forro de cama ricalhaço

Transcrição

forro de cama ricalhaço
Compilação de contos da Era Dourada
Pedro Cipriano
Copyright 2013 Pedro Cipriano
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A Alvorada
A artilharia dos defensores rugiu mais uma vez, despejando a
sua letal carga ao acaso. David sabia que os defensores já
tinham perdido toda a esperança, São Petersburgo cairia
dentro de algumas horas. A guerra mundial que já durava há
oito anos e fora combatida nos seis continentes estava perto
do fim. O conflito pelo maldito petróleo já reclamara quase
meio bilião de vidas e felizmente nenhuma nação usara o seu
arsenal nuclear.
O interior do tanque tipo Roosevelt, por não estar equipado
contra aquele nível de humidade, cheirava a mofo. Percorrer
milhares de quilómetros naquela lata de sardinhas com um
comandante com feitio difícil estava a dar cabo dos nervos a
todos.
– Alvo às quatro horas, a duas milhas – anunciou o
comandante.
A escuridão da noite nórdica obrigou David a procurar o alvo
com os sensores térmicos. Era uma bateria anti-tanque, mas
não havia nada a recear.
O frágil equilíbrio entre as facções foi desfeito na maior
batalha aérea da história da humanidade. Milhares de caças
lutaram durante horas sobre a Europa de leste. Quando se
silenciaram os céus, o domínio aéreo pertencia às forças
Ocidentais. Era hora de preparar a invasão terrestre.
Os radares foram destruídos pelos bombardeiros há um par
de horas. Sem eles, os sistemas de defesa estavam cegos,
mas nem por isso deixavam de disparar. A cidade resistira ao
mais longo cerco da história durante na última guerra mundial,
atestando a teimosia russa.
Pediu uma munição explosiva e o sistema de ataque do
blindado trancou o alvo. Ajustou as protecções dos ouvidos,
inspirou e premiu o botão. Quando recuperou do estrondo do
disparo, viu que a bateria estava irreparável. Nesse momento,
os bombardeiros passaram por cima dos tanques destruindo a
barricada mais à frente.
– Avancem, estamos a pouco mais de três de milhas da Praça
do Palácio.
David estremeceu de excitação, pressentido que o fim da
guerra estava próximo. Com a captura da praça central a
resistência dos habitantes sofreria um duro golpe na moral.
Dois soldados saíram de outro tanque para confirmar se a
ponte estava armadilhada. Assim que se confirmou que
estava limpa, o veículo de David avançou lentamente.
Agarrou-se aos comandos com receio, detestava atravessar
pontes.
Pareceu passar uma eternidade até chegarem ao outro lado,
numa avenida cujo nome começava por “Bo” e era seguindo
por mais dez caracteres que não conseguia pronunciar. Os
tanques seguiram pelas quatro faixas em direcção à Catedral.
As ruas estavam desertas. Não se ouviam nem disparos nem
explosões. Parecia que os russos tinham desistido de lutar.
– Onde raio se meteram os russos? – ouviu pelo rádio com
um sotaque fortemente alemão.
Sorriu, pensando o quanto os alemães e os franceses
estariam a apreciar a ironia do momento.
– Daqui tenente Jarnot, acabámos de capturar a estátua do
cavaleiro. Não há qualquer armadilha nem resistência neste
sector.
O anúncio foi seguido por outros semelhantes, os lugares
simbólicos estavam a ser tomados sem resistência. Talvez a
guerra estivesse perto do fim, pensou.
Os blindados americanos pararam à entrada da praça.
– Toda a gente lá para fora, temos de ver se não há minas –
ordenou o comandante.
À semelhança dos outros soldados, David cumpriu as ordens
contrariado. Detestava sair da protecção dos doze
centímetros de aço do blindado. Os atiradores furtivos eram o
pesadelo de qualquer artilheiro.
Encostado às lagartas, olhou em frente. A iluminação escassa
da lua permitia distinguir os contornos do lugar. À excepção
do monólito gigante protegido por sacos de areia, a praça
parecia deserta. Não se viam capacetes a espreitar por cima
dos sacos nem artilheiros nos canhões anti-blindado.
– Olhem! – exclamou o condutor, apontando para ocidente.
Uma luz brilhante tornou a noite em dia. Não se ouviu
nenhuma explosão. David deixou-se cair no chão, percebendo
logo o que acontecera. As lágrimas escorreram-lhe pela face.
Nunca pensou chorar assim no fim deste maldito conflito. A
imagem do seu filho e esposa vieram-lhe à memória, dava
qualquer coisa para estar com eles.
Na face dos seus compatriotas via-se a mesma consternação.
Ao seu lado o comandante ria-se, quebrando o silêncio.
Um pelotão de russos saiu de um edifício adjacente.
Apontaram-se algumas armas, mas ninguém disparou. Os
adversários fitaram-se mutuamente. Via-se igual resignação e
cansaço em ambos os lados.
– Não vale a pena – alguém gritou.
Alguns soldados atiraram as armas para o chão e o exemplo
foi seguido pelos restantes. Pedidos de desculpa foram
lançados em várias línguas. O céu voltou a ficar iluminado.
– E é assim que acaba!
Os clarões sucediam-se com maior frequência e pareciam vir
um pouco de todos os lados. A expressões de desolação
transpareciam o destino que os esperava. Restavam-lhe
minutos, ou talvez segundos.
Caminhou para o russo mais próximo e num impulso abraçouo.
– Desculpa o que fiz ao teu país – disse-lhe e os olhos de
quem fora o seu oponente mostraram-lhe que percebera a
intenção.
– Já não faz diferença – respondeu-lhe o russo, com um forte
sotaque.
Todos sabiam que assim era.
David foi ofuscado por um clarão e sentiu-se arrastado por
uma força imensa. Para ele, o mundo acabara.
A Escuridão
A notícia apanhou-os desprevenidos.
Um momento antes, Rui olhara pela janela, um pouco mal
disposto com os solavancos do autocarro. O ar condicionado
estava ligado no máximo. A maioria dos passageiros dormia,
embalada em sonhos alcoólicos, ignorando os campos
envoltos na escuridão que ladeavam a estrada. O rádio em
meia voz mantinha o condutor acordado. No regaço de Rui,
dormia Débora, uma geneticista de cabelo castanho
ligeiramente ondulado, cortado pelos ombros. Os grandes
óculos, a saia por baixo do joelho e a blusa de mangas longas
e sem decote faziam com que passasse despercebida.
No banco do lado oposto, dormia Rita, a especialista em
engenharia nuclear. Tinha olhos azuis, vestia calções de
ganga e um top branco, ostentando o cabelo liso num rabode-cavalo loiro. Ali viajavam os maiores especialistas do país,
forçados a viver num local remoto por causa da guerra.
Estavam autorizados a visitar a cidade uma vez em cada dois
meses, com intuito ver familiares que já lá não viviam, uma
desculpa para se poderem divertir e apanhar uma bebedeira.
De súbito, a música foi interrompida.
– Notícia de última hora! Há poucos minutos as forças
ocidentais tomaram a praça central de São Petersburgo – o
jornalista gaguejou. – Há evidências que várias ogivas
nucleares foram lançadas pela aliança sino-russa. Voltaremos
a este assunto assim que possível... Espero que isto não seja
verdade, senão estamos todos f...
Quando a emissão foi cortada, já o seu batimento cardíaco
acelerara e meia dúzia de cientistas saltara do banco. O
condutor travou bruscamente, fazendo dois engenheiros cair
no corredor e acordando os restantes. A tremer, o motorista
quarentão retirou o livro amarelo do invólucro plástico. Ao abrilo, várias cabeças debruçaram-se sobre as páginas.
Débora olhava-o confusa. O silêncio reinava. O autocarro
arrancou, não demorando a atingir uma velocidade
vertiginosa.
– Desculpa, adormeci em cima de ti – constatou constrangida,
endireitando-se num ápice e observando a agitação – O que
se passa?
– Parece que lançaram umas bombas nucleares na Rússia –
comentou Rui, procurando esconder o pânico.
– Isso é horrível! – fixou-o nos olhos e engoliu em seco. –
Pode ser a última oportunidade de te dizer...
Com uma guinada súbita à esquerda, o autocarro saiu da
estrada. Houve gritos. O veículo não se despistara, havia
apenas enveredara por um estreito carreiro. Seguiram em
grande velocidade e aos solavancos durante uns metros.
Sentiu-se sacudido com violência para a direita, seguido de
um impacto. Percebeu que haviam destruído uma cancela.
Seguiu-se uma derrapagem, imobilizando-se num espaço
aberto. O motorista saltou para fora do veículo, correndo em
direcção ao portão blindado do abrigo. Os dois soldados à
entrada apontaram-lhe as metralhadores de assalto,
obrigando-o a parar.
– Pare ou disparamos!
– Protocolo Camões! Protocolo Camões! – anunciou,
acenando-lhes com o livro amarelo.
– Não fomos informados de nada – declarou um terceiro,
saindo do posto de controlo.
– Acabou de passar no rádio, para além disso, tenho comigo
especialistas indispensáveis. Código J2. Não vão querer ser
responsabilizados se algo correr mal, pois não?
– Acalme-se, mesmo que quiséssemos deixá-lo entrar, não
podemos, não temos os códigos de acesso...
– Eu tenho-os aqui – insistiu, acenando com o livro amarelo. –
Não há tempo a perder!
Os soldados afastaram-se e o motorista aproximou-se do
painel. Os cientistas abandonaram o veículo, ajuntando-se em
frente à porta blindada. O tenente inseriu a chave na ranhura
e rodou. O motorista introduziu o código que um dos soldados
lhe ditou em voz alta a partir do livro. Esperaram em silêncio
mas a porta nem se mexeu.
– O protocolo Camões foi activado! – anunciou um dos
soldados, abandonando a sala de comunicações.
Vinha esbaforido e era seguido por outros dois. O portão
blindado da construção imponente de betão massivo começou
a mexer-se. Rui notou que Rita se posicionara do seu lado
direito, observando o procedimento com um ar sério. Apesar
da gravidade da situação, não conseguiu deixar de admirar os
seus belos olhos azuis. Sentiu-se empurrado com força.
Vários cientistas lançaram-se à brecha, rastejando e
agredindo-te como animais em desespero.
Um disparo fê-los imobilizar.
– Um de cada vez! – ordenou o tenente, um homem alto e
atlético, apontando ainda a metralhadora para o ar. – E vocês
vão buscar o conteúdo do paiol e da dispensa.
Quando as munições e comida estavam no interior, o tenente
voltou a rodar a chave, retirando-a de seguida. O portão
fechou-se com a mesma lentidão com que se tinha aberto.
Quando as luzes se acenderam, o interior era um armazém
espaçoso.
– Vamos ter de ficar aqui? – duvidou Rita, observando o
interior vazio e cinzento.
– Segundo o livro amarelo, há uma parte habitável, quatro
metros abaixo da superfície – informou o condutor.
Avançaram até encontrarem outra porta blindada, numa das
paredes laterais. Introduzidos chave e código, esta abriu-se
quase de imediato, dando acesso a uma escadaria. Desceram
os dois lanços de escadas, atravessando outra porta, a qual
não precisou de nenhuma autenticação.
Deparam-se com um espaço circular vazio, continuaram em
frente até chegarem a uma sala cheia de painéis. O
especialista informático lançou-se sobre o teclado,
começando a digitar comandos num ritmo frenético.
– Porreiro, parece que temos ligação de satélite com o
exterior!
O resultado não tardou a aparecer nos ecrãs. Milhares de
linhas que definiam as trajectórias dos mísseis
intercontinentais. Sobre cerca de um quarto das cidades do
planeta havia o ícone nuclear. A cada segundo o número
crescia, marcando as cidades atingidas.
Uma gargalhada irrompeu o silêncio. Débora começou a
chorar baixinho, abraçando-se a Rui. Houve outros que
deixaram as lágrimas correr, mas a maioria ficou silenciosa,
de olhar fixo nos monitores, sem saber que não voltariam a
ver a luz do sol.
As mentes mais pragmáticas desviaram os olhos dos ecrãs,
fingindo-se ocupadas. Alguns quiseram vaguear. Rui
descobriu com eles os vários níveis e corredores, onde se
podia comer, dormir, fazer desporto e até ler ou ver um filme.
Escolheu um quarto simples quase na extremidade do
dormitório. Depois de anos a dormir ao lado do engenheiro
naval, o Guilherme, estar sozinho era o melhor que lhe
poderia acontecer. Odiava aquele gordo ressonava que nem
um motor.
Largou a carteira, o porta-chaves, um bloco de notas e
telemóvel sobre a cama. Observou os documentos com
desdém. Sabia que se haviam tornado inúteis, tal como a
posição de certas linhas imaginárias. Por fim, atirou tudo para
uma gaveta, conservando só o bloco, onde mantinha registos
ligados ao seu trabalho. Tinha consciência que até isso se
tornara obsoleto, contudo, sem ele sentia-se nu.
O cansaço levou a melhor e adormeceu sem dar conta.
Foi acordado por um bater insistente na porta. Abriu os olhos,
atordoado por uma súbita dor de cabeça. Pela fresta de luz
surgiu a cabeça de Nuno, o analista de dados.
– Ei, tens de vir até à sala de controlo!
– O que é que se passa? – devolveu, esfregando os olhos.
– Temos um problema grave e precisamos de tomar uma
decisão em conjunto – explicou, desaparecendo de seguida.
Suspirou, puxando os lençóis com violência. Chegou à sala
pouco depois, encontrando já meia dúzia de pessoas. O olhar
prendeu-se em Rita, que se encontrava de frente para um
ecrã com uma imagem de satélite.
– O que é que se passa?
– Rui, estás a ver isto? – disse-lhe, apontando com o dedo
para várias manchas cinzentas espalhadas pelo mundo, sem
desviar os olhos da imagem. – Isto é fumo libertado pelas
cidades em chamas. Milhões de toneladas de dióxido de
carbono estão a ser lançadas para a atmosfera.
– Tens uma ideia da quantidade?
Ela olhou-o nos olhos com uma expressão triste.
– Podes confirmar as contas se quiseres mas, na minha
estimativa, quando isto terminar a temperatura média vai
aquecer cerca de doze graus.
– Isso é... – ensaiou, numa tentativa fútil de quantificar a
dimensão da tragédia.
Ficaram os dois em silêncio.
Meteorologia era a sua especialidade. Tinha consciência que
não era só a temperatura que iria mudar. O degelo será brutal
e o nível do mar iria subir uns bons metros. Ventos fortes,
tornados, furacões, inundações. As correntes marítimas e os
ventos dominantes iriam inverter-se. As áreas secas iriam
tornar-se um deserto. Até as próprias estações iriam mudar.
– Bolas! Finalmente funciona!
Todos se viraram para Tiago, o engenheiro de
telecomunicações, que estava à frente de um pequeno
terminal, onde corriam várias colunas de números.
– Estive a tentar captar as ondas rádio – explicou, ao ver as
atenções sobre si. – As principais emissoras não dão sinal.
Quando digo que não há sinal, quero dizer nem sequer sinal
fraco derivado da falta da rede de retransmissão. É que nem
sequer encontro o contínuo da emissão interrompida. Varri
toda a largura de banda e nada! Contudo, se falarmos de
sinais rádio, as coisas são muito diferentes, há inúmeras
mensagens a circular em tempo real. Há mais sobreviventes
como nós!
– É muito difícil comunicar com eles?
– Amigo, isso é canja – revelou com um sorriso. – Mesmo que
não estivéssemos equipados com transmissores, até um
adolescente podia montar um.
Rui ignorou os restantes comentários, desejando um terminal
onde pudesse correr algumas simulações com a nova
concentração de dióxido de carbono.
Alguns minutos depois, encontravam-se todos reunidos,
incluindo os soldados, armados com as metralhadores de
assalto.
– Não precisam de vir para aqui com essas coisas – queixouse um cientista franzino, notoriamente intimidado.
– Peço desculpa por ter trazido os homens armados, mas a
situação exige-o. Temos de tomar uma decisão e é necessário
que seja vinculativa – afirmou o tenente.
– Já agora, qual é o problema tão grave que exige a nossa
presença?
O tenente fez sinal ao engenheiro informático, que ligou um
dos ecrãs. Uma câmara exterior captara uma pequena
multidão que esperava em frente ao portão do abrigo.
– O que é que fazemos? O protocolo diz que uma vez
selados, os portões não devem ser abertos até que se prove
que o perigo passou. Eu posso decidir isto sozinho, mas
gostava de ter a vossa opinião.
– Eu acho que devemos abrir – opinou o especialista em
electrónica. – Este abrigo é sustentado por um gerador
nuclear, desculpem a ironia, e há mantimentos e espaço para
200 pessoas durante cinco anos. Somos de momento 51, não
vejo por que não haveremos de acolher os trinta que estão lá
fora.
– Eu concordo – aventurou-se Rui. – As condições
climatéricas lá fora vão ser extremas nos próximos meses e
são uma ameaça à população.
Levantaram-se diversas vozes de apoio.
– Alguém está contra? – interrompeu o comandante do
destacamento.
Rita levantou-se e olhou-os. De imediato fez-se silêncio na
sala.
– Para que isto fique claro, eu escrevi parte desse protocolo.
Há uma razão para as portas não poderem ser abertas. A
radiação exterior é de 4 sievert por dia e irá demorar pelo
menos dois anos a descer para metade. O abrigo filtra o ar
para essa poeira não entrar, mas se abrirmos as portas e
deixarmos entrar aquela gente ficaremos contaminados. Eles
estão condenados, temos de entender isso! Em seis horas já
todos receberam doses que os vão impedir de ter filhos
saudáveis. Para além disso, a maioria morrerá nos próximos
meses.
– Podíamos só abrir o portão exterior e deixá-los entrar no
compartimento exterior...
– Quem é que se voluntaria para o fazer? Quem o fizer terá
de ficar lá com eles. E já agora, sem comida, de que lhes
serve o compartimento exterior. Não os podemos ajudar e
tentar é suicídio.
– O argumento parece-me bom – decidiu o militar. – As portas
irão permanecer fechadas e guardas armados ficaram nesta
sala e à entrada.
Rui deitou um último olhar às famílias de olhar suplicante. O
sol ia alto. Eles iriam esperar dias, até se aperceberem que as
portas não se iriam abrir. Aquele era o preço da sobrevivência.
A maioria decidiu dedicar-se ao que sabia fazer melhor para
evitar pensar demais.
***
Abriram a porta de rompante, interrompendo o seu sono. Era
Débora e vinha coberta em lágrimas. Rui tomou nota mental
para começar a trancar a porta.
– Aconteceu uma coisa horrível – anunciou, abraçando-o sem
lhe dar tempo de se levantar.
– O que foi? – perguntou, devolvendo o abraço e passandolhe a mão pelo cabelo, mesmo sabendo que isso lhe poderia
dar falsas esperanças.
Ela preferiu chorar e soluçar durante uns momentos.
Finalmente levantou a cabeça, fixando-o com um olhar sério
por entre os cabelos desgrenhados.
– Mataram a dona Margarida!
***
Os habitantes do abrigo reuniram-se à volta da vítima. Um
único buraco na têmpora da sexagenária denunciava a causa
da morte. Sussurravam entre eles como tal poderia ter
acontecido. Sabiam que o eco se iria multiplicar num espaço
fechado, não dando qualquer hipótese que um disparo
ocorresse incógnito.
– Eu sugeria que se revistasse os quartos, para encontrar a
arma do crime – sugeriu uma mulher.
– E se foram os soldados?
– Porque haveriam de fazer isso?
O tenente ergueu-se, enfrentando-os.
– Eu não tenho interesse nenhum em matar-vos e estou-me
pouco lixando com quem toma as decisões. Se vocês são tão
inteligentes como parecem, iriam perceber que as armas que
temos têm um calibre superior à do homicídio. Quem matou
esta senhora vai ser apanhado e castigado... – fez uma
pausa, olhando-os nos olhos. – … com a pena capital.
***
Deixou-se cair na cama, estafado mas satisfeito. Passara o
dia em frente a um ecrã, instalando o programa de simulação
atmosférica. Confirmou os valores de Rita e aproveitou para
passar tempo com ela. Introduziu dados nos servidores que
integravam a base. Apesar do grupo de computadores servir
para jogos de guerra, nada como uma limpeza ao disco e uma
instalação fresca para os tornar numa ferramenta perfeita.
Mesmo depois das bombas terem parado de cair, o cenário
era devastador. O fumo e as poeiras espalhavam-se nas
imagens de satélite, sinal que as cidades continuavam a
arder. Parecia impossível que alguém no exterior pudesse
sobreviver.
Bateram de leve à porta.
– Entre – autorizou, esfregando os olhos.
A maçaneta rodou devagarinho, como se não quisesse
chamar à atenção. Lembrou-se que estava no último quarto
do corredor. Teve medo.
Rita esgueirou-se para o interior com um sorriso, fechando a
porta com a mesma delicadeza com que a abrira.
– Então, já estás a dormir?
– Estou bastante cansado, foi um dia muito longo.
– Sim, sim, estás à espera que a Débora te venha aquecer a
cama... – escarneceu, aproximando-se com passinhos
pequenos.
– Não acho que ela esteja assim tão desesperada... –
comentou, encolhendo os ombros e levantando-se.
– Como a vi sair do teu quarto hoje de manhã...
– Não fizemos nada disso.
– Não, desculpa estar a meter-me na tua vida...
– Não faz mal...
Ela lançou-se num abraço apertado, começando a soluçar no
seu ombro. Agarrou-a com força, com na esperança que a
ajudasse.
– Tenho medo... Estamos aqui presos com um assassino...
– Tem calma, aqui dentro não irá longe...
Ela interrompeu-o com um beijo nos lábios. Rui deixou que as
mãos descessem e obedecendo ao impulso, há muito
reprimido, derrubou-a sobre a cama. Viu nos olhos dela que
queriam o mesmo.
***
Regou os cereais com sabor a papel com o leite em pó
aguado. Agarrou na taça e procurou um lugar no refeitório.
Encontrou Débora sozinha a um canto e quis juntar-se a ela.
– Bom dia – cumprimentou-a com um sorriso.
Ela levantou a cabeça e encarou-o com uma expressão triste.
Percebeu que estivera a chorar.
– Posso sentar-me aqui contigo?
– Tanto me faz – respondeu-lhe, voltando os olhos para o
prato.
Sentou-se em silêncio. Depois de engolir duas colheradas
daquela mistura horrível, decidiu animar a amiga.
– O que se passa?
– Ainda tens a lata de me perguntar o que se passa?
– Não estou a perceber!
– Julgava que eras mais inteligente!
– Porque é que não me explicas?
– Como se tu não soubesses! Se calhar achas que eu sou
parva, só pode! Gostava é que tivesses sido sincero comigo
desde o início.
– Calma!
– Calma o tanas! Andas a pensar mais com a cabeça de baixo
do que com a de cima, por isso é que não percebes nada!
– Estás a falar do quê?
– E continuas, pensas que eu não sei que passaste a noite
com a Rita? Agora já sei porque é que te fizeste desentendido
aos meus avanços, estavas de olhar fisgado na loira. É o
decote dela, não é, por ser mais pequeno que o meu?
– Mas...
– Já percebi, é a sobrevivência do mais forte. Espero que os
teus genes passem à geração seguinte!
Débora levantou-se e saiu da sala, sem lhe dar tempo de
responder.
***
Rui fixou os resultados no monitor. Não acreditou nos valores
das colunas de números brancos sobre o fundo preto.
Verificou mais uma vez os parâmetros e submeteu de novo a
tarefa, pedindo uma previsão para a próxima centena de
anos.
Ao sair da sala de controlo, passou por ele um grupo bastante
agitado.
– Anda, vai haver uma reunião no refeitório, é obrigatória a
presença de todos – explicou um deles.
Seguiu-os, tentando captar os rumores e percebendo que não
sabiam mais do que ele. A maioria dos residentes já estava
sentada nas cadeiras. O tenente permanecia de pé e em
silêncio. Assim que a última pessoa entrou, um soldado
trancou a porta e ficou a guardá-la.
– O que vem a ser isto? – reclamou um dos mais velhos.
– É para vosso próprio bem – explicou fazendo sinal ao
soldado que guardava a outra porta.
Pouco depois uma maca coberta com um lençol branco
entrava na sala. Com um gesto vagamente teatral, puxou a
cobertura, revelando o corpo do motorista.
O grupo ficou mudo e pálido. A garganta do condutor fora
aberta num golpe oblíquo. Pegado ao corpo, ao lençol e à
maca, o tom vermelho escuro do sangue coagulado agredialhe os olhos.
– Alguém tem algo a dizer? – inquiriu o tenente.
Ao contrário da dona Margarida, a catedrática decrépita da
qual ninguém realmente gostava, o condutor era o fiel
companheiro das visitas à cidade. Nunca falhara a tarefa de
encontrar um bar aberto onde pudessem beber uns copos. A
pedido arranjava mulheres e homens para fazer companhia
àquelas almas solitárias.
– Revistem os quartos todos até encontrarem as armas do
crime! – sugeriu uma mulher de meia idade.
– Isso está a ser feito neste preciso momento – assegurou o
militar.
– O que é que nos garante que não foram vocês a orquestrar
isto? – acusou um dos mais velhos.
– Nós sempre tivemos as armas, se quiséssemos dar cabo de
vocês, já o teríamos feito. Nós estamos aqui para vos
proteger!
O olhar de dúvida percorreu as faces de todos, mas sem que
ninguém se atrevesse a contestar.
– E se não encontrarem a arma do crime? Como é que
pensam apanhar o assassino? – perguntou Débora.
– Se não o encontramos, teremos de tomar medidas
extremas.
– E que medidas são essas?
– Ainda não lhe posso dizer – afirmou, voltando-se de seguida
para os restantes – Se estivesse no vosso lugar, iria comer
alguma coisa, a busca ainda vai demorar um pouco.
Passaram três horas até os dois cabos entrarem no refeitório.
Uma troca de olhares foi suficiente para o tenente perceber a
mensagem.
– Portanto, nenhuma das armas do crime foi encontrada. O
que é que estão dispostos a fazer para apanhar o culpado?
– Como assim? – exaltou-se Nuno. – Não é óbvio que
estamos dispostos a tudo? Isto é uma questão de
sobrevivência!
– Alguém se opõe a que fiquemos aqui fechados?
– Em que é que isso nos vai ajudar?
– Muito simples, nesta sala ninguém tem possibilidade de
cometer um crime e escapar impune.
– E se o assassino não for um de nós?
– Lembrem-se que acabamos de revistar o abrigo e não
encontrámos ninguém. De qualquer modo, estaremos mais
seguros todos juntos.
– E onde é que vamos dormir?
– Cada um será autorizado a ir buscar o que considerar
necessário, mas apenas sairá uma pessoa de cada vez.
Alguém se opõe?
Os olhares deram-lhe a resposta.
***
Nos dois dias que se seguiram, a cantina foi transformada
num acampamento. A pedido das senhoras, uma cortina de
lençóis foi erguida para separar as duas metades. Parte das
mesas foram encostadas a um canto e vários colchões
cobriam o chão.
O tenente acabou por autorizar que saíssem duas pessoas de
cada vez, de forma a poderem carregar objectos mais
pesados. Houve quem reclamasse que a solução encontrada
tinha sido demasiado severa. As discussões entre os
membros do grupo tornaram-se mais frequentes, levando
algumas pessoas a serem expulsas para mudarem de ares.
Na manhã do terceiro dia, quando Débora o abordou durante
o pequeno-almoço, Rui sabia ter umas olheiras enormes. Ela
vinha vestida com umas calças justas, um top e trocara os
óculos pelas lentes. Deduziu que ela o queria reconquistar,
mas decidiu fazer-se desentendido.
– Pareces cansado!
– Não consigo dormir com esta gente toda à minha volta. É
pior do que quando partilhava o quarto com o Guilherme.
– Tens de ter calma, isto vai-se resolver...
– Queres saber o que eu acho? Quem quer que seja o
assassino, vai ficar quietinho e vamos passar uns bons meses
aqui trancados.
– Saíste-me cá um pessimista!
– Estou a ser realista, já agora, porque é que vieste falar
comigo?
– Preciso de saber os resultados da tua simulação – pediu,
com um tom que despertou a Rui instintos primários.
– Qual simulação? – perguntou, distraído com os movimentos
dela.
– Ouvi dizer que meteste um programa a correr para prever os
efeitos deste holocausto nuclear.
– Quem te disse isso? – inquiriu, franzido o sobrolho.
– Ouvi dizer! Quais foram os resultados?
– Para que queres saber?
– Pela mesma razão que tu – explicou, de súbito com um ar
profissional. – Quero saber que espécies vão sobreviver a
isto. Vais partilhar os resultados comigo ou estás com medo
que os publique primeiro?
Rui sorriu com a piada, ao aperceber-se que algumas das
suas preocupações quotidianas haviam deixado de fazer
sentido.
– Eu corri o programa, mas os resultados foram um autêntico
lixo numérico. Meti o programa a correr de novo, mas ainda
não fui ver.
– Ok, quando fores, avisas?
Rui acenou com a cabeça, com um sorriso de orelha a orelha.
Fora preciso um apocalipse para se cobiçado por duas
mulheres.
A oportunidade para ver os resultados, chegou durante a
tarde, quando a Rita quis sair. Rui deu um salto e juntou-se a
ela.
– Olha, aproveito vou contigo e vejo os resultados da
simulação.
– Anda, eu também meti uma simulação a correr com os
níveis de radioactividade – aceitou com um piscar de olho.
O soldado não apresentou qualquer entrave e quando o par
anterior voltou foram autorizados a sair.
Quase correram até à sala de controlo. Ao chegar, Rui atirouse para a cadeira e desbloqueou o terminal. A simulação havia
terminado, percorreu as colunas de números com os olhos,
sem acreditar no resultado.
– Rita, anda ver isto! – pediu, sem despregar os olhos do
monitor.
Ouviu passos atrás de si.
– O que foi?
– Estás a ver?
– Sim, o que é que tem de estranho?
– Não estás a ver? – exaltou-se ligeiramente, apontando para
a última coluna.
– Se calhar enganaste-te...
– Não! Já verifiquei o input umas vinte vezes...
Ela pegou-lhe na mão e fê-lo levantar.
– Eu acho que precisas de uma pausa, esta situação está a
dar-te cabo dos nervos... – sugeriu, aproximando-se dele.
Rui deixou-se levar, beijando-a. As mãos de ambos
acariciaram as costas. Ele quis fazê-lo mesmo ali. Afinal
estavam sozinhos. Sentiu as mãos dela na barriga, descendo
lentamente.
Nesse momento, ouviram um barulho ensurdecedor. Foram
atingidos por uma onda de pressão tão intensa que perderam
os dois o equilíbrio, estatelando-se no chão.
Rui deu por si estatelado em cima dela. Num ápice, rebolou
para o lado e pôs-se de pé. Os ouvidos ainda lhe doíam,
percepcionando um zumbido irritante e permanente. Várias
sirenes começaram a tocar num tom estridente. Nos
monitores apareceu um mapa esquemático do abrigo, com a
fonte do problema assinalada a vermelho. Ficou paralisado ao
perceber que acontecera no refeitório.
Após uma breve troca de olhares, precipitaram-se os dois
para fora da sala de controlo, correndo pelos corredores.
Cedo o meteorologista conseguiu vantagem, deixando a
engenheira para trás.
Ao virar a esquina antes da cantina, deparou-se com uma
metralhadora apontada à cara.
– Pára! Mãos ao ar! – interpelou o tenente.
– O que é que se passa?
– Não te faças desentendido! De joelhos, já! Ou acabo com
isso de uma vez.
Com as pernas a tremer, deixou-se cair de joelhos, mantendo
os braços levantados. A arma estava apontada à sua face. Um
disparo àquela distância não podia falhar.
– Como é que tu fizeste isto? Fala ou eu disparo!
– Não sei do que está a falar, que não tenho nada a ver com o
que acabou de acontecer...
– Não te armes em esp...
Onde antes estivera o olho esquerdo do soldado, saiu um
jacto de sangue. Um momento depois, o corpo do militar caia
sem vida. Olhou na direcção da origem do tiro, descobrindo
Rita empunhando uma pequena arma. De súbito,
compreendeu tudo o que se passara nos últimos dias.
– Os meus resultados estavam certos! Foste tu! – exclamou,
levantando-se.
– Sim, estavas certo desde o início – confirmou, abrindo-se
num sorriso como ele nunca antes tinha visto. – Como dizia a
tua amiga, é a sobrevivência do mais forte.
– Era preciso matá-los a todos?
– O que é que achas? – ironizou, passando por ele.
Ela prendeu a arma nas calças, pegou na metralhadora do
militar e retirou o carregador, guardando-o na bolsa. Chegou-
lhes o fumo do incêndio que se gerara. Rita atou a camisola à
volta da cara e seguiu em frente, desaparecendo no interior
do refeitório.
Rui deixou-se ficar parado, tentando assimilar o que acabara
de descobrir. Avançou decidido a pensar mais tarde, atando
também a t-shirt à volta do nariz e boca.
Nada o preparara para o que encontrou. As mesas e cadeiras
estavam feitas em pedaços de encontro às paredes numa
miscelânea de metal e contraplacado, moído e retorcido. As
portas haviam deixado de existir e os fragmentos quase
pulverizados estavam espalhados pelos corredores. Os
corpos eram o pior de tudo, desmembrados e com parte das
vísceras espalhadas pelo chão e misturadas com tudo o resto.
O sangue ensopava o chão e pintalgava as paredes. Ouviu
alguns gemidos.
Não conseguiu ficar parado, por isso olhou em volta. Viu Rita
ao fundo. Dirigiu-se a ela, a tempo de a ver atingir a cabeça
de alguém. Desviou o olhar, sem conseguir assistir ao
massacre.
Olhou em volta, procurou pelo corpo de Débora, sem o
encontrar. Mudou de ideias e aproximou-se da assassina.
– Já chega! Não precisas de matar toda a gente!
– Meu querido – interpelou-o, com uma tranquilidade tão
grande na expressão, que lhe provocou arrepios. – São eles
ou eu. Depois do que nós fizemos, não há volta a dar, ou os
matamos ou eles matam-nos a nós. Lembra-te, desde que as
bombas caíram que a lei da selecção natural se aplica
também aos humanos. Podes estar descansado, eu não te
quero matar, afinal preciso de passar os meus genes à
geração seguinte. Se não tiveres estômago para isto, podes
sempre ir embora.
Rui percebeu que era impossível conversar, ela tinha
enlouquecido. Apesar de tudo, não quis arredar pé. Ela matou
outras duas pessoas, querendo inspeccionar também as
casas-de-banho. De Débora nem sinal, mas com a quantidade
de corpos irreconhecíveis, era impossível ter a certeza do seu
paradeiro.
Ouviu-se um grito a partir da casa de banho. Rita
encaminhou-se para lá.
De repente, um soldado dobrou a esquina, com um joelho no
chão, disparando sobre ela. A engenheira foi projectada para
trás, caindo de costas. A arma fugiu-lhe das mãos, indo parar
perto de Rui. O meteorologista lançou-se para apanhar a
arma.
– Depressa, mata-o! – ordenou Rita, contorcendo-se com
dores.
Olhou na direcção da casa-de-banho, o militar havia
desaparecido. O sangue ensopava a camisa dela, escorrendo
copiosamente do ombro esquerdo.
– Afinal devo-te um favor – murmurou ele.
Rui empunhou a arma e apontou-a à cabeça dela. O
movimento deu-se fluído e sem hesitações. Ela olhou-o com
um ar suplicante. Não sentiu pena, nem remorso quando
puxou o gatilho. Rita imobilizou-se instantaneamente quando
o buraco surgiu na sua têmpera, explodindo com a parte de
trás do crânio.
– Larga a arma, já! Mãos levantadas e dá quatro passos em
frente! – ouviu atrás de si.
Deixou a pistola cair, com uma tranquilidade completa.
Levantou as mãos e avançou, parando em frente ao cadáver
da amante. Ouviu passos atrás de si. A arma foi pontapeada.
Uma bota atirou-o ao chão, fazendo-o cair com a cara sobre
os restos de massa encefálica da engenheira. Sentiu-se
pressionado contra o chão. Quase que conseguia imaginar a
arma apontada ao seu crânio. Fechou os olhos e esperou.
Surpreendeu-o não sentir medo.
– Já chega! – ouviu Débora gritar. – Ele não é o culpado!
A pressão sobre as costas desapareceu. Um momento depois
a geneticista ajudou-o a levantar-se. Havia outros seis
sobreviventes. Eles encararam-no desconfiados. O soldado
mantinha ainda a mão no gatilho.
– Sabes porque é que ela fez isto? – inquiriu Débora.
– Sim, ela tinha medo que não houvesse comida para todos
durante o tempo em que vamos estar aqui fechados.
– Porque vamos ficar aqui fechados? – encorajou-o a bióloga,
agarrando-lhe o braço.
– Há muita radioactividade no exterior. Para além disso, corri
uma simulação e percebi que as poeiras e fumo resultantes
das explosões estão a bloquear a luz do sol, criando uma
noite permanente. A temperatura ao invés de subir, irá descer
cerca de vinte graus. Os humanos não serão capazes de
sobreviver no exterior.
– Estamos a falar de quanto tempo?
Rui olhou-os com pena, antecipando o choque que iria causar.
– Cerca de trinta anos de noite total e quase um século de
noite parcial.
A escuridão chegara, nenhum deles veria de novo a luz do
sol.
A Alergia
Faltavam cinco minutos para a meia-noite quando Roberto
acabou de armar a bomba. Desprendeu o recipiente de latão
cheio de um líquido amarelo com tons esverdeados, que ficou
num equilíbrio precário em cima de uma das barras laterais.
Limpou o suor da testa e beijou o anel que trazia no dedo.
Ajeitou o fato, colocou a cartola e afastou-se da ponte de ferro
cruzado.
Àquela hora só os bêbados e as prostitutas percorriam a
cidade, por isso, não achou que houvesse o risco de ser
reconhecido mais tarde. Que sociedade mais decadente,
pensou, sabia que cada um daqueles homens era capaz de
matar por um fato de cerimónia. Não esperava que o atentado
causasse muitas vítimas, já que escolhera um comboio de
mercadorias numa zona ocupada por armazéns.
Enquanto caminhava pelas ruas, combatia o desejo de se
enfiar por um dos becos, pois pressentia que todos os olhos
estavam voltados para ele. Sabia que teria de se deslocar
pelas vias principais para não chamar a atenção. Os nervos
eram tantos que se assustou com uma mera buzina. Quase
se riu histericamente quando viu tratar-se apenas dum veículo
com rodas de coche e muitas rodas dentadas que operavam
fora da carroçaria. Já mais calmo, saltou para a berma de
modo a deixar passar o mostrengo a vapor conduzido por
algum ricalhaço.
A noite estava abafada e o calor já se fazia sentir à várias
semanas. O mundo mudava a olhos vistos e quase ninguém
se parecia aperceber disso. Cada ano que passava era mais
quente que o anterior, o fumo cobria as grande metrópoles e o
nível do mar subia cada vez mais. Ninguém queria ouvir falar
desses problemas, enquanto o seu estilo de vida pudesse ser
mantido, todos eram alérgicos à mudança, como qualquer
civilização que se aproxima do seu fim.
Tudo fora planeado para que o atentado fosse atribuído aos
alérgicos, um grupo extremista que defendia o uso de técnicas
amigas do ambiente. Estes perseguiam uma miragem
semelhante à energia solar, que se supunha ter existido há
quinhentos anos atrás e que se perdera no grande
holocausto. Apesar de se identificar com algumas dessas
ideias, Roberto nunca fizera parte de tais círculos e não
contava começar naquele momento. As suas razões eram
bem diferentes.
Prédios de estilo Neovitoriano passaram a ladear os dois
lados da rua. Aqueles apartamentos de madeira de recortes
arredondados e telhados oblíquos eram relíquias de outra era.
As varandinhas cercadas de madeira branca trabalhada
davam-lhe vontade de rir. Não percebia porque é que os
haviam recriado, nem porque os restauravam vezes sem fim.
Parecia que tinham medo de avançar no tempo, receio das
incertezas do futuro e pavor de quebrar as restrições
tecnológicas estabelecidas. Tudo porque outrora a espécie
quase se extinguira por via das suas próprias invenções. Uma
guerra nuclear não era mais possível, contudo, um desastre
ambiental teria os mesmo efeitos. A humanidade estava na
sua hora dourada, no seu mais importante ponto de viragem,
e poucos eram os que conseguiam aperceber disso.
Parou e retirou o relógio do bolso para ver as horas. Faltavam
dois minutos para o comboio se encontrar com o seu destino.
Ele odiava engenhos que levassem muitas engrenagens, por
isso aquele era muito simples. O tremer da ponte, aquando da
passagem da locomotiva, iria lançar o recipiente cheio de
nitroglicerina contra um dos postes e isso bastaria para
detonar o engenho. Os maquinistas nunca se atrasavam.
Um portão preto de cemitério marcava o fim da sua
caminhada. Rangeu terrivelmente quando o empurrou, dandolhe entrada para um espaço completamente deserto e
sombrio. Uma árvore frondosa dominava a paisagem,
projectado estranhas sombras no pavimento. A tranquilidade
do local contrastava com a inquietação que sentia. Caminhou
pelo passeio central, passando pelo poço, dirigindo-se à
campa da sua noiva.
Sentou-se no túmulo e acariciou a gravura do túmulo,
desejando sentir novamente o toque dela. A vida não lhes fora
gentil. O forte sentimento que os unia só teve como par o
nefasto fim. Ela morrera atropelada por um condutor
descuidado. Culpar o condutor era demasiado fácil, pois ele
era apenas um produto da sociedade decadente em que
estava mergulhado.
Ficara fechado em casa, sem querer comer durante dias a fio.
Teria morrido ali se não tivesse recebido uma visita de um dos
seus amigos. A conversa que tiveram mudou-lhe a vida,
conseguira canalizar o seu desespero. Desde esse dia,
Roberto ouviu falar dos alérgicos pela primeira vez e, tal como
eles, passara a odiar toda a tecnologia. Passara a ser alérgico
a toda a roda dentada e a todo o eixo móvel. Consumido pela
mágoa, quase caiu num estado de demência, até que
percebeu o que deveria fazer. Tinha de destruir estes malditos
monstros com corações de corda e cérebros a vapor. O seu
amigo nunca o abandonou e nem negou qualquer tipo de
ajuda, nem sequer quando precisou de ajuda para levar a
cabo o seu plano pernicioso.
Como previra, a explosão deu-se à meia-noite em ponto.
Ouviu de seguida mais três rebentamentos. O clima seco e as
matérias inflamáveis, tanto do comboio como dos armazéns,
mergulhavam a cidade em chamas. As labaredas subiam mais
alto do que esperava, o comboio deveria transportar algum
tipo de mercadoria muito inflamável. Impávido, observou o
fogo que galgava metro após metro sem que ninguém o
pudesse deter.
A tragédia abateu-se sobre a cidade. O número de vítimas
escalou de dezenas para a centenas e finalmente atingiu o
milhar. Quarteirões inteiros foram devastados. Não houve
quem duvidasse que os alérgicos fossem os responsáveis e
ninguém se preocupou com o corpo que se afogara no poço
do cemitério.
O monstro e a Musa
O monstro
Naquele fim de tarde, Walter viu o caos instalar-se nos
primeiros segundos de batalha. De ambos os lados, os
canhões rugiram assincronamente, enquanto o jovem corria
para encontrar cobertura. Agachou-se em posição fetal, numa
depressão do terreno. Não podia fazer muito mais, era um
inventor, não um soldado.
Enquanto a escaramuça decorria, amaldiçoou o momento em
que se voluntariara para a expedição. Apesar destas
montanhas pertencerem à confederação, desde cedo ficou
claro que na realidade eram controladas por insurgentes.
Uma das explosões deu-se à sua direita, enchendo o buraco
com pó e detritos. Tanto os olhos como as vias respiratórias
foram fortemente afectadas, fazendo-o tossir e lacrimejar
durante vários minutos.
A artilharia calara-se. Finalmente tudo tinha terminado,
pensou, espreitando para fora do buraco. O que viu deixou-o
transtornado: a maioria dos soldados que acompanhava a
expedição estava morta ou ferida; corpos mutilados e
equipamento despedaçado via-se espalhado um pouco por
todo o lado. A consternação transformou-se em desespero
quando viu que os restantes se tinham rendido. Ao olhar em
volta, percebeu que estavam cercados pelos rebeldes.
Não tardou que alguns guerreiros com couraças de couro e
latão o encontrassem. Com as suas espadas e lanças,
obrigaram-no a sair do buraco. Enquanto o conduziam em
direcção aos outros sobreviventes, ergueu a cabeça e tentou
caminhar com toda a dignidade que lhe restava. Ao contrário
do que esperava, não o agrediram.
Sobrara pouco mais do que uma dúzia de homens. Os
inimigos observavam-nos, prontos a agir ao primeiro
movimento suspeito. O momento era tenso, pois ninguém
sabia o que os esperava. O que Walter tinha ouvido sobre os
povos não governados fazia-o prever o pior.
Abruptamente, fez-se silêncio. Os guardas afastaram-se,
permitindo-lhes ver o que lhes pareceu ser o comandante. Era
um homem, de traços ibéricos e estatura mediana. Não
parecia ser muito forte contudo, a sua expressão impunha
respeito. Estava armado de um modo muito semelhante aos
restantes soldados, à excepção dos dois arcabuzes extra que
trazia à cintura.
– Quem é o doutor Walter Ramos? – perguntou, num tom de
voz moderado.
O doutor não pôde evitar estremecer. Sabia que o medo que
sentia saía por cada poro e que nem a suposta dignidade
conseguiria manter. Como ele permanecia estático, um dos
sobreviventes empurrou-o.
– Sou eu...
– É um prazer conhecê-lo pessoalmente. Os seus serviços
são-me necessários. Gostaria que você partilhasse os seus
conhecimentos e o seu génio inventivo com o meu castro.
– O que o leva a pensar que eu vou fazer isso? – retorquiu
Walter, soltando a sua arrogância sem pensar.
– Meu caro, creio que estará mais familiarizado com uma tal
ciência, à qual antigamente davam o nome de física – fez uma
pausa, olhando o prisioneiro. – Sabe melhor que ninguém que
até a pedra mais pesada pode ser movida com o uso da
alavanca correcta. É curioso que o mesmo se passe com os
homens.
Walther não sabia como responder, acabando por permanecer
em silêncio. Algo lhe dizia que aquele homem ainda tinha
trunfos na manga. O tempo arrastou-se de um modo tenso.
– Então, qual vai ser a sua decisão? – insistiu o rebelde,
mostrando-lhe que estava a ficar impaciente.
– Gostava de ver que alavanca é essa!
– Para ser sincero, não sei qual é a alavanca no seu caso. Se
me permite, vou-lhe contar um segredo. Eu sou um grande fã
do método científico e, por vezes, faço algumas experiências
na minha cozinha. Provavelmente estou a aborrecê-lo com as
minhas palavras, já que não deve estar muito interessado em
ouvir falar da minha ciência caseira. Só queria que soubesse
que irei procurar de modo perseverante a sua alavanca. Creio
que irei optar pelo método da tentativa e erro – relatou,
fazendo um gesto com mão.
Dois insurgentes agarraram-no e levaram-no para mais perto
do comandante.
– Não pense que me vai convencer com ameaças! –
exclamou Walter, tentando controlar o medo.
– Meu caro, já deve ter ouvido falar de um jogo antigo, creio
que se chamava xadrez. Era um jogo muito interessante. Para
vencer era preciso antecipar as jogadas do oponente.
Todavia, para se ser um mestre, era necessário cortar-lhe
também as possibilidades, de modo que ele caminhasse para
a armadilha por vontade própria.
– Não estou a entender... – protestou o inventor.
– Matem os prisioneiros que não se puderem colocar de pé! –
Ordenou com um sorriso sádico.
Vários soldados inimigos colocaram-se à sua frente, de modo
que não pôde ver o que se passava. Não tardou que se
ouvissem gritos de desespero e angústia. Quando terminou, o
silêncio conseguia ser ainda mais sinistro.
– Meu caro, espero que isto o tenha convencido a
acompanhar-me.
Walter foi separado dos restantes prisioneiros e forçado a
caminhar até ao pôr-do-sol. Dormiu ao relento e, na manhã
seguinte, prosseguiram viagem depois de lhe terem dado uma
magra refeição. A marcha forçada por caminhos agrestes e
inclinados estava a consumir-lhe as forças. Os bois e cavalos
tinham ainda mais dificuldades, pois viam-se obrigados a
carregar as pesadas peças de artilharia capturadas.
Pelos seus cálculos, estavam a penetrar cada vez mais nos
territórios selvagens. Aquela faixa montanhosa ibérica
separava a Pan-Germânia da Confederação, outrora chamada
de Trás-os-Montes. Nunca conseguira compreender o porquê
da Confederação insistir em manter aquele enclave na
península ibérica quando tinha uma boa porção da América do
Sul e ricos territórios em África. Os historiadores falavam de
um passado comum que acontecera há quase um milénio
atrás. Para além disso, até aqueles rebeldes falavam uma
língua derivada do antigo português.
O dia teria ocorrido sem incidentes, se não fosse dois dos
prisioneiros terem tentado a fuga. Foram prontamente
apanhados e executados sumariamente, como exemplo para
os restantes. Ainda o sangue dos dois homens não tinha
coagulado, já a marcha continuava.
Andaram o resto do dia e metade do seguinte, terminando a
sua jornada numa cidadela, a qual se situava no topo de um
planalto. Os portões abriram-se à sua chegada e os guerreiros
foram recebidos com aclamações da pequena multidão.
Walter ficou maravilhado enquanto o conduziam através da
cidade, a qual não era em nada primitiva. As ruas eram
paralelas, estavam impecavelmente pavimentadas e
encontravam-se a abarrotar com máquinas a vapor. Os
edifícios eram construídos em rocha trabalhada e estavam em
bom estado de conservação. Inúmeros teleféricos
transportavam tanto pessoas como carga. Era admirável
como uma cidade tão sofisticada poderia existir àquela
altitude e aparentemente isolada de tudo o resto.
Foi levado para uma construção imponente, que deduziu ser o
palácio do governador. Obrigaram-no a subir por uma estreita
escada de serviço. Sem qualquer explicação, fecharam-no à
chave num quarto dos andares superiores. A divisão era
espaçosa e bastante melhor do que esperava. Continha uma
cama, uma escrivaninha, uma cadeira, uma estante vazia e
um guarda-fatos.
Sentou-se na cama e, sem dar conta, deixou-se estender
nela. Adormeceu por via do cansaço, pouco depois.
Acordaram-no de um modo inesperado, várias horas depois,
quando lhe trouxeram comida. O prato continha um pedaço de
pão, um bife e alguns vegetais cozidos a vapor. Estava
esfomeado, de modo que não levantou objecções quanto à
qualidade do prato. Para sua surpresa, fora muito bem
confeccionado. Enquanto comia, pôde admirar o pôr-do-sol, já
que a varanda estava virada para Oeste. Quando terminou a
refeição, levantou-se a custo, pois os músculos estavam
extremamente doridos.
Estava no terceiro andar do suposto palácio e o balcão
proporcionava-lhe uma vista privilegiada da cidadela. A cidade
possuía uma torre de relógio no centro, em frente do que
Walter supôs ser a praça principal. As colunas de fumo vindas
das extremidades dos teleféricos a vapor mostravam-lhe qual
era a fonte de energia de toda a cidade. Avaliou o movimento
e deduziu que viveriam ali entre duas a três dezenas de
milhares de almas. As muralhas eram espessas e as torres de
vigia estavam guarnecidas com diversas peças de artilharia,
tanto contra balões como contra outra artilharia.
Voltou para dentro, sentando-se na cama, desanimado. Era
pouco provável que a Confederação luso-brasileira arriscasse
atacar aquela cidade para o resgatar. O que acontecera nos
últimos dias abalara profundamente as suas convicções. Não
era só o cativeiro, chocava-o mais saber que os povos
bárbaros eram tão civilizados como o resto da Confederação.
Foi quase em completo desespero que adormeceu.
Na manhã seguinte foi acordado, pois iria ter uma audição
com o governador. Fizeram-no trocar as suas roupas
esfarrapadas por um uniforme novo. Deram-lhe um pedaço de
pão e um copo de água. Foi então conduzido pelos corredores
até ao piso térreo. Pela primeira vez, reparou que o interior do
edifício também fora construído em pedra e trabalhado com
inúmeros ornamentos. Os tectos continham numerosos
frescos. O que mais o desconcertava era que aquelas
construções pertenciam à era pós-nuclear.
O salão principal era extremamente espaçoso e a sua
abóbada tinha várias centenas de metros quadrados, fazendo
lembrar uma antiga catedral. Esperava ver um trono e um
líder sentado nele, coroado como os antigos reis, contudo não
foi isso que encontrou. O comandante estava no centro da
sala, acompanhado por um punhado de homens que supôs
serem ministros. Em ambos os lados, mais afastados,
estavam alguns soldados.
– Meu caro, espero que tenha gostado da estadia que lhe
proporcionei – cumprimentou o comandante, sem quaisquer
traços de ironia.
– Quem é o senhor? – devolveu-lhe Walter, pensando que
estavam a brincar com ele.
– Peço imensa desculpa, não me tinha apresentado. Deve
pensar que não passo de um selvagem, não é isso que
chamam às gentes deste território? Eu sou Artur Olivais e sou
o líder deste castro – e virando-se para os restantes – e este é
o famoso doutor Walter Ramos, o inventor que veio do alémmar.
Walter continuava confuso, questionava-se como é que um
líder
poderia
comandar
pessoalmente
ataques
à
Confederação. Era preciso uma grande dose de imprudência
para o tentar e sangue-frio para o conseguir.
Artur levantou a mão e fez um gesto. Imediatamente várias
cadeiras foram dispostas, formando uma meia-lua em frente
de Walter. Sentiu um movimento por trás de si e, ao olhar,
descobriu que um dos criados acabara de colocar uma
cadeira perto de si.
– Sentemos-nos. Acredito que temos muito que conversar –
pediu Artur.
– Eu exijo saber se este tal inventor pode resolver o nosso
problema. Relembro que a sua captura foi custosa em
material e homens e que ainda pode acalentar outras
consequências mais graves – protestou um homem magricela
à direita.
– Silêncio Xavier, observa primeiro, fala depois – comandou
Artur, dispensando o ministro com um gesto. – Caro doutor
Ramos, presumo que deve estar familiarizado com o que
desencadeou o fim da era nuclear. Gostava que nos falasse
um pouco sobre isso.
– Se é de história que quer ouvir falar, pois bem, enganou-se
na especialidade. Deveria ter raptado um historiador, não um
inventor – replicou Walter, lançado um sorriso trocista a Artur.
– Como é que ele se atreve a falar assim contigo? Eu exijo
que o castigues imediatamente! – exaltou-se um homem
oponente de cabelo grisalho, também ele sentado à esquerda
de Artur.
– Tem calma Aristides, precisamos dele vivo e inteiro. O
senhor Ramos tem uma língua muito pouco domesticada,
especialmente tendo em conta a sua situação precária.
Agradecia que evitasse comentários jocosos enquanto estiver
reunido com o concílio que rege este castro. Não se esqueça
que temos os restantes membros da sua expedição como
reféns.
– Não sei porque é que me está a perguntar isso. Só sei que a
era nuclear terminou com o grande cataclismo.
– Já irá saber os meus motivos mas, primeiro, gostaria que
nos falasse das razões desse cataclismo.
– O petróleo era um recurso finito e, quando começou a
escassear, várias nações entraram em guerra pela posse das
últimas reservas. O conflito agravou-se, transformando-se
numa guerra mundial. Os conflitos mundiais duraram oito
anos, em que vários milhões de pessoas pereceram. Não
foram usadas armas nucleares, pois todos sabiam que isso
poderia causar a extinção da espécie humana. Todavia, a
aliança euro-asiática foi colocada numa posição delicada nos
últimos estádios do conflito e decidiu usar o seu arsenal
nuclear – relatou Walter.
De seguida, levantando-se abriu os braços com as palmas da
mão viradas para o chão
– A morte desceu dos céus e o mundo antigo desapareceu,
para sempre – citando a frase que era ensinada a todas as
crianças
– Óptimo, eu não teria feito melhor. Deixe-me dizer-lhe que
tem excelentes dotes de orador. Agora, se não se importar,
podia falar-nos um pouco do que aconteceu depois do grande
cataclismo?
– A maioria da população mundial morreu nesse dia. Nações
inteiras foram apagadas do mapa. Os diversos líderes
sobreviventes reuniram-se e decidiram destruir toda a
tecnologia da era nuclear, de modo a evitar que algo
semelhante pudesse voltar a acontecer.
– O Homem não deve possuir nem criar meios para se autodestruir – citou Artur, afastando algo imaginário com a mão
esquerda.
– Vejo que está bastante informado sobre o assunto...
– Poupe-nos o comentário. Já que insiste, vou directo ao
assunto. Eu pretendo que recrie uma tecnologia da era
nuclear.
Walter levantou-se impetuosamente e aproximou-se de Artur.
Por um momento, perdera todo o medo, pois sentia que
estava a servir um propósito maior.
– Bem, acho que me pode matar já. Não há nada que me
convença a desenvolver tecnologia proibida e tenho a certeza
que todos os outros sobreviventes são da mesma opinião.
Mais facilmente abdicaremos das nossas vidas do que
participaremos em tal loucura – gritou, apontando o dedo a
Artur.
– Peço que se acalme – ordenou o líder, pedido, com um
gesto, aos outros membros do concílio que fizessem o
mesmo. – Diga-me, quais são as sete tecnologias proibidas.
Sabe-as de cor?
– Claro que sei, é a primeira coisa que nos ensinam quando
entramos na Academia Imperial das Ciências – constatou
Walter, admirado com a aparente calma de Artur.
– Diga-as, em voz alta.
– É proibido manipular núcleos atómicos, assim como realizar
fissuração e fusão nuclear. É proibido desenvolver propulsão
a jacto ou qualquer outro projéctil ou veículo, tripulado ou não,
que exceda a velocidade do som. É proibido construir
máquinas que efectuem cálculos complexos mais rápido que
a mente humana. É proibido acelerar e colidir qualquer
partícula atómica e sub-atómica. É proibida a criação de
compostos químicos que sejam altamente inflamáveis,
corrosivos, explosivos ou tóxicos, sendo a única excepção a
pólvora preta. É proibido manipular cadeias de DNA e a
criação e manutenção de organismos altamente infecciosos
ou letais para a espécie humana e ecossistemas em geral.
São proibidas experiências psicológicas com o objectivo de ler
ou manipular a mente humana. Qualquer pessoa,
independentemente do estatuto, que viole ou tente alguma
destas regras receberá a pena capital e todos os registos do
seu trabalho devem ser imediatamente destruídos. Estas são
as regras para evitar que a espécie humana se auto-destrua.
– Excelente dicção e não lhe encontrei nenhuma falha –
congratulou Artur, batendo palmas. – Contudo, julgou-me mal,
eu sei perfeitamente os limites. Somente sou bárbaro na
vossa designação e não tenho ilusões megalómanas de
poder. O que eu pretendo não irá violar nenhuma dessas
regras.
– O que é que você pretende, então? – inquiriu Walter,
confuso com mais uma reviravolta.
A face de Artur abriu-se num sorriso, enquanto se levantava e
fazia sinal ao concílio para o imitar.
– Eu vou deixar que você próprio descubra. Isto é, vou-lhe
mostrar o problema e você irá sugerir uma solução – anunciou
o líder, apontando para a saída.
– O que o leva a crer que eu irei trabalhar para si? – hesitou
Walter, mantendo a sua posição.
– Já tivemos a conversa das alavancas uma vez, não julgo
que seja necessário repeti-la. Acho que o próprio problema
poderá ser um estímulo importante. Agora siga-me, tenho a
certeza que a curiosidade o está a afectar mais do que queria.
Saíram do palácio e enveredaram pela rua principal. Apesar
de ser hora de ponta, a multidão abria alas para os deixar
passar. O inventor viu que a cidade possuía várias fontes com
água corrente, apesar se encontrar num ponto alto. Ao
observar o pavimento, descobriu pequenas fissuras nas
extremidades da via, o que provavelmente corresponderia a
esgotos.
A conversa enigmática despertara-lhe um grande interesse.
Questionava-se sobre o que é que uma cidade-estado tão
avançada poderia ainda precisar. Por mais que se esforçasse,
só lhe ocorria matérias de índole bélica.
Apenas meia dúzia de soldados acompanhava a comitiva.
Walter perscrutava cada face e cada beco, na esperança de
poder escapar.
– Caro Walter, se me permite que o trate assim, não acho que
uma tentativa de fuga seja uma coisa sensata de se fazer.
Para além de ser pouco provável que tenha sucesso, os
outros prisioneiros sofrerão as represálias. Pense neste
passeio como um presente – sugeriu-lhe Artur, entrecruzando
os dedos numa atitude de auto-confiança.
O inventor parou e olhou-o, surpreendido. Parecia-lhe
impossível aquele homem estar sempre um passo à sua
frente. Apercebeu-se, tarde demais, que se o líder tinha uma
suspeita, o seu comportamento confirmara-a. Só lhe restava
continuar a andar e ver o que ele tinha para lhe mostrar.
Pararam de frente para uma fornalha, cujo vapor fazia
movimentar uma das linhas de teleférico. A construção tinha o
tamanho de uma pequena moradia. Um homem colocava
regularmente carvão no forno.
– Está a ver esta fornalha? Tenho a certeza que este tipo de
equipamento lhe é familiar. Pode explicar-nos como é que
funciona?
Walter olhou-o zangado. Não lhe tinha mostrado nada de
extraordinário e ainda queria que ele embarcasse noutro dos
seus esquemas mentais.
– Porque raio é que você não vai directo ao assunto? –
protestou, agitando violentamente os braços.
– Tenha calma, esse temperamento faz mal à saúde. Acho
que não vai contra a sua consciência explicar o
funcionamento da máquina a vapor, assim os meus
assessores ficam todos com o mesmo nível de conhecimento
– apaziguou-o Artur, soltando uma gargalhada ligeira.
O inventor não pode evitar rir-se também, face ao insulto que
ele dera aos seus adjuntos. De algum modo, aquele homem
extraía de si as emoções, como um músico fazia com um
instrumento.
– A fornalha aquece a água, que é transformada em vapor.
Usando a pressão daí resultante, faz-se movimentar o pistão
e assim se gera um movimento circular que pode ser usado
para inúmeros fins...
– Exacto, eu não explicaria melhor. Agora, peço-lhe que deixe
parte da aplicação prática e que nos diga quais são os
requerimentos da máquina.
– É necessária uma metalurgia suficientemente avançada
para fundir as partes necessárias, água em estado líquido e
carvão.
– Meu caro, julgo que observou um pouco do nosso modesto
castro. Diga, qual acha ser a maior limitação que enfrentamos
no uso de tal maquinaria?
– Vocês parecem possuir a técnica necessária para fundir o
aço e água corrente em abundância – Walter parou e olhou
Artur nos olhos.
Finalmente percebera
comunidade.
o
problema
que
afligia
aquela
– Falta-vos o carvão.
– Precisamente! O carvão também é um recurso finito. Ainda
há poucos minutos nos relembrou as consequências de uma
guerra motivada por escassez energética. Quando o carvão
não for suficiente para todos, haverão outras guerras –
concluiu o líder, com um gesto de triunfo.
– Isso é alarmismo! Se bem me lembro, um dos génios e
visionários da era nuclear disse que não sabia como seria a
terceira guerra mundial, mas que a quarta seria com paus e
pedras. Se compararmos o potencial bélico dessas nações
beligerantes durante o grande cataclismo e o que possuímos
agora, provavelmente eles nos chamar-nos-iam de primitivos
– interveio Aristides, colocando um braço em frente de Artur
como que impedindo-o simbolicamente de avançar.
– Meu caro Aristides, eu nunca esperei que levasses esta
ameaça a sério – revelou, fazendo-lhe um sinal para que
baixasse o braço.
De seguida, virou-se para os restantes.
– Não nos iludamos ao pensar que, por via das restrições
tecnológicas, uma guerra à escala mundial não será tão
terrível como a anterior. Pelo contrário, será mais longa e
matará mais pessoas. Temo que qualquer nação que enfrente
a obliteração possa cair na tentação de desenvolver e usar
tecnologia proibida. Se isso acontecer, a ameaça de extinção
pairará mais uma vez sobre a nossa espécie.
Walter não precisava de mais explicações, compreendera
finalmente a razão para o seu sequestro. Artur sabia muito
bem o que fazia, pois só um inventor com a sua especialidade
e bastante capacidade poderia resolver o problema.
– Exijo saber se este homem pode ou não resolver o
problema! Já estamos a prolongar esta conversa há
demasiado tempo – protestou Xavier, visivelmente impaciente.
– Xavier, espera um momento, já iremos abordar esse
assunto. Caro doutor Ramos, peço desculpa pela interrupção.
Consegue estimar quantos habitantes tem o castro?
– Estimei que haverá cerca de vinte a trinta mil.
– É uma boa estimativa. Se juntarmos os que vivem no vale e
as vilas satélite, são cento e dez mil habitantes, segundo o
último censo. Consegue estimar quanto carvão é necessário
por ano para manter este nível tecnológico?
Walter fez o cálculo de cabeça, ficando mais consciente do
problema.
– Um quarto de milhão de toneladas por ano. Quantas minas
activas possuem?
– É uma estimativa admirável, pois está muito perto dos
valores oficiais. Em todo o território, há apenas uma mina –
confessou Artur com um sorriso amargo. – A capacidade foi
avaliada e o carvão nesse jazigo situa-se entre um milhão e
um milhão e meio de toneladas. Ou seja, há energia para
mais quatro a seis anos. A questão que está na sua cabeça é
muito facilmente respondida, foram feitos grandes esforços
para encontrar outras minas e todas praticamente infrutíferas.
O carvão encontrado nos últimos dez anos não dá sequer
para suprir as necessidades energéticas desta cidade durante
meio ano. Aristides, conta-lhe o que ficou decidido no último
concílio estratégico-militar do castro.
– Não considero apropriado contar a um estranho as nossas
resoluções internas, quando nem sequer o fazemos ao
comum dos cidadãos – objectou outro dos assessores, um
homem baixo e redondo.
– Fábio, ele precisa de saber para melhor desempenhar o seu
trabalho. Aristides, por favor, explica ao senhor Ramos quais
as consequências da escassez energética.
– Entraremos em guerra, tentando expandir o território para
Norte, de modo a obter as minas de carvão aí existentes.
– Porquê? – questionou Artur de um modo retórico.
– Porque caso não o façamos, estimamos que metade da
população diminua pelo menos um terço, nos dez anos
seguintes ao fim do carvão.
– E quais são as reservas existentes a Norte? – insistiu o líder
do castro.
– Estimamos algo entre sete a oito toneladas.
– Como vê, caro doutor Ramos, a guerra seria apenas uma
solução temporária. É necessário aceder e controlar outras
formas de energia. Agora percebe porque está aqui? Pode
explicar a estes senhores qual é a sua especialidade?
O inventor olhou os adjuntos com confiança no olhar. Passou
a mão pelo cabelo para afastar o nervosismo, como
costumava fazer antes de qualquer apresentação importante
na Academia Imperial de Ciências.
– Eu estudo a electricidade e o seu potencial para substituir o
carvão como fonte de energia.
Nesse momento, Walter ficou estupefacto com a sua própria
reacção; a escolha de palavras e gestos de Artur tinham sido
impressionantes. O líder do castro encontrara a alavanca
certa.
A musa
Walter acordou quando os primeiros raios de sol entraram
pela janela. Um sorriso aflorou-lhe nos lábios quando sentiu a
mão de Eva sobre o seu peito. O sorriso cresceu ao relembrar
a noite fantástica que havia tido com a criada.
Com cuidado, afastou o braço dela e levantou-se. Ao afastar
os lençóis, não pôde evitar apreciar a forma esbelta da jovem.
Sentindo crescer dentro de si um desejo intenso, resistiu à
tentação de a acordar, pois não queria chegar atrasado. Pé
ante pé, aproximou-se do guarda-fatos e retirou um dos
uniformes de inventor que lhe fora dado. Assim que vestiu as
calças, apercebeu-se que ela despertara.
– Bom dia – cumprimentou, olhando-a com um sorriso.
Havia algo nela que o empolgava. Pensara no assunto várias
vezes e chegara à conclusão que só podia ser alguma coisa
relacionada com a personalidade. Desde o primeiro dia, em
que a rapariga fora encarregada de lhe trazer as refeições,
que sentira uma atracção irresistível. Ela tinha apenas
dezassete anos contudo, a nível psicológico, parecia muito
mais madura. Os sentimentos pareciam ser mútuos, de modo
que a relação evoluiu rapidamente para um nível mais sério.
Uma ou duas vezes por semana, passavam a noite juntos.
Eva ergueu-se, expondo sensualmente os seios, numa atitude
de clara provocação. Respondeu-lhe à saudação, enquanto
passava a mão pela pele morena do seu tronco. Walter não
sabia qual a razão para ela assumir um comportamento tão
atrevido, todavia, ele adorava.
– Tenho que sair rapidamente. Preciso de inspeccionar os
trabalhos antes de falar ao concílio – explicou o inventor,
apertando os botões da camisa.
– É pena – comentou a criada, arqueando as costas e
projectando o peito.
A mão passou pelos seios, desceu pela barriga e
desaparecendo por baixo dos lençóis. Com um movimento
insinuante, entreabriu a boca e encarou-o com um olhar felino.
– Caso contrário, poderíamos brincar mais um pouco –
acrescentou
– Desculpa, eu gostava muito, mas tenho mesmo de ir. O que
é que fazes logo à noite? – convidou, vestindo o casaco.
– Não sei... – murmurou Eva, fingindo hesitar – Depende do
que tu quiseres.
Walter sentiu o corpo reagir involuntariamente quando ela
passou o dedo pelos lábios.
– Sabes bem o que eu quero. Agora tenho mesmo de ir. Até
logo – despediu-se, abrindo a porta.
– Espera! – ordenou-lhe, saindo da cama inesperadamente.
O beijo foi breve, todavia suficiente para lhe deixar um sabor
adocicado na boca, uma sensação que normalmente o
acompanhava durante uma grande parte do dia.
Quando se separaram, ele fechou cuidadosamente a porta e
entrou na porta seguinte, a poucos passos. Ainda estava
instalado no mesmo quarto onde o haviam colocado no
primeiro dia. Como não havia uma academia de ciências no
castro, um salão adjacente havia sido convertido num
laboratório, onde Walter poderia testar os protótipos antes de
os aplicar na realidade.
À excepção de uma fina camada de pó, as mesas estavam
quase vazias, já que os experimentos falhados empilhavamse nas prateleiras e os que haviam sido bem-sucedidos
estavam instalados no terreno. Walter enfiou o molho de
folhas amarelas na sua pasta de couro e, com ela debaixo do
braço, saiu e voltou a trancar a porta. Abandonou o palácio
pela escada de serviço, vendo-se em poucos segundos
rodeado pelo movimento intenso daquela hora matinal.
Durante os últimos seis meses, pudera seguir uma rotina,
como sempre fizera e tanto gostava. Esta só havia sido
perturbada duas vezes: a primeira acontecera quando os seus
companheiros de expedição tentaram fugir, a segunda fora
quando teve de apresentar os resultados obtidos ao fim dos
três primeiros meses.
A execução dos que o acompanhavam ainda lhe causava
arrepios pela violência e crueldade com que fora posta em
prática. Não tivera outra escolha que não fosse assistir ao
cumprimento da pena. Tivera de apelar a todo o seu autocontrolo para não reagir, enquanto os seus conterrâneos eram
espancados até à morte. Isso quebrara a ligação à sua vida
anterior e ele tinha quase a certeza que fora orquestrado por
Artur. Porém, sem provas, o melhor era manter-se em
silêncio.
Apesar do nervosismo, os seus resultados haviam sido bem
recebidos há três meses atrás. Pouco mais tinha do que
alguns projectos e um par de protótipos funcionais. O forte
dos assessores não era a ciência e, com alguma
complacência de Artur, conseguira ser bem recebido. Todavia,
eles haviam exigido uma aplicação prática ao fim de meio
ano. Para tal, disponibilizaram-lhe uma equipa de
trabalhadores e técnicos, dando-lhe igualmente liberdade total
em termos de materiais a usar e de onde iria aplicar as suas
criações. Prometeram-lhe também que lhe dariam a liberdade
assim que fosse bem-sucedido. Dentro de duas horas teria de
apresentar os seus resultados e, depois de tão grande
investimento, não esperava que lhe facilitassem a vida.
Perdido nos seus pensamentos, chegou rapidamente à
estação de bombeamento de água que servia toda a cidade.
O anterior sistema elevava a água através de uma corrente de
baldes. Fora o primeiro local onde quisera intervir, pois uma
pequena escassez de carvão poderia comprometer o
fornecimento de água à cidade. Através de moinhos de vento
e um reservatório maior, conseguira bombear quase um
quarto das necessidades da cidadela. Tudo isso fora obtido
sem necessidade de energia eléctrica, nem um grande
aparato, o que significava que ainda teria um grande trabalho
pela frente. Pensara em ligar vários motores eléctricos e
armazenar a energia num condensador gigante. Assim, mais
tarde, poderia ligar aos outros sistemas da cidade e fornecê-la
mesmo quando não houvesse vento.
– Bom dia, Jorge – cumprimentou, aproximando-se do
operador da maquinaria – como é que o sistema se está a
portar hoje?
– Muito bem, ainda não foi preciso acender a fornalha.
Estamos a bombear quase três mil litros por minuto. Estamos
a poupar duzentos quilos de carvão por hora – reportou o
homem que, apesar de ter a cara suja, apresentava um
sorriso.
– Excelente. Algum problema técnico que eu deva saber?
– O mesmo de sempre... Quando há vento, conseguimos
bombear mais água do que gastamos, só que é impossível
guardar água para mais do que duas horas. Quando não há
vento, temos de usar carvão.
– Obrigado. Estou perfeitamente consciente desse problema e
estou a pensar numa solução – explicou Walter, despedindose do monitor.
Sem perder tempo, dirigiu-se à parte industrial da cidade. Ali
estava um dos seus maiores desafios, o enorme elevador,
cuja função era abastecer matéria-prima e comida.
Provavelmente, era o projecto mais importante, pois o
mecanismo gastava várias toneladas por dia. A sua primeira
ideia fora represar um curso de água que passava ali perto e
usar a força mecânica para elevar a mercadoria. A ideia não
fora coroada com sucesso, pois a corrente não providenciava
força suficiente para mover a maquinaria. Como segunda
tentativa, fizera rodar um dínamo no interior de um
enrolamento de cobre, criando uma corrente eléctrica por
indução e, com isso, fizera funcionar um pequeno motor
eléctrico, que não era mais do que inversão do processo
anterior. A eficiência não era elevada, mas o facto de
conseguir criar uma fonte de energia eléctrica contínua era um
marco importante.
Desceu pelo teleférico até ao vale, tomando algumas notas
sobre o progresso dos trabalhos. O plano era usar vários
moinhos de água em pontos diferentes e ligá-los a vários
motores, de modo a conseguir elevar a mercadoria sem usar
carvão.
Ao chegar ao fundo, foi recebido pelos seus dois assistentes,
ambos com um semblante carregado. Toda a área se
encontrava vedada, pois vários acidentes tinham já ocorrido,
felizmente nenhum deles ainda fatal.
– Bom dia, Paulo. Como é que estão a correr as coisas?
– Nada bem, houve outro acidente. Um dos nossos rapazes
sofreu um choque. Felizmente, os médicos já o observaram e
ele está vivo. Têm várias queimaduras e está inconsciente,
tão cedo não volta ao trabalho.
– Raios... – praguejou Walter, controlando-se de seguida –
Ainda bem sobreviveu, não iria conseguir enfrentar a família.
Quantas vezes é preciso eu repetir que ninguém pode tocar
nos cabos enquanto a máquina está em funcionamento.
Avisei-vos desde o primeiro dia.
Calou-se, pois apercebeu-se que levantara novamente a voz.
– E que mais? – perguntou o inventor, depois de respirar
fundo.
– Instalámos o segundo moinho. Parece ter apenas uma
fracção da potência do primeiro, como previsto, mas o efeito é
mais severo do que esperávamos – reportou o mais baixo do
grupo.
– Provavelmente teremos de construir um dique e fazer fluir o
ribeiro por um único moinho – comentou Walter, desanimado.
– E tu, David, tens alguma novidade?
– Ainda nada, o cobre continua a aquecer mais do que
esperávamos. Até agora não há problemas, mas quando a
corrente aumentar, o sistema poderá não aguentar –
respondeu o homem que, apesar de ser bastante encorpado,
parecia recear o inventor.
– Temos de insistir com o pessoal da metalurgia para nos
fornecerem fios com menos impurezas, o que significa que
teremos de mudá-los todos e, provavelmente, também o
enrolamento do indutor. Espero que pelo menos a eficiência
aumente – explicou Walter, despedindo-se dos trabalhadores.
Tinha esperança que, ao diminuir a quantidade de carvão
usada pela cidade, conseguisse operar o elevador a uma
velocidade mais baixa e exclusivamente com energia
eléctrica.
Tomou o teleférico de volta e amaldiçoou a velocidade a que
este se movia. Ainda precisava de visitar o experimento mais
importante, ao qual dedicava a maior parte do seu tempo.
Quando a cabine parou no cais, ele saiu, com o intuito de
chegar rapidamente aos jardins.
Ainda não tinha dado dois passos quando sentiu uma mão no
ombro.
– Preciso de falar contigo – ouviu dizer uma voz familiar atrás
de si.
Apesar de ter reconhecido quem o chamava, quando se
voltou ficou surpreendido por ver Eva. Esta estava com a
cabeça tapada por um capuz e a sua expressão denotava um
grande nervosismo.
– Ah, és tu! O que fazes aqui?
– Preciso de falar contigo, é urgente – pediu em voz baixa.
– Podemos falar logo a seguir à reunião. Agora estou atrasado
e ainda tenho que ver a estação que construí no jardim –
concedeu o inventor, mostrando intenção de continuar o seu
caminho.
– Eu sei, mas isto é mais importante – silabou a rapariga,
falando ainda mais baixo e notando-se um tom de
aborrecimento com tanta hesitação.
– O que é que pode ser mais importante que a reunião? –
inquiriu Walter, ficando irritado com tanta insistência.
– A tua vida está em risco. Vem comigo, eu explico-te –
ordenou Eva, agarrando-o pelo pulso.
Deixou-se guiar através das ruas estreitas. A sua mente
tentava perceber porque razão a sua vida estaria em perigo.
Qualquer que fosse o caminho que as suas conjecturas
seguissem, iam sempre parar a Artur. Percepcionava o líder
do castro como um homem que não ligava a meios para
atingir os fins. Por baixo daquela fachada de homem civilizado
e educado, parecia haver um dirigente implacável e pouco
tolerante. Questionava-se se ele seria capaz de o assassinar
assim que terminasse a sua tarefa. Ao assumir o ponto de
vista do governador, soube logo que seria isso que ele faria.
Eva parou num beco sem movimento. Walter notou que ela
trazia os olhos vermelhos, deduzindo que estivera certamente
a chorar.
– Eu acho que o meu pai descobriu a nossa relação... –
revelou a jovem.
– Já percebi, eu falo com ele. Eu gosto de ti e caso contigo
para não haver mais problemas. Já era tempo de
assumirmos... – prometeu, pensado que ela estava a
exagerar.
– Pára! Ele mata-te quando souber! – vaticinou ela, elevando
a voz.
O inventor sabia ser uma pessoa respeitada no castro, em
parte por ser honesto e também por estar a conseguir
progressos, dos quais toda a comunidade dependia.
– Espera lá, quem é o teu pai?
– Artur Olivais, o líder do castro – revelou com um ar sério.
– Calma ai! Estás a brincar comigo, certo? – inquiriu Walter,
forçando um sorriso.
– Não, eu nunca te mentiria... – protestou Eva, começando a
chorar – eu nunca te disse, porque sabia que tu nunca te
aproximarias de mim se soubesses. Sabes, eu apaixonei-me
por ti desde o primeiro momento...
– Chega! Se ele vier a saber, vai-me matar de certeza! Como
é que pudeste ser capaz de me fazer uma coisa destas? –
ripostou o inventor, visivelmente furioso.
– Calma. Eu tenho um plano! Podemos fugir os dois...
– Fugir... – riu-se Walter histericamente,
desesperado – Ninguém consegue fugir daqui.
sentindo-se
Relembrou os gritos dos soldados ao serem brutalmente
executados, quase que sentindo as dores que tal pena
acarretava.
– Vais ter de confiar em mim.
– É mais fácil de dizer do que fazer – protestou, sentindo-se
encurralado.
– Não confias em mim? – inquiriu Eva, com um olhar
inquisidor.
– Claro que confio! – esclareceu, aborrecido por as conversas
enveredarem sempre no mesmo sentido.
– Então age como tal. Agora vai à reunião e tenta agir
normalmente. Daqui a algumas horas, eu explico-te o meu
plano, ainda preciso de fazer mais uns ajustes.
Ela beijando-o e desapareceu de seguida por uma rua lateral.
Walter voltou à rua principal. Ao olhar a torre do relógio,
percebeu que já não teria tempo para visitar o outro
experimento. Tentou esconder as suas emoções enquanto se
dirigia ao palácio, mas tal não era fácil devido ao tumulto que
se tinha apoderado dele. Já dentro do palácio, compôs as
suas roupas, retirou os papéis da pasta e esperou que o
chamassem.
A audiência iniciou-se à hora prevista. Ao atravessar o salão,
não pôde deixar de se sentir mais oprimido do que se sentira
quando ali fora trazido pela primeira vez. Era um homem
morto, caso Artur desconfiasse.
O concílio estava reunido, mas o inventor sabia que a
conversa aconteceria essencialmente entre ele e Artur.
Inicialmente, o diálogo decorreu no mesmo tom educado a
que estava habituado, com uma troca mútua de
cumprimentos, seguindo a etiqueta. Durante o processo,
observou o líder cuidadosamente, relaxando um pouco ao ver
que não havia qualquer sinal que revelasse conhecimento da
relação amorosa.
– Já chega de formalidades. Caro doutor Ramos, pode agora
apresentar os resultados do seu trabalho ao concílio? – pediu
Artur.
– O projecto para a bomba de água foi aplicado e funciona
como previsto
– Contudo, esse sistema ainda consome carvão...
– Exacto, depende do vento para erguer a água.
Conseguimos bombear um pouco mais de água do que a
cidade consome. Todavia, o reservatório não é suficiente para
abastecer a cidade mais do que um par de horas. No entanto,
devo sublinhar que conseguimos poupar várias centenas de
quilos de carvão por dia.
– Ninguém está a colocar isso em causa. Tendo em conta a
crise que nos ameaça, este concílio não considera que isso
seja suficientemente bom. Tem alguma sugestão de
melhoramento? – inquiriu Artur, cujo tom de voz denotava
impaciência.
– Espero converter os moinhos em geradores eólicos, guardar
a energia obtida em condensadores e usá-la quando não
houver vento...
– O que é um condensador e como é que funciona? –
interrompeu Aristides.
– Muito simples. Pegamos num recipiente com líquido e
mergulha-se dois fios de cobre nele. Ao passar corrente
eléctrica, iremos carregar o líquido com energia. Basta ligar
esses dois cabos e recebemos essa energia de volta.
– E isso funciona? – duvidou Aristides.
– Sim, o aparato que construí nos jardins prova isso mesmo.
– Parece-me um bom tópico. Por favor, fale-nos da máquina
que instalou no jardim – solicitou Artur.
– Alguns metais geram corrente eléctrica quando expostos à
luz solar. Tendo isso em conta, eu montei um aparato que
recolhe essa energia e a guarda nesses tais condensadores.
O objectivo é providenciar iluminação durante a noite. Para tal
fazemos passar corrente por um filamento de tungsténio
dentro de uma ampola, cujo ar foi previamente retirado. Isso
poderia poupar bastante óleo ao castro...
– Óleo não é um recurso crítico! – protestou Igor, o mais velho
dos assessores.
– É verdade, mas o facto de reduzirmos a quantidade de
materiais que temos de elevar diariamente cria-nos a
possibilidade de reduzir a velocidade do elevador e assim
operá-lo somente com a força da água.
– Você parece ter um plano sólido e abrangente, que
considero adequado – decidiu Artur, fazendo sinal aos
assessores para não interferirem mais na conversa. – Agora
diga-me, o que pretende fazer nos próximos três meses?
– Vou represar o curso de água e usá-lo para mover o
elevador. Como já referi, quero mudar os moinhos de vento
para poderem abastecer a cidade com água. Por fim, quero
alargar o experimento com os condensadores, para tentar
iluminar uma parte da cidade.
– E que dificuldades técnicas espera encontrar?
– Os fios condutores não são puros o suficiente, causando
aquecimento e perdas consideráveis. Espero que a metalurgia
consiga providenciar melhores materiais. Os condensadores
não possuem uma grande capacidade, contudo espero
conseguir melhorá-la substancialmente nas próximas
semanas...
Hesitou, pois havia outro problema, um pouco mais grave. A
energia eléctrica gerada pelos metais irradiados e pelos
geradores era diferente. Só a primeira podia ser guardada e
não podia ser usada para mover motores. Não sabia qual a
diferença entre as duas e, como tal, não fazia ideia de como
ultrapassar este obstáculo. Algo lhe dizia que Artur não iria
aceitar bem tal limitação e sabia que na era nuclear aquele
problema havia sido resolvido, de modo que optou pela via do
silêncio.
– Creio que esses problemas podem ser resolvidos com
tempo. Estamos muito satisfeitos com o teu desempenho, o
consumo de carvão tem diminuído gradualmente. Esperamos
que, ao estenderes as invenções para outros sistemas, nos
poderemos libertar desta dependência. Se ninguém tem mais
nada a dizer, eu darei esta reunião por terminada – concluiu o
líder do castro.
Ninguém ousou contrariá-lo. Assim que os assessores
começaram a dispersar, Artur veio ao seu encontro. A
expressão amistosa tinha desaparecido de todo.
– Preciso de falar contigo, em privado. Espera por mim no
corredor – pediu, enquanto cumprimentava o inventor.
O sangue gelou-se-lhe nas veias ao apertar a mão do
governante.
– Sim, claro... – balbuciou em pânico, sabendo que Artur leria
facilmente as suas expressões.
Abandonou a sala, completamente alheado da realidade e
tomado pelo medo. Houve um momento de hesitação em que
pensou em fugir. Todavia, em plena luz do dia, isso seria
suicídio. Deu voltas e mais voltas, percorrendo o corredor de
ponta a ponta. A sua cabeça dava ainda mais voltas, pois não
sabia o que fazer.
Quando o pai de Eva apareceu, já Walter estava no mais
profundo dos abismos psicológicos.
– Desculpa ter-te feito esperar. Vou ser directo e sincero
contigo, eu sei que me estás a esconder algo. Tens duas
hipóteses: dizes-me o que é, ou eu descubro e tu sofrerás as
consequências. O que preferes?
Quis falar, mas as palavras não lhe obedeciam. Gostava de
pelo menos saber a que é que ele se referia. Se lhe falasse
sobre Eva, talvez pudesse escapar vivo, pois ainda
precisavam dele. Ao revelar sobre os problemas técnicos,
poderia ter algum tipo de complacência, já que o obstáculo
poderia ainda ser ultrapassado. Recordou-se que Eva
prometera-lhe uma fuga, de modo que o mais sensato seria
falar do problema técnico e esperar que a fuga se
consumasse com sucesso.
Ao explicar as limitações entre os dois tipos de corrente
eléctrica, viu que a expressão de Artur se ia suavizando.
– Ainda bem que me contaste. Não precisas de te preocupar,
os teus esforços estão a dar-nos tempo. E tempo poderá darnos mais soluções. Tenta resolver o problema e, mesmo que
não consigas, havemos sempre de conseguir diminuir o
consumo de carvão – Artur fez uma pausa, olhando-o nos
olhos. – Há uma coisa que te quero contar. A mina tem mais
carvão do que te dissemos. O grande problema é a presença
de metais pesados, que tememos serem radioactivos. A cada
ano que passa, a concentração tem aumentado, o que está a
provocar doenças nos trabalhadores e até mesmo nas
pessoas da cidade. É certo que a queima de carvão provoca
doenças respiratórias, contudo o ritmo a que têm aumentado
nos últimos cinco anos deixou-nos alarmados. Não são
dezenas nem centenas, isto pode afectar uma em cada cinco
pessoas em menos de vinte anos. Percebes agora a urgência
do projecto?
Walter acenou com a cabeça, sabendo que a sua fuga seria
ainda mais difícil do que antecipara.
– E claro, a capacidade da mina é finita. Não haverá carvão,
mesmo contando com o que está contaminado, para mais de
quinze anos. Peço desculpa por não te ter dito antes, mas o
conselho não havia autorizado – explicou o líder do castro.
– Vou dar o meu melhor – prometeu Walter, esperando que o
tom soasse convincente.
– Eu acredito que sim. Já agora, estás a esconder-me mais
alguma coisa? – inquiriu de surpresa.
– Não! – respondeu bruscamente.
– Ainda bem – aceitou Artur, retirando-se de seguida.
O inventor não sabia se as palavras dele haviam sido
sinceras. A negação fora demasiado brusca para passar
despercebida. Era irrelevante, concluiu, pois ganhara tempo,
que era o que mais precisava naquele momento. Achou
melhor voltar aos seus aposentos.
Ao entrar, viu que Eva o esperava. Pareceu-lhe estar muito
mais alegre que naquela manhã. Ela veio ao seu encontro e
deu-lhe um abraço reconfortante, acompanhado de um beijo
carinhoso.
– É perigoso vires aqui – protestou o inventor assim que se
separaram.
– Já não faz diferença. Está tudo arranjado, deves descansar.
Iremos partir ao fim da tarde.
– Qual é o plano?
– Confias em mim ou não? – devolveu ela, com um sorriso.
Dadas as circunstâncias, não sabia o que responder. Queria
confiar contudo, a sua intuição dizia-lhe para ter cuidado.
Detestava tomar decisões sem ter todas as informações.
– Se não confias em mim, o melhor é a nossa relação acabar
aqui. Não precisamos de fugir. É mais fácil, nem sequer
preciso de arriscar a minha vida por ti. Tu continuas com a tua
vida e eu com a minha. Como fui parva ao achar que te
preocupavas com os meus sentimentos... – escarneceu Eva,
ao aperceber-se da hesitação.
– Chega! – interrompeu-a, falando num tom de voz mais
elevado. – Não sabes do que falas! Se formos apanhados, os
nossos destinos serão muito diferentes, vê se percebes isso!
Se eu tivesse sabido quem eras desde o início, isto nunca
teria acontecido.
– É isso que querias? Que a nossa relação nunca tivesse
acontecido? – perguntou, com as lágrimas a galgarem-lhe as
faces.
Detestava quando as conversas enveredavam por estes
caminhos tão rapidamente. Por mais que lhe custasse a
engolir o orgulho, não conseguia ficar zangado com ela.
– Não! – confessou, combatendo também a vontade de
chorar.
Num impulso abraçou-a, apertando-a com força.
– Desculpa, eu não queria ter dito aquilo.
– Eu também não.
Esta pequena zanga fê-lo perceber que temia mais perdê-la
do que a ira de Artur. Quebraram o abraço e beijaram-se
apaixonadamente.
Como precisava de limar algumas arestas do plano, Eva
deixou-o pouco depois.
Walter enfiou os seus parcos pertences na pasta e esperou
pelo almoço. Este foi-lhe servido ao meio-dia exacto e
consistia somente num peixe salgado acompanhado por um
pão de trigo. Ao comer, não pôde deixar de pensar que aquela
poderia ser a sua última refeição. Quando terminou, colocou o
prato de lado, descalçou-se e fechou a portada. A escuridão
invadiu a divisão.
Deitou-se, mas não conseguiu adormecer imediatamente. A
sua mente tentava discernir qual o melhor caminho a seguir. À
medida que acrescentava dados à equação, esta ia ficando
mais complexa e os resultados mais confusos.
Acordou sobressaltado com duas pancadas suaves na porta.
Era o sinal que ela lhe costumava dar. Levantou-se
estremunhado e dirigiu-se à porta. Não falou, já que receava
uma armadilha.
Num movimento, abriu a porta e deu de caras com Eva, que
trazia o mesmo capuz daquela manhã. Num impulso,
espreitou para o corredor e, não vendo mais ninguém, deixoua entrar.
– Está na hora – explicou-lhe ela, estendendo-lhe outro capuz,
antes de continuar. – Toma, veste isto.
O inventor obedeceu-lhe e ambos abandonaram o palácio
pela escada de serviço pouco depois. Haviam sido
abençoados com corredores vazios, de modo que não se
cruzaram com ninguém até chegarem à rua. Deram a volta ao
edifício e dirigiram-se aos estábulos.
– Vamos sair pelo portão principal antes que o fechem para a
noite. Ainda pensei que podíamos sair pela antiga porta de
carga, só que podia soar demasiado suspeito – revelou-lhe
enquanto selava um garanhão castanho-escuro.
Ele assentiu e, uns minutos depois, atravessavam a entrada
da cidade, cada um no seu cavalo, sem que ninguém os
tentasse parar. Ainda nervosos, desceram a encosta do
planalto, usando a mesma rota que os restantes viajantes.
Sempre receosos, tomaram a direcção Sul no caminho
principal. Durante um par de horas seguiram pela estrada a
trote, até ao pôr-do-sol. Quando ficaram sozinhos, ao
escurecer, abandonaram o caminho, seguindo a corta-mato.
Era lua nova, por isso inicialmente avançaram com cautela.
Contudo, por insistência dela, desataram a galope pouco
depois. Ambos queriam afastar-se tanto quanto possível da
cidade antes do amanhecer. Por aquela altura, já deveriam ter
dado pela sua falta. Todavia, pela primeira vez não se
preocupou com isso. A sensação de liberdade apoderara-se
inteiramente dele.
Inesperadamente, Eva foi projectada para a frente e Walter só
teve tempo de fazer o seu cavalo parar.
– Eva! Estás bem? – perguntou ao desmontar.
– Sim, só me dói um pouco o ombro – queixou-se com um
gemido.
O cavalo havia tropeçado numa depressão do terreno. Ao
palpar-lhe o ombro, percebeu que se tratava apenas de uma
ligeira contusão. O maior problema era o cavalo que não se
conseguiria levantar, pois tinha partido uma pata ao embater
numa rocha. Eva aproximou-se dele e afagou-lhe a cabeça
com carinho.
– Deixa o cavalo! – protestou o inventor.
– Cala-te! – ordenou a rapariga. – Não podemos deixá-lo aqui
assim!
– O que é que queres fazer, ficar aqui até que nos apanhem?
– Não, dá-me só um momento.
Walter não respondeu, tentando tolerar as manias dela. Pouco
depois, viu uma gorda lágrima a descer pela bochecha de
Eva, enquanto esta afagava a cabeça do cavalo.
– Desculpa Elea – murmurou, beijando a testa da égua.
Subitamente, empunhou a faca que trazia ao cinto e,
apontando ao pescoço, deu-lhe o golpe de misericórdia.
Seguiram caminho a galopar no outro cavalo. Porém, devido
ao peso excessivo do par, este cansou-se rapidamente, tendo
de prosseguir a trote. Quando o céu começou a clarear,
estavam perto de uma vila abandonada da época do pré-
Rerenascimento. Os telhados estavam caídos, carcaças de
veículos antigos jaziam pelos cantos e a fauna e flora tinham
invadido o espaço. Não parecia que nenhum humano ali
tivesse posto os pés durante anos. O cavalo estava exausto e,
por isso, consideraram que seria melhor passar o dia na cave
do que fora outrora um prédio. O espaço era amplo, de modo
que puderam prender o cavalo num dos pilares e instalar-se a
alguma distância, para evitar o forte cheiro. Comeram restos
que ela havia trazido da cozinha e adormeceram nos braços
um do outro.
Walter despertou com uma voz de comando. A primeira
impressão fora que a voz havia sido fabricada na sua mente.
Contudo, ao ver que Eva também acordara, percebeu que
estava enganado. O medo tomara conta dele, ao ponto de
querer ser apenas um rato e esconder-se num canto. Ao ver a
angústia no olhar dela, percebeu que não tinham saída.
Paralisados pelo receio, não ousaram mexer-se, na
esperança que não os encontrassem.
Tudo se revelou inútil já que, poucos minutos depois, os
soldados do castro entravam no antigo estacionamento. Sem
oferecer resistência, foram ambos escoltados para o exterior.
Nenhum dos dois conseguiu apreciar a brisa daquela tarde de
Outono. As pernas de Walter estavam como borracha, em
antecipação ao momento em que iria enfrentar Artur. Apesar
de saber que era apenas uma questão de tempo, suspirou de
alívio ao descobrir que ele não estava naquele grupo de
busca.
Durante o resto do dia, caminhou de volta para a cidade, pois
não havia nenhum cavalo para ele. À noite não lhe deram
nada para comer e ele sabia qual a razão. Era um homem
morto. Durante a noite, não conseguiu dormir, na esperança
em que houvesse uma oportunidade de fuga. Não teve sorte,
já que um dos homens ficou de sentinela o tempo todo.
Eva seguia no outro extremo da fila. As vezes em que
conseguira ver a sua expressão, encontrara-a sempre com os
olhos vermelhos. Walter sabia que ela sofreria, mas o pai não
iria castigá-la severamente. Ao fim de contras, Walter não
tinha ilusões em quem Artur iria colocar as culpas.
A meio da manhã do terceiro dia, voltaram à cidade. O espírito
de Walter estava completamente quebrado, pois era a
segunda vez que percorria aquela rua como prisioneiro. Desta
vez levaram-no para as catacumbas, por baixo do quartel
militar. Trancaram-no numa cela minúscula, a qual continha
somente um recipiente com água e um penico. As paredes
eram de pedra nua e a luz entrava por uma fresta diminuta,
que ficava acima do nível do olhar.
Ao fim da tarde, a maciça porta de carvalho foi destrancada e
Artur entrou.
– Tranquem-me e só abram quando vos der o sinal
Assim que cumpriram a ordem, ele virou-se finalmente para
Walter.
– Não tentes nada de idiota – aconselhou, colocando a mão
no punhal que trazia à cintura.
O inventor permaneceu sentado e limitou-se a acenar com a
cabeça. O líder do castro retirou um pão da algibeira e atiroulho. Assim que o apanhou, sem pensar duas vezes, começou
a comê-lo. Não conseguia mais suportar a fome.
– Eu sei o que pensas de mim, que sou um monstro. Não é
verdade? Não precisas de o confirmar. Lembras-te da
analogia que eu te dei do jogo de xadrez, no nosso primeiro
encontro? Porque raio é que tentaste passar-me a perna?
Walter comera demasiado depressa, de modo que
interrompeu o discurso com um ataque de soluços. Artur
esperou pacientemente que o inventor se acalmasse.
– Um monstro... até o meu próprio irmão ostracizei. Sabes
qual foi a razão? Ele prejudicava o castro. Desde que lidero
que nunca quis o poder como um fim, era apenas como um
meio. A sobrevivência da minha comunidade é tudo o que me
interessa. Eu sou responsável pela morte dos teus
conterrâneos, já que eles nunca teriam fugido se não tivesse
criado certas condições. E digo-te, durante o tempo em que
liderei, nunca deixei de aplicar uma pena, independentemente
da pessoa, desde que a culpa fosse estabelecida. Acho que
estás a ver o que te espera. Agora diz-me, porque é que
tentaste fugir?
– Eu tinha medo que descobrisse a relação amorosa que tinha
com a sua filha.
Artur soltou uma gargalhada enorme.
– És um idiota, eu sempre estive um passo à tua frente. Sabia
dessa relação antes de acontecer. Bastava observar a
reacção dela quando eu lhe falava de ti ou cronometrar o
tempo que ela passava no teu quarto. Devo dizer-te que ela
foi a única pessoa que não tentei manipular. Infelizmente, nem
o desafio de resolver um problema fulcral à existência
humana, nem o medo, te conseguiriam prender aqui para
sempre. Eu sabia disso, essa foi a razão de ter morto os
outros cativos. Tudo para te impingir mais medo. A realidade é
que, mais tarde ou mais cedo, eu sabia que irias fugir. No
início, fiquei extremamente aliviado, pois parecia que a
alavanca surgira onde eu menos esperava. Não ousei
interferir, pois receava estragar tudo. Pelos vistos falhei,
porque ela acabou por te incitar à fuga. Preciso de ti e não
posso evitar matar-te, porque isso destruiria a ideia de justiça
que tanto me custou a construir. Agora que já conheces o
problema, propõe uma solução.
Walter olhou-o admirado e, em silêncio, a sua mente estava
em branco. Aquele homem conseguira estar sempre vários
passos à sua frente. Naquele momento, um sorriso aflorou-lhe
aos lábios.
– Não preciso de propor uma solução porque você já tem
uma.
– Aprendes depressa. Desisti da liderança assim que soube
que havias sido capturado. O homem que irá tomar o meu
lugar não tem um pulso tão forte e irá querer mostrar que é
mais clemente que eu. Tal como eu, ele acredita que as tuas
invenções são o melhor investimento que se pode fazer nesta
altura. Ele irá castigar-te severamente, mas não ousará matarte. A votação ainda não ocorreu, mas eu vou fazer tudo o que
estiver ao meu alcance para que não surjam problemas.
– Porém... – desconfiou o prisioneiro. – Eu sei que esta oferta
tem uma condição.
– Exacto. Três condições, aliás. Eu não queria falar nelas
antes de saíres daqui, para ter a certeza que te vinculavas.
Estou certo de que as irás aceitar de qualquer maneira.
Portanto, terás de desistir da promessa de libertação e aceitar
a cidadania do castro. Terás de resolver o problema
energético e, por fim, casar com a minha filha.
– É tudo? – admirou-se Walter.
– Quer dizer... – confessou Artur, sorrindo – mesmo que eu te
diga que sim, tu não irás acreditar em mim...
O fruto proibido
Humberto estava nervoso. Impaciente, esperava que os
engenheiros a abrissem, relembrando a sua chegada à Ibéria
duas semanas antes. Naquelas terras selvagens havia
caminhado durante quatro dias antes de o grupo encontrar a
cidade. Muitas expedições haviam passado por ali no entanto,
nenhuma havia investigado a vegetação a fundo.
Os especialistas obrigaram-no a recuar. Iriam usar o último
recurso para abrir a porta blindada.
O entusiasmo inicial havia-se desfeito quando encontraram as
ruínas dos subúrbios. A metrópole havia sido varrida por uma
explosão termo-nuclear e volvidos cinco séculos, somente os
restos das fundações poderiam interessar aos escavadores
de relíquias inúteis. Para um cientista curioso como Humberto,
não havia ali nada de interesse. Apesar da desmotivação
geral, a desmatação prosseguiu. No meio da pequena selva
havia algumas estruturas que haviam resistido à passagem
dos séculos. Mas, nem mesmo nos edifícios menos
danificados havia algo que pagasse o salário diário de um
soldado. A sorte mudou quando um grupo de soldados, que
procurava um sítio mais abrigado para dormir, encontrou a
cave.
O portão aguentara os assaltos dos técnicos durante toda a
manhã. Só quando o sol já atravessara o zénite é que o
conseguiram remover, com recurso a explosivos.
Ainda o pó pairava quando Humberto ignorou as convenções
de segurança e penetrara no interior da casamanta. Outros o
seguiram e cedo descobriram que teriam de proteger as vias
respiratórias com as camisolas sob o risco de sufocar com
poeira. Com os olhos a lacrimejar, atravessou a entrada que
dava para um longo corredor. Parou, tentando lidar com a
desilusão. Parecia ser apenas uma estrutura militar do último
conflito mundial.
O cientista relembrou o que havia aprendido sobre a Terceira
Guerra Mundial. A opinião geral colocava-a como a pior coisa
que acontecera à humanidade desde o seu Génesis. Quase
uma década de combates contínuos e sangrentos culminaram
numa breve guerra atómica. O Verão nuclear queimou grande
parte da superfície, matando mais de cinco biliões de seres
humanos. O Inverno artificial matou quatro em cada cinco
pessoas durante o primeiro ano. A escuridão fora a maior
prova da capacidade de adaptação e sobrevivência do homo
sapiens sapiens. As trevas duraram mais 70 anos e a noite
parcial mais de um século. Não se sabe muito sobre esses
anos e ainda menos sobre o que existia antes.
A estrutura era mais extensa do que à primeira vista parecia.
Prolongava-se por várias dezenas de metros de corredores
labirínticos e tinha pelo menos outros dois níveis.
– Venham ver isto! À sério, larguem tudo o que estão a fazer e
venham ver isto! – chamaram, enquanto Humberto examinava
uma divisão destinada ao alojamento.
– O que foi? – gritam da outra extremidade, criando um eco
surreal.
– Estás bem? – ouviu-se um arqueólogo perguntar.
A situação deixou-o curioso. Ainda confuso com a direcção
pouco clara do som, Humberto encaminhou-se para onde a
origem lhe pareceu ser mais provável. Uns metros encontrouse com um dos colegas e no fim bastou seguir a pequena
multidão que se acumulara à entrada.
Ar seco e rarefeito fluía do estranho compartimento. Os
murmúrios subiram gradualmente de tom. Como todos
pareciam estar com medo de entrar, Humberto furou pelo
entre os colegas e estacou à entrada.
Os seus olhos depararam-se com uma biblioteca. Uma sala
quadrangular, com o comprimento duma carruagem de
locomotiva. Estava repleta de prateleiras de livros. Era,
provavelmente, a maior que havia sido encontrada durante as
duas últimas duas décadas. Os olhos de Humberto
maravilharam-se com a descoberta, ao imaginar o
conhecimento fantástico que podia ser obtido.
Assim que recuperaram do espanto inicial, os cientistas e
arqueólogos organizaram-se de um modo sistemático.
Impulsionados pela descoberta, iniciaram de imediato o
registo e triagem dos volumes que, para o cientista de meiaidade, eram o maior tesouro do passado. Com eles podiam
reproduzir as invenções do passado tendo em conta a
restrições tecnológicas.
Foi numa dessas sessões que ele encontrou algo que não
estava à espera. Era um manual universitário. Folheou-o
casualmente e começou a ler um parágrafo ao acaso. O
coração parou por um momento. Piscou os olhos e releu
novamente. Avançou algumas páginas e recuou o dobro. Tudo
parecia bater certo. Estremeceu ao tomar consciência do
poder que aquele feixe de papel encerrava.
Estacou com o livro na mão. A tecnologia que tinha em mãos
era proibida e arriscava a pena a morte. Ponderou se valeria a
pena arriscar a vida para o mundo ter a possibilidade de
entrar numa nova era dourada. Sabia que o livro seria
destruído assim que os outros o encontrassem. Por impulso,
decidiu guardar a decisão para mais tarde, enfiando o livro na
sua mala.
***
O navio a vapor cruzava o imenso oceano que dividia os dois
continentes. No convés, embalado pelo mar, a mente do
cientista divagava no imenso espaço dos pensamentos.
Tentou concentrar-se, pois queria de tomar uma decisão.
Não tinha dúvidas que a tecnologia descrita no livro mudaria o
mundo. Com ela podia produzir quantidades imensas de
energia e a dependência do carvão terminaria. Acreditava
que, depois de quinhentos anos de inquisição tecnológica, o
mundo merecia uma idade dourada. Contudo, ignorar as
prescrições tecnológicas podia colocar a civilização num
estado em que se destruiria a si mesma.
Com esse pensamento, debruçou-se sobre a amurada e
retirou o livro da sacola. Sem hesitar, atirou-o para o oceano.
Ao voltar para os seus aposentos ficou cada vez mais agitado.
Esperava por um alívio que não veio. Mesmo não tendo o
livro, o conhecimento impelia-o a agir.
As nuvens negras de fuligem que todas as manhãs se
abatiam sobre a cidade eram prova de que este não era o
caminho certo. Cada duas toneladas desse ouro negro
custava em média uma vida humana. Humberto tinha o poder
de mudar isso, só precisava de reproduzir o gerador descrito
pelo livro.
***
Ao ligar a centrifugadora, o barulho tornou o ambiente do
laboratório insuportável.
A meia noite passara há um par de horas e ele estava sozinho
na academia. Era a única maneira de conseguir prosseguir
com o seu projecto. Humberto decidiu fazer uma pausa mas,
mesmo no corredor, não conseguiu desligar-se mentalmente
da sua experiência. Desejava ter uma centrifugadora mais
poderosa.
Ouviu a porta do edifício abrir-se com um estrondo. Pareceulhe que alguém acabara de forçar a entrada no edifício.
Passos ecoaram. Eram muitos pés em movimento.
O coração do cientista começou a bater mais depressa.
Soube de imediato qual era a razão de estarem ali. Tentou
relaxar nos segundos que restavam antes de eles chegarem.
Não tirava apontamentos nem comentara as suas
experiências com mais ninguém. Tentou convencer-se que
que tudo ficaria bem.
Vários polícias de casaco azul e botões dourados cercaram.
Os capacetes ovais faziam com que parecessem mais altos
do que realmente eram. Humberto teve de usar toda a sua
força de vontade para não mostrar o quão assustado estava.
– Doutor Carvalho, você está sob detenção por infringir as
restrições tecnológicas – anunciou o que tinha o maior bigode.
Sem mais explicações, foi escoltado da academia até uma
carrinha prisional de rodas gigantes. Assim que as portas
duplas se fecharam, os pistons a vapor a colocaram a em
movimento. Atravessaram metade da cidade construída em
estilo Neovitoriano até chegarem a um imponente estrutura de
talhe clássico. Fora levado ao Tribunal Imperial porque
quisera dar à Confederação uma fonte quase inesgotável de
energia.
Foi conduzido pelos corredores trabalhados. O edifício
demorara mais de um século a ser erguido e a aura da
construção deixava-o ainda mais desconfortável. Ao entrar na
sala de julgamentos, encontrou o tribunal já reunido.
Humberto começou a tremer.
– Doutor Carvalho, você é presente neste tribunal por violar as
restrições tecnológicas. O que tem a dizer em sua defesa? –
acusou o ancião vestido numa toga negra.
– Eu não violei nenhuma restrição! – protestou o cientista,
tentado não gritar.
– Ainda não, mas os seus experimentos mostram clara
intenção de o fazer. Ou nega que pretende fazer fissuração
nuclear?
– Não nego. Eu apenas queria dar à humanidade uma fonte
de energia alternativa. Como sabe, o mundo precisa
urgentemente disso...
– Não duvido das suas boas intenções, mas a lei é inviolável.
Ambos sabemos que não é este o caminho. Tenho muita
pena, mas terei de aplicar a pena capital...
– Não chega abandonar o projecto?
– Quem me dera... – sorriu amargamente o Juiz. – O maior
perigo não é o experimento, é o conhecimento que tem.
Custa-me saber que iremos perder uma mente brilhante,
contudo, a sobrevivência da humanidade o exige. Todo o
material relativo à experiência deve ser destruído
imediatamente e a pena aplicada dentro da próxima meia
hora. A sessão está encerrada!
Até ao momento em que foi fuzilado, Humberto não conseguiu
sentir rancor, somente tristeza por a humanidade continuar
nas trevas.
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Sobre o Autor
O meu nome é Pedro Cipriano e gosto de escrever de tudo
um pouco. É-me difícil definir o género literário no qual me
encaixo, já que escrevo desde ficção história a policiais,
passando por ficção cientifica e até ensaios. Gosto de
escrever na maioria das vezes sobre a condição humana e as
condicionantes sociais.
Profissionalmente desempenho as funções de Físico
experimental na área de física de partículas como estudante
de doutoramento no Desy (Deutsches ElektronenSynchrotron) que está situado em Hamburgo, Alemanha.
Nos meus tempos livres pratico Haidong Gumdo, uma arte
marcial coreana de luta com espada, a qual já pratico desde
Outubro de 2007. Actualmente sou 1º Kup (cinturão
castanho). Pratico também Capoeira, uma arte marcial
brasileira que combina luta, musica e dança no mesmo
desporto. Comecei em Outubro de 2009 e tenho o cordão azul
(3º
graduação).
Blogue: http://pedro-cipriano.blogspot.pt/
Facebook:
https://www.facebook.com/escritorpedrocipriano
Email: [email protected]
Projectos literários: http://pedrocipriano.blogspot.de/p/projectos.html
Lista de publicações:
http://pedro-cipriano.blogspot.de/p/publicacoes.html
Teia de Memórias
Durante treze anos, José cumpriu a sentença pesada pela
morte do seu melhor amigo, a qual está rodeada por um
enorme mistério. Quando sai finalmente em liberdade, todas
as pistas parecem demasiado frias. Escorraçado da sua
própria aldeia, onde todos acreditam ser ele o culpado, vai
para Coimbra numa tentativa de desenterrar o passado.
Paralelo à luta para se adaptar à vida em sociedade e realizar
os sonhos que foram adiados, inicia a sua procura pelas
pessoas que o possam ilibar.
Poucos são os que acreditam na sua inocência e ainda menos
os que estão dispostos a ajudar. Há outros que farão tudo
para que o passado permaneça enterrado. Enquanto a
verdade não for conhecida, José permanecerá preso na sua
teia de memórias.
Género: Policial/Drama
Número de palavras: 80-85 mil
Número de páginas: 310
Encontra-se em fase de revisão e espero publicá-lo durante o
segundo semestre de 2014.
A menina dos doces
A vida académica reserva muitas surpresas a Mariana, sendo
que a maior é a existência de uma falecida prima cuja
memória foi ostracizada pela família. À medida que os pais se
escondem em mentiras e abusos de autoridade, ela vai
conhecendo Liliana através do diário que ela deixou. Valerá a
pena perseguir um segredo que coloca em causa a
estabilidade familiar?
Género: Drama
Número de palavras: cerca de 60 mil
Número de páginas: cerca de 230
Encontra-se em fase de revisão e espero publicá-lo durante o
segundo semestre de 2014.
Caderno Vermelho
Ao iniciar a viagem, o neófito nada entende, pois não
consegue ver. Está cego e não o sabe. Os símbolos em que
está imerso são como um livro, só o pode ler quem o souber
decifrar. O conteúdo só está acessível a quem tem vontade e
uma mente aberta.
Não se trata somente de conhecimento, trata-se
essencialmente de sabedoria. Todavia, a primeira não implica
necessariamente a segunda. Há que ter cuidado pois o
caminho não é uma linha recta, não por vontade do mestre,
mas porque o aprendiz assim o quer. O aspirante deseja oporse à mudança, como se fosse alérgico.
À medida que a viagem progride, há uma desconstrução da
personalidade em que todas as bases são questionadas. Aí
reside o seu maior perigo e é quando o conselho do guia é
mais valioso.
A abertura de horizontes não é um processo reversível. Não é
possível voltar a dormir depois de se ter acordado
completamente, assim como não é possível voltar ao ventre
materno depois de nascer.
Esta não é uma iniciação a uma ordem secreta, nem a
nenhum clube de eleitos. É uma iniciação ao mundo real.
Género: Poesia
Número de páginas: 45
Previsão de lançamento: Segundo semestre de 2014