Revista Brasileira de Arbitragem 20

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Revista Brasileira de Arbitragem 20
Doutrina Nacional
O Controle de Conformidade da Sentença Arbitral Estrangeira à Ordem Pública
Material: a Contribuição da Experiência Francesa e Internacional para Prática
Brasileira
Marco Deluiggi
Advogado em São Paulo, Mestre em Contencioso, Arbitragem e Modos Alternativos de Solução de
Controvérsias pela Universidade Paris II – Panthéon Assas.
RESUMO: A crescente utilização da arbitragem como mecanismo de solução de disputas do comércio
internacional vem aumentando significativamente o número de sentenças arbitrais estrangeiras que
são trazidas para homologação perante o STJ. Nesse processo de homologação, o STJ deve
averiguar, entre outras coisas, se a sentença arbitral está em conformidade com a ordem pública
material. O presente estudo tem por objetivo propor, com base na experiência internacional, qual a
noção de ordem pública que deve ser levada em consideração pelo Juiz estatal no momento dessa
análise e, ainda, qual a extensão dos poderes do Juiz estatal ao fazê-la. A solução sugerida visa a
assegurar a eficácia da arbitragem internacional, respeitando os interesses fundamentais do Estado.
ABSTRACT: The growing use of arbitration as a mechanism to resolve international commercial disputes
has been significantly increasing the number of foreign arbitral awards brought for recognition to
Brazil’s Superior Tribunal of Justice. In this process, the STJ must ascertain, among other aspects,
whether the foreign arbitral award is in conformity with material public policy. The present study
proposes, based on the international experience, what notion of public policy should be considered by
the judiciary at the time of this analysis, and the extent of the judiciary’s powers in reaching such a
decision. The solution suggested seeks to assure the efficacy of international arbitration while also
respecting the fundamental interests of the State.
SUMÁRIO: Parte I – A especificidade da noção de ordem pública no controle da sentença arbitral
estrangeira; a) Definição do conteúdo da ordem pública; 1 Um conceito restritivo: a distinção entre
ordem pública interna e ordem pública internacional; 2 As componentes da ordem pública
internacional; 2.1 Princípios fundamentais da ordem jurídica nacional; 2.2 Leis de polícia; b) A
sentença arbitral confrontada à ordem pública; 1 Apreciação concreta da violação à ordem pública; 2
O confronto em casos de variação do conteúdo da ordem pública; 2.1 Momento de apreciação da
adequação da sentença à ordem pública; 2.2 Variação no espaço (efeito atenuado da ordem pública);
Parte II – A extensão do controle do juiz; a) A incerteza doutrinária e jurisprudencial; 1 Os
fundamentos para um mero controle da aparência de conformidade da sentença à ordem pública; 1.1
Apresentação da concepção minimalista do controle; 1.2 O alcance da regra; 2 A defesa de um
controle efetivo: apresentação da concepção maximalista do controle; b) A exceção de ordem pública
material: Um conceito em perigo?; 1 A visão minimalista: uma concepção inquietante; 2 A solução
apropriada ao espírito da exceção de ordem pública material; Conclusão.
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“Quem, dentre nós, não fez um dia tudo para se opor à execução de uma sentença,
e não amaldiçoou um sistema jurídico que não dava nenhuma arma para se chegar lá?”
Essa constatação do Professor Philippe Fouchard 1, por ocasião do encerramento do
Congresso da ICCA, realizado em Paris em 6 de maio 1998, pode, à primeira vista, chocar
os defensores mais fiéis do instituto da arbitragem.
Contudo, seu fito é exatamente o contrário: ela exprime a preocupação em ver a
arbitragem internacional se desenvolver de forma consistente e coerente, sem abusos e
sem se sobrepor à soberania e aos interesses fundamentais dos Estados.
Já foi dito e redito que o crescimento do comércio internacional – reflexo da
incessante busca pela satisfação dos interesses econômico-financeiros das grandes (e,
hoje em dia, por que não dizer também pequenas e médias?) corporações, investidores e
nações – demanda que o direito positivo evolua e adapte-se, a fim de garantir a segurança
das relações jurídicas.
De fato, nesse contexto, leis nacionais foram redigidas e tratados internacionais
foram ratificados pelos Estados 2, visando assegurar a eficácia e a portabilidade
internacional das sentenças arbitrais.
Esse avanço legislativo em favor da arbitragem, conjugado com um
amadurecimento jurisprudencial, foi, de pouco em pouco, diminuindo as reticências
relacionadas com a arbitrabilidade de certos litígios e, em conseqüência, levando os
árbitros a resolverem questões de ordem pública em suas sentenças 3.
Nessa esteira, seguindo o exemplo francês, a prática da arbitragem internacional
reconhece, hoje, pacificamente, que “o árbitro dispõe do poder de aplicar os princípios e
as regras que remetem [à ordem pública internacional] assim como de sancionar o seu
eventual descumprimento” 4.
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Contudo, a flexibilidade conferida aos árbitros, de aplicar as normas de ordem
pública em sua sentença, possui, como contrapartida, um controle posterior pelo juiz
estatal 5. Como é comumente ressaltado, “essa eficácia internacional conferida às
sentenças pelas ordens jurídicas estatais não pode, entretanto, ser concebida sem que um
certo controle seja exercido na ocasião sobre o conteúdo da sentença e as condições em
que ela foi proferida” 6.
Ora, embora a arbitragem seja fruto de uma atividade jurisdicional, a sentença
arbitral é uma norma jurídica estrangeira ao ordenamento jurídico do Estado, cuja
introdução e permanência só são admitidas após o necessário controle de compatibilidade
entre a sentença e a ordem pública do Estado em que se pretende introduzir a sentença.
Vale dizer, a ordem pública aparece como um dos obstáculos para a inserção da sentença
arbitral num determinado ordenamento jurídico.
É importante fazer uma breve digressão para anotar que o conceito de ordem
pública assume diferentes funções dependendo da área do direito em análise. Por isso
que o Professor francês Charles Jarrosson sugere que a ordem pública não é
propriamente uma noção de conteúdo variável, mas uma noção de função variável,
podendo ser definida como “uma regra imperativa que consiste em impor um interesse que
uma vontade individual não pode derrogar” 7, independentemente da função que ela
assume nas diferentes searas do Direito. A ordem pública age, pois, como limite à
autonomia da vontade das partes.
Neste trabalho, trataremos da ordem pública material 8 em sua função de
pressuposto negativo para o reconhecimento e execução de uma sentença arbitral
estrangeira. Vale ressaltar, desde logo, que a definição do conteúdo da ordem pública
material é imprecisa 9. Em verdade, a qualificação de uma regra ou de um valor, como
sendo de ordem pública, ficará a cargo do juiz quando confrontado com o caso concreto. E
caberá a ele fazer esse controle e adequação da ordem pública sob uma ótica puramente
nacional. Vale dizer, ele checará a conformidade da sentença arbitral à sua ordem pública,
aos valores sociais, políticos, econômicos e culturais defendidos pelo ordenamento jurídico
de seu foro 10. Logo, pode-se afirmar que a ordem pública é a expressão de valores
intangíveis do foro 11.
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No caso das sentenças arbitrais estrangeiras, o controle é feito no momento em que
a sentença é trazida para integrar a ordem jurídica interna do país em que ela vai ser
executada, por meio de um pedido de homologação. É nesse momento que o juiz estatal
avaliará a compatibilidade entre a sentença arbitral e a ordem pública, ao analisar as
conseqüências decorrentes da introdução e ou da permanência da sentença arbitral no
ordenamento jurídico estatal 12.
Na França e em outros países 13 em que a “cultura arbitral” encontra-se mais
fortemente desenvolvida, as questões relativas ao controle da sentença arbitral estrangeira
à ordem pública material foram postas e analisadas com certa profundidade pela
jurisprudência e doutrina, muito embora ainda se esteja longe de encontrar um consenso.
No Brasil, ainda mais que as demais controvérsias envolvendo arbitragem, a
questão sobre a homologação da sentença arbitral estrangeira é ainda bastante incipiente.
A competência para sua homologação, antes a cargo do Supremo Tribunal Federal, foi
recentemente 14 transferida para o Superior Tribunal de Justiça, que, até o presente
momento, analisou apenas um caso de adequação da sentença arbitral estrangeira à
ordem pública material.
Contudo, o tema é de grande interesse. A arbitragem tem se desenvolvido com
notável vigor no Brasil, conferindo a segurança necessária para que as empresas
brasileiras recorram, cada vez mais, à arbitragem internacional para resolver seus litígios.
Como conseqüência, o número de demandas de homologação de sentenças estrangeiras,
bem como a complexidade dessas demandas, tem crescido vertiginosamente 15, exigindo
do STJ uma atuação cada vez mais intensa e com mais responsabilidade no processo de
desenvolvimento e consolidação do instituto da arbitragem no País.
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A questão que se coloca é, pois, como deve ser feito esse controle de adequação
da sentença arbitral estrangeira à ordem pública no Brasil? Vale dizer, qual é a noção de
ordem pública que deve ser levada em consideração pelo juiz estatal no momento da
análise? Qual a extensão dos poderes do juiz estatal? E, mais, como adequar este
controle aos princípios que embasam e garantem o sucesso da arbitragem internacional,
de forma a desenvolver a eficácia e consolidar o sucesso deste instituto no Brasil?
Para responder a essas questões, tentaremos extrair os conceitos desenvolvidos
pela prática internacional, sobretudo a francesa 16, para estabelecer os parâmetros que
devem ser adotados pelo juiz brasileiro quando confrontado com o teste de
compatibilidade da sentença arbitral estrangeira à ordem pública.
Nosso estudo compreenderá dois ramos de reflexão interligados. Primeiramente, é
necessário verificar, de forma sucinta, o conteúdo da reserva de ordem pública material
em sua função de motivo de recusa de homologação, bem como a forma com que essa
ordem pública deve ser confrontada à sentença arbitral estrangeira. Em seguida, a
questão será posta sob a ótica do juiz estatal, quando analisaremos sua conduta no
âmbito desse controle. Veremos, assim, a especificidade da noção de ordem pública no
controle da sentença arbitral estrangeira (I), antes de tentar sistematizar a extensão dos
poderes do juiz estatal nesse controle (II).
PARTE I – A ESPECIFICIDADE DA NOÇÃO DE ORDEM PÚBLICA NO CONTROLE DA
SENTENÇA ARBITRAL ESTRANGEIRA
A noção de ordem pública, que deve servir de base para o juiz estatal realizar o
controle de conformidade da sentença arbitral estrangeira, guarda peculiaridades que
foram cunhadas pela prática internacional ao longo dos anos. Para bem se compreender
essa noção e verificar como ela deve ser confrontada à sentença (B), é necessário,
primeiramente, analisar seu conteúdo (A).
a) Definição do conteúdo da ordem pública
Um bom exame do conteúdo da ordem pública demanda verificar qual a ordem
pública – interna ou internacional – deve ser levada em consideração pelo juiz brasileiro
(1), bem como analisar quais são as categorias de normas que compõem esse conceito
(2).
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1 Um conceito restritivo: a distinção entre ordem pública interna e ordem pública
internacional
Em direito comparado, doutrina e jurisprudência distinguem os conceitos de ordem
pública interna e internacional, esta última sendo considerada mais restritiva que aquela
17.
Como bem escreveu um autor, “according to this distinction what is considered to
pertain to public policy in domestic relations does not necessarily pertain to public policy in
international relations” 18.
O escopo dessa distinção é justamente restringir as frentes de negação de
homologação a uma sentença arbitral estrangeira, conferindo, assim, uma maior
segurança das relações internacionais e o consequente desenvolvimento do comércio
internacional.
A Lei Brasileira de Arbitragem, ao prever os requisitos para obtenção da
homologação, estabelece como pressuposto negativo a contrariedade à “ordem pública
nacional” 19. Apesar de o legislador brasileiro ter optado por seguir na contramão da
tendência legislativa, doutrinária e jurisprudencial verificada no direito estrangeiro, parte da
doutrina brasileira já pregava que “a noção a ser levada em conta é a de ordem pública
internacional e não de ordem pública nacional, como posto na norma” 20.
A questão ganhou novos contornos em 2002, quando o Brasil ratificou a Convenção
de Nova York. Com sua incorporação ao ordenamento jurídico interno 21, e em virtude da
aplicação do art. 34 22 da Lei Brasileira de Arbitragem, os requisitos para reconhecimento
e execução das sentenças arbitrais estrangeiras passaram a ser os previstos por esta
convenção.
A discussão estaria, então, livre de maiores controvérsias se a Convenção de Nova
York, ao prever a hipótese de controle das sentenças estrangeiras em vistas da ordem
pública material, especificasse tratar-se de ordem pública interna ou internacional.
Contudo, a redação do art. V (2) (b) 23 foi omissa e ficou a cargo da doutrina e da
jurisprudência estrangeiras delimitar seu sentido e conteúdo.
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Primeiramente, foi a doutrina que não hesitou em se inclinar
internacional e restrito do conceito de ordem pública. Nesse sentido, o
Gaillard bem ressaltou que, “embora o art. V, § 2º (b) não seja explícito, não
que o texto faça referência à ordem pública internacional do Estado de
sentença”. Segundo esse autor
pelo caráter
Professor E.
é contestável
recepção da
é, de fato, da ordem pública internacional e não da ordem pública interna que se
trata. Evidentemente, o desconhecimento de uma disposição imperativa qualquer do
Estado de recepção não seria suficiente para justificar a recusa de homologação de uma
sentença estrangeira. Apenas o desconhecimento pela sentença dos princípios
considerados no Estado de recepção como integrantes de suas convicções fundamentais,
como “dotados de um valor universal absoluto”, podem justificar um tal resultado. 24
Van Den Berg 25, por sua vez, nota que: “Considering the legislative history of
article V (2) (b), the Convention can be said to refer to ‘international public policy’ as distinct
from ‘domestic public policy’”.
Confrontados com a questão, os tribunais estatais 26 dos Estados signatários da
Convenção de Nova York concluíram no mesmo sentido que a doutrina 27.
A título exemplificativo, nos Estados Unidos, no célebre caso Parsons & Whittemore
Overseas v. Rakta, a Corte Recursal Americana do 2º Circuito deixou claro que a noção de
ordem pública da Convenção de Nova York deveria ser limitada às “noções de moralidade
e de justiça mais elementares do Estado (de recepção)” 28, afirmando ainda que a noção
de ordem pública “should be construed narrowly”.
Definição semelhante foi adotada na Suíça, pela Corte de Justiça do Cantão de
Genebra, no acórdão Léopold Lazarus Ltd. v. Chrome Ressouces S.A. que notou que a
ordem pública pressupõe “uma violação dos princípios fundamentais da ordem jurídica
suíça, ferindo de forma intolerável o sentimento de justiça” 29.
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Na Alemanha, o Tribunal de Segunda Instância de Hamburgo notou que “nem todas
as disposições imperativas do Estado de recepção são disposições de ordem pública,
sendo que estas visam apenas aos casos extremos” 30.
A França, por sua vez, assumiu a vanguarda legislativa, sendo o primeiro país a
prever expressamente que o controle deveria ser feito tomando por base a “ordem pública
internacional” 31. Com efeito, as decisões judiciais francesas, via de regra, referem-se à
sua própria lei interna, vez que o direito francês é normalmente mais liberal que a
Convenção de Nova York 32.
Sua jurisprudência, contudo, ajuda a demonstrar o caráter restrito da ordem pública
internacional. Destaque-se, nesse sentido, o entendimento da Corte de Cassação no
julgamento do célebre caso Grands Moulins de Strasbourg, que notou que “a ordem
pública francesa aplicável nas relações internacionais [...] deve ser apreciada de maneira
menos rigorosa que a ordem pública interna” 33.
Em suma, como foi ressaltado pelo relatório preliminar elaborado pela International
Law Association: “Notwithstanding the differences in the terminology in the legislation, the
case law and commentaries we have received indicate that courts of many countries apply
a concept of international public policy, which is generally regarded as more restrictive than
domestic policy” 34.
Assim, a despeito da liberdade da qual desfrutam os julgadores na definição da
ordem pública internacional, hoje em dia parece existir um consenso em direito comparado
sobre o caráter restrito com que ela deve ser analisada: são os princípios e regras de um
direito nacional que se aplicam igualmente ou especificamente às situações internacionais
35.
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A interpretação desses julgados, conjugada aos ensinamentos doutrinários, permite
afirmar que, em matéria de controle da sentença arbitral estrangeira, as regras de ordem
pública interna não são necessariamente de ordem pública internacional, enquanto que
estas últimas são necessariamente de ordem pública interna. Como conclusão silogística,
as regras que não são de ordem pública interna não podem ser de ordem pública
internacional 36.
A lição internacional parece-nos adequada para o caso brasileiro. São as regras e
princípios do direito nacional brasileiro que têm vocação para serem aplicadas nas
relações internacionais que formam a ordem pública internacional brasileira. Vale dizer, é
a concepção que o Brasil faz da ordem pública internacional que deve ser levada em
consideração.
É sob essa ótica restrita de ordem pública que o juiz estatal brasileiro deve fazer o
controle de adequação da sentença arbitral estrangeira.
Parte da doutrina chegou a cogitar que a ordem pública visada pelo art. V (2) (b) da
Convenção de Nova York era a chamada ordem pública transnacional, ou realmente
internacional 37. Essa noção, contudo, não tem sentido senão para os árbitros que, não
possuindo foro, devem respeitar as concepções transnacionais 38. Contudo, como salienta
o Professor Gaillard, “nada impede, por outro lado, cada Estado de retomar, em nome de
sua concepção da ordem pública internacional, princípios suscetíveis de pretender à
universalidade, seja espontaneamente seja para satisfazer os seus compromissos
internacionais”.
Isso posto, importa-nos fazer uma análise das normas que compõem essa
categoria restrita de ordem pública.
2 As componentes da ordem pública internacional
Como visto acima, o conceito de ordem pública assume diferentes funções. Sob a
ótica do direito internacional privado, a exceção de ordem pública é “uma noção funcional,
acarretando a evicção da lei estrangeira previamente declarada competente quando o
resultado de sua aplicação se mostra inaceitável” 39. Quando assim aplicado, o conceito
de ordem pública engloba os princípios fundamentais do foro, que se distingue e concorre
com o conceito de leis de polícia como mecanismo de evicção de lei 40.
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Por outro lado, no âmbito do controle de sentenças estrangeiras, vale dizer, na
acepção do art. V (2) (b) da Convenção de Nova York, a noção de ordem pública engloba
tanto os princípios fundamentais do foro quanto as “leis de polícia”.
Esse é o entendimento que pode, por exemplo, ser tirado da casuística francesa.
No caso LTDC c/ Reynolds 41, a Corte de Apelação de Paris afirmou que a ordem pública
internacional “se refere à concepção francesa da ordem pública internacional, isto é, o
conjunto das regras e valores dos quais a ordem jurídica francesa não pode sofrer o
desconhecimento, mesmo em situações de caráter internacional”.
A mesma fórmula foi retomada diversas vezes pela Corte, entre elas nos acórdãos
Renosol France et a. c/ Coverall North America 42, e SA Compagnie Commerciale André c/
SA Tradigrain France 43. Comentando este último acórdão 44, CCA v. Tradigrain, Seraglini
observa que “as ‘regras’ evocadas pela Corte recursal visam às leis de polícia [...], ao
passo que os ‘valores’ referem-se mais aos grandes princípios” 45.
Com base nesses acórdãos e no conjunto da prática francesa e internacional, a
Associação de Direito Internacional, em suas recomendações sobre o recurso à ordem
pública enquanto motivo de recusa de homologação das sentenças arbitrais
internacionais, definiu que
a ordem pública internacional de um Estado compreende: (i) os princípios
fundamentais, relativos à justiça e à moral, que o Estado deseja proteger, mesmo quando
ele não está diretamente envolvido; (ii) as regras destinadas a servir aos interesses
políticos, sociais ou econômicos do Estado, conhecidas sob a denominação de “leis de
polícia” ou “leis de ordem pública”; e (iii) o dever do Estado de respeitar as suas obrigações
perante outros Estados ou organizações internacionais. 46
Vale notar que a inclusão de normas imperativas na noção de ordem pública é
criticada por considerável parte da doutrina, que alega que o fato de uma regra ser
inderrogável pelas partes não significa que esta represente um interesse coletivo, não
devendo, pois, integrar a categoria de ordem pública 47.
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Razão deve ser dada a esta corrente doutrinária. O simples fato de uma norma não
poder ser afastada pela vontade das partes não significa que ela proteja valores
fundamentais da sociedade. A título exemplificativo, uma norma de trânsito é imperativa,
mas não necessariamente de ordem pública internacional 48. Além disso, incluir todas as
normas imperativas dentro do conceito de ordem pública seria confrontar com o espírito da
Convenção de Nova York que, como visto, é de restringir ao máximo o conceito de ordem
pública.
Isso posto, importa-nos analisar no que consistem os princípios fundamentais de
Estado (2.1) e as leis de polícia (2.2).
2.1 Princípios fundamentais da ordem jurídica nacional
Pode-se dizer que um princípio é fundamental “quando ele encarna um valor
constitutivo do sistema jurídico. Em outras palavras, o caráter fundamental de um princípio
está ligado à importância primordial para a ordem jurídica do valor considerado” 49. Mas o
mesmo autor faz questão de salientar que “a definição permanece imprecisa e confinada à
tautologia, pois seria fundamental um princípio encarnando um fundamento da ordem
jurídica”.
Evidentemente, a qualificação de um princípio como fundamental varia de Estado
para Estado, mas, mesmo tomada a ordem jurídica interna de um Estado, é impossível
determinar seu conteúdo exato.
É o exame feito pelo juiz estatal do sistema social, político, econômico, cultural e
religioso de seu Estado que permite verificar se um princípio é essencial ou não. Seja
como for, pode-se distinguir dentro dessa categoria, sob uma ótica acadêmica, os
princípios universalmente aceitos e os interesses próprios ao foro.
Enquanto estes últimos apresentam uma enorme diversidade de país para país, os
princípios universalmente aceitos representam os valores defendidos pela vasta maioria
dos Estados.
Pode-se mesmo afirmar que estes princípios formam o que a doutrina
convencionou chamar de ordem pública transnacional ou realmente internacional. Como
observa Lalive: “O exame da prática tanto judiciária quanto arbitral mostrou a existência de
uma grande coincidência entre o domínio da ordem pública internacional ‘clássica’ dos
Estados e a ordem pública transnacional, uma alimentando as outras e vice-versa” 50.
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No controle da sentença arbitral estrangeira, o juiz nacional não deve, porém,
analisar a questão sob a ótica transnacional, mas sim fazendo referência à sua própria
ordem pública internacional.
2.2 Leis de polícia
Por longos anos, doutrina e jurisprudência, em direito comparado, debateram se as
leis de polícia deveriam ser incorporadas ao conceito de ordem pública, em sua função de
pressuposto negativo para reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras. Hoje
existe uma certa concordância de que estas leis integram esse conceito, embora, na
prática, a forma de controle dessas leis possa variar ligeiramente de país para país.
A definição doutrinária de leis de polícia também é imprecisa. Inúmeras páginas
foram escritas sobre o tema, com diferentes proposições, classificações e exemplos 51. A
doutrina parece concordar, pelo menos, que estas leis respondem a um objetivo de
organização econômica, política ou social do Estado 52. Com efeito, a sentença que atenta
contra o objetivo de uma lei dessa natureza deve ser considerada contra a ordem pública
internacional do país.
Visto, então, que a ordem pública prevista pela Convenção de Nova York é a ordem
pública internacional, conceito este mais restrito que o de ordem pública interna e que se
compõe dos princípios fundamentais do Estado e das leis de polícia nacionais,
cumpre-nos verificar como essa ordem pública deve ser confrontada à sentença.
b) A sentença arbitral confrontada à ordem pública
Quando confrontada à ordem pública material, a homologação da sentença só
poderá ser recusada se sua execução violar, concreta e efetivamente, a ordem pública
internacional (1). Esse confronto da sentença à ordem pública possui certas nuances, em
razão da possibilidade de variação do conteúdo da ordem pública (2).
1 Apreciação concreta da violação à ordem pública
Quando demandada a homologação de uma sentença arbitral estrangeira, o juiz
estatal verificará a conformidade desta com a ordem pública material. Porém, uma
transgressão pura e simples da ordem pública não deve implicar necessariamente a
intolerância da sentença pelo sistema jurídico nacional.
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Isso porque, na medida em que a ordem pública é resultado da expressão de
valores intangíveis, exige-se uma violação concreta e efetiva aos objetivos resguardados
pela norma.
Essa exigência foi posta pela primeira vez na França, no já mencionado caso
Grands Moulins de Strasbourg. Para se entender a fundamentação da Corte Suprema
francesa, importante fazer uma digressão para se rememorar os fatos do caso. Tratou-se
de um contrato de venda de trigo celebrado em 1982 por Continentale France, como
vendedor, e Grands Moulins de Strasbourg, na qualidade de comprador, prevendo que o
benefício de qualquer montante de compensação monetária seria do devedor. Após a
desvalorização do franco francês em junho daquele ano, um “decreto ministerial” atribuiu
os montantes compensatórios aos compradores. Pouco tempo mais tarde, um
regulamento da Comunidade Econômica Européia veio instituir os montantes
compensatórios.
A sociedade Grands Moulins de Strasbourg recusou-se então a restituir ao
vendedor tais montantes, dando origem ao litígio. O Tribunal Arbitral, que tivera sede em
Londres, condenou esta sociedade a restituir as somas ao vendedor, em cumprimento às
estipulações contratuais. A sentença foi homologada na França e foi objeto de recurso por
parte da sociedade Grands Moulins de Strasbourg que, após ser rejeitada pela Corte de
Apelação de Paris, foi levada à Corte de Cassação. A Corte Suprema francesa cassou o
acórdão da Corte de Apelação sob a alegação de que o “decreto ministerial” regulamentou
imperativamente a questão e que o reconhecimento de uma sentença que modificasse
suas determinações violava a ordem pública. Vale dizer, até esse momento a Corte
assumiu a necessidade de uma mera violação formal da ordem pública, sem distinguir
entre o texto da lei e seus objetivos.
O caso, então, foi remetido à Corte de Apelação de Versalhes, que, após fazer um
exame concreto e profundo do caso, opôs-se à Corte de Cassação, ao anunciar que
não seria contrária à ordem pública internacional, tal como concebida na França, a
execução de uma sentença arbitral atribuindo montantes compensatórios à companhia
Continentale France sem violar concreta e efetivamente, nesse caso particular, os
resultados buscados e os objetivos perseguidos por uma regulamentação interna de ordem
pública; que, de fato, apenas uma violação assim caracterizada, feita a abstração de uma
violação puramente formal dessa regulamentação, traria uma desordem suficientemente
importante no equilíbrio monetário e econômico procurado e seria contrária à concepção
francesa da ordem pública internacional.
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Após novo recurso em cassação, a Corte de Cassação francesa, em 19 de
novembro de 1991, assumiu o entendimento da Corte de Apelação de Versalhes e decidiu
que a execução da sentença não feria a ordem pública internacional vez que, “tendo em
vista as circunstâncias, ela não feria efetivamente, a não ser formalmente, os objetivos
visados pelo decreto” 53.
Comentando o acórdão, Laurence Idot 54 nota que “a posição dos magistrados de
fundo consistente em considerar somente as violações concretas e não apenas formais
dos objetivos perseguidos pela regulamentação de ordem pública está aqui confirmada” e
que “essa nova atitude deve ser aprovada”.
A questão foi bem recebida pela doutrina. Jean-Baptiste Racine nota que a
apreciação concreta e efetiva de ameaça à ordem pública deve ser feita levando-se em
consideração “os resultados buscados e os objetivos perseguidos pela regra de ordem
pública” 55.
Ao analisar o tema, sob a ótica específica das leis de polícia, Seraglini 56 afirma que
o controle de adequação da sentença à ordem pública material “deve, de fato, ser
realizado com uma finalidade precisa: verificar a adequação da situação criada pela
sentença aos objetivos perseguidos pela lei de polícia”.
Em suas recomendações sobre o recurso à ordem pública como motivo de recusa
de reconhecimento e execução de sentenças arbitrais internacionais 57, a Associação de
Direito Internacional vai no mesmo sentido: “A jurisdição estatal deveria recusar a
homologação de uma sentença consagrando uma solução contrária a uma lei de polícia
integrante de seu próprio sistema jurídico apenas se [...], (ii) a homologação da sentença
atentar manifestamente contra os interesses políticos, sociais ou econômicos protegidos
por essa regra”.
Esse entendimento deve ser transposto para a prática brasileira. São os objetivos
da ordem pública e o resultado concreto de sua aplicação que devem ser levados em
consideração para se analisar uma possível violação por parte da sentença estrangeira e
não o mero conteúdo formal da lei.
Ao juiz estatal cabe, então, fazer um estudo do objetivo da regra e contrapô-lo à
sentença arbitral estrangeira a que se pretende dar efeitos no Brasil. Decorre desse
conceito que a não-aplicação, a má-aplicação ou mesmo a violação pelo árbitro de uma
regra de ordem pública, não implicam automaticamente contrariedade à ordem pública. É
necessário haver uma violação substancial da regra em questão.
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Essa solução nos parece compatível não só com o benefício que deve se dar à
instituição da arbitragem, mas também com o espírito da exceção de ordem pública
material. Isso posto, é possível ainda se indagar como deve ser feita a análise de
conformidade, caso haja uma variação no conteúdo da norma de ordem pública.
2 O confronto em casos de variação do conteúdo da ordem pública
A ordem pública, que serve de base para o controle da sentença, está sujeita a uma
variação no tempo (2.1) e no espaço (2.2).
2.1 Momento de apreciação da adequação da sentença à ordem pública
A variação do conteúdo da ordem pública levanta à seguinte indagação: em caso
de modificação do seu conteúdo, em qual momento deve o juiz estatal se colocar para
apreciar a adequação à ordem pública: o momento de constituição da sentença ou o
momento em que ele julga?
Ora, como foi dito acima, as regras de ordem pública possuem um conteúdo
variável, seus conceitos mudam para se ajustar aos valores morais, éticos, econômicos
etc. que se visa proteger em um determinado momento. Essa adequação não resulta
necessariamente em leis positivadas 58; podem ser apenas reflexo da cultura dominante
no momento analisado. A questão, pois, é de suma importância para bem se analisar
como deve ser entendida a noção de ordem pública no momento do controle da sentença
arbitral estrangeira.
A resposta geral a esta indagação é de que o juiz deve levar em conta a ordem
pública no seu estado atual. É o que a doutrina chama de princípio da atualidade da
ordem pública. Como ensina o Professor Fouchard 59, “a concepção da ordem pública
internacional com base na qual a sentença deve ser controlada é a que é recebida no
momento em que a sentença é submetida ao controle” 60.
No âmbito jurisprudencial, essa fórmula foi posta também no caso Grands Moulins
de Strasbourg. O acórdão da Corte de Apelação de Versalhes, de 2 de outubro de 1989,
afirmou que “a ordem pública internacional somente deve ser levada em consideração no
momento da homologação da sentença arbitral”.
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Assim, não importa a data em que a sentença foi proferida, mas, sim, a data em
que sua homologação é demandada. Com efeito, uma sentença que, no momento em que
proferida, é conforme a ordem pública internacional de certo país, pode tornar-se contrária
na data do seu pedido de homologação 61, tal como o contrário também é possível.
Ora, nada mais natural: o controle da sentença, em vistas da ordem pública
material, tem por objetivo justamente assegurar que as regras e valores fundamentais
vigentes do foro não sofram lesão em decorrência da inserção da sentença em sua ordem
jurídica. Não haveria razão para se fazer essa análise baseada em valores e regras 62 que
não mais correspondem aos sentimentos de justiça e/ou aos princípios fundamentais de
uma sociedade.
Embora a questão, assim colocada, possa parecer simples, alguns autores
destacam que o princípio não deve ser entendido de forma absoluta. Pierre Mayer 63 nota
que, em certos casos de aumento do conteúdo da ordem pública, é possível que o
legislador queira respeitar o direito adquirido. Nesses casos, segundo esse autor, “nada
mais fácil de determinar: basta consultar as medidas transitórias internas”.
Seja como for, o princípio de atualidade de ordem pública deve ser aplicado pelo
juiz brasileiro quando do controle de adequação da sentença arbitral estrangeira à ordem
pública material.
2.2 Variação no espaço (efeito atenuado da ordem pública)
Além da variação no tempo, as exigências de ordem pública material podem variar
também em força. Trata-se do efeito atenuado 64 da ordem pública. Segundo a doutrina
internacional privatista, quando os direitos evocados forem regularmente adquiridos no
estrangeiro, a exceção de ordem pública deve ser aplicada de forma menos rigorosa 65.
Diz-se que se “o efeito perturbador para a ordem jurídica do foro é objetivamente
reduzido, desde que os direitos tenham sido adquiridos sem fraude” e “a recusa de
homologação poderia apresentar mais inconvenientes do que a própria homologação” 66,
a ordem pública deve ser atenuada para admitir o reconhecimento dos direitos invocados.
Com efeito, à medida que uma situação jurídica afasta-se de um ordenamento estatal,
atenua-se o conteúdo da ordem pública 67.
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Esse temperamento é admitido pela preocupação doutrinária e jurisprudencial de
“respeitar os direitos regularmente adquiridos no exterior, visto que sua negação criaria
necessariamente situações jurídicas precárias e conduziria, desta forma, a dificuldades
inextricáveis quando da resolução concreta dos interesses contraditórios em causa” 68.
O conceito abrange, especialmente, os casos em que a pretensão de um cidadão
se apóia num julgamento estrangeiro, vez que o direito adquirido, que pleiteia
reconhecimento ou execução, decorre da intervenção de um juiz estatal, após um
processo formal regularmente conduzido.
A doutrina francesa, contudo, enxerga com maus olhos a transposição dessa regra
de direito internacional privado para a prática arbitral. Os autores criticam a prática de
verificar se o litígio guarda vínculo com o foro, para concluir, como fizeram Fouchard,
Gaillard e Goldman 69, que “a noção de efeito atenuado da ordem pública não tem lugar
no direito da arbitragem internacional”.
Isso porque, como explica Fadlallah: “O lugar da arbitragem é muitas vezes
significativo e não seria compreensível que a ordem pública fosse mais exigente no país
onde a sentença foi proferida do que naquele onde a homologação é pedida” 70.
A doutrina francesa parece novamente adequada para a prática brasileira. Não se
deve atenuar os efeitos da ordem pública quando da homologação de sentença arbitral
estrangeira no Brasil.
Uma vez delimitada a especificidade da noção da ordem pública material – que
deve ser levada em consideração pelo juiz estatal brasileiro para fazer o controle de
adequação da sentença arbitral estrangeira –, importa-nos analisar a extensão de seus
poderes.
PARTE II – A EXTENSÃO DO CONTROLE DO JUIZ
Para delimitar a real extensão dos poderes do juiz brasileiro no controle de
adequação das sentenças arbitrais estrangeiras à ordem pública material, é necessário
verificar as incertezas que pairam na doutrina e jurisprudência internacionais (A). A análise
destas nos conduz a interrogar se a aplicação da exceção de ordem pública, na forma
como ela é mais comumente realizada, atende ou não ao espírito da norma prevista na
Convenção de Nova York (B).
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a) A incerteza doutrinária e jurisprudencial
Apesar do estado avançado da discussão em direito comparado, doutrina e
jurisprudência internacionais divergem sobre a extensão que deve ser conferida aos
poderes do juiz no controle de adequação da sentença arbitral à ordem pública material.
Enquanto uma parte, hoje majoritária na jurisprudência, defende um controle meramente
formal da sentença (1), uma outra corrente defende um controle efetivo, outorgando
poderes totais ao juiz estatal (2).
1 Os fundamentos para um mero controle da aparência de conformidade da
sentença à ordem pública
Faremos, primeiramente, uma apresentação dos conceitos da corrente minimalista
para, em seguida, vermos brevemente o alcance e conseqüências advindas dessa prática.
1.1 Apresentação da concepção minimalista do controle
A concepção minimalista do controle tem por premissa que o princípio da proibição
da revisão ao fundo da sentença deve ser considerado como um limite ao poder do juiz de
analisar a existência de uma violação à ordem pública 71. Essa concepção é, hoje em dia,
majoritária na jurisprudência, que limita o controle do juiz à aparência de conformidade da
sentença à ordem pública material.
Na França, como visto, o reconhecimento ou a execução de uma sentença não
devem ser contrários à ordem pública internacional 72. Interpretando esta disposição legal,
os tribunais franceses cunharam o entendimento de que é a solução do litígio estabelecida
na sentença que deve ser levada em consideração para apreciar a conformidade da
sentença à ordem pública 73. Vale dizer, a “solução não deve ferir a ordem pública” 74.
No caso Martra 75, o Tribunal Arbitral havia decidido que o contrato celebrado entre
as sociedades Martra e Alkan era lícito sob a ótica do direito concorrencial. A sociedade
Martra, então, recorreu ao Poder Judiciário, buscando a anulação da sentença arbitral, sob
a alegação de que o Tribunal Arbitral violara o direito concorrencial francês, regra esta
alegadamente de ordem pública. A Corte de Apelação rejeitou o argumento, afirmando
que, “supondo que a interpretação dada pelo árbitro do contrato seja contrária à ordem
pública, a nulidade da sentença somente poderia ser pronunciada se a própria solução
adotada sobre o fundo pelo árbitro ferisse a ordem pública”.
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No acórdão Aplix 76, a solução foi estendida, também, à arbitragem internacional.
Em 1977, a sociedade Velcro informara, à sua licenciada Aplix, que o contrato de licença
teria fim, em virtude da expiração de validade das patentes, e que, após essa data, Aplix
não mais poderia utilizar a marca Velcro. Em 1985, a Comissão de Comunidades
Européias decidiu que a cláusula de exclusividade estipulada no contrato era nula.
Sobrevieram o litígio e a sentença, que rejeitou a demanda de perdas e danos que fora
formulada por Aplix, em decorrência da interdição de uso da marca Velcro, interdição esta
declarada nula. Aplix, descontente, contestou a validade da sentença arbitral, sob o
fundamento de violação da ordem pública material. A Corte de Apelação, reafirmando as
decisões anteriores, decidiu que:
O controle da Corte, exclusivo de todo poder de revisão ao fundo da sentença
arbitral, deve incidir, não sobre a apreciação que os árbitros fizeram dos direitos das partes
a respeito das disposições de ordem pública invocadas, mas sobre a solução dada ao
litígio, sendo que a anulação só ocorre se essa solução ferir a ordem pública.
Mais, a Corte acrescentou expressamente que os árbitros “fizeram uma
interpretação das cláusulas do contrato, fugindo ao controle da Corte”.
O acórdão Danton Défense 77 também ajudou a cunhar a concepção minimalista.
As sociedades Cotelle, Bella et Delpha, de um lado, e Danton Défense, de outro, haviam
celebrado uma promessa de compra e venda de um empreendimento imobiliário. Ao
exercer seu direito de opção, a sociedade Danton Défense decide por não adquirir a
propriedade e, após procedimento arbitral, é condenada a pagar as somas previstas no
contrato. Esta sociedade, então, ingressa com um recurso em anulação sob a alegação de
que os árbitros haviam ferido uma regra de ordem pública, por ter dado força a uma
convenção pretendida ilícita. A Corte de Apelação, encarregada do recurso, anuncia que
a anulação de uma sentença por violação pelos árbitros de uma regra de ordem
pública não se estende ao caso em que é alegada a desnatura-ção dos atos submetidos
aos árbitros, e o controle da Corte de Apelação [...] não incide sobre a qualificação que os
árbitros soberanamente deram das convenções vinculando as partes.
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Também no caso CCA 78, a Corte de Apelação precisou que
a apreciação [da ordem pública internacional] deve ser concreta, sendo que o
controle deve incidir não sobre a apreciação que os árbitros fizeram dos direitos das partes
quanto às disposições de ordem pública invocadas, mas sobre a solução dada ao litígio,
visto que a anulação da sentença só incorre se a sua execução ferir a concepção francesa
da ordem pública internacional.
Recentemente, a Corte de Apelação de Paris reiterou esses entendimentos no
acórdão talvez mais significativo sobre o tema. O caso tratou de dois contratos celebrados
entre as sociedades Thalès e Euromissile 79. O primeiro, em 1991, era um protocolo de
acordo relativo à fabricação de um míssil. Em 1992, um contrato de licença conferiu à
empresa Euromissile exclusividade sobre a fabricação e a venda desse míssil. Em 1998,
Thalès demanda a Euromissile que faça uma proposta para o governo grego para a venda
do míssil. As partes não encontram uma base comum de acordo; Thalès decide notificar a
Euromissile a rescisão unilateral do contrato de licença, em virtude do descumprimento de
uma obrigação contratual prevista no protocolo de acordo. Segundo a empresa Thalès, os
dois contratos formavam um todo indivisível. Um tribunal arbitral é constituído para
apreciar o fundamento dessa rescisão, o qual condena Thalès a pagar uma indenização
por rescisão culposa do contrato de licença. Thalès, então, ingressa com recurso de
anulação contra a sentença sob o fundamento de que esta violaria o direito comunitário da
concorrência, sendo este de ordem pública. A Corte declara que “a violação da ordem
pública internacional, no sentido do art. 1.502-5 do novo Código de Processo Civil, deve
ser flagrante, efetiva e concreta”. Tomando a expressão utilizada pela Corte, o controle
deve ser limitado àquilo que “salta aos olhos”.
A jurisprudência francesa parece ter firmado definitivamente este entendimento.
Após o acórdão Thalès, pelo menos dois outros acórdãos – BVBA 80 e Varassedis 81 –
foram proferidos retomando a concepção minimalista do controle.
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Nos Estados Unidos, a questão também foi pretensamente examinada no acórdão
Mitsubishi 82. A Suprema Corte dos Estados Unidos, ao analisar uma demanda
envolvendo o direito antitruste americano, cunhou a chamada doutrina do second look,
segundo a qual as Cortes americanas podem, por ocasião da demanda de homologação,
analisar se os pleitos envolvendo normas de ordem pública foram analisados na sentença.
Contudo, a Corte ressaltou, indiretamente, que o controle deve permanecer mínimo.
Segundo a Corte:
Having permitted the arbitration to go forward, the national courts of the United
States will have the opportunity at the award enforcement stage to ensure that the
legitimate interest in the enforcement of the antitrust laws has been addressed [...]. While
the efficacy of the arbitral process requires that substantive review at the
award-enforcement stage remain minimal, it would not require intrusive inquiry to ascertain
that the tribunal took cognizance of the antitrust claims and actually decided them.
O direito suíço, que reconhecidamente abraça concepções liberais em matéria de
arbitragem, seguiu a mesma tendência. O Tribunal Federal suíço apresentou a regra
segundo a qual
a sentença atacada será anulada apenas se o resultado que ela provocar for
incompatível com a ordem pública [...]. Não basta, portanto, que seus motivos o sejam; é
preciso também que se chegue à mesma conclusão quanto ao seu dispositivo. 83
1.2 O alcance da regra
Essas soluções que cunharam a concepção minimalista do controle de adequação
da sentença arbitral estrangeira à ordem pública material reforçam que o árbitro continua
sendo o juiz soberano do litígio. Segundo esta concepção, incumbirá ao árbitro – e
somente a ele – apreciar os elementos fáticos e jurídicos da demanda e, em seguida,
decidir o litígio. A violação da ordem pública só poderá ser sancionada quando ela
aparecer na própria sentença. É, então, meramente “a aparência da conformidade da
sentença à ordem pública” 84 que será controlada.
Com efeito, a motivação errônea de uma sentença não pode, sozinha, conduzir a
uma recusa de homologação. Além disso, como ao juiz é proibido verificar a qualificação e
a interpretação do contrato feitas pelo árbitro, ele não poderá controlar uma eventual
desnaturação do contrato na sentença arbitral 85.
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Assim, seguindo tal corrente, a sentença poderá ser sancionada apenas se, após
os árbitros terem decidido colocar o contrato na categoria dos que são submetidos às
regras de ordem pública, eles deixarem de aplicar tais regras 86. Por outro lado, se os
árbitros qualificaram erroneamente o contrato e, conseqüentemente, deixaram de aplicar
uma norma de ordem pública, a sentença não poderá ser sancionada.
Yves Derains resume o alcance da concepção minimalista, ao analisar a
jurisprudência francesa. Segundo este autor,
ao recusar-se a controlar a interpretação pelos árbitros das convenções das partes,
ao tomar por adquiridos os elementos de fato ou de direito que eles retiveram, as
jurisdições francesas se abstêm deliberadamente de verificar se uma regra de ordem
pública eventualmente aplicável foi corretamente aplicada aos fatos da espécie. 87
Algumas decisões de justiça, e uma boa parte da doutrina, tacham essa concepção
minimalista de insuficiente para o controle de conformidade da sentença à ordem pública.
Trata-se da corrente maximalista do controle.
2 A defesa de um controle efetivo: apresentação da concepção maximalista do
controle
Segundo a concepção maximalista do controle, o controle de conformidade da
sentença à ordem pública material deve ser efetivo, não apenas aparente. Essa corrente
defende que o juiz pode verificar a pertinência do conjunto do raciocínio realizado pelo
árbitro, vale dizer, analisar todos os elementos de fato e de direito relacionados não só à
aplicabilidade da regra de ordem pública, mas também à sua correta aplicação 88.
Na França, o primeiro acórdão que sinalizou neste sentido foi proferido no caso do
Plateau des Pyramides. Tratou-se de caso em que uma empresa de Hong Kong chamada
South Pacific Properties (SPP) havia concluído um primeiro contrato, intitulado Heads of
agreement, com o Ministério do Turismo do Egito e com a Organização Geral do Egito
para Turismo e Hotéis (Egoth), que previa a criação de uma joint venture para desenvolver
dois complexos hoteleiros, um dos quais próximo às pirâmides. O Heads of agreement não
possuía cláusula arbitral, mas um segundo contrato, assinado entre SPP e Egoth, possuía.
O ministro do turismo, embora não fosse parte no contrato, apostou sua assinatura e
acrescentou as palavras “approved, agreed and ratified”. Depois que o projeto foi
cancelado, um tribunal arbitral constituído segundo as regras da CCI proferiu uma decisão
condenando a República do Egito a pagar uma indenização em favor de SPP. Segundo o
tribunal arbitral, o ministro do turismo, ao apostar sua assinatura no contrato, tinha
comprometido o Estado do Egito a participar da arbitragem. A Corte de Apelação de Paris,
contudo, entendeu que ele tinha intervindo apenas na sua condição de supervisor em
relação a Egoth, posição esta posteriormente ratificada pela Corte de Cassação.
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A questão colocada à apreciação da Corte de Cassação não versava, pois,
propriamente sobre o controle da sentença arbitral em vistas da ordem pública material,
mas sim sobre o controle da existência de uma convenção de arbitragem válida. A Corte
de Cassação enunciou que
se a missão da Corte de Apelação, competente em virtude dos arts. 1.502 e 1.504
do novo Código de Processo Civil, está limitada ao exame dos vícios enumerados nesses
textos, nenhuma limitação é levada ao poder dessa jurisdição de procurar todos os
elementos de fato e de direito referentes aos vícios em questão; que, sobretudo, cabe a ela
interpretar o contrato para ela própria apreciar se o árbitro estatuiu sem convenção de
arbitragem. 89
Parte da doutrina criticou fortemente essa solução da Corte de Cassação, sob o
fundamento de que sua extensão colocaria em risco a proibição de revisão 90. Por outro
lado, uma outra corrente acolheu com bons olhos a posição da Corte, propondo inclusive
uma extensão de sua solução para as questões envolvendo o controle da arbitrabilidade
do litígio 91.
Seja como for, a redação do acórdão, ao se referir a todos os vícios enumerados
pelos arts. 1.502 a 1.504 do NCPC Francês, leva a crer que a solução deve ser estendida
também para o controle de conformidade da sentença arbitral à ordem pública material 92.
De qualquer forma, a possibilidade de um controle total por parte do juiz, no
momento da análise da adequação da sentença arbitral à ordem pública material, foi posta
em pelo menos dois casos significativos.
No acórdão Westman 93, a Corte de Apelação de Paris foi explícita na defesa da
corrente maximalista do controle de adequação da sentença arbitral à ordem pública
material. A sentença arbitral julgara válido um contrato celebrado entre a sociedade
inglesa, Westman, e a sociedade francesa, European Gás Turbine, com vistas à
conclusão de um contrato no Irã. Inconformada, a sociedade francesa interpôs um recurso
em anulação perante a Corte de Apelação de Paris, alegando que a sentença arbitral era
contrária à ordem pública material francesa, na medida em que “a decisão dava efeito a
um contrato que tinha por causa e por objeto o exercício de um tráfico de influência ou o
pagamento de propinas”.
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A Corte de Apelação de Paris afirmou então que:
O poder reconhecido, em matéria de arbitragem internacional, ao árbitro de apreciar
a licitude de um contrato em relação às regras pertinentes à ordem pública internacional e
de sancionar a sua ilicitude, pronunciando, em particular, a sua nulidade, implica, no âmbito
de um recurso em anulação fundado na contrariedade da homologação à ordem pública
internacional, um controle de sentença pelo juiz da anulação, incidindo sobre todos os
elementos de fato e de direito que permitem especialmente justificar a aplicação ou não da
regra de ordem pública internacional e, em caso afirmativo, de apreciar, quanto a esta, a
licitude do contrato.
Segundo a Corte de Apelação de Paris, uma solução contrária “acabaria, de fato,
privando o controle do juiz de qualquer eficácia e, com isso, de sua razão de ser”.
A motivação adotada pela Corte de Apelação de Paris, neste acórdão, ajudou a
estabelecer o alcance da concepção maximalista, segundo a qual o poder reconhecido ao
árbitro de aplicar as regras de ordem pública internacional, leva a um controle reforçado do
exercício desse poder. Este controle pode ser realizado em fato e em direito sobre todos
os elementos do litígio, e serve para verificar a aplicabilidade da regra de ordem pública e
sua correta aplicação pelo Tribunal Arbitral.
Loquin resume perfeitamente essa concepção indicando que
o controle do respeito pelo árbitro da ordem pública implica um exame de todos os
elementos de fato e de direito dos quais dependem a aplicação ou a não aplicação da regra
de ordem pública pertinente, o que impõe um controle tanto da interpretação como da
qualificação da convenção litigiosa. 94
Seraglini 95, por sua vez, nota que “o controle deve ser eficaz e implica, portanto,
um certo exame ao fundo da sentença. Mais exatamente, seria necessário falar de um
exame ao fundo do ‘litígio’ submetido aos árbitros”.
Mais recentemente, no caso Thomson CSF 96, a Corte de Apelação de Paris
retomou a solução adotada no caso Westman, afirmando que o juiz pode “fazer uma
apreciação de todos os elementos de fato e de direito que permitem especialmente
justificar a aplicação da regra de ordem pública internacional e, em caso afirmativo, de
avaliar, em relação a esta, a licitude do contrato”.
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A extensão dos poderes do juiz estatal no controle de adequação da sentença
arbitral estrangeira à ordem pública material é, pois, objeto de uma grande incerteza
doutrinária e jurisprudencial em direito comparado. Adotar-se a concepção minimalista do
controle é, contudo, colocar em risco a eficácia da exceção de ordem pública.
b) A exceção de ordem pública material: um conceito em perigo?
Veremos, em primeiro lugar, que adotar a concepção minimalista como método de
controle da adequação da sentença arbitral à ordem pública material coloca em risco a
eficácia de tal controle (1). Todavia, uma solução que atenda aos objetivos da norma pode
ser proposta (2).
1 A visão minimalista: uma concepção inquietante
Como visto, a jurisprudência em direito comparado, apesar das divergências, hoje
tende a admitir que o controle de conformidade da sentença à ordem pública material não
pode se estender à forma com que o árbitro aplicou as disposições de ordem pública,
tampouco à análise de uma eventual desnaturação do contrato. A razão de ser desses
limites é, segundo essa concepção minimalista, assegurar a eficácia do sistema arbitral,
ao garantir a autoridade dos árbitros e evitar que a sentença por eles proferida seja
colocada em discussão de forma leviana.
Contudo, essa solução não nos parece adequada, nem aos objetivos das leis, que
instituem a exceção de ordem pública material como pressuposto negativo para
homologação de uma sentença arbitral estrangeira, tampouco ao desenvolvimento e
segurança que se visa dar ao instituto da arbitragem.
O controle, tal como concebido pela Convenção de Nova York e pela maioria das
legislações internacionais, serve para checar a adequação da sentença arbitral estrangeira
aos valores sociais, políticos, econômicos, culturais e religiosos erigidos à condição de
essenciais pelos princípios fundamentais do foro e pelas leis de polícia. Em outras
palavras, a reserva de ordem pública material tem por “função permitir ao juiz da
homologação assegurar-se de que o conteúdo da sentença seja compatível com as
concepções fundamentais do direito do Estado requisitado” 97.
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RBAr Nº 20 – Out-Dez/2008 – DOUTRINA NACIONAL
Ora, como é possível fazer, na prática, um controle do respeito aos valores
protegidos pelas normas de ordem pública, sem analisar os fatos litigiosos e a forma com
que o direito lhes foi aplicado? A regra de direito tem, por essência, um caráter hipotético.
Sua aplicação implica, necessariamente, a reunião e a caracterização de certos fatos. Não
há, pois, como se fazer um controle de adequação da sentença arbitral estrangeira à
ordem pública material sem analisar em fatos e em direito os elementos da demanda.
Como bem colocado pelo Professor Bollée 98: “Um tal ponto de equilíbrio é simplesmente
inconcebível, pelo simples motivo de que os termos da equação são, por si sós,
irredutivelmente antagonistas: não se pode fazer, ao mesmo tempo, uma coisa – controlar
o fundo – e seu contrário – não examinar o fundo”.
A casuística francesa é um ótimo exemplo para se verificar essa contradição de
atitude. Tomando-se apenas um caso como exemplo, o célebre acórdão Thalès,
decidiu-se que a violação à ordem pública deveria ser flagrante, efetiva e concreta, ou
seja, adotando a concepção minimalista do controle da sentença, a Corte de Apelação de
Paris decidiu que o juiz estatal não poderia fazer uma análise dos fatos e direito. Contudo,
a motivação adotada pela Corte é, no mínimo, curiosa.
A sociedade Thalès demandava a violação à ordem pública internacional ao fundo
em razão do descumprimento pelos árbitros de sua obrigação de ressaltar, de
ofício, a nulidade dessas disposições ilícitas, e por ter dado, desta maneira, efeito a um
contrato contrário à ordem pública internacional, ordenando a reparação de um prejuízo
ilícito consistente em atribuir à Euromissile o benefício da repartição dos mercados, o
montante das indenizações atribuídas, que foi diretamente determinado por referência a
esta.
Ao decidir pela ausência de violação à ordem pública, a Corte ressaltou
que convém constatar que, se a empresa Thalès afirma que o caráter ilícito dos
acordos contratuais “salta aos olhos”, esse não foi o caso desde a época da negociação e
da assinatura dos contratos até o momento em que a sentença final foi pronunciada, assim
como não foi o caso da Euromissile ou do Tribunal Arbitral, nem tampouco o da Corte
internacional de arbitragem da CCI, da qual sabe-se que, de acordo com o seu
regulamento, as sentenças lhe são submetidas como projeto, no intuito de verificar a sua
validade.
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A Corte de Apelação de Paris foi, inclusive, um pouco além, afirmando ainda que
a empresa Thalès pode ter acesso aos serviços dos profissionais do direito de sua
escolha [...] em relação aos quais, não se pretende que eles não fossem qualificados para
fornecer as prestações exigidas numa arbitragem internacional, inclusive as de explicar ao
cliente as violações manifestas da ordem pública internacional alegadas, que também não
se pretende que os árbitros designados pelas partes [...] e o presidente escolhido por estes
[...] fossem particularmente inexperientes, que não se pretende tampouco que o sistema de
arbitragem eleito pelas partes, o da CCI, não tenha sido concebido ou adaptado à
resolução de um litígio internacional da complexidade deste que opõe as empresas Thalès
e Euromissile.
Ora, por que fazer referência às atitudes fáticas das partes para justificar a
adequação da sentença à ordem pública material, se é a mera solução adotada pela
sentença que deve ser levada em consideração?
A Corte afirmou ainda que:
Antes de poder determinar, como deseja a sociedade Thalès, que as restrições
denunciadas têm por objeto atentar contra a concorrência, faz-se necessário examinar os
fatos sobre os quais se sustenta o acordo das partes assim como as circunstâncias
específicas de seu funcionamento, as restrições proibidas nas linhas diretrizes e
comunicações dando, por exemplo, uma indicação daquilo que constitui restrições por
objeto; [...] que se o acordo não tem por objeto restringir o jogo da concorrência, convém
verificar se é da sua natureza produzir efeitos negativos sobre os preços, a produção, a
inovação ou a diversidade ou qualidade dos produtos, a posição de mercado das partes,
dos compradores e dos concorrentes, [...], a existência de concorrentes potenciais e o nível
das barreiras à entrada, o caráter necessário e proporcional das restrições acessórias.
A contradição da Corte é evidente. De um lado, ela aduz estar impedida de analisar
os fatos da demanda, e, de outro, ela ressalta que, para uma análise adequada da
conformidade da sentença à ordem pública material, faz-se necessário uma análise
profunda do conjunto dos fatos pertinentes! De fato o é, não há como avaliar a adequação
da sentença à ordem pública sem apreciar os elementos de fato e sem rever,
eventualmente, a apreciação que deles fizeram os árbitros. Fechar as portas para essa
possibilidade é tornar inócuo o controle da sentença à ordem pública material. Por isso
que Alexis Mourre 99, ao analisar o acórdão Thalès, entende que: “Constata-se, após
exame, que o controle da ordem pública de fundo é, na maioria dos casos, afastado em
nome da interdição da revisão”.
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É lícito afirmar, então, que o controle exercido, segundo a concepção minimalista,
atenta à própria segurança da arbitragem. Basta verificar que, segundo esta concepção,
quando um árbitro a qualificou erroneamente em contrato e, com isso, deixou de aplicar
uma regra de ordem pública, a sentença não pode ser sancionada, dando ensejo a toda
sorte de desvios. Por exemplo, se o árbitro declara que o acordo que afeta a concorrência
tem efeitos sobre o território de um determinado país, mas recusa-se a aplicar o direito de
concorrência desse país, ele pode ser objeto de controle. Por outro lado, se o árbitro
declara que, na verdade, esse acordo não tem implicações concorrenciais, ele estará,
segundo a concepção minimalista, isento de qualquer sanção, já que o juiz não poderá
verificar a fundamentação desta decisão 100. Também, em matéria de corrupção, o juiz
estatal deve poder apreciar, ele mesmo, se houve pagamento de propinas. Se adotada a
concepção minimalista, o juiz somente poderia sancionar uma sentença se o árbitro, após
notar a existência de prática de corrupção, deixasse de sancioná-la. Ora, evidente que o
juiz estatal deve ter a possibilidade de condenar uma sentença que deu efeito a um
contrato prevendo corrupção, ainda que os árbitros entendam não ser o caso 101. Negar
essa possibilidade é abrir as portas para que a arbitragem perca respeito e confiabilidade.
Assim, por qualquer dos ângulos que se analise a questão, verifica-se que é
impossível fazer um controle efetivo da adequação da sentença arbitral estrangeira à
ordem pública material, sem poder se fazer uma apreciação extensa das circunstâncias da
causa. Como outrora havia notado a Corte de Apelação, não atribuir ao juiz o poder de
apreciar, quanto aos fatos e ao direito, a conformidade da sentença à ordem pública
“acabaria, de fato, privando o controle do juiz de toda eficácia e, com isso, de sua razão de
ser” 102.
O controle meramente formalista, como proposto pela corrente minimalista,
significa, na verdade, uma ausência de controle, que, ao contrário de assegurar a eficácia
à arbitragem, dá ensejo a todo tipo de desvio. Assim sendo, o controle aparente da
sentença atenta não apenas ao escopo da exceção de ordem pública na forma como
prevista pela Convenção de Nova York, mas também à segurança jurídica das partes e,
conseqüentemente, ao instituto da arbitragem. É possível, todavia, tal como proposto pela
concepção maximalista, conceber uma solução que se mostre apropriada ao espírito da
reserva de ordem pública material.
2 A solução apropriada ao espírito da exceção de ordem pública material
A concepção minimalista é, enquanto solução de direito comum, adequada ao
espírito pró-arbitragem e deve, conseqüentemente, permanecer a regra. Aplicada ao
controle do respeito da ordem pública pela sentença, a solução não é, entretanto,
satisfatória. Isso se deve em razão do caráter fundamental dos valores protegidos pelas
normas de ordem pública 103, cuja vigilância erige como um dever do juiz estatal.
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Com efeito, o impulso generalizado em favor da arbitrabilidade dos litígios,
agregado ao reconhecimento do poder do árbitro de aplicar essas regras de ordem pública
de sancionar a conduta das partes que estiverem em desacordo com tais regras, traz,
como contraprestação, uma possibilidade de um controle aprofundado do exercício desses
poderes.
Para que esse controle seja efetivo, ele deve portar sobre a aplicação feita pelo
árbitro de uma regra ou princípio de ordem pública internacional, bem como sobre a
má-aplicação de uma tal norma 104. Por isso que deve ser dito com Fouchard, Gaillard e
Goldman 105 que
a natureza do controle exercido leva a concluir pela total liberdade de apreciação
das circunstâncias da causa, quanto aos fatos e ao direito, pelas jurisdições encarregadas
de exercê-la. Esse controle é, de fato, a contrapartida necessária da atitude liberal
manifestada pelos tribunais sobre a arbitrabilidade dos litígios e não seria compreensível
que a confiança por princípio atribuída aos árbitros que constituem o fundamento dessa
atitude liberal não esteja acompanhada de um controle ulterior da sentença, que não
permitisse aos árbitros escapar de toda censura motivando habilmente a sua decisão de
fato.
Essa é a lição que deve ser importada da experiência francesa e internacional para
a prática brasileira. Para que o controle de adequação da sentença arbitral estrangeira à
ordem pública material realizado juiz brasileiro seja real e efetivo, o juiz estatal deve
substituir inteiramente o árbitro na apreciação tanto do direito quanto do fato, podendo
mesmo rever a qualificação deles feita pelo árbitro. Pode, inclusive, fazê-lo de ofício 106,
mesmo em casos em que a homologação da sentença não é contestada pela parte
adversa.
Assim, retomando as concepções definidas na Parte I do presente trabalho, o juiz
brasileiro deverá checar se a sentença arbitral estrangeira está em conformidade com os
resultados procurados e se os objetivos perseguidos pelas regras e valores que
constituem a concepção brasileira de ordem pública internacional, vigente no momento da
demanda de homologação, podem livremente apreciar as circunstâncias da causa, tanto
em fato quanto em direito. Essa solução nos parece a única adequada ao espírito da
exceção de ordem pública, prevista na Convenção de Nova York e, conseqüentemente,
pelo ordenamento jurídico brasileiro.
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No único caso que se tem notícia de que o Superior Tribunal de Justiça brasileiro
realmente analisou a conformidade de uma sentença arbitral estrangeira à ordem pública
brasileira, ele adotou uma postura semelhante para afastar a alegação de ofensa à ordem
pública feita pela parte demandada. Tratou-se de arbitragem realizada segundo as regras
CNUDCI que condenou a empresa Fonseca Almeida Representações e Comércio Ltda.
(Farco) a pagar indenização para a empresa Thales Geosolutions Inc. O pedido de
homologação foi contestado pela Farco sob o argumento de que sentença arbitral seria
nula por afrontar a ordem pública brasileira, vez que os árbitros não teriam respeitado
direitos indisponíveis da União, ao deixar de aplicar a lei nacional. Os juízes brasileiros
então, para analisar tal alegação, verificaram os fatos colocados pelas partes aos árbitros,
bem como o conjunto de seu raciocínio, antes de concluir pela conformidade da sentença
à ordem pública brasileira ao fundo. Como bem notado por M. Wald: “A cuidadosa análise
dos fatos e do próprio texto da decisão homologanda, com o intuito de afastar quaisquer
dúvidas acerca da existência, ou não, de ofensa à ordem pública, se identificam com a
posição pró-arbitragem que se verifica atualmente no STJ” 107.
Vale ressaltar que não se trata de pregar uma revisão da sentença – até porque
esse controle alargado deve continuar sendo a exceção e ser usado com parcimônia pelo
juiz estatal, partindo sempre de uma presunção de validade da sentença arbitral – mas,
simplesmente, tornar real e efetiva a opção legislativa feita pelos países signatários da
Convenção de New York em manter um controle de adequação da sentença arbitral
estrangeira à ordem pública material.
Para concluir, como observa o ilustre Professor Goldman, o árbitro tem, é claro, “o
direito de errar, e não é porque ele errou que se deve anular a sentença” 108, mas um erro
de direito que cause uma contrariedade à ordem pública deve, sim, ser sancionado.
CONCLUSÃO
A idéia de que à sentença arbitral deve ser dada máxima eficácia internacional,
reduzindo-se as hipóteses de controle e a interferência do juiz estatal, permanece ainda
viva. É por isso que a doutrina e a jurisprudência internacionais concordam em restringir o
conceito de exceção de ordem pública prevista na Convenção de Nova York à concepção
que o Estado de recepção tem da ordem pública internacional.
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A questão da extensão dos poderes do juiz estatal no controle de adequação da
sentença arbitral estrangeira à ordem pública material é mais controversa. Com efeito,
uma corrente vê ressurgir a possibilidade de revisão ao fundo da sentença. Contudo, não
há como se atender de forma efetiva ao objetivo da reserva de ordem pública sem conferir
poderes extensos ao juiz estatal.
Na verdade, a própria segurança do instituto da arbitragem internacional depende
desse controle amplo. Ao árbitro deve ser dada total autonomia para analisar e aplicar as
regras de ordem pública, sem que o desenvolvimento do procedimento arbitral sofra
interferência estatal. Mas ao juiz estatal deve ser assegurada a possibilidade de verificar
se essa aplicação foi realizada sem se sobrepor à soberania e aos interesses
fundamentais de seu Estado.
Por isso, defendemos que no Brasil – onde o reconhecimento da legitimidade e a
utilização do instituto da arbitragem internacional para resolução de litígios começam,
finalmente, a ser uma realidade – os juízes devem realizar o controle de adequação da
sentença arbitral estrangeira atendo-se à concepção restrita de ordem pública material,
mas com amplos poderes no âmbito dessa análise.
Resta agora uma outra questão: será que os juízes brasileiros responsáveis por
esse controle terão a capacidade e a engenhosidade de saber dosá-lo, buscando a
efetividade das sentenças arbitrais internacionais? Em outras palavras, será que os juízes
vão compreender que esses poderes extensos têm por fito assegurar o desenvolvimento e
a consolidação do instituto da arbitragem internacional no Brasil, e que a recusa de
homologação deve ser considerada sempre a exceção à regra?
Em 1959, quando do momento da consolidação do Instituto da Arbitragem
Internacional na França, Henri Motulsky anunciou que “essa será a difícil tarefa, porém
magnífica, de todos os que serão chamados a participar à construção desse universo
novo” 109. Quase cinqüenta anos depois, o Brasil se vê nesta mesma posição.

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