Referências - cbp- círculo brasileiro de psicanálise
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ESTUDOS DE PSICANÁLISE ISSN - 0100-3437 Publicação do Círculo Brasileiro de Psicanálise Estudos de Psicanálise Belo Horizonte-MG N. 40 P. 15 – 142 Dezembro/2013 REVISTA ESTUDOS DE PSICANÁLISE Indexada em: CLASE (UNAM – México) IndexPsi Periódicos (BVS – PSI) – www.bvs-psi.org.br CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior ANPPEP – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia Classificação Capes/Anppep–B4 Esta revista é encaminhada como doação para todas as bibliotecas da Rede Brasileira de Bibliotecas da Área de Psicologia – ReBAP Os artigos são de total responsabilidade dos autores. F ic ha C ata l o g r á f ic a ESTUDOS DE PSICANÁLISE. Belo Horizonte. Círculo Brasileiro de Psicanálise, n. 40, dez. 2013. 142 p. Semestral. ISSN: 0100-3437 – 28 x 21cm 1. Psicanálise – periódicos Revista Estudos de Psicanálise Publicação do Círculo Brasileiro de Psicanálise EDITORES DA REVISTA Anchyses Jobim Lopes (CBP-RJ) Cibele Prado Barbieri (CPB) Isabela Santoro Campanário (CPMG) Marcelo Wanderley Bouwman (CPP) Noeli Reck Maggi (CPRS) Ricardo Azevedo Barreto (CPS) C ON SEL HO C ON SU LT IVO Ana Cristina Teixeira da Costa Salles (CPMG) Carlos Antônio Andrade Mello (CPMG) Carlos Pinto Corrêa (CPB) Déborah Pimentel (CPS) Maria Beatriz Jacques Ramos (CPRS) Marie-Christine Laznik (ALI-França) Paulina Schmidtbauer Rocha (CPP) Stetina Trani de Meneses e Dacorso (CBP-RJ) C ON SEL HO EDITORIAL Miriam Gorender (CPB) Juliana Marques Caldeira Borges (CPMG) Rodrigo Cardoso Ventura (CBP-RJ) F IGU R A DA C APA “A busca”, quadro de Maria da Conceição A. Barreto (Fotografia de Aragão Studio Produções/Sergipe) EN DEREÇ O DA REDAÇ ÃO Rua Maranhão, 734/3º andar – Santa Efigênia CEP: 30150-330 – Belo Horizonte/MG [email protected] www.cbp.org.br PROJETO GRÁFICO, FORMATAÇÃO E CAPA Valdinei do Carmo REVISÃO Dila Bragança de Mendonça – Português Anchyses Jobim Lopes – Inglês Publicação do Círculo Brasileiro de Psicanálise Círculo Brasileiro de Psicanálise – CBP DI RETORIA 2012-2014 presidente Stetina Trani de Meneses e Dacorso (CBP-RJ) vice-presidente Maria Beatriz Jacques Ramos (CPRS) 1ª secretária Maria Helena Correa Araujo Barros (CPP) 2ª secretária Maria Melania Wagner Pokorski (CPRS) 1º tesoureiro Anchyses Jobim Lopes (CBP-RJ) 2ª tesoureira Paola Giacomini Fachini (CPRS) coordenadora da comissão científica Ana Cristina Teixeira da Costa Salles (CPMG) editores da revista estudos de psicanálise Anchyses Jobim Lopes (CBP-RJ) Cibele Prado Barbieri (CPB) Isabela Santoro Campanário (CPMG) Marcelo Wanderley Bouwman (CPP) Noeli Reck Maggi (CPRS) Ricardo Azevedo Barreto (CPS) página eletrônica Natalia Gonçalves Galucio Sedeu (CBP-RJ) Círculo Brasileiro de Psicanálise – CBP Publicação do INSTITUIÇÕES FILIADAS Círculo Brasileiro de Psicanálise Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro – CBP/RJ Av. Nossa Senhora de Copacabana, 769/504 - Copacabana CEP: 20050-002 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (21) 2236-0655 Fax: (21) 2236-0279 E-mail: [email protected] Site: www.cbp-rj.com.br Círculo Psicanalítico da Bahia – CPB Av. Adhemar de Barros, 1156/101 - Ed. Máster Center - Ondina CEP: 40170-110 - Salvador - BA Tel./Fax: (71) 3245-6015 E-mail: [email protected] Site: www.circulopsibahia.org.br Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG R. Maranhão, 734/3º andar - Santa Efigênia CEP: 30150-330 - Belo Horizonte - MG Tel.: (31) 3223-6115 Fax: (31) 3287-1170 E-mail: [email protected] Site: www.cpmg.org.br Círculo Psicanalítico de Pernambuco – CPP R. Desembargador Martins Pereira, 165 - Rosarinho CEP: 52050-220 - Recife - PE Tel.: (81) 3242-2352 Fax: (81) 3242-2353 E-mail: [email protected] Site: www.circulopsicanaliticope.com.br Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul – CPRS R. Senhor dos Passos, 235/1001 - Centro CEP: 90020-180 - Porto Alegre - RS Tel./Fax: (51) 3221-3292 E-mail: [email protected] Site: www.cbp.org.br/cprs Círculo Psicanalítico de Sergipe – CPS Praça Tobias Barreto, 510/1208 São José Ed. Centro Médico Odontológico CEP: 49015-130 - Aracaju - SE Tel.: (79) 3211-2055 E-mail: [email protected] Site: www.circulopsicanalitico-se.com.br Sumário 11 Editorial 15 Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais Some caracteristics about love relations in nowdays Ana Cristina Teixeira da Costa Salles Nina Rosa Artuzo Sanches Rosa Maria Gouvêa Abras 21 O primata perverso polimorfo The polymorphous perverse primate Anchyses Jobim Lopes 31 As per-versões na clínica psicanalítica The per-versions in the psychoanalityc clinic Cibele Prado Barbieri 37 Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud Links between modernity, ethics and subjectivity in Freud’s works Eduardo Leal Cunha Joel Birman 49 O inapanhável objeto do savoir-faire na análise The elusory object of know-how in analysis Erik Porge Traduçao: Elisa dos Mares Guia-Menendez Mariana Valério Orlandi 63 Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica Dynamic Recursive Hologram for a Typographical Theory of Psychoanalytical Relationship Gabriele Lenti Tradução: Otavio A. Peixoto, B.A., M.A. 71 O setting analítico na clínica cotidiana Analytical setting in everyday clinic Glória Barros 79 A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos The child, the artist and the analyzed: psychoanalysis and worlds creation Luciana Knijnik 85 De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza” From Simone de Beauvoir to “Fifty shades of gray” Maria Carolina Bellico Fonseca 91 O contador de histórias: vínculos e identificações The Storyteller: Identification and Bonds Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski Luís Antônio Franckowiak Pokorski 101 O outro da dor The partner of the pain Ricardo Azevedo Barreto 107 Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico Some thoughts about subjective states that defy the psychoanalytical process Stetina Trani de Meneses e Dacorso 113 Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material About the relations between the psychic impoverishment and material impoverishment Valéria Wanda da Silva Fonsêca 119 Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion Reflection about the “theory of thinking”, by Bion Waleska Pessato Farenzena Fochesatto 123 O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência Monitoring of major psychological distress in adolescents: distinguishing two types of violence Wilfried Gontran Stéphanie Mousset Marília Etienne Arreguy 137 Normas de publicação 141 Roteiro de avaliação dos artigos Editorial Um jardim de pétalas de lágrimas Uma estação de secas lágrimas... Quem é o ser humano contemporâneo? É alguém que se constitui de modo singular? Como a psicanálise pode contribuir para sua compreensão? Por que a psicanálise é muito antagonizada em alguns ambientes? A psicanálise não tem o que dizer sobre a hiperatividade, a dislexia, o autismo, entre tantas e tantas formas de existir das quais, não de modo raro, alguns discursos se arvoram de modo global do saber? A psicanálise pode desabar em desvalia por causa do utilitarismo em prol de uma suposta evolução científico-cultural-social-tecnicista? As explicações genéticas e da estrutura cerebral abarcam quase tudo, e há muito pouco para a psicanálise e seus questionamentos em respeito ao humano? Freud não mais explica? Como os psicanalistas entendem os laços sociais atuais? O mundo se desumanizou? As pétalas das lágrimas... Por que não falar, chorar, sorrir, reconhecer enigmas e trabalhar conflitos? A psicanálise desvenda... Não nada conforme a correnteza. Não promete saúde, bem-estar, sucesso, completude, felicidade plena... Para os psicanalistas, nem todas as pessoas são analisáveis... nem tudo é analisável... e acessível. A psicanálise possibilita uma escuta eticamente aprofundada do ser humano nas particularidades de seus desejos, seus limites, suas travessias... e respeita a busca de cada um. São as indagações que mobilizam a cenografia e a topografia psicanalíticas. Nosso labor é desalienar... Nosso trabalho é com o que não se localiza na consciência, o que está externo ao “saber que se sabe”. E escrevemos sobre o que nos resta... como seres humanos! A linguagem? É nosso “tesouro de significantes”... nas aventuras das modalidades do subjetivar-se nos fios enovelados da comunicação. Com a graça da Palavra, de suas ruas e avenidas, encorpando o estado da arte psicanalítica, a revista Estudos de Psicanálise, em seu segundo número de 2013 (n. 40), tem encanto próprio e científico, contando atualmente com seis editores muito dedicados ao compromisso da psicanálise com o ser humano e a sociedade: Anchyses Jobim Lopes (CBP-RJ), Cibele Prado Barbieri (CPB), Isabela Santoro Campanário (CPMG), Marcelo Wanderley Bouwman (CPP), Noeli Reck Maggi (CPRS) e a minha pessoa, Ricardo Azevedo Barreto (CPS). Agradecemos à Diretoria 2012-2014 do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), presidido pela estimada e competente Stetina Trani de Meneses e Dacorso (CBP-RJ), aos conselhos consultivo e editorial da revista, aos editores que nos antecederam, por desbravar espaços e construir pontes, a todos os profissionais que trabalharam direta ou indiretamente conosco para o desenvolvimento da qualidade técnico-científica e de linguagem da revista, aos autores deste número de nossa publicação por suas valiosas contribuições e aos nossos leitores a partir dos quais se constrói um campo de interlocução interminável. Presenteamos a todos com este mais novo acervo de escritos da revista Estudos de Psicanálise, cuja beleza intrínseca também se expressa na sensível capa que o veste, fotografia de uma pintura de Maria da Conceição Azevedo Barreto, Ceiça, que desvela a busca do autoconhecimento do ser no que redesenha, reconstitui ou reinventa da experiência sentida com seus pincéis e tintas... de vida. O jardim... Enfim, nosso ofício na psicanálise... na clínica, na escrita, em diferentes contextos... é com as vivas lágrimas... os afetos. O contato com o humano, ser da linguagem, desnuda os excessos das “folhagens” de modo poético. Surgem transformações, as pétalas das lágrimas, as flores em suas tonalidades e nuanças... As rosas têm espinhos... Como um jardim de pétalas de lágrimas, apresentamos, nesta revista, um pouco do pulsar da existência num tempo em que não é incomum a coisificação do ser. Nossa resistência, em um sentido político de reconfiguração de forças, é lutar para a sobrevivência do humano. Muito obrigado aos que nos acompanham. Ricardo Azevedo Barreto Editor Sán d or Ferenczi, 1873–193 3 Para Ferenczi seria preciso tornar a técnica mais elástica, de maneira a favorecer a expressão afetiva. O privilégio dado à expressão de afetos na análise provocou, assim, uma ampliação cada vez maior dos limites do permitido na clínica, chegando-se à formulação de um princípio de relaxamento como contraponto ao de abstinência (1927). Ferenczi introduz seu projeto de “soltar as línguas” nas análises, implicando e convocando o analista à adoção de um estilo clínico diferenciado, resgatando a criatividade do analisando, exercitando a sua capacidade de brincar, fantasiar e imaginar. Ele aborda o conceito de contratransferência como algo que não dificultaria a análise, mas que faz parte da própria técnica a ser empregada. O manejo técnico deve dosar bem a empatia e a capacidade de “sentir com”, e o processo é conduzido melhor a partir da análise pessoal do analista, que o capacitará para avaliar a situação analítica a distância. Esse é o entendimento que Ferenczi tem do analista elástico. (BARROS, Glória) Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais Some characteristics about love relation nowadays Ana Cristina Teixeira da Costa Salles Nina Rosa Artuzo Sanches Rosa Maria Gouvêa Abras Resumo Através de conceitos freudianos e lacanianos e usando de exemplos da clínica, as autoras analisam as mudanças nas relações amorosas nos dias atuais. Palavras-chave: Relação anaclítica, Relação narcísica, Objeto-fetiche, Objeto-devastação, Geração Y. Introdução A psicanálise tem um discurso próprio, resultante de mais de um século de produção teórico-clínica de Freud e seus seguidores. Se, de início, ela causou escândalo, com sua nova visão de homem e suas relações, com o passar do tempo, seu discurso foi sendo maciçamente assimilado pela cultura, correndo risco de perder sua virulência e sua capacidade de inovação. Essa absorção se fez notar de forma mais enfática a partir dos anos cinquenta. Em relação à vida amorosa, em que a sexualidade faz seus laços, vemos com frequência a incorporação de conceitos psicanalíticos ser usada pelo discurso social, com o objetivo de julgar e medir o grau de adaptação e patologia dos relacionamentos. A apropriação da psicanálise por ideologias de cunho moralizante, ao propor um ideal de felicidade amorosa, nada mais faz do que tentar transformá-la em um instrumento de controle social no sentido da higienização e medicalização da vida privada. Como Freud, pensamos que a felicidade não está na programação do homem (O mal-estar na civilização, Freud, 1974, p. 94), não cabendo ao psicanalista estabelecer modelos para um casal feliz e adaptado. Em vez de propormos um discurso fechado sobre a sexualidade e a vida amorosa, pensamos ampliar nossa escuta para podermos captar o que ocorre hoje, neste início de século, tomando a sexualidade em sentido lato, assim como as variações quanto às formas de escolhas próprias do nosso tempo. As grandes mudanças sociais, políticas, tecnológicas e científicas das últimas décadas transformaram as sociedades ocidentais em sociedades globalizadas onde quem dita às regras é o mercado. Baumann define a vida líquida na sociedade “líquido-moderna” como uma “vida de consumo” que projeta o mundo e todos os seus fragmentos animados e inanimados como objetos de consumo” (Baumann, 2007, p. 16). Segundo Pereira Mendes (2013, p. 1) Se a sociedade freudiana era vitoriana e patriarcal, favorecendo a histeria e o mascaramento das pulsões e do desejo, a sociedade atual, que teve lugar a partir da década de 60, se notabiliza pela radicalização das sensações e pelo deslizamento veloz em torno de novos objetos de desejo, proporcionando o aparecimento do gozo, da depressão e das montagens perversas. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 15–20 | Dezembro/2013 15 Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais Nos dias atuais, ou seja, tempo da hipermodernidade, verifica-se uma diversidade tanto na composição quanto nas formas de relacionamentos. Existe um número considerável de pessoas adultas que moram sozinhas. Cresce também consideravelmente o número de mulheres que não desejam mais ter filhos (Revista Veja, maio 2013). O casamento tradicional homem-mulher, onde o homem é o provedor, e a mulher é principalmente a espectadora e suporte da vida do marido e dos filhos, não é mais o único modelo. A entrada da mulher no mercado de trabalho mudou radicalmente as relações familiares. Ao mesmo tempo, avanços tecnológicos transformaram a noção de concepção e paternidade, através de pesquisas e estudos no campo da infertilidade proporcionando o aparecimento de famílias monoparentais, onde a presença do pai não tem mais o mesmo peso de antigamente. Outra grande mudança diz respeito à legalização das relações homoafetivas e a adoção de crianças por casais homossexuais. O discurso amoroso do século XXI O discurso amoroso do século XXI, decorrente das mudanças advindas da nova moral cultural e das características das sociedades de consumo apresenta traços particulares: as relações são instáveis e fugazes, o objeto amoroso é descartável como qualquer objeto na lógica do consumo. As relações têm que ser light no sentido da falta de compromisso, mas ao mesmo tempo têm de ser algo da ordem de um excesso e do espetacular. Não há diferença entre o público e o privado, Encontros e rompimentos são vividos e totalmente compartilhados nas redes sociais. Como disse Baumann (2007, p. 11), [...] ligações frouxas e compromissos revogáveis são os preceitos que orientam os laços entre os indivíduos. Ligar-se ligeiramente a qualquer coisa que se apresente e abandoná-la rapida16 mente é o que conta. Viver no presente e pelo presente obtendo o máximo de satisfação possível, evitando as inquietudes e sofrimentos, priorizando os finais rápidos e indolores, pois sem eles seria impossível recomeçar é um imperativo. Evitar o luto, atenuar a dor, diminuir a angústia e calar o sofrimento frente às perdas e decepções afetivas são as soluções mais buscadas atualmente. Quanto aos namoros, alguns mantêm o padrão tradicional como um treinamento para um futuro compromisso, mas, na maioria das vezes, ninguém é responsável por ninguém... Cada um que cuide de si e procure se defender dos sofrimentos da separação. Frente a tantas transformações da era vitoriana aos dias atuais, gostaríamos de saber o que mudou nos registros simbólico e imaginário. As eleições amorosas ainda seguem os mesmos padrões descritos por Freud e Lacan? Tipos de escolhas de objetos em Freud Em Freud vamos encontrar dois tipos de escolha de objeto: a escolha de objeto narcísica e a escolha de objeto anaclítica (FREUD, 1974, p. 94). Na escolha de objeto narcísica o modelo é a relação do indivíduo consigo mesmo. É uma relação marcada pela onipotência, onde as limitações, os enganos e os erros são vividos como ofensa pessoal. Na escolha de objeto anaclítica, a pulsão sexual está apoiada na pulsão de autoconservação. É uma escolha regressiva e complementar — mulher que alimenta e homem que protege. Infantilizante para um, acentua o papel parental do outro. A escolha narcísica ativa está do lado masculino, e a escolha anaclítica, passiva, está do lado do feminino Em relação à mulher, Freud estabeleceu duas condições que determinam a escolha. O objeto deverá ser um substituto paterno: o complexo de castração leva a mulher a se afastar da mãe (a Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 15–20 | Dezembro/2013 Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais quem atribui à falta de um pênis) e a achar no pai uma posição de descanso. O homem deve redundar num filho: que seu homem seja um pai e que seu homem seja um filho. A síntese deve caminhar para a resolução da maternidade: seu homem é pai de seu filho. Dentro dessa perspectiva, a escolha conjugal é correlativa às fixações infantis, marcas deixadas pelo encontro com os pais. Se para Freud o encontro com o objeto é sempre um reencontro, o laço amoroso teria um valor de um sintoma, tentativa de restituição e montagem de um fantasma. Nos interessa saber se encontraremos hoje as mesmas condições descritas por Freud, isto é, o peso do operador narcísico e do complexo de Édipo nas eleições do objeto. Um exemplo da mulher freudiana do século XIX Isabel Orléans de Bragança, Condessa d’Eu, nasceu em 13 jul. 1847. Com 4 anos foi reconhecida como herdeira da Coroa brasileira. Cresceu como princesa que teria de fortalecer o princípio monárquico, apesar de ser mulher... Ser mulher naquela época significava “o belo defeito da natureza”, “o vaso frágil” no qual o homem depositava sua semente. A inferioridade feminina era um dado natural, e o marido seu guardião e tutor por excelência. Isabel era uma criança gorda, dócil, obediente e bondosa. Sua mãe era pacata e religiosa. Seu pai, o imperador Dom Pedro II, embora a valorizasse como filha, parecia incapaz de aceitá-la como sua sucessora. Aos 19 anos se casa com Dom Gastão d’Eu, conde francês, em um casamento arranjado, mas por quem se apaixonou imediatamente. Ele era carinhoso, e ela fazia tudo para agradá-lo. Isabel era o retrato acabado da noiva romântica do século XIX. Gastão queria participar da política e dos negócios da corte, mas Dom Pedro o impedia. Isabel, por seu lado, era totalmente desinteressada pelo reino. Nada do que dissesse respeito à vida pública parecia preocupá-la. Isabel confirmava as impressões do pai: lugar da mulher era não na política, mas em casa. Só lhe importava a vida privada, o ninho dos pombos. Quando Gastão parte para a Guerra do Paraguai, ela escreve: “Meu querido, meu bem-amado, meu amigo, meu tudo”. Sem rodeios, dizia-lhe que sentia falta de suas carícias e da cama vazia. Com o nascimento dos filhos, passam a viver cada vez mais uma vida burguesa. Diferentemente dos casamentos das elites, eram amigos, companheiros e dormiam juntos. Quando Gastão parte para uma viagem, Isabel lhe escreve: “Vou me deitar bem só! Bem triste e bem saudosa!!! Boa noite querido do meu coração!!!”. Isabel detestava substituir o pai quando ele viajava. Nada queria saber sobre a abolição dos escravos e o movimento republicano. A oposição a acusava de pouco inteligente, histérica, fanática religiosa e incompetente. Acusava o casal de fútil e egoísta. Após a Proclamação da República, a família parte para o exílio. As contribuições de Lacan Lacan, em sua teorização, contribuiu para a compreensão freudiana ao mostrar que o sujeito pode ficar preso numa captura narcísica, para evitar o encontro angustiante do que ele é como objeto para o Outro. No início, essa captura narcísica inscreve-se no sujeito quando ele reflete a imagem que corresponde ao desejo dos pais ou da família e está articulada à constituição do sujeito como um tempo lógico e estruturante, o Estádio do espelho, em que sua imagem refletida é autenticada pelo Outro. Essa ilusão narcísica de completude é a condição necessária do sujeito e sua inscrição no campo do Outro, no simbólico. Corre-se, entretanto, o risco de se ficar preso no imaginário, ao ideal, numa alienação à imagem e, portanto, detido, paralisado. O encontro com o desejo do outro é sempre enigmático e angustiante para o sujeito, pois nunca se sabe o que pode advir. As relações amorosas, que são expressões de laços sociais, Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 15–20 | Dezembro/2013 17 Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais geralmente refletem essa forma de vínculo alienante em que o sujeito evita a renúncia de ser o objeto imaginário que obtura a falta do Outro, renúncia que possibilita o acesso ao desejo (Salles; Ceccarelli, 2010, p. 22). Para Lacan, a escolha narcisista é marcada pelo imaginário: elege-se um semelhante. É um tipo de eleição ativa, onde o que importa para o sujeito é amar; não importa se o outro ama ou não. Já na escolha anaclítica, o que importa é ser amado. Faz-se a escolha de um outro que o apoia e quer. É mais uma relação com o grande Outro. A posição anaclítica é a que melhor convém ao homem, pois é ele que tem algo para satisfazer a mulher. A mulher encontra nele o objeto que lhe falta. O que Lacan evidencia é o poder feminino que se funda sobre a pobreza, o não ter e, em nome da falta, obter, pedir e perseguir. Nessa relação o homem sofre por não poder deixar de dar à mulher o objeto que lhe falta. A mulher sofre de duas faltas: a falta-a-ser, que constitui todo ser humano e a falta de um significante, que define a feminilidade. Por isso, ela se aproxima do homem na relação amorosa pedindo que ele a defina. Se uma mulher aspira encontrar seu homem, é precisamente como uma consequência de não “ser toda” e precisar de uma ancoragem para seu ser e para o seu gozo. Para isso, ela aceita ser as diversas mascaradas, inclusive a “masoquista”; “ela é capaz de dar tudo para o homem, seu corpo, sua alma, seus bens” (Zalcberg, 2007, p. 141). Uma mulher faz tudo para ser amada. Ela, na falta de definição, precisa de palavras, palavras de amor, e se elas não vêm, advém uma verdadeira devastação que, ao final das contas, revive o relacionamento mortífero com a figura materna na infância. A mulher é para o homem um sintoma (objeto a). Por isso, o sintoma do homem (o de que só pode amar uma parte da mulher, nunca ela por inteiro) tem uma profunda repercussão sobre a mulher. Para ela, trata18 -se de uma devastação, nunca ser amada por inteiro. Por isso também, o amor é tão insistente e tão importante para a mulher, assim como as palavras de amor, que representam para ela uma restauração narcísica. O sentimento de perda de amor é muitas vezes vivido como uma devastação. Uma mulher lacaniana - a devastação Eles estão por volta dos trinta anos. Ele é profissional liberal bem-sucedido, preocupado com a aparência, mora sozinho. Ela é funcionária pública federal com alto salário. Muito bonita, mora com os pais. Estão juntos há seis anos, mas ele não quer casar. A justificativa dele é “preciso de liberdade”. Ele exige que ela se apresente sempre impecável, que tenha um bom carro, que se exercite, que mantenha o peso. Controla o tempo todo o que ela come. Viajam muito e sempre dividem todas as contas. Ela cuida da casa dele, desde a decoração até as contas, lavanderia, supermercado, empresta seu carro quando o dele vai para a oficina. Ele sai semanalmente sozinho para encontrar os amigos e as amigas. Muitas vezes ela o leva e busca nesses encontros. Quando ele chega em casa e não a encontra, liga reclamando que não tem nada para comer. Certa noite, ao sair da casa dele às duas da madrugada, teve um pneu furado e a roda do carro quebrada, em uma rua escura e perigosa. Teve de resolver o problema com o porteiro de um prédio. Não pode ligar para o namorado, porque ele sempre avisa quando ela sai da sua casa “não me ligue quando chegar em casa, porque já vou estar dormindo”. Devastada, chega ao analista. Para finalizar, mais algumas questões Um homem faz da mulher o objeto a como mais-de-gozar em sua fantasia, mas o inverso não é verdadeiro. Os objetos a na fantasia de uma mulher são seus filhos. Como fica essa máxima psicanalítica nos dias atuais? Como dissemos anteriormente, cresce o número de pessoas solteiras que moram sozinhas e de mulheres que não querem mais ser mães. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 15–20 | Dezembro/2013 Algumas características dos laços amorosos nos dias atuais E qual é o novo fetiche dessas mulheres? A carreira? O próprio corpo perfeito? A independência financeira? Uma das afirmações psicanalíticas é que o homem chega ao amor através do sexo, e a mulher chega ao sexo através do amor. Como fica isso hoje? Na atualidade, uma das dimensões do masculino está atrofiada: o cavalheirismo. As mulheres se ressentem, por outro lado, estão bem mais ativas e arrojadas quanto à abordagem sexual dispensando a corte masculina e até a dimensão do amor na relação. A clínica demonstra que geralmente as relações anaclíticas têm mais estabilidade e duração, enquanto as relações narcísicas, muito embora mostrem um alto teor de atração sexual, em geral têm uma durabilidade menor, pois são atravessadas por um alto grau de agressividade e competitividade, Existe também uma certa incongruência entre o discurso e a prática nas escolhas amorosas atuais. Estamos nos referindo agora aos mais jovens. A escolha é predominantemente narcísica, mas as queixas são de falta de cuidado, atenção, isto é, a demanda é anaclítica. Os relacionamentos são abertos, fugazes, mas se invade a privacidade do outro através de telefone, email, GPS, crises de ciúmes por causa de mensagens, telefonemas não atendidos, porque a pessoa não está onde disseque estaria. Um novo fenômeno que se apresenta é a geração Y. Nascida após a década de 1980 e conhecida como geração do milênio ou da internet, usufruiu dos confortos e dos avanços tecnológicos desconhecidos pelos pais. Já foi acusada de ser distraída, egoísta, superficial e incapaz de sustentar a longo prazo um compromisso profissional ou amoroso. Não é que não tenha valores morais, pois defende intensamente o meio ambiente. Eo calor com que participou dos movimentos políticos que ocorreram em junho deste ano, nos fez ter finalmente mais esperança nessa geração. Para finalizar, pensamos que houve de fato mudanças radicais da era vitoriana aos dias atuais, que afetaram principalmente as relações amorosas. Entretanto, permanece o desejo de fazer vínculos, a tentativa de sair da solidão e, cada um, à sua maneira, tenta iludir o desamparo e a incompletude, pois o amor, afinal, é ainda o que consegue fazer laço entre o real e o simbólico. Abstract The authors analyze changing in nowadays love relationships, using Freudian and Lacanian concepts, besides clinical vignettes. Keywords: Anaclitic relations, Narcissistic relations, Fetish-object, Devastation-object , Y Generation Referências Abras, R. M. G; Sanches, N. R. A. Abrindo o jogo. In: Revista Vorstellung, Belo Horizonte, n. 1. out. 1997. Publicação do Grupo de Estudos Psicanalíticos (GREP). Alves NETO, G. F. O amor é dar o que não se tem. In: CESAROTTO, O. Ideias de Lacan. São Paulo: Iluminuras, 1995. Bauman, Z. Vida líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. Debord, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. FREUD, S. O mal-estar na civilização [1930 (1929)]. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XXI, p. 81-171. FREUD, S. O tabu da virgindade (Contribuições à psicologia do amor III) (1912). 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Especialista em psicologia clínica. Psicanalista. Sócia do CPMG. Endereço para correspondência Ana Cristina T. C. Salles Rua Piauí, 778/503 - Santa Efigênia 30150-320 - Belo Horizonte/MG (31) 3273-4335 E-mail: [email protected] Nina Rosa A. Sanches Rua Levindo Lopes, 333/804 - Funcionários 30140-911 - Belo Horizonte/MG (31) 3281-0699 E-mail: [email protected] Rosa Maria Gouvêa Abras Rua Alagoas, 1270/301 - Savassi 30130-160 - Belo Horizonte/MG E-mail: [email protected] Salles, A. C. T. C.; Ceccarelli, P. R. A invenção da sexualidade. In: Revista Reverso, Belo Horizonte. n. 60, set. 2010. Publicação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Salles, A. C. T. C.; Ceccarelli, P. R. Angústia, separação e desamparo na clínica contemporânea. In: Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 38, dez. 2012. Publicação do Círculo Brasileiro de Psicanálise. Soller, C. A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contracapa, 1998. Zalcberg, M. Amor, paixão feminina. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. R ecebido e m : 1 0 / 0 9 / 2 0 1 3 A provado e m : 2 9 / 1 0 / 2 0 1 3 20 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 15–20 | Dezembro/2013 O primata perverso polimorfo O primata perverso polimorfo1 The polymorphous perverse primate Anchyses Jobim Lopes Em homenagem aos chipanzés e bonobos que, ao contrário do que acontece em nosso país, são vítimas de: governos corruptos, multinacionais sem ética e caçadores inescrupulosos; de modo que serão extintos breve em seu meio natural e só restarão em parques protegidos e zoológicos. Resumo A influência de Darwin no pensamento freudiano. Conhecimentos atuais sobre a evolução dos grandes primatas. As descobertas feitas nas últimas décadas sobre o comportamento de chipanzés e bonobos. Paralelos entre o comportamento sexual e agressivo dessas espécies com o dos seres humanos. Releitura de algumas teses de Totem e tabu a partir desses novos conhecimentos. Filogênese do complexo de Édipo. A dualidade agressiva e erótica da espécie humana. Palavras-chave: Darwinismo, Grandes primatas, Chipanzés e bonobos, Agressividade e sexualidade, Totem e tabu, Édipo. Introdução: Freud e o retorno a Darwin Freud teve grande influência da obra de Charles Darwin. A bibliografia das obras completas de Freud cita todos os livros do pai da ideia de seleção natural, inclusive cartas e a autobiografia. Utilizada ao longo de toda a sua obra, Freud classifica o darwinismo como uma das três feridas narcísicas da humanidade, precedida pela copernicana e sucedida pela da psicanálise. Copérnico, Darwin e Freud, os três estão no mesmo plano quanto ao processo de crítica dos pilares judaico-cristãos do ocidente, e é o último da trinca quem mais de uma vez afirma isso. Mais diretamente, a hipótese freudiana do processo de antropogênese, iniciado em To- tem e tabu e ainda inconcluso ao tempo de Moisés e monoteísmo, tem sua semente no projeto darwinista. Além das grandes teses sociais antropológicas, também ocorreu o interesse de Freud por mudanças físicas específicas ocorridas durante a evolução da espécie humana. Menos discutidos que os temas da horda primeva e do assassinato do pai primevo, são suas considerações sobre a importância do surgimento do bipedismo para o da repressão. Reflexões que se iniciam em uma carta a Fliess, de 14 de novembro de1897: Frequentemente suspeitei de que algo orgânico possuía um papel na repressão [...] a noção estava ligada com a mudança da função do olfa- 1. Trabalho parcialmente apresentado no XX Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise e XXXI Jornada de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, Belo Horizonte, 26/28 de setembro de 2013. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013 21 O primata perverso polimorfo to: o andar ereto foi adotado, o nariz levantouse do chão ao mesmo tempo em que um número de sensações, que antes eram interessantes, se tornou repulsivas — por um processo ainda desconhecido por mim (FREUD, 1978, p. 268). Freud cultivava com esmero a lei de Haeckel de que a ontogênese segue a filogênese. Considerando que à época de Freud pouquíssimo se sabia sobre as linhagens de homídios pré-humanos e muito pouco sobre o comportamento dos grandes primatas nossos parentes mais próximos, sendo uma espécie inteira ainda viva na África completamente desconhecida — os bonobos —, é plausível que a obra freudiana não tenha especulado mais nessa vertente, por absoluta incapacidade de se fundamentar em dados objetivos. Desse modo, além dos já mencionados temas abordados em Totem e tabu, não foi muito mais do que a relação entre repressão2 e bipedismo que pode ser utilizado por Freud para hipóteses sobre o processo de antropogênese. Contudo, tal tema de estudo é pertinente ao projeto freudiano. Ao contrário do que se possa impensadamente concluir, estudar o papel de processos físicos implica a defesa não de comportamentos instintuais inatos, mas sim da adaptabilidade a partir do surgimento de sociedades e formas de agir e sentir muito mais 2. Os temas do olfato, do bipedismo e sua relação com a repressão são retomados várias vezes, até serem extensamente discutidos em O mal-estar na civilização, publicação de 1930 (FREUD, 1978). Há que tomar cuidado com a imprecisão dos termos repressão (Unterdrückung) e recalque (Verdrändung), ainda mais nas edições brasileiras, calcadas na inglesa e que traduzem ambos os termos por “repressão”. Em princípio repressão diferiria de recalque por ser este último inconsciente, contudo mencionam Laplanche e Pontalis no Vocabulário de psicanálise que repressão “é um termo cujo uso é mal codificado” (1978, p. 419). Apesar de nos atermos no presente texto ao termo “repressão” quando supomos que difere do recalque no texto freudiano, a descrição de Freud sobre olfato e bipedismo relata uma conduta que é inconscientemente determinada. 22 ricas, recriadas de modo diferente por cada um a cada geração, isto é, na plasticidade da pulsão. Considerações gerais sobre nossos primos Ciência muito mais recente, a primatologia, o estudo dos grandes primatas, seus corpos, mas, acima de tudo sua psicologia e suas sociedades, trazem novidades interessantíssimas para uma complementação da linhagem psicanalítica acima mencionada. Grandes primatas são nossos primos mais próximos: orangotangos, gorilas, chipanzés e bonobos. Ao contrário da asserção atribuída a Darwin, que tanto ofende os fundamentalistas de várias religiões, não somos parentes próximos, muito menos descendemos dos macacos. Estes têm rabo, os grandes primatas não (infelizmente não temos em nosso idioma termos separados, como em inglês, em que monkeys designa aqueles com cauda e apes os sem cauda). Classificada como a superfamília hominoidea surgiu há cerca de 20 milhões de anos, tendo os orangotangos sido os primeiros a se mudar para mais longe há 14 milhões, os gorilas se separaram depois, há 7,5 milhões e, finalmente, os ancestrais dos chipanzés e bonobos e os ancestrais dos seres humanos pediram as contas e foram morar separados há meros 5,5 milhões de anos. Já chipanzés e bonobos se separaram entre um milhão e meio de anos ou talvez bem menos. Em termos evolutivos e na história dos mamíferos essas distâncias são mínimas. Todos os primos compartilham entre si 97% do DNA, sendo que com os de primeiro grau — chipanzés e bonobos — temos 98,4% de DNA igual. Importante que se acentue que os estudos comparados, desde a genética até o comportamento e a sociologia dos grandes primatas, nada tiveram em comum com o nascimento de pretensos saberes como a sociobiologia e a psicologia evolutiva. A primeira nasceu do estudo das abelhas. Partindo daí, a segunda pegou alguns dogmas pseudodarwiania- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013 O primata perverso polimorfo nos e com eles construiu extenso castelo de cartas, que nada mais é que uma nova vertente do antigo darwinismo social — inclusa sua ramificação nazista — e que, usando supostas descobertas ditas da neurociência, racionaliza o neoliberalismo e o patriarcado como consequências necessárias da natureza humana. Os autores mais divulgados da primatologia duramente criticam e refutam esta tal psicologia (RYAN; JETHÁ, 2010; WAAL, 2013), cuja base epistemológica, aliás, é nula. Entre a existência de um gene e um comportamento específico todas as etapas intermediárias entre material genético e funcionamento cerebral são desconhecidas ou hipotéticas. Fora que todos os fatores ambientais (leia-se aprendizado, sociedade e cultura) teriam de ser rigorosamente afastados por meio de pesquisas com população controle. Retornando a nossos primos, as diferenças anatômicas entre os chipanzés e os bonobos são muito pequenas, exceto que os últimos possuem uma cabeleira partida ao meio. Mas as condutas sociais e sexuais são acentuadamente diferentes. Uma mudança geográfica, o aumento de volume do rio Zaire há um milhão e meio de anos ou menos fez com que um grupo de antepassados de ambas as espécies ficasse ao norte do rio, separado de outro ao sul. Os do norte sofreram mudanças climáticas e ambientais mais rigorosas, enquanto os do sul tiveram sorte de uma ambiente mais estável. Logo os antepassados dos chipanzés modernos evoluíram mais rápido do que os dos atuais bonobos, levando a hipótese de que estes estejam mais próximos do que teriam sido os antepassados tanto de chipanzés quanto dos humanos (KANO, 1992). Falando sobre os chipanzés Os chipanzés, tendo permanecido ao norte, onde as florestas diminuíram e a savana aumentou, tiveram de descer bastante das árvores para apelar para a caça. Têm uma dieta onívora, mas apreciam mais uma boa carne e caçam em grupos liderados por um macho alfa, e podem ser muito agressivos. São patriarcais, hierarquizados, poligínicos (várias fêmeas para um macho), embora, com frequência, fêmeas mais velhas conquistem posição de relevo. Apesar de bem menores que os seres humanos, e extremamente fortes, os chipanzés podem ser mortais. Ao contrário do se apregoa, os homens não são os únicos animais que matam os de sua própria espécie por prazer. Chipanzés executam ‘chipanzecídios’ em tribos rivais sem benefício aparente. Apesar dessas características que podem parecer muito humanas e moralmente negativas, têm uma sociedade com qualidades até pouco consideradas restritas aos primos humanos: ajudam velhos e doentes, fêmeas, e até machos adotam filhotes de pais que morrem, utilizam e são capazes de inventar instrumentos simples que transmitem a gerações seguintes. Possuem a capacidade de empatizar com os sentimentos de outros do mesmo grupo e mesmo com seres humanos, quando com eles estabelecem bom relacionamento. Pode-se falar até de luto quando perdem os mais próximos. A empatia, isto é a capacidade de se identificar com sentimentos dos outros, também permite que sejam extremamente manipuladores dos sentimentos alheios. Logo, os chipanzés são excelentes políticos, formando alianças e golpes em uma sociedade muito hierarquizada. Em um ambiente mais hostil que seus primos bonobos, os chipanzés tiveram de restringir a sexualidade quase que somente à reprodução. Tanto pelo fato de que durante a cópula qualquer animal se torna vulnerável (para um predador a caça de dois a preço de um), quanto para manter, entre os machos, a organização social necessária à caça com o mínimo de conflitos. Entre outras qualidades, os chipanzés também emitem sons com significados ainda não conhecidos e se reconhecem entre si pelos sons e pela voz. Identificam a própria imagem num espelho e são capazes de reconhecer dezenas, até centenas de outros chipanzés por meio de fotografias. Isto é, têm Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013 23 O primata perverso polimorfo um grau surpreendente de individualidade, mas não um núcleo familiar como o conhecemos. Os filhotes são criados apenas com a mãe e os irmãos, frequentemente num grupo isolado do grupo principal. Mas é relatado que um macho adulto jamais copula com sua mãe biológica ou adotiva, assim como é descrito que, se criado com uma irmã, biológica ou não, também não terá relações sexuais com ela. A figura de pai é desconhecida. Mas sexo entre os pais e suas filhas biológicas é evitado, porque as chipanzés fêmeas jovens saem em busca de outros grupos de sua espécie. Contudo, a sexualidade é focada apenas na reprodução e muito limitada se comparada à dos bonobos e humanos. A relação sexual é sempre macho/fêmea e com a penetração por detrás. Bonobos: uma pouca vergonha! Os bonobos, ao contrário, têm uma dieta predominantemente de frutas, são igualitários, não violentos e matriarcais. Têm as mesmas habilidades sonoras e o reconhecimento da própria imagem no espelho que seus primos chipanzés. Apelidados de anarquistas ou hippies da floresta, não são especialistas em política. Permanecendo em um meio menos hostil que seus primos chipanzés, puderam se dedicar mais ao prazer do que à caça. Mas sua metade ao sul do rio, se por um lado, fornece grande quantidade de frutos, estes mudam sua concentração geográfica com certa rapidez, o que fez com que os bonobos tivessem de se organizar em grupos maiores que os chipanzés. Grupos capazes de se deslocar inteiros e rapidamente, inclusive com fêmeas e filhotes. Isso justificaria uma organização social completamente diferente dos chipanzés. Durante décadas foram escondidos por seus primos humanos nos zoológicos, dada a suposta imoralidade de conduta. Por mais incrível que pareça, exceto para os psicanalistas, que são especialistas em detectar o recalque sexual, os bonobos como espécie só foram identificados em 1929. O estudo dos 24 bonobos ficou décadas atrás do dos chipanzés porque biólogos e estudiosos humanos tinham vergonha de pesquisá-los. Imaginese relatar suas descobertas em público. Expô-los em zoológicos, nem pensar. Os bonobos resolvem todos os conflitos através do sexo. São especialistas em beijo de língua (qualidade também dos chipanzés), atingem o orgasmo inúmeras vezes ao dia. As fêmeas são sempre sexualmente receptivas, estejam férteis ou não. Ao contrário de todas as dos demais primatas, exceto na espécie humana, as fêmeas também têm o desenvolvimento de seios, não muito grandes, que em ambas as espécies não têm nenhuma utilidade na amamentação; é apenas um atrativo sexual. Um excitante bastante razoável do ponto de vista evolutivo, uma vez que praticam o coito frontal, preferência quase exclusiva, na qual são os únicos primatas além dos humanos (talvez um menos exclusivo nessa escolha). Além do beijo de língua, bonobos são especialistas em: sexo oral, masturbação mútua, vários tipos de frotteurismo, mas não é relatado coito anal. A principal fama (ou má fama) dos bonobos entre os humanos se dá por sua extrema frequência de todos os tipos de relações sexuais, independentemente do sexo do(a) parceiro(a). Não se pode falar de homossexualidade na acepção de uma opção exclusiva, porque todos os bonobos são completamente e muito freudianamente bissexuais. Ao contrário dos chipanzés, cujas fêmeas se tornam incapazes de sexo por anos após cada parto, as fêmeas bonobos rapidamente voltam à atividade. Logo, nos bonobos a sexualidade não somente extrapola completamente a reprodução ao contrário dos chipanzés, exímios e hierarquicamente fixados políticos, todos os vínculos sociais e todos os conflitos são explicitamente cimentados e resolvidos com sexo. Sendo dominantes, as fêmeas resolvem conflitos de poder e outros com sexo entre elas. O status social dos machos deriva do de sua mãe. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013 O primata perverso polimorfo Se extrapolássemos conceitos humanos como pedofilia, os bonobos seriam acusados de realizá-la, mas sem cópula, começando com a estimulação genital nos bebês. Contudo também possuem a restrição absoluta ao sexo adulto genital com penetração entre mãe e filho dos chipanzés. Nascimento do tabu do incesto? Para os psicanalistas o que mais chama a atenção no comportamento com os primos é a existência do ‘núcleo duro’ do tabu do incesto tal como foi descrito por Lévi-Strauss (1982) nos seres humanos. Nenhuma cultura humana conhecida, presente ou passada, admitiu relações sexuais mãe-filho. As relações pai-filha não são proibidas em muitas culturas, tal com não o são no Levítico. O limite entre comportamentos inatos e adquiridos atinge aqui seu limite. Em outras tantas culturas como a egípcia, durante milênios o casamento entre irmãos era a regra na família real e na nobreza, principalmente porque a linhagem real passava por via materna. Os faraós precisavam se casar com suas irmãs porque elas seriam as verdadeiras herdeiras do trono. Esse costume permaneceu até a conquista grega e romana do Egito. A última rainha, a famosa Cleópatra VII, antes de conhecer César e Marco Antônio, foi casada com dois de seus irmãos. Apesar de tudo, em muitos aspectos Freud ainda era homem de seu tempo. Bem eurocêntrico como todo bom europeu, sua obra se fundamenta numa separação rígida entre natureza e cultura. O mito do pai primevo e a origem da proibição do incesto em Totem e Tabu (FREUD, 1978) caracterizariam o momento exclusivamente humano da passagem de natureza a cultura. Foi a ideia que seguiu o pai da antropologia cultural. Mas exclama o primatólogo mais conhecido, Frans de Waal (2013): “quão longe do alvo estava Lévi-Strauss” (WAAL, 2013, p. 71). Contudo, como escreveu outro dos principais primatólogos, descrito pelo mesmo Waal como o cientista japonês que por mais tempo com bonobos em seu meu meio ambiente, Takaioshi Kano (1992): [...] mecanismos psicológicos e sociais para evitar o incesto existem em todos os primatas [...] a sociedade primata evoluiu ao longo de um eixo de “evitação do incesto” [...] longe de ser comportamento avançado único, humanamente produzido, evitação do incesto é comportamento que surgiu ao longo da evolução primata (KANO, 1992, p. 2). O tabu do incesto entre mãe-filho de nossos primos pode ser explicado tanto biológica quanto psicologicamente. Possivelmente ambas as explicações se complementam. Chipanzés não se tornam adultos pelo menos antes dos doze anos. Quase o mesmo ocorre entre os bonobos, cujas fêmeas se tornam sexualmente maduras por volta dos nove anos e são consideradas adultas entre os treze ou quatorze anos, quando costumam ter sua primeira cria. Em ambas as espécies os filhotes são amamentados por quatro a cinco anos (chipanzés há relatos de até seis anos). A longa infância está muito próxima da duração entre os humanos, e a amamentação em muito excede nossos costumes atuais. Com uma década de infância, uma dependência absoluta da mãe nos primeiros anos e possuidores de um córtex apenas menor que o dos humanos e de alguns mamíferos marinhos, se desenvolve extensa memória do período infantil. Sem se esquecer do vínculo afetivo estabelecido na amamentação com mãe e filho se entreolhando. A memória infantil se sobreporia sobre o corpo adulto. Isto é, diante de um filhote já adulto, a mãe sempre o reconheceria como filhote e, diante da mãe, o filhote sempre se comportaria como filhote. Como mencionou Freud em Totem e Tabu ao se referir ao que impediria o incesto de filhos com suas mães: uma “imagem inalterada dela preservada em seu inconsciente” (FREUD, [1913] 1978, p. 16). Não sabemos se essa característica sur- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013 25 O primata perverso polimorfo giu primeiramente no antepassado comum entre chipanzés e bonobos, ou primeiro nos antepassados dos seres humanos. Ou de um antepassado comum a todos. De modo que permanece em aberto o prêmio de quem foi o primeiro neurótico na história da evolução. Feminismo primata ou primevo? Em uma época que se usa a neurociência para justificar o comportamento humano como inato, a primatologia vai no sentido contrário. A conduta sexual dos bonobos, as estratégias políticas e de caça dos chipanzés, a invenção de instrumentos, a capacidade de aprender símbolos geométricos são algumas das características que embasam a afirmação de que “comportamento inato é coisa rara em nossos parentes mais próximos” (WAAL, 2007, p. 149). A afirmação tão repetida pela psicologia evolutiva de que os homens preferem mulheres jovens porque estão mais aptas a reproduzir bem, e as mulheres preferem homens mais velhos e de status elevado porque serão bons provedores para seus filhos não encontra eco na observação de nossos primos. Bonobos e chipanzés preferem companheiras totalmente maduras. No caso dos chipanzés, em que a sexualidade é muito mais rarefeita que nos bonobos e apesar da figura do poderoso chefão no macho alfa, as jovens suam um bocado para conseguir sexo até com os betas. Um Berlusconi e suas prostitutas adolescentes são criação exclusivamente humana. Nos dois nossos primos as fêmeas possuem francas preferências em relação à busca de parceiros. Mesmo no caso dos chipanzés, patriarcais e submetidos a um macho alfa, frequentemente a astúcia feminina ajuda as fêmeas a eleger um parceiro nada alfa e a enrolar o chefão. O que caracteriza chipanzés fêmeas, e muito mais suas primas bonobos, é dar mais importância ao seu prazer sexual do que a supostas características genéticas úteis para a prole. Mas os chipanzés machos alfas compartilham a obsessão masculina humana com a fidelidade feminina e, quando tomam 26 o poder, ficam com as fêmeas e simplesmente matam os filhotes do alfa deposto (aqui, sim, há um comportamento inato, uma vez que não é possível nenhuma noção de paternidade). Já os bonobos machos não estão nem aí para política e conquistas violentas de poder. Comunitariamente ajudam filhotes de todos, ainda mais que suas fêmeas frequentemente são poliândricas e o vínculo de relação mais forte é exclusivamente mãe-filho, que, como vimos, é quase tão forte entre os chipanzés. Mas nestes os vínculos entre machos formando confrarias masculinas é o que detém o poder. Se, por um lado, os bonobos fornecem subsídios para a defesa freudiana da bissexualidade e da libido como mantenedora de todos os vínculos sociais (talvez o que também permita o maior vínculo entre os machos no caso dos chipanzés), por outro, parecem o pesadelo do patriarcado humano. Assemelha-se ao que poderia ter sido o matriarcado originário defendido por Bachofen, citado por Freud em Totem e tabu. Período anterior à atual cultura patriarcal, à prevalência do monoteísmo, ao maior desenvolvimento da agricultura e ao nascimento da escrita. Quem possui o sexo rei? Claro que existem imensas diferenças entre os seres humanos, chipanzés e bonobos. Diferenças ainda maiores em relação a primos mais afastados como gorilas e orangotangos, e maiores ainda aos mais distantes gibões. Entre o sexo masculino e o sexo feminino, humanos têm um peso médio de 86/74 kg, chipanzés 40/35 kg, bonobos 35/32 kg, gorilas 160/80 kg, orangotangos 75/37 kg e gibões10/10 kg. Nota-se que a variação de peso entre os sexos em humanos, chipanzés e bonobos é de 20%. Nos gorilas e orangotangos de 100%. Gibões machos e fêmeas têm o mesmo peso. Espécies em que os machos são poligínicos e lutam violentamente entre si pelas fêmeas, que passam a ser propriedade exclusiva Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013 O primata perverso polimorfo sua e passivamente são submetidas ao coito, os machos têm de ser grandes e fortes para lutar entre si. Donde gorilas e orangotangos machos têm o dobro do peso das fêmeas. Pouco importa que os primeiros tenham um pênis ereto de 3 cm e os segundos de 4 cm. Nos gibões, uma espécie que estabelece uma monogamia absoluta e não há competição entre os machos, os dois sexos são do mesmo peso e tamanho. Já nós e nossos primos mais próximos temos uma variação de peso entre os dois sexos de 20%. Isso indica um grau leve de competição entre os machos e certa tendência à poliginia e poliandria, se não simultânea, pelo menos ao longo da vida. Para certos autores decididamente a monogamia humana total seria uma imposição antinatural (RYAN; JETHÁ, 2010). A obsessão freudiana com o pênis se torna digna de nota quando se mede que os homens têm em média 13/18 cm, proporcionalmente ao peso, o mesmo que bonobos e chipanzés com 7,5 cm. Só que o ato sexual humano tem uma duração média de 474 segundos, enquanto o de nossos primos mais próximos dura entre 7 e 15 segundos. Orangotangos conseguem atingir 60 segundos, mas os campeões são os gorilas com 900 segundos. Do ponto de vista humano masculino os gorilas não parecem muito invejáveis já que se acasalam poucas vezes por ano e exclusivamente para reprodução, assim como pelos dados acima sobre as dimensões de seus genitais, sendo que os testículos são internos e do tamanho de um grão de feijão. Totem e tabu rebobinado (Totem and taboo reloaded) Retornemos à hipótese sobre a relação entre bipedismo e recalque, citada ao início, que demonstra como Freud se interessava tanto pelo darwinismo quanto pelo pelos aspectos físicos da antropogênese, que em Totem e tabu é abordada a partir da origem do complexo de Édipo. As descobertas sobre nossos primos chipanzés e bonobos tornam atual que se repense vários aspectos dessa obra tão questionada de Freud. Primeiro, se o tabu do incesto já existe sob a forma da proibição de relações sexuais mãe-filho, nuclear segundo Lévi-Strauss, nossos primos não dispõem de uma figura paterna. Segundo, há que pensar que a descrição da horda primeva e o assassinato do pai primevo, segundo Freud, constitui uma narrativa bem machista, homem que era de seu século. As mulheres não têm nenhuma participação no ato de fundação da passagem do natural ao cultural no mito freudiano. Está implícito que constituem mero objeto do desejo dos machos, sem nenhuma vontade própria. Para Freud mulher e cultura eram antagônicas a partir do próprio ato de fundação da humanidade. O estudo de chipanzés e bonobos mostra que, ao contrário, a figura materna e seu tabu do incesto são anteriores ao nascimento da figura paterna, mesmo que tenha sido essa a grande criação do processo de antropogênese humano. Chipanzés e bonobos fêmeas não são nada passivas, levantando a hipótese de que o mito descrito em Totem e tabu tenha de ser atualizado em relação ao papel ativo do feminino: possivelmente instigaram os machos a alianças ou traições entre eles, formaram vínculos eróticos ou tanáticos não só com o outro sexo, mas entre elas mesmas, quem sabe, não deram até mesmo uma mãozinha no assassinato do pai primevo? Mesmo considerando-se que Freud não poderia inteiramente deixar de ser um homem formado pelo patriarcado de seu tempo, por um momento questionou se “[...] aqui não poderia estar o germe do matriarcado, descrito por Bachofen que por sua vez foi substituído pela organização patriarcal da família” (FREUD, 1978, p. 144). Desse modo, o mito de Freud e Lacan de uma lei instituída somente pelo sexo masculino deve ser criticado. Em nossos primos há um esboço de lei que é passado pela mãe: o sentimento de fraternidade e cooperação entre os irmãos. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013 27 O primata perverso polimorfo Também existe a hipótese de que, tendo os chipanzés passado parcialmente à savana e necessitando se organizar para a caça, a pressão evolutiva que sofreram foi maior que a dos bonobos. Segundo Kano (1992) tudo indica que os bonobos tenham mudado menos que os chipanzés em relação ao antepassado comum de todas as três espécies. Logo, os ancestrais dos humanos, embora possam não ter tido uma sexualidade tão efusiva quanto a dos bonobos atuais, provavelmente não a tinham restrita à reprodução, nem tão dominada pelos machos quanto a dos atuais chipanzés. Freud chegou a indagar se a aliança entre os irmãos para o assassinato do pai primevo poderia ter sido ‘baseada em atos ou sentimentos homossexuais, talvez originados durante o período de expulsão da horda’ (FREUD, 1978, p. 144). Tendo por fundamento a hipótese de que os ancestrais humanos teriam características próximas aos atuais bonobos, algo completamente desconhecido por Freud, pode-se pensar que não houve um aumento, mas apenas o resultado de uma já existente disposição a bissexualidade. E sabemos como o tema da bissexualidade era caro a Freud. Os antepassados dos seres humanos tiveram de abandonar completamente a vida arborícola em favor da savana. A luta pela sobrevivência em um meio mais hostil fez com que sofressem uma pressão evolutiva muito maior que seus primos: donde o bipedismo completo e uma organização social muito mais complexa para a caça. Organização da qual faz parte uma atividade sexual permanente, muito mais rica e mais diversificada do que a dos chipanzés. Ao mesmo tempo, o bipedismo, tornando os genitais à mostra, teria sido um dos fundadores da repressão. Defende Freud em O mal-estar na civilização (Civilization and its discontents): Os genitais também produzem uma forte sensação de cheiro que muitos não podem tolerar e que lhes estraga a relação sexual. Assim devemos achar a raiz mais profunda da repressão 28 sexual, que avança junto com a civilização, como sendo a defesa orgânica da nova forma de vida alcançada pela postura ereta do homem, contrária a sua existência animal anterior (FREUD, 1978, p. 106). Além da complexidade das relações afetivas e eróticas, a ampliação da teia social só teria sido possível pelo desenvolvimento da laringe humana. Nossos primos nem de longe possuem algo parecido. Por outro lado, tornou o pescoço comprido do ser humano extremamente vulnerável para qualquer inimigo, humano ou não. Além disso, a laringe comprida frequentemente confunde sua função fonadora, com a de respiração e a de alimentação. Antes da era dos antibióticos um engasgo não resolvido possivelmente conduzia a uma pneumonia fatal. Se houve alguma vantagem, foi a criação de um órgão riquíssimo para o que nos torna mais humanos: a fala. A incapacidade em produzir sons complexos faz com todas as tentativas de ensinar linguagem a nossos primos sejam por meio de blocos e símbolos visuais. Resta a especular, retornando à questão do bipedismo completo, sua relação com a repressão sexual e o recalque, sem o qual não haveria linguagem humana, com sua infinita combinatória de um número finito de elementos. Sem recalque e recombinação de significantes e significados não haveria inconsciente, logo não existiriam: arte, poesia, o sonho infinito (outros mamíferos sonham, mas enredos fixos, e nossos primos, o que sonham ainda não se sabe), a infinita gama das emoções e sentimentos humanos, neurose e loucura. Além do recalque e do complexo de Édipo, criação freudiana primordial é o conceito de pulsão em oposição ao de instinto. Mas não é um psicanalista, e sim o primatologista mais conhecido, que, falando de nossos primos, descreve: A beleza de um sistema de respostas emocionais sobre um sistema instintual é a de que seu Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013 O primata perverso polimorfo resultado não está escrito em uma pedra. O termo ‘instinto’ refere-se a uma programação genética que diz aos animais, ou seres humanos, como agir de um modo específico sobre circunstâncias específicas. As emoções, por outro lado produzem mudanças internas, juntamente com a avaliação da situação e o julgamento das opções. Não está claro se os seres humanos e outros primatas possuem instintos no sentido específico, mas não há dúvida de que possuem emoções. [...] uma interface inteligente que media entre a entrada (input) e saída (output) tomando por base o que é mais importante para o organismo em determinado momento (WAAL, 2013, p. 152-153). Conclusão: o schizo humano As pesquisas sobre os grandes primatas, posteriores à obra freudiana, podem subsidiar hipóteses instigantes do fundador da psicanálise. Não é exclusividade nossa o comentário de que, tendo a linhagem humana se separado daquela dos antepassados dos chipanzés e bonobos, que só depois se dividiram em duas espécies, os seres humanos partilham uma mistura das características dos dois primos. Basta reler os parágrafos acima. Somos tanáticos como os chipanzés e libidinosos como os bonobos. Ou quase tão libidinosos. Ao contrário dos de nossos primos que agregam dezenas e pouco mais de uma centena de indivíduos, os grupamentos passaram da ordem da centena, chegando ao milhar e hoje são da ordem de milhões. Além da linguagem hipercomplexa, a organização social exigiu novas formas de recalque tanto da sexualidade quanto da agressividade que, segundo Freud foram utilizadas através dos processos sublimatórios, a favor da cultura. Mas as formas de repressão sexual extrema, tal como a preconizada pelos monoteísmos, principalmente na doutrina católica, de relações sexuais exclusivas para a reprodução, e sem concupiscência, só seriam possíveis se fôssemos chipanzés. Modo de repressão, bem seja lembrado, historicamente recente (LOPES, 2011). Podemos acrescentar que o monoteísmo teria surgido como derradeiro meio de o patriarcado manter seu domínio. Se estudos contemporâneos buscam explicar como funcionam, também há que repensá-los em sua gênese. Mais do que a coerência de sua obra, houve uma intuição de Freud nessa direção, que o conduziu a dedicar seus últimos escritos à crítica radical de ambos. Mesmo assim, a lei paterna tal como apresentada por Freud e Lacan, que muitas vezes descambou em defesa de ideias grotescas, necessita de uma revisão crítica ainda mais cuidadosa. Mesmo que fosse possível uma sexualidade restrita à reprodução, como defendem algumas religiões, temos de lembrar que os chipanzés não são monogâmicos. A relação da diferença de tamanho entre os dois sexos nos seres humanos conduz à afirmação tenazmente defendida por Ryan e Jethá (2010) de que não somos uma espécie exclusivamente monogâmica, mas — discretamente ou não tanto — polígama. A empedernida defesa freudiana da bissexualidade, hoje anátema até para organizações de defesa dos direitos homossexuais, encontra eco na ancestralidade comum aos bonobos. Por outro, a passagem à savana, à semelhança dos chipanzés, conduziu a um reforço das tendências agressivas, visto que o sucesso demográfico dos seres humanos funcionou, apesar de seu preço altíssimo em termos de guerras e destruição do meio ambiente. De um lado Maquiavel, Sade, Nietzsche e o Freud mais pessimista; do outro, Freud em sua vertente mais light, Kinsey, Lennon e algumas feministas. Decididamente somos uma espécie que precisa de psicanalistas. Abstract Influence of Darwin on Freudian thought. Present knowledge about the evolution of the apes. Discoveries made over last decades about chimpanzees and bonobos behaviour. An appraisal between these species sexual and Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 21–30 | Dezembro/2013 29 O primata perverso polimorfo aggressive behavior with human behaviour. A new reading of some Totem and Taboo thesis through that new information. The Oedipus complex phylogenisis. The sexual and aggressive duality of human species. WAAL, F. de. Eu primata. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Keywords: Darwinism, Apes, Chimpanzees and bonobos, Aggression and sexuality, Totem and Taboo, Oedipus. WAAL, F. de. The bonobo and the atheist. New York/ London. W. W. Norton & Company, 2013. Referências WAAL, F. de. Good natured: the origin of right and wrong in humans and other animals. Cambridge: Harvard University Press, 1996. 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Anchyses Jobim Lopes Médico e Bacharel em Filosofia pela UFRJ. Mestre em Medicina (Psiquiatria) e em Filosofia pela UFRJ. Doutor em Filosofia pela UFRJ. Psicanalista. Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ). Presidente do CBP-RJ nos biênios 2000-2004 e 2008-2012. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) 2004-2006. Professor Titular II do curso de Graduação em Psicologia e Especialização em Teoria e Clínica Psicanalítica da Universidade Estácio de Sá (UNESA). Endereço para correspondência Rua Marechal Mascarenhas de Morais, 132/308 Copacabana - 22030-040 - Rio de Janeiro/RJ Página: http://www.anchyses.pro.br E-mail: [email protected] KANO, T. Last ape: pigmy chimpanzee behavior and ecology. Stanford University Press, 1992. LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-.B. Vocabulaire de la psychanalyse. Presses Universitaires de France, 6e ed., 3e trimestre 1978. LEVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 1982. 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Enquanto tudo não tiver sido dito, enquanto o objeto como tal (ou seja, o objeto do gozo) não tiver sido nomeado, catalogado, impresso em letras, é preciso que ele sobreviva para continuar a ser oferecido aos golpes do carrasco que busca seu retalhamento simbólico. a n dré, 1995, p. 25. Gostaria de agradecer o convite do Espaço Moebius para participar desta jornada1 já que o tema da perversão tem-me ocupado em muitos momentos, e a interlocução é a melhor possibilidade de esclarecimento das ambiguidades e incertezas teóricas que vivenciamos no exercício da clínica psicanalítica. Não só a clínica do nosso tempo é marcada pela incidência de atos cujo cunho, perverso ou não, deixa dúvidas como também o psicanalista vem sendo convocado a dar parecer na área jurídica a respeito da responsabilidade subjetiva do criminoso. Se o sujeito do ato é um psicótico ou um perverso, a forma de tratar e julgar esse sujeito deverá obedecer a estratégias diferentes, de forma que discutir e avançar nesses temas se torna fundamental para a elaboração da teoria por suas consequências práticas, não apenas no campo da clínica psicanalítica. Para pensar a perversão em seu desenvolvimento histórico e teórico, remeto a textos anteriores, onde foram trabalhados.2 Pretendo aqui focalizar questões que considero importantes porque implicam a posição e o ato do analista diante de sujeitos e cenas por eles vividas, que nem sempre se definem classicamente como perversas, embora se encaixem 1. XXII Jornada do Espaço Moebius, 25 e 26 de outubro, 2013, com o tema Perversão, Salvador, Bahia. 2. Cito como exemplo, entre outros, os artigos: BARBIERI, C.. O que é perversão? In: PIMENTEL, D.; Araújo, M. G. (Org.). Interfaces entre a psicanálise e a psiquiatria. Aracaju: Círculo Brasileiro de Psicanálise, 2008. p. 282-299. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/cgi-bin/wxis.exe/iah/>; BARBIERI, C. Os enigmas da criminalidade à luz da psicanálise. Cógito [on line], v. 13, p .8-21, 2012. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sciarttext&pid=S15 19-94792012000100002&lng=pt&nrm=iso>. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 31–36 | Dezembro/2013 31 As per-versões na clínica psicanalítica perfeitamente na sua lógica, exigindo reflexão e aprofundamento teórico. Podemos tentar compreender a perversão a partir de algumas definições que nos fornecem versões e efeitos possíveis da estrutura e de seus traços. Tomarei apenas quatro, que considero fundamentais: 1. Em Freud: A perversão não é uma inversão; é a expressão direta da pulsão parcial. Nela encontramos o avesso da operação do recalque, de modo que isso não exclui certos efeitos de recalque na subjetividade, como acontece na psicose (FREUD, 1905, 1914, 1923). 2. Em Roudinesco: A diplopia é uma alteração da visão, uma má convergência, que faz com que vejamos dois objetos em lugar de um. Transformação do bem em mal. A perversão dos costumes. Distúrbio, perturbação. Há perversão da visão na diplopia (ROUDINESCO apud LITTRÉ, 2008, p. 9). Então, a perversão é da ordem da diplopia, o que permite dizer: “eu sei, mas... mesmo assim...”. 3. Em Serge André: A perversão é uma modalidade discursiva, uma impostura: [...] a perversão é algo totalmente diferente de uma entidade clínica: ela é um certo modo de pensar. Um pensamento cuja essência demonstrativa decorre das relações do perverso com a fantasia e com a Lei (ANDRÉ, 1995, p. 312). 4. Em Mário Fleig: “Propomos, como hipótese, que a dessubjetivação do sujeito moderno tem incidência no que constitui um dos fenômenos elementares da perversão” (FLEIG, 2008, p. 109). A primeira dessas questões remete à ausência de Verdrangung, o recalque. A Verleugnung, traduzida por recusa, mas também renegação ou rejeição — termos que implicam a negativização de uma representação — nos diz que a ideia é mantida 32 na consciência, mas ao mesmo tempo sua veracidade é negada, negativizada. Desmentido — melhor tradução, para Lacan — inclui a primeira mentira, ao des-mentir a castração, anulando a operacionalidade do recalque. De forma que já aí encontramos a propriedade moebiana de passar do avesso ao direito, do dentro ao fora e vice-versa, sem extrapolar nenhuma borda. O perverso satisfaz o que o neurótico recalca. Temos, ao mesmo tempo, as duas representações opostas e conscientes: diplopia. A mulher é castrada; mesmo assim, é fálica... Isso implica a fantasia e a lei; consequentemente, o posicionamento e a estrutura do sujeito. Serge André, ao definir a perversão enquanto modalidade discursiva, permite pensar em termos de uma torção discursiva, um giro. Que efeitos subjetivos advêm dessa diplopia? Ou será que a diplopia é, ao contrário, o efeito de uma des-subjetivação, como propõe Fleig, em que o sujeito surge não dividido pelo desejo, livre dos infortúnios da castração, para dar vazão aos movimentos propostos pelas “impulsões” parciais? A perversão e o desejo perverso estão determinados por um modo particular de gozo que diz respeito ao sujeito constituído no contexto da ciência moderna, e por isso concerne a todos nós (FLEIG, 2008, p. 109). Esses sujeitos não procuram o psicanalista necessariamente por detectarem sua compulsão como tal, mas terminam trazendo certos fatos e atos que sugerem algo da ordem lógica da passagem ao ato perverso, na medida em que supostamente realizam uma satisfação direta, desmentindo a castração. Entretanto, nesses atos, fica expressa a ausência da satisfação própria do ato perverso. Atos cheios de ambiguidade, entre o prazer e a dor, nos quais a única coisa que fica evidente é a defasagem em relação ao desejo, à compulsividade e à ausência de sentido, que os distancia da configuração do sinto- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 31–36 | Dezembro/2013 As per-versões na clínica psicanalítica ma neurótico, mas também não corresponde exatamente ao que conhecemos como satisfação do fetichista, por exemplo. Encontrei em Fleig uma descrição que corresponde a esta cena que tento descrever: A noção de fenômenos elementares advém da psiquiatria clássica, e Lacan tenta mostrar que não se trata apenas de um fato ou acontecimento, mas de um motivo que se repete, muitas vezes de formas disfarçadas, e que se encontra no interior do delírio, na psicose ou no roteiro perverso como o modo de relação do sujeito com o objeto. [...] São fenômenos sutis, uma espécie de aura, impressões, um sentimento, uma estranheza que antecede o desencadeamento do delírio ou das alucinações. [...] essa dessubjetivação no campo da perversão aparece na paixão pelo inanimado [...] Aparece também na crescente disseminação das formas de anonimato na contemporaneidade. O sujeito se coloca em situações em que seu nome não aparece, o que não se restringe apenas à clandestinidade. São fenômenos aparentemente banais, mas que podem indicar aquilo que diz respeito aos fenômenos elementares da perversão (FLEIG, 2008, p. 59-60). E mais adiante ele propõe outras questões que nos conduzem a uma mais ampla dimensão. Um aspecto interessante é a interrogação que o sujeito perverso introduz no campo das normas sociais: é um sujeito que se situa fora das normas e quer impor suas próprias normas? Seria um sujeito fora-da-lei e que, ao mesmo tempo, impõe uma outra lei? Qual é o estatuto da lei? Não estaria ele mesmo submetido a essa outra lei, ou seja, uma espécie de roteiro pelo qual está tomado e que precisa do outro para ser colocado em cena? O próprio sujeito perverso está submetido a um roteiro particular, ele segue uma lei muito mais rígida do que as leis que ele contesta [...] (FLEIG, 2008, p. 60). Como exemplo, poderia mencionar um jovem, filho exemplar, que divide com a mãe as “funções paternas”, “empregado padrão” respeitado e competente, moral inquestionável, que ciclicamente “sai de si mesmo” (sic) e, mesmo não sendo usuário tradicional, se envolve em orgias regadas a drogas diversas, que geralmente terminam sem sexo e, invariavelmente, num caos financeiro e moral devastador, mas “só-depois” do ato, quando ele “volta a si”. Posso dizer que o trabalho associativo da análise evolui satisfatoriamente, durante muito tempo, com relação a sua vida amorosa, questões familiares, seus becos sem saída, sua posição subjetiva, ideais, enfim, como a análise de um “bom neurótico”. Mas a repetição reiterada desse roteiro, que ao longo da análise se reconstitui ciclicamente, não fornece associações. Parece que ali o simbólico não alcança e tem o aspecto de atuação perversa, como Fleig a descreve e explica. Mas poderia ser relida como “gozo parasitário”, assim chamado por Isidoro Vegh, no sentido da “tentação pulsional” ou, quem sabe, do “mandato”? Isidoro Vegh, tratando da questão das intervenções do analista, utiliza o modelo da informática para pensar essas questões através de um “diagrama de fluxo”. Seu diagrama começa por duas entradas: uma no campo da “vida”, no sentido do pulsional, e outra no campo da “linguagem”, no sentido da fala. As duas se encaminham em direção ao “falasser” (parletre). Nas duas vertentes — no campo do real e no campo do simbólico —, para aceder à condição de sujeito, de ser falante, temos de passar pelo que ele chama de “operador lógico da castração”, ou então, de “processador do inconsciente”. Aquilo que escapar à castração permanecerá atuante enquanto “gozo parasitário”. Na vertente do Real, ele gera efeitos de “tentação pulsional” e, no campo da linguagem, seus efeitos são “Mandatos” ao estilo superegoico. A “tentação pulsional” é silenciosa, insistente e gera efeitos de ato, enquanto o “Man- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 31–36 | Dezembro/2013 33 As per-versões na clínica psicanalítica dato” em sua articulação entre Ideal e supereu, na vertente da linguagem, gera inibição e efeitos depressivos: nos dois casos, separando o sujeito de seu desejo. Como exemplo disso, ele cita o usuário de cocaína que, mesmo desejando, não consegue se libertar da compulsão ao gozo da droga. O fenômeno especial da perversão, como proposto por Fleig, poderia ser entendido como o que do Real emerge, produzindo efeitos de gozo, na medida em que a castração não se operou segundo a lógica do recalque. Tendo falhado o operador lógico da castração, torna-se possível uma torção discursiva, uma impostura que denota como o sujeito toma a lei pelo viés daquilo que ela interditaria se fosse eficaz, ou seja, a tentação pulsional, 34 Coloco o acento na “tentação pulsional”, e não no “mandato”, pois, neste caso, que norteia minhas formulações, se partirmos da colocação de Vegh, parece que o sujeito trafega pela via da “vida”, do ser, e não pela via do falante, da “linguagem”. No que se refere à cena, parece não haver interferência direta do supereu no sentido de um mandato, a não ser que seja enquanto “sentimento inconsciente de culpa” ou “culpa muda”, no sentido que Gerez-Ambertin postula. Para ela, “a culpa deambula pelas fronteiras do gozo” (GEREZ-AMBERTIN, 1993, p. 214). A culpa muda surge da interseção do Imaginário sobre o Real (I>R), no campo do gozo do Outro J(A), ex-sistente aos efeitos de inconsciente. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 31–36 | Dezembro/2013 As per-versões na clínica psicanalítica As intervenções interpretativas, no nível do simbólico, não geram efeitos, e a cena se repete quase sempre idêntica. Depois do ato, quando o sujeito reassume seu lugar e tem de assumir as consequências das ações, surge a angústia, pois se identifica com o objeto, o dejeto; cada vez mais distante e apartado do seu desejo. O discurso perverso não deixa o sujeito livre da angústia, como muitos imaginam. Tanto André quanto Fleig não se cansam de afirmar que o perverso sofre. O perverso não é necessariamente aquele que se diverte o tempo todo, pois não sente nenhuma culpa; em alguma medida, a pressão da angústia de castração sempre existe e obriga até mesmo o psicopata a arquitetar sua solução. O que pudemos ver até aqui é o fato de que certas versões da perversão produzem, em sua ambiguidade, grandes dificuldades para o analista na sua tentativa de dar conta de um real através de um ato que possa corresponder ao que se espera do ato de um analista. Sublinho o “um” analista, já que, tratando-se de analistas, só se pode falar de um por um, cada um. O que Vegh propôs em seu seminário — e que gerou muita reflexão, questionamento e até a retomada da reflexão teórica dessa análise em particular — é que, diante da colocação em jogo do real, cabe ao analista uma intervenção da ordem do real, no Real. Posição à qual não estamos acostumados. Talvez por isso Lacan tenha falado do horror ao ato como medida do ato do analista, horror pelo que de real ele possa carregar em si. Para finalizar, diria que não sei ao certo como meu jovem analisante resolveu sua questão, se realmente resolveu. Só posso dizer que, em dado momento, sob a mira e o confronto que as palavras permitiram a respeito de seu gozo, tomou uma decisão, literalmente, um novo rumo, no Real. Destituiu-se de tudo que o mantinha e sustentava. Demitiu-se, zerou suas dívidas, partiu para outro lugar, na intenção — que espero tenha sido bem-sucedida — de começar uma nova vida, despedindo-se da que havia levado até então. Teria ele conseguido mudar a direção, dado um giro na estrutura, de objeto de gozo se tornar sujeito de seu desejo? Teria o gozo, finalmente, sucumbido ao “retalhamento simbólico”? Teriam as minhas intervenções sido equivalentes a “golpes do carrasco” como sugere Serge André? Quem sabe, um dia, saberemos. Abstract The article aims to work the incidence of perverse nature scenes in the treatment of subjects supposedly neurotic, allowing the possibility of perverse structure versions. Keywords: Perversion, Psychoanalytic clinic, Elemental phenomenon. Referências ANDRÉ, S. A impostura perversa. 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A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. VEGH, I. Conferência proferida no Seminário “Estrutura e intervenções no sujeito da análise”, promovido pelo Espaço Moebius, Salvador, 7 e 8 de junho de 2013. Inédito. R ecebido em : 0 6 / 0 9 / 2 0 1 3 A provado em : 2 4 / 1 0 / 2 0 1 3 S obr e a au tor a Cibele Prado Barbieri Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia. Editora da Revista Cógito – Publicação Anual do Círculo Psicanalítico da Bahia. Endereço para correspondência Rua João das Botas, 185 / 310 C. M. João das Botas - Canela 41110-160 - Salvador/BA E-mail: [email protected] 36 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 31–36 | Dezembro/2013 Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud1 Links between modernity, ethics and subjectivity in Freud´s works Eduardo Leal Cunha Joel Birman Resumo Este artigo pretende indicar a importância da dimensão ética da experiência psicanalítica a partir do vínculo entre o pensamento de Freud e a modernidade. Para isso, recorremos a formulações de Michel Foucault que nos parecem adequadas à descrição do pensamento ético freudiano, sobretudo na medida em que o filósofo francês, no comentário de 1984 sobre o texto de Immanuel Kant em resposta à pergunta “o que é o esclarecimento”, vincula a ética aos processos de subjetivação, por um lado, e, por outro, ao laço entre a experiência moderna e a tarefa crítica do pensamento. Com isso, pretende-se destacar a presença na obra freudiana do vínculo entre os processos de constituição subjetiva e a problematização moral, o que contribuiria para uma compreensão da categoria de sujeito relacionada menos a uma dimensão psicológica, marcada por noções como as de vontade, consciência e percepção, e sim mais próxima do que procuramos descrever como sujeito ético, concebido a partir da relação com o outro e da ação sobre o mundo. Palavras-chave: Ética, Moral, Psicanálise, Sujeito, Freud. Abertura Dizemos hoje com certa tranquilidade que a psicanálise se afirma como ética, seja a partir das formulações de Lacan em torno de uma ética do desejo (LACAN, 1988), seja pela consideração do contraponto entre técnica e ética posto em jogo pela reflexão sobre os modos de atuação do psicanalista em sua clínica (BIRMAN, 1994). Não há, portanto, nenhuma originalidade em tal afirmação. Pelo contrário, trata-se na atualidade de um lugar comum no campo psicanalítico. Persiste, no entanto, a necessidade de explorar o seu sentido, sobretudo em relação ao que se enten- de por Ética, para que possamos aproveitar ao máximo as possibilidades abertas por tal aproximação entre psicanálise e reflexão moral, não apenas quanto ao impacto que possa ter sobre a clínica e em particular no que diz respeito à especificidade do ato analítico face à clínica médica, mas também com relação ao vínculo entre subjetividade e sociabilidade. Consideramos que a compreensão do lugar da discussão ética na obra freudiana — é o que pretendemos demonstrar — tanto se vincula ao sentido que a ideia de sujeito tem em seu pensamento e que orienta a sua postura na clínica, quanto nos remete aos 1. Este trabalho apresenta parte dos resultados de pesquisa desenvolvida em estágio pós-doutoral junto ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ como parte do projeto PROCAD/Novas Fronteiras A dimensão ética do pensamento psicanalítico e seu impacto no estudo de fenômenos socioculturais, o qual reúne as universidades federais de Sergipe, Rio de Janeiro e Pará, com o apoio financeiro da CAPES/Ministério da Educação. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 37–48 | Dezembro/2013 37 Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud modos de articulação entre o indivíduo e o espaço social. Ou seja, destacar a dimensão ética do pensamento psicanalítico possibilita reafirmar a implicação recíproca dos registros da cultura e da sociedade na compreensão freudiana do psiquismo. Tal precisão no entendimento de uma dimensão ética da psicanálise é importante para demarcar com mais clareza a distinção da clínica freudiana em relação às formas de tratamento moral, localizadas nas origens do saber psiquiátrico (FOUCAULT, 2006b), considerando que tais formas ainda se encontram presentes mesmo nas leituras contemporâneas das práticas psicoterapêuticas como práticas de crescimento pessoal e adequação da performance individual com base em uma postura pedagógica por parte do terapeuta, as quais, reunidas sob a denominação de psicoterapias breves, pretendem muitas vezes incorporar a psicanálise ou usá-la como forma de legitimação (COSTA, 1978). Por outro lado, é preciso considerar que, na atualidade, a psicanálise é demandada a se posicionar diante de uma série de questões que requerem uma posição mais clara sobre a sua concepção de sujeito e como tal concepção se aproxima ou se distancia da noção de indivíduo, referido a uma identidade, no sentido de uma narrativa reflexiva do Eu, como propõe o sociólogo britânico Anthony Giddens (2002). Tal definição de indivíduo se associa precisamente às noções de autonomia e responsabilidade moral, o que mais uma vez nos requer uma compreensão clara do uso feito por Freud da reflexão moral. O objetivo deste artigo é, portanto, tomar certas indicações foucaultianas sobre as articulações entre ética e subjetivação a partir da modernidade para compreender, por um lado, de modo mais preciso a inserção do pensamento de Freud na tradição crítica da modernidade, ao lado de autores como Nietzsche e Marxe, por outro lado, evidenciar, na obra do criador da psicanálise, os laços entre problematização moral e processos de subjetivação, mostrando como tais laços se 38 articulam a uma compreensão do sujeito que escapa a qualquer tendência essencializante ou transcendente e, ao mesmo tempo, fornece ferramentas teóricas para o enfrentamento da questão do reconhecimento no mundo contemporâneo sem se submeter à lógica do indivíduo psicológico autocentrado e soberano. Nesse sentido, também nos aproximamos das formulações de Renato Mezan, quando afirma que a psicanálise não deve ter a pretensão de se constituir em um sistema ético ou filosofia moral, mas destacamos que o impacto da problematização moral ao longo da aventura freudiana vai além dos três aspectos por ele apontados, a saber: A incidência dos valores morais sobre a personalidade de cada indivíduo; o vínculo entre estes valores e a sociedade na qual surgem, já que fazem parte do processo de socialização pelo qual nos tornamos humanos; e os problemas éticos que a prática clínica pode colocar para o analista (MEZAN, 1998, p. 211). Para justificar nosso argumento, exploraremos inicialmente o lugar da reflexão moral no texto freudiano, procurando destacar indicações para uma compreensão da categoria de sujeito entendido na sua dimensão ética, enquanto reflexão permanente sobre os modos possíveis de ser e de agir. Localizaremos tal entendimento do sujeito na interrogação freudiana sobre as relações entre a construção do aparato psíquico e os dilemas morais que acompanham os indivíduos ao longo de sua vida e que se fazem presentes na clínica, no discurso dos pacientes capturados por uma contínua interrogação do seu agir, na qual se revelam, ao mesmo tempo, o significado dos seus atos e a sua implicação subjetiva. Em seguida, discutiremos a inserção de Freud na experiência moderna a partir de sua reflexão moral enquanto movimento crítico do pensamento moderno. Recorreremos a Foucault para explorar uma compreensão Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 37–48 | Dezembro/2013 Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud da ética em que não apenas a determinação do comportamento moral é inseparável de uma problematização da categoria de sujeito e dos modos de construção de si (RAJCHMAN, 1996), mas na qual se coloca em questão a própria racionalidade moderna da qual Freud é, ao mesmo tempo, produto inegável e crítico radical (BIRMAN, 2000). Nesse sentido, procuraremos compreender como as formulações de Michel Foucault sobre os vínculos entre a modernidade e a crítica das formas possíveis de existência ao mesmo tempo que lançam uma luz sobre a articulação radical entre ética e formas de subjetivação, nos auxiliam na compreensão do lugar que a reflexão sobre a moral ocupa na obra freudiana e como ela está estritamente vinculada a uma determinada concepção de sujeito, distante tanto da ideia de essência quanto de um indivíduo soberano e senhor de si. Por fim, indicaremos brevemente em que medida tal compreensão da dimensão ética do pensamento freudiano o afasta tanto da psicologia da sua época, centrada na consciência e nos processos psíquicos a ela relacionados, quanto da filosofia moral ao mesmo tempo que nos indica elementos para estabelecer uma perspectiva possível de intervenção da psicanálise nos debates contemporâneos em torno da ética e do reconhecimento da alteridade. Freud, o psiquismo e a moral É preciso distinguir na aproximação do problema da moral em Freud dois eixos teóricos. O primeiro, explícito, se refere a seu interesse pela origem dos sistemas morais e religiosos, no qual se vinculam, por um lado, o código moral a um regime de interdições fundado na proibição do incesto e do assassinato a partir de uma história primeva da sociedade tal como exposto em Totem e tabu (FREUD, 1986a) e, por outro lado, relaciona certa permanência de um modo de funcionamento infantil ancorado na onipotência de pensamentos e na preservação da figura do pai todo-poderoso à busca das ilusões religiosas (FREUD, 1986b) ou dos sistemas filosóficos totalizantes (FREUD, 1986c). O segundo eixo, menos evidente, mas que deve ser privilegiado em nosso argumento, se refere à articulação entre o modo de construção do psiquismo, a partir do recalque, e os valores morais que regulam a sociedade, orientando as forças da resistência e se materializando nos produtos da cultura europeia do final do século XIX. Temos aí em vista a imbricação direta entre a construção do aparato psíquico, no nível individual e ontogenético, e, no nível social e filogenético, o processo civilizatório (VAHLE; CUNHA, 2011). Tal eixo aparece desde os primeiros escritos sobre a histeria, quando diz respeito, sobretudo, ao conflito entre o desejo sexual, o qual naquele momento teórico representa a materialização psíquica da força das pulsões, e as exigências morais e aspirações éticas do indivíduo, representadas na maioria das vezes pelos sentimentos de asco e vergonha (FREUD; BREUER, 1986). A ação do indivíduo dar-se-á como resultante desse conflito, o que é demonstrado não apenas pela produção de sintomas, mas por suas escolhas profissionais ou amorosas, o que fica claro, por exemplo, na leitura freudiana da vida de Leonardo da Vinci, no comentário sobre o romance Gradiva, de Wilhelm Jensen (FREUD, 1986d) ou em sua dita psicologia do amor (FREUD,1986e, 1986f, 4986g). Quanto ao primeiro eixo, o interesse de Freud nos sistemas morais vincula-se diretamente ao seu interesse pela religião, já que seriam essas as duas formas através das quais a civilização ocidental busca operar a regulação das pulsões. O problema moral se vinculará, portanto, ao problema da cultura e da existência do indivíduo em sociedade, o que aparecerá formulado no texto O mal-estar na civilização, de 1930, da seguinte forma: como o homem pode sofrer menos ao viver junto com outros homens? Segundo sua proposição, a vida em sociedade e a construção dos laços sociais não se- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 37–48 | Dezembro/2013 39 Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud riam tributárias de nenhuma espécie de dom natural, sob a forma de um instinto gregário ou do dito sentimento oceânico, vislumbrado por Romain Rolland, interlocutor de Freud no início desse texto (FREUD, 1986h), mas ambos se apresentam como problema, ao mesmo tempo moral e psíquico social e subjetivo. Moral e social, no que se refere à necessidade de produção de regras e dispositivos culturais e sociais de regulação da vida em comum. Subjetivo e psíquico, na medida em que implica transformações na economia subjetiva e nos próprios modos de funcionamento do psiquismo, de modo que a satisfação das pulsões não venha a comprometer a existência do indivíduo ou a vida em comum. Tal problema de dupla face é ainda tomado por Freud em seu caráter histórico, isto é, na sua vinculação com as formas de organização social no contexto do seu tempo, o que fica claro tanto na análise que faz do modelo de casamento monogâmico em 1908, quando propõe uma vinculação direta entre o lugar encontrado para a sexualidade feminina e a produção da histeria (FREUD, 1986i), quanto em sua análise da guerra (FREUD, 1986j) e, principalmente, no próprio texto de 1930, quando o progresso proporcionado pelos avanços da ciência é contraposto ao mal-estar produzido pelo sentimento de culpa que regula os impulsos destrutivos presentes no psiquismo. Por essa via, então, o primeiro eixo de consideração da moral na obra freudiana indicado por nós se articula ao segundo, no qual é importante ressaltar a associação direta entre as formulações freudianas sobre o funcionamento do aparelho psíquico, oriundas do enfrentamento clínico do sofrimento psíquico de seus contemporâneos, e a reflexão sobre temas morais articulados à regulação do viver junto. Nesse sentido, nos parece evidente o modo como, ao longo de sua obra, Freud vai desenhando paulatinamente uma associação direta entre os processos de constituição 40 subjetiva, que são derivados teoricamente do enfrentamento clínico das formas de sofrimento psíquico que marcam a sociedade vienense e europeia na passagem entre os séculos XIX e XX, e a experiência ética ou, num sentido mais amplo, o campo dos problemas morais, produzindo inclusive a articulação entre certas formas específicas de adoecimento — como a neurose obsessiva e histeria — e determinados temas da reflexão moral. Tal articulação entre clínica e ética (VAHLE; CUNHA, 2011) se configura na maneira como, em face de cada um dos principais quadros psicopatológicos apresentados por seus pacientes — aquilo que Renato Mezan descreve como matrizes clínicas (MEZAN, 1988) —, a reflexão clínica freudiana e os desdobramentos teóricos que a seguem e que procuram dar conta dos processos psíquicos subjacentes, se fazem sempre tendo em vista dois registros. O primeiro desses registros é o propriamente psíquico, referido às formas de articulação entre afetos e representações, como os ditos mecanismos de defesa que serão, por exemplo, diferentes na histeria, com ênfase no recalque e na conversão, e na neurose obsessiva, na qual a formação reativa e o isolamento ocupam o centro da cena (FREUD, 1986k). No segundo registro, contudo, o que encontramos é uma discussão que escapa aos limites estritos do que se poderia descrever como psicologia ou como processos mentais, a qual diz respeito a temas da reflexão moral e trazem para a investigação sobre os processos de adoecimento a relação do indivíduo com seus semelhantes, sua inserção em sociedade e o modo como sua ação e seu pensamento são determinados em função dos efeitos que podem produzir sobre a realidade e sobre o outro. Vale ressaltar que tal imbricação entre funcionamento psíquico e valores morais surge desde o momento em que Freud coloca no centro da sua concepção de sujeito o conflito psíquico, dividindo o indivíduo e descentrando o sujeito a partir Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 37–48 | Dezembro/2013 Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud do confronto entre as exigências da pulsão e os limites estabelecidos pelo Eu na sua necessidade de autoconservação, sendo o Eu nesse momento da obra o lócus da razão, da consciência e da moralidade. Desse modo, na discussão sobre a histeria, assume lugar fundamental o papel das interdições relativas à vida sexual, em particular das mulheres ou os ideais e modelos de comportamento hegemônicos que estariam na base dos sentimentos de nojo, asco e vergonha que orientam a ação das forças do recalque. Assim, Freud é levado a tecer considerações sobre o conflito entre sexualidade e moral que marcou a sociedade vitoriana e que resultou em uma moral da renúncia que marcará profundamente sua concepção do recalque e da formação do sintoma histérico (VAHLE; CUNHA, 2011). Na consideração da sintomatologia obsessiva, vão ser os impulsos destrutivos — aqueles que sustentam guerras e destruição — e a ambivalência amor/ódio, em especial na relação com o pai, que serão objeto da elaboração teórica freudiana e que o levarão a conceber o mecanismo da formação reativa, base tanto da formação do caráter individual quanto da virtude humana da caridade. É ainda a partir da clínica obsessiva que Freud vai propor uma hipótese para a constituição e o funcionamento da consciência moral, para o que contribuirá ainda sua leitura da paranoia, afecção que ele enquadrava não entre as ditas psiconeuroses de defesa, mas sim entre os destinos do narcisismo (VAHLE; CUNHA, 2011). O funcionamento obsessivo, com seus rituais e proibições, será ainda referência fundamental para que o inventor da psicanálise se lance à investigação sobre as origens da religião e da moralidade, naquilo que descrevemos acima como primeiro eixo do interesse freudiano pela moral. É preciso destacar, agora, que o principal elemento de articulação entre esses dois eixos será a formulação do complexo de Édipo. Será através dessa noção fundamental que são entrelaçados os dois fios condutores da consideração freudiana da moralidade, que podemos descrever rapidamente como eixos social e clínico, bem como será conduzida a contínua interrogação freudiana da sociedade moderna, a partir do sofrimento produzido em seu seio e materializado em formações de compromisso ou conciliações entre as ordens da pulsão e da cultura na sintomatologia neurótica. Com essa noção, central ao pensamento psicanalítico e responsável por grande parte do seu impacto sobre o pensamento filosófico e a cultura em geral, esses dois eixos ou modos de inserir a problematização moral no campo das discussões sobre os processos de estruturação psíquica são conectados necessariamente, além de indicar a inserção necessária de Freud no seu ambiente cultural e contexto sócio-histórico. Podemos pensar que, com a formulação do Édipo, e o apoio na tragédia grega, marco da cultura ocidental, Freud busca em seu ambiente cultural, não apenas, uma interpretação possível e universal (MEZAN, 1985) para o conflito estabelecido entre desejo erótico e vida em sociedade, o qual apareceria no cerne da configuração da subjetividade, mas, sobretudo, dar conta da exigência característica da modernidade de produção de uma normatividade própria. Na interpretação delineada por Lacan, a morte do pai indicada pelo complexo de Édipo, implicaria a gestão da humilhação do pai produzida como condição de surgimento da experiência moderna e se alinharia como consequência da morte de Deus anunciada anteriormente por Nietzsche (BIRMAN, 2000). Ou seja, se com a formulação da existência de um desejo inconsciente, Freud retira do homem moderno, enquanto ser racional e autoconsciente, a determinação dos seus próprios atos; com a enunciação do Édipo, ele procura estabelecer uma equação através da qual tal soberania é deslocada para a rede de trocas simbólicas que ordenariam a vida em sociedade no Ocidente moderno. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 37–48 | Dezembro/2013 41 Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud Nesse sentido, Freud se apresenta simultaneamente como pensador moderno e como crítico radical da modernidade. Com efeito, Freud reconhece o papel central do indivíduo, mas o coloca em questão na medida em que retira o caráter soberano do eu, apontando para o inconsciente como verdadeiro campo psíquico, colocando ainda em questão a racionalidade que fundaria tal experiência moderna e que se materializaria no discurso objetivante da ciência. É a partir do lugar de crítico da modernidade que Freud costura um laço indissociável entre, por um lado, o problema da codificação moral e do sentimento religioso, a regulação dos laços sociais e a determinação das condições de possibilidade da vida em sociedade, problemáticas do pensamento moderno, e, por outro lado, a construção do aparato psíquico e suas vicissitudes, que incluiria o estabelecimento das formas de sofrimento psíquico e a centralidade do Outro na ativação do desejo inconsciente que governa o nosso agir, para além ou aquém da nossa vontade ou consciência. Com isso, portanto, Freud subverte qualquer fronteira que se pretenda estabelecer entre os registros do indivíduo e da sociedade, consolidando, assim, o descentramento do sujeito da consciência e colocando o registro ético da experiência subjetiva no centro da compreensão do funcionamento psíquico. Foucault: modernidade, ética e subjetivação Mas o alcance teórico das formulações freudianas, com todos os desdobramentos que acabamos de enumerar, não aparece na superfície do seu texto. É, ao contrário, fruto de um trabalho de análise apenas possível pela sua contextualização histórica, ou seja, com a exploração do vínculo, já brevemente apontado, de Freud com o pensamento moderno. Para tanto, nos parece fundamental o recurso à obra de Michel Foucault, basicamente por duas razões: em primeiro lugar, por conta da inscrição da psicanálise na ge42 nealogia da subjetividade, que caracteriza a modernidade tardia descrita por Foucault em torno da produção de um dispositivo da sexualidade, o qual se vincula a uma forma de subjetivação, de relação consigo, fundada na interiorização reflexiva tal como disposta no modelo confessional e no imperativo de conhecer a si mesmo (FOUCAULT, 1984a); em segundo lugar, pela problematização da ética, em função da leitura da própria experiência moderna introduzida por Foucault a partir do final da década de 1970 e do início da década de 1980 e que pode ser delimitada em três movimentos. No primeiro movimento, se destaca a distinção entre os registros da ética e da moral. No segundo movimento, a afirmação da dimensão crítica presente na reflexão ética, que se enuncia claramente no vínculo estabelecido entre ética e problematização, o qual é pensado como marca da experiência moderna. Por fim, o terceiro movimento, que é a articulação proposta entre a problematização ética e as formas de subjetivação. Aqui, é preciso destacar duas formulações centrais que se articulam: por um lado, a distinção delineada entre os registros da ética e da moralidade e, por outro, a ênfase na compreensão do trabalho ético como uma operação permanente dos sujeitos, na qual a ênfase é colocada não no código moral, mas na construção de uma relação consigo mesmo e com os outros, marcada pelo cuidado de si e pela interrogação permanente sobre os sentidos e efeitos dos nossos atos e das nossas palavras (FOUCAULT, 1984b; 2006a), ou seja, “enquanto forma a ser dada à conduta e à vida” (FOUCAULT, 1994b, p. 674). É por esse viés que se costura tal perspectiva ética ao deslocamento produzido pelo filósofo francês entre a categoria de sujeito e a de formas de subjetivação; e é por conta da formulação desse entendimento da relação do sujeito com os valores morais e ideais que regulam a sociedade moderna que Foucault se debruça sobre o mundo helênico e o modo como neste eram reguladas as relações Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 37–48 | Dezembro/2013 Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud do sujeito consigo mesmo e com os outros: “o que Foucault encontra no pensamento antigo é a ideia de inscrever uma ordem na própria vida, mas uma ordem imanente, que não seja sustentada por valores transcendentais ou condicionada do exterior por normas sociais” (GROS, 2006, p. 643). Quanto a isso, vale lembrar ainda que, nas palavras de John Rajchman (1993), o problema ético se apresenta para Foucault como uma dificuldade configurada na busca de uma ética sem articulação com o registro do Bem. Isto é, enquanto o código moral se assentaria na afirmação de um verdadeiro Bem, no momento em que Foucault põe em questão a própria ideia de verdade e seu vínculo com as relações de poder, o trabalho ético passa a se vincular de modo necessário a esta relação com as verdades produzidas historicamente. Numa outra leitura da relação entre ética e moral em Foucault, pode-se enunciar que, enquanto a segunda se vincularia diretamente ao registro do código de valores e ao juízo sobre o agir, correto ou incorreto, a primeira “estaria marcada, em contrapartida, pela maneira pela qual o sujeito constituiria ações e produziria então ativamente práticas de constituição de si” (BIRMAN, 2010, p. 186) de modo que o que “estaria em pauta seria a forma pela qual o sujeito se inscreveria e se posicionaria no campo do código moral” (BIRMAN, 2010, p. 186). Na mesma direção, ao tratar da famosa polêmica estabelecida entre Habermas e Foucault em torno das críticas do primeiro à teoria do poder foucaultiana (HABERMAS, 2000), Richard Bernstein (1994) propõe que encontramos em Foucault, não o fundamento normativo que segundo Habermas seria necessário à lógica foucaultiana do poder (mesmo que este não tenha sido em nenhum momento explicitado ou reconhecido), mas sim um horizonte ético-político. Esse horizonte pode ser tomado, então, como referência crucial para o trabalho ético permanente, de interrogação do sujeito sobre o agir e seus efeitos sem, contudo, jamais se converter em Bem, isto é, em ponto possível de ancoragem para o dito código moral. Aqui, adentramos no segundo movimento referido anteriormente, pois dessa forma, ainda segundo Bernstein, a postura ética de Foucault se traduz em uma postura ostensivamente crítica, a qual o filósofo francês apresenta de modo mais visível no texto de 1984, em que comenta o opúsculo de Kant sobre o esclarecimento (FOUCAULT, 1994a). Nesse texto, Foucault parte da pequena e clássica resposta de Immanuel Kant à pergunta “O que é o esclarecimento”, e se apoia na ideia kantiana de que o que define a época das luzes não é propriamente um tempo histórico nem seu encadeamento em uma série de acontecimentos, mas a saída da menoridade, ou seja, a emancipação do homem racional face à tutela da autoridade, em especial a autoridade religiosa, o que se constitui ao mesmo tempo em programa da modernidade e tarefa na qual o sujeito moderno deveria se engajar individualmente, na sua própria relação consigo mesmo a partir do uso crítico da razão (FOUCAULT, 1994a). A partir da ideia de saída da menoridade como atitude crítica do homem moderno e tarefa que tem a si mesmo como objeto, Foucault define, então, essa atitude como aquela que define a modernidade, um permanente trabalho de interrogação e transformação dos modos possíveis de existência, ou seja, do seu ethos, com base no uso crítico da razão. Com isso, Foucault pretende responder à acusação de que a crítica à racionalidade moderna e às formas de saber e poder que lhes são correlatas o empurraria rumo ao irracionalismo. Inversamente, nos diz Foucault, o que define o esclarecimento e a postura esclarecida do homem moderno é precisamente essa atitude de crítica do pensamento que interroga as formas possíveis de existência e permite ao homem executar a tarefa de assumir o controle sobre si mesmo, sair da menoridade e se transformar. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 37–48 | Dezembro/2013 43 Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud A crítica foucaultiana da racionalidade moderna se materializa então como elogio do pensamento marcado pela permanente interrogação de si pelo sujeito. Nesse sentido, ainda no mesmo texto de 1984, Foucault, recorrendo a Baudelaire, descreve a experiência moderna fundada nessa crítica permanente como trabalho permanente de construção de si. Estamos agora no terceiro movimento empreendido por Foucault rumo ao estabelecimento do que ele entende como a atitude ética que define o sujeito moderno. Movimento em que, costuram-se, por fim, os laços existentes entre o trabalho crítico da razão, a problematização ética e os modos de subjetivação. É desse modelo de reflexão ética, definida, portanto, como exercício crítico da razão, voltado fundamentalmente para a transformação das formas possíveis de existência, isto é, um modo de reflexão ética na qual a dimensão nuclear estaria nos processos e modos de construção da experiência subjetiva, e não no código ou no sentimento moral, que podemos aproximar decisivamente o pensamento freudiano. Considerações finais: ética e subjetivação, clínica e cultura Talvez se possa identificar, no que se refere ao lugar da reflexão moral no pensamento freudiano, deslocamento semelhante ao que se dá quanto à sua posição face ao discurso científico que lhe serve de matriz na medida em que em ambos os deslocamentos tratase, no fim das contas, da sua relação com a racionalidade moderna, isto é, com o projeto moderno de domínio da natureza pelo homem a partir da afirmação da razão instrumental. Ou seja, há um primeiro momento, no qual Freud ainda acredita que o conhecimento adquirido pela ciência, aí incluída a sua psicanálise, possibilitaria um melhor equacionamento dos impasses entre as demandas da pulsão e as exigências da civilização, conforme texto de 1908 sobre a moral sexual civilizada. Trata-se de um momento 44 no qual é possível crer em certo poder preventivo ou pedagógico da psicanálise, no qual a consciência moral ainda é tomada em associação com a razão, o interesse e as pulsões de autoconservação. Essa crença, no entanto, se esvai com a formulação das pulsões de morte e com o reconhecimento de uma dimensão mortífera e destrutiva do supereu, o próprio agente da consciência moral, que se torna cruel e responsável pelo sentimento de culpa que, ao mesmo tempo em que viabiliza a manutenção do laço social, conduz o sujeito ao mal-estar que marca a sua inserção no meio social, segundo Freud, a principal — e a menos compreensível — fonte do sofrimento dos seus contemporâneos (FREUD, 1986h). Com efeito, no domínio da ética tal deslocamento pode ser pensado sob a forma de um deslizamento da busca da garantia do bom comportamento moral pelo uso da razão para a permanente tensão do sujeito na impossibilidade de conciliar a busca da satisfação pulsional com a necessidade de se relacionar com o outro, tal como aparece na experiência do mal-estar, a qual levaria o sujeito a um contínuo trabalho de problematização ética da sua relação com o próprio desejar, sobretudo quando este se refere às pulsões destrutivas. Desse modo, o primeiro momento do discurso freudiano estaria bastante próximo do problema enfrentado pelos fundadores da filosofia moral, na aurora do pensamento moderno, que procuravam responder por que o sujeito age de maneira moralmente correta sem a força ou até mesmo a pressão da sanção e do castigo. Foi esse problema que os levou a interrogar, por um lado, os determinantes subjetivos do comportamento moral, como em Hume, no que constituiria a base de uma possível psicologia moral ou, por outro lado, os modos como o bom uso da razão apresenta-se como condição necessária e suficiente para o agir reto, como em Kant (RAWLS, 2005). Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 37–48 | Dezembro/2013 Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud Enquanto isso, o segundo momento do discurso freudiano, marcado pelos conceitos de pulsão de morte e pelos desdobramentos do conceito de supereu, seria precisamente aquele diante do qual o uso da reflexão foucaultiana nos parece bastante adequado para compreender a potencialidade presente no pensamento de Freud em relação ao tipo de reflexão moral que tem impacto sobre o nosso entendimento do sujeito e que pode nos ser útil diante de certos impasses da contemporaneidade. Nesse momento não apenas temas clássicos da filosofia moral, como a felicidade e o lugar da religião, aparecem em primeiro plano, o que de certo modo começa a acontecer já na década de 1910, em especial com Totem e Tabu (FREUD, 1986a), mas principalmente a discussão de tais temas passa necessariamente pela problematização da experiência subjetiva, de modo que o código moral vem a ocupar o lugar secundário na abordagem freudiana dos temas morais, enquanto a permanente reflexão sobre os modos de agir e sobre a relação do sujeito consigo mesmo assume uma dimensão propriamente ética. Ou seja, quando a equação do sofrimento humano e a transformação dos seus modos de estabelecer laço e investir libidinalmente nos objetos precisa se articular a uma reflexão sobre o seu agir que resulta na enunciação de uma nova história da sua construção subjetiva, na qual se descortinam precisamente a crítica das formas presentes de existência e a abertura para novas existências possíveis. Tudo isso nos parece bastante próximo ao que foi sugerido por Foucault no ensaio sobre o Iluminismo (FOUCAULT, 1994a) como caminho decisivo pelo qual o pensamento moderno afirma a sua potência ao tecer um laço entre pensamento crítico, reflexão sobre a conduta no mundo e processos de subjetivação. Outro ponto interessante a destacar se refere à própria categoria de formas ou modos de subjetivação (FOUCAULT, 1984a) pela qual o sujeito se afirma como destino e produção, e não mais como essência e origem (BIRMAN, 2010). Isso pode nos ser bastante útil para ampliar o alcance de certas formulações freudianas em torno do modo particular como Freud visualiza a história de vida dos seus pacientes, na medida em que seria sempre a posteriori, ou seja, a partir da ação presente e como resultado de um necessário trabalho de construção/reconstrução (FREUD, 1986l) que o sujeito delinearia as possibilidades de sua existência. Com isso, acreditamos poder afirmar que a ética não se refere, portanto, em Freud, prioritariamente, ao estabelecimento de uma regulação do comportamento moral, tampouco da localização de um Ideal, Bem ou Verdade que possa servir de balizador desse comportamento ou finalmente da identificação de um sentimento moral que funcione como garantia de uma relação harmônica com o outro. Qualquer uma dessas opções aproximaria Freud e a psicanálise do domínio das visões de mundo, das quais ele insistentemente procurou se afastar. Todas essas inflexões nos permitem afirmar que, no campo das reflexões sobre a moral, trata-se em Freud, enfim, não da busca de uma resposta, mas do enfrentamento do problema da moralidade, pelo viés do imperativo da eticidade. Esse problema foi articulado a dois outros temas, aqui apresentados de modo bastante breve, mas que consideramos suficiente para demarcar a experiência psicanalítica e a potência do pensamento freudiano a partir de sua inscrição no registro de uma ética em contraposição a uma filosofia do sujeito concebido moralmente e garantido pelos atributos da razão. Por um lado, o tema da construção do psiquismo e de sua articulação com a experiência subjetiva, ou seja, o fato de que não há de início nem sujeito nem psiquê, sendo ambos, psiquismo e subjetividade, construídos ao longo da vida. Por outro lado, o tema do reconhecimento de que tal construção se dá a partir da relação com o outro, em uma rede complexa de trocas afetivas e simbólicas. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 37–48 | Dezembro/2013 45 Vínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud Abstract This article is intended to indicate the importance of the ethical dimension of the psychoanalytic experience based on the link between Freud’s thinking and modernity. For this, we turn to Michel Foucault’s formulations that seem appropriate to a description of the Freudian ethical thinking, especially as the French philosopher, in the commentary on the 1984 text of Immanuel Kant in response to the question “What is enlightenment” binds the ethical processes of subjectivity on the one hand, and secondly, the link between modern experience and the critical task of thought. With this, we intend to highlight the presence in Freud’s works of the link between the processes of subjective constitution and the moral problem, which would contribute to an understanding of the subject in which it would not be referred to a psychological dimension, marked by notions like the will, consciousness and perception, but closer to what we try to describe as a ethical subject, designed from the relationship with the other and action upon the world. Keywords: Ethics, Moral, Psychoanalysis, Subject, Freud. Referências BERNSTEIN, R .J. Foucault: critique as a philosophic ethos. In: KELLY, M. Critique and power: Recasting the Foucault/Habermas debate. Cambridge: MIT Press, 1994. BIRMAN, J. A problemática da verdade na psicanálise e na genealogia. In: Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, n. 42(1), 2010, p. 183-202. BIRMAN, J. Os impasses da cientificidade no discurso freudiano e seus destinos na psicanálise. In: ______. Psicanálise, ciência e cultura. 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Ela também indica que o savoir-faire se encontra ligado ao tempo e ao seu manejo, bem como à existência da lalíngua (lalangue). No entanto, o savoir-faire não deve se situar somente do lado do analista, mas também do analisante. A este cabe aprender como lidar com seu fantasma e seu sintoma. Além disso, o savoir-faire se refere sempre a uma subjetividade, seja ela do analista ou do analisante, na medida em que o inconsciente é um savoir-faire com a lalíngua? Palavras-chave: Saber-fazer, Atenção, Lalangue. Naquilo que concerne à psicanálise, o savoirfaire pode ser visto de maneira positiva ou negativa. O lado ruim: no sentido de uma manipulação indevida da transferência. O lado bom: no sentido de uma justa apreciação dos posicionamentos da transferência. Esse aspecto bifacetário do savoir-faire, no fundo, está correlacionado com o da transferência em si, que às vezes é um fator de resistência e também motor de um querer dizer. A dupla face da transferência nos mostra que ela nunca é pura nem purificável, pois está intricada com a sugestão. No entanto, é recomendável distingui-la. Mas tal distinção não é fácil e demanda a intervenção de outras coordenadas. Freud identificou muito bem tal armadilha em seu artigo A dinâmica da transferência e busca contorná-la: Buscamos preservar a independência última do paciente, utilizando a sugestão somente para fazê-lo realizar o trabalho psíquico, que o conduzirá necessariamente a melhorar de maneira durável a sua condição psíquica (FREUD, 1975). A fronteira entre uma sugestão arbitrária, hipnotizante e uma sugestão a serviço do “trabalho psíquico” pode ser porosa, segundo o dito que os fins justificam os meios. Por isso, é preciso admitir a existência “de uma dimensão de sugestão em toda transferência” (Plon, 1989, p. 91). Nessa ocasião Michel Plon também cita Lacan: Nas condições centrais, normais de uma análise, nas neuroses, a transferência é interpretada com o próprio instrumento da transferência e 1. Título original: L’insaisissable objet du savoir-faire dans l’analyse. In: Essaim. Erès, 2013/1, n. 30, p. 9-23. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 49–62 | Dezembro/2013 49 O inapanhável objeto do savoir-faire na análise com base nela mesma. Portanto, ela poderá ser feita somente a partir de uma posição que lhe é atribuída na transferência, que o analista analise e intervenha na própria transferência. Para ser sincero haverá uma margem irredutível de sugestão, um elemento que será sempre suspeito, que não se atém ao que se passa por fora — não há como saber — e sim a aquilo que a própria teoria é capaz de produzir2 (Lacan, 1992, p. 210). Se, de fato, a transferência pode ser interpretada somente com a própria transferência, existe um círculo vicioso da transferência e da sugestão. Daí então a necessidade, para encontrar uma saída, de fazer com que a transferência dependa de outra alavanca teórica (o ponto fixo de Arquimedes que Descartes relembra em sua segunda Meditação), que foi finalmente nomeado por Lacan, em 1964, o sujeito suposto saber. É também por essa via que é possível abordar a questão do savoir-faire na análise. Um savoir-faire que não se relanceará nos equivocados sulcos da transferência e da sugestão e que não tomará a máscara de Janus. Além e aquém do saber e do fazer associados A associação destes dois verbos cria uma nova noção, suplementar à adição de cada um destes termos. A ordem não é indiferente, porém o savoir-faire (saber-fazer) não é inverso ao faire-savoir (fazer-saber), expressão que também tem sua pertinência, mas que concerne outro campo como o da psicose. E o savoir-faire não precisa de faire-savoir. No “savoir-faire ” existe uma determinação do fazer pelo saber, mas ela não se esgota. Longe disso, o sentido do traço da união entre ambos é também um traço de separação. Mas se o saber determina o fazer, tal fato não 2. Em 1 de março de 1961, p. 210. Ele recoloca a questão em seu seminário L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, em 17 maio 1977 (LACAN, 2004, p. 124). 50 diz de qual saber nem de qual fazer se trata, nem que o fazer se origina do saber. No que concerne ao resultado dessa associação de dois verbos, ele pode provir seja de um fazer sem muito saber, seja um saber sem muito fazer. O exercício de um fazer pode produzir um saber, especialmente se o fazer possui valor de ato, levando em consideração que o gesto está associado a uma dimensão significante — por exemplo, no caso de César atravessando o Rubicão —, mesmo se durante o ato o sujeito não perceba o que está fazendo, pois ele está dividido pelo ato, ele o transforma, ele não é mais o mesmo antes e após o ato. A mudança de posição do sujeito modifica a sua relação com o saber. É o paradigma do ato analítico, o qual Lacan definiu como a passagem do analisante a analista. De maneira mais modesta, é também o efeito de qualquer ato falho, de todo engano,3 que produz uma entrepercepção (entr’apercevoir) de uma dimensão significante que até então o sujeito desconhecia. O fazer pode também encontrar sua origem no saber. É o caso do discurso universitário e de toda formação dita profissional, em que se coloca em prática um saber constituído. A partir desse ponto de vista, o savoir-faire analítico é uma deglutição de um saber aprendido em e através de uma análise pessoal. Trata-se, então, de uma concepção livresca do saber, produzindo interpretações prontas para serem usadas (prêtes-à-porter). Ele se opõe a um saber proveniente de um agir. Mas a dimensão do ato deve ser transmitida através de um saber que confere a sua dimensão significante ao fazer e lhe permite ser reconhecido como tal. Não saberíamos, então, estabelecer uma demarcação clara entre essas duas origens possíveis de um savoir-faire. É preciso se desvencilhar de uma 3. Termo em francês bévue, que significa engano cometido por ignorância. (N.T.). Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 49–62 | Dezembro/2013 O inapanhável objeto do savoir-faire na análise posição binária entre saber e fazer, que é demasiadamente generalizada. É o que fez Lacan quando, ao escrever a fórmula do sujeito suposto saber, diferencia e articula o saber textual, lógico e topológico (o oito interior) e um saber referencial, “latente”, saber suposto, assim como o sujeito, nos significantes deste, aonde o “não sabido se ordena como estrutura do saber” (Lacan, 2003, p. 248-250). Tal como Freud nos lembra, devemos abordar cada “novo caso como se nada houvéssemos adquirido de suas primeiras decifrações” (Lacan, 2003, p. 249). Em outro momento, mas nessa mesma direção, ele anuncia que é “indispensável que o analista seja ao menos dois. O analista, para que os efeitos possam surtir é o analista quem, estes efeitos, os teoriza” (Lacan, 1974). Permanecendo em uma oposição entre saber e fazer, não saberíamos encontrar a verdade do savoir-faire; ao mesmo tempo a noção contém uma originalidade e um valor que não devem ser perdidos de vista. Possivelmente o laço entre o saber e o fazer não consiste em um laço de dois termos, e é preciso ao menos poder atá-los com um terceiro termo. Propomos introduzir neste ponto os termos de gozo e lalíngua (lalangue). No savoir-faire, o saber e o fazer não podem ser isolados como duas entidades ou dois elementos conjuntos que, de alguma maneira, complementariam um ao outro. Existe uma alienação, seja um fazer que, por um lado, exclui o saber e um saber que, por outro lado, exclui o fazer. Uma parcela do fazer excede o saber, ou o antecipa, quando esse fazer produz um saber. Ao mesmo tempo, o fazer pode se mostrar falho com relação ao saber. A transferência ao analista depende do significante terceiro, mediador, “sujeito suposto saber”, mas isso pode reforçar a repreensão da falta de savoir-faire. Mesmo se um savoirfaire é emprestado ao analista, não é o que encontramos no princípio da transferência. Não saberíamos estender de maneira natural a fórmula do sujeito suposto saber em uma fórmula de um sujeito suposto saber fazer. O lado do ato e do fracasso (ratage) O fato de evocar um savoir-faire em uma análise — e que ao fazê-lo a noção de ato é convocada — implica um possível fracasso. O possível seria, segundo Lacan, um cessar de se escrever. Sabemos que, desde Aristóteles e sua contribuição à controvérsia dos futuros contingentes, que o que há de necessário é o possível. É possível que seja A ou B que vença a batalha naval amanhã, mas é necessário que seja ou um ou outro. As alternâncias ou pontuações, do cessar de se escrever e do não cessar de se escrever (assim como Lacan define o necessário [LACAN, 1982, p. 132) talvez sejam aquilo que separa a ação do sujeito suposto saber, como figura necessária, da do savoir-faire, como figura do possível da transferência. Contrariamente à definição que busca que o savoir-faire seja identificado como habilidade, a busca de obter sucesso naquilo que fazemos em uma análise, o savoir-faire se aproxima do risco, de uma possível falha, a aproximação e o fracasso, dimensões ligadas ao ato analítico. Nesse sentido, o savoir-faire é exatamente o contrário da aplicação prática de uma regra teórica universal. Ele não enaltece o saber e não equivale a nenhuma habilidade técnica que seja, mesmo se tratando de algo bem-vindo. É também o caso de outros domínios e não somente da análise, por exemplo, na arte. Fabricar um quadro não é pintar (COLLINS, 2012). Em Propos sur la peiture du moine Citrouille-Amère (Anotações sobre a pintura do monge abóbora-amarga), Shih T’ao exemplifica aquilo que ele chama de “um traço único do pincel”, familiar à caligrafia e à pintura, que vai bem além de regras técnicas de execução. Ele representa um verdadeiro ascetismo: Aonde se encontra a regra? Ela reside em um só traço do pincel. Em um só traço do pincel encontra-se o principio de todas as coisas, a raiz Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 49–62 | Dezembro/2013 51 O inapanhável objeto do savoir-faire na análise de Dez Mil Fenômenos, isto é revelado aos Espíritos, mas escondido dos homens, e o século o ignora. [...] A regra do traço único do pincel é a ausência de regra que produz a regra, e assim a regra obtida abrange o universal (T’AO, 1984, cap. I). [...] É na união entre o pincel e a tinta que se produz o ato de pintura: “A tinta deve umedecer o pincel com a alma, o pincel deve utilizar a tinta com o espírito. [...] Realizar a união entre o pincel e a tinta, é resolver a distinção de yin e yun e se comprometer a ordenar o caos” (T’AO, 1984 cap. V, VII). Em seu livro sobre um dos maiores pintores chineses, Chu Ta (1626-1705), amigo de Shih T’ao, Le génie du trait (O gênio do traço), François Cheng escreve: Que se trate de caligrafia ou de pintura, na China, o gênio criador se resume sempre a este gesto único: traçar o traço. (...) Recordemos que para os chineses o traço não consiste em uma finalidade em si. Da mesma forma com que ele não seria percebido como uma simples linha. Ele é, ao contrário, uma entidade viva, implicada em uma estrutura global que pretende tratar do universo em toda sua toda a integralidade (Cheng, 1986, p. 36-39). Em função das grandes mudanças políticas e familiares, Shu Ta se fechará em um mutismo absoluto, mas ele mostrará ter uma extraordinária energia criativa. François Cheng percebe que para ele o traço representa a “voz de dentro”, ele “dá a palavra à suas imagens” (Cheng, 1986, p. 39). Du tait (de taire) au trai il y a l’r. (Do silêncio ao traço, existe o r). Essa experiência é preciosa para abordarmos aquilo que Lacan chama de “lituraterra”, “a rasura de traço algum que seja anterior” (Lacan, 2003, p. 21), a mesma do traço unário. Ele modifica aquilo que havia apresentado em seu seminário A identificação (Lacan, 24 jan. 1962) formulando os três 52 tempos no advento do significante: o do traço (do não), o da sua desmarcação, e o da anulação da desmarcação. Isso gera o advento do significante “não”: não há traço no não. Em Lituraterra, Lacan conta somente dois tempos, mas ele fala de uma rasura de traço algum que seja anterior para apontar esse momento inapanhável “da metade sem par em que o sujeito subsiste”, e é a caligrafia que o presentifica: O escoamento é o remate do traço primário e daquilo que o apaga. Eu lhe disse: é pela conjunção deles que ele se faz sujeito, mas por aí se marcam dois tempos. É preciso, pois, que se distinga nisso a rasura. Rasura de traço algum que seja anterior, é isso que do litoral faz terra. Litura pura é o litoral. Produzi-la é reproduzir essa metade ímpar com que o sujeito subsiste. Esta é a façanha da caligrafia. Experimentem fazer essa barra horizontal que é traçada da esquerda para a direita, para figurar com um traço o um unário como caractere, e vocês levarão muito tempo para descobrir com que apoio ela se empreende, com que suspensão ela se detém. A bem da verdade, é sem chances para um ocidental. É preciso um embalo que só consegue quem se desliga de seja lá o que for que faça traço (raye). Entre centro e ausência, entre saber e gozo, há litoral que só vira literal quando, essa virada, vocês podem tomá-la, a mesma, a todo instante. É somente a partir daí que podem tomar-se pelo agente que a sustenta. (Lacan, 2003, p. 21) Vemos que o savoir-faire não se reduz a uma habilidade técnica e que um savoir-faire em diferentes domínios pode produzir efeitos análogos, e nesse ponto, uma virada entre saber e gozo. Não é exatamente do que se trata o savoirfaire? Saber fazer uma curva entre saber e gozo? Não seria o gozo o terceiro termo que faria traço entre saber e fazer? O único traço de pincel como o traço unário? Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 49–62 | Dezembro/2013 O inapanhável objeto do savoir-faire na análise O savoir-faire pode ser ensinado? O savoir-faire é transmissível como na arte ou no artesanato? Mais precisamente, quais seriam os elementos do savoir-faire que poderiam constituir objeto de uma transmissão? E como? Não me parece contestável o fato de que o savoir-faire possa ser ensinado durante uma análise, assim como tudo o que se encontra ao redor dela, supervisões, apresentações de paciente, cartéis, passe... É o que então tornaria o savoir-faire indispensável, mas limitado, pois a transmissão de um savoir-faire analítico não é a transmissão da psicanálise, concebida como um saber sobre a passagem da posição de analisante à posição de analista. É nesse sentido que o savoir-faire pode se converter em uma sugestão e, então, reduzir a psicanálise a uma espécie de psicoterapia. Ao publicar A interpretação dos sonhos, Freud esperava, entretempos, produzir um “manual” de interpretação, um guia de savoir-faire das interpretações dos sonhos, que poderia ser utilizado por qualquer pessoa. É por isso que ele buscará da forma mais abrangente possível contribuições de outros analistas, as quais foram incluídas ou não em sua obra, em uma história complicada (Marinelli; Meyer, 2009). Porém, rapidamente ele se dará conta de que um manual não poderia substituir uma análise pessoal, com um terceiro. Todavia, foi preciso esperar 1918 para que Hermann Nunberg recomendasse de antemão a análise pessoal para exercer a psicanálise, e 1925 para que a IPA tornasse tal recomendação obrigatória, o que inscreveria o vínculo entre a análise pessoal e a aquisição de um savoir-faire. Ao mesmo tempo que Freud se sentia livre com relação às regras enunciadas, ele declara que a psicanálise não pode ser ensinada em livros (FREUD, 1974). Nos dias de hoje, a necessidade de uma análise pessoal para exercer a psicanálise é um consenso, embora as razões não sejam sempre as mesmas. Não seria questão de reduzir a análise do analista nem suas conexões, supervisões, ao aprendizado de um savoir-faire. Conceber as coisas dessa forma consistiria em permanecer em um modelo de análise enquanto formação profissional. Mesmo sendo difícil para cada um poder dizer em que a análise pessoal contribui para o aprendizado do savoir-faire, ela será útil ao analisando se ele se tornar analista. Essa foi uma questão colocada durante um colóquio organizado em novembro de 2011 pela EPFCL4: “Enquanto alguém que pratica a psicanálise, o que você obteve do analista que Lacan foi para você?”5 Tentando responder a essa questão, comecei ressaltando a dificuldade: Quais pontos eu irei distinguir em Lacan, irei ler em sua prática para afirmar que eles tiveram tal ou tal efeito na minha prática? Seria eu capaz de representar aquilo que opera na minha prática? E simultaneamente relatar alguma coisa precisa de minha análise com Lacan? Assim mesmo, quando eu conseguir estabelecer esta relação de elementos, permanece somente o conjunto de traços que “recebi” com outros traços próprios que farão com que tais traços não possuam mais o mesmo valor e não serão mais identificáveis enquanto recebidos, ao menos que eu não me dê conta.6 O recebido é um re-sabido daquilo que não me dou conta (PORGE, 2012, p. 41). Colocados tais limites, retive, entretanto, certos traços que poderiam entrar no quadro daquilo que definiria um savoir-faire. Que fique entendido que não é porque retivemos que os dominamos, e existe uma distância entre aquilo que se representa de um savoirfaire e aquele que o opera. Vejamos, resumidos, três desses traços. 4. Ecole de Psychanalyse des Foruns du Champ Lacanien. 5. Publicado em: Champ Lacanien, Revue de Psychanalyse, Paris, n. 11, maio 2012, École de Psychanalyse des Foruns du Champ Lacanien. 6. Termo em francês insu significa “sem se dar conta”. (N.T.). Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 49–62 | Dezembro/2013 53 O inapanhável objeto do savoir-faire na análise Um valor do savoir-faire que a análise me ensinou é a do tato. Freud já havia mencionado em “A psicanálise dita selvagem”: “Na psicanálise, essas regras estritas viriam substituir uma inapanhável qualidade que exige um dom especial: o “tato médico” (FREUD, 1974, p. 41). Rudolph Loewenstein é um dos poucos a ter escrito um artigo inteiro consagrado ao tato na análise. Ele nos alerta especialmente contra duas preocupações que, por mais legítimas que sejam, podem prejudicar o processo de análise: uma curiosidade muito grande em conhecer os pequenos detalhes da história do paciente e um zelo terapêutico que o torna impaciente. Ele também teve o mérito de acrescentar: Uma grande parte das intervenções dos analistas, entre elas, as que pecam contra o tato psicológico, possuem uma base em comum. É a transgressão da terapêutica analítica a um estado da psicoterapia mais primitiva, aquela que age sobre os pacientes através de bons conselhos, pelo chamado à vontade e pela persuasão (Loewenstein, 1930-1931). Lacan, que fora analisante de Loewenstein, reconhecia também o valor dessa qualidade, atribuindo-lhe a seguinte definição: não se apoiar muito nos significantes que fazem mal, manejá-los com discernimento em sua literalidade. A análise também me ensinou o valor de um savoir-faire com as relações interior-exterior, sem abolir a distinção entre privado-público, mas introduzindo nessa relação uma terceira dimensão, uma dimensão analisante passando ao público. Com Lacan, uma exterioridade se mostrava convidativa no próprio consultório do analista. Ela poderia ocorrer mesmo sem ele, mas ele poderia também — com seu estilo inimitável, mas que ensinava através das surpresas que ele provocava — modelá-la, ou seja, demonstrar um savoir-faire avec (saber-fazer com): isso acontecia no encontro com outros ana54 lisantes no consultório do analista, por um trabalho comum com eles nas instituições, pela participação nos seminários e, sobretudo, nas apresentações de paciente de Lacan e de outros analistas. Poderíamos dizer que isso introduzia uma dimensão de passe na própria análise e instaurava, assim, o analista como passador de um discurso, o que é uma maneira de conceber que o analista seja ao menos dois. Finalmente, mas a lista não é exaustiva, se existe uma coisa que a análise pode ensinar e que alimenta um savoir-faire, é a disponibilidade do analista, disponibilidade à demanda de escutar e à própria escuta, que ao encontro do valor da paciência, frequentemente subestimado. Essa disponibilidade não é um dom, ela é uma disposição, ou seja, uma posição do analista, que separa, diferencia, discerne (o dizer).7 A dis-posição do analista responde a uma su-posição em que o objeto é o objeto que prepara a sua de-su-posição do saber no final da análise. Por vezes, ela permite pro-posições que são atos. A disponibilidade do analista encontra sua expressão na regra fundamental enunciada por Freud, a da atenção igualmente em suspenso, a gleichschwebende Aufmerksamkeit.8 Nessa expressão, o gleich implica uma continuidade (a atenção) enquanto o schwebend se aproxima mais de uma descontinuidade (o suspenso). É na verdade uma regra de in-atenção, tal como entendeu Theodor Reik em Le psychologue surpris. Relaxando a sua atenção, desviando-a de um ponto fixo, esperado, voluntário, colocando-se em estado de inatenção, o analista se torna receptivo ao Einfall, à ideia súbita, à surpresa que é característica do inconsciente. “Este processo de relaxamento momentâneo da atenção e do desvio de interesse em outras direções 7. Em francês dis. (N.T.). 8. Para esta tradução e seu comentário, cf. PORGE, E. Des fondements de la clinique psychanalytique. Toulouse: Erès, 2008, chap. V. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 49–62 | Dezembro/2013 O inapanhável objeto do savoir-faire na análise com o retorno consecutivo do objeto prepara a surpresa” (Reik, 1976, p. 75-78). A regra visa impedir que possamos compreender muito rápido os dizeres do analisante e colocá-los em pequenas caixas interpretativas já prontas; a regra favorece a receptividade da surpresa do discurso, inclusive as que vêm do analista, como em caso de lapso auditivo (Verhören) que revela o dizer no que foi ouvido (Clavurier, 2003). Muito mais que uma regra técnica, tratase, podemos ver, de uma posição ética fundada no aparecimento repentino descontínuo, ao imprevisto, sem que esperemos, das formações do inconsciente. Elas aparecem repentinamente e desaparecem logo que aparecem, na estrutura temporal da escansão, da batida de uma abertura (LACAN, 1979, p. 33). A regra da atenção igualmente em suspenso se aproxima da regra à qual Descartes se submeteu, de colocar em suspenso os saberes constituídos e de onde surgiu o cogito enquanto uma espécie de Einfall, muito mais como um julgamento dedutivo; é o que o torna vizinho do sujeito do inconsciente, permitindo ser retomado por Lacan. A atenção igualmente em suspenso dos saberes constituídos é, então, um fundamento do savoir-faire. Neste sentido o savoir-faire não se trata de uma soma de saberes de experiência. Ele visa o contrário, ir contra as armadilhas da compreensão ligada à experiência. O savoir-faire se revela nessa direção tal como um savoir-ne-pas-faire (saber-não-fazer), uma suspensão do savoir-faire. A atenção igualmente em suspenso tem uma função de corte, logo, de pontuação, que dará sentido ao discurso. Ela é a colocação em ato do silêncio, e ela é da mesma ordem da pontuação na sessão. Ressaltamos que François Jullien aproximou a disponibilidade freudiana àquela que constitui a base da sabedoria chinesa, para quem a disponibilidade é “uma disposição sem posição adotada”, que leva a um desprendimento progressivo. O “conhecimento” chinês é não tanto buscar ter uma ideia do que se torna disponível à “(cf. Xunzi, chap. “Jiebi”)” (Jullien, 2012, p. 36-42). A distância entre a psicanálise e a sabedoria, chinesa ou não, continua preservada, mas a reconciliação com esse ponto merece nossa atenção... suspensa. A referência à atenção igualmente suspensa nos permite afirmar que o savoir-faire se apoia essencialmente no manejo do tempo assim como no manejo do dizer. Os dois estão relacionados (LACAN, 1977).9 Não basta que uma intervenção na análise seja exata, justa. Ela deve ocorrer no bom momento e ser colocada de uma boa maneira. Sabemos que Freud nos lembra o provérbio dizendo que o leão salta somente uma vez (FREUD, 1975, p. 234); todavia, não se trata de todas as interpretações, trata-se daquelas que são “violentas” na questão da fixação de um termo na análise (o que Freud fizera com o Homem dos lobos). Mesmo sem se tomar por um leão, o analista sabe que o efeito de uma intervenção de sua parte depende de sua posição na transferência e do tempo lógico em que ele se situa. O termo suspenso nos leva diretamente ao tempo lógico, pois é após duas escansões suspensivas que a asserção de uma certeza pode ser enunciada. Ela é então antecipada na pressa, no momento de concluir que está articulado ao instante de ver e ao tempo por compreender (ao qual podemos assimilar a perlaboração freudiana). Se a compreensão daquilo que é dito em análise deve ser colocada em suspenso, é porque, assim como no tempo lógico, ela se funda em uma não compreensão, que encontrará o seu término somente na antecipação, na pressa do momento de concluir. Ela acontece no après-coup do momento de concluir. Não basta pronunciar a palavra kairos para saber captar o bom momento da interpretação. Existem vários kairos no tempo lógico. 9. Le moment de conclure, 15 nov. 1977. Inédito: Le dire a affaire avec le temps. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 49–62 | Dezembro/2013 55 O inapanhável objeto do savoir-faire na análise O leão salta várias vezes, de maneira diferente, segundo os tempos lógicos e a topologia que correspondem a ele, o que Lacan identificou à garrafa de Klein (LACAN, 1965). Na relação do sujeito ao Outro, em que a garrafa de Klein oferece uma costura possível, o espaço se encontra em duas dimensões, e o tempo, em três. A sincronia do momento de ver é a da linguagem como sistema; a diacronia do tempo para compreender é a da progressão circular da demanda em torno daquilo que produz um furo, progressão onde o sentido se inverte em um momento; enfim, o momento de concluir em torno do furo é aquele de uma identificação que não se encontra fundada numa identidade em si, mas o contrário, numa incomensurabilidade ao um. O suspenso que determina o tempo da interversão da análise opera também, necessariamente, em sua maneira de dizer. Ele não deve dizer muito, nem de uma maneira qualquer; a interpretação deve ser ágil. Em nenhum caso uma intervenção analítica deve ser teórica, sugestiva, ou seja, imperativa, ele deve ser equivocada. A interpretação analítica não é feita para ser compreendida; ela é feita para produzir ondas. Então devemos buscar ser discretos e nos lembrar que é melhor calar-se; basta somente escolher (LACAN, 1976, p. 35). Além do senso, a interpretação nos remete à distinção do dito e do dizer. “Eu não te faço dizê-lo. Não reside aí um mínimo de intervenção interpretativa?” (LACAN, 2003, p. 492). Após a introdução do termo lalíngua em novembro de 1971,10 Lacan cerne ainda mais 10. Lacan, J. Séminaire Le savoir du psychanalyste (O saber do psicanalista). Esse seminário foi feito na capela de Sainte-Anne, no mesmo ano mas em alternância com o Seminário …Ou pire, que aconteceu na Faculdade de Direito do Panthéon. Jacques-Alain Miller achou melhor publicar, no Seuil, em 2011, uma 56 a maneira pela qual os analistas podem intervir. Lalíngua tece as palavras e os sintomas, ela é composta do “integral dos equívocos que uma história deixa persistir” de uma língua entre outras assim que de uma parte de gozo fálico (LACAN, 11 jun. 1974). Lalíngua inclui a dita língua materna com uma parcela estritamente individual. É por essa razão que “a interpretação deve sempre — da parte do analista — levar em conta que naquilo que é dito, existe o sonoro, e que este sonoro deve consonar com aquilo que dele é de inconsciente” (LACAN, 1976, p. 50). De outra maneira, é em função da lalíngua que em Les non-dupes errent Lacan situa novamente a atenção igualmente em suspenso: […] colocarmo-nos neste estado dito pudicamente de atenção flutuante que faz com que justamente quando o parceiro, lá, o analisante, ele mesmo emite um pensamento, nós podemos ter um outro, o que é um feliz azar de onde se produz um flash; é justamente lá onde a interpretação pode se produzir; quer dizer que, devido ao fato de termos uma atenção flutuante, nós escutamos o que ele diz muitas vezes do fato de uma espécie de equívoco, quer dizer, de uma equivalência material. Nós percebemos o que ele disse — percebemos, pois somos submetidos a isso — que isto que ele disse poderia ser parte do Savoir du psychanalyste, à parte, sob o título Je parle aux murs (Eu falo aos muros) e de incluir o outro no Seminário …Ou pire, o que mistura as pistas de leitura para os dois seminários. C.f; editorial no site de Essaim. Por um estudo das questões levantadas sobre o termo “lalangue”, cf. Dominique Simonney, “Lalangue en questions”, Essaim, n. 29, outono 2012. Esse número se intitula precisamente Ce qu’on doit à lalangue (O que devemos à lalingua) e contém vários outros artigos sobre o tema, de Jean-Pierre Cléro, Frédéric Pellion, Simone Wiener, Mary McLoughlin, Paul Henry, Paul Alérini. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 49–62 | Dezembro/2013 O inapanhável objeto do savoir-faire na análise escutado de forma completamente atravessada. E é justamente o escutando de forma completamente atravessada que permitimos que ele perceba de onde vêm seus pensamentos, sua semiótica, de onde ela emerge: ela emerge de nada além do que a ex-istência (ek-sistence) da lalíngua. Lalingua ex-iste, ex-iste em outros lugares além dos quais ele acredita ser seu mundo (LACAN, 11 jun. 1974) Savoir-faire do analisante, savoir-faire com a lalíngua Chegando neste ponto, devemos nos perguntar se não deformamos nossa aproximação do savoir-faire privilegiando a parte do analista e desse fato favorecendo uma linha muito próxima de uma habilidade deste último em passar sua “direção” da cura para o progresso da análise, a fim de obter aquilo que Freud chama de “a convicção certa da existência do inconsciente” (FREUD, 1975, p. 264) e para “realizar o trabalho psíquico que irá conduzir [o paciente] necessariamente a melhorar de maneira durável sua condição psíquica” (FREUD, 1975, p. 58). O savoir-faire também não deve se situar do lado do analisante ? E, além disso, não seria de situá-lo do lado de uma subjetividade, seja ela do analisante ou seja ela do analista? O que temos que aprender com o analisante de seu próprio savoir-faire é, na verdade, o que Lacan evoca inúmeras vezes. Por exemplo, em suas conferências nos Estados Unidos: [...] é com meus analisantes que aprendo tudo, que aprendo o que é a psicanálise. Eu empresto a eles minhas intervenções, e não meus ensinamentos, exceto se eu sei que eles sabem perfeitamente o que isto quer dizer (LACAN, 1976, p. 34). Em seu seminário sobre os problemas cruciais da psicanálise, ele é ainda mais preciso: Trazer o paciente a seu fantasma original, não é fazê-lo aprender: é aprender dele como fazer. O objeto a e sua relação, em um caso determinado, à divisão do sujeito é o paciente que sabe fazer e nós estamos no lugar dos resultados na medida em que os favorecemos (LACAN, 19 maio 1965). Se existe um savoir-faire do analista, ele consiste em favorecer o resultado, que é o analista, resultado do savoir-faire do analisando. Passando do fantasma ao sintoma, Lacan considera em seguida o fim da análise como um savoir-faire do analisante, um “saber fazer com o seu sintoma”, um “saber lidar com ele, saber manipulá-lo”, “algo que corresponde ao que o homem faz com a sua imagem” (LACAN, 2004, p. 49-50). “Manipulá-lo”: ainda é preciso tato. É um savoir-faire com o seu sintoma que encontra o limite de uma identificação ao sintoma, que se pode definir como o limite que encontra a análise do sintoma, seja ele um limite às substituições que dão suporte ao sintoma como metáfora. É um limite aos confins do simbólico e do real; ele chega até a análise do sintoma e faz borda no real do traço unário, quer dizer, no “mesmo”, nisso que ocupa o mesmo lugar, que se sobrepõe, segundo o fecho duplo (la double boucle) deste. Lá se efetua, entre gozo e saber, uma transformação de litoral a litoral com um depósito, uma precipitação da letra do sintoma (Porge, 2010, p. 118-119, 128-129, 133, 154). A virada nesse passe é o próprio lugar do savoir-faire. E lá ele tem algo a fazer com a lalíngua: Lalíngua é o que permite o querer (anseio), consideramos que não é por acaso que assim seja o quer de querer, terceira pessoa do indicativo, que o não (non) negativo e o nome (nom) nominativo também não são por acaso; nem que deles (d’eux) (d apostrofo antes deste eles [eux] que designa aqueles dos quais se fala) seja feito da mesma maneira que o numero Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 49–62 | Dezembro/2013 57 O inapanhável objeto do savoir-faire na análise dois (deux), também não é por acaso e muito menos arbitrário, como diz Saussure. O que se deve conceber aí é o depósito, o aluvião, a petrificação que se marca a partir do manejo por um grupo de sua experiência inconsciente (LACAN, 1974, p. 189). Existe uma questão importante, que curiosamente não perguntamos nunca, que é esta do significado deste “não é por acaso”, que Lacan repete também em um outro texto.11 Ele não volta a uma etimologia comum. Então o quê? Se não é por acaso, é porque há uma razão. Qual razão? A réson, esta que ressoa, segundo as palavras de Francis Ponge, revisitado por Lacan que vai até questionar: “Isto que ressoa é a origem da re (res) com a qual fazemos a realidade?” (LACAN, 2011, p. 93). Um eco, uma ressonância primitiva, uma unidade que seria fixada e multiplicada em várias palavras. Um eco12 teria enviado uma ressonância comum (comme une) a várias palavras, a vários sons. Trata-se de um processo que nos faz pensar naquele de Jean-Pierre Brisset (que inspira Marcel Duchamp). Em A ciência de Deus ou a criação do homem, ele escreve que “a origem de cada língua está nesta língua mesma e define assim “a grande Lei ou chave do discurso”: Existem no discurso inúmeras Leis, desconhecidas até agora, entre as quais a mais importante é a que um som ou uma cadeia de sons idêntica, inteligível e clara, possa exprimir coisas diferentes, por uma modificação na manei- 11. Lacan, J. Conférence à Genève sur le symptôme (Conferência à Genebra sobre o sintoma), Le bloc-notes de la psychanalyse, n. 5, Genève, 1985, p. 12: “Ce n’est pas du tout au hasard que dans lalangue quelle qu’elle soit dont quelqu’un a reçu la première empreinte, un mot est équivoque. Ce n’est certainement pas par hasard qu’en français le mot ne se prononce d’une façon équivoque avec le mot nœud. Ce n’est pas du tout par hasard que le mot pas, qui en français redouble la négation contrairement à bien d’autres langues désigne aussi un pas”. 12. Cf. Porge, E. Voix de l’écho. Toulouse: Erès, 2012. 58 ra de escrever ou de compreender esses nomes ou palavras. Todas as ideias enunciadas com sons semelhantes têm uma mesma origem e se relacionam todas, dentro de seu princípio, a um mesmo objeto. São eles os seguintes sons: Les dents, la bouche (os dentes, a boca) Les dents la bouchent. (os dentes a entopem) L’aidant la bouche. (ajudando a boca) L’aide en la bouche. (a ajuda na boca) Laides en la bouche. (feios na boca) Laid dans la bouche. (feio na boca) Lait dans la bouche. (leite na boca) L’est dam le à bouche. (é a barragem à boca) Les dents-là bouche (os dentes la na boca)13 (Brisset, 2001, p. 702) A mudança para a ciência-ficção aparece quando Brisset afirma que a origem do discurso é feita apenas da criação do homem e que “pela análise das palavras iremos então escutar falar dos ancestrais que vivem em nós e por quem vivemos”, estes ancestrais sendo os sapos e as rãs que coaxam, o coá, coá transformando-se no quoi? quoi? (o quê? O quê?) humano. Como nota Michel Foucault, “estamos no oposto do processo que consiste em procurar uma mesma raiz para várias palavras: tratase, por uma unidade atual, de ver proliferar os estados anteriores que vieram cristalizarse nela”. “A pesquisa de sua origem, segundo Brisset, não cinge a língua: ela a decompõe e a multiplica por ela mesma”. É um princípio de proliferação. Uma palavra é o paradoxo, o milagre, o maravilhoso azar de um mesmo som que, por razões diferentes, por pessoas diferentes, vivendo coisas diferentes, é retido ao longo de uma história. É a série improvável do dado que, sete 13. Brisset, J.-P. La science de Dieu ou la création de l’homme (1900), dans Œuvres complètes, sous la direction de M. Décimo, Dijon, Les Presses du Réel, 2001, p. 702. Repris dans Les origines humaines (1913), dans Œuvres complètes, op. cit., p. 1130. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 49–62 | Dezembro/2013 O inapanhável objeto do savoir-faire na análise vezes seguidas, cai do mesmo lado. Pouco importa quem fala, e, quando fala, por que fala, e utilizando qual vocabulário: os mesmos barulhos, invariavelmente, retidos (Foucault, 2001, p. 604-606). A ex-istência (ek-sistence) dessa lalíngua faz borda com o delírio. Este pode encontrar seu suporte mas também uma forma de limite se nos referimos a Schreber, que quer tornar as vozes dos pássaros milagrosos como um sentimento autêntico fazendo-os entrar no painel da homofonia, ou ainda a Louis Wolfson, que se serve também da lalíngua (o entrelínguas) para tentar, e conseguir relativamente, fazer barragem às suas vozes. Essa função de limite ou de borda da lalíngua não é sem relação com a função da letra como Lacan a faz evoluir, especialmente no que faz mudança no litoral, entre saber e gozo, literalmente (LACAN, 2003, p. 16). Precisamente, na passagem citada acima, Lacan fala de “depósito” e de “petrificação” em relação à lalíngua. O termo “depósito” já aparecia no L’étourdit (LACAN, 2003, p. 490). Ele se relaciona com a “precipitação” da letra, que também aparece na La troisième: “Não há letra sem a lalíngua [...]. Como é que a lalíngua pode se precipitar na letra? Isto continua como questão” (LACAN, 1974, p. 194). Talvez a resposta se encontre na Conferência de Genebra sobre o sintoma: Lacan recorre à metáfora do coador (já presente em Kant) que peneira o escoamento da água da lalíngua, depositando os detritos, os pedaços de significantes aos quais a linguagem se amarra, o coador causando as precipitações de letras, de traços unários na lalíngua. A passagem de uma língua a outra, o passe, seria variações do coador da letra, que por seus buracos deixa passar o Um, o S1, o traço unário incarnado na lalíngua e que continua indeciso entre fonema, palavra, frase ou em todo o pensamento, este Um que o pedaço de barbante de um nó borromeu suporta (LACAN, 1982, p. 131). No final de seu Seminário Mais, ainda, Lacan já avançava que: A linguagem sem duvida é feita da lalíngua. É uma elocubração de saber sobre a lalíngua. Mas o inconsciente é um saber, um savoir-faire com a lalíngua. E isto que sabemos fazer com a lalíngua ultrapassa de muito o que podemos nos dar conta a título de linguagem (LACAN, 1982, p. 127). Desse ponto de vista, podemos dizer que Louis Wolfson procede a uma tentativa de domar a lalíngua e que ele tem sucesso ao identificá-la a seu sintoma (Wolfson, 1970). “Isto que sabemos fazer com a lalíngua” pertence tanto ao analisante quanto ao analista, e mesmo mais ao analisante que ao analista, pois é ele quem fala. O analista pode querer se dar conta a título da linguagem, mas ele será sempre ultrapassado pela lalíngua do analisante. E se ele mesmo fala, ele torna-se novamente analisante. Um analisante que pode eventualmente produzir do analista... para o analisante. O savoir-faire é atado ao parlêtre, esse que fala sem ser, pois seu ser só se retém à palavra. A análise permite ao analista aprender algo de um savoir-faire do analisando, do savoir-faire com a lalíngua que ele (o analista) escuta e age (o analisante). O savoir-faire é possível, mas esse possível se mostra necessário; seu objeto é esquivo, ele é um fio com o qual se delimita o objeto. Longe de ser herdeiro da experiência, o savoir-faire vai contra a experiência, ele é antes de qualquer coisa um saber-não-fazer e um não saber fazer ligado à experiência. Ele é uma suspensão do saber e do fazer, momento de sua escansão. Ele é um saber desfazer (o que é chamado de análise). Desfazer a submissão ao sentido. Ele é o que de mais íntimo da prática toca ao mais real do inconsciente como o impossível a dizer nos dizeres que falam dele. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 49–62 | Dezembro/2013 59 O inapanhável objeto do savoir-faire na análise Abstract Over and above technical rules, know-how derives from an ethical position. Tact and receptiveness are its constituent parts. It finds expression in the rule of equally suspended attention which guards against a hasty understanding of what is said, preferring surprises as signs of the unconscious. The rule indicates also that know-how is linked to the notion of time and its handling as well as to the existence of lalangue. Know-how however is not only in the realm of the analyst. The analysand too must find how to do with his fantasies and symptom. Finally, is know-how always to be attributed to a subjectivity, be it that of the analyst’s or the analysand’s, insofar as the unconscious is know-how with lalangue? Keywords: Know-how, Attention, Lalange. Referências Brisset, J.-P. La science de Dieu ou la création de l’homme (1900). In: ______. Œuvres complètes. Direção de M. Décimo. Dijon: Les presses du réel, 2001. p. 702. Brisset, J.-P. Repris dans Les origines humaines (1913). In: ______. Œuvres complètes. Direção de M. Décimo. Dijon: Les Presses du Réel, 2001. Cheng, F. Le génie du trait. Paris: Phébus, 1986. Clavurier, V. Psychopathologie de la vie quotidienne et savoir-faire (hören) de l’analyste. In: Essaim, n. 11. Toulouse: Erès, printemps 2003. Collins, W. La robe noire. Paris: Éd. du Masque, 2012. Foucault, M. “7 propos sur le 7e ange” (1970). In: DÉCIMO, M. Jean-Pierre Brisset, prince des penseurs, inventeur, grammairien et prophète. Dijon: Les Presses du Réel, 2001. p. 604-606. FREUD, S. A dinâmica da transferência (1912). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas 60 completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1974, v. 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Peixoto, B.A., M.A. Resumo A função narrativa do inconsciente com o intuito de unir a angústia da incerteza e do caos. A narrativa psicanalítica como uma intertextualidade em que tanto paciente quanto analista são coautores, emissor e receptor que mutuamente criam um texto aberto, mas não anárquico. Texto produzido à semelhança da criação poética e a da arte moderna. O trabalho artístico e da relação analítica assumem uma natureza holográfica em que o todo e as partes se encontram em uma relação em que cada ponto do objeto repete o todo. Cada vez que o emissor, seja paciente, seja analista, oferece seu material de uma forma ligeiramente diferente do que o receptor tinha em mente, se estabelece uma incerteza que desorienta e conduz que se reconsidere a mensagem. Palavras-chave: Narrativa psicanalítica, Emissor e receptor, Obra aberta, Relação paciente/ analista Uma narrativa complexa Qualquer pessoa que se dedique ao desenvolvimento científico de hipóteses começa a considerar as suas próprias teorias de forma séria apenas quando estas podem ser inseridas no conhecimento a partir de mais de um ponto de vista. sigm u n d freu d Este trabalho é uma “representação dinâmica e virtual” do campo analítico intersubjetivo. No momento presente, os conceitos energéticos, econômicos e espaciais da psicanálise clássica abrem espaço para o “modelo virtual do holograma recursivo, o qual requer — apenas no início — o estudo da relação analítica a partir do vértice narratológico”. Assim sendo, o modelo virtual direciona a psicanálise relacional para um novo contexto epistemológico. A chave para a leitura do meu trabalho é o modelo “pósbioniano”, e os critérios descritivos são de natureza teórica e clínica. De acordo com Grotstein, [...] o inconsciente mostra uma função narrativa; ou seja, uma tendência ou inclinação à narrativa e à pesquisa relativa à narrativa que descreve [...] eventos vindouros e experiências pessoais, bem como buscas por [...] histórias, mitos e romances com o intuito de unir a angústia da incerteza e do caos (Grotstein, 2010, p. 64). Investigada à luz dessa ótica, a mente se revela tanto como um sistema quanto como um evento. Trata-se de um sistema na medida em que é constituída por uma rede de elementos fortemente interconectados, os quais são propostos como repetitivos e regulares; Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 63–70 | Dezembro/2013 63 Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica mas ela é também um evento, na medida em que é um fenômeno acidental e singular que evolui ao longo do tempo. Lucio Russo (2009) nos lembra que Freud já havia reconhecido essa característica dupla da natureza da mente. Freud afirmou que [...] nós esquecemos com muita facilidade que tudo em nossas vidas ocorre por acaso [...] O acaso que, no entanto, tem o seu papel no conjunto das leis e das necessidades da natureza e que não tem relação apenas com os nossos desejos e nossas ilusões (FREUD, 1974, p. 276). Uma vez dito isto, podemos afirmar que o estudo da narrativa analítica pode ser feito a partir de um vértice semiótico complexo; o que nos leva a questionar-nos acerca da interpretação do sistema-texto dos dois protagonistas da análise em termos da cooperação entre a explicitação (emissão) e a compreensão (recepção). O modelo comunicativo do consultório desenvolve-se a partir da primeira comunicação entre a mãe e o recém-nascido, a qual é eficaz na medida em que a criança nasce equipada com o “equivalente homólogo ou emocional da sintaxe gerativo-transformacional de Chomsky. Em outras palavras, a criança nasce como uma entidade semiótica real e é capaz de comunicar-se por intermédio de impulsos e sinais” (Grotstein, 2010, p. 300). O que se revela na análise é um “texto-dueto” que conta; ou seja, ele torna possível a comunicação de uma mensagem articulada, em uma tarefa orientada de forma inequívoca à transmissão de conhecimento. Nessa conversa, a voz da narrativa é primordialmente a voz do paciente, ainda que ela seja construída “tanto pelo paciente quanto pelo analista, através do jogo de reflexões mútuas de ambos, bem como de suposições e de disfarces” (Arrigoni; Barbieri, 1998, p. 5); e também porque “o ‘analista’ está armado com um corpo de teorias que constituem o andaime para a atividade do pensamento” (Grotstein, 2010, p. 58). 64 Neste ponto, Wilfred Bion sugere que deveríamos não apenas escutar as manifestações do hemisfério direito apropriado ao desenvolvimento de emoções, mas também seguir as informações do hemisfério esquerdo, que fornece a disciplina e o rigor que são necessários à compreensão (BION, 1973). Assim sendo, o código de interpretação é absolutamente fundamental ao conhecimento, ainda que a sua utilização tenha que ser inserida em um procedimento sensível à “capacidade negativa”; ou seja, à exposição à incerteza. A narrativa analítica apresenta não somente essas afinidades com a narrativa literária; na verdade, tanto para a criatividade artística quanto para a análise, é essencial que se mostre alguma regressão das funções do ego. “Na fantasia e no sonho, em estados de intoxicação e fadiga, a regressão funcional reveste-se de uma importância singular; em particular, ela caracteriza o processo da inspiração” (Kris, 1967, p. 252.). Outro elemento que é comum às narrativas artística e analítica é a recuperação da linguagem infantil que se encontra dentro de nós. Contudo, um elemento de diferença se relaciona ao fato de que a comunicação psicanalítica é realizada de forma “presencial”, ao passo que a comunicação literária se desenvolve de modo “ausente”. Entretanto, é realmente necessário extrair da cooperação aquilo que o texto não diz com clareza, mas deixa de maneira implícita, a fim de que as suas lacunas sejam preenchidas. Essencialmente, é possível estudar a maneira e as condições nas quais a “intertextualidade” é realizada. Isso acontece porque o discurso analítico em ambas as direções (“analista versus paciente” e “paciente versus analista”) utiliza o leitor como coautor do arcabouço gerativo do texto. Dessa forma, por analogia com a tese narratológica contemporânea, pode-se dizer que temos um trabalho aberto, que deve levar em consideração as necessidades semânticas e pragmáticas do trabalho propriamente dito. Não há análise dos traços significativos en- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 63–70 | Dezembro/2013 Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica volvidos que já não implique um significado daquilo que é expresso. Basicamente é necessário que se insira o leitor no texto, qualquer que seja o vértice de análise do qual se deseje observá-lo. O estudo do texto compartilhado na análise detecta uma operação que sempre ocorre quando os falantes interagem: eles inserem significados intertextuais que permitem ao receptor tomar uma decisão interpretativa. Isso ocorre na medida em que a fala possui um significado virtual que nos permite vislumbrar o contexto de referência do ato comunicativo. Portanto, podemos concordar com Umberto Eco (1979) quando ele afirma que o texto é intercalado com aquilo que não é dito; ou seja, com conteúdos que não são óbvios na superfície do texto, mas que estão presentes na compreensão e na interpretação. Isso não significa, todavia, como Peirce talvez tivesse dito, que o leitor (receptor) esteja livre para atribuir qualquer conteúdo ao texto expresso. Muito pelo contrário, um nível de significado está inscrito no texto, o qual é restrito pela estrutura do texto propriamente dito. Assim sendo, o leitor deve atualizar o conteúdo por meio de uma série indefinida de movimentos cooperativos. O texto precisa ser interpretado, até certo ponto, de forma unívoca, para o benefício dos leitores, os quais, dessa maneira, não se sentem como se estivessem à deriva em uma torrente de significados. Não deveríamos nos esquecer, contudo, de que os códigos linguísticos jamais são os mesmos entre o receptor e o emissor, de onde surge a necessidade de cooperação por intermédio de um sistema de operações hipotéticas que percorram ambas as direções da comunicação. A fim de decodificar um texto, portanto, é essencial que se disponha de uma habilidade “circunstancial” que estimule suposições interpretativas, bem como implicações e jogos linguísticos que sejam úteis à compreensão. De acordo com Umberto Eco (1979), é necessário que o resultado da interpretação faça parte da bagagem cognitiva do transmissor, o qual seleciona aquilo que o leitor necessita saber com o intuito de alcançar o nível da compreensão. É importante que o emissor possa fornecer um “leitor modelo”, capaz de permitir a compreensão do texto. Um leitor modelo é identificado porque se espera que o receptor da mensagem (texto) possua uma língua útil, além de habilidades circunstanciais. O leitor modelo não estará presente se não for ativamente planejado em função dos conhecimentos do emissor; ou seja, o texto deve ser capaz de construir o seu próprio interlocutor, do contrário não haverá compreensão. Portanto, se faz necessário na psicanálise que os dois protagonistas do texto preliminar tenham a mesma aparência, isto é, que eles compartilhem a mesma “enciclopédia”. Isso significa que os modelos do mundo do paciente devem coincidir — ao menos em parte — com os modelos analíticos teóricos utilizados pelo terapeuta. Os mundos possíveis — tal como a lógica modal nos lembra — são, na análise, as diversas características da cooperação, as quais se tornam efetivas, empíricas. O texto — o mais aberto possível a diferentes interpretações — conduz o seu leitor, contudo, a uma análise canalizada e não inteiramente anárquica; nesse caso, o autor constrói o consumidor. Afinal, interpretar um texto significa “reconhecer uma enciclopédia da emissão que é mais estreita e genérica do que aquela do destino” (Eco, 1979, p. 63). Por conseguinte, podemos definir o texto como “um artefato de natureza sintática, semântica e pragmática cuja interpretação esperada faz parte do seu projeto gerativo” (Eco, 1979, p. 63). E devemos lembrar que, de acordo com uma abordagem construtivista de mundos possíveis até mesmo o mundo real, não é nada além de uma construção cultural. O discurso analítico é semelhante àquilo que ocorre no trabalho da arte moderna, no qual a pesquisa e a possibilidade de mundos possíveis são expressas no nível mais elevado. Por exemplo, os trabalhos de Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 63–70 | Dezembro/2013 65 Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica Berio ou de Stockhausen são muito mais abertos do que os trabalhos clássicos. Em outras palavras, na arte moderna a abertura do trabalho se encontra no apogeu de suas potencialidades, os códigos são difusos, e as mensagens são apenas parcialmente decifráveis através do vértice do receptor. De acordo com a teoria da informação, a arte contemporânea utiliza o “barulho” para abrir o trabalho às possibilidades de interpretação por parte do interlocutor. Ao contrário, a ordem tradicional perdeu completamente a sua dignidade de força duradoura para a ciência, e a arte seguiu o mesmo exemplo, articulandose em direção à incerteza e à dúvida. É verdade que a leitura de um trabalho a qualquer momento já foi identificada com a ambiguidade do texto, mas a abertura nunca é mostrada como acontece na arte contemporânea. O texto é o portador de uma “forma” tanto para aquele que formula o significado quanto para o consumidor (receptor); uma forma que fornece ao consumidor uma autonomia ampla. Consequentemente, os trabalhos não são concluídos em um sentido hipotético oferecido pelo emissor, mas produzem, em vez disso, um novo significado para cada utilização posterior. Cada consumidor coloca as suas preferências, a sua bagagem cultural e a sua “enciclopédia” no significado. Os trabalhos preparados dessa maneira são “trabalhos inacabados”, sempre à procura daquilo que está faltando para a sua finalização. De modo análogo, o analista participa com as suas teorias clínicas de referência, a fim de delimitar o caos da interpretação; e não apenas modelos, mas obviamente também a “poesia” do ato criativo influencia a reação do consumidor. É o trabalho que sugere e se realiza a si próprio, impregnado a cada momento com as contribuições emocionais e imaginativas do intérprete. Se é verdade que, a cada leitura de poesia, temos um mundo pessoal que tenta ajustar-se 66 a um espírito de lealdade ao mundo do texto, nos trabalhos poéticos — baseados deliberadamente na sugestão — o texto tem por objetivo estimular exatamente o mundo pessoal do intérprete de modo a que este possa obter uma resposta profunda a partir da sua interioridade (grifo meu) (Eco, 1962, p. 41). O significado poderia ser facilmente malcompreendido e nos levaria a crer que se trata da expressão de uma crise alarmante, que envolve todos os aspectos da cultura contemporânea, mas isso não ocorre de fato. Na verdade, a incerteza da interpretação, a abundância de fenômenos complexos e imprevisíveis e um universo que se apresenta como múltiplo tornam o horizonte do conhecimento ainda mais pungente. Quando o analista profere uma interpretação, ele a formula de acordo com suas teorias e modelos de referência; ou seja, de acordo com sua própria reação de contratransferência, a qual também é condicionada pelas experiências que teve até aquele momento. Contudo, permitem-se certos graus de liberdade no tocante ao que é aceito nesse conteúdo. O paciente, por sua vez, interpreta a interpretação. A seguir essa interpretação se vê afetada por diferentes vértices, o que permite à interpretação propriamente dita chegar à sua forma final. Essencialmente, toda interpretação é reformulada a cada revezamento entre emissor e receptor; como foi dito anteriormente, ela volta para influenciar o emissor que está produzindo novas informações naquele momento. Pode-se assim dizer, à luz de uma perspectiva complexa, que o emissor e o receptor formam um anel recursivo, de maneira que os efeitos do processo interativo afetam as causas que os geraram. Aqui está a natureza profunda da interação interpretativa. Ela segue um processo recursivo que aproxima a cada troca o conhecimento ilimitado que se pode ter de um fato emotivo, assegurando, dessa forma, uma cooperação construtiva. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 63–70 | Dezembro/2013 Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica De modo instintivo, temos tendência a formular teorias simplificadas da realidade; mas quando o modelo pretende descrever a interação analítica, ele não pode fazer concessões à complexidade dos fenômenos sem criar o risco de que sua natureza seja dissolvida. A interação analítica consiste da interpretação e da resposta de contratransferência, que são os dois aspectos do anel recursivo e discursivo. O discurso analítico, portanto, expande a questão e a articula em ambas as direções, de modo que a relação não é linear. Hologramas e mais... Para ver um mundo em um grão de areia E um céu em uma flor selvagem, Segure o infinito na palma da mão E a eternidade em uma hora. william bl ake O processo analítico e a arte têm algo a mais em comum, que está relacionado ao potencial do conhecimento da realidade, a saber: [...] a representação da arte abrangeria o todo e refletiria o cosmos em si próprio, na medida em que o individual vive no todo, e o todo está na vida do indivíduo, e toda representação artística genuína é ela mesma e também o universo, assim como o universo naquela forma individual e a forma individual como o universo. Em cada expressão do poeta e em cada criatura da sua imaginação estão todos os destinos humanos, todas as esperanças, todas as ilusões, dores e alegrias, bem como a grandeza e a miséria humanas (Eco, 1962, p. 66). Esse é outro fenômeno que afeta a complexidade: as realidades do trabalho artístico e da relação analítica assumem uma natureza holográfica; assim sendo, o todo e as partes se encontram em uma relação muito especial de envolvimento e, como diz Pinson (1985), cada ponto do objeto repete o todo, o campo analítico é memorizado pelo holograma e é incluído no detalhe. Isso é o que Edgar Morin (1986) chama de organização hologramática dos sistemas não lineares, e é o que os psicanalistas clássicos como Kernberg encontram na referência cruzada da fantasia do indivíduo que surge novamente naquela do grupo institucional. O que acontece em um nível local surge novamente em termos gerais com a mesma forma; por exemplo, uma clivagem intrapsíquica do paciente individual pode gerar uma clivagem no campo analítico, a qual por sua vez reagirá de maneira retroativa na divisão do indivíduo. O holograma revela um tipo específico de organização, “no qual o todo está na parte que está no todo, e no qual a parte pode ser mais ou menos capaz de regenerar o todo” (Morin, 1986, p. 111). Assim sendo, a complexidade organizacional do todo requer a complexidade organizacional das partes; ou seja, os conteúdos analíticos individuais, tais como sintomas, sonhos e métodos relacionais, requerem a complexidade do todo organizacional de forma recursiva. As partes possuem a sua própria singularidade, mas elas não são meros elementos ou fragmentos de todos; elas são, isso sim e ao mesmo tempo, um ‘microtodo’ virtual (os itálicos e a adaptação do original são meus) (Morin, 1986, p. 112). Nós acreditamos que essa constelação não é meramente uma questão de forma imaginativa, mas sugere uma metáfora espacializada da organização da vida psíquica no campo analítico. Os discursos local e global — na condição de realidades conscientes e inconscientes — se referem uns aos outros numa consubstancialidade em que o momento inicial de sua influência mútua não pode ser decidido. Na verdade, o campo analítico é capaz de gerar novos produtos da interação, realidades essas que não pertencem de fato a apenas um dos atores, mas re- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 63–70 | Dezembro/2013 67 Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica presentam uma coevolução; ou seja, o terço analítico intersubjetivo é gerado como uma fantasia compartilhada tanto pelo paciente quanto pelo analista (Ogden, 1997); além disso, ele pode ser demonstrado em um devaneio, em uma fantasia, em um sonho, ou em uma narrativa (Panizza, 2008). O que estou dizendo exprime diretamente uma homologia; ou seja, revela a estrutura fractal do discurso analítico, no qual a relação entre a parte e o todo é capaz de regenerar cada configuração de significado. É possível imaginar que um estudo mais intensivo — compartilhado e influenciado pela teoria da complexidade — possa nos auxiliar a compreender melhor os fenômenos interativos do campo analítico como um todo sem sacrificar uma parte em prol de uma simplificação, seja reducionista, seja holística. Podemos também pensar que a mesma estrutura da memória individual é organizada como uma condensação holográfica dos significados, para a qual tanto a livre associação do analisando quanto a atenção livremente flutuante do analista em atividade entrariam em declínio no transcurso desse holograma. Incertezas Nesse caso, a modalidade da arte lida com a estrutura profunda do conhecimento, portanto podemos criar hipóteses acerca de uma relação específica entre complexidade e estética, que a física relativista já indicou no estudo da realidade material e energética. Assim sendo, a estética é a dimensão profunda, a linguagem do inefável e do real. A revolução do significado transcende o imperativo positivista na direção de uma abertura. Por conseguinte, a decomposição cubista e a expansão dinâmica das formas futurísticas deram à arte a possibilidade de uma descrição ou interpretação da realidade como um “trabalho vivo”. Até mesmo no campo da escultura, as formas plásticas de Gabo ou de Lippold convidam o interlocutor a uma participação ativa na estrutura do trabalho. 68 De modo semelhante, a arte informal desconecta as relações causais, bem como os princípios da lógica Aristotélica; ela é apresentada como uma expressão daquelas reflexões que ocorreram no campo da ciência e de suas metodologias. Entretanto, é natural que a arte continue sendo caracterizada como trabalho — ou seja, que gere significado — já que consegue expressar a aleatoriedade, aquilo que é desprovido de forma, o incerto, até mesmo nas manifestações mais extremas. Portanto, uma certa direção nas escolhas interpretativas há de seguir o seu rumo. Não há morte da forma, mas sim uma abertura para o reino das possibilidades; e isso é o que talvez encontremos ao olhar para uma pintura de Pollock: [...] a desordem dos sinais, a desintegração dos contornos e a explosão das configurações nos convidam ao jogo pessoal das relações que podem ser estabelecidas; mas o gesto original, fixado na marca, nos indica direções que são fornecidas e nos levam de volta ao autor (Eco, 1962d). Na relação analítica, cada participante transfere o seu “idioleto” (isto é, o seu código particular e individual através do qual ele/a observa o mundo, especialmente aquela fatia do mundo que é a mensagem do seu interlocutor) apenas para manter o receptor, a fonte e a verificação de sua congruência cognitiva. O fenômeno da desorientação que ocorre cada vez que o autor (seja o analista, seja o analisando) oferece o seu próprio material em uma forma que é ligeiramente diferente daquilo que o falante tem em mente é, portanto, fundamental na análise tanto quanto na arte. Nesse caso se introduz a incerteza que chega mais cedo ou mais tarde — como na arte informal — a uma versão original do material inconsciente. Wilfred Bion (1973) falaria de uma mudança de vértice, o que representa uma maneira única de enriquecer-se o conhecimento. Na verdade, a desorientação liberta a linguagem e recon- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 63–70 | Dezembro/2013 Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica sidera a mensagem “que nos leva a olhar de modo diferente para a coisa representada, mas ao mesmo tempo — como é natural — até mesmo para o meio de representação e o código aos quais nos referíamos”, porque “a arte aumenta a dificuldade e a duração da percepção, uma vez que ela descreve o objeto como se o mesmo estivesse sendo visto pela primeira vez” (Eco, 1968a). Na psicanálise assim como na arte, já é hora de implementar uma revolução na forma “e em tal violação imprevisível; se essa violação se tornar um cânone, ela perderá sua força como método cognitivo” (Eco, 1968b). Desse modo, se faz necessário reconhecer que, se o analista e o analisando trabalharem, eles aparecerão na conjuntura clínica como portadores da [...] ideologia do outro; isto é, do universo de conhecimento do receptor e do grupo ao qual ele/a pertence, bem como de seus sistemas de expectativas psicológicas, suas atitudes mentais, suas experiências e seus princípios morais (Eco, 1968c) [ênfase do texto original]. Obviamente, não devemos confundir ideologia com significado. A ideologia não é nada além do precipitado de códigos e sinais que povoam o texto que têm por objetivo explorar aquilo que pode ser conhecido. Portanto, a ideologia — ou modelo analítico — contribui para a construção de informações que possam influenciar de modo recursivo esses próprios códigos e a ideologia. Assim sendo, o intérprete em atividade precisa encontrar o universo retórico e ideológico do receptor, a fim de não permitir que suas próprias intenções sejam perdidas de maneira permanente. A leitura do trabalho ocorre em uma oscilação contínua, através da qual começamos pelo trabalho onde pretendemos descobrir o código original que é sugerido; a seguir, tentamos fazer uma leitura fidedigna do trabalho, e a partir daí voltamos uma vez mais aos códigos e voca- bulários [...] a fim de experimentá-los na mensagem (Eco, 1968d) (grifo do texto original). Com a constante confrontação entre codificações em oscilação, determina-se um campo de possibilidades de significado que aumenta a cada intercâmbio comunicativo entre o paciente e o analista. Isso gera um dispositivo que expressa os significados de maneira contínua, ativando-os em função de uma lógica que é criativa e decodificadora e que está, ao mesmo tempo, firmemente ancorada no sentido do texto. Essa comparação nos faz lembrar mais uma vez da arte informal e da música atonal, para a qual parece não existir um código compartilhado. Por conseguinte, assim como nos óculos de Arman, nas garrafas de Rauschenberg ou numa bandeira de Johns, tanto na arte de vanguarda quanto no consultório, os significados transmitidos são muito mais precisos e circunscritos do que aqueles considerados plausíveis. Abstract How the narrative function of the unconscious, whose purpose is to bond anxiety of uncertainness and of chaos, works. The psychoanalytical narrative as an intertextuality that both patient and analyst act as coauthors, as sender and receiver both creating an open text, but an anarchical one. A text production that’s similar to poetical creation and modern art. Artwork and analytical relationship acquire a holographic nature as the whole and its parts exist in a relationship where each part of an object reflects its whole. Each time that the sender, patient or analyst, offers its stuff in a slightly different way from that the receiver had in mind, comes a uncertainty which bewilders and leads that the message be reconsidered. Keywords: Psychoanalytic narrative, Sender and receiver, Open work of art, Patient/ analyst relationship. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 63–70 | Dezembro/2013 69 Holograma dinâmico recursivo para uma teoria topográfica da relação psicanalítica Referências Arrigoni, M. P.; Barbieri, G. Narrazione e psicoanalisi, un approccio semiológico. Milano: Raffaello Cortina Editore, 1998. Bion, W. Trasformazioni. Tr. It. Roma: Armando, 1973. Eco, U. Lector in fabula, la cooperazione interpretativa nei testi narrativi. Milano: Studi Bompiani, 1979. Eco, U. Opera aperta, Forma e indeterminazione nelle poetiche contemporanee. Milano: Bompiani, 1962. Freud, S. Un ricordo d’infanzia di Leonardo da Vinci (1910). In: OSF, v. VI. Torino: Bollati-Boringieri, 1974. S obr e O autor Gabriele Lenti Psicologo. Laureato in Psicologia presso l’Università degli Studi di Padova. Specialista in Psicologia Clinica presso la Facoltà di Medicina e Chirurgia dell’Università di Genova. Psicoanalista SIPRe - Società Italiana Psicoanalisi della Relazione - Centro di Genova, parte dell’IFPS (International Federation of Psychoanalytic Societies). Endereço para correspondência Via XX Settembre n 21/7 Genova, Liguria, Itália Via Chiaramone n 12/1 Genova-Voltri, Liguria, Italia. E-mail: [email protected] Grotstein, J. S. Un raggio di intensa oscurità, L’eredità di Wilfred Bion. Milano: Raffaello Cortina Editore, 2010. Kris, E. Ricerche psicoanalitiche sull’arte. Tr. It. Torino: Einaudi, 1967. Morin, E. Il metodo. La conoscenza della conoscenza. Milano: Raffaello Cortina Editore, 2007. Ogden, T. Il terzo analitico: lavorando con fatti clinici intersoggettivi. In: Psicoterapia psicoanalitica. anno IV, em umero 2, Luglio 1997, Roma: Borla. Panizza, S. 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Alguns fragmentos de uma análise, de nossa clínica ilustram uma experiência bem-sucedida e reforçam nosso convencimento de que o movimento do analista é fundamental para o estabelecimento da comunicação no setting terapêutico. Sua adaptação às necessidades do paciente constitui fator primordial para o manejo clínico, sendo o manuseio do setting o principal recurso no tratamento de pacientes muito regredidos. O recebimento inicial mais caloroso, a flexibilização da duração das sessões para ouvi-la e acolhê-la, e a disponibilidade para atender algumas necessidades manifestadas pela paciente se mostraram de suma importância. Acredito que a criação de um setting adaptado às necessidades de Marina durante uma etapa do seu processo analítico, propiciou seu fortalecimento e seu crescimento. Palavras-chave: Setting analítico, Psicanálise, Manejo clínico. Introdução O setting analítico tem a ver com os dois integrantes do processo analítico: analista e paciente. A sensibilidade do analista é fundamental, e isso tem que levar em consideração tanto as características do paciente quanto as do analista, que se derivam de seu próprio percurso. Temos nos deparado no exercício da clínica psicanalítica com as múltiplas faces do sofrimento humano. Situações inusitadas nos colocam frente a desafios que muitas vezes põem em xeque o arsenal teórico que nos embasa. Diante desse panorama nos sentimos instigados a fazer uma reflexão teórico-clínica sobre o setting analítico e seu manejo clínico. No presente estudo tentaremos tecer considerações sobre algumas situações clínicas especiais que exigiram mudanças no setting terapêutico. Essas con- siderações serviram de base ao trabalho que apresentamos no V Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental (BARROS, 2012) e posteriormente retrabalhado, no Círculo Psicanalítico de Pernambuco, por ocasião de nossa passagem para analista, em março de 2013. Com várias modificações e correções, apresentamos agora o texto aos leitores. Sobre a técnica psicanalítica: o setting e o manejo No campo psicanalítico, o setting é um espaço que se oferece para propiciar a estruturação simbólica dos processos subjetivos inconscientes, reunindo as condições técnicas básicas para a intervenção psicanalítica. Nesse campo são englobados todos os elementos organizadores do setting: o espaço físico de atuação, o contrato estabelecido Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 71–78 | Dezembro/2013 71 O setting analítico na clínica cotidiana para seu desenvolvimento, assim como os princípios da própria relação, transferencial e contratransferencial, estabelecida entre analisando e analista. No seu texto Recordar, repetir e elaborar (1914) Freud faz um histórico do desenvolvimento da técnica psicanalítica, sublinhando “as alterações de grandes consequências que a técnica psicanalítica sofreu desde os primórdios” (FREUD, 1969, p. 193). Ele concebia o setting analítico, como um lugar específico para que a relação terapêutica se desenvolvesse; é composto por um conjunto de elementos que podem ser compreendidos como variáveis independentes, que devem permanecer sob controle, para assegurar o êxito do tratamento: o analista; o paciente; o cerimonial; o tempo; o dinheiro; a regra fundamental; a atenção flutuante. Nos textos Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912) e Sobre o início do tratamento (1913), Freud ressalta que o que garante efetivamente a situação analítica é não tanto os dispositivos proporcionados pelo setting, mas a posição simbólica assumida pelo analista no percurso de uma análise. Para ele o conjunto de derivações dessa posição interna do analista é que dá consistência ao tratamento. No V Congresso Psicanalítico Internacional (1918) Freud recomenda uma mudança de atitude do analista nos casos em que a análise da transferência não se apresenta como recurso suficiente para vencer as resistências e desentravar o processo, e ao analista cabe adotar uma postura mais ativa. Ele transfere a incumbência de prolongar a duração do tratamento e de encontrar técnicas capazes de atestar o sucesso do método analítico para seus discípulos. E foi Ferenczi quem mais se destacou nessa tarefa. A percepção da dificuldade apresentada pelos pacientes bastante regredidos que frequentavam a clínica de Ferenczi o levou à formulação de que a técnica e o enquadre utilizados eram responsáveis pela produção de “resistências objetivas” à experiência ana72 lítica (FERENCZI, 1921a e 1921b). Ele estabelece a técnica ativa como medida a ser utilizada com pacientes resistentes ao método interpretativo. O percurso clínico de Ferenczi é todo pautado no desafio de acolher o sofrimento dos pacientes chamados “difíceis” (1926). Ele conclui que as dificuldades enfrentadas nesses processos eram decorrentes da “insensibilidade” dos analistas, que não queriam se deixar afetar pelo encontro analítico, se pronunciando por introduzir a faculdade de “sentir com”, pelo projeto de “soltar a língua” (1927). Para o autor seria preciso tornar a técnica mais elástica, de maneira a favorecer a expressão afetiva. O privilégio dado à expressão de afetos na análise provocou, assim, uma ampliação cada vez maior dos limites do permitido na clínica, chegandose à formulação de um princípio de relaxamento como contraponto ao de abstinência (1927). Ferenczi introduz seu projeto de “soltar as línguas” nas análises, implicando e convocando o analista à adoção de um estilo clínico diferenciado, resgatando a criatividade do analisando, exercitando a sua capacidade de brincar, fantasiar e imaginar. Ele aborda o conceito de contratransferência como algo que não dificultaria a análise, mas que faz parte da própria técnica a ser empregada. O manejo técnico deve dosar bem a empatia e a capacidade de “sentir com”, e o processo é conduzido melhor a partir da análise pessoal do analista, que o capacitará para avaliar a situação analítica a distância. Esse é o entendimento que Ferenczi tem do analista elástico. Seguindo a mesma linha de pensamento de Ferenczi, Winnicott sentiu que era vital reexaminar sua técnica, pois suas observações clínicas apontavam para a necessidade de uma adaptação do setting para promover uma evolução favorável do paciente e ajudá-lo no fortalecimento e na evolução de sua personalidade. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 71–78 | Dezembro/2013 O setting analítico na clínica cotidiana O trabalho psicanalítico winnicottiano busca promover o desenvolvimento de aspectos da vida psíquica que não puderam evoluir em função de falhas no processo inicial, além de valorizar o meio ambiente na estruturação do self. A adaptação no setting, na sua visão, auxiliaria os pacientes na busca e no encontro de suas necessidades, favorecendo o estabelecimento de um campo transferencial propiciador de mudanças. O manuseio do setting é para Winnicott (1993) o principal recurso no tratamento de pacientes muito regredidos. Nas suas teorizações ele “apresenta o manejo como um elemento importante, facilitador de mudanças psíquicas no paciente”. Um setting diferenciado é utilizado quando estamos diante de alguns quadros clínicos que apresentam maior fragilidade psíquica ou quando existem necessidades especiais do ambiente exigindo cuidados mais específicos. Winnicott nos alerta para não trabalharmos de forma rígida utilizando uma aplicação cega a uma técnica, pois o paciente que procura análise precisa ser acolhido na sua dor e, isso ocorre à medida que ele se sente compreendido no seu sofrimento. Nem todos os pacientes que chegam à clínica buscando ajuda podem ser submetidos a uma análise. O método que iremos utilizar nesse processo dependerá das condições psíquicas e clínicas em que ele se encontra. A clínica winnicottiana está baseada numa teoria dos distúrbios psíquicos que tem como fundamento a teoria do processo de amadurecimento pessoal do indivíduo. Winnicott pontua: Precisamos chegar a uma teoria do amadurecimento normal para podermos ser capazes de compreender as doenças e as várias imaturidades, uma vez que não nos damos por satisfeitos a menos que possamos preveni-las e curá-las (WINNICOTT, 1983, p. 65). Winnicott (1983) enfatiza a importância do diagnóstico focando o grau de maturida- de em que o paciente se encontra para guiar a ação terapêutica. Para ele é fundamental basear seu trabalho terapêutico de acordo com o diagnóstico, permanecendo na elaboração de um diagnóstico, individual e social, ao longo de todo o processo de tratamento, pois, assim procedendo, poderemos fazer uma adaptação no setting se a situação emocional do paciente naquele momento assim requerer. Nesse sentido ele afirma: [...] faço psicanálise quando o diagnóstico é de que este indivíduo, em seu ambiente, quer psicanálise [tradicional]. Posso até tentar estabelecer uma cooperação inconsciente, ainda quando o desejo consciente pela psicanálise está ausente. Mas, em geral, a psicanálise [cujo método por excelência é a interpretação do conflito reprimido inconsciente] é para aqueles que a querem, necessitam e podem tolerá-la. (WINNICOTT, 1983, p. 154). Na visão winnicottiana, para que ocorra o acolhimento de forma irrestrita, não podemos nos colocar de forma a manter a análise protegida por um setting rigoroso, pois, dessa forma, correremos no risco de reforçar as nossas defesas como analista e as defesas do paciente, impossibilitando o acolhimento radical da loucura. Assim, perderemos de vista elementos fundamentais que mostrarão todo o arsenal do sofrimento e da psicopatologia manifestada pelo paciente. O analista, na visão de Winnicott, deve se abster do autoritarismo e da doutrinação, permitindo uma fruição mesmo desorganizada ao longo das sessões. É fundamental que o analista vivencie um estado de relaxamento e espontaneidade, acolhendo de forma ativamente passiva e ativamente expectante os conteúdos emergentes, a fim de estabelecer uma base de confiança para que o processo caminhe. O manuseio do setting é para Winnicott (1993) o principal recurso no tratamento de pacientes muito regredidos. Nas suas teori- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 71–78 | Dezembro/2013 73 O setting analítico na clínica cotidiana zações ele “apresenta o manejo como um elemento importante, facilitador de mudanças psíquicas no paciente”. Da teoria psicanalítica à pratica clínica Nesse contexto, quero apresentar Marina, paciente que bem se adéqua às nossas reflexões do tema que escolhemos para discutir neste momento. Minha supervisora havia me indicado para que Marina continuasse seu processo terapêutico comigo e, apesar de saber que iria encurtar duas horas para chegar ao local de seu tratamento, ela não se sentia tranquila para fazer essa passagem. Coincidentemente eu a encontrei na saída de sua sessão, e esse encontro foi decisivo para que ela me procurasse depois do parto, já que estava no final de sua terceira e última gestação. Ao chegar para a primeira sessão, Marina diz “O seu olhar, sorriso e o aperto de mão no nosso primeiro contato abriram caminho para que eu decidisse vir até aqui”. Após quatro meses do parto, ela me procura. Vinha sempre acompanhada de seu bebê e do marido. Traremos alguns fragmentos da análise de Marina, que durou cerca de doze anos e, até hoje, através dos contatos telefônicos mantidos nos seus momentos de alegria e aflição, constatamos a importância do acolhimento sustentado ao longo de todo o seu processo para a manutenção de um campo de confiança e um vínculo transferencial. Marina, 32 anos, odontóloga, era casada, tinha três filhas, mas não exercia a profissão naquele momento. Quando iniciou sua análise comigo, ainda era grande a sua fragilidade. Depois de alguns anos, conseguiu falar sobre o abuso sexual que havia sofrido na infância e, a partir daí, esse tema ia e vinha ao longo de muitos anos de seu processo psicoterapêutico, sendo trabalhado intensamente. Depois de um tempo de calmaria, esse tema voltava a bailar novamente com toda a força. 74 Tempo, paciência e tolerância eram vitais nesse processo, tanto para ela quanto para mim. Marina caminhava muito lentamente nas suas elaborações. Nós não poderíamos ter pressa. Juntas, passamos a viver em muitos momentos uma experiência de mutualidade. Winnicott (1993) afirma que o paciente busca no terapeuta as funções de que necessita. Se o terapeuta compreende a situação, temos um momento mutativo. E nos fala ainda em formas especiais de conduzir o setting como uma metáfora dos cuidados maternos. Observa-se que ele privilegia o modelo de cuidado materno, transportando-o para o setting, incluindo o analista como parte do setting, que é visto como o lugar que proporciona o desenvolvimento. Nas situações vividas neste caso, a analista privilegiou esse modelo de cuidado a partir da compreensão do processo de Marina. Marina havia iniciado sua primeira análise por causa de um quadro depressivo grave. Com esse acompanhamento, pôde elaborar e enfrentar o seu medo de engravidar, relacionando seu quadro ao abuso sexual sofrido aos 5 anos, pelo marido de uma tia. Ela fazia referência ao fato como “o estrago que esse fato provocara na sua vida”. A mãe dizia para Marina esquecer o ocorrido e, em determinada ocasião, ela foi obrigada a fazer um tratamento dentário no tio, como forma de agradecimento e pagamento, pois ele havia transportado no seu caminhão os móveis de consultório dela. Marina se sentia desamparada e incompreendida pela família, não acreditava que sua depressão tivesse relação com o abuso sofrido, afirmavam que aquilo tudo era “coisa do diabo”. Eles eram evangélicos e diziam para ela rezar, ter mais fé e que se ela fosse à igreja não precisaria fazer terapia nem tomar remédios. Diante de tal situação, como enquadrar o caso que eu tinha na minha frente me desafiando e me fazendo ver que algumas mudanças no manejo deveriam ser adotadas? Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 71–78 | Dezembro/2013 O setting analítico na clínica cotidiana A teoria do setting de Winnicott (1993) estuda a estruturação, a significação, a função e seu manejo pelo analista, inclusive a possibilidade de sua ruptura parcial ou de transgressão. Ele também estuda o problema das falhas do analista e a possibilidade de seu uso por parte do paciente. A experiência clínica levou Winnicott a reexaminar sua técnica no tratamento de pacientes muito regredidos. Ele pontua: As necessidades do paciente só podem ser definidas a partir de um diagnóstico psicodinâmico considerando três grupos de pacientes. No primeiro grupo temos pacientes que operam como pessoas totais e cujas dificuldades estão nas relações interpessoais. Estes pacientes podem ser submetidos à análise clássica. Num segundo grupo temos os pacientes depressivos no qual a totalidade da personalidade está apenas se esboçando. Em relação ao manejo, devido à função do amor e ódio, a ideia da sobrevivência do analista aos ataques do paciente é um fator importante. Num terceiro grupo estão os pacientes cuja estrutura pessoal ainda não está fundada de forma segura, e o tratamento deve lidar com os estágios mais primitivos do desenvolvimento emocional. A ênfase está no manejo, funcionando como holding e estes pacientes necessitam de um setting mais regressivo (WINNICOTT, 1993, p. 460). A cada sessão ia reforçando o diagnóstico de que Marina se encontrava no terceiro grupo, funcionando de forma primitiva e precisava de um setting mais acolhedor. Dentro da visão winnicottiana, o setting analítico deve comportar os aspectos relacionados à mãe-ambiente, em que o analista oferece constância, previsibilidade e confiabilidade, tanto pelo ambiente físico quanto pela qualidade do cuidado pessoal, procurando se ajustar às expectativas do paciente, para possibilitar o estabelecimento de comunicações mais profundas. A adaptação do terapeuta às necessidades do paciente será fator primordial para o ma- nejo da clínica winnicottiana. No processo deve ser oferecido um lugar, um momento e uma abertura para que possa vir à tona a problemática do paciente, que emergirá na dependência de muitos elementos, em especial, do movimento do analista para o estabelecimento da comunicação no setting terapêutico. Desde o início, percebíamos a fragilidade e o desamparo de Marina e que seu tratamento, além de requerer muito cuidado no manejo, necessitava de muita disponibilidade nossa na condução do processo. Suas sessões não poderiam ter o tempo normal (cinquenta minutos), e assim, suas sessões duravam em média de uma hora e meia a duas horas. Desde as primeiras sessões, a paciente trazia uma enxurrada de sintomas com suas longas histórias e, se não fosse possível trabalhar grande parte das questões levantadas, a angústia era tão intensa que requeria depois muitos contatos telefônicos até ela conseguir se acalmar. As sessões tinham, desde o início, um ritual. Ela sempre trazia um caderno com seus escritos da semana. Falava sem parar, levantava inicialmente as dificuldades, depois seus ganhos, seus sonhos e, assim, se sentia mais calma no final da sessão. Se não fosse assim, ela saía péssima, não suportando ficar naquele estado por toda a semana, o que muito lhe pesava e torturava. Observava que seu nível de tolerância era baixíssimo e sua mobilidade psíquica muito pequena. Qualquer tensão não era suportada por ela, e sua tendência era descarregar no corpo somatizando. Ela vivia em muitos momentos a possibilidade de entrar em colapso. Acredito que a criação de um setting adaptado às necessidades de Marina durante uma etapa do seu processo analítico, propiciou fortalecimento e crescimento. Numa sessão, ao chegar com dor de cabeça por fome, Marina solicitou algo para comer. Percebi que a fome de Marina era de outra ordem, mas o seu desconforto físico não permitia que ela conseguisse usufruir da sessão. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 71–78 | Dezembro/2013 75 O setting analítico na clínica cotidiana Por essa razão, lhe ofereci o alimento. A partir desse momento ela começou a restaurar de forma visível uma subjetividade tão fragmentada, que se fazia presente no corpo. Essa experiência não só mudou a visão que a paciente tinha do mundo, das relações objetais, e de si mesma, mas também reintegrou no seu psiquismo aspectos que até então se encontravam dissociados. A partir daí ela aprendeu também a se cuidar e a se alimentar com mais carinho e cuidado quando se encontrava mais fragilizada. O alimento oferecido resgatava, assim, cuidados bem primitivos que lhe faltaram na vida. O analista se encontra no papel de objeto subjetivo, e este é necessário para que a transferência e contratransferência aconteçam. O vínculo precisa ser estabelecido para gerar confiabilidade nessa relação e, dessa forma, o paciente se sentirá “cuidado” como fora (ou não) por sua mãe (ou outro cuidador) ao longo de sua vida. A transferência é uma ferramenta que favorece o paciente na construção de uma experiência completa para encontrar o seu eu individualizado. Marina apresentava um quadro clínico que tinha uma variedade de sintomas somáticos e/ou psíquicos, em várias ocasiões com forte intensidade, bem como a necessidade de uma elaboração para uma transcrição dos seus sintomas e uma ressignificação no seu modo de ver a vida. O corpo continuamente se manifestava, para seu desespero. Ora queimava, ora explodia de angústia, ora ficava num vazio ou outras vezes sufocava, e em muitas ocasiões era despertado “um desejo enorme de arrancar a dor das entranhas”, relatava ela. Em relação a essa questão, Winnicott, analisando ainda a relação psique-soma, diz que: O colapso das defesas leva ao surgimento da ansiedade manifesta em diversos comportamentos. A doença psicossomática se manifesta em decorrência de uma fragilidade ou mesmo 76 de um rompimento da relação psique-soma sendo caracterizada por múltiplos splittings, múltiplas rupturas, encerrando, contudo, na sintomatologia, uma insistência na integração da psique com o soma, sendo isso mantido como defesa contra a ameaça da perda da união psicossomática ou contra alguma forma de despersonalização (WINNICOTT, 1993, p. 424). Constantemente Marina apresentava sintomas manifestando dores por todo o corpo. Eram verdadeiros espasmos que denunciavam o contínuo estado de tensão em que se encontrava. Junto com as dores surgiam ímpetos de destruir, arrancar a parte afetada, como se pudesse lhe trazer algum alívio. Cada emoção vivida tinha uma expressão no seu corpo. O medo, a insegurança, a excitação, o ódio se localizavam com excessiva facilidade em um órgão do corpo que entrava em espasmos. Não suportava muita tensão. O medo do amanhã vivia sempre a rondá-la, percebia que não tinha um lugar para abrigá-la, se sentia desalojada. A cabeça a esquentar, o peito a explodir os excessos, as pernas a fraquejar e os pés a querer caminhar, procurando uma saída. A baixa capacidade de simbolização da paciente associada à paralisia estagnadora e ao excesso de excitações — decorrentes tanto das vivências traumáticas quanto das fantasias da paciente — exigiam continuamente uma sucessão de tradução do seu sentir. Sem essa tradução, era impossível dar um passo para sair da paralisia e do impasse, conseguindo posteriormente fazer novas transcrições no seu modo de viver. Ao longo do processo desse acompanhamento vivemos momentos mutativos, vitais para que o processo caminhasse mesmo a pequenos passos: durante um bom tempo não era possível para ela se defrontar com todas as suas experiências emocionais, sob o risco de ser aniquilada. As emoções surgiam em muitos momentos, de forma avassaladora, tomando-a por completo. O medo da Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 71–78 | Dezembro/2013 O setting analítico na clínica cotidiana loucura e o medo de ser aniquilada sempre pairavam no ar. O setting, cultivando uma qualidade de holding, para um cuidar das feridas de Marina e um aconchego para seu fortalecimento possibilitaram à paciente a construção de vínculos novos com o mundo, com as pessoas, com o trabalho, vitais para seu crescimento e sua transformação. Conclusão São muitos os aspectos importantes que puderam ser trabalhados com Marina no seu processo psicoterapêutico. Foi necessário que a analista exercesse a função de espelho olhando para Marina e refletindo para ela uma imagem com mais nitidez e amorosidade, ajudando-a a olhar o mundo com um novo olhar e cores mais vivas. Somente quando a criança olha o espelho-rosto da mãe e se descobre a si própria nesse espelho, ela poderá se permitir ver o novo e olhar criativamente o seu mundo. Inicialmente acreditávamos que Marina apresentava um quadro depressivo. Posteriormente constatamos que seu quadro era bem mais complexo e que ela apresentava uma estrutura borderline requerendo cuidados mais refinados e um manuseio do setting se adequando às necessidades mais prementes dela. O olhar para a estrutura psíquica da paciente segundo as ideias winnicottianas favoreceu a instalação de uma relação transferencial propiciando uma boa evolução clínica com seu crescimento e desenvolvimento emocional. À medida que o processo analítico evoluía com suas elaborações, o ego de Marina se fortalecia e, como resultado, passamos a observar uma mudança clínica. Houve uma modificação nas suas defesas, que passaram a funcionar de forma menos primitiva; a paciente não ficou se sentindo mais aprisionada e paralisada nos seus sintomas. O processo analítico forneceu à paciente elementos que não foram vividos anteriormente: uma maternagem suficientemente boa, um hol- ding propiciador do descongelamento das situações traumáticas iniciais, saindo assim da paralisia vivida até então. O manejo no setting possibilitou o resgate da confiança, passando a dispor de mais recursos internos para o enfrentamento do mundo. Marina se sentia sufocada pelas contingências da vida; era difícil dar conta das exigências tanto internas quanto externas, aumentando ainda mais os seus conflitos. Ela pôde construir na sua análise um caminho num terreno mais confiável. O vínculo estabelecido abriu espaço para novas relações no seu cotidiano. O setting analítico teve a função de transformação das suas dores, onde ela despejava as angústias de seu corpo travado e dilacerado. Ela foi, aos poucos, no seu processo, construindo novas imagens, refinando seus valores. A sua mente precisou formular novos caminhos e formas para fazer frente às adversidades que a vida lhe impõe. Na situação analítica vivida, o setting foi facilitador de mudanças, e o processo analítico pôde ajudar a paciente a funcionar de forma integrada, permitindo que ela entendesse a sua organização e funcionamento somático e psíquico. Ocorreram muitas mudanças após um longo tempo de análise, relativas à sua sexualidade e à forma de enfrentar a profissão. Era tempo de calmaria, há quatro anos não retornava ao tema do abuso sexual. Todo o ódio vivido e elaborado no seu processo analítico foi apaziguado, deixando marcas profundas. Entendemos que a transferência estabelecida no setting analítico está intimamente vinculada à qualidade da experiência afetiva estabelecida no curso da análise apontando para a qualidade do encontro afetivo. A reflexão sobre a função do setting e do enquadre se mostram, assim, adequada e importante para que se avance pensando sobre esse importante dispositivo de tratamento no curso de uma análise. Concluímos, na prática, que precisamos estar atentos, em algumas situações clínicas, para a necessidade de promover mudanças no manuseio do setting a Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 71–78 | Dezembro/2013 77 O setting analítico na clínica cotidiana fim de obtermos uma resposta clínica mais favorável para uma boa evolução do processo psicanalítico. FERENCZI, S. Elasticidade da técnica psicanalítica (1927). São Paulo: Escuta, 1987. Abstract We pondered about the analytical setting and the clinical handling of our everyday practice under the light of the psychoanalytical theory. We first referred to the Freudian vision and, later on, we approached Ferenczi and Winnicott, two classic authors in the theorizing of setting/handling of patients with larger psychic endangerment or even resistant against the therapeutic process, so as to facilitate psychic changes in the psychoanalytical process. Some fragments of an analysis in our clinic show a well-succeeded experience and reinforce our certainty that the analyst’s move is fundamental to establish communication in the therapeutic setting. His adaptation to the patient’s needs constitutes the primordial factor for the clinical handling, with the setting handling being the main resource in the treatment of much-regressed patients. The warmest initial reception, the flexibility of the sessions duration to listen to her, to welcome her and the availability to assist on some of the patient’s manifested needs showed to be of great importance. I believe that the creation of a setting adapted to Marina’s needs during a stage in her analytical process provided her with strengthening and growth. FERENCZI, S. Prolongamentos da técnica ativa em Psicanálise (1921b). São Paulo: Escuta, 1987. Keywords: Analytical setting, Psychoanalysis, Clinical handling. S ob r e a au tor a Referências BARROS, G. O Setting Analítico: Situações Clínicas Especiais. Disponível em: <www.fundamentalpsychopathology.org/uploads/files/v_congresso/mr_58_-_ gloria_barros.pdf>. Acesso em: 21 mar. 2013. FERENCZI, S. Contraindicações da técnica ativa (1926). São Paulo: Escuta, 1987. 78 FERENCZI, S. Escritos sobre técnica (1921a). São Paulo: Escuta, 1987. FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XII. FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XII. FREUD, S. Sobre o início do tratamento (1913). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XII. WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de paturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. WINNICOTT, D. W. Textos selecionados da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1993. WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1995. R ecebido em : 1 1 / 0 9 / 2 0 1 3 A provado em : 2 9 / 1 0 / 2 0 1 3 Glória Barros Psiquiatra. Psicanalista. Especializações em psiquiatria, psicologia clínica/psicanálise, medicina psicossomática, homeopatia e psicoterapia somática/biossíntese. Membro do Círculo Psicanalítico de Pernambuco e do Espaço Psicanalítico da Paraíba (EPSI-PB). Endereço para correspondência EPSI - Espaço Psicanalítico Rua Nevinha Cavalcanti, 46 - Miramar 58043-000 - João Pessoa/PB E-mail: [email protected] Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 71–78 | Dezembro/2013 A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos The child, the artist and the analyzed: psychoanalysis and worlds creation Luciana Knijnik Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos. m a n oel de ba rro s Resumo Nas linhas redigidas a seguir, o leitor encontrará um exercício reflexivo sobre alguns aspectos da construção do arcabouço psicanalítico. O arranjo conceitual e prático é apresentado tanto como decorrência de seu tempo, quanto como produtor de efeitos nos modos de ser, agir e pensar dos homens e seus mundos. As figuras da criança, do artista e do analisando são tomadas como personagens que emprestam seu corpo à personificação de conceitos e práticas caras à psicanálise. Palavras-chave: Psicanálise, Criança, Devir. Os que estudam psicanálise hoje precisam viajar no tempo para imaginar um período em que o mundo era visto como ordenado, previsível e passível de controle, pois foi precisamente esse o caldo cultural de Sigmund Freud. Seguramente o engendramento da psicanálise promoveu muitas rupturas com os ideais de seu tempo, mas ninguém está alheio às demandas de seu momento histórico (Figueiredo, 2001). A localização de Freud na modernidade, ápice da racionalidade científica, nos ajuda a compreender muitos dos diálogos por ele empreendidos. Em A questão da análise leiga, ele põe a própria obra em análise: Nem, naturalmente, posso garantir-lhe que a forma como é expressa hoje continue a ser definitiva. A ciência, como se sabe, não é uma revelação; muito depois dos seus primórdios ainda lhe faltam os atributos de determina- ção, imutabilidade e infalibilidade pelos quais o pensamento humano profundamente anseia. Mas tal como ela é, é tudo que podemos ter (FREUD, 1997, p. 218). Estamos de acordo: os saberes não são um dado natural, verdade universal, mas uma produção histórica. Assim, olhar a própria psicanálise sob essa perspectiva permite que vislumbremos os compromissos que precisamos manter e as nuances que atualmente podem ser abandonadas. Se na época de Freud as mencionadas tempestades enfrentadas pela psicanálise envolviam a luta para garantir legitimidade e espaço, hoje outros céus relampejam. Muitas leituras reduzem a psicanálise ora a passagens historicamente determinadas, ora a preocupação com o universalismo dos conceitos. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 79–84 | Dezembro/2013 79 A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos Adotar uma visão reducionista da teoria psicanalítica é a opção de muitos que buscam a confirmação de ideias previamente concebidas ou mesmo o prazer das críticas vazias. Outra possibilidade é potencializar os conceitos que no contemporâneo operam, acessando as diversas formas de sofrimento e abrindo caminhos para a transformação de cada um e da sociedade em que vivemos. Ou seja, é colocar as mãos a obrar. Para tal empreitada não precisamos ir longe. O próprio Freud em muitas passagens fornece importantes indicativos dos compromissos fundamentais de sua teoria. Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, uma nota de rodapé acrescentada posteriormente, em 1915, merece destaque. Discorrendo sobre os conceitos de masculino e feminino, ele diz: A masculinidade ou a feminilidade puras não são encontradas nem no sentido psicológico nem no biológico. Cada pessoa exibe, ao contrário, uma mescla de seus caracteres sexuais biológicos com os traços biológicos do sexo oposto, e ainda uma conjugação de atividade e passividade, tanto no caso de esses traços psíquicos de caráter dependerem dos biológicos, quanto no caso de independerem deles (FREUD, 1996, p. 97). Nesse trecho podemos ver um Freud avesso a determinismos biológicos associando masculinidade e feminilidade não aos órgãos e suas funções, mas a posições ativas e passivas respectivamente. Enfatiza ainda que masculinidade e feminilidade não existem em estado puro, mas enquanto composição. Enquanto afirma que masculino e feminino não são determinados exclusivamente pela anatomia, diz também que há algo da história, da cultura e da dobra que cada um faz de si em cada composição. Evidentemente, do final do século XIX até os dias atuais, muito aconteceu. Hoje podemos olhar para algumas passagens no texto freudiano e avaliar que estão de acordo com 80 o período em que a teoria foi concebida. De fato nosso campo é necessariamente aberto às mudanças na esfera da produção de subjetividade. Abertura que também se verifica nas reflexões críticas bem fundamentadas que forçam o pensamento a produzir novos desenhos e até mesmo novas leituras dos mesmos escritos de fins de 1800 e início de 1900. Nesse sentido perguntamos: seria o tão interrogado complexo de Édipo efetivamente universal, parcial ou mesmo efeito da própria produção psicanalítica? Em O mal-estar na civilização, o autor dirá: Não é decisivo, realmente, haver matado o pai ou deixado de fazê-lo; em ambos os casos temos de nos sentir culpados, pois o sentimento de culpa é expressão do conflito de ambivalência, da eterna luta entre Eros e o instinto de destruição ou de morte. Esse conflito é atiçado quando os seres humanos defrontam a tarefa de viver juntos; enquanto essa comunidade assume apenas a forma da família, ele tem de se manifestar no complexo de Édipo, instituir a consciência, criar o primeiro sentimento de culpa [grifo meu] (FREUD, 2010, p. 104). Na passagem acima, é novamente Freud quem deixa o caminho livre para o movimento do mundo sem determinações a priori. Para ele, enquanto a convivência comunitária seguir adotando o formato da família, o complexo de Édipo será necessário. Resta-nos acrescentar algumas reflexões: podemos inventar outros formatos familiares? Que modos de convivência em comunidade estariam por vir? Como manter viva aquela criança aberta à experimentação, vivendo em comunhão com outros seres? Que crianças a psicanálise também está produzindo? Devir criança É tarefa do psicanalista promover um reencontro com a criança que habita em todos? Evidentemente não estamos a falar de qualquer criança, e sim daquela plena de poten- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 79–84 | Dezembro/2013 A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos cialidades que, pela porosidade à ortopedia das escolas, ao terrorismo de certas igrejas, à velocidade das grandes cidades, às demandas familiares conflituosas e aos sofrimentos do mundo, se torna um adulto que não sabe brincar. Vejamos a demonstração de Manoel de Barros: Estranhei muito quando, mais tarde, precisei de morar na cidade. Na cidade, um dia, contei para minha mãe que vira na Praça um homem montado no cavalo de pedra a mostrar uma faca comprida para o alto. Minha mãe corrigiu que não era uma faca, era uma espada. E que o homem era um herói da nossa história. Claro que eu não tinha educação de cidade para saber que herói era um homem sentado num cavalo de pedra. Eles eram pessoas antigas da história que algum dia defenderam a nossa Pátria. Para mim aqueles homens em cima da pedra eram sucata. Seriam sucata da história (BARROS, 2003, p. XV). No seu artigo Crianceria, Chaim Samuel Katz (1996) coloca em questão o hábito de olharmos a criança apenas de um ponto de vista. Para ele presumir a emergência da figura “a” criança exclusivamente de papai e mamãe “é supor que as energias-afetos que constituem ‘psiquismo’ se dirijam desde sempre, enquanto destinação através destas imagens capturadoras” (KATZ, 1996, p. 90). A criança é encharcada de mundo, da cidade em que vive, do seu momento histórico, da natureza. Suas experiências estão inseridas em uma paisagem que extrapola as figuras de pai e mãe, englobando uma atmosfera mais ampla que também produz efeitos. Não cabe negar a importância das figuras de referência, porém ampliar as coordenadas de investimento pulsional. “Qual ser amado não envolve paisagens, continentes e populações mais ou menos conhecidos, mais ou menos imaginários?”, pergunta Deleuze (2001, p. 84). Como diz Katz (1996, p. 90), “criança não é apenas obedecer aos poderes, mas exercício imanente de potências”. Essa posição implica um estado de permanente abertura para o novo rompendo, e não apenas adotando mandatos previamente estabelecidos. Segundo Bergson (2006, p. 96), “a criança é um pesquisador e um inventor, sempre à espreita de novidade, impaciente pela regra, enfim, mais próxima da natureza que o homem feito”. Nessa perspectiva não há clausura em um vir a ser previamente estabelecido, mas habitar a posição de devir. Esclarece Saidón: Quando dizemos devir, não nos referimos à evolução das ideias ou das transformações dos corpos ou de suas representações ao longo do tempo. Falamos em devir para nos referirmos à transmutação radical de valores que inaugura um pensamento e que se traduz na criação de territórios existenciais inéditos (SAIDÓN, 2008, p. 91). Se nessa perspectiva a criança é vista não como uma esponja inerte que absorve a realidade, mas como produtora de mundos, uma concepção de inconsciente necessariamente derivará. Sabemos que Freud não se dedicou ao trabalho com crianças em sua clínica, o que não significa dizer que tenha negligenciado esse período da vida. Em suas próprias palavras: Sublinhar a importância das primeiras vivências não implica subestimar o peso das vivências posteriores; mas essas posteriores impressões da vida falam com clareza pela boca do paciente, enquanto o médico tem de erguer a voz em favor da infância (FREUD, 2010, p. 300). Vale lembrar que o estatuto conferido à sexualidade infantil, pedra fundamental da psicanálise, causou frisson na época por diversas razões. Diana Corso (2012) afirma que [...] a descoberta da importância da infância decorre da existência não só de uma sexualidade infantil, mas de um sujeito sexualmente desejante na infância. Assim, a psicanálise passa Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 79–84 | Dezembro/2013 81 A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos a se conectar com a história do sujeito, de um ser que desde muito cedo escreve suas páginas com seus desejos, proibidos e realizados, admitidos e recalcados. A infância recebe em seus braços tudo aquilo de que se lhe considerava ainda imune, acrescido do problema de que estas vivências são compreendidas como formadoras, constituintes.1 Ressaltamos aqui esse sujeito desejante apontado pela autora como aquele que investe nos objetos de seu mundo e os significa em uma operação paralela e simultânea a sua própria significação. Assim, a psicanálise nos fala de um mecanismo inconsciente de constituição de sujeitos, tempos e universos não somente particulares. Desse modo, nos debruçamos sobre um tempo da criança não como aquilo que fomos um dia, um passado perdido, mas como esse movimento criador do sujeito em sua esfera relacional potencialmente presente. Tornar-se adulto não suprime a criança, viva naqueles que exploram ambientes por meio de trajetos plásticos e desenham seus próprios mapas. Como diz Manoel de Barros (1999, s/p), “com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças”. Mil e um dias e noites A magia do texto freudiano está em sua abertura para inúmeras leituras. Assim como em certos momentos a balança pende para a necessidade de legitimação da psicanálise no campo da ciência, atendendo às demandas de seu tempo, em tantas outras passagens podemos encontrar uma concepção de inconsciente como usina de produção de mundos. Sim, “a psicanálise já enfrentou muitas tempestades” (FREUD, 1996, p. 50). Cabe a nós, produto e produtores da psicanálise, garantir seu lugar no campo das 1. <http://www.marioedianacorso.com/a-invencaoda-crianca-da-psicanalise-de-sigmund-freud-amelanie-klein>. 82 ciências do devir (SAIDÓN, 2008), para que possamos estar aliados ao caos e à incerteza, sem negligenciar a estrutura e o instituído, tomando-os como trampolins para o engendramento da vida, e não como âncoras que estancam o movimento. As crianças, os artistas e os pacientes em análise bem sabem, pela própria experiência, o que significa habitar um devir. Nas palavras do psicanalista, [...] é instalar-se em uma zona de copresença; é trabalhar em um entorno; é evocar o estranho em nós com os outros; é a troca que acontece a uma partícula ao entrar em uma zona de indeterminabilidade e de potenciais processos criacionistas (SAIDÓN, 2008, p. 95). Winnicott concordaria que há algo em comum entre esses três personagens, quais sejam a criança, o artista e o analisando, já que para ele “é no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação” (WINNICOTT, 1975, p. 79). Criação de si e do próprio mundo tal qual o processo de análise em que, de lamparina em punho, exploramos nossos sótãos empoeirados, conhecendo e reinventando nossa própria história. É como diz Bergson (2006, p. 98): “só se conhece, só se compreende aquilo que se pode, em alguma medida, reinventar”. O divã, tal qual um tapete mágico, nos leva à exploração de territórios conhecidos e inusitados. Nesses voos revisitamos o passado com seus personagens, cores e sabores e, por meio da magia do tapete, vivemos os mil e um futuros por vir. E para nossa surpresa retornamos com o corpo inteiro, revitalizados pela possibilidade de refazer a nós mesmos a cada dia que o tapete novamente alça voo. Abstract In the forthcoming lines the reader will be presented to a reflexive exercise about some aspects of the psychoanalytical dungeon cons- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 79–84 | Dezembro/2013 A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos truction. The practical and conceptual framework is disclosed both as a derivative of its time and as an effects producer in the ways of being, acting and thinking of men and its worlds. The figures of the child, the artist and the analyzed are presented as characters that lend their bodies to the personification of psychoanalysis precious concepts and practices. Keywords: Psychoanalysis, Child, Becoming. de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XXI, p. 15-63. FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Obras completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, vol. 18. FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. VII, p. 128-229. Referências KATZ, C. S. Crianceria. O que é a criança. Cadernos de Subjetividade. São Paulo: PUC, 1996. BARROS, M. Exercícios de ser criança. Bordados de Antônia Zulma Diniz, Ângela, Marilu, Martha e Sávia Dumont sobre desenhos de Demóstenes. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999. SAIDÓN, Osvaldo. Devires da clínica. São Paulo: Hucitec, 2008. BARROS, M. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003. BERGSON, H.. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. CORSO, D.. A invenção da criança da psicanálise: De Sigmund Freud a Melanie Klein. Disponível em: <http://www.marioedianacorso.com/a-invencao-dacrianca-da-psicanalise-de-sigmund-freud-a-melanie-klein>. Acesso em: jun. 2012. DELEUZE, G.. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2001. FIGUEIREDO, L.s C. M. Modernidade, trauma e dissociação. A questão do sentido hoje. In: BEZERRA JÚNIOR, B.; PLASTINO, C. A. (Org.). Corpo, afeto e linguagem. A questão do sentido hoje. Rio de Janeiro: Marca d’água e Contracapa, 2001, v. 1, p. 219-243. WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. Recebido em: 01/09/2013 A p r ova d o e m : 2 9 / 1 0 / 2 0 1 3 S ob r e a au tor a Luciana Knijnik Psicóloga. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em formação no Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Endereço para correspondência Rua Tomaz Flores, 192/201 90035-200 - Porto Alegre/RS E-mail: [email protected] FREUD, S. A questão da análise leiga (1926). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XX, p. 179-248. FREUD, S. Batem numa criança: contribuição ao conhecimento da gênese das perversões sexuais (1919). Obras completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, vol. 14. FREUD, S. O futuro de uma ilusão (1927). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 79–84 | Dezembro/2013 83 A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos 84 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 79–84 | Dezembro/2013 De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza” De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza” From Simone de Beauvoir to the “Fifty Shades of Gray” Maria Carolina Bellico Fonseca Resumo Com base análise do fenômeno editorial Cinquenta tons de cinza, a autora busca compreender a excitação causada entre as mulheres pelo livro e seus personagens. Ela inicia com o questionamento da possível estrutura do personagem principal, tema de debate constante em várias rodas femininas. Em seguida, usando os conceitos de fantasia e gozo, busca compreender o interesse suscitado pela trama que envolve uma relação sadomasoquista e as posições de dominador e submissa chegando, por fim, a discutir o que isso poderia dizer dos encontros sexuais na contemporaneidade. Palavras-chave: Perversão, Fantasia, Sexualidade, Gozo. No final de 2012, o romance em série Cinquenta tons de cinza foi um grande sucesso editorial; por todo lado, via-se mulheres ou lendo um dos volumes, ou pegando um para ler. Mas o que levou um livro tido como literatura menor, romance erótico “fast-food”, como tem sido chamado por alguns, a um grande sucesso de vendas? O movimento feminista eclodido no século passado trouxe frutos que as mulheres colhem até os nossos dias, como emancipação, sucesso profissional em qualquer tipo de carreira, destaque em atividades intelectuais, direito a voto, etc. O que leva, então, ao sucesso um livro que, em pleno século 21, aborda um romance no qual a heroína precisa se colocar como “submissa” sexualmente em relação a um “dominador”? Essas e outras aparentes contradições me levaram à reflexão que se segue. Através de estudos psicanalíticos sabemos que ao neurótico falta certa concessão ao gozo, e ao perverso falta a concessão ao amor, e que numa saída ideal de análise é a isso que assistimos. Em outras palavras, vemos que a pulsão de morte veiculada pelo gozo perverso é enlaçada novamente pela libido e, dessa forma, nem o neurótico necessita tanto do recalque e nem o perverso do desmentido já que, pela via do amor enlaçado a um pouco de gozo, ambos conseguem um amansamento da pulsão, um apaziguamento do real do sexo, o que tem estreita relação com o aforismo de Lacan, citado no Seminário 20: “Só o amor permite ao gozo condescender ao desejo” (Lacan, 2004, p. 197). Lembrando Marco Antônio Coutinho Jorge em um de seus seminários no CPMG sobre a fantasia, o neurótico, na direção da cura, se encaminha em direção à perversão, e o perverso, no sentido oposto. Sa Amor Neurótico Gozo Perverso A oposição entre neurose e perversão pode ser indicada pela ênfase posta em um dos dois termos da fantasia: neurose (S) e perversão (a) Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 85–90 | Dezembro/2013 85 De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza” • O polo do amor S — polo paterno da fantasia • O polo do gozo a — polo materno da fantasia Christian Grey, rapaz que por suas práticas sadomasoquistas em tudo lembra um perverso, era uma pessoa que cresceu com “uma autoimagem negativa, pensando que era algum tipo de rejeitado, um selvagem incapaz de ser amado” (James, 2012, livro 3, p. 479). Filho de uma prostituta viciada e vítima de seu cafetão sádico, foi torturado durante seus quatro primeiros anos até a morte de sua mãe biológica e posterior adoção por uma família abastada. Cresce uma criança arredia, que após anos de silêncio consegue, através da música, sair da mudez que o acometia desde que foi achado ao lado de sua mãe morta, com cujo cadáver ficou trancado num apartamento sem comida, por três dias. Suas vivências com essa mãe submetida a seu cafetão que costumava queimar a criança com cigarro aceso, trouxe como sequela um pavor de ser tocado, mesmo após a adoção. Torna-se um adolescente rebelde, prensado entre a forte demanda pulsional e o horror ao toque e ao envolvimento afetivo. Vai de uma passagem ao ato a outra, descontrolado num percurso mortífero até encontrar uma mulher que o introduz no universo sadomasoquista lhe oferecendo, assim, uma oportunidade viável “de lidar com a dor do lado de fora” (James, livro 3, p. 479), uma proposta sedutora para quem cresceu achando “que merecia apanhar” (James, livro 3, p. 479). Ao lhe dar uma forma de lidar com o gozo mortífero, ela o auxilia a “canalizar sua raiva” e se torna o “centro de seu mundo”. Mas nessa primeira relação Christian era submisso àquela que era sua dominadora, e é nessa submissão que ele se “reencontra” e “descobre a força de que precisava para tomar as rédeas” de sua vida, “ter o controle e tomar suas próprias decisões”, enfim, se tornar um dominador também. Por outro lado, foi criada uma situação de assepsia afetiva, na qual o rapaz evitava se relacionar de ver86 dade com quem quer que fosse. Seus casos eram puramente sexuais e balizados por um contrato no qual as duas partes, submissa e dominador, estabeleciam regras, limites, e a dor e o sexo substituíam o sexo com amor. Isso lhe dava uma falsa sensação de liberdade e controle já que ele só podia transitar dentro de tais limites. Tudo correu muito bem até que apareceu alguém, uma jovem mulher, Anastasia Steele, que fez seu mundo, antes calmo e organizado, virar de cabeça para baixo ao introduzir paulatinamente um novo ingrediente em sua vida — o amor. Maníaco por controle, mas seduzido pela situação de embate, ele se propõe a entrar nessa relação, certo de que era o senhor da situação; todavia encontra alguém rebelde, insubmissa e desafiadora, que aos poucos lhe tira o chão. Ela, por sua vez, é uma moça com autoestima baixa, inexperiente em relações afetivas, mas que se sente fortemente atraída pela beleza e pelo poder representados pelo rapaz e, ao se perceber escolhida por ele (mesmo se sentindo não merecedora de sua atenção) cede, paga o preço se submetendo a uma certa dor, a que lhe era suportável na relação, para ela, erótica. Como nos mostra Lacan no Seminário 10, há uma “função — não mediadora, mas mediana — da angústia entre o gozo e o desejo” (Lacan, 2005, p. 192), e é exatamente o que ocorre com esses personagens quando, antes de conseguirem estabelecer os limites balizados em seu desejo, mas já apaixonados, o casal se separa. Gray, antes dominador e senhor de si e do Outro, apaixonado, se torna cativo, castrado; na angústia da perda se torna um sujeito “premido, afetado, implicado no mais íntimo de si mesmo” (Lacan, 2005, p. 191), no mais íntimo de seu desejo. Então ele cede em seu gozo e ascende ao desejo. Os limites entre dor e prazer são tênues, e estabelecê-los se torna um desafio que é enfrentado pelos dois. A diferença entre Anastasia e as outras submissas é que esta não abre mão totalmente de seu jeito de ser, de Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 85–90 | Dezembro/2013 De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza” sua espontaneidade e, algumas vezes, apesar de tentar se controlar, faz o que lhe dá vontade e acaba sendo fortemente castigada por isso. Castigo que aos poucos, vai sendo desejado e provocado por ela, uma vez que acaba se tornando um ingrediente fortemente erótico na relação dos dois, ou seja, o que antes era uma forma de gozo do Outro se torna, ao ser enlaçado pelo amor e pelo desejo, um tempero desejável na relação a dois. Afora os ingredientes fortemente romanescos, a trama nos ilustra um pouco o tratamento do gozo da dor pelo amor e a busca de equilíbrio entre os dois. Sabemos que a sexualidade é perverso-polimorfa na infância e que a sexualidade adulta tem aí suas raízes que lhe trazem a seiva, a vida. A irrigação da vida sexual de cada um vai depender do quanto é possível conceder com o gozo libertando-se das amarras da repressão, cuja raiz é o recalque. Talvez aqui esteja um dos interesses do livro: a heroína vive situações e práticas sexuais que grande parte das mulheres só o faz em fantasias e, de certa forma, traz para elas uma autorização para a vivência dessas fantasias sem se sentirem doentes ou culpadas. Alguém já fez, mesmo que num livro, então também posso, quero ou no íntimo, desejo. Contudo, não posso deixar de sublinhar que no livro, mesmo com amor, a mulher precisou ceder ao controle do homem para tê-lo, e ele precisou respeitar limite dela para a dor. Ambos cederam. No entanto, é curiosa essa cessão de controle e a entrega à submissão, em pleno século 21, quase um século depois de as mulheres terem se rebelado contra esse papel de submissas e lutado bravamente por um lugar respeitável ao lado do homem, lugar de igualdade tanto de direitos quanto de acesso ao prazer. Podemos dizer que aqui se trata da submissão como ingrediente erótico, numa revivência do erotismo da fantasia do artigo de Freud — Uma criança é espancada –— na qual o dominador substitui o pai desejado do Édipo, e as surras têm a equivalência simbóli- ca das relações sexuais. Freud se refere a esse artigo como um ensaio sobre o masoquismo. Para ele a perversão na infância pode ser a base para a construção de uma perversão posterior que pode ser interrompida e permanecer no fundo de um desenvolvimento sexual normal. A fantasia de espancamento e “outras fixações perversas análogas” são resíduos do complexo de Édipo, “cicatrizes” deixadas por esse processo. Para Marco Antônio Coutinho Jorge, detecta-se no cerne desse texto de Freud uma articulação entre amor e gozo (“inerente a toda fantasia de desejo”), representando a estrutura interna da fantasia. Segundo ele, trata-se de: • Fantasia de completude amorosa na neurose; • Fantasia de completude de gozo na perversão. Para Freud, mais tarde, quando a criança é maior, a leitura substitui o papel de espancamento das crianças — o conteúdo dos livros traz um novo estímulo às fantasias de espancamento. Ora, não seria esse um dos motivos do sucesso dos Cinquenta tons entre as mulheres de hoje? Não teria o livro para essas mulheres adultas o mesmo o papel que um dia teve a fantasia para as crianças? Atração e amor pelo dominador, erotização da dor, desejo por surras. Freud adoraria isso... A sexualidade em nosso tempo tem certa coloração perversa e tem na atração pelo fetiche um ingrediente saboroso como o comprova o sucesso das sex shops. Nossas mães e avós não queimaram seus sutiãs em vão. Hoje as mulheres se permitem o exercício de sua sexualidade e fantasias de forma mais livre, aberta e, em alguns casos, até banalizada. Para algumas, o sexo casual, sem compromisso, oferece mais interesse que as tradicionais relações entre homens e mulheres como namoro e casamento, o que não deixa de ser uma ilusão de estar no controle da relação, da vida; já não são mais abandonadas e enfraquecidas pelo amor, e o homem romântico é tratado por elas como “chiclete que não Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 85–90 | Dezembro/2013 87 De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza” sai do pé” e acaba levando um “end”. Outras preferem a exposição na Internet ou as relações virtuais e ainda vemos também aquelas que, almejando ou não uma vida profissional independente, desejam também um companheiro, um lar e filhos. Mas todas querem ser gostosas, poderosas e, algumas vezes, destruidoras de homens. Não seria essa uma forma de dominação sádica? Christians Grays de saias e peitos? Alguns homens concordariam comigo, e tem sido comum ouvir deles seja em rodas sociais, seja em nossos consultórios, que hoje é difícil encontrar mulheres para namorar, casar. Nesse contexto podemos dizer que, em alguns casos, o amor tem sido prova de fraqueza, quase como o foi outrora para as mulheres guerrilheiras e, até mesmo, para algumas feministas. Teriam sido as correntes do amor trocadas por correntes na cama usadas por mestres mulheres para submeter os homens? As revistas femininas trazem cada vez mais receitas e regras para a conquista e submissão do companheiro sexual. É interessante se compararmos com as revistas femininas da década de 1950, que davam como receita para manter um casamento saudável, a quase total submissão ao homem e a preocupação com o prazer dele. Tudo isso é muito contraditório, pois, apesar de o sexo andar meio banalizado, um livro como esse romance picante, com fortes doses de erotismo sadomasoquista, faz um grande sucesso entre as mulheres, como eu disse no início deste texto, e se multiplica nas prateleiras sob títulos diferentes. Faria sentido a parte da relação sádica se o livro não fosse, no final das contas, uma grande água com açúcar com um final feliz, dominador e submissa numa linda relação de amor, com direito a casamento e filhos. Será que por trás da tão almejada aparência de poderosa a mulher contemporânea traz em si uma Julieta em busca de um Romeu com chicote e vara? Será que algumas mulheres não estariam se identificando com o homem dos sonhos clichê, rico, lindo e poderoso (até parece os 88 três desejos realizados pelas fadas dos contos infantis) e bom de cama? (afinal, mocinha é levada às nuvens em suas relações sexuais...). Outro fator que pode ser atraente é o poder demonstrado pela heroína já que, no final, ela, de certa forma, submete o sádico para transformá-lo num amante sensacional e marido ideal... São muitas as razões desse sucesso de vendas, e não tenho a pretensão de esgotá-las, porém não deixo de notar uma proximidade com as fotonovelas de antigamente e mesmo com as novelas globais em seus ingredientes romanescos, picantes e na apologia do amor conquistado após muito sofrimento e batalha da heroína. Muda a cultura, mudam os costumes, diminuem as repressões, mas a sexualidade continua mais perverso-polimorfa do que nunca e tem encontrado em diferentes graus de sadismo um ingrediente poderoso. Abstract With the analysis of the topped best-seller Fifty Shades of Gray, the author tries to understand the excitement caused among women for the book and its characters. She starts questioning the possible psychic structure of the main character, subject of constant debate in some feminine circles. Then, using the concept of fantasy and enjoyment, she discusses the interest shown by the plot involving a sadistic and masochistic relation, and the positions of dominator/submitted, to finally speak about nowadays sexual meetings. Keywords: Perversion, Fantasy, Sexuality, Enjoyment. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 85–90 | Dezembro/2013 De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza” Referências FREUD, S. Uma criança é espancada - uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais (1919). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XVII, p. 195-218. James, E. L. Cinquenta tons de cinza - livro 1. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012a. James, E. L. Cinquenta tons de liberdade - livro 1. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012b. James, E. L. Cinquenta tons mais escuros - livro 1. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012c. Jorge, M. A. C. Fundamentos da psicanálise - de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Zahar. Lacan, J. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. R ece b ido em : 0 9 / 0 9 / 2 0 1 3 A provado em : 2 9 / 1 0 / 2 0 1 3 S obr e a au tora Maria Carolina Bellico Fonseca Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicanálise pela UFMG. Membro do CPMG. Endereço para correspondência Rua Santa Rita Durão, 321/511 - Funcionários 30140-110 - Belo Horizonte/MG E-mail: [email protected] Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 85–90 | Dezembro/2013 89 De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza” 90 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 85–90 | Dezembro/2013 O contador de histórias: vínculos e identificações O contador de histórias: vínculos e identificações The Storyteller: Identification and Bonds Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski Luís Antônio Franckowiak Pokorski Resumo O presente ensaio pretende examinar os conceitos do vínculo e das identificações presentes na constituição psíquica do ser humano. Para ilustrar essa constituição psíquica, utilizaremos alguns fragmentos da vida de um menino que, com seis anos de idade, é deixado por sua mãe na FEBEM, em 1978. Trata-se de uma situação real, que é retratada no filme brasileiro O contador de histórias, de 2009. Além da história de vida do menino, analisaremos o papel da pedagoga pesquisadora que exerce as funções materna e paterna, sendo continente aos momentos de ódio expressos pelo menino e que chega a adotá-lo. Dos autores da psicanálise utilizaremos Freud, Winnicott e Bion, bem como os que fazem uma releitura deles, por exemplo, Gutfreind, Nasio e Zimerman. Palavras-chave: Vínculo, Identificações, Constituição psíquica, Psicanálise. Introdução Nosso texto examina a importância dos vínculos e das identificações na infância e na adolescência, partindo do filme brasileiro O contador de histórias. Dirigido por Luiz Villaça (2009), o filme retrata a vida de Roberto Carlos Ramos, que em 1978 passa a frequentar a FEBEM (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor), em Belo Horizonte. O personagem Roberto é o décimo filho de uma senhora que sustentava sua família trabalhando como lavadeira, em seu casebre. Diante da vida difícil, interna o filho na FEBEM, onde poderia ter uma vida melhor e até se tornar doutor, uma vez que a campanha institucional veiculada na televisão, em cada letra de seu nome, trazia um significado promissor: F de Fé; E de Educação; B de Bons modos; E de Esperança; M de Moral. Uma cena muito significativa é quando, de madrugada, a mãe veste seu pequeno com carinho e o leva à instituição. Após a assina- tura digital, por ser analfabeta, a despedida lhe é negada pela diretora da instituição. Roberto, vendo-a pelo vidro da janela, suplica que não o deixe ali. A escolha do filme para o presente texto se deve a vários motivos. Um deles é o fato de a obra contar a história de um menino brasileiro, que representa a realidade de várias crianças que sofrem com as adversidades da vida desde muito cedo. Igualmente, cabe analisar o papel dos profissionais da instituição, que, muitas vezes, se mostravam insensíveis aos sentimentos dos menininhos. O filme aponta, por outro lado, o papel fundamental da pedagoga francesa Marguerit, realizando pesquisas no Brasil, quando encontra Roberto após o resgate em uma de suas muitas fugas. Ela o fita nos olhos, dirigindo-se a ele com gentileza e não desiste dele em nenhum momento. O filme apresenta Marguerit no exercício das funções materna e paterna, continente ao Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 91–100 | Dezembro/2013 91 O contador de histórias: vínculos e identificações desespero e ao desamparo de Roberto. Aos poucos, a confiança começa a se estabelecer, além do respeito às escolhas do menino. Diante do anúncio do retorno de Marguerit à França, Roberto inunda a casa inteira de água; contudo, percebe que os limites e o castigo de secar toda a casa foram merecidos. A atitude de Roberto de ter provocado o ódio de Marguerit naquela ocasião foi mais por temer um abandono, o que não se confirmou. Essa atitude de provocar o abandono é frequente em toda criança já abandonada. Marguerit o adota e o leva ao seu país, onde ele estuda e volta formado professor de História, com o endereço de residência de sua mãe biológica. Portanto, na primeira parte, pretendemos descrever a chegada do menino, aos seis anos de idade, à instiuição FEBEM, o seu período de adaptação, o significado da separação, o estabelecimento de escassos vínculos e, logo em seguida, sua experiência de uma segunda adaptação por pertencer ao grupo de sete a catorze anos de idade, quando as fugas da FEBEM passaram a se intensificar, ocasiões em que os meninos roubavam, cheiravam cola e usavam outras drogas. Roberto passa por avaliações psicológicas, recebendo diagnóstico de dislalia, dislexia, discalculia. Em cada resposta errada, as psicólogas davam uma bolachinha recheada, o que estimulava Roberto a não se preocupar com a resposta. Além disso, com as muitas fugas, recebeu o diagnóstico de “caso irrecuperável”. As fugas o inspiraram a querer pertencer a um grupo de meninos de rua mais experientes, por admirá-los. E como exigência de pertencimento ao grupo, teve que passar pela prova de ser abusado sexualmente. O sofrimento foi muito intenso, levando-o a tentar o suicídio, deitando-se nos trilhos de trem. Após essa vivência amarga, procura a casa de Marguerit. Na segunda parte, analisaremos o vínculo com a pesquisadora Marguerit, que, após um período de provações e silêncios, teve um comportamento continente, respeitando 92 o seu jeito de ser. Roberto lhe conta a sua história, que fica registrada nas fitas do gravador. Nesse laço transferencial, ele conquista aos poucos, a aprendizagem da leitura e da escrita, a partir do contato com a história do personagem Capitão Nemo, por quem demonstra admiração, encantamento, o que desperta a sua imaginação sobre as profundezas do mar, que desconhecia. O filme O contador de histórias nos oportuniza operar com os referenciais da psicanálise. A obra nos possibilita transitar pela teoria da psicanálise, pelas situações clínicas, nos ajuda a entender os casos clínicos, nossas experiências analíticas e as demais situações da realidade. Vínculos e identificações Parece-nos que as situações dos vínculos, das identificações e das separações podem expressar e representar um pouco do que Roberto, do filme O contador de histórias, vivenciou em sua primeira etapa na FEBEM, em 1978, na cidade de Belo Horizonte, onde ingressou com seis anos de idade, precisando aderir às regras da instituição, uma vez que sua mãe acreditava ser aquela a forma de seu décimo filho se tornar doutor. Nessa instituição, Roberto não teve sequer espaço e tempo para poder chorar a saudade sentida. Vínculo é a capacidade de estabelecer laços, a ligação com o outro, que é imprescindível à constituição psíquica. A psicanálise consagrou que os primeiros vínculos mãe-bebê são a matriz estrutural das relações afetivas futuras. Para Zimerman (2001), vínculo, do latim vinculum, significa união, ligadura, atadura, ligação entre as partes que estão unidas e delimitadas entre si. Quais os principais autores da psicanálise no estudo dos vínculos? Em Freud encontramos apenas as expressões “vínculos emocionais em grupo” e “vinculação psíquica”. Da vinculação psíquica, em suas Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise (1996), ao descrever A dissecção da personalidade psíquica, ansieda- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 91–100 | Dezembro/2013 O contador de histórias: vínculos e identificações de e vida pulsional, Freud menciona que, nas fobias, há um deslocamento, que é expresso temendo-se uma situação externa. A criança, nessas situações, busca se proteger utilizando a fuga como forma de proteção, uma vez que “fugir de um perigo interno é um empreendimento difícil” (FREUD, 1996, p. 88). A ansiedade é retomada por Freud, pela terceira vez, em 1932. Por volta de 1905, no artigo Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud entende a ansiedade como uma consequência do recalque. Porém, em 1926, em Inibições, sintomas e ansiedades, Freud apresenta o recalque não mais como origem, mas como consequência da ansiedade. Em 1932, define a ansiedade como um estado afetivo de uma ameaça de perigo, que serve como forma de autopreservação. A sede da ansiedade é o eu (ego), porque somente o eu (ego) produz e sente ansiedade, e não as instâncias do id e do superego: [...] as três principais espécies de ansiedade, a realística, a neurótica e a moral, podem com tanta facilidade ser correlacionadas com as três relações dependentes que o ego mantém — com o mundo externo, com o id e com o superego (FREUD, 1996, p. 89). O vínculo mãe-bebê é a base para o desenvolvimento da personalidade da criança; sem o outro, é impossível alguém se constituir como humano/sujeito. Revisando os referenciais da psicanálise sobre o vínculo, além de Freud, encontramos várias denominações. Melanie Klein (apud HINSHELWOOD, 1992) qualifica o vínculo como “elos de ligação” entre mãe-bebê. Bowlby (2006) enfatiza o vínculo como teoria do apego, salientando o vínculo afetivo mãe-bebê e os efeitos prejudiciais da privação da mãe. Winnicott situa a necessidade do olhar da mãe para que o bebê se veja refletido nesse olhar. “O precursor do espelho é o rosto da mãe” (WINNICOTT, 1975, p. 153). Pichon-Rivière (2000) descreve a teoria do vínculo, pontuando as relações patológicas e sadias, os vínculos e os papéis no grupo, os três D (depositário, depositante e depositado). Bion (apud ZIMERMAN, 2010) descreve três vínculos como fundamentais: o do amor, o do ódio e o do conhecimento. Em relação à origem da formação conhecimento, segundo Bion (apud ZIMERMAN, 1995), ela se organiza dissociada da formação do pensamento, porém ambas são [...] uma reação à experiência emocional primitiva decorrente da ausência do objeto. [...] O Conhecimento progride em função do Pensamento, portanto, para Bion, ‘a incógnita é desconhecida e, como tal, faz pensar e criar’ (ZIMERMAN, 1995, p. 111). Aos três vínculos fundamentais de Bion, Zimerman (2010) acrescenta um quarto vínculo, o do reconhecimento. Defende que os quatro vínculos — amor, ódio, conhecimento e reconhecimento — estão sempre interagindo entre si, qualificando-os como sadios ou como patológicos. Zimerman (2010) desdobra o vínculo do Reconhecimento em reconhecimento de si mesmo, reconhecimento do outro, ser reconhecido ao outro e ser reconhecido pelos outros. Em relação ao reconhecimento de si mesmo, este ocorre no início da vida, quando o bebê começa a fazer a diferenciação entre eu e não-eu, na etapa narcísica. Pode deixar marcas para a vida adulta, em que a pessoa não consegue distinguir o outro diferente de si mesma ou esse reconhecimento do outro pode ficar com distorções que são observadas na identificação projetiva, em que são projetadas dentro do outro as imagos parentais que habitam o psiquismo de quem projeta. [...] o reconhecimento de si mesmo, acrescido do reconhecimento do outro, também se constituem como importantes fatores para a formação do sentimento de identidade, desde o seu nascimento até fases evolutivas posteriores. Isso se processa através de uma sadia, ou de uma prejudicada, evolução de sua ca- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 91–100 | Dezembro/2013 93 O contador de histórias: vínculos e identificações pacidade para pensar e, consequentemente, de conhecer e reconhecer (ZIMERMAN, 2010, p. 210). Ser reconhecido aos outros Zimerman (2010) justifica como a capacidade da pessoa de ter vencido a etapa mais primitiva que, segundo o referencial de Melanie Klein, significa ter feito a passagem da posição esquizoparanoide à posição depressiva, ou seja, tendo vencido o mundo mágico, da onipotência, aceitado as frustrações, ter adquirido a percepção total do objeto, e não apenas parcial, tendo assumido as responsabilidades e os compromissos da vida, sendo grata ao outro, e, com isso, podendo desenvolver a capacidade de pensar, aprender e simbolizar as experiências vividas. O quarto e último vínculo descrito por Zimerman (2010) é ser reconhecido pelos outros, quer dizer, ser visto, nomeado, amado, diferenciado pelos outros; assim, como para a estrela existir ela precisa ser vista, nós humanos também precisamos desse investimento do outro. Muitas vezes, em nossos seminários de formação psicanalítica, Natal Fachini mencionava que o que adoece a pessoa não é o amor, mas a falta ou a falha no reconhecimento. Zimerman reafirma essa constatação de Fachini, pontuando que as configurações psicopatológicas, que abarcam as questões de “autoestima, de sentimento de identidade e o da relação com a realidade exterior” se originam dessa “falência desse tipo de necessidade do sujeito em ser reconhecido” (ZIMERMAN, 2010, p. 212). Após essa explanação sobre a importância dos vínculos iniciais da criança com o meio e vice-versa, ficamos a questionar o estado do pequeno Roberto, do filme de pano de fundo de nosso texto, sobre a sua “capacidade de estar só” e a sua “continuidade de ser”. Neste momento, consideramos importante examinar esses dois conceitos descritos por Winnicott (1990). Na etapa inicial, o bebê é de uma dependência absoluta e, para evoluir dessa etapa, precisa de uma mãe “suficientemen94 te boa”. Hipoteticamente, poderíamos dizer que uma mãe de dez filhos preencheria esse quesito, até pela repetição das experiências, não fossem as adversidades da vida, de muita pobreza, fome e da figura paterna totalmente ausente, conforme mostra o filme. Para adquirir a “capacidade de estar só”, a criança precisa ter introjetado o ego auxiliar (a mãe); com isso, a mãe está presente no psiquismo da criança, mesmo que ausente no espaço. O cuidado materno possibilita à criança a capacidade [...] de ter uma existência pessoal, e assim começa a construir o que pode ser chamado de continuidade de ser. Na base dessa continuidade de ser, o potencial herdado se desenvolve gradualmente no indivíduo lactente (WINNICOTT, 1990, p. 53). Winnicott (1990) acrescenta que, quando ocorrem falhas no cuidado materno, abremse possibilidades de esse bebê “não vir a existir” ou a organização do seu ego ser considerada fraca. É importante ressaltar a importância de a mãe poder contar com o pai da criança nesses momentos iniciais. Cabe lembrar que as funções do ego são: perceber, pensar, planejar, lembrar, prestar atenção, ou seja, todas elas envolvem as questões da aprendizagem. Em relação à aprendizagem, nosso personagem fora diagnosticado com dislexia (mesmo não sabendo ler e escrever), dislalia, discalculia e, em relação ao comportamento na adolescência, um “caso irrecuperável”. Mas qual o papel das identificações na constituição psíquica? O processo identificatório na psicanálise foi criado por Freud (apud ROUDINESCO; PLON, 1998) para designar [...] o processo central pelo qual o sujeito se constitui e se transforma, assimilando ou se apropriando, em momentos-chave, de uma evolução, dos aspectos, atributos ou traços dos seres humanos que o cercam (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 363). Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 91–100 | Dezembro/2013 O contador de histórias: vínculos e identificações As pulsões autoeróticas são básicas, estão lá desde o início, mas algo deve ser acrescido a esse autoerotismo, e o que se acrescenta é o “eu”. Assim, o narcisismo equivale ao nascimento do “eu”. Segundo Garcia-Roza (1995), a partir de 1920, Freud denomina o autoerotismo de narcisismo primário; nele ainda não há um eu diferenciado do não eu, mas há a pulsão sexual satisfazendo-se autoeroticamente no próprio corpo. São ainda características do narcisismo primário a onipotência, a imagem corporal, o eu ideal, o plano imaginário, as idealizações. No narcisismo secundário, por sua vez, há uma relação de objeto, uma identificação com o outro, um ideal do eu, marcado pelo simbólico. Mas como se dá a identificação no conceito freudiano? Para Nasio (1997), a identificação, a partir das categorias freudianas, acontece entre duas instâncias inconscientes: o eu e o objeto, podendo ser total ou parcial. Freud denomina de identificação primária a identificação total do eu com o objeto total. Retoma a précondição mítica, transmitida de geração a geração, em que o objeto total é o Pai mítico da horda primeva. Os filhos devoram o pai, incorporando-o pela boca, para que tenham a força paterna inteira dentro de si. Nas identificações parciais, o objeto tem um significado de representação inconsciente. Nasio (1997) assinala o aspecto ou a forma que a representação assume, podendo ser por um traço distinto, uma imagem (global ou local) ou uma emoção. Na identificação parcial com o traço do objeto, o eu se identifica com um traço de um objeto amado, desejado e perdido, ou até com vários objetos que têm o traço da sonoridade vocal, do sorriso, do olhar, da vestimenta, do cabelo, etc. Nasio mostra que Freud a qualifica [...] de ‘identificação regressiva’: o eu estabelece, primeiro, um vínculo com o objeto, depois desliga-se dele, volta-se sobre si mesmo, regride e se decompõe nos traços simbólicos daquilo que não existe mais (NASIO, 1997, p. 107). Na identificação parcial com a imagem global do objeto, a “representação inconsciente do objeto amado, desejado e perdido é uma imagem” (NASIO, 1997, p. 107). Em relação a essa identificação, Nasio (1997) dá um exemplo do menino que tem um forte apego com seu gato, ilustrando a identificação patológica na melancolia. Certo dia se deparou com o gato morto. Passados alguns dias, o menino começa a apresentar condutas bizarras, adotando atitudes felinas: bebia, miava e caminhava como gato. O menino reproduzia a conduta daquele que o deixou, tornando-se idêntico à sua imagem, vestiuse com a “pele do outro”, uma conduta narcísica. Assim, no exemplo do menino e o gato: O eu não encontra outra pele senão a anteriormente amada, porque, ao amá-la, refletia-se nela e amava a si mesmo. Se hoje o menino melancólico banca o gato, é justamente porque a imagem de seu gato vivo já era sua própria imagem (NASIO, 1997, p. 108). A identificação parcial com a imagem local do objeto e a identificação com o objeto, enquanto emoção, se relacionam ao tipo de investimento dos histéricos. No primeiro se destaca a identificação com a imagem da parte sexual do outro; no segundo o eu identificado com o outro, enquanto emoção, significa que: Todo sonho, sintoma ou fantasia histéricos condensa e atualiza uma identificação tríplice: identificação com o objeto desejado, com o objeto desejante e, por fim, com o objeto de gozo dos dois amantes (NASIO, 1997, p. 110). Sabemos que muitas vezes as adversidades da vida da criança interferem em sua constituição psíquica. McDougall (2001) utiliza de Christopher Bollas os conceitos de fado e pulsão de destino. Em relação ao Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 91–100 | Dezembro/2013 95 O contador de histórias: vínculos e identificações “fado”, a pessoa não tem controle direto, é uma situação acidental, externa ao sujeito, ou seja, é da realidade, são as situações inevitáveis e fatídicas com as quais se depara. Já a “pulsão de destino” engloba a participação e a responsabilidade da pessoa para reagir aos golpes do fado. McDougall (1996) relata vários casos de pessoas que, em sua etapa inicial de desenvolvimento, sofreram severos prejuízos em relação aos cuidados essenciais à constituição psíquica, em que mãe e pai falharam, afetando sua capacidade para o sonho, a fantasia, o nomear as emoções ou as dores físicas ou psíquicas, sofrendo de insônia e utilizando um pensamento concreto em seus discursos. No capítulo intitulado Sobre a privação psíquica, McDougall (1996) descreve que, para poder sonhar, é necessário que o bebê tenha introjetado uma “tela do seio materno” de confiança e de segurança. Quando não há essa tela, não há onde e o que projetar. A mãe (ou a pessoa que cuida e acolhe) representa uma proteção contra os estímulos transbordantes, especialmente na época da representação de coisa, isto é, as representações anteriores à palavra. Portanto, parece-nos importante essa análise das condições de nosso personagem do filme O contador de histórias, o Roberto, que, desde muito cedo, teve que lidar com situações de desamparo, separações e abandonos em seus vínculos, o que, consequentemente, afetou seu processo de identificações. Os vínculos, por anos seguidos, se mostravam escassos, inconstantes, violentos e com pouco investimento do outro. Os profissionais da instituição tratavam cada criança como uma a mais, e não como ser humano. Ainda seria possível confiar em outra pessoa? Apesar de todas essas situações, algo em seu mundo imaginativo e criativo estava indicando para algumas possibilidades, mesmo que as potencialidades de aprendizagem estivessem rotuladas como sem alternativa alguma. Qual a importância da atitude e do papel da pesquisadora na vida de Roberto? 96 A relação de Marguerit com Roberto pode ser comparada com a função psicanalítica de continência, usando a capacidade reverie, as funções materna e paterna, a confiança e o respeito? A pesquisadora continente A relação de Marguerit e Roberto, após o tempo do estabelecimento da confiança, vai modificando a tomada de consciência de cada um. Descobrem-se gostos, interesses e limites de cada um, embora, no início, o medo recíproco ficasse manifesto, mas não nomeado. A possibilidade de Roberto contar a sua história e escutar parte da história da pesquisadora fez com que as duas realidades se aproximassem cada vez mais. A leitura da história do personagem Capitão Nemo, de Júlio Verne, escrita no século XIX, foi outro momento marcante nessa relação de estabelecimento do vínculo e nas identificações. Roberto escuta falar de um mar profundo e desconhecido, dominado pelo Capitão Nemo, que vence todos os obstáculos possíveis desse mar. Aliás, a contação de histórias é um recurso terapêutico milenar. A psicanálise se utiliza há muito desse recurso, principalmente quando se trata da análise com crianças. “Narrar é antitraumático, porque cria vínculos e abre espaço para o inédito” (GOLSE apud GUTFREIND, 2010, p. 21). Em seu livro, Gutfreind (2010) defende que contar histórias, que podem ser pessoais ou contos infantis, de ficção, possibilita o exercício da parentalidade, que está ligada à transmissão de narrativas, a um projeto de vida e a um sentido da existência. Possivelmente os vínculos de Marguerit e Roberto aos poucos foram se intensificando com o convívio, com a gravação da contação de histórias, com a aprendizagem da leitura e da escrita. Os dois idiomas igualmente marcaram a relação: Roberto ensinando algumas palavras e gírias brasileiras, e Marguerit ensinando francês. Com o passar do tempo, esses dois personagens foram nascendo para um novo mundo: Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 91–100 | Dezembro/2013 O contador de histórias: vínculos e identificações O verdadeiro nascimento não é o biológico. Ele é afetivo, no desejo maternal, primário e doido de construir o vínculo. E, depois, com os afetos nas ventas, é que vem a tentativa cultural de acolher esta sandice maravilhosa (GUTFREIND, 2010, p. 64, grifo nosso). Parece-nos que, assim como Roberto foi tomando consciência da vida e da natureza humana, a humanidade teve o seu momento, em que o homem tomou consciência de si mesmo. Considerando a consciência mítica uma consciência comunitária, há uma relação entre o individual e o coletivo. Para Bion (apud ZIMERMAN, 1995), a produção imaginária coletiva contida no mito equivale à fantasia inconsciente individual. Em seus estudos, utilizou os mitos de Édipo, do Éden, da Torre de Babel, dos Funerais do Rei Ur, da Morte de Palinuro e os vinculou ao conhecimento, ao amor e ao ódio (K-L-H). O vínculo emocional entre mãe e bebê não poderia ser só de amor (L) e de ódio (H), faltava o desejo da mãe em compreender/conhecer (K) as necessidades do bebê, bem como o que Bion denomina de capacidade de reverie. O personagem Roberto, mesmo com o diagnóstico de “caso irrecuperável”, aprendeu a ler e a escrever. Isso sugere que teve uma mãe (a pesquisadora) que soube dar as respostas nos momentos adequados. As angústias do encontro inicial foram suportadas, desintoxicadas e canalizadas, como uma “mãe suficientemente boa” sabe fazer. A capacidade reverie da mãe é básica para a estruturação do psiquismo e para as futuras aprendizagens da criança. Se essa capacidade [...] for adequada e suficiente, a criança terá condições de fazer uma aprendizagem com as experiências das realizações positivas e negativas impostas pelas privações e frustrações e, nesse caso, ela desenvolve uma função K, que possibilita enfrentar novos desafios em um círculo benéfico de aprender com as experiências, à medida que introjeta a função K da mãe (BION, apud ZIMERMAN, 1995, p. 112). Quando a capacidade reverie da mãe de acolher, receber, conter, significar, decodificar e nomear for insuficiente, as angústias que a criança projeta na mãe voltam a ela como um terror sem nome, o que aumenta as angústias e impede a introjeção de uma função K (conhecer/saber). O aprender e o conhecer necessitam da formação de símbolos, que, por sua vez, permitem à criança conceituar, generalizar, expandindo, assim, seu pensamento e conhecimento. Para Bion, a capacidade de formar símbolos depende [...] da capacidade do ego em suportar perdas e substituí-las por símbolos. A capacidade da criança em suportar perdas, por sua vez, depende do fato de ter havido a passagem da posição esquizoparanoide para a posição depressiva (BION apud ZIMERMAN, 1995, p. 114). Bion introduz em seus estudos a noção da capacidade de reverie a partir de uma mãe real, uma mãe para conter o bombardeio de identificações projetivas da criança. A capacidade de tolerância da criança em relação às frustrações depende de suas “inatas demandas pulsionais excessivas”, bem como da “mãe real externa”. Salienta que “esses dois fatores são indissociados e constituem o modelo de Bion de ‘continente-contido’, representado pelos símbolos e ” (ZIMERMAN, 1995, p. 91). A função de conhecer/saber significa tomar consciência da realidade sobre si mesmo, da natureza, do mundo e, em cada experiência emocional, chegar a uma aprendizagem e a um novo conceito. A esse processo Bion (apud ZIMERMAN, 1995) chama de “pulsão epistemofílica ao conhecimento das verdades”, que pode se dar em diferentes planos, por exemplo, conhecimento pessoal, dos outros, diferentes vínculos dos grupos entre si, etc. Em O contador de histórias, Ro- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 91–100 | Dezembro/2013 97 O contador de histórias: vínculos e identificações berto teve a sua segunda chance de (re)construir, em seus vínculos, esses três conceitos fundamentais descritos por Bion: do amor, do ódio e do conhecimento, dando um novo sentido e significado a sua vida, uma vez que a pesquisadora Marguerit pôde ser continente às angústias e ao ódio expressos em diferentes momentos. Marguerit soube dosar suficientemente as funções materna e paterna. Ou seja, a função materna com a acolhida, a proteção, a confiança; a função paterna no estabelecimento e no cumprimento de regras e limites. Considerações finais O ser humano precisa, com frequência, buscar conhecer a sua história, encontrar algum argumento, alguma palavra que explique o porquê do fenômeno que o assusta e o que lhe parece desconhecido. Nesse sentido, a humanidade tem criado mitos, histórias e contos de fadas. Bettelheim (1980) diz que os mitos são respostas taxativas, enquanto os contos de fadas são respostas sugestivas. O mito explica a realidade que ainda não foi justificada pela razão. O mito, mais do que explicar a realidade, tem a função de tranquilizar e acomodar o homem em um mundo desconhecido e assustador. As histórias infantis e os contos de fadas deixam à fantasia da criança um espaço para encontrar soluções e para aplicar a si o que a história tem com a sua vida. Enfim, as soluções são dadas, mas não soletradas. Gillig (1999) refere que, nos contos de fadas, os monstros e as bruxas representam personagens temíveis que são as projeções imaginárias dos fantasmas que a criança traz consigo: medo de ser devorado, medo de ser abandonado por seus pais, medo da rivalidade fraterna. Os contos de fadas são importantes para a criança lidar melhor com suas angústias, projetando-as nessas histórias, podendo se identificar com os heróis. Além disso, oportunizam à criança um material imaginativo, onde buscará imagens e ideias para lidar com seus conflitos internos, po98 dendo traçar as fronteiras entre a fantasia e a realidade. Como bem o salienta Gutfreind (2010), que realizou suas pesquisas de mestrado, doutorado e pós-doutorado na França, com crianças de abrigo e com crianças que tinham família, destacamos a importância da contação de histórias infantis e das narrativas na constituição da subjetividade. Gutfreind (2010) destaca autores da psicanálise que percebem no conto um potencial para o contato com os mais profundos afetos, vínculos e identificações, apontando que Freud e psicanalistas contemporâneos atribuem ao conto uma função organizadora do psiquismo. Ou seja, nós nos constituímos de nossas histórias, de nossas narrativas. Nosso protagonista Roberto, ao contar a sua história, em suas narrativas, bem como em seu apaixonamento pelas profundezas oceânicas, a partir da história do personagem Capitão Nemo, se tornou um contador de histórias. E essa possibilidade narrativa nos remete ao outro, o da escuta; contam-se histórias para alguém que nos reconhece, alguém que não só ouve, mas alguém que escuta. A experiência analítica em sua essência é o poder se fazer narrativa, se tecer, se fazer texto, se fazer sentido, se contar, fazer e se fazer história. Abstract This essay intends to examine the concepts of identification and bonds included in the human psychic constitution. To illustrate this psychic constitution, we are going to use some life fragments of a six years old boy, who was left behind by his mother at FEBEM (State Foundation for Children Welfare), in 1978. A real situation reproduced by the 2009’s Brazilian film ‘O contador de histórias’ (The Storyteller). Besides the history of the boy, we are going to analyze the researcher pedagogue’s role, performing the functions of mother and father, which is continent in the moments of hatred expressed by the boy and adopts him. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 91–100 | Dezembro/2013 O contador de histórias: vínculos e identificações We are going to use psychoanalysis authors such as Freud, Winnicott and Bion, and the ones that make a rereading of them, as, for example, Gutfreind, Nasio and Zimerman. MCDOUGALL, J. Teatros do corpo: o psicossoma em psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Keywords: Bonds, Identification, Psychic constitution, Psychoanalyzes. PICHON-RIVIÈRE, E. Teoria do vínculo. São Paulo: Martins Fontes, 2000. NASIO, J-D. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Referências VILAÇA, L. (Dir.). O contador de histórias. Warner Brothers: Brasil, 2009. 1 DVD (110 min). BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. BOWLBY, J. Cuidados maternos e saúde mental. São Paulo: Martins Fontes, 2006. FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedades (1926). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XX. FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1932). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XXII. FREUD, S. Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. VII. WINNICOTT. D. W. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artmed, 1990. WINNICOTT. D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. ZIMERMAN, D. Bion da teoria à prática: uma leitura didática. Porto Alegre: Artmed, 1995. ZIMERMAN, D. Os quatro vínculos, amor, ódio, conhecimento, reconhecimento: na psicanálise e em nossas vidas. Porto Alegre: Artmed, 2010. ZIMERMAN, D. Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2001. R ecebido em : 1 0 / 0 9 / 2 0 1 3 A provado em : 0 4 / 1 1 / 2 0 1 3 GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metodologia freudiana. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. v. 3. GILLIG, J.-M. O conto na psicopedagogia. Porto Alegre: Artmed, 1999. GUTFREIND, C. Narrar, ser mãe, ser pai e outros ensaios sobre a parentalidade. 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Professora Adjunta de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade Porto-Alegrense. Endereço para correspondência Av. Assis Brasil, 3532/1012 91010-003 - Porto Alegre/RS E-mail: [email protected] [email protected] 100 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 91–100 | Dezembro/2013 O outro da dor O outro da dor The partner of the pain Ricardo Azevedo Barreto Resumo Com o objetivo de humanização da assistência, o autor debate sobre algumas concepções da abordagem psicanalítica acerca da denominada “dor física” do ser humano, sua diferença da “dor mental” e enfatiza que é questionável falar da dicotomia entre as dimensões física e psicológica da dor. Compreende que a dimensão psíquica está presente na “dor física” do paciente, e os efeitos do inconsciente podem ser analisados por um psicanalista na equipe de saúde, quando houver indicação. Palavras-chave: Psicanálise, Dor, Inconsciente, Humanização, Saúde. Os fenômenos dolorosos não se restringem aos seres humanos. Os enigmas da dor são muitos, assim como se constituem inúmeras as expressões da experiência dolorosa. Por exemplo, há quem fale da satisfação com a dor em si ou o sofrimento próprio, uma espécie de enamoramento. Existem ritos em diversas culturas humanas que envolvem situações dolorosas. Ocorrem diferentes transtornos psíquicos ou experiências subjetivas relacionadas à dor. Sinal vital, a dor tem função para a sobrevivência e a adaptação, assim como pode ser reconhecida em pinturas do ato de morrer. Existem muitas formas de a experiência dolorosa se delinear: dor do parto, cefaleia, fibromialgia, dor do membro fantasma. A dor tem inúmeras classificações (central, periférica, aguda, crônica), pode ter relação com várias dimensões da existência, como a alimentação e o estresse, e ser compreendida por múltiplos enfoques. Ainda hoje é comum falar de “dor física” por meio de uma visão organicista, o que é distinto de uma compreensão biopsicossocial da dor. Nas reconhecidas modalidades físicas dos fenômenos dolorosos de um ser humano, a psique está presente, e seus efeitos inconscientes podem, nos casos indicados, ser acompa- nhados e trabalhados pela escuta de um psicanalista na equipe de saúde com o intuito de humanizar a assistência. Nas publicações especializadas em saúde, predominam as concepções médicas da dor. Para a Associação Internacional para o Estudo da Dor, a dor é “uma experiência sensorial e emocional desagradável, que é decorrente ou descrita em termos de lesões teciduais” (TEIXEIRA, 2001, p. 329). Contudo, a culpa e as diferentes expressões de sofrimento psicológico ou da “alma” não se excluem do campo das dores humanas, quando os norteadores são as concepções da psicanálise, da filosofia, da teologia, etc. De acordo com Dallenbach apud Andrade (1998), Aristóteles concebe a dor, ao lado do prazer, como uma paixão da alma; além disso, a dor pode ser considerada um castigo ou uma redenção no catolicismo. Freud não tece sistematicamente uma discussão sobre a dor física. Sobre tal temática, ele fala em Projeto para uma psicologia científica. Aborda a noção de barreira protetora e menciona a penetração dessa barreira por sensações físicas, ocorrendo a experiência de desprazer, relacionando a sensação a traços de memória (GRZESIAK; URY; DWORKIN, 1996). No mesmo texto, ao se referir à dor, Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 101–106 | Dezembro/2013 101 O outro da dor Freud (1990) fala da irrupção de grandes quantidades no sistema neuronal. Comenta também a relação entre dor e interrupção de continuidade, assim como a tendência contra a elevação da tensão e a fuga do sistema nervoso da dor, entre outros aspectos. No Rascunho I, Freud (1990, p. 300) faz uma referência à enxaqueca, vista economicamente por meio da perspectiva da sexualidade: “efeito tóxico produzido pela substância estimulante sexual quando esta não consegue encontrar descarga suficiente”. No Rascunho G, Freud (1990) aborda a melancolia e fala de “uma retração para dentro”, que atua de modo inibidor, estabelecendo uma analogia com a dor. Destaque-se que o conceito de barreira protetora não se mantém fundamental na psicanálise, mas é importante ao reconhecer o papel da memória da dor do passado (GRZESIAK; URY; DWORKIN, 1996). Em Inibições, sintomas e ansiedade, Freud (1990) aprofunda sua visão. Ao abordar “ansiedade, dor e luto” nos adendos desse texto, Freud se refere à “dor interna mental” e à “dor física”. É significativo o assunto: dor da perda do objeto, dor com estimulação periférica na pele, dor proveniente de um órgão interno. Freud acentua a diferença do “sentimento de perda de objeto” das dores oriundas da pele e de um órgão interno. Arremata, em seguida, que não é por acaso que se tenha construído a ideia de “dor interna mental” e tratado de modo equivalente “o sentimento de perda de objeto” e a “dor física”, explicando a última com base na noção de “catexia narcísica do ponto doloroso.” Comenta que se sabe muito pouco da dor e afirma: O único fato do qual temos certeza é que a dor ocorre em primeiro lugar e como uma coisa regular sempre que um estímulo que incide na periferia irrompe através dos dispositivos do escudo protetor contra estímulos e passa a atuar como um estímulo instintual [pulsional] contínuo, contra o qual a ação muscular, que é em geral efetiva porque afasta do estímulo o 102 ponto que está sendo estimulado, é impotente [...] (FREUD, 1990, p. 196). Cabral e Nick (1997) explicam que, para a psicanálise, a dor resulta do excesso de “acumulação de afeto”. Comentam ainda que a “dor psíquica” é funcional e sem a presença do estímulo físico. Dantas (2013) reflete sobre a primeira grande dor, bem como a última dor, tomando como representações a vida e a morte. Aborda também que o feto tem aptidões para, de modo precoce, sentir dor física. Anna Freud (1968) pronuncia que o ego não se defende apenas em relação à “dor” proveniente de dentro, mas experimenta do mesmo modo a “dor” com origem no mundo externo. Para a medicina, a dor tem indiscutível importância e deve ser avaliada e monitorada nas instituições de saúde. Contudo, a perspectiva do psicanalista, quando ocorre indicação de seu atendimento, é a da escuta de quem sente a dor: suas verbalizações e lamúrias, seus afetos, seus gestos, seus atos, seu silêncio... o inconsciente. No discurso médico, os estímulos nociceptivos, os motivos biológicos da dor e a “dor física” são expressões comuns. No discurso psicanalítico, a dor humana é igualada, às vezes, ao sofrimento, assim como o corpo pode ser compreendido em suas relações com a linguagem; o “sujeito” se depara com os estímulos externos, contudo também com as ameaças pulsionais, a conjunção de ambos. Para o psicanalista, mesmo quando ocorre dano orgânico no ser humano, a carne lesada tem uma “alma”, o que se percebe sob diferentes manifestações da psique, por exemplo, por meio do sentimento de culpa: “O que eu fiz para merecer isso?” Nas experiências da denominada “dor física”, a pessoa tem seus investimentos objetais empobrecidos. O mundo externo pode lhe fugir porque está mergulhada em seu sofrimento, que a endereça ao inconsciente, ao infantil e à sexualidade, entre outras nuanças. Para a psicanálise, o trabalho não é com a dor, alerta e Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 101–106 | Dezembro/2013 O outro da dor proteção do organismo, que o médico avalia e monitora com muito cuidado, mas é com os desfiladeiros da subjetividade, a pulsão, a castração, a vida e a morte. Em Além do princípio do prazer (FREUD, 1990), a ideia de escudo protetor atravessado por excitações de fora reaparece ligada ao trauma e ao sofrimento físico. O conceito de catexia é central. Além disso, nessa obra, há a concepção de pulsão de morte, o que amplia a visão do funcionamento psíquico para Freud. [...] em Além do princípio do prazer (1920), Freud destaca que existem tensões agradáveis. Ele faz então intervir um fator temporal, ou seja, que não se deve apenas considerar o nível de investimento energético, mas também as variações desse investimento, seu ritmo, seu gradiente [...] (BOULANGER, 2006, p. 63). Existem várias dimensões implicadas no denominado “sofrimento somático”. A pessoa com “dor física”, bem como com “dor psíquica”, se apresenta em estado de desamparo psicológico, que é importante que seja reconhecido e trabalhado pelo psicanalista. [...] o fato da causação periférica da dor física pode ser deixado de lado. A transição da dor física para a mental corresponde a uma mudança de catexia narcísica para a catexia de objeto. Uma representação de objeto que esteja altamente catexizada pela necessidade instintual [pulsional] desempenha o mesmo papel que parte do corpo catexizada por um aumento de estímulo. A natureza contínua do processo catexial e a impossibilidade de inibi-lo produzem o mesmo estado de desamparo mental [...] (FREUD, 1990, p. 197). Parece, por conseguinte, que os conceitos de desamparo, catexia/investimento e narcisismo são algumas das pistas para os complicados enigmas da dor e seus desdobramentos por meio da escuta de um psicanalista. Fica mais complexo o assunto quando se pensa nas diferenças entre dores aguda e crônica, na causação periférica ou central da dor, nas síndromes dolorosas e suas relações com a história de vida das pessoas por elas acometidas, na vivência do membro fantasma, entre outros temas relevantes ao estudo dos fenômenos dolorosos pela psicanálise. Existem diversos assuntos entrelaçados ao se referir à dor. Em Luto e melancolia, Freud (1990) aproxima luto de melancolia, ressaltando que, na primeira situação, está ausente a perturbação da autoestima. Menciona que a disposição para o luto é “dolorosa”. Por outro lado, comenta-se aqui: algumas pessoas que se queixam de dor parecem enlutadas ou até desenvolvem um quadro melancólico. Não se pode falar de uma dicotomia entre soma e psique. A dor que o psicanalista escuta fala de um ser humano que tem carne e “alma”. Quem sou eu, dor? Essa é a travessia enigmática da perspectiva psicanalítica, que considera os fantasmas mentais, “o inconsciente estruturado como linguagem”, o desamparo, o investimento pulsional, a sexualidade, o narcisismo, a destrutividade, a castração, o luto e a morte. Por outro lado, enfatizar a particularidade de cada experiência de dor é reconhecer, por exemplo, que os estímulos externos ou internos podem ter uma importância maior ou menor em algumas situações, o que apresenta implicações clínicas diversas, por exemplo, em relação à indicação dos profissionais que irão compor a equipe no atendimento ao paciente. Na abordagem da histeria, Freud e Breuer evidenciam que pode haver a apropriação da dor somática pela neurose (GRZESIAK; URY; DWORKIN, 1996). Seja ampliada tal visão para a psicose e a perversão, o que será posteriormente aprofundado neste texto. Melhor, então, seria dizer: o fenômeno doloroso desenhado cientificamente como orgânico toma os caminhos da subjetividade e a denominada “dor física”, porque assim foi concebida por uma esfera do saber, borra-se com o “sofrimento da alma” à escuta psicanalítica. Em tal perspectiva, a dor é única: Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 101–106 | Dezembro/2013 103 O outro da dor de cada “sujeito” singular com sua história. No recorte teórico delineado, não se concebe uma “dor física” de um ser humano sem ser reconhecido o sujeito da dor, sujeito esse que desconhece em demasia de si e do outro/ Outro, sujeito, em parte, alienado pelo assujeitamento que o marca, às vezes, um “nãosujeito”. Andrade (1998, p. 117) comenta: [...] quando a dor evolui de um sistema de proteção para o de um mecanismo defensivo, sua finalidade passa a ser de auxiliar a evitar ou afastar sentimentos ou experiências mais desagradáveis, como: culpa, sofrimentos frequentes, impulsos agressivos, perda real ou imaginária. Como se depreende, o corpo é habitado pela psique. A dor da carne também apresenta uma ferida anímica ou “dor da alma”. Para além da temática da dor, Freud (1990) menciona, inclusive, que alguns analistas comunicam que a análise para a situação de doenças orgânicas não é inauspiciosa, já que, não de modo infrequente, uma dimensão mental contribui tanto para a origem quanto para a continuidade de tais doenças. Roudinesco (2000, p. 9) afirma: A psicanálise atesta um avanço da civilização sobre a barbárie. Ela restaura a ideia de que o homem é livre por sua fala e de que seu destino não se restringe a seu ser biológico […]. Com base na psicanálise, abordar a temática da dor é complexo. Se Freud não faz uma apreciação sistemática do que configura como “dor física”, pensa sobre o infortúnio das pessoas de modo muito consistente. A partir do que ensina Freud em O mal-estar na civilização (1990), indaga-se: não foi tamanho o sofrimento humano decorrente da restrição das pulsões, dos desejos, que permitiu a construção da civilização? Por outro lado, percebe-se que hoje algumas pessoas “necessitam” (os desejos são sentidos como 104 necessidades) da felicidade plena, o que constitui uma problemática para os seres humanos e seus laços sociais. Aprofundando a reflexão, o romance familiar é fundamental numa perspectiva psicanalítica. Pode-se citar, entre outros pontos, a importância da travessia, ou não, do complexo de Édipo, na abordagem do tema. Com base em Quinet (2002), destaque-se que, na psicanálise, o diagnóstico estrutural pode ser formulado pelos três modos de negação do Édipo, que distinguem três estruturas clínicas: no recalque, nega-se o elemento, mas o conserva no inconsciente (neurose); no desmentido, nega-se o elemento, todavia o conserva no fetiche (perversão), e a foraclusão, que é um tipo de negação que não conserva, inexistindo vestígio ou traço (psicose). Afirma o autor: “Os dois modos de negação que conservam implicam a admissão do Édipo no simbólico, o que não acontece na foraclusão” (QUINET, 2002, p. 19). Henriques (2012, p. 66) comenta: Neurose, perversão e psicose, ao invés de representarem doenças, representam modos de ser, portanto, esse diagnóstico não implica uma patologização, antes denota uma possibilidade existencial. Essas três estruturas clínicas definiriam modos de subjetivação, em função do mecanismo psicológico predominante que as caracterizaria: o “recalque” ou “recalcamento” (Verdrängung) na neurose; a “recusa”, “renegação”, ou “desmentido” (Verleugnung) na perversão; a “rejeição” ou “foraclusão” (Verwerfung) na psicose [...] Reconhecendo essas três estruturas clínicas, não se pode deixar de considerar que o modo de lidar com o que se concebe como “dor física” pela medicina vai variar conforme a modalidade clínico-estutural da subjetividade do ponto de vista psicanalítico. A investigação da estrutura clínica e seu manejo no ofício dos psicanalistas são, portanto, de indiscutível importância. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 101–106 | Dezembro/2013 O outro da dor Para a psicanálise, conhecer a dor de alguém é um percurso a partir da escuta e da sensibilidade da comunicação profunda com aquele que se propõe ao autoconhecimento. O profissional não sabe a priori da dor do outro, mas o escuta e possibilita que o analisando se escute e se depare com os efeitos do inconsciente. Desse modo, o psicanalista pode contribuir para a humanização da assistência em saúde. “A análise, sem que seja um dispositivo de mera adaptação social, trabalha potencializando os processos de subjetivação [...]” (BARRETO, 2013, p. 110). A análise não tem término em sua acepção mais ampla. Expressa Roudinesco (2000, p. 150): “[...] Como revolução do sentido íntimo, a psicanálise tinha [tem] como vocação primária, por fim, modificar o homem mostrando que “O eu é outro” [...]”. Transmutação A carne sangra o verbo faz-se carne a metamorfosear... O verbo sangra a carne torna-se palavra a deslizar... Carne e verbo sangram unem-se desataram-se algum dia?! Bebe-se da uva o melhor o suco o vinho... Doce banquete das metamorfoses do cotidiano... R icard o Azeved o Barreto Abstract With the goal of humanization of care, the author discusses some conceptions of the psychoanalytic approach about the so-called “physical pain” of the human being, its difference from “mental pain”, and he emphasizes that it is questionable to talk about the dichotomy between the physical and psychological aspects of the pain. The author understands that the psychic aspect is present in the “physical pain” of the patient, and the unconscious effects should be analyzed by a psychoanalyst in the health team, when there is indication. Keywords: Psychoanalysis, Pain, Unconsciousness, Humanization, Health. Referências ANDRADE, C. L. A dor e o processo emocional. In: ANGERAMI-CAMON, V. A. (Org.). Urgências psicológicas no hospital. São Paulo: Pioneira, 1998. p. 101-121. BARRETO, R. A. Nas avenidas da linguagem. Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 39, p. 107-112, jul. 2013. BOULANGER, J.-J. Aspecto metapsicológico. In: BERGERET, J. et al. 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Enxaqueca: aspectos estabelecidos (1895). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direçãogeral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v. I. *Uma parte dessas ideias foi apresentada pelo autor anos atrás em Jornada Interna do Círculo Psicanalítico de Sergipe (CPS). R ecebido em : 1 0 / 0 9 / 2 0 1 3 A provado em : 1 6 / 0 9 / 2 0 1 3 SOBRE O AU TOR FREUD, S. Dois verbetes de enciclopédia (1923). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v. XVIII. Ricardo Azevedo Barreto Membro do Círculo Psicanalítico de Sergipe, instituição filiada ao Círculo Brasileiro de Psicanálise. Psicólogo pela USP. Mestre e doutor (Área: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) pela USP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo CEPSIC da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP. Teve experiência de treinamento no Butler Hospital (RI-USA). Editor da revista Estudos de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise no biênio 20082010 e no biênio atual. Coordenador do Programa de Humanização do Hospital São Lucas em Sergipe. Professor titular da Universidade Tiradentes (UNIT), onde ensina nos cursos de Psicologia e Medicina. FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade (com os adendos) (1926). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v. XX. Endereço para correspondência Avenida Gonçalo Prado Rollemberg, 211/606 - São José Centro de Saúde Prof. José Augusto Barreto 49010-410 - Aracaju/SE E-mail: [email protected] FREUD, S. Luto e melancolia (1917). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v. XIV. FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v. XVIII. FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v. XXI. GRZESIAK, R. C.; URY, G. M.; DWORKIN, R. H. Psychodynamic psychotherapy with chronic pain patients. In: GATCHEL, R. J.; TURK, D. C. Psychological approaches to pain management: a practitioner’s handbook. New York: The Guilford Press, 1996. p. 148-178. HENRIQUES, R. P. Psicopatologia crítica: guia didático para estudantes e profissionais de psicologia. São Cristóvão: Editora UFS, 2012. QUINET, A. As 4+1 condições da análise. 9. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise? Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. TEIXEIRA, M. J. Fisiopatologia da nocicepção e da supressão da dor. JBA, Curitiba, v. 1, n. 4, p. 329-334, out./dez. 2001. 106 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 101–106 | Dezembro/2013 Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico Some thoughts about subjective states that defy the psychoanalytical process Stetina Trani de Meneses e Dacorso A pesquisa cientifica representa a forma mais elevada de adaptação ao princípio da realidade atingida até o presente. Ela [pesquisa científica] mostra, como todo o resto, traços de desejos e de angústias inconscientes na forma de cegueira para fatos importunos ou de sua distorção pelo desejo de fazê-los coincidir com o que se gostaria que fossem. As forças do superego, a tradição, a autoridade do mestre, o respeito a uma religião, estão tampouco do lado da simples verdade. Toda ciência conserva a marca de sua origem, da influência pessoal dos mestres pelos quais ela foi criada e desenvolvida, da obediência cega ou da revolta das gerações recentes perante seus predecessores. SACHS, H. In: SAFOWAN, 1995, p. 102) Resumo O presente artigo trabalha com análise da difusão de terapêuticas e exigências do cuidar de si, que produz consequências na clínica psicanalítica. A difusão da psicanálise produziu uma cultura psicanalítica, que mesmo para aqueles que a contestam, é utilizada como um senso comum. Através da observação de atendimentos clínicos e supervisão acadêmica, levantamos hipótese sobre a forma de estar no mundo e no processo analítico com uma postura de desafio. Nossa hipótese é que essa atitude é recusa em abrir mão de algo que sentem corresponder à sua singularidade num mundo massificador de identidades. Palavras-chave: Cultura psicanalítica, Desafio terapêutico, Cuidar de si, Sintoma, Identificação. Introdução O título do presente trabalho se refere a uma situação que tem ocorrido com certa frequência na clínica. Não são situações que podem ser analisadas como transferenciais nem se referem a pessoas que foram em bus- ca de tratamento contra a sua vontade. São pessoas que vão em busca de alívio para um sofrer. Sofrimento que reconhecem ser interno. Percebem seus conflitos psíquicos e suas consequências em seu cotidiano. Já recorreram a vários especialistas, psiquiatras e psi- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 107–112 | Dezembro/2013 107 Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico cólogos, além de aconselhamentos; receitas caseiras e rezas. Têm conhecimento vinculado ao Dr. Google; amigos/parentes psicólogos e/ou psiquiatras; livros de autoajuda; artigos com “diagnósticos, prognósticos e terapêuticas”. São antenados nas mudanças tecnológicas e seu efeito na vida das pessoas. Têm conhecimento das “descobertas cientificas”; novas patologias e seus respectivos fármacos. Sem referência a um discurso com vários termos técnicos, inclusive e principalmente, da psicanálise. O que acabamos de expor é uma reunião do discurso de várias pessoas, na faixa etária de 23 a 35 anos. Alguns já passaram em sua infância por processo terapêutico; outros têm uma história de frequência a vários consultórios, onde não ficam mais do que um ano e meio. Para começar a pensar alguma coisa, acreditamos ser necessário fazer uma leitura abrangente da consequência social — e, naturalmente, pessoal também — da difusão de um saber sobre o sujeito. Vamos iniciar com uma pequena exposição das diversas análises sobre um lugar de hegemonia e/ou supremacia da psicanálise na contemporaneidade. Cultura e difusão da psicanálise Figueira (1981) analisa o contexto social da psicanálise. O autor definiu uma cultura da psicanálise, um fato social que ocorreu como o pós-boom da psicanálise, sendo definido por ele como uma difusão da psicanálise até o limite da saturação. A psicanálise passou a ser partilhada por um grande número de pessoas de segmentos culturalmente dominantes. Essa Weltanschauung (Freud, 1932) psicanalítica circula através de um dialeto de psicologismo, caracterizando-se por um alto consumo de terapias e fundase na importância que as ideias e os termos psicanalíticos assumiram enquanto mapa de orientação para a vida cotidiana e familiar. Paralelamente à psicanálise surgiram outras linhas terapêuticas. Na sociedade brasileira a teoria freudiana se tornou natural no 108 cotidiano das pessoas: sua raiva, violência, ciúmes e idiossincrasias são entendidos e explicados sob essa ótica. Podemos fazer uma breve análise dos antecedentes e propulsores dessa situação. A sociedade brasileira que cresceu e se desenvolveu sob a visão positivista de A. Comte se desorganiza quando a psicanálise começa a ser divulgada em nosso meio. Uma desorganização aliada à angústia social, que crescia em decorrência das mudanças de valores sociais, culturais e em relação ao pessoal. A partir da década de 1970 essa modernidade sociocultural trouxe consigo liberdade de opção e projetos pessoais. Se a mudança de objetos de consumo pode ser feita prazerosamente, o mesmo não acontece com modelos e ideais de família e identidade. A consequência é o aumento da angústia que dispara um processo de demanda para que se resolva algo que é da ordem do invisível, do individual e do subjetivo. Agora o importante é o desejo individual como algo subjetivo e definidor da identidade e singularidade. Estava instalada a cultura psicanalítica (Figueira, 1981). Em 2001 Santos publica Quem precisa de análise hoje?, onde aborda as mudanças ocorridas nas subjetividades com o processo acelerado da modernidade. Anteriormente o trabalho não atropelava a vida pessoal com suas funções. O trabalho fazia parte da vida. Os valores que vigoravam eram os tradicionais com ideias conservadoras nas relações homem/mulher. Os sentimentos eram vistos como algo próprio, privado e inacessível ao olhar do outro. Os sentimentos eram considerados individuais e, ao mesmo tempo, típicos e universais. Os indivíduos deviam se harmonizar com aquilo que se esperava deles. Aptidões, vocações e desempenho no mundo externo eram apresentados de maneira a excluir a elaboração de um desejo singular. A modernidade trouxe consigo a liberdade de opção e projetos pessoais. Sobre os questionamentos teórico-práticos dirigidos à psicanálise, inclusive no Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 107–112 | Dezembro/2013 Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico interior das universidades, onde ocorre sua transmissão acadêmica, Santos (2001) constata que não impedem a sua difusão; pelo contrário, a mantêm nos meios de comunicação. Existe uma fala psicanalítica cotidiana que serve como suporte explicativo para vida amorosa e sexual, conflitos e rupturas no casamento, questões com filhos, amigos e patrões. Um ano antes, em 2000, Fridman escreveu que a pós-modernidade não se limita a uma atmosfera cultural. Trata-se de um conjunto de mudanças nas configurações institucionais contemporâneas que se estendem ao trabalho, às narrativas, à produção estética, à subjetividade e à política. Essas mudanças foram acentuadas pelas transformações ocorridas na tecnologia, durante as últimas décadas. Fridman aborda as subjetividades sob a ótica de elementos que contribuem para com o sentimento de identidade. Tradicionalmente a família, a religião e a raça é que forneciam ao sujeito o sentimento de “ser completo”. Hoje cada pessoa tem a tarefa de autoconstituição, e a identidade traz a marca da transitoriedade. A vida se torna errática pela multiplicidade e pela fluidez de valores, projetos, desejos e renúncias. A autenticidade e o senso de interioridade se partem em vivências desagregadas. As pessoas se veem impelidas a fazer escolhas entre as novidades ininterruptas do consumo. A plasticidade do eu é passaporte para viver êxtases de experiências e sensações que nunca são as últimas. A disseminação da psicanálise na forma de uma cultura levou as pessoas a acreditar que o enfrentamento e o sofrimento decorrentes do aprofundamento interno as levariam a uma situação de bem-estar, harmonia e liberdade. O não comprimento desse imaginário falsificado provocou a descrença na psicanálise. Na clínica... Não tenho vontade de fazer nada, só dormir, nem ir para as aulas... Já fiz terapia muito tem- po, quando criança. Estou indo no psiquiatra tem uns 3 anos, minha mãe fica muito nervosa, manda eu rezar... Mas eu tenho muita preguiça, nada é interessante. Sou bipolar, você precisa resolver isto, será que você consegue? Já estou assim tem tanto tempo! (Sorri de lado quase irônico, se anima e curva para frente na cadeira) Rapaz de 22 anos cursando Comunicação. Fazendo parte de todo esse contexto contemporâneo exposto de forma tão sintética, estamos nós... Exercendo nosso oficio, recebendo demandas nem sempre claras. Mais do que nunca se torna necessário ampliar nossa escuta e nosso olhar para o que emerge e, se possível, com a mesma interrogação e curiosidade de nossos antecessores. Colegas têm produzido, e nós também, sobre o novo sujeito, os novos sintomas e as novas demandas. Todos somos convocados a pensar sobre aqueles que nos chegam à clínica. Muitas vezes, o longo tempo no exercício desse ofício provoca intervenções sem que paremos para teorizar sobre o nosso ato analítico. Mas a clinica e, para muitos de nós, também o mundo acadêmico nos impulsiona constantemente a construir hipóteses sobre nosso obrar. Mesmo estando cercados de diagnósticos do DSM-V, exigências de laudos e discursos medicalizadores do humano, vamos nos ater neste artigo ao que nos chega à clínica, aos discursos daqueles que sofrem e solicitam uma solução “rápida!”. Voltemos agora nosso olhar interrogativo para a clínica. Para as dinâmicas psíquicas que demandam uma “solução” para suas questões. Pessoas na faixa de 20 a 35 anos usam as pesquisas virtuais, redes sociais, chats e todas as possibilidades de informação virtual para pesquisar sobre seu sofrer psíquico. Seus sintomas, com diagnósticos e medicalização, são somados às possíveis explicações da razão desse sofrer. Percorreram consultórios de psiquiatras e experimentaram drogas com variadas dosagens. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 107–112 | Dezembro/2013 109 Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico Também recorreram a colegas terapeutas das mais diversas abordagens. Chegam e nos relatam sua via crucis, nos olham desesperados e dizem “Você tem de resolver isso”, citam o tempo que têm sofrido, os tratamentos que não funcionaram e às vezes complementam com a palavra mágica e imperativa: rápido! Um sofrer que abarca tédio, angústia, desânimo, às vezes mesclado com uma culpa e às vezes com uma frieza/isolamento afetivo “não tenho tesão para nada, nem para transar”. Alguns tiveram episódios de ataques de pânico, e todos frequentam ou frequentaram consultórios médicos em busca daquele remédio que resolveria esse sofrer. Dosagens são aumentadas, fármacos mudados, mas os quadros permanecem com ligeiras mudanças. Assim, depois de uma longa estrada, resolvem procurar um psicanalista, “quem sabe, este tratamento resolve, já fui a tantos...” (ar de duvida e desafio). Neste ponto, começamos nós a pesquisar, conversar com colegas, revendo antigos escritos e primeiros mestres. E reencontrei Medard Boss (1977), em Angústia, culpa e libertação, quando descreve o quadro psíquico que analisa como “a forma da neurose do futuro imediato”: número crescente de pessoas que se queixam da insensatez vazia e tediosa de sua existência, pacientes com uma fachada fria e lisa de um tédio vazio. Por trás dessa muralha gélida de sentimentos desolados de completa insensatez da vida, está uma grande dose de angústia. Um sofrer do tempo vagaroso. A análise de Boss é que a raiz desse sofrer está ligada à prepotência atual da tecnologia, pois leva o ser humano a compreender e se considerar como uma rodinha no aparelho de uma gigantesca organização social. Todo tédio inclui um sofrer do tempo vagaroso, uma secreta saudade de um enraizamento perdido. Frequentemente encobre seu próprio sentido, utilizando-se do medo dominante das atividades ininterruptas, diurnas, noturnas ou do embotamento das mais diver110 sas drogas e tranquilizantes. Porém, o autor pontua a singularidade de cada sujeito. Cada angústia humana tem um “de que”, do qual tem “medo” e um “pelo que”, pelo qual ela teme. Já fui a vários consultórios de terapia. Fiz muitas. O tempo de duração era de 6 meses a 1 ano. Nunca deu resultado nenhum... acho tudo muito chato, não tenho vontade de fazer nada, trabalho (empresa familiar) ganho bem, moro com meus pais porque é mais confortável. Tenho um namorado de 2 anos, mas não estou apaixonada. O sexo é mais ou menos, mas se não tiver tá bom também, não tenho muita vontade. Tenho a sensação de um paredão que fico atrás, só olhando sem participar de nada. Não aguento ficar repetindo a mesma coisa o tempo todo, me cansa! Eu vim para ver se consigo ficar mais tempo em terapia, mas canso logo... vamos ver. Este tédio é ruim, nada me anima... (Maria, 30 anos, fisioterapeuta, 1,6 ano em análise). Discussões não conclusivas Sigmund Freud escreve em 1909: “A psicanálise não é uma investigação cientifica imparcial, mas uma medida terapêutica. Sua essência não é provar nada, mas simplesmente alterar alguma coisa” (FREUD, 1979, p. 112). As pessoas, filhas de seu tempo, que nos procuram exigem o “rápido”, o que necessariamente não significa que estejam disponíveis ao trabalho árduo da análise, mesmo porque o “rápido” não combina com a psicanálise! Acompanhando o pensamento de Boss, faz-se necessário que cada sujeito possa ser analisado no seu tédio e na sua culpa. A intervenção que possibilita que alguém saia da posição de lamento não é a mesma que servirá a outra pessoa. É uma demanda de pessoas desanimadas, descrentes de que algo possa ser feito. É esse olhar de solicitação acompanhado de um desafio que tem me provocado questões. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 107–112 | Dezembro/2013 Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico O desafio surge de tal forma que me parece totalmente “cego” a seu detentor, quando descreve sua peregrinação terapêutica, seu sofrer e o tempo que padece desse mal. Há um olhar e um meio sorriso como quem dissesse: “quero ver você dar solução a isso”. Não me parece o desafio de alguém que diz: “vou te provar que sei mais” ou “quando você achar que sabe, lhe destituo...”. É como se diante de tanta dor, intervenções e explicações sobre seu sofrer, a tábua de salvação é esse estado psíquico. Assim, não sei se a questão é ficar discutindo se devemos ou não fazer um diagnóstico, “enquadrando”. Ou ficar no embate de nos considerarmos como aqueles que possuem uma terapêutica mais eficaz. Ou, então, pensar de forma mais ampla: que nosso obrar tem um lugar no mundo atual, e aqueles que nos demandam, o fazem a partir de seu lugar neste mundo, com seus diagnósticos, suas falas definitivas, seus protocolos, seus resultados imediatos. Quando recebo essas pessoas, tenho pensado cada vez mais em Michel Foucault (1985) e sua definição de biopoder. Foucault analisou sob vários prismas o poder, a criminalidade, a sexualidade, as ciências-humanas inclusive a psicanálise. E em todas as análises a preocupação não era apenas acadêmica; era daquilo que se apresentava com força na atualidade (BIRMAN, 2000). Intervenções em todos os setores da vida para enquadrar, diagnosticar e controlar. As singularidades se perdem em prol de uma massificação disfarçada de pseudoliberdade e pseudopoder decisório. Um saber sobre si e sobre o outro, que recai naquilo que Freud já contestou: “Psicanálise não é uma intervenção científica imparcial” (FREUD, 1979, p. 112). Questão que me ocorre: Será que esse estar no mundo, ao qual as pessoas se agarram com ares de desafio, não seria a única coisa que lhes resta num mundo tão intervencionista? Medicalizado e diagnosticado? Um “saber” que não tem produzido como consequência um estar no mundo melhor consigo mesmo. Frente à rapidez de nosso mundo, com exigências quase impossíveis de ser cumpridas e com intervenções em todos os setores da vida humana, esse “adoecer” é sinônimo de identidade! Essas pessoas percorrem todas as sugestões atuais de tratamento, se recusam a ceder um milímetro que seja de seu sofrer! A doença é uma forma de resistência. No lugar de um “saber de si” articulado ao biopoder e a práticas intervencionistas, a hipótese é trabalhar com um “cuidar de si” (BIRMAN, 2000), onde essas formas de tédio, cansaço e desânimo possam se apresentar e dizer algo, se assim o desejarem. Sem se sentir ameaçadas de que o “saber de si” lhes retire o que sentem ser sua marca identitária. E para que alguém possa talvez querer sair desse lugar, é preciso suportar um tempo para ocorrer outra ordem psíquica, se podemos assim dizer. A psicanálise, à qual essas pessoas acabam recorrendo, me parece, é um lugar onde sentem que, apesar de tudo, não vai lhes tirar, não vai pressionar, enquadrar naquilo que tanto prezam. Impasses e paradoxos em nossa clínica!!! Abstract This article deals with the analysis and dissemination of therapeutic self-care demands that produces consequences in clinical psychoanalytic. The diffusion of psychoanalysis produced a Psychoanalytic Culture, even for those who challenge it, which is used as a common sense. Through observation of clinical cases and academic supervision, we hypothesized about the way of being in the world and at the analytical process with an attitude of defiance. The hypothesis is: the refusal to give up something they feel to match their uniqueness in a world full of identity mass leveling. Keywords: Culture psychoanalytic, Therapeutic challenge, Self-care, Symptom, Identification. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 107–112 | Dezembro/2013 111 Alguns pensa-res sobre estados subjetivos de desafio ao processo analítico Referências BIRMAN, J. Entre o cuidado e o saber de si. Sobre Foucault e a psicanálise. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000. BOSS, M. Angústia, culpa e libertação. São Paulo: Duas Cidades, 1977. FIGUEIRA, S. A. Cultura da psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1985. FOUCAULT, M. A vontade de saber. In: A história da sexualidade, v. 1. 6. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1981. FREUD, S. A questão de uma Weltanschauung (1932). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1979, v. XXII. FREUD, S. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos (1909). In: Edicão standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1979, v. X. FRIDMAN, L. C. Vertigens pós-modernas. Configurações institucionais contemporâneas. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000. SANTOS, T. C. Quem precisa de análise hoje. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. Recebido em : 1 0 / 0 9 / 2 0 1 3 A p r ovado em : 2 9 / 1 0 / 2 0 1 3 S ob r e a au tor a Stetina Trani de Meneses e Dacorso Professora Titular do curso de Psicologia CES-JF/PUC Minas. Membro Efetivo e Psicanalista do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção RJ. Mestre em Letras -Literatura Brasileira CES-JF. Mestre em Psicologia-Psicanálise AWU-USA. Membro efetivo do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBP-RJ). Coordenadora da Formação em Psicanálise SOBRAP-JF. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise 2012-2014. Endereço para correspondência Rua Rei Alberto, 108/901 - Centro 36016-000 - Juiz de Fora/MG E-mail: [email protected] 112 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 107–112 | Dezembro/2013 Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material About the relations between the psychic impoverishment and material impoverishment Valéria Wanda da Silva Fonsêca Resumo Este artigo apresenta a pesquisa sobre as contribuições da psicanálise junto aos brasileiros oriundos da população de baixa renda, pouco escolarizada e não familiarizada com o discurso psicanalítico. Atualiza os questionamentos a respeito da prática da psicanálise: quais as contribuições da psicanálise nessa investigação? O tratamento dessas relações exige um analista avisado, sabedor do seu ofício. Não é uma prática para iniciantes. Nessa clínica as preocupações freudianas são com a formação dos psicanalistas e com o tratamento, que precisa ser oferecido nas instituições de analistas e ou financiadas pelo Estado, tal como um projeto público para combater a tuberculose. Palavras-chave: Psicanálise aplicada e pobreza; Pobreza; Pobreza e psicanálise, Brasil e psicanalise; Melancolia e pobreza. A psicanálise: a responsabilidade social Na pesquisa de doutorado (FONSÊCA, 2013) sobre os efeitos subjetivos da pobreza material e consequências materiais do empobrecimento psíquico, uma proposta de teorização em psicanálise sobre os complexos fenômenos que se entrelaçam: o empobrecimento psiquico e o material. Hoje testemunho à experiência de ter desenvolvido um projeto de tese em teoria psicanalítica. E isso só se fez possível porque o saber exposto traduziu uma experiência de articulação subjetiva do desejo de saber sobre a castração, explicitado através da temática sobre os efeitos subjetivos da pobreza. A nossa responsabilidade clínica nos permitiu pesquisar e avançar no propósito de delimitar quais as especificações teóricas da psicanálise que precisariam ser analisadas para aplicação nessa temática. Não somos todos iguais. E a abordagem clínica dessa população exigiu reflexões sobre estrátegias de superação no que se refere a um modelo funcionalista que reduz a complexidade e a multidimensionalidade de tal fenômeno. O olhar não pode ser ingênuo, o ideal de verdade do conhecimento cientifíco não coube nesse trabalho, e optamos por investigar e reunir os estudos da antropologia, das ciências sociais, da filosofia, da literatura e da Biblia sobre a realidade da pobreza brasileira. São diversas as definições de pobreza. Todos os pobres são iguais? Todos são deprimidos e melancólicos? Não. Não é disso que falamos. O objetivo da pesquisa foi delimitar a aplicabilidade da psicanálise com brasileiros oriundos da população de baixa renda, pouco escolarizada e não familiarizada com o discurso psicanalítico. O acesso dessa população ao tratamento psicanalítico ainda é restrito. Investigar a constituição do eu e as consequências para os sujeitos no laço social exigiu suspender a condição de generalizações das ciências sociais sobre a constatação Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 113–118 | Dezembro/2013 113 Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material de que a pobreza material está presente desde sempre na sociedade. Assim, foi possível analisar e diagnosticar quem são os sujeitos que experimentam os diversos estágios da pobreza, inclusive os pobres que vivem entre os ricos. Todos, que definimos como aqueles sujeitos que precisam ser protegidos pelas benesses do Estado e ou das famílias abastadas, caso contrário padecerão de uma total incompetência para gerir a própria vida. A pobreza material e o empobrecimento psíquico A concepção de que a pobreza material tem como um dos efeitos uma precariedade da subjetividade, foi tratada nesta pesquisa com muito cuidado e muitas restrições. Há um fato sociológico que indica a desigualdade social e econômica como fator embaraçador e ou até impedidor de muitos brasileiros no que diz respeito ao acesso a determinados bens de consumo, inclusive saúde e educação. A psicanálise, ao pensar os efeitos subjetivos do laço social, afirma a importância de tal relação, porém toma para si analisar as especificidades de como cada sujeito se constitui independentemente da classe social a que pertence. Questiona-se a possibilidade de a psicanálise afirmar sua hipótese sobre o conceito de inconsciente e seus efeitos na subjetividade dos sujeitos que sofrem com a precariedade social e econômica. Cabe à psicanálise demonstrar que o homem, ser de linguagem, só pode ter acesso ao que é da ordem da necessidade, do Real, pelo viés do simbólico e do imaginário. A oferta de cuidado proporcionada, em geral, pelas figuras parentais à constituição dos meios para formulação de demanda dirigida ao outro, outro do laço social atualiza o que é da ordem pulsional — todos através da ação de cuidar, alimentar e transmitir as regras do pacto civilizatório, ou seja, exercitar a capacidade de amar. Desde sempre, há que aprender a contornar os impasses mediante a experiência da castração e da partilha dos sexos. 114 Porém, em alguns sujeitos, a pobreza de recursos sociais e econômicos para gerir a própria vida em seu grupo social está associada à precariedade subjetiva e é o indício de uma posição do sujeito com o seu desejo. Ao atualizar a condição ser da falta, eles desmascaram também a precariedade do outro social, que, por ser marcado pela castração, geralmente vacila na transmissão simbólica do saber o que fazer com a falta, que é constitucional. Teorizando sobre o mal-estar da civilização, Freud reconheceu a gravidade da epidemia que se espalha: a miséria neurótica e o empobrecimento material decorrentes da dificuldade de muitos de aderir ao modelo capitalista, à ciência e ao processo de individualismo que se desenvolviam. Freud declarou a contribuição que a clínica psicanalítica poderia proporcionar a esses sujeitos da modernidade. Simultaneamente, registrou suas preocupações com a formação dos analistas para tal prática da psicanálise. Para ele, não era uma prática para iniciantes, e sim, para analistas experientes que, com o domínio da teoria, poderiam se adequar ao necessário ao tratamento que deveria ser oferecido nas instituições de psicanálise e financiado pelo Estado, tal como um projeto público para combater a tuberculose. A descrença nos ideais de mestria, encarnados em Deus e nas figuras de autoridades da sociedade, significou para muitos o desamparo, o abandono e, consequentemente, a ausência de proteção. Freud demostrou que, desde as sagradas escrituras até literatura em geral, o homem vem se servindo das metáforas para testemunhar e narrar o valor do processo civilizatório no que diz respeito à estruturação e ao funcionamento do aparelho psíquico. A expressão dos conteúdos conscientes e inconscientes só é possível a partir da instalação de uma ordem simbólica, que se engendra no campo da linguagem. Lacan verticaliza o estudo sobre as relações e as fronteiras entre a psicanálise e a ciência. Apropria-se do modelo da banda de Moebius, a partir da ideia de Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 113–118 | Dezembro/2013 Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material um dentro e de um fora que se confundem, para demonstrar a hipótese freudiana sobre o funcionamento do aparelho psíquico, elaborando conceitos tais como conscientee inconsciente; enunciado e enunciação, e o pressuposto teórico de que a consciência moral é o cerne da realidade psíquica. A satisfação pulsional não se submete à lei e ao desejo. Faz-se necessária a instituição de uma realidade moral, de crença em ideais para que se controle a força pulsional que age sobre o eu como um imperativo categórico e que medie as experiências de privação e sofrimento desencadeadas mediante a realidade da castração. O dinheiro, enquanto objeto fálico, passou a representar o poder que uns têm sobre os outros, bem como representa o que há de pior e ou de melhor no caráter das pessoas. Ter ou não ter dinheiro, mais que o necessário, sempre foi sinônimo de prestígio e inteligência. Ser pobre era uma punição, que só foi redimida, a partir da história de Jesus Cristo, que era pobre e o filho de Deus. Fora desse fato, ao longo da história, as rivalidades, os ódios e até os processos de destruição em muitas sociedades foram associados ao prestígio que o dinheiro daria, inclusive para corromper famílias e indivíduos na sociedade. Mata-se por dinheiro, para ter o que é do outro ou por se sentir menosprezado pelo fato de ter mais ou menos posses que o outro no grupo social. A psicanálise surge com a ciência e a modernidade. Do modelo patriarcal ao modelo individualista temos no Brasil ainda uma longa caminhada, mesmo que as leis já tenham sido alteradas. Alguns grupos instituem as mudanças sociais, por conta das mudanças de mentalidade. Mas não há milagres, todos não mudam simultaneamente ou, melhor dizendo, alguns nem percebem que o mundo está em movimento. E isso provoca um descompasso entre os modelos familiares de resolver os problemas e os orientados pelas leis. Muitos grupos romperam com padrões tradicionais de família, de trabalho, da rela- ção com capital e com a diferença sexual, e se perderam no âmbito subjetivo, no que diz respeito à constituição de uma realidade psíquica orientada por uma consciência moral. São muitos que testemunham a dor de existir. Os graus diferenciados de pobreza material anunciam que milhões de brasileiros se sentem desadaptados e incapazes de garantir a própria existência. Muitos não reagem por se sentirem miseráveis e injustiçados no laço social e precisarão para sempre do amparo do Estado. Alguns outros, tendo o apoio adequado, poderão se desenvolver e ter uma vida digna. E há ainda poucos que definitivamente sairão da pobreza, pois através de outros fatores sociais conseguiram restabelecer vínculos amorosos que recuperam a tessitura do eu, e sendo orientados para demonstrar sua competência pessoal. Reconstruímos a rota insistentemente descrita nos últimos textos de Freud no que diz respeito à constituição do Eu, indicação que ressalta a hipótese de que ele tomou o Eu como conceito central na sua obra. Temos uma equação lógica: o quanto de pressão das exigências pulsionais associadas à precariedade dos recursos externos da civilização, que tem como consequência os diferentes graus de “debilidade” do eu. Campo da ética: satisfação das necessidades — rede da linguagem — discurso Para relacionar o empobrecimento do Eu e o empobrecimento econômico e social, partimos do pressuposto de que toda ação humana, particularmente a satisfação das necessidades, se desenrola na rede da linguagem, em discurso, e no campo da ética. O universo simbólico é transmitido por meio dos enunciados primordiais, dos códigos e das leis. As necessidades nunca se apresentam em estado puro, uma vez que não se tem acesso à ordem natural. Elas precisam ser faladas e sempre perpassadas pelo desejo e pela demanda. Para Lacan, o que tem status de necessidade Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 113–118 | Dezembro/2013 115 Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material e torna possível a existência do homem é a diferença sexual: masculino e feminino. A subjetivação da diferença sexual é decorrente dos (diferentes) diversos graus de investimento libidinal nos objetos e do posicionamento do sujeito (mediante a referida diferença). O complexo de castração é o motor da renegação, que institui o conflito constitucional do Eu. Quanto maiores as exigências pulsionais associadas à precariedade dos recursos externos provindos da civilização, maiores as dificuldades na eficácia da renúncia pulsional e, consequentemente, maior ‘debilidade’ do Eu. Essa precariedade seria fator de adoecimento psíquico, presente nas neuroses, nas psicoses e na melancolia, que tomamos nesta tese, tal como fez Freud com os estudos sobre o sentimento de culpa e o criminoso. A melancolia foi abordada detalhadamente na tese, pelo status que Freud lhe conferiu — revelar a constituição do Eu humano — o que lhe possibilitou definir os limites entre o normal e o patológico no que diz respeito ao investimento libidinal e à escolha de objetos, e que a melancolia teria como uma característica peculiar o medo do empobrecimento. O desenvolvimento de tal patologia foi associada ao descrédito na moral social, e a pobreza se alastra nas cidades, tal como uma epidemia social. Tais conclusões são resultantes de uma pesquisa detalhada no texto freudiano. Resgatamos suas recomendações sobre a prática da psicanálise junto aos pobres. Freud acreditava que a teoria psicanalítica, ao lado de sua significação científica, apresentava seu valor como procedimento terapêutico, e demonstrou as possibilidades de ajuda àqueles que sofrem em sua luta para atender às exigências da civilização. Somos cientes da pertinência da psicanálise em auxiliar a grande multidão, particularmente aquelas demasiadamente pobres para reembolsar um analista por seu trabalho. Trata-se de uma decisão politica, particularmente em nossos tempos, quando os estratos intelectuais da população, sobremodo inclinados à doença mental, em 116 geral, e estão mergulhando irresistivelmente na pobreza. Acrescentamos a leitura lacaniana do contemporâneo, estudo que nos permitiu refletir que cuidados temos de ter na clínica, na direção do tratamento. O limite da psicanálise reside no tratar do que está submetido à linguagem e, parafraseando Lacan, ter o cuidado de não encher de sentidos e fazer ideologias tal como as do mercado e ou da religião, o que por muitas vezes é melhor calar. Saber que a estratégia do sujeito, que faz do “seu corpo” um lugar do engano, da possibilidade de unidade ao atender a demanda do Outro, inclusive do Outro do laço social indica uma desconsideração, e até uma negação da castração. Que sujeitos são esses que se encharcam de sentidos e fazem sintomas que apontam um corpo mortificado pelo significante, que mesmo que também atrelado ao simbólico, se orienta prioritariamente pela via do imaginário, por um gozo fantasmático, um gozo com os objetos parciais. São muitos excessos que os sujeitos expõem em seu corpo: pobreza, obesidade, alcoolismo, as drogadicções em geral, e uma série de adoecimentos que exacerbam desafio entre a vida e a morte — campo de conflito da sexuação e da castração. Testam os limites do “corpo vivo”, mesmo que o sujeito afirme seu horror à morte. São milhares de coisas que se passam num corpo e que não se traduzem em sensações psíquicas. Para Lacan, o humano não goza do seu corpo; ele é uma representação imaginária, mesmo que essa imagem dependa de uma amarração simbólica. Antecipadamente propomos um resumo: a pulsão é a letra incorporada ao soma, mas é através do sintoma que temos acesso à sexuação. A pulsão como demanda do impossível, só ao encontrar a castração, é que pela via do desejo pode ser resgatada. A disposição política dos analistas Encerramos este artigo falando da proposta inicial: quem é o analista que se preocupa com as questões da constituição do laço so- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 113–118 | Dezembro/2013 Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material cial? Problematizar a posição do psicanalista — que transpõe os muros de seu consultório e oferece sua escuta na cidade e nas instituições de saúde, escolares e jurídicas para estender os benefícios da experiência analítica à população de baixa renda — é reconhecer que há o risco de que tais práticas se coloquem a serviço de ideais opositores à civilização. Acreditamos, porém, que o investimento na formação e na análise sejam decisivos à abertura de espaços para a prática do psicanalista com outros profissionais e, além de possibilitar a verificação dos efeitos terapêuticos positivos, mesmo que o ato do analista não tenha, a priori, nenhuma garantia. O eixo central da pesquisa está na formação do analista. Preocupações permanentes relatadas nas obras de Freud e de Lacan. Chamou-nos atenção a exigência que Freud fez ao se referir ao tratamento da população pobre, que fosse feito por analistas experientes. Declarou seu projeto de que se construíssem clínicas de psicanálise para atendimento dessa população e que nessas instituições se primasse pela formação dos analistas. Tal exigência de formação foi considerada como fundamental, pois seria a única proteção possível contra o dano causado aos pacientes por pessoas ignorantes e não qualificadas, sejam leigos, sejam médicos. Abstract The objective of this paper is to present research about the role of psychoanalysis with the Brazilian population that has arisen from poverty, with low educational levels and which is not familiar to the psychoanalytic discourse. We updated questions about the practice of psychoanalysis: what are the contributions of psychoanalysis to this investigation? The treatment of this relationship requires an experienced analyst, knower of its craft. It’s not a practice for beginners. At that clinical setting the freudian concerns are with the academic formation of psychoanalysts and the treatment itself. Those conditions need to be offered at psychoanalytical institutions and or state financed as it would be at a public project to combat tuberculosis. Keywords: Aplied psychonalysis, psychoanalysis and poverty, psychoanalysis in Brazil. Referências FONSECA, V. W. S. Os efeitos subjetivos da pobreza material e consequências materiais do empobrecimento psíquico. Tese de doutorado, Programa de PósGraduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013. 182 f. Disponível em: <www.psicologia.ufrj.br/teoriapsicanalitica>. R ecebido em : 1 0 / 0 9 / 2 0 1 3 A provado em : 1 8 / 0 9 / 2 0 1 3 SOBRE A AU TOR A Valeria Wanda da Silva Fonsêca Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Mestre em Letras UFJF. Especialista em psicanálise Teoria e Clínica e em Psicologia Escolar e Infantil CES-JF. Graduada em Psicologia UNICAP. Representante do Conselho Regional de Psicologia no Conselho Municipal de Assistencia Social de Juiz de Fora/MG. Endereço para correspondência Av. Rio Branco 2721/1209 - Centro 36010-012 - Juiz de Fora/MG E-mail: [email protected] Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 113–118 | Dezembro/2013 117 Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material 118 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 113–118 | Dezembro/2013 Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion Reflection about the “theory of thinking”, by Bion Waleska Pessato Farenzena Fochesatto Resumo O artigo surge em decorrência de uma reflexão sobre a teoria do pensar de Bion. A teoria do pensar não se refere a uma função meramente cognitiva, mas fala da inauguração de um espaço de autoria. Segundo Bion, a experiência de frustração vivida a partir de um aparelho psíquico capaz de suportá-la origina um protopensamento, desenvolvendo então um aparelho psíquico para pensá-lo. Em outras palavras, o pensar surge como uma solução para se lidar com a frustração. A teoria do pensar possibilita um conhecimento sobre a formação do psiquismo, afinando a escuta para a aquisição da capacidade simbólica. Palavras-chave: Teoria do pensar, Bion, Psicanálise. Ao longo da formação psicanalítica entramos em contato com a obra de alguns importantes psicanalistas que no decorrer do último século vêm dando continuidade à obra de Freud. Melanie Klein aprofundou o conceito de fantasia, deu ênfase ao mundo interno, introduziu a ideia de posição. Winnicott descreveu fenômenos como a regressão à dependência, elaborou o conceito de mãe suficientemente boa, abriu caminho para a análise de pacientes difíceis. Em relação a Bion, antes de iniciar as leituras sobre sua obra, já conhecia sua importante contribuição acerca dos fenômenos grupais. Mas, mesmo assim, me questionava: Qual a originalidade de suas contribuições? E foi dessa forma que pensei em escrever sobre a teoria do pensar, elaborada por ele em 1962. Segundo Zimerman (1995), no curso das análises de psicóticos, Bion ficou fortemente tentado a se aprofundar nos problemas de linguagem e nos problemas da origem e função dos pensamentos. Para tanto, se inspirou nos postulados de Freud sobre o princípio do prazer e da realidade, além de ter sido influenciado pelas ideias de Melanie Klein e Ferenczi. Partindo de Freud, sabemos que o processo primário está ligado à satisfação imediata das necessidades básicas portanto ligado ao princípio do prazer, ao passo que o processo secundário está relacionado ao princípio da realidade, o qual vai se impondo sobre o princípio do prazer, gerando a capacidade de adiar a descarga pulsional e abrindo espaço para a capacidade simbólica. Segundo Bion, a experiência de frustração oriunda desse processo — também chamada de experiência do não seio, vivida a partir de um aparelho psíquico capaz de suportá-la — origina um protopensamento desenvolvendo, então, um aparelho psíquico para pensá-lo. Em outras palavras, o pensar surge como uma saída, uma espécie de solução para se lidar com a frustração. Mas, se ao contrário disso, a capacidade de tolerar frustração for precária, o não seio ou o seio mau deve ser expulso através do uso maciço de identificações projetivas. Dessa forma, Zimerman (1995), ao explicar a teoria do pensar de Bion, coloca que, se o ódio resultante da frustração não exceder a capacidade do ego do lactante de suportá- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 119–122 | Dezembro/2013 119 Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion -lo, o resultado será uma sadia formação do pensamento através do que Bion denominou de função alfa, a qual integra as sensações provindas dos órgãos dos sentidos com as respectivas emoções. No entanto, se o ódio for excessivo, protopensamentos denominados por Bion de elementos beta — experiências sensoriais primitivas e caóticas que não puderam ser pensadas — encontram saída através do alívio imediato de descarga, o que é feito por meio de agitação motora, atuações ou somatizações, mas que sempre utiliza a identificação projetiva como mecanismo. Assim, de acordo com essa teoria, a consciência de si depende da função alfa. Claramente influenciado por Melanie Klein, Bion coloca que é o êxito da posição depressiva que permite a formação de símbolos, os quais substituem e representam todas as perdas inevitáveis do curso do desenvolvimento. Consequentemente, a formação de símbolos possibilita a capacidade de abstração e criatividade, inscrevendo o sujeito no campo do simbólico. Bion extraiu o termo função do campo da matemática e, segundo Zimerman, a equivalência entre ambos é que na matemática função alude a um elemento variável que satisfaz os termos de uma equação, e do mesmo modo a função alfa representaria uma incógnita à espera de uma realização para satisfazer-se. Assim, a função alfa, na teoria de Bion, é a primeira que predominantemente existe no aparelho psíquico. Ou seja, se o indivíduo tiver capacidade de tolerar frustração, é a função alfa que vai transformar as primeiras impressões emocionais (prazer e dor) em elementos alfa. Estes últimos, sendo processados pela função alfa, abrirão passagem para os pensamentos oníricos, produção de sonhos, memória e funções do intelecto. Os elementos alfa é que darão origem ao que Bion chamou de barreira de contato, tendo a função de separar interno e externo, inconsciente e consciente, estabelecendo uma espécie de contorno e de alguma forma fornecendo ao sujeito uma sensação de integração. 120 Os elementos alfa não são a experiência da coisa em si, mas uma abstração e uma representação dessa, que enquanto se faz simultaneamente representada em ambas as formas consciente e inconsciente, fornece à personalidade uma “visão binocular” da experiência, de onde deriva o “sentimento de confiança” na sua realidade (MELTZER, 1998, p. 73). Os elementos beta, ao contrário, se proliferam de forma caótica e constituem o que Bion chamou de pantalha beta, não possibilitando uma diferenciação entre consciente e inconsciente, entre fantasia e realidade, não permitindo a elaboração dos sonhos. Bion (1994) mostra que nos pacientes psicóticos prevalece a formação da pantalha beta, bem como há uma prevalência da posição esquizoparanoide sobre a posição depressiva. Dessa forma, o pensamento adquire uma concretude, uma dureza, capaz de causar danos reais e precisam ser expulsos imediatamente. Não há possibilidade de simbolização. Referindo-se aos pensamentos que ainda não adquiriram um sentido tampouco um nome, Bion coloca que nos psicóticos predomina o pensamento vazio, por isso nas situações de angústia ele vem acompanhado de um estado psíquico que ele chamou de terror sem nome. Além das duas formações citadas — alfa e beta, Bion coloca uma terceira forma possível de subjetivação que veio a denominar reversão da função alfa. Trata-se de casos em que a função alfa já opera no psiquismo, mas, por alguma dor vivida em excesso, ela recua e produz elementos beta, já diferentes dos originais. Nesses casos ocorre uma regressão rumo a um pensamento concreto, o que, segundo Bion, pode regredir ao ponto de chegar ao nível da linguagem das sensações psíquicas corporais, como ocorre nos distúrbios psicossomáticos. Ao propor sua teoria, Bion entende o pensar como um processo que depende de dois desenvolvimentos básicos: o primeiro é o dos pensamentos que requerem um aparelho mental que deles se encarregue, e o se- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 119–122 | Dezembro/2013 Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion gundo é o desenvolvimento do aparelho que inicialmente chamou de faculdade de pensar. “O pensar passa a existir para dar conta dos pensamentos” (BION, 1994, p. 128). Isso significa que para Bion existe um pensamento que é anterior à capacidade de pensar e que denominou pensamento sem pensador. O próprio autor diz que sua teoria difere de qualquer teoria do pensamento na medida em que considera o pensar um desenvolvimento imposto à psique pela pressão dos pensamentos, e não o contrário. Através do texto Uma teoria sobre o pensar, Bion classifica os pensamentos conforme sua natureza evolutiva: pré-concepções, concepções e conceitos. Coloca que a concepção inicia através da conjunção de uma pré-concepção com uma realização. Por exemplo, quando o bebê é colocado em contato com o seio real, a pré-concepção, que nada mais é do que a expectativa inata por um seio — conhecimento a priori de um seio, se une à realização, dando origem a uma concepção. Assim, as concepções estão associadas a uma experiência emocional de satisfação. O termo pensamento é empregado por Bion para se referir ao resultado de uma pré-concepção com uma frustração. Seguindo essa lógica, o pensamento vazio equivale a uma pré-concepção à espera de uma realização. Nas palavras de Bion: O modelo que proponho é o de um bebê cuja expectativa de um seio se una a uma “realização” de um não-seio disponível para satisfação. Essa união é vivida como um não seio, ou seio “ausente”, dentro dele. O passo seguinte depende da capacidade de o bebê tolerar frustração. Depende de que a decisão seja fugir da frustração ou modificá-la (BION, 1994, p. 129). E modificá-la nesse contexto é abrir caminho para o universo simbólico e, consequentemente, para a capacidade de pensar. O pensar ao qual Bion se refere não fala de uma função meramente cognitiva, mas da inauguração de um espaço de autoria que acon- tece desde muito cedo. Realizações na teoria bioniana, segundo Zimerman, consistem em experiências emocionais resultantes de frustrações da onipotência do lactente e, por isso, ele precisa se voltar para o mundo real (real-ização). Essa realização pode se desenrolar de forma positiva ou negativa. Na realização positiva há uma confirmação de que o objeto necessitado está realmente presente e atende às suas necessidades. Na realização negativa o lactante não encontra um seio disponível para a satisfação, e essa ausência é vivenciada com a presença de um seio ausente mau dentro dele. De acordo com a teoria de Bion, o surgimento da capacidade de pensar depende do quanto de frustração o bebê tem condições de suportar, e isso também tem relação com suas inatas demandas pulsionais. Mas, além disso, Bion afirma que a capacidade de tolerância do bebê em relação às frustrações depende também fundamentalmente da forma pela qual o cuidador recebe suas identificações projetivas. É aí que introduz a noção de capacidade de reverie. Reverie vem do francês, significa ‘sonho’ e, segundo Zimerman (1995), designa uma condição pela qual a mãe é capaz de captar o que se passa com seu filho muito mais através de um estado de sonho e intuição do que propriamente através dos órgãos do sentido. A mãe-reverie é aquela que consegue acolher, conter e fazer ressonância com o que é projetado dentro dela, dando sentido aos elementos beta maciçamente projetados e devolvendo elementos alfa nomeados e significados. Bion parte da noção de que todos nós temos a priori recursos para desenvolver o pensar, por isso diz que há um pensamento em busca de um pensador. Entretanto, essa capacidade pode ser desenvolvida ou não, dependendo também da capacidade de reverie do cuidador. Considerações finais A produção deste artigo foi uma tentativa de responder à pergunta introduzida no início, e ao término é possível constatar a impor- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 119–122 | Dezembro/2013 121 Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion tância desse autor no campo psicanalítico. O estudo da teoria do pensar possibilita um conhecimento sobre a formação do psiquismo a partir dos postulados de Bion, afinando a escuta para a aquisição da capacidade simbólica. Além disso, através dela, é possível conhecer um pouco do Bion teórico. O Bion psicanalista aparece claramente no texto Sobre uma experiência pessoal com W. R. Bion, de Luiz Alberto Py, onde conta pormenores do seu processo analítico realizado com Bion. Nesse artigo vemos um Bion bem-humorado, perspicaz e sensível na relação com seu paciente. A capacidade de pensar depende de uma dose de frustração e aponta, mais uma vez, como o nascer, o crescer e o viver são experiências dolorosas na sua essência. Assim também é o processo analítico: doloroso, na medida em que nos coloca exatamente numa posição de consciência de nós mesmos. Por outro lado, o processo de saber sobre nós mesmos nos permite maior flexibilidade diante da vida, no sentido de desfazer nós e angústias que nos paralisam e nos aprisionam. Por fim, também nós enquanto analistas precisamos dispor da capacidade de reverie conceituada por Bion, na medida em que nos cabe conter a angústia e devolvê-la aos pacientes de forma que ela possa ser transformada e nomeada. Abstract This paper comes from reflection on the Theory of Thinking by Bion. A Theory of Thinking does not simply refer to a cognitive function, but speaks the opening of a space of authorship. According to Bion, the frustration experienced by a psychic apparatus able to bear it originates a proto-mental system which develops a psychic apparatus capable for thinking it. In other words, the thinking comes as a solution to cope with frustration. The Theory of Thinking enables an understanding of the formation of the psyche, tapering listening to the acquisition of symbolic capacity. Keywords: Theory of Thinking, Bion, Psycoanalysis. Referências BION, W. R. Estudos psicanalíticos revisados. Tradução: Wellington M. de Melo Dantas. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1994. MELTZER, D. O desenvolvimento kleiniano III. O significado clínico da obra de Bion. São Paulo: Escuta, 1998. ZIMERMAN, D. Bion, da teoria a prática. Uma leitura didática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. R ecebido em : 0 8 / 1 0 / 2 0 1 3 A provado em : 2 9 / 1 0 / 2 0 1 3 S ob r e a au tor a Waleska Pessato Farenzena Fochesatto Psicóloga. Mestre em Ciências da Saúde pela PUCRS. Candidata a psicanalista pelo Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Endereço para correspondência] Rua Dr. José Montaury, 325/107 - Centro 95330-000 - Veranópolis/RS E-mail: [email protected] 122 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 119–122 | Dezembro/2013 O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência1 Monitoring of major psychological distress in adolescents: distinguishing two types of violence. Wilfried Gontran Stéphanie Mousset Marília Etienne Arreguy Resumo O texto discute a adequação dos sistemas de acompanhamento de adolescentes na França, hoje, apontando sua desadaptação a um grupo de adolescentes caracterizado como “jovens em conflito com a Lei”. Demonstra também, do ponto de vista metapsicológico, a existência de duas formas de violência apresentadas pelos jovens, relacionando-as a dificuldades em diferentes etapas da estruturação psíquica. Palavras-chave: Violência, Adolescência, Lei, Metapsicologia, Sistemas de acompanhamento. O presente trabalho resulta da constatação de que os sistemas de acompanhamento na França, hoje, sejam educativos, sejam sociais, sejam psiquiátricos, não estão adaptados a um tipo de adolescente, ou melhor, a um número crescente de jovens em conflito com a Lei (ECA, 1990), que seguidamente recorrem ao ato (BALIER, 1988) de delinquir. Sua problemática psíquica difere fortemente de outros jovens, também em profundo sofrimento. Entretanto, os dispositivos que lhe são propostos são os mesmos: não se pensa (ainda verdadeiramente) nas especificidades desses adolescentes, pois não se leva em conta sua diferença modificando (oficialmente) o sistema de acompanhamento. Este trabalho se caracteriza como uma pesquisa que abrange estudos, debates e per- cepções que enfocam realidades tanto próximas quanto dissonantes entre a França e o Brasil no que concerne à tentativa de compreensão do sofrimento de adolescentes institucionalizados. Esperamos que possa trazer esclarecimentos e mesmo demonstrações, a fim de contribuir para as mudanças necessárias nas políticas de acompanhamento de adolescentes. Essa abordagem responde a uma exigência ética: manter as capacidades de acolhimento desses jovens que, se não se explica melhor o que os anima, corre-se o risco de consentir com as políticas que os rejeitam. Exporemos, então, algumas reflexões que são apenas premissas de um trabalho a aprofundar. Para isso, começaremos expondo dois casos clínicos, redigidos pela colega Sté- 1. Trabalho apresentado e debatido na IV Jornada Subjetividade e Educação: conflitos com a lei e com a sociedade - experiências políticas e clínicas, realizado em 17 de julho de 2013, na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013 123 O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência phanie Mousset, psicóloga em duas casas de acolhimento do Ministério da Justiça francesa, de uma equipe supervisionada por Wilfried Gontran há alguns anos. O primeiro caso ilustra um primeiro tipo de ato violento que desejamos explicitar, e o segundo, uma segunda forma de violência, qualitativamente distinta da primeira. Caso Samir Samir, 15 anos, é a segunda criança de uma fratria de três: tem um irmão mais velho e uma irmãzinha. Ele tem outros meio-irmãos e meio-irmãs mais velhos, saídos de um casamento anterior de seu pai. Seu pai e sua mãe nasceram na Tunísia e têm 20 anos de diferença de idade. A mãe de Samir veio para a França em seguida ao seu casamento. Samir é um rapaz mais reservado, em que a atitude em relação ao adulto marca uma contenção e um respeito notórios, sem por isso impedir sua autoafirmação. Ele não remete de modo algum à imagem “adolescente”, provocativa ou opositora de um jovem de 15 anos. Foi interpelado por forças policiais por lhes ter atirado projéteis e, em seguida, ter respondido verbalmente e fisicamente a sua intervenção. Esses fatos aconteceram durante manifestações estudantis. Ele reconhece os fatos que lhe são atribuídos e não parece buscar se livrar de sua responsabilidade. Pelo contrário, ele quase não chega a explicar como pôde chegar a produzir tais gestos contra a polícia. Samir reconhece sua desconfiança geral contra as forças de ordem quando elas patrulham seu quarteirão; uma desconfiança que justifica pelo fato de já ter sido interpelado pela polícia quando não fazia nada de errado. Ele lembra também de casos de jovens que teriam sido maltratados e insultados por policiais embora eles não tivessem feito nada de mal. Apesar de tudo, não é sob um tom de ódio ou de um sentimento de injustiça que Samir descreve seu ressentimento em relação às forças de ordem, ou seja, aos aspectos normativos da sociedade. A palavra mais apro124 priada, segundo ele, é desconfiança. Ele diz não saber qual trabalho deseja exercer, e não estar particularmente entusiasmado por nenhuma formação. No entanto, após o último ano do ensino fundamental [14 anos], considera a possibilidade de entrar no primeiro ano de uma formação profissional em eletrônica. De modo geral, ele não revela nenhum centro específico de interesse em seu lazer nem um campo importante em sua vida ou em seus valores. Samir diz reconhecer que é um pouco preguiçoso, identificando o trabalho que poderia fazer em casa ou para ele, mas frequentemente não tem bastante ensejo nem energia para se propor objetivos e a eles se prender. Pode-se notar, no momento de uma entrevista feita na presença de seu pai, que Samir não adotava, nessa circunstância, nenhuma atitude de oposição nem de confronto face ao discurso que seu pai lhe endereçava, mesmo diante das críticas, às vezes muito duras, de seu pai (que exprimia toda sua cólera, sua vergonha e sua incompreensão diante dos atos praticados por seu filho), Samir não respondeu nem tentou se defender, nem iniciou uma discussão com seu pai. Entretanto, sua mãe assegura que dos seus dois filhos, Samir é o que mais afirma sua personalidade, pois seu irmão mais novo ousa menos ainda exprimir suas demandas ou aquilo que não lhe agrada. Samir fez assim a escolha de seguir os estudos em sua vida profissional, ao contrário de seu irmão mais novo e ao contrário das expectativas de seu pai. A mãe de Samir insiste muito sobre os valores da honestidade e da humildade, que ela tenta inculcar em suas crianças. Ela coloca, com efeito, como questão de honra, ganhar a vida através do trabalho, desprezando aqueles que, segundo ela, “aproveitam das bolsas sociais”. Ela sempre faz referência à injustiça social e à discriminação pelo emprego e pela habitação, dos quais se sente vitimizada enquanto mulher magrebina. Para os pais de Samir, o confronto com a autoridade judicial é particularmente doloroso e vergonhoso. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013 O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência Descrevem, com efeito, sua vida como sendo guiada pelo trabalho, pela correção, pelo respeito às leis e à nação (o pai serviu ao exército sob a bandeira francesa na Indochina). Eles exprimem também uma certa dor por não poderem usufruir de um reconhecimento social à altura dos esforços que despendem principalmente devido às suas condições de habitação. Esperam também uma melhor posição socioeconômica para seus filhos, graças aos estudos. Ora, sobre esse ponto, o pai de Samir lhe diz que ele decepcionou suas esperanças e que o filho não é digno da chance que lhe foi dada: poder ir à escola e aprender. Observando os fatos que lhe são censuráveis, os pais de Samir sustentam discursos divergentes sobre seu filho. Tanto sua mãe insiste sobre seu caráter razoável e sério, quanto seu pai o rebaixa em relação às expectativas escolares e pessoais que ele não preenche, repreendendo com agressividade sua imaturidade, sua negligência no trabalho e sua falta de responsabilidade. O pai declara que sua conduta em relação às forças de ordem mostram uma total idiotice, enquanto sua mãe dá prioridade à injustiça social para explicar o ato de seu filho. O pai de Samir sublinha, por outro lado, que nem sempre concorda com as decisões educativas de sua esposa. Ele mesmo estaria inclinado a dar menos autorizações para o filho sair, tenderia a subordinar mais fortemente as compras que ele lhes pede para fazer, exigir mais rigor nos trabalhos escolares, etc. O pai tem a tendência nesse nível a repassar para seus filhos as exigências de vida que ele mesmo passou sendo jovem, depois adulto. Após receber sanções socioeducativas por seu ato transgressivo, Samir se beneficiou de um prosseguimento educativo em meio aberto (fora de uma instituição), antes de passar pelo julgamento do caso. Nós não tivemos, subsequentemente, conhecimento de novos delitos concernentes a ele. Samir ilustra o primeiro tipo de ato de delinquência, o mais clássico poder-se-ia dizer, no qual diríamos, antes de mais nada, ter a significação de uma transgressão à lei. Poderíamos pensar numa passagem ao ato com sentido de autoafirmação e de rebeldia por justiça. Também tratar-se-ia de uma dificuldade particular no processo de inscrição no laço social, dadas as dificuldades familiares de inserção socioeconômica em outra cultura. Essa situação, do ponto de vista coletivo, poderia por sua vez representar certa forma de privação no nível familiar, que reverberaria numa resposta subjetiva de Samir aos moldes de uma tendência antissocial, diríamos “normal”, tal como descrita por Winnicott (2000), ou seja, como reação a um ambiente parcialmente hostil, por ser filho de estrangeiros vivendo de forma relativamente precária na França. Mas como considerar essa dificuldade? No nível do desafio e da contraposição à autoridade. Para que se dê uma inscrição simbólica das marcas singulares do sujeito na cultura, seria necessária uma ultrapassagem da figura paterna, que corresponde ao prolongamento, à transição necessária da autoridade do pai em direção à autoridade presente no laço social. Com o fato de transgredir a lei (social) visando a questionar declaradamente sua autoridade, tratar-se-ia, para o adolescente desafiar a legitimidade autoproclamada pelo pai, ou seja, uma autoridade à qual o adolescente não pretende mais continuar a se dobrar sem algumas explicações paternas. Em suma, se para a criança trata-se do fato de que o pai saiba pôr à prova sua autoridade, para o adolescente tratar-se-á, no presente, de que se dê conta de sua legitimidade para exercê-la. Ora, de onde vem a autoridade do pai? O que funda a lei? Aí está uma questão que se impõe para os jovens, com qual os pais em algum momento têm de se haver. Inscrever-se no laço social, a título de um indivíduo dito autônomo, quer dizer, responsável por seus atos, necessitaria então de recolocar a questão da figura paterna tal qual a criança a apreende, ou seja: é necessário um pai falicamente potente, notadamente Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013 125 O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência capaz de satisfazer a mãe; um pai com o qual qual a criança poderá se identificar para que venha a adquirir sua própria potência fálica. As lutas entre os pares, oriundas do ciúme, significam nesse contexto, nem mais nem menos que uma luta fraterna para vir a ocupar fantasmaticamente (FREUD, 1901) ou, na falta de uma fantasia, de diferentes formas na realidade (FREUD, 1996; LACAN, 1966) — o lugar do pai (FREUD, 1996; LACAN, 1997, 1975). O momento de o adolescente significar que essa identificação não é suficiente (pois o pai é carente para responder sobre o que cada um deles tem de fazer de sua vida) é realmente um momento de carência estrutural: o sujeito é só, vive sempre “abandonado” pelo pai no que diz respeito ao que ele tem a fazer de seu desejo; essa solitude incontornável é a base da crise adolescente. Os atos de violência desse primeiro tipo, que melhor chamaríamos de passagens ao ato do adolescente, assinalariam que ainda há de se fazer uma batalha contra o pai, às vezes, sob o fundo de uma raiva contra ele. Essa raiva se funda não tanto nas privações de liberdade (de agir, de pensar, etc.) que o pai exerce, mas no fato, bem oposto, de que este fracasse a vir a apoiar, e quem sabe, a dirigir o adolescente até o fim, até seu acesso à idade adulta. No entanto, espera-se do pai que não nos acompanhe na idade adulta da mesma maneira como quando éramos crianças, numa plena segurança confortadora. É preciso confiar para permitir o amadurecimento do filho, deixando-o errar por si mesmo. Se essa confiança não é explícita, o filho pode retaliar com seu ato transgressivo, de modo a tirar do mundo (ou a jogar no mundo, pensando nos projéteis jogados por Samir) aquilo que supostamente marcaria sua passagem ao status adulto, embora essa tentativa possa ser feita de maneira desastrada, através de uma passagem ao ato no embate com a Lei. Nesse primeiro registro, o da transgressão à Lei, os atos de delinquentes represen126 tariam, em definitivo, um trabalho de luto do lugar da instância paterna, realizando-se sob a cena de um social que deve doravante assumir o controle da autoridade. E, no contexto dos atos de delinquência, o trabalho de luto não se pôde efetuar de outro modo, por razões próprias do sujeito em questão, a não ser no registro do agir. Aqui, em contraposição à noção psiquiátrica clássica de “passagem ao ato”, também representativa do que Lacan (1966; 1963a) definiu como um curto-circuito pulsional, deve-se precisar aquilo que, em psicanálise, se chama acting out (LAPLANCHE; PONTALIS, 1995; MIJOLLA et al., 2002), a saber: a colocação em ato de uma verdade que não se pode dizer, que não se pode formular no discurso, mas que insiste continuamente. Apesar de não dita, a passagem ao ato enquanto acting out aporta um endereçamento ao outro; não é gratuita e tem um sentido, embora sua forma possa ser vista a priori como equivocada no plano social. Numa visada mais compreensiva e menos interpretativa em psicanálise, o agir violento do adolescente tratar-se-ia de um resgate da função positiva do trauma. Esse resgate está ligado à passagem da passividade para a atividade, incluindo os efeitos paradoxais nas origens da identificação com o agressor (FERENCZI, 2011). O ato de delinquência é então pleno de significação. E é nesse primeiro caso que o trabalho educacional vai encontrar sua “aclamação”: naquilo que cederá lugar na França a um trabalho educativo fundado numa grande instituição como a Proteção Judiciária da Juventude.2 Essas instituições seriam 2. É curioso citar que, desde 1945, o aprisionamento em balneários para adolescentes ainda existe em um país como a Rússia. Na França e no Brasil, tenta-se avançar, mas ainda há muitos problemas quanto ao reconhecimento versus o aprisionamento de jovens. Há questões contraditórias para o exercício da clínica psicanalítica nesse contexto, embora acreditemos que isso não seja completamente impeditivo. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013 O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência similares às instituições socioeducativas no Brasil, portando a contradição de serem ao mesmo tempo um lugar de aprisionamento, portanto forçado e um lugar de cuidados com a saúde psíquica e coletiva, cujo convite ao laço com psicólogos, por exemplo, promoveria um vínculo com o social. O trabalho analítico consiste, assim, em extrair do ato de delinquência a verdade de uma questão colocada ao pai, permitindo ao adolescente elaborar sua questão em um outro registro que não seja aquele registro radical do agir. De modo que esse ato de endereçamento possa fazer um enlace simbólico na relação com o outro, de início, o terapeuta. Nesse primeiro caso, o ato de delinquência corresponde especificamente a um momento adolescente e, a esse título, só poderia ser transitório, por pouco que o trabalho de acompanhamento, tal como nós viemos a descrever, traga seus frutos. Sem isso o sujeito pode confirmar sua inscrição em um funcionamento delinquente, com a consolidação de uma defesa antissocial (WINNICOTT, 1956) como resposta figurativa de uma postura de adulto que decide e faz, entretanto, cujas escolhas podem ser destrutivas em relação ao socius. Toda estratégia de prevenção clínica reside na visada de desviar o adolescente desta alternativa. Assim, Samir talvez ilustre com o ato isolado de atirar o projétil contra um policial, essa tentativa de entrar com força na sociedade, evidentemente uma entrada simbolizada pelo fato de ser no belo meio dos estudantes, ou seja, em uma sociedade aqui representada pelos agentes de força de ordem. Essa sociedade é aquela que seus pais desejariam tão ardentemente que ele integrasse para além do que eles mesmos puderam realizar na sua vida de imigrantes, vida com a qual permanecem insatisfeitos. Samir, sem desejar, para se orientar em seu seio — e talvez tomado por essa forma depressiva própria da passagem pela adolescência — não chega a afrontar suficientemente o pai, pois se apaga diante dele no lugar de chegar a lhe opor um desejo que certamente não é o que o pai idealizou para ele. Esse caminho, do pai em direção ao social, é fonte de uma profunda angústia que tenta ser resolvida com a passagem ao ato, nesse movimento de extração do objeto (o projétil). A partir dessa extração, o social o interpela e pode ajudá-lo a puxar o fio das determinações de seu ato lhe permitindo elaborar através da palavra sua verdade inconsciente. Isso fará de seu agir um ato que poderá assumir. Parece-me que o trabalho de acompanhamento dos adolescentes em conflito com a lei, seja ele assegurado no quadro da Proteção Judiciária da Juventude, seja em outro lugar, há que pensar, formalizar, de agora em diante, também às vistas de um segundo tipo usual de violência. O caso Tom ilustra talvez algumas dessas características. Caso Tom Tom tinha 15 anos e meio quando foi institucionalizado. Ele nasceu e viveu, até alguns meses antes, sob outros trópicos. Órfão de mãe desde 5 anos, cresceu na rua desde o 9 anos com alguns de seus irmãos mais velhos. Seu pai tinha então tomado a decisão de deixar a região em que viviam e deixou às crianças a escolha de segui-lo ou ficar. Procurado por diferentes ocorrências de roubo e de violência, ele foi encarcerado aos 14 anos. Membros de uma gangue rival sendo encarcerados na mesma prisão, ele decidiu proceder em sua transferência para uma região parisiense de modo a se proteger da violência por um acerto de contas. Efetuou uma primeira passagem pelo bloco dos menores antes de ser finalmente transferido para um estabelecimento penitenciário para menores. Uma atenuação de pena foi, em seguida, colocada em andamento, através de uma colocação em família de acolhimento que durou três meses. Nós o encontramos pela primeira vez na detenção, justamente para levantar a possibilidade dessa transferência. Tom exprimiu que seu lugar não era ali e que ele retornaria para a rua atrás da gangue, Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013 127 O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência pois não poderia proceder de outra forma. Mas tendo sido encarcerado a milhares de quilômetros da sua casa, quis assim mesmo tentar a experiência de uma colocação numa família de acolhimento. Tom pode dizer que sua família era sobretudo a gangue, já que conhece o grupo desde pequeno. Seu irmão mais velho também faz parte da gangue. Tom chega a anunciar que investir nas atividades e projetos que lhe propomos seria uma forma de renegar seu pertencimento à gangue, com quem permanece todo tempo ligado via internet. Durante sua colocação, soube que dois de seus “irmãos” (de gangue) foram assassinados. Tom vive de modo muito violento o fato de estar separado do grupo e de não poder se associar a seus outros irmãos para vingar sua morte. Observamos também que ele fixa cada vez mais seu pertencimento em sua indumentária, pintando algumas de suas roupas com as cores associadas à gangue. Tom porta também sobre seu corpo outras marcas de pertencimento através de múltiplas tatuagens. Durante os dois primeiros meses de sua colocação, ainda que permanentemente tensionado entre sua lealdade à gangue e à família de acolhimento, demonstra um investimento positivo nas abordagens educativas empreendidas, assim como nas relações com os adultos que dele se ocupavam. Não cometeu nenhuma falta em relação ao regulamento. Na família de acolhimento, participa de certos trabalhos com boa vontade, chegando mesmo a gravar seu nome sobre a chapa de concreto de um atelier então em construção. Às vezes, ele se permite dizer que poderia muito bem permanecer lá por dois anos, o tempo de aprender um trabalho. Na casa, Tom investe particularmente na atividade de música, na qual ele escreve canções em memória de seus próximos que estão mortos (sua mãe e seus irmãos da gangue). Chega a chorar enquanto nos faz escutá-las. Com a educadora encarregada da inserção, ele evoca sistematicamente a morte de sua mãe e lhe pergunta se ela crê em Deus. 128 Ele diz que não acredita mais porque passou por muitas coisas. Quando fala da detenção, descreve modalidades de relação aos outros e às leis que se opõem ao que é esperado dele lá fora, pelos educadores. Ele diz: “É preciso que você seja o mais forte. Você não tem escolha, você se deixa bater quando chega, depois é preciso que você bata para se fazer respeitar. Você deve ser superior (sic)”. Para ele, de um certo ponto de vista, é mais fácil viver a prisão, o cárcere do que a liberdade: “Te pedem menos coisas. Se quiser, pode ficar fechado em sua cela, você é livre. Fora, é preciso sempre fazer escolhas, e há mais exigências. Você deve prestar atenção em como se comporta, em como fala. Na prisão, há menos histórias; fora, é preciso sempre se explicar, te pedem sempre mais, dominam sua cabeça. Na prisão, há os vigias, se você for pego, vai para o bloco disciplinar, e depois, acabou. Fora, há os educadores, a casa de acolhimento, as regras, etc.”. Tom então afirma estar mais adaptado a um funcionamento fora das convenções da relação social. Modalidades binárias e abruptas balizando os limites do permitido e do interditado são suficientes para ele. As relações são reguladas no fundo pela relação de força e pela violência. Ele especifica então: “A gente sabe que você é grande quando está na prisão. Fora, muitos se fazem de bons, mas na prisão somente os durões são respeitados. Você deve sempre dar o primeiro golpe para mostrar que é o mais forte”. Para tanto, ele também sabe usar com fineza da sedução para orientar a relação e dela tirar benefícios. Ele diz: “A vida é como uma partida de pôquer. É preciso que os outros acreditem que você é o mais forte para que eles te respeitem e algumas vezes é preciso saber dizer o que eles querem ouvir para ter o que você quer”. Quando se lembra de sua vida na rua, diz que fez “coisas graves”, que não quer nomear nem especificar, e explica que ninguém o interrompeu. Com ele, não aconteceu como com seu irmão mais novo, que seu pai e seus irmãos Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013 O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência mais velhos tentaram parar. Para ele “isso não para nunca”. Tom permite assim compreender que ele poderia ter sido retido antes de sua integração na gangue e antes da espiral de acerto de contas na violência. Ele faz referência a uma vivência de abandono, no decorrer da qual ele foi largado, e em que terminou também por largar aqueles que poderiam lhe dar conforto e limites estruturantes, preservando para ele seu lugar de criança. Suas falas, seus comportamentos e suas posturas demonstraram uma tensão entre duas modalidades de estar no mundo com os outros: tanto a pessoa fria, sem consideração e outros princípios, a não ser aqueles referidos a sua gangue, quanto o rapaz sensível à atenção que lhe era dada, buscando a troca e o compartilhamento na relação individual. Além da violência dos propósitos, os atos do rapaz reivindicando sua gangue se revelam, às vezes, como uma expressão da criança mortificada incrustada em sua personalidade. A esse respeito, o roubo de uma bijuteria na família de acolhimento pôs em ato de maneira muito aguda uma ferida, marcando sua ligação amorosa ao objeto materno. A mulher da família de acolhimento veio a perder sua própria mãe. Ela se deu conta, ao arrumar suas coisas, que um de seus pendentes tinha desaparecido. Tratava-se de um coração que sua mãe tinha lhe dado. Ela tinha mostrado essa bijuteria para Tom. Procurou por todos os lugares, muito afetada com o desaparecimento, e perguntou também a Tom se ele a havia visto,e ele negou. Acontece que, alguns dias depois, o pendente apareceu nas coisas dele. Porém, Tom negou tê-lo furtado. No decorrer do terceiro mês de sua estadia, os contatos via internet com os membros da gangue se intensificaram. Tom chegou mesmo a dizer que alguns deles poderiam encontrá-lo na região. Seu comportamento mudou. Ele mostrou cada vez mais oposição face aos educadores, levando-os a desconfiar dele, pois não sabiam mais quem era “o verdadeiro Tom”. Durante uma sessão do ateliê de música, Tom deixou a interventora entrever que ele tinha vindo com uma arma, deixando-a ostensivamente aparecer para fora da calça. Em seguida, sussurrou para a interventora que precisava de dinheiro, que cometeria um roubo e partiu. Interpelado mais tarde pela polícia, desmentiu tudo o que a interventora tinha relatado sobre o que ele havia dito e mostrado. Tom também negou diante da família de acolhimento ter portado uma arma naquele dia. O senhor da família de acolhimento decidiu inspecionar seu quarto e encontrou uma pistola de balas de festim. Tom ficou “baqueado” quando foi confrontado com o fato de que a família de acolhimento tinha descoberto a arma. Ele não conseguiu sustentar uma discussão com eles e se afundou em justificações pouco convincentes, deixando o lugar. Disse em seguida ao educador que não queria mais continuar sua progressão de pena e que desejava ir novamente para a prisão. Sem dirigir mais a palavra à família de acolhimento e recusando qualquer abordagem, ele foi acolhido na casa da Proteção Judiciária da Juventude, onde o encontramos. Essa mudança de enquadre suscitou num primeiro momento uma renovação do interesse quanto ao fato de novamente tentar projetos a partir da casa. De todo modo, em seguida, Tom se encontrou tomado por tensões internas, afirmando tanto que só buscava ser novamente encarcerado e refazer o caminho dos centros de detenção para retornar a sua região de origem, quanto que queria permanecer ali e trabalhar. Nessa tensão se lia dramaticamente a angústia de não ter finalmente outro lugar a não ser a prisão ou a gangue. Por outro lado, pediu a alguns de nós, mais ou menos de canto, se não poderíamos adotá-lo. Finalmente, sobre o plano da resistência passiva, manifestou o impasse no qual estava preso: Tom permanecia o dia todo deitado na sua cama, os olhos fixos no teto, transgredia cada vez mais fumando cannabis, fugia à noite e Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013 129 O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência voltava de madrugada. Ao lado de outros jovens, tentava provocar o terror e submetê-los aos seus mandos. Nesse contexto, por uma briga com um outro jovem, foi finalmente transferido para outra casa. Nesse segundo tipo de ato de delinquência, a questão não era verdadeiramente de transgredir visando a potência e a autoridade do pai. Esses atos de delinquência, inflacionados na nossa sociedade contemporânea, devem ser mais considerados como consequência do que muito se chama hoje de “declínio da função paterna” (LACAN, 1997), no que isso logicamente deixa a criança num face a face talvez mortal com a mãe. Pari e passu o sujeito se vê confrontado com o Outro primordial, um outro sem filtro, sem paragem, intrusivo e excessivo (KAUFFMANN, 1996). Os atos de delinquência resultariam de uma forte proximidade com a mãe, com sua figura ou, num plano mais amplo, com a cultura midiática, cuja precariedade na mediação simbólica, para além de oferecer amarras de ancoragem ultraidealizadas para o sujeito, excede numa demanda feroz inatingível (ŽIŽEK, 2006). Os atos violentos aí constituiriam então uma tentativa de saída radical da angústia que suscita naturalmente a proximidade com a mãe como instância, revelando a angústia em face ao espectro de um gozo incestuoso. Trata-se também da angústia de não poder usufruir de nada que represente os ideais culturais contemporâneos. A única forma encontrada de se sobressair é auto e heterodestrutiva (FREUD, 1996). Ora, todo o trabalho de estruturação psíquica de um indivíduo consiste em erigir barreiras contra o retorno dos efeitos destrutivos da angústia (KLEIN, 1992, 1982). No entanto, existe um gozo destrutivo do qual adolescentes em grande dificuldade, diríamos, em estado de deprivação, vão fruir de modo a forjar essa destruição no social (WINNICOTT, 2000). Mas, em que, mais precisamente, os atos de delinquência desse segundo tipo teriam a reportar à relação arcaica com a mãe? Deve130 se a Serge Lesourd, inspirado por Denise Lachaud e retomado por Yves Morhain, por ter formalizado tão magistralmente as questões e os fundamentos desse segundo tipo de ato de delinquência. Lesourd (2001) mostra o quanto esses atos não constituem tentativas de se inscrever num laço social, realizando, assim, seu dever de habitar o mundo como adulto; ao contrário, sinalizam mais radicalmente uma posição de impotência vivida como impossibilidade de ali se inscrever. Não é o tanto que seria árduo recuperar seu lugar na sociedade, mas o fato de isso, segundo eles, ser impossível. A gramática inconsciente dessa segunda forma de apresentação da violência nesses jovens seria: “Não há realmente lugar para mim”. Como um indivíduo pode chegar a considerações tão radicais que vão tornar sua vida tão sufocante? Para compreender o que funda esse vício, o impasse que o social representa para esses indivíduos, examinemos mais de perto os joguetes da relação com a mãe, dita aqui arcaica, por ser considerada em sua versão não castrada, quer dizer, ainda numa versão todo-poderosa aos olhos da criança. Notemos a esse respeito que Tom viveu aos 5 anos um acontecimento notavelmente traumático na relação à sua mãe: ela morreu. Pode-se pensar que, para ele, de maneira traumática, alguma coisa caiu tão brutalmente da potência materna, o que em psicanálise se chama a castração materna, que então se revela subitamente à luz do dia: a mãe indubitavelmente também falha. O traumatismo consiste no fato de que o sujeito, então criança, não teve tempo de metabolizar, simbolizar essa queda da potência materna, o que pode acarretar uma fixação, ou melhor, uma espécie de alienação à figura todo-poderosa da mãe; alienação que se traduz por uma nostalgia do tempo em que ainda sonhava com a completude que poderia constituir com ela. Sua relação com a mãe seria ainda a promessa de um gozo absoluto, índice de uma eco- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013 O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência nomia a dois que o pai tinha apenas começado a pôr em questão. Essa alienação arrisca desorganizar a vida do adolescente, que vai ter dificuldade para encontrar seu lugar no laço social, ou seja, para se integrar à sociedade. Na continuidade de uma falha absoluta da mãe, terá antes a tendência a se desintegrar. Pois, se inscrever no laço social implica adotar outro modo de relação com o gozo. Ora, é preciso dividir os bens entre todos, pois de todo modo, o gozo em si, ninguém pode ter todo (FREUD, 1996). Há uma falta fundamental, e é pelo fato de se apropriar e de pôr em ação essa falta como estrutural que se considera e se constrói uma relação à coisa social. Na cultura tradicional, em que ainda vivemos em grande parte, é assim que a pertinência ao laço social vai poder vir a se impor para um sujeito, estabelecendo uma relação com a autoridade. Por outro lado, os vínculos de Tom eram essencialmente horizontais, privilegiando uma fratria caótica, portanto, estigmatizados diante da sociedade oficial a qual, muitas vezes, é necessário se dobrar (FREUD, 1996). No lugar disso, o adolescente, envolvido por essa injunção ao gozo absoluto, se lança em uma luta até a morte com o outro — dependendo da ocasião, ele poderá também ser seduzido pelas promessas de gozo absoluto que as drogas e outras substâncias oferecem — uma economia que rege a luta das gangues. Trata-se de uma luta até a morte, pois não haveria, realmente, para o sujeito, lugar para todos no mundo. É um pouco a mesma coisa quando se diz: “os estrangeiros devem permanecer em suas casas, pois não há trabalho suficiente para todo mundo”, subentendendo-se que se eles não estivessem ali o problema do trabalho poderia vir a se solucionar. Assim, atribui-se ao outro a causa de sua própria falta. É exatamente nessa lógica que o adolescente, funcionando nesse segundo tipo de violência, será efetivamente barrado: “a ausência tão prejudicial para mim deste gozo, essa que me metem todos os dias diante do nariz, da qual me dizem que é sinal de reconhecimento, de conquista social, etc., esta pela qual então eu sofro tão cruelmente, por não ter aceso suficientemente, eu imputo a responsabilidade ao outro, pelo fato de que ele a possuiria e, por isso mesmo, dela me privaria”. O mecanismo é simples de compreender: está no fundamento do discurso racista. Mais difícil é se dar conta do que vai explicar um tal fechamento do indivíduo nessa lógica, ao ponto que estará prestes a sacrificar sua vida. Temos também o exemplo paradigmático das gangues para as quais o laço social foi redescoberto pela via dos territórios. Marchar sobre o território do outro é dele roubar um gozo. “Se o outro me coloca em risco, eu o elimino.” Para compreender essa posição psíquica tão particular, Lesourd valoriza a noção de inveja distinguindo-a da do ciúme. O fechamento na economia da inveja é o que barra a passagem da luta fraterna em relação ao ultrapassamento do gozo do pai. Evidentemente, essa questão já havia sido posta por Melanie Klein (1957/1991), na sua obra magistral Inveja e gratidão (cf. ARREGUY, 2001). Apenas na passagem de uma posição dual, narcísica, invejosa, persecutória e destrutiva, para uma posição triádica, ciumenta, depressiva e reparatória, seria possível ter as bases para o declínio da posição edipiana. Aí o sujeito estaria numa cena a três, que pode vir a ser posteriormente elaborada. Diferentemente, aquele que funciona segundo a inveja, permanece talvez fixado demais à etapa da criança que vê seu irmão mais novo no seio da mãe, num quadro de completude entre a mãe e a criança do qual se vê radicalmente excluído. É clássica a cena citada por Santo Agostinho no livro I das Confissões, também referida por Lacan (1997): Certa vez, vi e observei um menino invejoso. Ainda não falava, e já olhava pálido e com rosto amargurado para o irmãozinho colaço. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013 131 O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência Quem não terá testemunhado isso? Dizem que as mães e as amas tentam esconjurar este defeito com não sei que práticas. Mas se poderá considerar inocência o não suportar que se partilhe a fonte do leite, que mana copiosa e abundante, com quem está tão necessitado do mesmo socorro, e que sustenta a vida apenas com esse alimento? Mas costuma-se tolerar indulgentemente essas faltas, não porque sejam insignificantes, mas porque espera-se que desapareçam com os anos. Por isso, sendo tais coisas perdoáveis em um menino, quando se acham em um adulto, mal as podemos suportar (AGOSTINHO, 2007, p. 5). Vejamos o comentário de Lacan, feito na lição do dia 14 de março de 1964, no seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: Inveja vem de videre. A invídia mais exemplar, para nós analistas, é aquela que há muito tempo destaquei em Agostinho, para lhe dar todo o seu desenvolvimento, isto é, a da criancinha olhando seu irmão pendurado ao seio de sua mãe, olhando-o amare conspectu com um olhar amargo, que o decompõe e faz nele mesmo o efeito de um veneno. Para compreender o que é a invídia em sua função de olhar, não é preciso confundi-la com o ciúme. O que a criancinha, ou qualquer pessoa, inveja, não é de modo algum, necessariamente, algo que ela poderia ter vontade, como impropriamente se exprime. A criança que olha seu irmãozinho, quer dizer que ela ainda precisa da teta? Todo mundo sabe que a inveja é comumente provocada pela possessão de bens que não seriam, para aquele que inveja, de nenhum uso, e dos quais ele nem mesmo suspeita da verdadeira natureza. Esta é a verdadeira inveja. Ela faz empalidecer o sujeito diante do quê? Diante da imagem de uma completude que se refecha [...] (LACAN, p. 115-116). Estar a três não é considerável nessa cena. A criança não tem lugar ali, não tem existência possível. Ela se aniquila reduzindo-se ao 132 olhar dessa cena de completude entre a mãe e seu irmão mais novo, um olhar que vai retornar de maneira radical na clínica com os adolescentes. E para lidar com a falta materna, a criança não tem então outra solução a não ser a destruição do recém-chegado, o que será formulado da seguinte forma: “ou ele ou eu”. Se não há lugar para os dois, o que prossegue será: “não há lugar para todos na sociedade”. Atenção para não deixar as crianças a sós com seus irmãozinhos e irmãzinhas! Evidente que esse processo pode se passar todo no plano da fantasia, como mostra a bela fábula, O pequeno Nicolau, filmada por Laurent Tirard (2010). Ocorre que os jovens em conflito com a lei que transigem para atos extremamente violentos e autodestrutivos passaram não só por uma perda real nos primórdios de sua estruturação psíquica, mas permanecem em situação de perdas severas e contínuas ao longo da vida, numa relação sem mediação com o Outro. O adolescente do segundo tipo, em todo caso, é um sujeito fechado em uma etapa primitiva de sua constituição psíquica, em uma etapa que se chama narcisismo primário, aquela dos primórdios da constituição do Eu (FREUD, 2004). Essa definição tem importância, pois o momento inaugural em que o Eu se constrói também corresponde à etapa do “estágio do espelho”, formalizada por Lacan (1998). A criança tem de se reconhecer no espelho para poder chegar a um sentimento de integridade de seu Eu. O que nos coloca na via de um momento de construção psíquica relativo ao estádio do espelho é a importância do olhar nos adolescentes. Lesourd destaca sua propensão a ser agredido pelo olhar, sempre um olhar maldoso: “ele me tirou” [gíria usada pelos adolescentes significando “ele me zoou” (estigmatizou)], no sentidode “ele me olhou mal, atravessado”. O olhar do outro é persecutório, o que faz talvez pensar em uma tendência paranoide (MIJOLLA-MELLOR, 2011) desses adoles- Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013 O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência centes. Esse olhar coincide com o retorno de seu próprio olhar projetado no outro. É sua própria inveja ao encontro do outro que retorna de maneira ameaçadora, algo tanto maior quanto mais o indivíduo for pego nessa economia pulsional invejosa. Essa luta até a morte, saída de um exercício de violência às vezes dos mais radicais, nas quais o outro poderá ser agredido fisicamente, consiste então num exercício de sobrevivência narcísica, de preservação da integridade do Eu ainda tão frágil. É preciso salvar o Eu, mesmo às custas da morte. Nesse caso não se está absolutamente ainda na etapa da transgressão à Lei, já que esta necessita da entrada em cena do pai que virá a inscrever a falta para todos. A figura paterna, ou o que quer que represente um interdito ao desejo ilimitado da mãe, assegurará que todos passem pela falta. É por isso que o gozo que falta a um, para se completar, não se pode buscar no outro, pois o outro não é completo. Essa incompletude é, entretanto, justamente o contrário do que a criança considera quando observa, despeitada, seu irmão recém-nascido no seio de sua mãe. Morhain nos ensina a reconhecer o valor do ódio em face ao drama do gozo do outro que nos aniquila: Na medida em que é ainda uma defesa, um último baluarte antes do colapso psíquico (HASSOUN, 1999), o ódio pode ser reparador e constitui para alguns jovens uma expressão positiva da violência e da negatividade, no momento em que a pulsão de destruição é temperada com o ódio pelo objeto, assegurando de algum modo sua consistência (MORHAIN, 2008, p. 135, tradução livre). A raiva pode então se revelar salvadora pela distância que ela mantém com seu objeto, objeto que é, por isso, preservado. Essa função estruturante da agressividade fora também abordada por Winnicott (2000) em A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional, um texto seminal que atesta a função vital e positiva da agressividade como forma de se diferenciar do outro e como força motriz da apreensão do mundo e da criatividade. Por outro lado, a derivação numa raiva destrutiva, com vistas ao desaparecimento do objeto, em vez de se constituir numa tentativa terapêutica, faria retornar à inveja ameaçando o sujeito... Resta aprimorar essa função: de que modo integrar a raiva na contratransferência? Questão que apenas sinalizamos como fonte de trabalho por se fazer. Assim, Tom nos mostra sua aflição diante de sua dificuldade de considerar a possibilidade de se inscrever no laço social, pois toda a sua vida, desde os 9 anos, quando ele renunciou ao apoio do pai, se construiu sobre o postulado de que a sociedade não podia lhe dar um lugar, daí seu nível extremo de investimento na gangue, na qual ele põe a integralidade de suas identificações, logo, sua identidade toda. Embora ele pareça fazer aliança com os educadores, termina por vir com uma pistola à casa, depois acaba por roubar uma bijuteria na família de acolhimento — objeto substituto da figura materna arcaica representada aqui pela mulher da família de acolhimento — essa bijuteria, em forma de coração, lhe teria sido fantasmaticamente oferecida por sua própria mãe. Como não pensar que Tom se agarrou a esse episódio para colocar na ordem do dia a questão do amor através do presente, a economia do dom que talvez tanto lhe faltou com o desaparecimento prematuro de sua própria mãe? Não haveria outra alternativa a não ser marcar essa falta subtraindo do outro (da mulher da família de acolhimento) seu objeto de amor? Até que ponto essa “subtração” não representaria sua antípoda, uma “soma” a si, na tentativa de se vincular ao outro “pegando” algo dele? Mais do que uma traição em relação às pessoas que ele aprecia, seu verdadeiro problema seria uma forma de transferência diante das pessoas que aprendeu a apreciar: Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013 133 O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência “O amor me falta”. E assim, para que a vida não se reduza a uma luta até a morte pelo gozo: “Como vocês podem me ajudar a me tirar disso?”. Afinal, os erros que comete são explícitos, apesar de não diretamente endereçados numa reivindicação transgressiva como a de Samir, já que deixam entrever seu fracasso na forma destrutiva de violência que apresenta. Ele se faz denunciar, ao deixar a arma aparecer, ao não esconder direito ou se livrar do objeto roubado... Parece fundamental distinguir dois mecanismos muito diferentes — passagem ao ato como transgressão à Lei e passagem ao ato como recurso narcísico de sustentação do Eu — nos atos violentos que a sociedade francesa apenas chama de delinquência, os quais às vezes parecem idênticos em sua manifestação. O acompanhamento desses adolescentes estará certamente mais adaptado a partir disso: para aqueles que se referem a uma transgressão à Lei, tratar-se-á de nortear o trabalho sobre a elaboração do luto do pai; para o segundo tipo, que concerne aos mecanismos narcísicos, o trabalho se norteará sobre a falha narcísica e o trabalho sobre o objeto. Nesse contexto, as atividades de mediação terão um lugar privilegiado. Abstract The text works the adequacy of adolescents follow-up systems in France today, pointing out it is inappropriate to a group of adolescents characterized as “young people in conflict with the law”. It also shows a metapsychological point of view: the existence of two forms of violence presented by young people, relating them to some difficulties at different stages of psychic structure. Keywords: Violence, Adolescence, Law, Metapsychology, Monitoring systems. 134 Referências AGOSTINHO, Santo. Livro I. Confissões. (CSERNIK, M. L. [Org.]). 2007. Disponível em: <http://sumateologica.files.wordpress.com/2009/07/santo_agostinho_-_confissoes.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2013. ARREGUY, M. E. Entre o excesso e a ausência - o ciúme amoroso nas narrativas psicanalítica e literária. Dissertação (Mestrado em psicologia) - Departamento de Psicologia, PUC Rio, Rio de Janeiro, 2001. ARREGUY, M. E. O ciúme entre irmãos: uma conceituação psicanalítica (1997). 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Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 123–136 | Dezembro/2013 135 O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência LACAN, J. Encore. Le séminaire de Jacques Lacan, livre XX (1972-1793). Paris: Seuil, 1975. WINNICOTT, D. W. Privação e delinqüência (1939). São Paulo: Martins Fontes, 2005. LACAN, J. Introduction théorique aux fonctions de la psychanalyse en criminologie (1950). In: ______. Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 125-149. WINNICOTT, D. W.A tendência antissocial (1956). In: Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000. p. 406-416. LACAN, J. Leçon XXIV (1963a). In: ______. L’angoisse. Séminaire 1962-1963. Publication hors commerce. Document interne à l’Association Freudienne Internationale et destiné à ses membres, p. 383-398. ŽIŽEK, S. Lacrimae rerum: ensaios sobre o cinema moderno (2006). São Paulo: Boitempo, 2009. LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do Eu (1949). 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Poderão também ser publicados: 3.1 Reflexões sobre a psicanálise, articulando-a com outras áreas do conhecimento; 3.2 Casos clínicos; 3.3 Entrevistas; 3.4 Resenhas; 3.5 Ensaios. 4. A estrutura dos trabalhos deverá estar de acordo com as normas abaixo: 4.1 Todo trabalho deverá ser obrigatoriamente acompanhado de: 4.1.1 Folha de rosto com o título do trabalho, nome dos autores e titulação. No corpo do trabalho não deverá constar o nome dos autores, com o objetivo de manter o anonimato na avaliação feita pelo corpo editorial. 4.1.2 Título em português e em inglês no corpo do trabalho. 4.1.3 Resumo expressando o conteúdo, salientando os elementos novos e indicando sua importância. Deverá ser colocado antes do texto e não deve exceder a duzentas e cinquenta palavras. 4.1.4 Palavras-chave, de três a cinco, que identifiquem o conteúdo, para a completa descrição do assunto e, quanto à localização, após o Resumo. 4.1.5 Keywords deverá vir após o Abstract. 4.1.6 Referências. Citadas como no exemplo a seguir: 4.1.6.1 Registrar as referências em ordem alfabética conforme os exemplos, observando os detalhes de dois pontos, abreviaturas e vírgulas, bem como qualquer outro assinalado abaixo: 1. Normas atualizadas para as próximas edições. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 137–142 | Dezembro/2013 137 Normas de publicação a) De livro AUTOR. Título em itálico: subtítulo. Edição. Local (cidade) de publicação: Editora, ano de publicação. Exemplos: CERVO, A. L. Metodologia Científica: para uso dos estudantes universitários. 2. ed. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1978. PIMENTEL, D. O sonho do jaleco branco: saúde mental dos profissionais de saúde. Aracaju: Universidade Federal de Sergipe, 2005. b) de capítulo de livro AUTOR DO CAPÍTULO. Título do capítulo. In Autor do livro. Título em itálico: subtítulo. Edição. Local (cidade) de publicação: Editora, ano de publicação. Número do volume (se houver). Intervalo das páginas. Exemplos: FREUD, S. Sobre a psicoterapia [1905]. In FREUD, S. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1989, v. VII, p. 239-251. LAMBOTE, M. C. O tempo anunciador. In LAMBOTE, M. C. Estética da melancolia. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2000, p. 103-109. PIMENTEL, D. Interfaces entre a Psicanálise e Psiquiatria. In PIMENTEL, D.; ARAUJO, M.G. (Orgs.). Interfaces entre a Psicanálise e Psiquiatria. Aracaju: Círculo Brasileiro de Psicanálise, 2008, p. 9-13. c) de artigo de revista AUTOR. Título do artigo. Título do periódico em itálico, local de publicação (cidade), número do volume, número do fascículo, páginas inicial e final, mês e ano. Exemplos: PIMENTEL, D; VIEIRA, M.J. Perfil e saúde mental dos psicanalistas. Psychê, São Paulo, n. 15, p. 155-165, jun. 2005. BERNARDES, W.S. Condenação, desmentido, divisão. Reverso, Belo Horizonte, v. 26, n. 51, p. 115-122, set. 2004. d) Outros modelos de referência, consulte os editores ou o site do Círculo Brasileiro de Psicanálise. 5. Tabelas e gráficos deverão ser enviados em separado, numerados, com as respectivas legendas e indicação da localização no texto entre dois traços horizontais. 6. As citações deverão estar acompanhadas de suas fontes, com as respectivas páginas. 6.1. Direta: Quando é extraído um trecho literal, copiado fielmente do original. Neste caso é obrigatório colocar sobrenome e ano da obra, além da página. As citações diretas podem ser de dois tipos, conforme o número de linhas. 6.1.1. 138 Até três linhas Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 137–142 | Dezembro/2013 Normas de publicação Aparece incorporada ao texto, entre aspas. Ex. a) Como diz Pontalis (1998, p. 274): “Nossas memórias para serem vivas, nossa psique, para ser animada, devem se encarnar”. Ex. b) “O objetivo da análise é preparar o paciente para a autoanálise” (GREEN, 1988, p. 302). 6.1.2 Mais de 3 linhas Devem ser destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda, com letra menor (tamanho 10) e espaçamento simples. Não há necessidade de colocar entre aspas. Ex.: Conforme Freud (1919): Recusamo-nos decididamente a transformar em propriedade nossa o paciente que se entrega a nossas mãos em busca de auxílio, a conformar o seu destino, impor-lhe nossos ideais e, com a soberba de um Criador, modelá-lo à nossa imagem, nisso encontrando prazer (FREUD, 1999, p. 424). 6.2 Indireta: texto baseado na obra do autor consultado. Ex. a) Diversos autores citam a importância do estudo das perversões para entender as psicopatias da vida cotidiana (CLAUVREUL, 1990; DOR, 1991; ANDRÉ, 2003; CORRÊA, 2006). Ex. b) A concepção médica de oposição entre o normal e o perverso se desfaz, segundo Corrêa (2006), à medida que o inconsciente vai sendo revelado. Ex. c) Para a psicanálise, o Sujeito não seria natural como queria Sade, seria um Sujeito irremediavelmente dividido, como demonstrou Freud, ao que Lacan acrescenta que isso aconteceria pela relação dele, Sujeito, com a linguagem (LACAN apud LEITE, 2000). 7. Usar o mínimo de notas de rodapé, porque as referências do texto devem vir no corpo do texto. 8. Cabe ao Conselho Consultivo de cada sociedade participante do CBP o exame e aprovação dos trabalhos, em primeira instância, de seus respectivos sócios, e o encaminhamento à Comissão Editorial, já dentro das normas de publicação da revista, que decidirá sobre a sua publicação de acordo com a programação da revista. 9. A Comissão Editorial reserva-se o direito de recusar os trabalhos que não se enquadrem nas normas citadas ou não tenham qualidade editorial. 10. Os originais deverão ser enviados em duas vias, devidamente numeradas e rubricadas, com espaço simples, fonte Times New Roman tamanho 12, não excedendo 8 laudas. O título do trabalho deve conter no máximo dez palavras e o tamanho da fonte 14, em negrito. 10.1 Os originais deverão ser encaminhados também em mídia eletrônica no Word 19972003. 10.2 Os autores deverão enviar os originais para a sede do Círculo Brasileiro de Psicanálise, com carta dirigida aos editores, autorizando a publicação e ratificando ser um trabalho inédito. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 137–142 | Dezembro/2013 139 Normas de publicação A carta deve conter o título do trabalho, nome do(s) autor(es) com sua titulação acadêmica e institucional, e o endereço físico e eletrônico do autor principal. 10.3 140 Os trabalhos deverão ser enviados para: Revista Estudos de Psicanálise Rua Maranhão, 734/3º andar – Santa Efigênia CEP: 30150-330 – Belo Horizonte/MG Tel.: (31)3223-6115 – Fax: (31)3287-1170 E-mail: [email protected] – Site: www.cpmg.org.br Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 137–142 | Dezembro/2013 Normas de publicação Roteiro de avaliação dos artigos 1. Título claro e preciso sobre o conteúdo do artigo. 2. Resumo claro e preciso sobre o conteúdo do artigo, contendo no máximo 250 palavras. 3. Palavras-chave adequadas ao conteúdo, em número máximo de cinco. 4. Abstract e Keywords conforme instruções. 5. Normas para citações e referências conforme instruções. 6. Relevância do tema. 7. Clareza de pensamento. 8. Consistência e coerência na fundamentação teórico-metodológica do trabalho. 9. Linguagem, considerando objetividade, estilo e correção. 10. Aspectos éticos de acordo com a Resolução CNS 196/96 sobre privacidade e anonimato das pessoas envolvidas, e declaração de conflitos de interesses. 11. O artigo deverá conter conclusão ou considerações finais. Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 137–142 | Dezembro/2013 141 Normas de publicação 142 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 137–142 | Dezembro/2013 Normas de publicação Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 137–142 | Dezembro/2013 143 Normas de publicação 144 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 40 | p. 137–142 | Dezembro/2013