem especificar, e explica que ninguém o interrompeu.
Com ele, não aconteceu como com seu irmão mais novo, que seu pai e seus irmãos
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013
O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência
mais velhos tentaram parar. Para ele “isso
não para nunca”.
Tom permite assim compreender que ele
poderia ter sido retido antes de sua integração na gangue e antes da espiral de acerto de
contas na violência. Ele faz referência a uma
vivência de abandono, no decorrer da qual ele
foi largado, e em que terminou também por
largar aqueles que poderiam lhe dar conforto e limites estruturantes, preservando para
ele seu lugar de criança. Suas falas, seus comportamentos e suas posturas demonstraram
uma tensão entre duas modalidades de estar
no mundo com os outros: tanto a pessoa fria,
sem consideração e outros princípios, a não
ser aqueles referidos a sua gangue, quanto
o rapaz sensível à atenção que lhe era dada,
buscando a troca e o compartilhamento na
relação individual. Além da violência dos
propósitos, os atos do rapaz reivindicando
sua gangue se revelam, às vezes, como uma
expressão da criança mortificada incrustada
em sua personalidade.
A esse respeito, o roubo de uma bijuteria
na família de acolhimento pôs em ato de maneira muito aguda uma ferida, marcando sua
ligação amorosa ao objeto materno. A mulher da família de acolhimento veio a perder
sua própria mãe. Ela se deu conta, ao arrumar
suas coisas, que um de seus pendentes tinha
desaparecido. Tratava-se de um coração que
sua mãe tinha lhe dado. Ela tinha mostrado
essa bijuteria para Tom. Procurou por todos
os lugares, muito afetada com o desaparecimento, e perguntou também a Tom se ele a
havia visto,e ele negou. Acontece que, alguns
dias depois, o pendente apareceu nas coisas
dele. Porém, Tom negou tê-lo furtado.
No decorrer do terceiro mês de sua estadia, os contatos via internet com os membros
da gangue se intensificaram. Tom chegou
mesmo a dizer que alguns deles poderiam
encontrá-lo na região. Seu comportamento
mudou. Ele mostrou cada vez mais oposição face aos educadores, levando-os a desconfiar dele, pois não sabiam mais quem era
“o verdadeiro Tom”. Durante uma sessão do
ateliê de música, Tom deixou a interventora
entrever que ele tinha vindo com uma arma,
deixando-a ostensivamente aparecer para
fora da calça. Em seguida, sussurrou para a
interventora que precisava de dinheiro, que
cometeria um roubo e partiu. Interpelado
mais tarde pela polícia, desmentiu tudo o
que a interventora tinha relatado sobre o que
ele havia dito e mostrado.
Tom também negou diante da família de
acolhimento ter portado uma arma naquele dia. O senhor da família de acolhimento
decidiu inspecionar seu quarto e encontrou
uma pistola de balas de festim. Tom ficou
“baqueado” quando foi confrontado com o
fato de que a família de acolhimento tinha
descoberto a arma. Ele não conseguiu sustentar uma discussão com eles e se afundou
em justificações pouco convincentes, deixando o lugar. Disse em seguida ao educador
que não queria mais continuar sua progressão de pena e que desejava ir novamente para
a prisão.
Sem dirigir mais a palavra à família de
acolhimento e recusando qualquer abordagem, ele foi acolhido na casa da Proteção
Judiciária da Juventude, onde o encontramos. Essa mudança de enquadre suscitou
num primeiro momento uma renovação do
interesse quanto ao fato de novamente tentar projetos a partir da casa. De todo modo,
em seguida, Tom se encontrou tomado por
tensões internas, afirmando tanto que só
buscava ser novamente encarcerado e refazer o caminho dos centros de detenção para
retornar a sua região de origem, quanto que
queria permanecer ali e trabalhar.
Nessa tensão se lia dramaticamente a angústia de não ter finalmente outro lugar a
não ser a prisão ou a gangue. Por outro lado,
pediu a alguns de nós, mais ou menos de
canto, se não poderíamos adotá-lo. Finalmente, sobre o plano da resistência passiva,
manifestou o impasse no qual estava preso:
Tom permanecia o dia todo deitado na sua
cama, os olhos fixos no teto, transgredia cada
vez mais fumando cannabis, fugia à noite e
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O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência
voltava de madrugada. Ao lado de outros jovens, tentava provocar o terror e submetê-los
aos seus mandos. Nesse contexto, por uma
briga com um outro jovem, foi finalmente
transferido para outra casa.
Nesse segundo tipo de ato de delinquência, a questão não era verdadeiramente de
transgredir visando a potência e a autoridade do pai. Esses atos de delinquência, inflacionados na nossa sociedade contemporânea, devem ser mais considerados como
consequência do que muito se chama hoje
de “declínio da função paterna” (LACAN,
1997), no que isso logicamente deixa a criança num face a face talvez mortal com a mãe.
Pari e passu o sujeito se vê confrontado com
o Outro primordial, um outro sem filtro,
sem paragem, intrusivo e excessivo (KAUFFMANN, 1996).
Os atos de delinquência resultariam de
uma forte proximidade com a mãe, com sua
figura ou, num plano mais amplo, com a cultura midiática, cuja precariedade na mediação simbólica, para além de oferecer amarras
de ancoragem ultraidealizadas para o sujeito, excede numa demanda feroz inatingível
(ŽIŽEK, 2006). Os atos violentos aí constituiriam então uma tentativa de saída radical
da angústia que suscita naturalmente a proximidade com a mãe como instância, revelando a angústia em face ao espectro de um gozo
incestuoso. Trata-se também da angústia de
não poder usufruir de nada que represente
os ideais culturais contemporâneos. A única
forma encontrada de se sobressair é auto e
heterodestrutiva (FREUD, 1996). Ora, todo
o trabalho de estruturação psíquica de um
indivíduo consiste em erigir barreiras contra
o retorno dos efeitos destrutivos da angústia (KLEIN, 1992, 1982). No entanto, existe
um gozo destrutivo do qual adolescentes em
grande dificuldade, diríamos, em estado de
deprivação, vão fruir de modo a forjar essa
destruição no social (WINNICOTT, 2000).
Mas, em que, mais precisamente, os atos
de delinquência desse segundo tipo teriam a
reportar à relação arcaica com a mãe? Deve130
se a Serge Lesourd, inspirado por Denise Lachaud e retomado por Yves Morhain, por ter
formalizado tão magistralmente as questões
e os fundamentos desse segundo tipo de ato
de delinquência.
Lesourd (2001) mostra o quanto esses
atos não constituem tentativas de se inscrever num laço social, realizando, assim, seu
dever de habitar o mundo como adulto; ao
contrário, sinalizam mais radicalmente uma
posição de impotência vivida como impossibilidade de ali se inscrever. Não é o tanto
que seria árduo recuperar seu lugar na sociedade, mas o fato de isso, segundo eles, ser
impossível. A gramática inconsciente dessa
segunda forma de apresentação da violência
nesses jovens seria: “Não há realmente lugar
para mim”.
Como um indivíduo pode chegar a considerações tão radicais que vão tornar sua
vida tão sufocante? Para compreender o que
funda esse vício, o impasse que o social representa para esses indivíduos, examinemos
mais de perto os joguetes da relação com a
mãe, dita aqui arcaica, por ser considerada
em sua versão não castrada, quer dizer, ainda numa versão todo-poderosa aos olhos da
criança.
Notemos a esse respeito que Tom viveu
aos 5 anos um acontecimento notavelmente
traumático na relação à sua mãe: ela morreu.
Pode-se pensar que, para ele, de maneira
traumática, alguma coisa caiu tão brutalmente da potência materna, o que em psicanálise
se chama a castração materna, que então se
revela subitamente à luz do dia: a mãe indubitavelmente também falha. O traumatismo
consiste no fato de que o sujeito, então criança, não teve tempo de metabolizar, simbolizar essa queda da potência materna, o que
pode acarretar uma fixação, ou melhor, uma
espécie de alienação à figura todo-poderosa
da mãe; alienação que se traduz por uma nostalgia do tempo em que ainda sonhava com
a completude que poderia constituir com ela.
Sua relação com a mãe seria ainda a promessa de um gozo absoluto, índice de uma eco-
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O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência
nomia a dois que o pai tinha apenas começado a pôr em questão. Essa alienação arrisca
desorganizar a vida do adolescente, que vai
ter dificuldade para encontrar seu lugar no
laço social, ou seja, para se integrar à sociedade. Na continuidade de uma falha absoluta
da mãe, terá antes a tendência a se desintegrar. Pois, se inscrever no laço social implica
adotar outro modo de relação com o gozo.
Ora, é preciso dividir os bens entre todos,
pois de todo modo, o gozo em si, ninguém
pode ter todo (FREUD, 1996). Há uma falta fundamental, e é pelo fato de se apropriar
e de pôr em ação essa falta como estrutural
que se considera e se constrói uma relação à
coisa social. Na cultura tradicional, em que
ainda vivemos em grande parte, é assim que
a pertinência ao laço social vai poder vir a
se impor para um sujeito, estabelecendo uma
relação com a autoridade. Por outro lado, os
vínculos de Tom eram essencialmente horizontais, privilegiando uma fratria caótica,
portanto, estigmatizados diante da sociedade oficial a qual, muitas vezes, é necessário se
dobrar (FREUD, 1996).
No lugar disso, o adolescente, envolvido
por essa injunção ao gozo absoluto, se lança
em uma luta até a morte com o outro — dependendo da ocasião, ele poderá também ser
seduzido pelas promessas de gozo absoluto
que as drogas e outras substâncias oferecem
— uma economia que rege a luta das gangues. Trata-se de uma luta até a morte, pois
não haveria, realmente, para o sujeito, lugar
para todos no mundo. É um pouco a mesma
coisa quando se diz: “os estrangeiros devem
permanecer em suas casas, pois não há trabalho suficiente para todo mundo”, subentendendo-se que se eles não estivessem ali o
problema do trabalho poderia vir a se solucionar. Assim, atribui-se ao outro a causa de
sua própria falta.
É exatamente nessa lógica que o adolescente, funcionando nesse segundo tipo de
violência, será efetivamente barrado: “a ausência tão prejudicial para mim deste gozo,
essa que me metem todos os dias diante do
nariz, da qual me dizem que é sinal de reconhecimento, de conquista social, etc., esta
pela qual então eu sofro tão cruelmente, por
não ter aceso suficientemente, eu imputo a
responsabilidade ao outro, pelo fato de que
ele a possuiria e, por isso mesmo, dela me
privaria”.
O mecanismo é simples de compreender:
está no fundamento do discurso racista. Mais
difícil é se dar conta do que vai explicar um
tal fechamento do indivíduo nessa lógica, ao
ponto que estará prestes a sacrificar sua vida.
Temos também o exemplo paradigmático
das gangues para as quais o laço social foi redescoberto pela via dos territórios. Marchar
sobre o território do outro é dele roubar um
gozo. “Se o outro me coloca em risco, eu o
elimino.”
Para compreender essa posição psíquica
tão particular, Lesourd valoriza a noção de
inveja distinguindo-a da do ciúme. O fechamento na economia da inveja é o que barra
a passagem da luta fraterna em relação ao
ultrapassamento do gozo do pai. Evidentemente, essa questão já havia sido posta por
Melanie Klein (1957/1991), na sua obra
magistral Inveja e gratidão (cf. ARREGUY,
2001). Apenas na passagem de uma posição
dual, narcísica, invejosa, persecutória e destrutiva, para uma posição triádica, ciumenta,
depressiva e reparatória, seria possível ter as
bases para o declínio da posição edipiana. Aí
o sujeito estaria numa cena a três, que pode
vir a ser posteriormente elaborada. Diferentemente, aquele que funciona segundo a inveja, permanece talvez fixado demais à etapa
da criança que vê seu irmão mais novo no
seio da mãe, num quadro de completude entre a mãe e a criança do qual se vê radicalmente excluído.
É clássica a cena citada por Santo Agostinho no livro I das Confissões, também referida por Lacan (1997):
Certa vez, vi e observei um menino invejoso.
Ainda não falava, e já olhava pálido e com
rosto amargurado para o irmãozinho colaço.
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O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência
Quem não terá testemunhado isso? Dizem que
as mães e as amas tentam esconjurar este defeito com não sei que práticas. Mas se poderá
considerar inocência o não suportar que se
partilhe a fonte do leite, que mana copiosa e
abundante, com quem está tão necessitado do
mesmo socorro, e que sustenta a vida apenas
com esse alimento? Mas costuma-se tolerar
indulgentemente essas faltas, não porque sejam insignificantes, mas porque espera-se que
desapareçam com os anos. Por isso, sendo tais
coisas perdoáveis em um menino, quando se
acham em um adulto, mal as podemos suportar (AGOSTINHO, 2007, p. 5).
Vejamos o comentário de Lacan, feito na
lição do dia 14 de março de 1964, no seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais
da psicanálise:
Inveja vem de videre. A invídia mais exemplar,
para nós analistas, é aquela que há muito tempo destaquei em Agostinho, para lhe dar todo
o seu desenvolvimento, isto é, a da criancinha
olhando seu irmão pendurado ao seio de sua
mãe, olhando-o amare conspectu com um
olhar amargo, que o decompõe e faz nele mesmo o efeito de um veneno. Para compreender
o que é a invídia em sua função de olhar, não
é preciso confundi-la com o ciúme. O que a
criancinha, ou qualquer pessoa, inveja, não é
de modo algum, necessariamente, algo que ela
poderia ter vontade, como impropriamente se
exprime. A criança que olha seu irmãozinho,
quer dizer que ela ainda precisa da teta? Todo
mundo sabe que a inveja é comumente provocada pela possessão de bens que não seriam,
para aquele que inveja, de nenhum uso, e dos
quais ele nem mesmo suspeita da verdadeira
natureza. Esta é a verdadeira inveja. Ela faz
empalidecer o sujeito diante do quê? Diante da
imagem de uma completude que se refecha [...]
(LACAN, p. 115-116).
Estar a três não é considerável nessa cena.
A criança não tem lugar ali, não tem existência possível. Ela se aniquila reduzindo-se ao
132
olhar dessa cena de completude entre a mãe
e seu irmão mais novo, um olhar que vai retornar de maneira radical na clínica com os
adolescentes.
E para lidar com a falta materna, a criança não tem então outra solução a não ser a
destruição do recém-chegado, o que será
formulado da seguinte forma: “ou ele ou eu”.
Se não há lugar para os dois, o que prossegue será: “não há lugar para todos na sociedade”. Atenção para não deixar as crianças
a sós com seus irmãozinhos e irmãzinhas!
Evidente que esse processo pode se passar
todo no plano da fantasia, como mostra a
bela fábula, O pequeno Nicolau, filmada por
Laurent Tirard (2010). Ocorre que os jovens
em conflito com a lei que transigem para atos
extremamente violentos e autodestrutivos
passaram não só por uma perda real nos primórdios de sua estruturação psíquica, mas
permanecem em situação de perdas severas
e contínuas ao longo da vida, numa relação
sem mediação com o Outro.
O adolescente do segundo tipo, em todo
caso, é um sujeito fechado em uma etapa primitiva de sua constituição psíquica, em uma
etapa que se chama narcisismo primário,
aquela dos primórdios da constituição do Eu
(FREUD, 2004). Essa definição tem importância, pois o momento inaugural em que o
Eu se constrói também corresponde à etapa
do “estágio do espelho”, formalizada por Lacan (1998). A criança tem de se reconhecer
no espelho para poder chegar a um sentimento de integridade de seu Eu.
O que nos coloca na via de um momento
de construção psíquica relativo ao estádio do
espelho é a importância do olhar nos adolescentes. Lesourd destaca sua propensão a ser
agredido pelo olhar, sempre um olhar maldoso: “ele me tirou” [gíria usada pelos adolescentes significando “ele me zoou” (estigmatizou)], no sentidode “ele me olhou mal,
atravessado”.
O olhar do outro é persecutório, o que faz
talvez pensar em uma tendência paranoide
(MIJOLLA-MELLOR, 2011) desses adoles-
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O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência
centes. Esse olhar coincide com o retorno
de seu próprio olhar projetado no outro. É
sua própria inveja ao encontro do outro que
retorna de maneira ameaçadora, algo tanto
maior quanto mais o indivíduo for pego nessa economia pulsional invejosa. Essa luta até
a morte, saída de um exercício de violência às
vezes dos mais radicais, nas quais o outro poderá ser agredido fisicamente, consiste então
num exercício de sobrevivência narcísica, de
preservação da integridade do Eu ainda tão
frágil. É preciso salvar o Eu, mesmo às custas
da morte. Nesse caso não se está absolutamente ainda na etapa da transgressão à Lei,
já que esta necessita da entrada em cena do
pai que virá a inscrever a falta para todos. A
figura paterna, ou o que quer que represente
um interdito ao desejo ilimitado da mãe, assegurará que todos passem pela falta. É por
isso que o gozo que falta a um, para se completar, não se pode buscar no outro, pois o
outro não é completo. Essa incompletude é,
entretanto, justamente o contrário do que a
criança considera quando observa, despeitada, seu irmão recém-nascido no seio de sua
mãe.
Morhain nos ensina a reconhecer o valor
do ódio em face ao drama do gozo do outro
que nos aniquila:
Na medida em que é ainda uma defesa, um
último baluarte antes do colapso psíquico
(HASSOUN, 1999), o ódio pode ser reparador
e constitui para alguns jovens uma expressão
positiva da violência e da negatividade, no momento em que a pulsão de destruição é temperada com o ódio pelo objeto, assegurando
de algum modo sua consistência (MORHAIN,
2008, p. 135, tradução livre).
A raiva pode então se revelar salvadora
pela distância que ela mantém com seu objeto, objeto que é, por isso, preservado. Essa
função estruturante da agressividade fora
também abordada por Winnicott (2000)
em A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional, um texto seminal que
atesta a função vital e positiva da agressividade como forma de se diferenciar do outro
e como força motriz da apreensão do mundo
e da criatividade. Por outro lado, a derivação
numa raiva destrutiva, com vistas ao desaparecimento do objeto, em vez de se constituir
numa tentativa terapêutica, faria retornar à
inveja ameaçando o sujeito... Resta aprimorar essa função: de que modo integrar a raiva
na contratransferência? Questão que apenas
sinalizamos como fonte de trabalho por se
fazer.
Assim, Tom nos mostra sua aflição diante
de sua dificuldade de considerar a possibilidade de se inscrever no laço social, pois toda
a sua vida, desde os 9 anos, quando ele renunciou ao apoio do pai, se construiu sobre
o postulado de que a sociedade não podia
lhe dar um lugar, daí seu nível extremo de
investimento na gangue, na qual ele põe a integralidade de suas identificações, logo, sua
identidade toda.
Embora ele pareça fazer aliança com os
educadores, termina por vir com uma pistola
à casa, depois acaba por roubar uma bijuteria
na família de acolhimento — objeto substituto da figura materna arcaica representada
aqui pela mulher da família de acolhimento
— essa bijuteria, em forma de coração, lhe
teria sido fantasmaticamente oferecida por
sua própria mãe.
Como não pensar que Tom se agarrou a
esse episódio para colocar na ordem do dia a
questão do amor através do presente, a economia do dom que talvez tanto lhe faltou
com o desaparecimento prematuro de sua
própria mãe? Não haveria outra alternativa
a não ser marcar essa falta subtraindo do
outro (da mulher da família de acolhimento) seu objeto de amor? Até que ponto essa
“subtração” não representaria sua antípoda,
uma “soma” a si, na tentativa de se vincular
ao outro “pegando” algo dele?
Mais do que uma traição em relação às
pessoas que ele aprecia, seu verdadeiro problema seria uma forma de transferência
diante das pessoas que aprendeu a apreciar:
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O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência
“O amor me falta”. E assim, para que a vida
não se reduza a uma luta até a morte pelo
gozo: “Como vocês podem me ajudar a me
tirar disso?”. Afinal, os erros que comete são
explícitos, apesar de não diretamente endereçados numa reivindicação transgressiva
como a de Samir, já que deixam entrever seu
fracasso na forma destrutiva de violência que
apresenta. Ele se faz denunciar, ao deixar a
arma aparecer, ao não esconder direito ou se
livrar do objeto roubado...
Parece fundamental distinguir dois mecanismos muito diferentes — passagem ao
ato como transgressão à Lei e passagem ao
ato como recurso narcísico de sustentação
do Eu — nos atos violentos que a sociedade francesa apenas chama de delinquência,
os quais às vezes parecem idênticos em sua
manifestação. O acompanhamento desses
adolescentes estará certamente mais adaptado a partir disso: para aqueles que se referem
a uma transgressão à Lei, tratar-se-á de nortear o trabalho sobre a elaboração do luto do
pai; para o segundo tipo, que concerne aos
mecanismos narcísicos, o trabalho se norteará sobre a falha narcísica e o trabalho sobre o
objeto. Nesse contexto, as atividades de mediação terão um lugar privilegiado.
Abstract
The text works the adequacy of adolescents follow-up systems in France today, pointing out
it is inappropriate to a group of adolescents
characterized as “young people in conflict
with the law”. It also shows a metapsychological point of view: the existence of two forms
of violence presented by young people, relating
them to some difficulties at different stages of
psychic structure.
Keywords: Violence, Adolescence, Law, Metapsychology, Monitoring systems.
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R ecebido em : 1 2 / 0 9 / 2 0 1 3
A provado em : 1 2 / 1 1 / 2 0 1 3
SOBRE OS AU TORES
Wilfried Gontran
Psicólogo, formador de equipes de saúde,
professor no Master PRO Enfance Et Adolescence
da Université de Toulouse II - Le Mirail.
E-mail: [email protected]
Stéphanie Mousset
Doutora em Psicologia e Membro do Laboratoire
Cliniques Psychopathologique et Interculturelle
na Université Toulouse II - Le Mirail, psicóloga
na Protection Judiciaire de la Jeunesse
(Toulouse - France).
E-mail: [email protected]
Marília Etienne Arreguy
Tradução e coautoria. Psicanalista associada
ao Fórum do Círculo Psicanalítico
do Rio de Janeiro; Professora do Programa
de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação
da Universidade Federal Fluminense.
E-mail: [email protected]
MIJOLLA-MELLOR, S. La paranoïa. Que sais-je? Paris: PUF, 2011.
MORHAIN, Y. Trajectoires de la destructivité et rupture identitaire à l’adolescence. In: CHOUVIER, B.; R.
ROUSSILLON, R. (Dir.). Corps, acte et symbolisation.:
Bruxelles: De Boeck, 2008. 125-145.
WINNICOTT, D. W. A agressividade em relação ao
desenvolvimento emocional (1950). In: Da pediatria
à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago,
2000. p. 288-304.
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Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013
Normas de publicação
Normas de Publicação1
1.
Serão publicados apenas trabalhos inéditos de Psicanálise e textos de colaboradores convidados
pela Comissão Editorial. Entendem-se como inéditos os que não foram publicados, nem no
todo nem em parte, em periódicos, capítulos de livros nem em anais de eventos.
2.
Os trabalhos serão publicados em língua portuguesa ou em língua estrangeira. Ficará a cargo do
autor a tradução para o português do resumo dos trabalhos enviados em outro idioma.
3. Poderão também ser publicados:
3.1
Reflexões sobre a psicanálise, articulando-a com outras áreas do conhecimento;
3.2
Casos clínicos;
3.3 Entrevistas;
3.4 Resenhas;
3.5 Ensaios.
4. A estrutura dos trabalhos deverá estar de acordo com as normas abaixo:
4.1
Todo trabalho deverá ser obrigatoriamente acompanhado de:
4.1.1
Folha de rosto com o título do trabalho, nome dos autores e titulação. No corpo do
trabalho não deverá constar o nome dos autores, com o objetivo de manter o anonimato
na avaliação feita pelo corpo editorial.
4.1.2
Título em português e em inglês no corpo do trabalho.
4.1.3
Resumo expressando o conteúdo, salientando os elementos novos e indicando sua importância. Deverá ser colocado antes do texto e não deve exceder a duzentas e cinquenta palavras.
4.1.4 Palavras-chave, de três a cinco, que identifiquem o conteúdo, para a completa descrição do assunto e, quanto à localização, após o Resumo.
4.1.5 Keywords deverá vir após o Abstract.
4.1.6 Referências. Citadas como no exemplo a seguir:
4.1.6.1 Registrar as referências em ordem alfabética conforme os exemplos, observando os
detalhes de dois pontos, abreviaturas e vírgulas, bem como qualquer outro assinalado abaixo:
1. Normas atualizadas para as próximas edições.
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Normas de publicação
a) De livro
AUTOR. Título em itálico: subtítulo. Edição. Local (cidade) de publicação: Editora,
ano de publicação. Exemplos: CERVO, A. L. Metodologia Científica: para uso dos
estudantes universitários. 2. ed. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1978. PIMENTEL,
D. O sonho do jaleco branco: saúde mental dos profissionais de saúde. Aracaju:
Universidade Federal de Sergipe, 2005.
b) de capítulo de livro
AUTOR DO CAPÍTULO. Título do capítulo. In Autor do livro. Título em itálico:
subtítulo. Edição. Local (cidade) de publicação: Editora, ano de publicação. Número
do volume (se houver). Intervalo das páginas.
Exemplos:
FREUD, S. Sobre a psicoterapia [1905]. In FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
obras psicológicas completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1989, v.
VII, p. 239-251.
LAMBOTE, M. C. O tempo anunciador. In LAMBOTE, M. C. Estética da melancolia.
Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2000, p. 103-109.
PIMENTEL, D. Interfaces entre a Psicanálise e Psiquiatria. In PIMENTEL, D.;
ARAUJO, M.G. (Orgs.). Interfaces entre a Psicanálise e Psiquiatria. Aracaju: Círculo
Brasileiro de Psicanálise, 2008, p. 9-13.
c) de artigo de revista
AUTOR. Título do artigo. Título do periódico em itálico, local de publicação (cidade),
número do volume, número do fascículo, páginas inicial e final, mês e ano. Exemplos:
PIMENTEL, D; VIEIRA, M.J. Perfil e saúde mental dos psicanalistas. Psychê, São
Paulo, n. 15, p. 155-165, jun. 2005.
BERNARDES, W.S. Condenação, desmentido, divisão. Reverso, Belo Horizonte, v. 26,
n. 51, p. 115-122, set. 2004.
d) Outros modelos de referência, consulte os editores ou o site do Círculo Brasileiro
de Psicanálise.
5.
Tabelas e gráficos deverão ser enviados em separado, numerados, com as respectivas legendas e
indicação da localização no texto entre dois traços horizontais.
6.
As citações deverão estar acompanhadas de suas fontes, com as respectivas páginas.
6.1.
Direta: Quando é extraído um trecho literal, copiado fielmente do original. Neste caso é obrigatório colocar sobrenome e ano da obra, além da página.
As citações diretas podem ser de dois tipos, conforme o número de linhas.
6.1.1.
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Até três linhas
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Normas de publicação
Aparece incorporada ao texto, entre aspas.
Ex. a) Como diz Pontalis (1998, p. 274): “Nossas memórias para serem vivas, nossa psique,
para ser animada, devem se encarnar”.
Ex. b) “O objetivo da análise é preparar o paciente para a autoanálise” (GREEN, 1988, p. 302).
6.1.2 Mais de 3 linhas
Devem ser destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda, com letra menor (tamanho 10) e espaçamento simples. Não há necessidade de colocar entre aspas.
Ex.: Conforme Freud (1919):
Recusamo-nos decididamente a transformar em propriedade nossa o paciente que se entrega a
nossas mãos em busca de auxílio, a conformar o seu destino, impor-lhe nossos ideais e, com a soberba
de um Criador, modelá-lo à nossa imagem, nisso encontrando prazer (FREUD, 1999, p. 424).
6.2 Indireta: texto baseado na obra do autor consultado.
Ex. a) Diversos autores citam a importância do estudo das perversões para entender as
psicopatias da vida cotidiana (CLAUVREUL, 1990; DOR, 1991; ANDRÉ, 2003; CORRÊA,
2006).
Ex. b) A concepção médica de oposição entre o normal e o perverso se desfaz, segundo Corrêa
(2006), à medida que o inconsciente vai sendo revelado.
Ex. c) Para a psicanálise, o Sujeito não seria natural como queria Sade, seria um Sujeito
irremediavelmente dividido, como demonstrou Freud, ao que Lacan acrescenta que isso
aconteceria pela relação dele, Sujeito, com a linguagem (LACAN apud LEITE, 2000).
7. Usar o mínimo de notas de rodapé, porque as referências do texto devem vir no corpo do
texto.
8. Cabe ao Conselho Consultivo de cada sociedade participante do CBP o exame e aprovação dos
trabalhos, em primeira instância, de seus respectivos sócios, e o encaminhamento à Comissão
Editorial, já dentro das normas de publicação da revista, que decidirá sobre a sua publicação
de acordo com a programação da revista.
9. A Comissão Editorial reserva-se o direito de recusar os trabalhos que não se enquadrem nas
normas citadas ou não tenham qualidade editorial.
10. Os originais deverão ser enviados em duas vias, devidamente numeradas e rubricadas, com
espaço simples, fonte Times New Roman tamanho 12, não excedendo 8 laudas. O título do
trabalho deve conter no máximo dez palavras e o tamanho da fonte 14, em negrito.
10.1 Os originais deverão ser encaminhados também em mídia eletrônica no Word 19972003.
10.2 Os autores deverão enviar os originais para a sede do Círculo Brasileiro de Psicanálise,
com carta dirigida aos editores, autorizando a publicação e ratificando ser um trabalho inédito.
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Normas de publicação
A carta deve conter o título do trabalho, nome do(s) autor(es) com sua titulação acadêmica e
institucional, e o endereço físico e eletrônico do autor principal.
10.3 140
Os trabalhos deverão ser enviados para:
Revista Estudos de Psicanálise
Rua Maranhão, 734/3º andar – Santa Efigênia
CEP: 30150-330 – Belo Horizonte/MG
Tel.: (31)3223-6115 – Fax: (31)3287-1170
E-mail: [email protected] – Site: www.cpmg.org.br
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Normas de publicação
Roteiro de avaliação dos artigos
1.
Título claro e preciso sobre o conteúdo do artigo.
2.
Resumo claro e preciso sobre o conteúdo do artigo, contendo no máximo 250
palavras.
3.
Palavras-chave adequadas ao conteúdo, em número máximo de cinco.
4.
Abstract e Keywords conforme instruções.
5.
Normas para citações e referências conforme instruções.
6.
Relevância do tema.
7.
Clareza de pensamento.
8.
Consistência e coerência na fundamentação teórico-metodológica do trabalho.
9.
Linguagem, considerando objetividade, estilo e correção.
10. Aspectos éticos de acordo com a Resolução CNS 196/96 sobre privacidade e
anonimato das pessoas envolvidas, e declaração de conflitos de interesses.
11. O artigo deverá conter conclusão ou considerações finais.
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