(dir.). Les Grecs, les Arabes et nous
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(dir.). Les Grecs, les Arabes et nous
BÜTTGEN, Ph., DE LIBERA, A., RASHED, M., ROSIER-CATACH, I. (dir.). Les Grecs, les Arabes et nous : enquête sur l’islamophobie savante, Paris: Fayard, 2009, 372p. Ana Rieger Schmidt* ___________________________________________ “Os Gregos, os Árabes e nós: investigação sobre a islamofobia erudita” é um conjunto de artigos escritos em resposta ao livro de Sylvain Gouguenheim “Aristóteles no Monte-Saint-Michel: as raízes gregas da europa cristã” (Aristote au Mont-Saint-Michel : les racines grecques de l’europe chrétienne).1 Gouguenheim procura desvalorizar o papel da transmissão dos textos científicos e filosóficos gregos para o ocidente através das traduções árabes. Para tanto, ele pretende mostrar que, por uma lado, o ocidente cristão nunca teria rompido os laços com Bizâncio, mas na verdade muitos textos circulavam e eram traduzidos (sobretudo na abadia do Monte-Saint-Michel) diretamente do grego para o latim, sem o “intermediário árabe”; por outro, a helenização do mundo islâmico foi extremamente superficial – seja pela sua incapacidade de traduzir e compreender plenamente esses textos, seja pelo “filtro religioso” ao qual eles foram submetidos. As motivações por detrás destas teses incluem Gouguenheim numa tendência particular de islamofobia, que os autores chamam de “islamofobia erudita” (islamophobie savante). O livro desencadeou uma intensa discussão e foi muito comentado pelos principais veículos da imprensa francesa (e também por sites extremistas). Tanto Aristote au Mont-Saint-Michel como Les Grecs, les Arabes et nous se inscrevem em um debate intelectual e político atual: uma das formas que assume a atualidade da filosofia medieval. No primeiro capítulo, Irène Rosier-Catach (Qui connaît Jacques de Venise ? Une revue de presse) se encarrega de chamar a atenção para o grande número de * 1 Bolsista CAPES e doutoranda em filosofia medieval pela Université de Paris IV-Sorbonne. Ver nossa resenha nesse mesmo volume. Translatio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN 2176-‐8765 Vol. 3 (2011) 8 BÜTTGEN, Ph. et al. (dir.). Les Grecs, les Arabes et nous resenhas positivas que o livro de Gouguenheim motivou após sua publicação, formando um extenso debate que, apesar de seu conteúdo aparentemente histórico, vai além das fronteiras acadêmicas. Ela apresenta uma cronologia das reações mais importantes: entre elas, a resenha positiva de Roger-Pol Droit em Le Monde des livres (4 de abril de 2008)2 e outra de Stéphane Boiron em Le Figaro littéraire (17 de abril de 2008).3 Nos dias 28 e 29 de abril de 2008, Télérama publica em seu site o texto enfurecido Landernau, terre d’Islam, de Alain de Libera4 e uma petição de pesquisadores da École Normale Supérieure de Lettres et Sciences Humaines de Lyon,5 onde Sylvain Gouguenheim é professor. Ainda no dia 29, o jornal Libération publica uma resenha positiva de Jean-Yves Grenier (“Aristote au Mont-Saint-Michel", savant et ambiguë).6 No dia seguinte, o mesmo jornal publica um texto assinado por 56 pesquisadores em história e em filosofia mediaval intitulado “Sim, o ocidente deve ao mundo islâmico” (Oui, l’Occident chrétien est redevable au monde islamique).7 Deve-se contar ainda o volume conjunto editado por Max Lejbowicz (L'islam médiéval en terres chrétiennes: science et idéologie, Villeneuve d'Ascq: Septentrion, 2008), em resposta às teses de Gouguenheim. Rosier-Catach chama a atenção para uma característica frequente do debate em torno do livro de Gouguenheim: a simplificação que leva à oposição do bloco europeu-cristão contra o bloco árabe-islâmico, como se estes constituíssem duas entidades idênticas a si mesmas e separadas desde o princípio – o que leva a formulações essencialistas na forma de clichés repetidos e exagerados sem nenhum senso crítico. Luca Bianchi (Deux poids, deux mesures) acusa Gouguenheim de aplicar 2 Disponível para assinantes do Le Monde em <http://www.lemonde.fr/cgibin/ACHATS/acheter.cgi?offre=ARCHIVES&type_item=ART_ARCH_30J&objet_id=1031224>. 3 Disponível em <http://www.lefigaro.fr/livres/2008/04/17/03005-20080417ARTFIG00491-lestribulations-des-auteurs-grecs-dans-le-monde-chretien-.php>. 4 Disponível em <http://www.telerama.fr/idees/landerneau-terre-d-islam-par-alain-delibera,28252.php>. 5 Disponível em <http://www.telerama.fr/idees/petition-de-l-ecole-normale-superieure-lettres-etsciences-humaines,28371.php>. 6 Não pudemos localizar o artigo referido no site do jornal Libération, entretanto, ele foi reproduzido por outros sites e pode ser facilmente encontrado pelos mecanismos de busca. 7 Disponível em <http://www.liberation.fr/tribune/010179795-oui-l-occident-chretien-estredevable-au-monde-islamique>. Translatio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN 2176-‐8765 Vol. 3 (2011) 9 BÜTTGEN, Ph. et al. (dir.). Les Grecs, les Arabes et nous “dois pesos e duas medidas” ao apresentar um ocidente ingenuamente pacífico e racional, ocultando os eventos que mostram as tensões internas e a hostilidade do ocidente contra os textos gregos, sem levar em conta toda a série de censuras, de tratados contra os “erros dos filósofos”, de condenações e o montante de obras queimadas pelas autoridades eclesiásticas. Gouguenheim afirma que “o Islã transmitiu em um primeiro momento a cultura grega ao ocidente ao provocar o exílio daqueles que recusavam a sua dominação” (AMSM, p. 34), sem mencionar o fechamento da escola de Atenas pelo imperador romano (e cristão) Justiniano. Outro episódio “esquecido” por Gouguenheim é curiosamente aquele de Galileu, que sequer é citado nas páginas que tratam da revolução científica moderna – uma falta astuta, pois mencioná-lo seria relembrar sua condenação pelo santo ofício em 1633. Hélène Bellosta (Science arabe et science tout court) critica a tese de Gouguenheim segundo a qual o mundo árabo-muçulmano estaria duplamente excluído do saber científico: por um lado, por causa da estrutura da língua árabe – imprópria à expressão da filosofia e da ciência; por outro, por causa do islã que, contrariamente ao cristianismo, é essencialmente contrário à razão. Sem tecer um quadro exaustivo da ciência árabe na Idade Média, a autora procura mostrar o “absurdo que há na tentativa de isolar artificialmente os sábio cristãos do meio sócio-cultural no qual eles viveram e trabalharam, ignorando deliberadamente os trabalhos de outros” (p. 76). Bellosta relembra que a partir do século XIII o mundo árabo-muçulmano presenciou uma intensa atividade científica e filosófica – em língua árabe. Mesmo no século X, onde, segundo a autora, vemos o renascimento do persa como língua literária, os tratados científicos continuam a ser escritos em árabe: alBirûnî, cuja língua materna é o persa, escreve seu tratado matemático em árabe; Ibn Sinâ (Avicena), que também falava persa, escreve sua suma filosófica al-Shifa’ igualmente em árabe; o filósofo judeu Maimônides escreve o Guia dos Perplexos também em árabe. “O papel do árabe foi absolutamente análogo àquele que cumpre, na Europa medieval, o latim” (p. 61). Ela insiste sobre os laços estreitos entre tradução e pesquisa (p. 63), pois revelam um interesse legítimo e um Translatio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN 2176-‐8765 Vol. 3 (2011) 10 BÜTTGEN, Ph. et al. (dir.). Les Grecs, les Arabes et nous esforço imenso no estudo da gramática, da linguística e da hermenêutica nas escolas de Bagadá e Barsa. Vimos que Gouguenheim procura estabelecer uma “barreira qualitativa” entre as línguas semíticas e as línguas indo-europeias, de modo a desqualificar a tradução dos textos científicos e filosóficos de uma para a outra. Djamel Kouloughli (Langues sémitiques et traduction : critique de quelques vieux mythes) mostra que os argumentos de Gouguenheim se aliam às teses já conhecidas (e sem fundamento) de Ernest Renan (1823-1892) segundo os quais a língua árabe implica uma estrutura mental essencialmente religiosa e portanto incompatível com a mentalidade grega (entenda-se, racional). Kouloughli nota que Gouguenheim se vale em diversos momentos de conceitos como “concepção de mundo” (AMSM, p. 21), “espírito” (AMSM, p. 164), “estruturas do pensamento” (AMSM, p. 136) e “estruturas mentais” (AMSM, p. 137) presentes nos textos gregos, como se estes contituíssem “avatares de Sprachgeist ou de Kulturgeist” (p. 96), revelando uma espécie de relativismo linguístico radical – uma hipótese problemática do ponto de vista linguístico. Contrariamente à afirmação de Gouguenheim segundo a qual os árabes teriam recebido passivamente o saber grego sem assimilá-lo, Marwan Rashed (Les débuts de la philosophie moderne : VIIe-IXe siècle) oferece um verdadeiro panorama da filosofia árabo-islâmica, mostrando que o uso dos textos gregos neste contexto era feito com vistas à responder a uma agenda própria de problemas filosóficos e teológicos. Dentre os diversos casos expostos por Rashad, está o de Al-Farabi, que comenta Aristóteles não simplesmente por comentá-lo, mas procura em seus tratados lógicos respostas para problemas surgidos na sua própria filosofia. Ele lê, por exemplo, o De Interpretatione visando dissociar presciência de predeterminação (p. 135) . No campo da física, os textos sobre o atomismo geraram um debate particularmente importante no cerne da teologia racional (Kalâm), chegando a dar origem a uma forma de atomismo nunca vista na antiguidade: os átomos são não-corporais, sem extensão e indiscerníveis senão Translatio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN 2176-‐8765 Vol. 3 (2011) 11 BÜTTGEN, Ph. et al. (dir.). Les Grecs, les Arabes et nous pela sua posição (p. 139). Alain de Libera (Les Latins parlent aux Latins) – cujo trabalho é diretamente criticado por Gouguenheim (AMSM, p. 16 e 140) – se pergunta quem são, para os latinos, os gregos e os árabes. Ele mostra como interpretar a tríade presente no título do livro (os gregos, os árabes e nós) pode ser problemático, uma vez que estes termos são equívocos no discurso dos latinos. Para Tomás de Aquino, por exemplo, “os gregos” dos quais ele fala quando escreve o Contra errores Graecorum (1263) são cristãos (“outros cristãos”) – que não são os mesmos gregos dos quais fala Crasso no diálogo de Cícero Do Orador. O mesmo termo pode se referir tanto a cristãos como a pagãos, seja com vistas a criticá-los ou a defendê-los, de modo que, conclui De Libera, “falar de raízes gregas da Europa cristã não faria nenhum sentido para um escolástico” (p. 175). Trata-se de uma de suas premissas metodológicas: o problema da história da filosofia está em saber como os latinos viam a si mesmos e entendiam as suas próprias origens, antes de impor nossas definições, por si mesmas já demasiado problemáticas e anacrônicas. Contrariamente, Gouguenheim supõe um continuísmo histórico e trata os conceitos em jogo – “gregos”, “árabes”, “Europa”, etc. – como eternos e ahistóricos. Ruedi Imbach (« … en l’absence de tout lien avec le monde islamique ») demonstra a sua surpresa ao ler a afirmação “a Europa teria seguido um caminho idêntico, mesmo na ausência de todo laço com o mundo islâmico” (AMSM, p. 199). Em sentido contrário, ele invoca o caso de Tomás de Aquino – “pilar” do mesmo “ocidente cristão” defendido por Gouguenheim – que em diversos pontos essenciais de sua doutrina “avança na descoberta do que ele considera como a verdade discutindo com Averróis, Avicena e Maimônides” (p. 208). Em diversos pontos da sua obra, tendo à sua frente os texto do “Comentador”, Tomás se viu obrigado a reformular sua posição. Ao menos no caso do Doutor Angélico, podemos seguramente dizer que a sua teologia e filosofia não seriam as mesmas sem a presença dos filósofos árabes. Jean-Christophe Attias (Judaïsme : le tiers exclu de l’« Europe chrétienne ») denuncia o “silêncio quase absoluto” de Gouguenheim a respeito do judaísmo e Translatio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN 2176-‐8765 Vol. 3 (2011) 12 BÜTTGEN, Ph. et al. (dir.). Les Grecs, les Arabes et nous dos judeus: nem uma única palavra foi dita sobre os judeus de Bizâncio, ou mesmo do norte da França e da Alemanha. Maimônides é citado somente uma vez, segundo Attias, com vistas a criticá-lo por aderir às “superstições” astrológicas de seus contemporâneos judeus e muçulmanos (AMSM, p. 145). Christian Förstel (Les Grecs sans Byzance) nos fala da recepção da língua e da literatura gregas no ocidente pelos humanistas italianos na primeira metade do século XV graças à criação de um sistema de ensino do grego clássico em Florença. Os principais protagonistas desta nova aliança com Bizâncio são Manuel Chrysoloras e Leonardo Bruni. Philippe Büttgen (Avicenne à Ratisbonne : introduction à la théologie comparative) compara a “islamofobia erudita” ao polêmico discurso de Bento XVI na universidade de Regensburg (12 de setembro de 2006), o qual estabelecia, ainda que não abertamente, um vínculo entre Islã e violência. O autor identifica no livro de Gouguenheim e na vontade de “diálogo” inter-religioso do discurso de Bento XVI a defesa de uma espécie de “teologia comparativa”: uma nova ciência que compara diretamente o cristianismo e o islã, o “choque JesusMaomé”. Enquanto o Papa contrapõe o cristianismo essencialmente pacífico ao islã essencialmente violento, Gouguenheim contrapõe o cristianismo amigo da razão (AMSM, p. 72-73) ao universo muçulmano impregnado de religião, mais espiritualista que científico (AMSM, p. 165 e 146). O debate ao redor do Islã “nunca foi tão presente na sociedade francesa” nota Annliese Nef (Enseigner l’histoire de l’Islam médiéval : entre soupçon et contradiction), que coloca a questão do ensino da história do Islã medieval na França, através de uma análise de programas escolares. Com o objetivo de evitar uma instrumentalização ideológica deste período, Nef apresenta uma série de metas, dentre elas, a necessidade de criticar as noções de civilização e de identidade – ambas não-históricas – e o reconhecimento de que a noção de “dívida” entre civilizações é “desprovida de sentido” (p. 279). Deve-se, ao contrário, insistir sobre a evolução permanente do islã (posição nãoessencialista), sem aplicar os qualitativos “apogeu” e “declínio”, tão frequentemente utilizados na representação da história do islã medieval (p. 279). Translatio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN 2176-‐8765 Vol. 3 (2011) 13 BÜTTGEN, Ph. et al. (dir.). Les Grecs, les Arabes et nous As referências de Gouguenheim a Braudel revelam uma estratégia metodológica: por um lado, opor o mundo árabo-muçulmano ao mundo cristão ocidental; por outro, realizar uma leitura historiográfica fundada no conceito de civilização – o que leva Blaise Dufal (Faire et défaire l’histoire des civilisations) a reexplorar as concepções braudelianas. Segundo o autor, Gouguenheim se vale do conceito de civilização para definir a “identidade cristã do mundo ocidental” (AMSM, p. 9), caracterizada, como já visto, por um racionalismo. As essências das civilizações em questão são definidas pelos seus respectivos textos sagrados: a Bíblia e o Corão, sendo os eventos históricos uma consequência direta de seus conteúdos (AMSM, p. 200). Ainda, segundo Dufal, citar Braudel é ao mesmo tempo uma suposta garantia de cientificidade, dada a sua importância nas ciências sociais na França: seu livro intitulado Gramática das Civilizações (Grammaire des civilisations) se tornou um verdadeiro clássico da disciplina. No capítulo final, Alain Boureau (L’astérisque gaulois : la discipline historique aux affaires indigènes) se concentra sobre a noção de “origem” presente no objetivo de Gouguenheim em retraçar as origens gregas da Europa, mostrando como ela pode ser um instrumento ideológico, a despeito dos princípios que estão da base da atividade do historiador. São eles: i) a imanência das causas históricas que produzem uma secessão de estados de coisas; ii) uma descontinuidade destes estados que rejeita todo recurso a uma origem primeira e iii) uma mobilidade de hierarquias causais. Segundo Boureau, Gouguenheim faz de conta que se conforma a esses axiomas, ao mesmo tempo em que os desrespeita. Translatio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN 2176-‐8765 Vol. 3 (2011)
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