O GABINETE DO DR. CALIGARI, UMA LEITURA PSICANALÍTICA

Transcrição

O GABINETE DO DR. CALIGARI, UMA LEITURA PSICANALÍTICA
O GABINETE DO DR. CALIGARI, UMA LEITURA PSICANALÍTICA
João Peneda
Resumo
A nossa proposta consiste em revisitar o Dr. Caligari a partir da psicanálise. Contemporânea
de Freud e da sua viragem dos anos 20,1 esta obra é uma das primeiras abordagens do tema da
loucura2 no cinema. Apesar de ser considerado um "filme expressionista", na verdade, para
além do argumento sinistro, só os cenários e alguma caracterização dos personagens faz jus a
esse epídoto. Do nosso ponto de vista, o recurso à nova estética serviu sobretudo para
assinalar a "realidade psíquica" do personagem principal (Francis). A nossa chave de leitura
é a seguinte: com a excepção do prólogo e do epílogo, o corpo do filme (os acontecimentos
sinistros de Holstenwall) encena um delírio psicótico de perseguição.
Introdução
Apesar ter causado algum choque, o filme foi aclamado na sua estreia e os críticos ficaram
positivamente impressionados com a estética da obra de Robert Wiene.3 Sabemos que os
cenários4 foram realizados por pintores de cena (Bühnenbildnern) expressionistas: Hermann
1
Esta é a data da publicação de Para além do princípio de prazer. Em 1923 vem a lume o Eu e o Isso com
a proposta de uma segunda tópica para o psiquismo.
2 A peça de teatro de Paul Lindau "Jekyll und Hyde" é uma das primeiras a introduzir no seu argumento o
fenómeno da loucura. Conta a história de um procurador (interpretado por Albert Bassermann) que à noite
se transforma num criminoso, dando largas aos seus impulsos psicóticos.
3 A estreia teve lugar a 22 de Fevereiro de 1920 em Berlim (Marmorhaus). Tucholsky escreveu no
Weltbühne (11 de Março de 1920) que o filme de Wiene comportava "etwas ganz Neues".
4 Os cenários do filme foram conservados e estão disponíveis no acervo do Museu do Cinema Henri
Langlois em Paris.
1
Warm, Walter Reimann e Walter Röhrig.5 O Gabinete do Dr. Caligari (1920)6 é considerado
o exemplo cimeiro do expressionismo no cinema,7 ainda que, em rigor, não exista sequer um
cinema expressionista no sentido de uma escola com programa e preceitos definidos. A
história apenas nos legou um conjunto de obras com traços que podemos associar a esta
vanguarda artística entre o final dos anos 10 e os anos 20.
O termo expressionismo foi introduzido em 1911 por Willheim Worringer para distinguir as
obras pictóricas de Derain, Dufy, Braque e Marchet, expostas em Berlim. Este movimento
está sobretudo patente na pintura, na literatura, nas artes gráficas, no teatro e na música. Na
Alemanha, o novo estilo que veio a ser conhecido como expressionismo tornou-se popular em
revistas, cartazes8 e cenários teatrais, a partir de 1918 em Berlim.9 Por isso, quando Robert
Wiene e Rudolf Meinert aceitaram a proposta de Warm, Reimann e Röhrig, estavam mais em
conformidade com um estilo corrente na época do que a arriscar uma estética de vanguarda.10
A narrativa do filme de Wiene inicia-se e termina (prólogo e epílogo) fora do chamado estilo
expressionista.11 O recurso a esse cenário e caracterização corresponde ao filme dentro do
filme (flashback), isto é, a uma alegada lembrança (delírio paranóico) do personagem
Francis.12 Por isso, o expressionismo no Dr. Caligari é sobretudo um marcador plástico, para
traduzir a "realidade psíquica" em oposição à "realidade material" (Freud). No filme de
5
Ao contrário do que foi afirmado, nem Reimann nem Röhrig, como mostrou Siegbert Prawer, tiveram
qualquer colaboração no grupo Sturm. Cf. "Vom »Filmroman« zum Kinofilm" de Siegbert Prawer. Bock e
Belach, (1995).
6 A versão definitiva do título original em alemão é Das Cabinet des Dr. Caligari. Phantastischer
Filmroman in 6 Akten. Em 1941, Janowitz (argumentista) relata a discussão que teve lugar para fixar a
ortografia do título. Cf. ROBINSON, David, Das Cabinet des Dr. Caligari, London, British Film Institute
Publishing, 2004, p. 78.
7 A expressão "caligarismo" surgiu para designar a estilização expressionista no cinema.
8 Heinz Fuchs, Max Pechstein e César Klein. No final dos anos 10, Josef Fenneker concebeu inúmeros
cartazes ao estilo expressionista, nomeadamente para a sala de cinema Marmorhaus onde o Dr. Caligari
estreou.
9 Na Alemanha, o filme foi largamente publicitado através de uma campanha inventiva. Recorreu-se ao
slogan: "Du musst Caligari werden".
10 David Robinson coloca a seguinte dúvida: "Whether Caligari is a truly and essentially Expressionist
manifestation or represents only a modish pastiche applied to a conventional story." Robinson (2004),
p. 38.
11 A excepção à estética expressionista dos cenários é o décor da casa Jane e, em particular, o seu quarto.
Ao contrário das linhas quebradas do restante cenário, os aposentos femininos apresentam formas
arredondadas e suaves. O imaginário tortuoso e pontiagudo dá lugar ao panejamento e às figuras orgânicas
(flores e plantas).
12 Segundo esta leitura, o final da obra não é inteiramente conseguido, pois não existe uma diferença
muito nítida entre o hospício do delírio e o verdadeiro, entre a cela de internamento do Dr. Caligari
(delírio) e a de Francis (realidade). Trata-se do mesmo quarto apenas com uma pintura diferente. No caso
do internamento de Francis, os traços expressionistas da pintura (as cornucópias) foram nitidamente
rasurados.
2
Wiene, o expressionismo serve assim para assinalar a perspectiva (delírio) do louco.13 Os
efeitos de luz e sombra, as linhas oblíquas – fruto de uma perspectiva distorcida – visam
despertar no espectador sensações de inquietude, insegurança e desconsolo, aspectos que
definem a nossa relação com a loucura.
Contexto e argumento
No período da instável República de Weimar (1918-1933), o cinema expressou muitas das
suas contradições internas.14 Sobre a Alemanha do pós-guerra, Siegfried Kracauer
desenvolveu uma conhecida tese sobre o percurso e as condições que terão levado à
instauração da ditadura nazi.15 Alegou que um certo "desejo colectivo" prenunciava já a
representação artística e sociopolítica que veio a ter lugar. O crítico alemão entendeu a arte e
a história deste período como um sintoma do "inconsciente colectivo"16 ansioso por se
submeter a um tirano.17 Contra Kracauer podemos contrapor que o desejo não precede a
representação, mas é no quadro das estruturas representativas que o desejo circula e emerge.
Não há um desejo puro fora de uma certa articulação significante (Lacan). É na estrutura que
o desejo alcança a sua identidade e pode ser reconhecido.
O argumento do Dr. Caligari foi escrito por Carl Mayer e Hans Janowitz18 entre Janeiro e
Fevereiro de 1919. Segundo o relato de Janowitz, os motivos que estiveram na origem do
argumento foram a atmosfera de Praga, o assassinato de uma jovem no parque de
Holstenwall19 em Hamburgo, a má experiência no serviço militar com o poder autoritário e,
por último, um espectáculo de variedades em Berlim com um homem hipnotizado. Com base
13
Por oposição ao impressionismo, no expressionismo, a forma não deriva da realidade exterior, mas da
realidade interna, das profundezas da alma humana. O filme de Wiene traduz justamente a alma torturada
de Francis.
14 Não havia censura sobre o trabalho artístico nos meses que se seguiram à Primeira Guerra.
15 Cf. KRACAUER, Siegfried, (1947) From Caligari to Hitler: A Psychological History of the German
Film, Princeton, Princeton University Press.
16 Cf. KRACAUER, Siegfried, From Caligari to Hitler: A Psychological History of the German Film,
Princeton, Princeton University Press, 1947. Defendeu a tese de que o cinema de uma nação reflecte a
disposição íntima do seu povo.
17 Uli Jung e Walter Schatzberg resumem assim a tese de Kracauer: "In den deutschen Film der Weimarer
Republik habe sich die innere psychische Disposition der Deutschen eingeschrieben, sich einem Tyrannen
zu unterwerfen." Cf. Bock e Belach (1995), p. 113.
18 Hans Janowitz esteve ligado ao movimento expressionista, nomeadamente à revista Arkadia de Max
Brod.
19 É esta região de Hamburgo que vai emprestar o seu nome à cidade natal de Francis, onde tem lugar a
narrativa do filme.
3
no relato Janowitz,20 Siegfried Kracauer comprometeu a história da realização deste filme, ao
atribuir os méritos da obra quase em exclusivo aos argumentistas.21
Nos anos que se seguiram ao sucesso da obra, gerou-se um conjunto de mal-entendidos sobre
os verdadeiros responsáveis. Pommer e Janowitz começaram por reclamar os méritos,
tentando reescrever, em parte, a história da obra. Mais tarde foi descoberta a cópia do roteiro
do filme que estava nas mãos do actor Werner Krauss, o que obrigou a rever a versão de
Kracauer/Janowitz. Com a publicação do guião (1995), verificou-se que este seguia uma linha
narrativa diferente do resultado final. Muitas foram as alterações ao argumento de Janowitz e
Mayer, em especial, no que diz respeito ao prólogo e ao epílogo do filme, isto é, à inserção da
"narrativa moldura".22 O final desconcertante terá sido imposto por Erich Pommer (produtor),
para assim anular o carácter demasiado macabro do filme, onde o Dr. Caligari e o sonâmbulo
seriam personagens reais. Através da intervenção de Wiene, a história do criminoso Dr.
Caligari transformou-se no delírio de Francis.
No diz respeito à realização, Pommer pensou inicialmente em Fritz Lang. Este declinou,
porque estava ocupado com a segunda parte do seu Filme Die Spinnen (1919). A escolha
recaiu então sobre Robert Wiene. O Dr. Caligari foi rodado no inverno de 1919-1920,23 numa
pequena casa em Berlim-Weißensee, tendo estreado no dia 26 de Fevereiro de 1920 em
Berlim (Marmorhaus). Este film noir conheceu um enorme sucesso, nomeadamente nos
Estados Unidos, tornando-se no filme mudo alemão mais ilustre, uma verdadeira obra de
culto.24 Na estreia recorreu-se a um curioso expediente para tranquilizar os espectadores
perante o desconcerto da narrativa. Foi criado um suplemento teatral para abrir e fechar a
projecção do filme. Dois autores genuínos representaram em palco Francis e Jane para assim
assegurar ao público que o casal teria ficado curado, e tudo acabaria bem (happy end).25
20
A fonte de Kracauer foi um escrito não publicado de Hans Janowitz (c.1941): "Caligari: The Story of a
Famous Story". Encontra-se na Billy Rose Theatre Collection da New York Public Library.
21 Janowitz declara o seguinte: "The actual 'architects of Caligari, from the conception of the idea to the
last line of the shooting script, were the two authors and no one else. Even the innovation of having the
sets painted on canvas, instead of using the customary scenery, may be found in the directions of the
shooting script of the two authors." Cit. in ROBINSON, David, Das Cabinet des Dr. Caligari, London,
British Film Institute Publishing, 2004, p. 8.
22 Janowitz e Kracauer defenderam que a moldura adulterou o projecto inicial.
23 Entre o final de Dezembro de 1919 e o final de Janeiro de 1920.
24 Em 1962, Roger Kay, com guião de Robert Bloch, produziu um remake do filme: "The Cabinet of Dr
Caligari".
25 "Während seiner Premiere in den USA wurde das Ende aus Rücksicht auf die Zuschauer entschärft,
indem man durch echte Schauspieler eine zusätzliche Rahmenhandlung schuf, welche vor und nach dem
Film auf einer Bühne vor der Leinwand aufgeführt wurde. Mit dieser Rahmenhandlung wurde dem
Publikum versichert, daß Francis und Jane geheilt wurden, daß sie nun ein normales Leben führen und daß
es ihnen gut ginge." Ramge (2005), p. 97. A versão de David Robinson é algo diferente: "The New York
première took place on 3 April 1921 at the huge and splendid Capitol Cinema at 51st street and Broadway
[…]. In the fashion of the time, for the première run the film was given a live prologue and epilogue,
4
Por escassez de recursos, o produtor e o realizador foram obrigados a dar largas à sua
imaginação. Foi um dos primeiros filmes a ser produzido exclusivamente em estúdio
(caseiro), o que na época não era de todo comum. Os cenários são feitos de madeira, papelão
e de alguns tecidos. A limitação do espaço cénico obrigou ainda a grandes alterações no
guião. Inicialmente, estava previsto, por exemplo, o desfilar de uma caravana de ciganos e
uma feira exuberante, repleta de variedades. O argumento foi reduzido a um conjunto de
quadros, próximo de representações teatrais.
O trabalho em estúdio exigiu da câmara mais versatilidade. As mudanças de plano, os
cortes, as aproximações (close up), com enquadramento e angulação, emprestam algum ritmo
e dramatismo à obra. É o caso da célebre sequência na tenda do Dr. Caligari. Procurando
anular um espaço por vezes descontínuo e inorgânico, a montagem pontua as sequências
maiores através do recurso ao fade-in e fade-out. Na versão alemã, a música foi composta por
Giuseppe Becce, um dos mais talentosos compositores para filmes mudos. A representação é
teatralizada. Em algumas cenas, os personagens quase que dançam. No fundo, Wiene e os
seus colaboradores artísticos transformaram um argumento da viragem do século26 numa
fantasia gótica.27 Estas escolhas emprestam à obra uma atemporalidade que fez escola no
cinema alemão.
Este filme introduz algumas novidades. É o caso do flashback que se transforma no corpo
principal da obra. Existe um filme dentro do filme e porventura um flashback dentro do
flashback na a cena em o director do hospício se vê perseguido pela exigência superegóica de
se tornar no Dr. Caligari: "Du musst Caligari werden". Este é também um dos primeiros
filmes em que se conta uma história não realista, uma ficção. O espectador podia assim
identificar-se com as personagens do filme, assim como acontecia com as personagens da
literatura.28 O filme de Wiene estabeleceu uma colaboração com a arte de vanguarda,
tornando-a popular, acessível ao grande público. Esta obra abriu vias inéditas para uma
estética cinematográfica mais arrojada. O cinema posterior não deixará de recorrer às artes
gráficas (cenário, grafismo, caracterização) e a uma montagem que subverte a relação
tradicional da imagem com a narrativa. Em suma, a realização de Wiene contribuiu para
which provided an extra frame to the narrative. In the stage prologue a character identified as 'Cranford'
introduced the first scene, representing himself as the gentleman to whom Francis, in the opening
sequence of the film, is telling his story. In the epilogue, 'Cranford' conveys the happy news that Francis is
today fully recovered." Cf. Robinson (2004).
26 Os guionistas tinham previsto que a história ocorria por volta de 1900, incluindo por isso tecnologia da
época como telefones, telegramas e luz eléctrica
27 O vestuário dos actores comprova que não existiu a preocupação, por parte do realizador, de situar
temporalmente a narrativa. O objectivo era emprestar-lhe uma natureza caricatural, quase mítica.
28 O cinema coloca-se como alternativa à literatura.
5
conferir ao filme o estatuto de objecto intelectual e de obra de arte, atraindo para o cinema um
público mais exigente.29
À primeira vista, a obra de Wiene parece ser um policial (thriller) ou até mesmo um filme de
terror. Na abertura, aparecem dois companheiros sentados num banco de um jardim
abandonado.30 O mais velho exclama: "Existem espíritos por todo o lado. Eles estão todos à
nossa volta." Enquanto conversam, aproxima-se uma mulher vestida de branco com um olhar
perdido, assemelha-se a um fantasma (louca). Ambos os amigos parecem ser vítimas de
assombrações. Francis conta o que se passou consigo e com a sua amada (Jane), uma história
verdadeiramente sinistra. Quando o diafragma da câmara se abre uma vez mais, surge uma
estranha vila repleta de casas num estilo que lembra um quadro expressionista. Não existem
linhas ortogonais, mas sim linhas oblíquas. Francis entra em pânico ao relatar (observar) o
aparecimento de um homem na sua cidade natal (Holstenwall). Trata-se do Dr. Caligari que se
apresentou na feira anual (Jahrmarkt). Este prólogo será depois ligado ao epílogo da obra.
No final do filme, a narrativa parece findar com o desmascarar do sinistro Dr. Caligari. Com
a arrepiante verificação que o director do manicómio (Irrenanstalt) seria o mais louco de
todos: "... e desde esse dia, o louco nunca mais abandonou a sua cela." Quando parece que o
filme terminou, isto é, depois do relato sobre o estranho director do hospício, e após a partida
dos dois amigos, voltamos novamente ao asilo psiquiátrico. Este regresso não deixa de ser
perturbante para o espectador, pois somos confrontados com mais uma história dentro da
história. Todavia, é este golpe na narrativa que resgata o que até então parecia um simples
thriller. A narrativa ganha subitamente um sentido que ninguém suspeitava: a lembrança de
Francis era apenas o delírio de um louco. Estamos perante dois registos, um a realidade
material (o início e o final do filme no auspício), outro a realidade psíquica, o delírio (a parte
principal do filme com uma estética expressionista). Com as cenas derradeiras, fica então
claro que os heróis do relato de Francis são apenas os seus companheiros de asilo.
29
Esta obra contribuiu decisivamente para o prestígio do cinema alemão no pós-guerra.
O início do filme de Wiener é muito diferente do roteiro de Janowitz e Mayer. Este descreve um terraço
elegante de uma casa de campo, onde Francis e Jane estão na companhia de amigos. Ao longe, a passagem
de uma caravana de ciganos produz uma reacção emocional adversa no casal. A pedido dos amigos,
Francis começam a contar "os terríveis acontecimentos <grauenvolle Geschichte> de Holstenwall". Eis a
descrição inicial: "1. BILD: Große vornehme Terrasse eines Landhauses: (vom Park aus aufgenommen)
Abendstimmung. Francis mit einer Dame am Arm, Jane mit einem Herrn, ihnen folgen noch zwei Herren
und drei Damen, treten in heiterer Stimmung auf die Terrasse, wo ein Tisch mit dampfender Bowle
vorbereitet ist. Man setzt sich, in bereitstehenden Korbstühlen und spricht angeregt." BOCK, HansMichael e BELACH, Helga (Org.), Das Cabinet des Dr. Caligari. Drehbuch von Carl Mayer und Hans
Janowitz zu Robert Wienes Film von 1919/20, München, Verlag edition text + kritik, 1995, p. 51.
30
6
O espectador é assim convidado a reinterpretar a história. Esta é apenas o delírio
(alucinação) de um psicótico (Francis) que, no final, em desespero de causa, lança uma
acusação generalizada de loucura: "Vocês todos pensam que eu sou louco! Isso não é verdade
– quem é louco é o director! Ele é o Caligari... Caligari... Caligari!" O corpo principal do
filme é afinal a visão (delírio) de um louco (psicótico). Por sua vez, aquele que era antes o
sinistro criminoso Dr. Caligari é agora um afável médico psiquiatra. O filme termina com o
diagnóstico do director do hospício: "Compreendo finalmente a loucura dele. Pensa que eu
sou o tal místico Caligari! E sei agora também como o curar."
Personagens
O Dr. Caligari (Werner Krauss) é a alma, mas também a sombra da narrativa. Segundo
Janowitz, o nome Caligari31 (Calligari) terá sido retirado de um "raro livro... chamado Cartas
desconhecidas de Stendhal". O livro não foi encontrado. Siegbert S. Prawer apenas localizou
na correspondência do poeta francês um certo "Carlo Caliari" e um local em Itália com a
designação "Cagliari".32 No filme, o Dr. Caligari é o representante do homem sinistro, com
propósitos maléficos. Dá forma à ideia do "mal radical". Trata-se de um serial killer. Todos
aqueles que o importunam são assassinados sem piedade. Começa pelo clérigo de Holstenwall
e elimina em seguida Alan, o amigo de Francis, para dar cumprimento à profecia do seu
sonâmbulo. No caso de Jane as coisas não correm de feição, o sonâmbulo fica atraído pela
rapariga e, em vez de cumprir as ordens do seu mestre, rapta-a e foge; o que põe em causa a
ambição de Caligari de dominar em absoluto a vontade do outro.
No delírio de Francis, a personagem de Werner Kraus tem uma vida dupla: é director de um
hospital psiquiátrico e é ao mesmo tempo o animador de um show sinistro com um
sonâmbulo. A figura do Dr. Caligari pertence a uma longa linhagem de sábios sinistros
31
O termo caligari (adjectivo caligaris) refere-se ao calçado dos soldados. Caligarius significa sapateiro.
Porém, o substantivo feminino caligo, inis aponta para o fumo negro, a nuvem escura, a vertigem. O
adjectivo caliginosus, a, um qualifica o que é escuro, sombrio, tenebroso. O verbo caligo significa
escurecer-se, encher-se de névoas.
32 Cf. "Vom »Filmroman« zum Kinofilm" in BOCK, Hans-Michael e BELACH, Helga (Org.), Das
Cabinet des Dr. Caligari. Drehbuch von Carl Mayer und Hans Janowitz zu Robert Wienes Film von
1919/20, München, Verlag edition text + kritik, 1995, p. 14.
7
italianos. No conto Der Sandmann de E.T.A. Hoffmann temos o alquimista Coppelius,33 o
vendedor de barómetros Giuseppe Coppola e o professor Spalanzani.
34
No filme O estudante
de Praga (1913), o jovem Balduin, exímio espadachim, faz um pacto com um mago funesto
de nome Scapinelli.
A narrativa do filme parece sugerir que o sonho do director do asilo psiquiátrico seria tornarse Caligari ("Du musst Caligari werden"), uma figura obscura do passado. O propósito seria
induzir um sonâmbulo a praticar actos contra a sua vontade. Esta é uma velha questão a
propósito da hipnose. Se o hipnotizador pode efectivamente induzir no sujeito um
comportamento que viole a sua moral, levando-o a cometer um crime contra a sua vontade. O
filme introduz a questão de alguém ser completamente comandado por outrem. A vertigem de
um outro dirigir em absoluto a nossa mente e subverter a nossa vontade. Esta é a grande
obsessão do Dr. Caligari. Como veremos, do ponto de vista da psicanálise (lacaniana), a
figura do Dr. Caligari representa, para o psicótico, a malignidade do "Pai do gozo", um gozo
sinistro que nada o pode temperar.
No argumento, o nome do sonâmbulo (Conrad Veidt) oscila entre a versão latina e italiana:
Caesare/Cesare. Com o nome do imperador romano (Júlio César), esta personagem representa
a força e a agressividade inconscientes, ele é o "imperador do inconsciente".35 Antes de mais,
no filme, existe uma demarcação clara entre o espaço (dimensão) consciente e inconsciente. O
próprio gabinete do Dr. Caligari corresponde à "outra cena" (Gustav Fechner). Trata-se de
uma tenda com um palco. Neste espaço interior (inconsciente) encontra-se um caixão que
encerra o sonâmbulo. César permanece adormecido (estado de latência) numa espécie de
túmulo (sarcófago): "terá dormido dia e noite durante 23 anos sem interrupção". O horror no
filme (o inconsciente) está associado ao despertar de César, à abertura da caixa de Pandora.
O Dr. Caligari tem o poder para fazer despertar da tumba o inconsciente: "Acorda, César! Eu,
Caligari, o teu senhor, ordena-te!" Com o despertar de César ocorreu nessa noite "uma série
33
Figura inspirada no alquimista Cagliostro (1743-1795).
Hoffmann inspirou-se em Lazzaro Spallanzani (1729-1799), cientista que realizou trabalhos sobre
vulcanismo e inseminação artificial.
35 Siegbert Prawer lembra o crítico americano que propôs a expressão "Emperor of the Unconscious" a
propósito do "Emperor of Ice-cream" de Wallace Steven.
34
8
de misteriosos crimes"; eis o inconsciente a "céu aberto".36 O primeiro da série é o clérigo, a
figura tutelar de Holstenwall. Em seguida será o amigo de Francis (Alan). Porém, o controlo
do Dr. Caligari sobre o sonâmbulo não é absoluto. O confronto com o objecto feminino (Jane)
irá deitar tudo a perder, o sonâmbulo será incapaz de cumprir as ordens do seu amo. Por
último, tal como sucede com o inconsciente freudiano, César é ainda o sujeito suposto saber.
O Dr. Caligari declara que o seu servo tem a capacidade de responder a todas as perguntas:
"César conhece todos os segredos. Ele conhece o passado e vê o futuro."
A personagem Jane (Lil Dagover) está no lugar do objecto erótico, ela é o objecto de
rivalidade entre Francis e Alan, mas também acaba por atrair as atenções do sonâmbulo. Claro
que o fenómeno de abdução da jovem rapariga pelo sonâmbulo não deixa de evocar a fantasia
feminina de ser raptada (arrebatada) por um ser demoníaco. Essa é uma das fantasias do
sujeito histérico feminino. Freud mostrou que o fantasma de sedução (violação) permite ao
sujeito alienar para um Outro ignóbil a sua responsabilidade pela irrupção do gozo sexual no
seu corpo. Por outro lado, existe no filme de Wiene uma estranha familiaridade entre Jane e o
sonâmbulo,37 entre o feminino e o inconsciente, o que ressuscita o imemorial motivo da bela e
do monstro.38 Nesta obra, é também a beleza que acaba por triunfar, pois terá sido esse o
motivo que fez vacilar o sonâmbulo, pondo termo aos assassinatos em série. Jane representa o
fim do funesto Dr. Caligari.
Francis (Friedrich Feher) é o personagem central. Este louco, psicótico paranóico, através
do seu delírio, cria a própria história e os personagens da mesma. Ele ilustra bem o que se
passa no delírio paranóico. A psicose corresponde à intromissão de um outro sentido que
opera uma distorção massiva do sentido admitido pelos restantes indivíduos. Infelizmente, a
psiquiatria alinhou pela ideia de que a psicose seria uma disfunção, um défice, uma
dissociação das funções mentais. Lacan, em contrapartida, defendeu que a psicanálise não
deveria recuar perante a psicose, até porque esta não é incompatível com as mais refinadas
funções intelectuais, basta pensar em Rousseau, Newton, Comte, James Joyce, Artaud.
Delírio psicótico
O psicanalista francês demarcou o fenómeno do delírio psicótico do engano e do défice
mental, apresentando-o como um acontecimento com sentido: o "fenómeno da loucura não é
separável do problema da significação para o ser em geral, isto é, da linguagem para o
36
É Freud que utiliza esta expressão a propósito da esquizofrenia no ensaio O inconsciente (1915).
Richard Murphy comentou que o Dr. Caligari proporcionou a Jane "a private showing of his erect
somnambulist". Cf. MURPHY, Richard, "Carnival Desire and the Sideshow of Fantasy: Dream, Duplicity
and Representational Instability" in The Germanic Review, Winter 1991, pp. 45-56.
38 Outro motivo presente é a visitação nocturna do íncubo, esse demónio masculino que se deita
(incubare) com uma rapariga, atormentando o seu sono com pesadelos.
37
9
homem".39 Ao contrário do tratamento psiquiátrico, a psicanálise privilegia a inclusão do
sujeito no centro da estratégia terapêutica. Na leitura de Lacan, a psicose é o resultado de uma
função paterna não devidamente consolidada, ou seja, da "preclusão do Nome-do-pai". O
psicanalista francês lembrava que aquilo que não é admitido no simbólico retorna no real
sobre a forma de fenómenos elementares (vozes, visões). A preclusão do Nome-do-Pai tem
assim como contrapartida a existência de um gozo potencialmente infinito, associado à figura
de um "Pai do gozo".40 Na história de Mayer e Janowitz, o Dr. Caligari representa justamente
esse Outro que goza para além de qualquer limite. Nada parece poder travar a sua vontade
maléfica. No fundo, o mal absoluto coincide com esta vontade de gozo sem freio.
Na loucura, o simbólico não se separou do real. Como a palavra não matou a Coisa, o gozo
não está por isso interdito.41 No psicótico, o objecto que causa o desejo encontra-se "no
bolso" (Lacan) e não perdido do lado do outro.42 Deste modo, o delírio consiste num esforço,
muitas vezes vão, de localizar ao nível significante o gozo do lado do outro (daí a fórmula:
"Du musst Caligari werden"). O resultado é a criação do perseguidor implacável.43 Mas o
delírio inclui ainda uma tentativa desesperada de barrar as investidas deste Outro do gozo
através do recurso a um Outro da lei. No filme, Francis recorre às autoridades e pede a sua
intervenção para por termo à voragem maléfica do Dr. Caligari: chama a polícia, consegue
uma autorização especial do major da cidade (pai de Jane) e, no final, faz um apelo a todo o
pessoal auxiliar do hospital psiquiátrico.44
39
Em Formulações sobre a causalidade psíquica, Lacan resume assim o fenómeno da loucura: "Longe de
a loucura ser um facto contingente das fragilidades do seu organismo, ela é virtualidade permanente de
uma falha aberta na sua essência. Longe de ser um insulto para a liberdade, ela é a sua mais fiel
companheira, seguindo o seu movimento como uma sombra. E o ser do homem, não somente não poderia
ser compreendido sem a loucura, como não seria o ser do homem se, em si, não trouxesse a loucura como
o limite da liberdade."
40 Cf. Calligaris (1986).
41 "En la psicosis verificamos la presencia de un goce que no tiene un símbolo, pero que tampoco tiene la
forma del objeto a. El psicótico tiene la experiencia de sí mismo como objeto de Dios. Sería como la
experiencia de no estar hablando a los otros que están aquí sino al Otro. Es así como se produce un cierto
tipo de goce sin símbolo." MILLER, Jacques-Alain, "Genio del psicoanálisis" in Virtualia, n.º 7, 2003,
p. 6.
42 Na leitura de Lacan, o psicótico seria a testemunha atroz da condição do "ser vivo falante" (parlêtre),
um ser marcado pela miragem (delírio) de completude que redunda num gozo que não serve para nada. O
porta-voz do real da condição humana seria por excelência a loucura (psicose). Neste sentido, a loucura
interrogaria a liberdade e a verdade do humano. Lacan lembrava que o psicótico é o único ser livre, causa
sui.
43 "Na psicose (paranóia), o sujeito está sem defesa, sem qualquer outra defesa que o seu delírio, à mercê
da vontade de gozo do Outro." MILLER, Jacques-Alain, Lógicas de la vida amorosa, Buenos Aires,
Manantial, 1991, p. 12.
44 Podemos ver na anulação (internamento) de Caligari a falência do delírio de Francis, o
desencadeamento psicótico.
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Freud começou por atribuir ao psicótico um saber sobre o seu delírio. Verificou que um dos
aspectos fundamentais é o facto do delírio ser ao mesmo tempo uma tentativa de cura,45 uma
saída para o impasse psíquico. Nas suas Memórias,46 o presidente Schreber descreveu o seu
sofrimento e sintomas, mas esteve igualmente próximo de elaborar uma teoria sobre a psicose.
O delírio paranóico mostra como a realidade psíquica pode distorcer e alterar a nossa
mundividência. A realidade externa é transformada a partir das necessidades internas do
sujeito.47 O paranóico não subverte apenas o sentido e o significado das coisas, ele pode
chegar mesmo a ver e a escutar coisas que não estão presentes (ouvir vozes).48 Os
acontecimentos e as relações entre os indivíduos são recriados com o propósito de justificar o
sujeito.49 Mas não se trata de um mero acontecimento aleatório e dissociativo. Se o delírio
psicótico é estranho a terceiros e prima pela sua singularidade, existem porém aspectos
comuns. A estratégia psicótica comporta certas invariantes, uma lógica particular.
Na psicose paranóica, o indivíduo está no lugar da vítima de uma conspiração generalizada.
Neste mundo narcísico, o sujeito não reserva para o pequeno outro um papel relevante, mas
sim para um grande Outro que encarna o mal absoluto (Dr. Caligari), e com o qual o sujeito
está em comunicação cerrada. Aliás, o filme inicia-se com a identificação desse outro
maléfico; no prólogo, Francis exclama: "Ele…" Um dos aspectos mais curiosos do delírio
psicótico é o facto de este atribuir a um Outro a responsabilidade total pelo mal que sobrevém
ao sujeito. O psicótico aliena assim toda a sua responsabilidade no sintoma50 com o recurso a
um terceiro maléfico.51 No final do filme, por um efeito de torção topológica, o sujeito que
era perseguido pelo sinistro Dr. Caligari aparece, no fundo, como o verdadeiro perseguidor. O
filme mostra bem a inversão entre a vítima e o carrasco: Vítima><Carrasco. Tudo isto pode
ser perturbador para o público. Esta é uma obra que devolve ao remetente o monstro que o
sujeito colocava no exterior (Outro). Este é um dos motivos que torna esta obra exemplar,
fazendo dela um objecto de fascínio generalizado.
45
"La elaboración delirante, por un lado, es la enfermedad y por el otro su curación." MILLER,
Jacques-Alain, "El inconsciente ≡ intérprete" in Freudiana, n.º 17, 1996, p. 10.
46 Cf. SCHREBER, Daniel, (1903) Denkwürdigkeiten eines Nervenkranken, Leipzig, Oswald Mutze.
47 Com frequência, o sujeito psicótico tece o delírio a partir de uma certa história que chegou ao seu
conhecimento. O filme refere-se às origens literárias do delírio de Francis. Um Compendio da
Universidade de Uppsala, publicado em 1726. A ficção torna-se realidade.
48 É o que sucede com o fenómeno de emasculação de Schreber e as vozes que ele escuta no real (Lacan).
49 A paranóia mostra bem que o sentimento de realidade é compatível com a distorção extrema dos factos.
50 A psicose leva ao limite a desresponsabilização do sujeito, presente igualmente no sintoma neurótico.
51 O delírio psicótico está ainda, com frequência, carregado de sentido religioso (escatológico), o que não
sucede com o argumento do filme. Eis mais uma prova da intervenção de Pommer e Wiener para o
resultado final. Mayer e Janowitz não fazem tais referências, porque escreveram um policial.
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Ao contrário do que se passa nas neuroses, a alucinação psicótica é para o sujeito um ponto
de certeza. No filme, Francis nunca vacila; tudo em seu redor pode ser confuso ou suspeito,
mas ele nunca põe em causa o seu delírio, aliás este é para ele a própria realidade bruta.
Apesar do delírio não alterar a perspectiva dos demais, o sujeito psicótico nem por isso
diminui a sua convicção. Ele poderá mesmo integrar a descrença do outro como mais um
reforço para o seu mundo delirante. No filme, Francis dirá: "Vocês todos pensam que eu sou
louco! Isso não é verdade – quem é louco é o director!"
Existe ainda mais um traço psicótico. Como ocorre na paranóia, existe no filme um estranho
triângulo amoroso constituído por Francis, Alan e o objecto amado, Jane.52 Por vezes, o
paranóico coloca na corda bamba a relação de amizade com o companheiro de predilecção,
oferecendo-lhe a sua amada. Aliás, o assassinato de Alan, o segundo da série, às mãos do
sonâmbulo, é suspeito. Do ponto de vista do delírio, ao visitar e assassinar Alan, César
(inconsciente) realiza os votos de Francis, afastar o rival do caminho da sua amada.53 Note-se
que a reacção intensa de Francis parece confirmar a existência de um complexo de culpa. Para
se inocentar, remete para a profecia do Sonâmbulo a responsabilidade pela morte do amigo.54
É curioso que Alan não aparecera no final (epílogo) no hospício, acentuando a sua valência
imaginária. No final, Francis terá então o caminho livre para casar finalmente com a sua Jane.
O problema é que esta (louca) assumiu o papel de rainha com trono e coroa mas sem Rei nem
Roque.
Em suma, o delírio psicótico colocou Francis e os seus companheiros de hospício no lugar de
vítimas de um director sinistro. Os doentes mentais transformaram-se em personagens de uma
intriga de crime e horror. Estamos perante um delírio de perseguição, onde a ameaça interna
aparece no exterior, isto é, "retorna do real" (Lacan). No delírio psicótico (paranóico), o outro
interno (Supereu) reveste-se com as características de um terrível perseguidor do sujeito.
Caligari é no fundo um outro interior (duplo) de Francis, daí o "Du musst Caligari werden". O
perseguidor é também a testemunha especular do dilaceramento do sujeito. Ele é possuidor de
uma completude que o sujeito procura desesperadamente arrebatar. No final, o ocaso do Outro,
da sua completude, é também o fim do sujeito e do seu delírio. Quando o Dr. Caligari é
52
A origem do argumento do filme está também associada a um triângulo amoroso. Carl Mayer
apresentou a sua amada Gilda Langer a Hans Janowitz. Esta incentivou ambos a escreverem um
argumento para um filme no qual ela tivesse o papel principal. Acabou por ser Lil Dagover a representar o
papel destinado a Gilda, que entretanto faleceu. Janowitz disse mais tarde que a morte desta foi
profetizada por uma adivinha (Wahrsagerin) numa feira anual.
53 Deste modo, César, o sonâmbulo, parece estar mais ao serviço dos votos (inconsciente) de Francis do
que do Dr. Caligari.
54 Dirá à polícia que não "terá descanso", não dormirá, até resolver os "crimes horríveis".
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encerrado numa cela do asilo, termina o delírio de Francis e este retorna ao real (loucura) de
onde nunca saiu.
No final, Francis ocupa o lugar do Dr. Caligari no seu delírio, é internado na mesma cela e na
mesma cama. O fim do delírio coincide com o esbatimento e inversão entre o sujeito vitimizado
e o seu carrasco. Afinal o outro maléfico não se distingue do sujeito paranóico. A psicanálise
mostra que o delírio psicótico é a tentativa de forjar o fantasma que não foi consolidado. O
objectivo é fazer existir o sujeito face a um gozo transbordante ("Pai do gozo"/Dr. Caligari). O
delírio é uma tentativa desesperada de fixar o gozo em excesso. Lacan dirá que o devaneio
psicótico tem a função psíquica de remendar o Nome-do-Pai que está precluído no simbólico.
Conclusões
O cinema é a grande arte do século XX, realizando o objectivo da obra de arte total
(Gesamkunswerk). O cinema e a psicanálise nascem ambos em 1895. Em Viena, Breuer e
Freud publicam os Estudos sobre histeria, em Paris, a 28 de Dezembro, os irmãos Lumière
realizam a primeira projecção pública do seu cinematógrafo. Mas a convergência não é apenas
temporal. Existe uma clara proximidade entre a realidade psíquica (sonho, delírio, fantasia) e
o filme. O sonho é uma espécie de projecção de imagens. Todas as noites, o sonhador produz
e assiste a uma projecção privada de um filme cujo argumento são os seus votos inconscientes
(Wünsche). Por seu lado, o cinema corresponde à elevação do sonho privado do realizador à
dignidade da obra (Lacan). Se os sonhos projectam na consciência individual imagens
cifradas do desejo do sujeito,55 o cinema coloca na consciência pública as imagens dos
sintomas colectivos, transportando para a realidade (vigília) o mundo onírico.56
O estilo expressionista do Dr. Caligari constituiu de facto um ornamento de época,
apropriado a enquadrar o guião de Mayer e Janowitz. Como vimos, no filme de Wiene, a
estética expressionista é o marcador da "realidade psíquica", servindo para caracterizar a
loucura (delírio psicótico). O corpo principal do filme destaca-se claramente da totalidade da
obra,57 mostrando bem que a psicose está efectivamente "fora do discurso" (Lacan). Mais do
que um filme, estamos em presença de uma das primeiras obras-primas do cinema.58 Esta
obra de 1920 corta com a tradição realista, introduzindo o fantástico. Caligari demonstrou que
55 Podemos interpretar um filme tal como Freud interpretou um sonho. Mostrar que tal como o sonho, o
filme é a realização de desejos (Wünsche).
56 Existe também um paralelo entre a indústria do cinema, enquanto fábrica de sonhos (Traumfabrik), e o
trabalho do sonho (Traumarbeit).
57 Na perspectiva de Lacan, o psicótico é a testemunha do real, pois o neurótico apenas o pode abordar
através do simbólico.
58 Os pontos fortes da obra são as representações de Krauss (Dr. Caligari) e Veidt (sonâmbulo).
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o cinema podia ter valor artístico intrínseco, para além das funções habituais de
entretenimento, informação e propaganda. Este salto qualitativo convocou realizadores mais
ambiciosos, expondo a sétima arte a um público mais exigente. Por isso, o Dr. Caligari será a
partir de então um paradigma do film noire.
Para além do factor histórico, uma obra comporta, acima de tudo, um "elemento de verdade"
(Adorno).59 Este deve ser identificado na própria articulação da obra e não no contexto em
que ela se insere. Neste filme está sobretudo em jogo as ambiguidades e as contradições da
alma humana. Para além dos motivos estéticos, esta obra carrega consigo uma intensa carga
psíquica que é no fundo responsável pelo interesse que o Dr. Caligari despertou.60 O
confronto com a loucura gera um sentimento misto de fascínio e de horror. O filme de Wiene
é perturbante porque mostra o colapso do sentido psicológico (psíquico).61 Mas o delírio de
Francis indica que a loucura não se resume à anulação caótica do sentido comum, mas é
sobretudo uma tentativa desesperada de encontrar sentido, e assim justificar a existência. Na
nossa leitura, a realização de Wiene (moldura) foi decisiva, pois transformou o argumento
pouco elaborado de Mayer e Janowitz numa história com intensos efeitos de perplexidade,
uma representação memorável da loucura humana.
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59 "O elemento da verdade é essencial às obras de arte <Kunstwerken das Moment von Wahreit
wesentlich ist>". ADORNO, Theodor, Ästhetische Theorie, Frankfurt, Suhrkamp, 1973, p. 516(142).
60 Robert Wiene procurou aplicar em 1920 (Genuine) o que julgou ser a receita de sucesso de Dr. Caligari.
Porém, a ausência de uma boa história, com densidade psicológica, deitou tudo a perder.
61 Esta é o momento em que a loucura chega ao grande ecrã.
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