Sobreviver a Picasso

Transcrição

Sobreviver a Picasso
Leituras / Readings
Volume VIII Nº4 Julho/Agosto 2006
Sobreviver a Picasso
Surviving Picasso
“Para ele, a aventura amorosa não é um objectivo em si,
mas o indispensável estimulo de seu poder criador (…)
mesmo que dissimulasse esse amor, sua pintura, seus
desenhos, suas litografias, suas gravuras trairiam de imediato seu segredo, os traços da nova eleita prontamente
sobrepondo-se aos da abandonada”.
Brassaï: Conversas com Picasso, p. 137
1
Retrato Picasso - Dalí
Adrian Gramary
A história já faz parte da lenda de Picasso: a sua morte, aos
91 anos de idade, foi um cataclismo que arrastou inexoravelmente alguns dos seus seres queridos, como a queda
em cadeia das peças de um dominó. Poucos dias depois da
sua morte, em 1973, o seu neto Pablito, a quem a última
mulher do pintor tinha recusado - como aliás aos restantes
familiares — assistir ao funeral, suicidou-se ingerindo um
produto cáustico. Dois anos mais tarde, em 1975, o seu
filho Pablo morreu pelas consequências de uma cirrose
alcoólica avançada. Nesse mesmo ano, Marie Thérèse, a
mãe da sua querida filha Maya, a quem Picasso visitou religiosamente todas as semanas ao longo da sua vida, enfor-
59
Leituras / Readings
Saúde Mental Mental Health
Françoise Gilot
Dora Maar
cava-se na garagem da sua casa da Côte d´Azur.
Dois livros recentemente publicados pela editora Âmbar,
Em 1986, a sua última mulher, Jacqueline, após ter arras-
abordam, partindo de diferentes perspectivas, a personali-
tado durante mais de dez anos uma longa e grave depres-
dade de Picasso: no primeiro, a psicóloga e jornalista Paula
são, suicidou-se com um tiro de caçadeira na sua casa de
Izquierdo debruça-se sobre a relação do pintor com as inú-
Nôtre-Dame-de-Vie. As últimas fotografias de Jacqueline
meras mulheres que povoaram a sua vida (“Picasso e as
(que podem ser vistas no belíssimo livro de fotografias
mulheres”)4; no segundo encontramos as recordações da
+
“Picasso and Jacqueline”) transmitem uma tristeza avas-
neta do pintor (“Meu avô, Pablo Picasso”) 5.
saladora. Marina, a neta de Picasso recorda que um dia o
Com a leitura destes livros, ficamos a saber que sobreviver
pintor teria vaticinado: “Quando eu morrer, será como um
a Picasso não parece ter sido tarefa simples.
naufrágio, e quando um grande navio vai a pique, muita
O pintor, paradigma do génio artístico do século XX, figura
3
60
gente à sua volta é aspirada pelo seu torvelinho.” As suas
imprescindível para entender a cultura e a sociedade oci-
palavras viram-se ultrapassadas pela realidade.
dental do último século (há quem diga que nele está
Leituras / Readings
Volume VIII Nº4 Julho/Agosto 2006
condensada a arte toda do século XX6, desde o expressionismo até a abstracção, passando pelo surrealismo e o
cubismo), é bem conhecido por ter exercido, graças ao seu
magnetismo pessoal e apesar do seu físico breve e discreto, um encanto irresistível nas mulheres.
Paula Izquierdo contabiliza em onze o catálogo de mulheres
importantes que ficaram enfeitiçadas pelo pintor: mulheres
que adoeceram durante o relacionamento com ele (Eva
Gouel morreu de cancro); que não conseguiram ultrapassar o
seu desaparecimento físico (duas mulheres suicidaram-se
após a sua morte); ou adoeceram psiquicamente após a
separação (a fo t ó grafa Dora Maar sofreu uma grave
depressão psicótica, que determinou o seu internamento
num hospital psiquiátrico, onde terá iniciado tratamento
com electro-shocks, embarcando posteriormente nu m a
análise prolongada nas mãos de um jovem e, na altura,
promissor psicanalista, chamado Jacques Lacan).
Fica ainda Olga Koklova, a bailarina dos Ballets Russes, a
musa da fase classicista do pintor, durante muitos anos a
sua única esposa (só depois da sua morte é que Picasso
decidiu casar com Jacqueline). Olga foi a eterna mulher ressentida, a quem Picasso sempre recusou o divórcio para não
Jacqueline com Flores
ter que repartir os seus bens, motivo pelo qual ela, em retaliação, o terá submetido a uma perseguição implacável ao
longo da sua vida, protagonizando cenas dramáticas à
frente de cada uma das novas conquistas do pintor.
E resta Françoise, a mãe de Claude e Paloma, a mulher
que goza do raro privilégio de ter sido a única que abandonou Picasso, e que, portanto, seguindo a lógica do director
James Ivory, o autor do filme S u rviving Picasso, foi a
única que conseguiu sobreviver a Picasso, deslocando-se
para os Estados Unidos, onde terminaria por casar com
Salk, o descobridor da vacina da poliomielite.
Pode parecer uma verdade óbvia dizer que o pintor andaluz gostava muito de mulheres, mas esta verdade tão evidente vai mais além do que é óbvio: quase toda a sua obra
retratística é uma variação interminável do motivo do
retrato da musa (com ou sem pintor). A esta paixão pelo
mundo feminino juntava-se a sua conhecida incapacidade
para estar sozinho, sem uma mulher ao lado: “Fazes mal
em não te casares; é útil”, foi a última frase que pronunciou,
quando soube que o amigo cardiologista, que o tratava,
continuava solteiro7.
Era ainda possessivo, até níveis próximos do sadismo:
Olga Koklova
61
Leituras / Readings
Saúde Mental Mental Health
seria atribuir exclusivamente ao narcisismo e à egolatria do
pintor a responsabilidade pelas desgraças ocorridas na
vida das pessoas que viveram à sua sombra (este foi o
ponto de partida do filme de James Ivory, baseado no testemunho autobiográfico de Françoise “Life with Picasso”).
De acordo com este raciocínio, todas elas teriam sido
“sugadas” pelo pintor-vampiro; mas Picasso tinha uma personalidade mu l t i facetada, proteifo rme e complexa: evitemos cair nessa visão simplista e tentemos, como ele
propunha nos seus retratos cubistas, expor simultaneamente as diferentes facetas da realidade.
O primeiro ponto, salientado por Paula Izquierdo, é que,
apesar da sombra cumprida projectada pelo fa m o s o
comentário premonitório que a mãe de Picasso, dona
Maria, teria feito a Olga, a primeira mulher do pintor (“Não
creio que haja mulher que possa ser feliz com o meu filho.
Não pertence a ninguém porque só pertence à sua arte)” 9,
o pintor fez felizes durante muito tempo as sucessivas (e as
vezes simultâneas) mulheres da sua vida. Conseguiu ainda
manter relações de amizade prolongadas com algumas
delas muito depois de ter acabado o relacionamento amoMarie Therese Walter
roso (como foi o caso de Marie Thérèse).
Outro ponto de interesse é levar em conta a própria perso-
62
“precisava de possuir a mulher tanto física como mental -
nalidade das mulheres de Picasso. Pensemos, por exem-
mente, para interiorizar a sua imagem”8, diz Izquierdo,
plo, em Dora Maar: a mulher do quadro La femme qui
citando o biógrafo Richardson. Tinha também aqueles
pleure, a fotógrafa musa dos surrealistas, imortalizada nas
estigmas bizarros de génio, como o facto de só aceitar que
fotografias de Man Ray, que acompanhou e inspirou o
fosse Marie Thérèse a cortar-lhe o cabelo e as unhas,
nosso pintor nos anos do Guernica, fotografando as dife-
baseando-se na superstição de que alguém poderia fazer
rentes fases da gestação do famoso quadro (esta série de
magia negra com eles. Ao que parece, Marie Thérèse terá
fotografias foram exibidas esta primavera na exposição
acumulado os restos queratínicos do pintor em pequenos
“Picasso e Dora Maar” no Museu Picasso de Paris).
saquinhos ao longo da vida.
Há quem diga que Dora foi a única mulher que esteve inte-
Há uma ideia de Picasso como monstro narcísico e sedutor,
lectualmente à altura de Picasso. Mas, convém relembrar
que talvez tenha ficado bem simbolizada pelo retrato-cari-
também que era uma mulher depressiva e cujo frágil
catura que lhe fez Dali, realizado quando o pintor andaluz
equilíbrio psíquico já tinha dado sinais de alerta antes de
já tinha deixado de falar com ele, em que o representa
conhecer Picasso.
como um busto de homem-carneiro-sereia, ídolo de
Pode ser suficiente evocar aquele famoso encontro no café
mamas flácidas portador de um apêndice lingual acessório
Des Deux Magots, no Boulevard Saint-Germaine de Paris,
no qual aparece pousada uma viola.
em que Dora conseguiu fascinar Picasso, sentado numa
É claro que Dali, sempre tão próximo esteticamente (e eti-
mesa vizinha, com o seu bizarro ritual, no qual, com as
camente) da podridão, estava em condições excepcionais
luvas calçadas, começou a brincar a uma espécie de roleta
para fazer retratos morais de Picasso… Mas, seguindo esta
russa, cravando uma pequena faca na mesa, tentando
lógica do génio-monstro de que Dali gostava tanto, a tenta-
alvejar o espaço entre os dedos, embora às vezes e r rasse,
ção mais simplista e óbvia, para desvendar esta história,
provocando pequenas fe ridas que deitavam sangue: as
Leituras / Readings
Saúde Mental Mental Health
sombras do desequilíbrio provavelmente já escureciam a
manteve com as mulheres: “A sua pintura são as suas mul -
sua mente antes de entrar na vida do pintor de Málaga.
heres e as suas mulheres são ele. Talvez as tenha amado
Pelos vistos, a lenda conta que Picasso, fetichista impeni-
ou não, quem é que pode falar de amor verdadeiro? Mas
tente, conservou aquela luva num armário a vida toda.
não há dúvida de que as desejou, fizeram-no entusiasmar-
Após a ruptura com o pintor, ela nunca mais terá conse-
se, exprimir os sentimentos que lhe provocavam, final -
guido manter novos relacionamentos afectivos estáveis,
mente: criar (…) Elas, cada uma delas, foram a sua arte, a
deixando-nos aquela frase terrível, testemunho da sua des-
sua referência, o seu objecto de trabalho; o estímulo neces -
coberta mística: “depois de Picasso, só Deus” (revelação
sário ainda que por vezes a crueldade formasse parte
que terá tido após a longa analise com Lacan), entrando
desta simbiose.” 12
numa fase de vincada religiosidade católica, ao mesmo
tempo que se desvinculava por decisão própria de qual-
Bibliografia
quer relação com o grupo surrealista. Izquierdo, citando a
Stassinopoulos, lembra a frase que Picasso terá dito a
1. Brassaï (2000): Conversas com Picasso. Cosac & Naify. São
Malraux: “Dora, para mim, foi sempre uma mulher que
Paulo, p. 137.
chora. Sempre (…) É importante porque as mulheres são
2. Douglas Duncan D (1988): Picasso and Jacqueline.
máquinas de sofrer.”
Bloomsbury. London
10
Sabartés, o melhor amigo de Picasso, revelou a Brassaï
3. Izquierdo P (2006): Picasso e as mu l h e r e s. Â m b a r. Port o,
que o segredo da eterna juventude do pintor era a sua
p.149-150.
capacidade para se desprender definitivamente de cada
4. Ibid.
fase gasta da sua vida afectiva: “Sempre que ele faz tábua
5. Picasso M (2006): Meu avô, Pablo Picasso. Âmbar. Porto
rasa, é definitivo, irremediável… Essa é a sua força, a
6. Stein G (2002): Picasso. La esfera de los libros. Madrid, p.57
chave da sua juventude!... Como uma serpente, ele deixa a
7. Izquierdo P (2006): Picasso e as mulheres, p. 149.
sua pele antiga atrás de si e recomeça uma nova existên -
8. Ibid., p. 73.
cia noutra parte… Após uma ruptura jamais voltava a
9. Ibid., p. 29.
cabeça para trás… Mais prodigiosa que a sua memória, é
10. Ibid., p. 107.
a sua capacidade de esquecimento.” 11
11. Brassaï (2000): Conversas com Picasso, p. 133.
E era assim que ele sempre embarcava no mesmo ritual de
12. Izquierdo P (2006): Picasso e as mulheres, p. 151.
facilitação do luto, após o fim de cada relação amorosa:
mudava de casa, de ambiente, mudava a protagonista dos
seus quadros, e às vezes até mudava também de estilo,
i n iciando uma nova fase criativa.
Algum espírito maldoso poderia ainda argumentar que
(exceptuando o caso de Dora Maar) ninguém estaria aqui
a falar destas mulheres (incluindo a neta, que viveu do
d i nheiro do avô até escrever um livro suculento sobre as
suas recordações) se não tivessem feito parte da vida de
Picasso durante algum tempo. Também poderia ser salientado que, evidentemente, a aproximação ao pintor por
parte delas não era propriamente inocente, pois todas
(excepto talvez a primeira, Fernande, a companheira da
época da boémia, dos maus tempos de Montmartre)
sabiam quem era Picasso.
Izquierdo acaba o livro com umas frases reveladoras que
tentam sintetizar a difícil e complexa relação que Picasso
64

Documentos relacionados

Pablo Picasso

Pablo Picasso a cultura dos diferentes povos africanos que aqui chegavam. O Brasil é o segundo país com maior população de afro-descendentes do mundo, de modo que a maioria de nós, brasileiros, tem em sua árvore...

Leia mais