sentidos da conversão aldeamentos, conversão e hibridismo

Transcrição

sentidos da conversão aldeamentos, conversão e hibridismo
FACULDADE SÃO BENTO DA BAHIA
PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM HISTÓRIA SOCIAL E ECONÔMICA DO
BRASIL
MANOEL ANTUNES DA SILVA
SENTIDOS DA CONVERSÃO:
ALDEAMENTOS, “CONVERSÃO” E HIBRIDISMO CULTURAL ENTRE OS
JESUÍTAS E OS TUPINAMBÁ
(1549-1590)
Salvador
2014
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MANOEL ANTUNES DA SILVA
SENTIDOS DA CONVERSÃO:
ALDEAMENTOS, “CONVERSÃO” E HIBRIDISMO CULTURAL ENTRE OS
JESUITAS E OS TUPINAMBÁ
(1549-1590)
Trabalho monográfico apresentado ao Curso de
Pós-Graduação lato sensu em História Social e
Econômica do Brasil, da Faculdade São Bento da
Bahia, como requisito parcial para obtenção do título
de Especialista em História Social e Econômica do
Brasil.
Orientadora: Profª. Me. Simone Trindade Vicente da
Silva
Salvador
2014
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RESUMO
Sentidos da Conversão é um estudo do empreendimento missionário da Companhia
de Jesus na América Portuguesa, no período compreendido entre 1549 e 1590, ano
do início da atividade catequética da Ordem até o momento da vinda do Padre
Fernão Cardim, que escreveu um texto sobre os Tupinambás e seus costumes,
entre 1583 e 1590. Centralizado nas cartas escritas pelos jesuítas, o trabalho realiza
uma análise histórico-antropológica do encontro catequético e cultural estabelecido
no interior dos aldeamentos jesuíticos nas terras brasílicas durante o século XVI.
Propõe-se, portanto, analisar os sentidos da conversão e as possíveis maneiras com
que os Tupinambás se apropriaram, adaptaram e negociaram a mensagem cristã
transmitida pelos jesuítas, destacando a importância da mediação e tradução
cultural implicadas na ação dos inacianos, responsáveis pela realização dos distintos
códigos e alteridades culturais em contato. Dessa forma, este estudo apresenta os
aldeamentos jesuítas no Brasil do século XVI como espaço pertinente para o
surgimento de novas formas culturais que se pode chamar de hibridismo cultural.
Palavras-chave: Conversão. Jesuítas. Tupinambá. Aldeamentos. Hibridismo
Cultural.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................4
2 DISCUTINDO OS TUPINAMBÁS: ANTROPÓLOGOS, SOCIÓLOGOS E
HISTORIADORES ............................................................. .........................................7
3 OS SENTIDOS DA CONVERSÃO: MISSÕES JESUÍTICAS ENTRE OS
TUPINAMBÁS............................................................................................................13
4 OS SENTIDOS DA CONVERSÃO E AS REDEFINIÇÕES IDENTITÁRIAS
TUPINAMBÁ .............................................................................................................23
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................28
REFERÊNCIAS .......................................................... ...............................................29
4
1 INTRODUÇÃO
O século XVI foi palco de muitos conflitos entre alteridades. De um lado, o
autóctone, acostumado com suas práticas milenares, seus códigos de ética e suas
crenças definidas; de outro, o invasor europeu, munido de uma perspectiva
etnocêntrica, interessado em arrebanhar mais almas para seu credo.
Desse antagonismo resultou o choque inevitável: os jesuítas, empenhados na
conversão dos gentios, viam nos indígenas uma forma de expandir o cristianismo
abalado pela Reforma Protestante; e os indígenas, abertos em sua plasticidade
social, em uma mesma inconstância que não os incitavam a resistir à conversão,
também não perseveravam (CUNHA, 2009).
Este trabalho, portanto, objetiva compreender os embates de alteridades tão
distintas entre Jesuítas e os Tupinambás e elege como temática central os sentidos
da conversão e o surgimento de uma cultura híbrida no interior dos aldeamentos
jesuítas a partir desse encontro cultural.
A Companhia de Jesus, idealizada em 1534 por um grupo de estudiosos,
liderada por Inácio de Loyola e fundada oficialmente por uma bula papal em 1540,
havia surgido do pressuposto de um retorno à pureza da primitiva Igreja e da
conversão dos pagãos e infiéis. Em 29 de março de 1549, chegaram à Província de
Santa-Cruz os primeiros jesuítas designados à Missão do Brasil. Sobre o comando
do Padre Manoel da Nóbrega, os padres Leonardo Nunes, Antônio Pires e João
Azpilcueta Navarro, além dos irmãos Vicente Rodrigues e Diogo Jácome, apartaram
na Bahia de Todos os Santos juntamente com Tomé de Souza, primeiro
Governador-Geral da Terra de Vera Cruz (HUE, 2006).
Empenhado nos sentidos da conversão dos Tupinambás (civilizá-los, afastálos dos seus “maus costumes” e trazê-los para os “bons costumes” da religião
cristã), os inacianos acreditavam ter encontrado os silvícolas “sem Fé, nem Lei, nem
Rei”, que tão facilmente quando se convertiam, esqueciam-se de tudo e voltavam
novamente aos seus “maus costumes” caracterizados pelos jesuítas como
“excessos” (AGNOLIN, 2007, p.331).
Apesar de descrever várias cerimônias religiosas indígenas, Nóbrega e outros
cronistas do século XVI não as reconheciam como uma religião e afirmavam que os
índios não possuíam crenças. Na verdade, isso era visto como uma grande
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vantagem, sob o ponto de vista dos sentidos da conversão, porque, desse modo, os
Tupinambás estariam muito mais sujeitos e aptos a deixarem seus “costumes
excessivos”. Dessa forma, os inacianos não percebiam que “os maus costumes dos
Tupinambás eram sua verdadeira religião” (CASTRO, 2002). Todavia, Anchieta logo
enumerava os entreves que dificultariam a conversão dos indígenas:
Os impedimentos que há para a conversão e perseverar na vida cristã de
parte dos índios são seus costumes inveterados [...] Como o terem muitas
mulheres; seus vinhos em que são muitos contínuos e em tirar-lhos há
ordinariamente mais dificuldade que em todo o mais [...] Item as guerras em
que pretendem vingança dos inimigos, e tomarem nomes novos, e títulos de
honra; o serem naturalmente pouco constantes no começo, e sobretudo
falta-lhes limos e sujeição (ANCHIETA, 1984, p. 333).
A missão de converter os Tupinambás logo se revela difícil. Segundo
Castelnau-L`Estoile (2006), a conversão, cujo sentido evoca uma completa mudança
de vida, implica, ao mesmo tempo, transformar os costumes dos índios e ensinarlhes os elementos essenciais do dogma cristão. Conclui a historiadora nestes
termos:
Os jesuítas do Brasil inventaram o aldeamento, isto é, uma aldeia de
evangelização onde eram reunidos índios de origens diversas com os quais
se residiam os missionários. Em decorrência da especificidade da
conversão dos índios no Brasil, a missão, itinerante por definição, torna-se
fixa (CASTELNAU-L`ESTOILE, 2006, p.19).
O intuito deste estudo é compreender a relação entre índios e missionários a
partir da ótica das diferenças cosmológicas, e respaldado no conceito cunhado por
Sahlins (2003) de “estrutura da conjuntura”, segundo o qual “essas sociedades
teriam um sistema cultural aberto, isto é, capaz de ressignificar localmente as
mudanças introduzidas pelas relações coloniais” (SAHLINS, 2003 apud MONTERO,
2006, p.47). Dessa forma, Sahlins localiza a cosmologia nativa no centro dos
processos de simbolização mobilizados pelo contato. Segundo Montero (2006, p.47),
As tradições cosmológicas seriam, segundo Sahlins, a bagagem de onde os
povos retirariam os traços operacionais para pensar sua relação com os
outros através da construção simbólica de sinais constrastivos. Através
dessas operações do pensamento cosmológico, os nativos seriam capazes
de incorporar os eventos impostos pelo contexto em seus próprios termos.
Partindo de Manoel da Nóbrega a Fernão Cardim, este trabalho visa ainda a
analisar os sentidos da conversão para os jesuítas e focalizar as maneiras como os
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indígenas incorporaram, transformaram ou rejeitaram o catolicismo transmitido pelos
missionários nos aldeamentos e apreender as possíveis concepções ameríndias
referentes ao encontro cultural.
Influenciado
pelos
mais
recentes
estudos
histórico-antropológicos
preocupados em realizar uma interpretação do passado das sociedades ameríndias
na América Portuguesa, o objetivo é compreender os múltiplos processos de
convergência de horizontes simbólicos entre jesuítas e indígenas aldeados. Tem-se,
aqui, como pressuposto, o fato de
[...] que não há uma passagem temporal, analiticamente recuperável, entre
uma configuração cultural e outra, a ênfase analítica deve voltar-se para a
lógica das relações (políticas e simbólica) de significação e modo como
produzem e reformulam alteridade (MONTERO, 2006, p. 43).
Além disso, pretende-se destacar a importância da “mediação cultural”
presente na ação dos jesuítas, responsável pela articulação dos distintos códigos
simbólicos e culturais em contato nas aldeias. Dessa forma, assumir tal ponto de
vista pode permitir contestar a eficácia da conversão pretendida pelos inacianos e
caracterizar as missões jesuítas de Nóbrega a Cardim (1549-1590) como um espaço
propiciador de “mestiçagem” (GRUZINSKI, 2001) ou hibridismo (VAINFAS, 2010).
O trabalho está estruturado de forma a apresentar reflexões históricas sobre
os sentidos da conversão. A seção 2, “Discutindo os Tupinambá” apresenta as
principais ideias e o debate sobre a conversão dos Tupinambá presente na literatura
dos antropólogos, sociólogos e historiadores, a mais rica na temática. Na seção 3,
“Os sentidos da conversão”, evidenciamos a construção do projeto da conversão
dos Tupinambá como resultado de dois grandes movimentos religiosos: a Reforma e
a Contra-Reforma, que chegariam a Terra de Santa Cruz como Missão Jesuítica e
atingiriam as mentalidades dos Tupinambá. Por fim, na seção 4, “As redefinições
identitárias”, reunimos algumas documentações históricas para demostrar que os
“maus costumes” indígenas não foram substituídos e o que houve foi a permanência
de traços culturais de ambas as partes dos envolvidos na Conversão e na formação
de elementos culturais híbridos.
7
2
DISCUTINDO OS
HISTORIADORES
TUPINAMBÁ:
ANTROPÓLOGOS,
SOCIÓLOGOS
E
A temática da conversão já foi tratada por alguns antropólogos, sociólogos e
historiadores de maneira séria, mas ainda de forma incipiente, sendo focalizada em
demasia enquanto aspectos do projeto jesuítico para a América Portuguesa,
deixando possibilidades para outras leituras. De Métraux a Agnolin houve muitos
acenos e até análises detalhadas ou pormenorizadas, mas inserida em outro
aspecto de natureza mais abrangente. A conversão dos Tupinambá, desse modo,
aparece sempre ligada a um aspecto maior, situando-se como ponto elementar ou
complementar nessas leituras.
Desde 1922, o antropólogo suíço, mas naturalizado cidadão americano, Alfred
Métraux (1979) tentou nos fornecer um quadro geral da cosmologia, do xamanismo
e da antropofagia Tupinambá. Em seu livro A Religião dos Tupinambá e suas
relações com a das demais tribos tupi-guarani, o etnólogo tem como objetivo
sistematizar as fontes dos cronistas para nos fornecer de forma crítica e detalhada a
religião dos tupinambá. Mas, segundo Métraux (1979), o seu estudo das ideias
religiosas dos Tupinambás está longe de formar um todo completo. Segundo o
mesmo autor, tais lacunas são, em parte, preenchidas pelo etnólogo alemão Curt
Numuendaju. A partir de seu livro, Métraux (1979) propôs que os pormenores
frequentes e, às vezes, obscuros, fornecidos a respeito dos caraíbas e da “Terra
Sem
Mal”
tornaram-se
mais
compreensíveis
quando
comparados
aos
acontecimentos relativamente recentes que se produziram no seio de alguns grupos
Guaranis do Paraguai e do sul do Brasil. Para Métraux, pode-se compreender o
estudo dos movimentos messiânicos dos Tupinambá partindo-se do conhecido para
o desconhecido, isto é, do exame das fontes contemporâneas para interpretação
dos velhos textos.
Outro grande sistematizador do material dos cronistas foi o sociólogo
brasileiro Florestan Fernandes. Em seu livro Organização Social dos Tupinambá,
publicado em 1948, o estudioso faz uma reconstituição da sociedade Tupinambá
que esteve em contato contínuo com os europeus durante os séculos XVI e XVII.
Dentre os aspectos para se compreender a religião dos Tupinambá estão as
categorias de idade, essas muito rígidas e para atingi-las deveriam ser antecipadas
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de rituais mágico-religiosos, e do conselho de chefes que “abrangia efetivamente
todos os indivíduos de determinado status: os Ava e os Thuyaae” (FERNANDES,
2006). Esses aspectos sociológicos nos ajudam a confrontar as fontes quinhentistas
e perceber que a conversão dos índios não aconteceria facilmente em uma
sociedade estruturada e tão impregnada de rituais mágico-religiosos.
Em 1951, Florestan Fernandes defendeu sua tese de doutorado e nela
justificou que a guerra era uma comunicação com o sagrado. Segundo Fernandes
(2006), as normas e os valores sociais que orientavam a conduta e as ações
guerreiras possuíam um caráter mágico-religioso, e originavam subjetivamente como
“obrigações essenciais” devidas pelos humanos a entidades sobrenaturais.
Os escritos do antropólogo Pierre Clastres (1974) estão entre as pesquisas de
antropologia política para justificar as migrações religiosas Tupi-Guarani, e podemos
confirmar em sua tese sustentada nas duas coletâneas de ensaios. Segundo
Clastres (2004), a busca da “Terra sem Mal” foi uma luta contra o Estado e contra o
poder, e o aparecimento dos profetas caraíbas e do discurso que dizia a eminência
do mal. Para o estudioso, o fenômeno do profetismo Tupi-Guarani deu motivo a
numerosos erros de avaliação, e um deles seria interpretar o profetismo como a
resposta a uma situação de grave crise consecutiva ao contato com a civilização
ocidental. Conclui o antropólogo:
Mas reduzir o profetismo tupi-guarani ao campo do messianismo seria
desconhecer sua natureza radicalmente diferente, pela simples e
irrevogável razão de que ele se originou entre esses índios bem antes da
chegada dos brancos, talvez por volta de meados do século XV. Trata-se,
portanto, de um fenômeno autóctone, que nada deve ao contato com o
Ocidente, e que não estava, por isso mesmo, de modo algum orientado
contra os brancos; trata-se claramente de um profetismo selvagem, do qual
a etnografia assinalou nenhum equivalente noutros lugares (CLASTRES,
2004, p.153-154).
Outra antropóloga que se dedicou ao estudo do profetismo Tupi-Guarani foi a
francesa Hélène Clastres (1975). Em seu livro Terra sem mal: o profetismo tupiguarani, publicado em 1975, desenvolve e estende, por meio de um caso particular,
a tese sustentada por Pierre Clastres. A estudiosa menciona no livro a complexidade
da organização social Tupi-Guarani, como: hierarquização da chefia, submissão dos
vencidos em guerra, organização mágica-religioso da sociedade etc. Dessa forma,
há a afirmação de que mudanças profundas estavam acontecendo na sociedade
9
Tupi-Guarani
no
século
XV,
a
um
passo
do
aparecimento
do
Estado,
desencadeando o conflito entre poder político e poder religioso. Segundo Clastres, a
busca da Terra sem Mal teria surgido como reação às transformações políticas
internas e não com a chegada dos europeus.
De modo que exceto se admitíssemos que este conjunto coerente que é a
Terra sem mal pudesse ter surgido bruscamente e ao mesmo tempo, em
todas as sociedades tupis-guaranis, coincidindo com a chegada dos
europeus somos levados a formular a hipótese de que o profetismo gerouse na medida exata em que as sociedades se transformavam e ampliavam,
como a contrapartida crítica e negadora das transformações política e
raciais que se inauguravam (CLASTRES, 1975, p.59-60).
Um dos grandes trabalhos dedicados à religião e aos costumes Tupinambá é
o ensaio de Manuela Carneiro da Cunha (2009) em colaboração com Eduardo
Viveiros de Castro, Vingança e temporalidade: os Tupinambá, publicado a primeira
vez em 1985. A partir desta obra, os antropólogos analisaram a “inconstância” dos
índios a converterem-se e perceberam que a única obstinação e indiferença da
plasticidade social dos Tupinambá era a vingança. E um dos pontos mais importante
da vingança é o diálogo entre o matador e a vítima
[...] em um primeiro momento, qualificou-se a matança iminente como uma
vingança por mortes passadas. Segundo momento do diálogo, e afirma-se a
vingança será vingada: a morte presente será a razão de mortes futuras
(CUNHA; CASTRO 2009).
Considerando a vingança como o ponto essencial da sociedade Tupinambá,
Cunha relaciona memória e vingança para explicar a vingança na temporalidade,
onde a memória, cujo único conteúdo é a vingança, de que a vítima é o resultado,
mas também o penhor. Resumem:
O nexo da sociedade Tupinambá é a vingança. Mas a vingança não é outra
coisa senão um elo entre o que foi e o que será, os mortos do passado e os
mortos por ver ou, o que dá no mesmo, os vivos pretéritos e os vivos
futuros. Dizer que seu nexo é a vingança é portanto dizer da sociedade
tupinambá que ela existe na temporalidade, que ela se pensa a se mesmo
como constituída no tempo e pelo tempo (CUNHA; CASTRO, 2009, p.9394).
Outro importante trabalho nessa área é o de Eduardo Viveiros de Castro
(2002), um estudo acerca da conversão e descrença dos índios no século XVI,
10
publicado pela primeira vez na Revista de Antropologia, em 1992. Trata
essencialmente da “inconstância da alma selvagem”, que ora aderia [“o selvagem”]
com furor ao catolicismo jesuítas, ora, depois de “convertido”, retornava a seus
“maus costumes” que tanto aterrorizavam os jesuítas sedentos de novas almas.
Logo os jesuítas perceberam que os costumes Tupinambá era seu pior inimigo para
a conversão, pois acreditavam que os indígenas não tinham religião. Para Castro,
“os missionários não viram que os “maus costumes” dos Tupinambá eram que
verdadeira religião era o resultado da adesão profunda a um conjunto de crenças de
pleno direitos religiosas” (CASTRO, 2002, p.192).
Carlos Fausto (2009) é um dos antropólogos que se dedicou à história e à
cultura Tupinambá no seu texto publicado no livro História dos índios no Brasil,
organizado por Manuela Carneiro da Cunha. No capítulo que lhe é atribuído, o
objetivo principal é o de ler os cronistas a partir do material etnográfico
contemporâneo ao autor. Um dos seus principais pontos de análise sobre os
Tupinambá é o que diz respeito ao xamanismo e ao profetismo. Discordando de
Hélène e Pierre Clastres, ele afirma que os movimentos migratórios dos indígenas
em busca da Terra sem Mal foi causado pelos empactos da conquista e da
colonização.
Eram inúmeros os movimentos migratórios forcados e/ ou voluntários para o
interior – os Tupi fugiam das epidemias, da escravização, buscavam novos
territórios. Esse era não há dúvidas, um contexto propício à atualização do
discurso profético, e de favorecer esses aspectos da cosmologia e do
xamanismo Tupinambá. Ademais, os xamãs se encontravam numa posição
particularmente incômoda: as epidemias e a mortandade afetavam de forma
direta sua prática de cura, bem como faziam crescer as suspeitas sobre a
sua atuação como feiticeiro, como aquele que produziam a morte (FAUSTO,
2009, p.387).
Outro estudo que se atém, de maneira muito específica, em aspectos da
conversão e seus impactos causado na religião dos Tupinambá é o do historiador
Ronaldo Vainfas(2010). Em uma análise aprofundada da Santidade de Jaguaripe,
dos idos de 1585, esses rituais e os caraíbas que os protagonizavam deixavam os
moradores e jesuítas perplexos, já que desde Caminha todos são unânimes em
dizer que não havia religião entre os índios. Em seu livro A Heresia dos Índios:
catolicismo e rebeldia no Brasil colônia, publicado em 1995, Vainfas analisa um
movimento que o chamou de hibridismo cultural. Um dos pontos importantes de sua
análise das particularidades do caraíba diz-se da migração religiosa objetivando a
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Terra sem mal. Concordando com Carlos Fausto, sobre sua crítica às teses de
Hélène e Pierre Clastres, Vainfas crê ser insustentável a ideia de que
[...] o profetismo tupi-guarani incluindo a multiplicidade das cerimônias que
dele resultavam não guardavam relações diretas e históricas, vale dizer com
o contato com o colonialismo (VAINFAS, 2010, p.45).
Para o historiador, a mudança de direção das migrações guiadas pelos
caraíbas que antes visavam ao Ocidente passaram a buscar o Oriente, dessa forma,
mostra de maneira convencível o quão tão decisiva foi a chegada dos moradores e
jesuítas nas manifestações políticas religiosas dos Tupinambá.
No início do século XXI, o estudioso da história indígena John Manuel
Monteiro (2001) apresentou sua tese Tupis, Tapuias e Historiadores. Estudos da
História Indígena e do Indigenismo. O pesquisador faz uma análise daquela que foi
um instrumento para a conversão dos índios no Brasil: a língua geral. Segundo
Monteiro,
A língua geral dos jesuítas foi fruto de um longo processo de construção,
começando com a chegada dos padres em 1549 e culminando com a
publicação da Arte de Gramática de José de Anchieta, em 1595 e do
Catecismo na Língua Brasílica, de Antônio de Araújo em 1618 (MONTEIRO,
2001, p.43).
As aldeias missionárias foram o principal espaço de interação entre jesuítas e
índios, respaldadas pela língua geral, que os inacianos especializaram-se para
compreender “os maus costumes” e substituí-los pelos os “bons costumes” cristãos.
Uma das pesquisas mais recentes sobre a conversão e contato entre jesuítas
e índios é a de Cristina Pompa (2003). A premiada pesquisa Religião Como
Tradução: missionários, tupi e tapuia no Brasil colonial procura reescrever a história
indígena como um mundo de mudanças, adaptações, negociações e constantes
redefinições identitárias no espaço do aldeamento jesuítico. Pompa focaliza no seu
livro os rituais religiosos Tupinambá e nos mostra de maneira inovadora o olhar
recíproco e diferenciado dos sujeitos índios que foram objetos de espanto por parte
dos moradores do Velho Mundo. Buscou-se compreender “os múltiplos sentidos da
conversão entre os povos indígenas” (WRIGTH, 1999) aldeados juntos a alteridades
tão distintas à sua: os Jesuítas.
Charlotte de Castelnau-L`Estoile (2006), em sua obra Operário de uma vinha
estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil-1580-1620, mais restrita no
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espaço e no tempo, veio confirmar que a conversão dos índios no Brasil não estava
dando o fruto esperado pelo geral da Companhia de Jesus, Cláudio Aquaviva, em
seu longo generalato (1580-1615). Segundo a historiadora francesa, “a missão no
Brasil aparece como uma ‘vinha estéril’, assim como a chama o geral da ordem, em
1582” (CASTELNAU-L´ESTOILE, 2006).
Em nove de maio de 1583, desembarcaram em Salvador Fernão Cardim,
secretário, e Cristóvão de Gouvêa, encarregado pelo geral da ordem jesuítas de
visitar a província do Brasil. Em 1585, o jovem jesuíta Fernão Cardim escreveu uma
Narrativa epistolar relatando a sua visita nas aldeias indígenas, onde fariam o
essencial do trabalho da conversão. A partir da descrição dos costumes indígenas
presentes nos aldeamentos, podemos supor que a conversão não estava sendo
como o esperado.
O sociólogo Adone Agnolin (2007) marca uma das principais pesquisas
relacionadas à Nova História Indígena e demonstra que, ao contrário da simples
substituição dos costumes Tupinambá, o encontro entre jesuítas e indígenas
estabelecidos no interior dos aldeamentos foi responsável por propiciar o surgimento
de novas formações sociais e culturais. Analisando os sacramentos entre os
indígenas, Agnolin percebeu que:
Levando em consideração esses problemas de caráter histórico (próprios de
uma perspectiva histórico-religiosa) já se entrevê quanto os instrumentos
impressos ou manuscritos, que deviam servir para a “apresentação da fé”
as novas populações do orbis Cristianus, além dos problemas de clareza
doutrinal, de síntese conceitual e de traduzibilidade lingüística,
determinaram um espaço para um “encontro” que se apresentará
necessariamente repleto de equívocos e mal-entendidos. (AGNOLIN, 2007,
p.249-250)
De certa forma, esses equívocos e mal-entendidos entre ambas as partes
estão muito próximos da proposta aqui delimitada, uma vez que os sentidos da
conversão estão entrelaçados entre duas alteridades convergentes do espaço do
aldeamento jesuíticos artificializado para os Tupinambá.
13
3 OS SENTIDOS DA CONVERSÃO: MISSÕES JESUÍTICAS ENTRE OS
TUPINAMBÁ
No século XVI surgiram dois grandes movimentos religiosos que sacudiram a
Europa e que levariam esses acontecimentos até às estruturas da mentalidade
religiosa das populações indígenas brasileiras. A historiografia convencionou chamar
esses movimentos religiosos de Reforma Protestante e de Contra-Reforma. A
“heresia luterana” contestava abertamente os dogmas da Igreja Católica e a
autoridade do Papa.
Esse processo de reforma religiosa desencadeou-se pelos abusos cometidos
pela Igreja Católica e a mudança na visão de mundo da população deste período, no
campo das transformações intelectuais, da cultura e da arte com o surgimento do
pensamento renascentista. A Igreja Católica vinha, desde o final da Idade Média
perdendo sua identidade, pois gastava com o luxo e preocupações naturais, o que a
levava a se desviar do objetivo católico. A Igreja havia se afastado muito de suas
origens e de seus ensinamentos, como pobreza, simplicidade e sofrimento. Muitos
elementos do clero estavam desrespeitando as regras religiosas, principalmente o
que diz respeito ao celibato, e Padres que mal sabiam rezar uma missa e comandar
os ritos católicos deixavam à população insastifeita.
Pioneiro na “ameaçadora heresia” que pairava sobre a Europa, Martinho
Lutero protestou violentamente contra o comércio de indulgência e , em 1517, fixou
na porta de Igreja de Wittenberg, onde era monge e pregador, 95 teses que, dentre
outras coisas, condenava a prática da venda de indulgência e criticava vários pontos
da doutrina católica. Segundo Adone Agnolin (2007), em sua teologia reformada,
Martinho Lutero prescreve que o fiel deve pôr-se em contato com Deus somente por
meio da leitura solitária da Bíblia, dispensando a (outra) mediação do Clero dos ritos
e das cerimônias da Igreja.
A Contra-Reforma, ou Reforma Católica, foi uma série de atitudes tomadas e
barreiras colocadas pela Igreja contra a crescente onda do protestantismo. Para
enfrentar as novas doutrinas, a Igreja Católica utilizou várias precauções para conter
essa “ameaçadora heresia”. Preocupado com tal avanço da “heresia luterana” e com
as perdas significativas de fiéis, bispos e Papa reúnem-se em Trento, onde
14
promoveram o Concílio de Trento (1545-1563). De acordo com o analista dos
catecismos utilizados pelos evangelizadores dos Índios brasileiros:
A fim de impermeabilizar-se contra a infiltração de uma (por nada
impermeável) ruptura da coesão formal no âmbito do Catolicismo, os
conturbados acontecimentos que acompanharam as conturbadas, longas e
várias sessões do Concílio de Trento, encerrado no ano de 1563, acabaram
por confirmar o texto da Bíblia, conhecido como Vulgata, enquanto texto
oficial da Igreja e rito latino (AGNOLIN, 2007, p.49).
É a partir da “heresia luterana” e da ação contestadora da Contra-Reforma
que poderemos pensar no surgimento da ordem missionária da Companhia de
Jesus. Segundo Sheila Moura Hue (2006), idealizada em 1534 por um grupo de
universitários liderados por Inácio de Loyola e aprovada por bula papal em 1540,
havia nascido da ideia de um retorno à pureza da primitiva Igreja e da conversão dos
infiéis. Objetivando converter todos os tipos de infiéis, os “soldados de Cristo” ou
“operário da vinha do Senhor”, como os inacianos se autodenominavam, dedicaramse a combater as heresias, o protestantismo e a catequizar os povos não cristãos da
América. Afinal, uma das questões definidas no Concílio de Trento para combater a
reforma religiosa dizia respeito à catequização dos habitantes de terras descobertas,
através da ação dos inacianos, e estabeleceu-se que as crenças católicas poderiam
ter dupla origem: a partir daquele momento as Sagradas Escrituras ou as Tradições
Transmitidas pela Igreja, apenas esta estava autorizada a interpretar a Bíblia.
Como afirma Lucien Febvre (2009, p.30), “cada época fabrica mentalmente
seu universo”. É justamente a construção desse universo mental simbolicamente
híbrido que na Terra de Santa Cruz tem seu início em 1500.
Foi em 22 de abril de 1500 que os portugueses avistaram as terras brasílicas
pela primeira vez. Ocorreu imediatamente o encontro entre de divergentes
alteridades, portugueses e as etnias Tupi-Guarani do litoral brasileiro. A antropóloga
Manuela Carneiro da Cunha (2009, p.9), referindo-se ao encontro cultural afirma
que:
Ao chegarem às costas brasileiras, os navegadores pensaram que aviam
atingido o paraíso terreal: uma região de eterna primavera, onde se vivia
comumente por mais de cem anos em perpétua inocência. A cada lugar
conferiam um nome - atividade propriamente adâmica – e a sucessão de
nomes era também a crônica de uma gênese que se confundia a mesma
viagem. A cada lugar, o nome de santo do dia: Todos os Santos, São
Sebastião, Monte Pascoal. Antes de se batizarem os gentios, batizou-se a
terra encontrada.
15
Pero Vaz de Caminha escrevendo ao rei Dom Manuel I, de Porto Seguro, em
primeiro de maio de 1500, afirma que os indígenas pareciam inocentes e dispostos a
abraçar a converter-se e aceitar os costumes da cristandade. Segundo John
Hemminh (2007), feito a cruz, Cabral ordenou a seus homens que:
[...] Nos puséssimos todos de joelhos e a beijássemos para eles [ índios]
verem o acontecimento que lhe tinhamos. E assim o fizemos. E a esses dez
ou doze que lá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo
foram todos beija-la. (CAMINHA apud MEMMING, 2007, p.34).
Hemming (2007) observa que “quando finalmente a cruz foi fincada, os índios
participaram da cerimônia, ajoelhando-se durante as orações e imitando os
portugueses quando eles se levantaram no momento do sermão”. É o que afirma
Caminha nestes termos:
E quando levantaram a Deus, que nos pussemos de joelho, eles se
puseram todos assim como nós estávamos com as mãos levantadas, e em
tal maneira sossegadas que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita
devoção (CAMINHA, apud HEMMING, 2007, p.34-35).
Como todo homem do século XVI, Caminha estava impregnado de
catolicismo. E ao que tudo levava a crer os esforços da catequese logo dariam os
frutos desejados pela cristandade, “pois a gente é boa e de boa simplicidade e
gravar-se-á neles, ligeiramente, qualquer cunho que lhe queiram dar” (CAMINHA,
apud ROMINELLI, 1996, p.42). Tal observação de Caminha reforça a crença
imediata de que os sentidos da conversão seriam fases:
Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua
fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não tem nem
entendem crença alguma [...] se farão cristão e hão de crer na nossa
santa fé, à qual para a Nosso Senhor que os traga, porque certamente,
esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente
nestes qualquer cunho que lhes quiserem dar, uma vez que Nosso
Senhor lhes deus bons corpos e bons rostos, como a homens bons [...]
E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a Santa fé católica,
deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho
seja asssim! (CAMINHA, apud HEMMING, 2007, p.35. Grifo nosso).
A “simplicidade” e “inocência” dos Brasis do litoral que demonstravam
aparentemente facilidade em converter-se em bons cristãos, logo dariam lugar a
16
novas expressões depreciativas, como: mutáveis, inconstantes, brutos, ingratos e
principalmente “maus costumes”.
Em 29 de março de 1549, desembarcou no Brasil Antigo a primeira missão
jesuítica com seus objetivos já previstos no berço da fundação da Companhia de
Jesus. Segundo o sociólogo e historiador Adone Agnolin (2006, p.460):
Em 1534 o espanhol Inácio de Loyola funda, junto com seis companheiros,
o primeiro núcleo da Companhia de Jesus, que pretende constituir-se como
um instrumento de luta a serviço do papa contra os hereges e os infiéis. Os
jesuítas tornaram-se os protagonistas da Contra-Reforma católica.
Composta por seis jesuítas, João de Azpilcueta Navarro, Leonardo Nunes,
Antonio Pires, e os irmãos Diogo Jacome e Vicente Rodrigues, comandados pelo
padre Manuel da Nóbrega (PEIXOTO, 1988, p.47). Dessa forma, a missão jesuítica
que chega ao solo Tupinambá consolida-se através do “plano eclesiástico tridentino
no século XVI” (AGNOLIN, 2006). Temática mais problematizada durante as
reuniões do Concílio de Trento (1544-63), a Missão era vista como forma de
penetração do cristianismo nas mentalidades dos bárbaros e gentios da América.
Todavia, a conquista da América trazia ao conhecimento do Velho Mundo novas
alteridades que, em seu conjunto, dominaram as preocupações da Igreja e do
Estado.
Em 1º de junho de 1537, o papa Paulo III viu-se com a difícil tarefa de afirmar
com clareza, no documento oficial “Altitudo divini consilii, a plena dignidade humana
das populações do Novo Mundo americano” (AGNOLIN, 2006, p.478). Para o
historiador, “com esse ‘reconhecimento’, abriu-se um espaço fundamental e
fundante para necessidade de empreender a obra de evangelização nos novos
territórios” (AGNOLIN, 2006, p.479). É o que conclui o estudioso da religião e
evangelização nos seguintes termos:
Para além das diretrizes conciliares, as forcas decisivas para a penetração
do cristianismo tridentino entre as populações “idólatras” foram expressadas
pelas ordens religiosas, e de forma expecial pelos jesuítas. Se, de fato, nas
reuniões conciliares, a “extirpação da idolatria” foi uma função entregue aos
inquisidores e aos bispos, foi graças aos missionários, atraídos pelo
modelo apostólico de pregação, que o Cristianismo penetrou em
profundidade. No caso brasileiro, as diretrizes da missão foram
inteiramente determinados pelo pensamento jesuítico (AGNOLIN, 2006,
p.479. Grifo nosso).
17
A primeira missão que chegou juntamente com o primeiro Governador-Geral,
Tomé de Souza, irmana-se a vontade do governador para iniciar o processo de
conversão. De acordo com Hue (2006, p.11), “concedida pelo rei português D. João
III, a missão de Tomé de Souza e do grupo jesuítas era francamente civilizatória”.
Munido do Regimento de 1548 que o rei D. João III mandou redigir, documento que
regulamentou a criação do Governo-Geral, Tomé de Souza estava juntamente com
os inacianos empenhados em fazer as reformas necessárias para desestruturar dos
Brasis os seus “maus costumes”.
Através de análise do Regimento do primeiro governador, podemos perceber
o seu caráter evangelizador e civilizador. Uma das atribuições do Regimento de
1548 é categórico ao afirmar:
Favorecer os Índios que sustentarem a paz e fazer guerra contra os
insurretos, dando-lhes castigos que sirva de exemplo a todos; ordenar que,
nas vilas e povoações, se faça feira onde os índios possam comprar e
vender, em pelo menos um dia de cada semana; Evitar que pessoa
alguma, de qualquer qualidade e condição, faça guerra aos índios sem sua
licença ou do capitão da capitania; Proibir que pessoa alguma, de qualquer
condição, dê aos índios armas e munições, sob pena de morte e perda de
todos os bens e atuar para que os Índios convertidos morrem junto às
povoações das capitanias (SALGADO, 1985, p.144-145. Grifos nossos).
Com o objetivo de incentivar a relação com os moradores e estabelecer,
assim, tanto a conversão quanto a civilização, os jesuítas e o Governador uniram-se
contra os “maus costumes” objetivando converter os Tupinambá, catequizá-los,
civilizá-los e trazê-los para os “bons costumes cristãos”.
Uma das prioridades estabelecidas para Tomé de Souza era justamente
“servir a deus e à fé católica” e enobrecer a terra e sua gente. Para os jesuítas, os
principais propósitos da missão estabelecida pela Coroa era a “catequese, proteção
da liberdade dos índios” e a “educação e aldeamento dos nativos” (GAMBINI, 2000,
p.48).
Segundo o analista junguiano Roberto Gambini (2000, p.48), os jesuítas no
Brasil deveriam ser portadores de certa moralidade ou padrão de comportamento,
expresso, nesse caso, pelos princípios básicos do catolicismo. Os sentidos da
conversão “político-espiritual era converter os indígenas”. Para o junguiano
brasileiro, “os jesuítas, deveriam descobrir a melhor maneira de cristianizar os
índios, tratando bem, favorecendo, protegendo e defendendo os que fossem de paz”
18
(GAMBINI, 2000). Nesse caso, os que deixassem os seus “maus costumes”. Aceito
o batismo, os índios deveriam manter-se separados dos seus costumes excessivos,
e agrupados “nas proximidades das vilas de portugueses para que conversem com
os cristãos e não com os gentios, e possam ser doutrinados e ensinados nas coisas”
dos “Bons Costumes” (GAMBINI, 2000, p.57).
Quando os inacianos chegaram ao Brasil Antigo, o padre Manuel da Nóbrega,
como chefe de missão, distribuiu os missionários, dando início o seu fervoroso
projeto de conversão dos Tupinambá. “Leonardo Nunes enviado” à Capitania de
“Porto Seguro”; “Diogo Jacome a Ilheos”, ficando “Navarro e Pires nas aldeas da
Bahia” (PEIXOTO, 1988, p.47). Dava-se início aos primeiros reconhecimentos da
alteridade cultural indígenas entre os jesuítas. Agnolin observa que no encontro
catequético-ritual:
Os primeiros reconhecimentos parecem delinear-se em forma de excessos,
por um lado, e de ausências, por outro. Num primeiro tempo, os excessos
serão identificados com os costumes e as ausências com as crenças. No
imperativo de cristianizar os indígenas, os primeiros parecem, em princípios,
ter preocupado mais do que os segundos. (2006, p.185)
Escrevendo da Bahia em agosto de 1549, quatro meses depois de suas
visitas às aldeias indígenas, Manuel da Nóbrega logo identifica os “excessos” e as
“ausências” nos costumes dos indígenas de língua Tupi:
Esta gentilidade a nenhuma coisa adora, nem conhece a Deus, somente
aos trovões chamam tupã, que é como quem diz coisa divina. E assim nós
não temos outro vocábulo mais conveniente para trazê-los ao conhecimento
de Deus que chama-lo pai tupã. Somente entre eles se fazem umas
cerimônias da maneira seguinte: de certo em certo anos vêm uns feiticeiros
de longes terras fingindo trazer santidade, e ao tempo de sua vinda hles
mandam limpar os caminhos, e os vão receber com danças e festas
segundo seu costume. E antes que o feiticeiro chegue ao lugar, andam as
mulheres de duas em duas pelas casas dizendo publicamente as faltas que
fizeram a seus maridos, e umas as outras, e pedindo o perdão delas.
E chegando o feiticeiro, com muita festa, ao lugar, entra em uma casa
escura e põe na parte mais conveniente para seus enganos uma cabeça
que traz em figura humana, e mudando sua própria voz, como a de criança,
junto da cabeça, diz-lhes que não cuidem de trabalhar, nem vão à roça, que
o mantimento por si próprio crescerá, e que nunca hles faltará o que comer,
e que por si virá a casa, que as aguilhadas se irão a cavar, e as flechas se
irão ao mato caçar para seu Senhor, e que hão de matar muitos de seus
contrários, e cativarão muitos para seus comeres;e promete-lhes longa vida,
e que as velhas se hão de tornar moças, e as filhas que as dêem a quem
quiserem, e outras coisas semelhantes lhes diz e promete, com o que lhes
engana; de maneira que crêem haver dentro da cabeça alguma coisa santa
e divina, que lhes diz essas coisas, nas quais crêem. E, acabado de falar o
feiticeiro, começam a tremer, principalmente as mulheres, com grande
19
tremores pelo corpo, que parecem endemoniadas, como decerto o são,
lançando-se à terra, espumando pela boca, e nisto lhes persuade o
feiticeiro de que então lhes entra a santidade, e quem assim não age,
tornam-lhes mal. E depois hles oferecem muitas coisas. E nas enfermidades
dos gentios usam também esses feiticeiros de muitos enganos e feitiçarias.
Esses são os maiores inimigos que temos aqui: algumas vezes fazem crer
aos enfermos que nós lhes metemos no corpo facas, tesouras e coisas
semelhantes, e que com isso os matamos (HUE, 2006, p.35-37).
Apesar de descrever várias cerimônias religiosas indígenas, Nóbrega não as
reconheciam como uma religião e afirmava que os Tupi do litoral não possuíam
crenças. Mas logo identificou os objetos de adoração indígenas, qualificando-os
como os inimigos da conversão. Agnolin, depois de analisar a negociação da fé no
encontro com o outro (a diversidade cultural), chegou à seguinte conclusão:
Os excessos indígenas identificavam-se, sobretudo, com o conjunto de
“costumes abomináveis” ou “maus costumes” - Cauinagem, guerra,
antropofagia, sexualidade desordenada, pinturas, danças etc. - que
conotava um estágio (de memória aristotélica) inferior da humanidade,
reveladas de uma profunda desordem social e que dificultava, ao mesmo
tempo, o processo de civilização. No combate a esses institutos, assim com
à instituição central da cultura tupi do Karaíba, os “redutores” jesuítas, serão
sempre irredutíveis (AGNOLIN, 2007, p. 276).
Nóbrega observa que a maior autoridade pertencia aos “feiticeiros” que os
indígenas reconheciam como pajés e Karaíbas, esses vistos pelos jesuítas como os
propagadores dos “maus costumes” abomináveis. Referindo-se aos costumes
indígenas, vistos pelos missionários como impedimento para a conversão. Agnolin
(2007) afirma que “aos excessos dos Comportamentos”, estão presentes “algumas
significativas ausências em relação à memória, à vontade e a religião”. Neste
sentido, “se o missionário deve modificar por meio da força se necessário, o
comportamento e os costumes indígenas para salva-los, ele deve igualmente fazer
com que conheçam a lei de Deus” (AGNOLIN, 2007, p.277). Para os sentidos da
conversão, os “excessos” impunham a disciplina, as “ausências” reclamavam a
doutrina. Um e outro eram, juntamente, fundamentais para realizar o processo de
cristianização.
Nos relatos dos jesuítas do século XVI, são frequentes as descrições aos
chamados “maus costumes” dos gentios. O padre João de Azpilcueta Navarro,
20
escrevendo da Bahia em 1550, apresenta o cuidado e as dificuldades em
administrar o Batismo:
Os Gentios [...] Pedem muitos deles o Baptismo, sobretudo em seis ou sete
aldêas onde prégo. Mas por duas causas principalmente entendo que se
lhes não deve administrar o Baptismo. Uma, é não terem Rei a quem
obedeçam, nem moradia certa, mudando-se de aldeã todos os annos, e as
vezes mais frequentimente quando succede algum delles embriagar-se e
encoterisar-se, pois em três circircunstâncias nada menos fazem do que
pegarem um tição e tocarem fogo a própria casa[...] Por isso se mudam
quando agente menos pensa, de modo que repetidas vezes nos logares em
que prégo acontece-me não encontrar aquelles de que mais confiava
(NAVARRO,1988, p.77).
Tentando converter “alma de outro tipo de alteridades que não compreendia”,
o missionário João Navarro logo achou um culpado para as dificuldades em
descaracterizar a alteridade Tupinambá afirmando:
Não sei se isto se dá por obra de seus feiticeiros, os quaes dizem que os
vou ensinando para ter menos trabalhos em fazer-lhes sofrer quando forem
feitos escravos nossos [...] Os mais velhos são tão maliciosos, em grande
parte, que todo o bem que lhes digo convertem, como a aranha, em veneno
(Navarro da Bahia em 28 de março de 1550, in: NAVARRO,1988, p.77).
E segue explicando o segundo motivo de não poder aplicar o Santo Batismo:
A outra razão, de não menos efficaz, de diferir o Baptismo é que muito
arraigado está nelles o uso de comer carne humana, de sorte que, quando
estão em artigo de morte, saem pedil-a, dizendo que outra consolação não
levam sinão esta, de vingança de seus inimigos, e quando não lha acha que
dar, dizem que si vão o mais desconsolados deste mundo
(NAVARRO,1988, p.78).
Todavia, empenhado nos sentidos da conversão, firmes nos propósitos de
modificar os “maus costumes” ameríndios e transformá-los em “bons costumes”
cristãos, Navarro é irredutível nos seus propósitos:
[...] gasto grande parte do tempo em reprehender esse vício; replicam
alguns que comem-na somente as velhas; outros dizem que seus
antepassados comeram e que elles devem comer carne humana.
(NAVARRO, 1988, p.78)
21
Por último, o missionário apresenta uma descrição altamente pejorativa e
demoníaca da alteridade cultural ritualística da vingança e antropofagia Tupinambá:
Uma vez, por estes dias, foram à guerra muitos das terras de que fallo, e
que muitos foram mortos pelos inimigos, donde, para se vingarem, outra vez
lá voltaram e mortos muitos contrários, trouxeram grande abundancia de
carne humana, e indo eu visitar uma aldêa; vi que daquella carne
cozinhavam em um grande caldeirão, e ao tempo que cheguei atiravam fóra
uma porção de braços, pés e cabeça de gente, que era causa medonha de
ver-se, e seis ou sete mulheres, que com trabalho se teria de pé, dançavam
ao redor, espeitando o fogo, que pareciam o demônio no inferno
(NAVARRO,1988, p.78)
O catequista Leonardo Nunes, em uma carta de 1550 endereçada aos irmãos
de Coimbra, reconhece na “estranha” dimensão cultural indígena a escatologia
cristã, projetando nos costumes e ritos ameríndios a figura do Demônio:
Todos andavam nus, como elles todos costumam, delles tintos de negro,
outros de vermelho, outro cheios de pennas, e não cessavam de atirar
frechadas, com grande grito, e outros tangiam nos busios, com que fazem
acorde em suas guerras que parecia o mesmo Inferno (NAVARRO,1988,
p.86).
O padre João Navarro de Porto Seguro apresenta uma descrição dos “maus
costumes” dos Negros d’aldeia a partir de uma visão cosmológica cristã da
demonologia1,
Assim chegamos a uma aldeia onde achamos os Gentios todos bêbados,
porque têm elles cada uma maneira de vinho de raízes que embebeda
muito, e quando elles estão assi bebados estão tão brutos e feras que não
perdoam a nem-uma pessoa [...] E vendo que aquella gente não tinha
discrição para vir tão asinha ao conhecimento da fé, nem estava disposto
1
“Baseada na instrumentação interpretativa do demônio, a “demonologia” foi instrumento
imprescindível para gerenciar modalidades peculiares de encontros culturais. A estrutura
interpretativa demonológica constituiu, historicamente, inevitável e perturbadora imersão no mundo
das culturas, autóctones, exóticas e indígenas. Ela permitiu constituir, na base desses encontros,
uma nova e peculiar dimensão cultural: a cultura colonial. O “demoníaco” constituía-se, portanto,
como rede que, em princípio, oferecia a possibilidade de entender tanto os “excessos” (rituais:
diferentes do culto idolátrico), quanto as “ausências” (de crenças: que, de fato, revelava a ausência
da idolatria) que caracterizava determinadas culturas. E, assim, o “demoníaco” começou,
timidamente, a instalar-se nas primeiras descrições das alteridades indígenas. A demonologia
constituiu-se, portanto, como um grau zero de religiosidade, patamar inaugural do processo
evangelizador” (AGNOLIN, 2006, p.475. Sobre o estudo da demonologia no Brasil Antigo,
remeteremos aos livros: O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009; Inferno Atlântico: demonologia e colonização
séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Ambos da historiadora da USP, Laura de
Mello e Souza.
22
para isso, partimos para outra. Contudo, póla missericordia de Deus, nos
recebeu bem e nos ouvia pela língua a doutrina Cristã e mostravam elles e
todos os mais folgar muito de ouvir, mas não ousavam de o dizer por um
feiticeiro lhe davam a morte e que se as disséssemos por sua bocca logo
morreriam. De aquelles ministro só é usar o demônio, temendo ser d’aqui
destronado, como creio que o vai adivinhando (NAVARRO,1988, p.96).
O catequista continua seu relato de uma visão de mundo respaldada no
combate de Satã que tinha em seus representantes os “feiticeiros” ministros do
demônio:
Este mal de comerem uns aos outros onda mui danada entre elles e é tanto
que os dias passados falharam a um ou dous que tinham a engordar para
2
isso se queria que o resgatassem . Elles respondeu que não o vendessem
porque cumpria a sua honra passar por tal morte como vontade capital.
Elles não se comem uns aos outros senão por vingança. Tem o Demônio
muito domínio nelles, o qual dizem que algumas vezes lhes apparecen
visualmente e que lhes dá e atormenta outras vezes asperamente
(NAVARRO,1988, p.97-98).
O sistema de vinganças Tupinambá estava na origem dos “maus costumes”,
pois como os indígenas eram povos “sem fé, nem lei, nem rei”, eram seus costumes
que deveriam ser modificados para que eles se tornassem “bons costumes” cristãos.
Depois de retratarem os indígenas como filhos ou representante do Demônio cuja
única maneira de emendar os seus costumes seria por meios da água do batismo, o
padre Antonio Pires, certificando-se de que os indígenas estão firmes no
conhecimento do catecismo e com isso possa perseverar-se em bons costumes:
Muitos dos Gentios pedem água do Bautismo; mas o padre Nóbrega há
ordenado que primeiro lhes façam os catecismos e exorcismos até que
conheçamos nelles firmeza,, e também que primeiro emendem seus maus
costumes. São taes os bautizados que perseveram, que é muito para dar
graças ao Senhor, porque, ainda que dos seus são desenvolvidos e
vituperados, não deixam de perseverar em bons costumes (NAVARRO,
1988, p.102).
Por sua vez, no início das missões, o interesse que os tupinambá
demonstravam pela fala dos missionários a respeito de suas divindades e os
2
“Resgate consistiam na troca de mercadorias por índios prisioneiros de outros índios. Nos termos do
Alvará de 1574, somente os indígenas “à corda”, isto é, já preso e amarrados para serem mortos,
poderam ser objeto de um resgate pelos moradores. Indivíduos obtidos por esse expediente tinham,
segundo a lei, seu cativeiro limitado a dez anos” (ALENCASTRO, 2012, p.119). Para um estudo
aprofundado dos princípios da legislação indigenista no Brasil Colonial, ver o artigo: Índios Livres e
Índios Escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII), de
Beatriz Perrone-Moisés, In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos índios no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
23
pedidos de batismos feito aos padres, levavam os missionários a pensarem que a
conversão seria facilmente alcançada e que os nativos, depois de convertidos,
deixariam seus antigos costumes. Antonio Pires, informando como disciplinava os
novos convertidos, confirma que
[...] este hão de ser um fundamento grande para todos os outros se
converterem. Já começam a ir pelas as aldêas com os Padres pregando a
Fé, e desenganando os seus dos maus costumes em que vivem.
(NAVARRO, 1988, p.102-103).
Eduardo Viveiros de Castro (2002), estudando acerca da conversão e
descrença dos Índios Tupinambá no século XVI: O mármore e a murta: sobre a
inconstância da alma selvagem, afirma que “nos, modernos e antropólogos,
concebemos a cultura sob um modo teológico, como um ‘sistema de crença’ a que
os indivíduos aderem, por assim dizer, religiosamente”. A religião, como sistema
cultural proposta pelo antropólogo Clifford Geertz3, pressupõe uma ideia da cultura
como um sistema religioso. Segundo Castro (2002, p.192),
Sabemos por que os Jesuítas escolheram os costumes como inimigo
principal: bárbaro de terceira classe, os Tupinambá não tinham
propriamente uma religião, apenas superstição. Mas os modernos não
aceitamos tal distinção etnocêntrica, e diríamos: os missionários não viram
que os “maus costumes” dos Tupinambá eram sua verdadeira religião, e
que sua inconstância era o resultado da adesão profunda a um conjunto de
crenças de pleno direito religioso. (CASTRO, 2002, p.192).
Os Jesuítas separaram equivocadamente, segundo o antropólogo, o
sagrado do profano, não percebendo a cultura como um sistema religioso:
Nós, em troca, sabemos que o costume é não só rei e lei, mas deuses
mesmos. Pensando bem, talvez os Jesuítas soubessem disso, no fundo, ou
não teriam logo detectado nos costumes o grande impedimento para a
conversão (CASTRO, 2002, p.192).
Contudo, passados os primeiros anos das missões, os padres e irmãos
abandonaram o otimismo inicial ao constatarem que os Tupinambá, depois de
batizados, voltavam a seus antigos costumes.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2012. Ver especificamente
os capítulos 4, A religião como sistema cultural; e 5, “Ethos, visão de mundo e a análise de símbolos
sagrados.
3
24
4 OS SENTIDOS DA CONVERSÃO E AS REDEFINIÇÕES IDENTITÁRIAS
TUPINAMBÁ
Nos relatos do século XVI, são freqüentes as descrições e as referências às
práticas de vingança e à antropofagia Tupinambá que foram unanimemente
condenadas e, para os jesuítas, apontadas como principal empecilho para a
conversão. O sistema de vinganças Tupinambá estava na origem dos “maus
costumes”, pois como os indígenas eram povos “sem fé, nem lei, nem rei”, eram
seus costumes que deveriam ser modificados para que eles se tornassem “bons
costumes” cristãos (CASTRO, 2002).
Por sua vez, no início das missões, o interesse que os Tupinambá
demonstravam pela fala dos missionários a respeito de suas divindades e os
pedidos de batismos feito aos padres levaram os missionários a pensarem que a
conversão seria facilmente alcançada e que os nativos, depois de convertidos,
deixariam seus antigos costumes abomináveis. Contudo, passados os primeiros
anos das missões, os padres abandonaram o otimismo inicial ao constatar que os
Tupinambá, depois de batizados, voltavam a seus antigos costumes de guerrear e
de comer carne humana.
Firmes em seus propósitos em converter os Tupinambá, “cujo sentido evoca
uma completa mudança de vida, implica ao mesmo tempo transformar os costumes
dos índios e ensinar-lhes os elementos essenciais do dogma cristão” (CASTELNAUL`ESTOILE, 2006, p. 20), os inacianos foram irredutíveis. Nessa direção, os sentidos
da conversão dos inacianos são identificar os “maus costumes” indígenas, que
consistiam em excessos de costumes e ausências de crenças, objetivando modificar
o comportamento cultural dos tupinambá e impor outros modelos civilizatórios e
cristãos.
Todavia, a documentação histórica permite contestar a eficácia do projeto
catequético desenvolvido pelos jesuítas e entender os aldeamentos como um
ambiente possibilitador do “hibridismo cultural” (VAINFAS, 2010). Para entender os
aldeamentos como espaços possibilitadores de novas formações culturais e sociais,
far-se-á uma breve análise do relato que o padre Fernão Cardim fez em 1583 em
sua Missão Jesuíta no Brasil.
25
Entre os anos de 1583 e 1590, o padre Fernão Cardim, secretário do padre
visitador Cristóvão de Gouvêa, escreveu uma Narrativa Epistolar de uma viagem e
missão jesuítica. Escrito em um contexto de grandes dificuldades da conversão, a
carta de Cardim objetivava exaltar os trabalhos da evangelização realizados nos
aldeamentos jesuíticos no Brasil a fim de insuflar o desejo dos inacianos a vir ganhar
novas almas para Deus nas Terras Brasílicas. Dessa forma, a missão confiada ao
visitador pelo geral da Companhia não é outra senão “a consolação dos nossos que
trabalham nessa vinha tão estéril, laboriosa e perigosa” (CASTELNAU-L`ESTOILE,
2006, p.22). Portanto, se não se atentar para o contexto histórico da escrita do texto
de Cardim, pode-se acreditar que a conversão dos Tupinambá aldeados já estava
bem desenvolvida.
O secretário do padre visitador descreve a chegada de seu superior em
Salvador na Bahia (9 de maio de 1983) nos seguintes termos:
O padre visitador antes da missa revestido em capa d’asperges de
damasco branco com diacono e subdiácono revestidos do mesmo
damasco, batisou alguns trinta adultos.O padre na mesma missa
casou alguns em lei da graça[...] deu a comunhão a cento e oitenta
índios e índias, dos quaes vinte e quatro, por ser a primeira vez,
comungaram à primeira mesa, com capella de flores na cabeça; depois
da comunhão hles deitou o padre ao pescoço algumas verônicas e
naminas com Agnus Dei de várias sedas, com seus cordões e fitas, de que
todos ficaram mui consolados. Um destes era um grande principal por
nome Mem de Sá que havia vinte annos era christão; foi tanta a
consolação, que tive de ter commungado, que não cabia de alegria [...].
Tive grande consolação em confessar muitos índios e índias, por
interprete (CARDIM, 1980, p. 150-151, Grifos nossos)
As primeiras práticas dos sacramentos da religião cristã ministradas no
interior dos aldeamentos descritos por Cardim podiam ser traduzidas erroneamente
pelos Tupinambá. O batismo cristão, regra necessária para o neófito entrar na
comunidade cristã, podia ser comparado com o ato de renomação praticado pelos
Tupinambá após a antropofagia ritual. Com o sacrifício da primeira vítima, os
Tupinambá poderiam “ganhar nomes na cabeça dos inimigos” e integrar-se ao grupo
do Avá. Segundo Fernandes (2006), esse é o período mais significativo da vida de
um homem Tupinambá, porque neste instante os índios tornavam-se guerreiros,
obtinham a ascensão social e poderiam casar.
26
O sacramento da eucaristia citado por Cardim era responsável por
representar a culminância da conversão e também poderia representar elementos
da cultura Tupinambá, pois a expressão utilizada pelos inacianos para traduzir a
comunhão dava a entender que a
[...] tradução do sacramento da comunhão, não se pode estabelecer a
possibilidade de conotar uma ação sacramental que subtraísse a ação
eucarística à sua (por outro lado evidente na própria traditio católica)
conotação de uma ‘teofagia’ (AGNOLIN, 2007, p. 325).
Podemos confirmar esse paralelismo no catecismo elaborado por José de
Anchieta, quando “o Mestre pergunta: Por que Cristo teria instruído o sacramento da
eucaristia? responde: ‘Seja meu corpo comida da alma deles’”. (AGNOLIN, 2007).
Manifestação cultural significativa na sociedade Tupinambá, a música levaria
os missionários a acreditarem que as festas religiosas cristãs pudessem substituir os
“maus costumes indígenas”. Todavia, relatos da narrativa de Cardim demonstram
que, ao contrário da simples substituição dos costumes Tupinambá nos aldeamentos
jesuítas, houve a permanência de traços culturais de ambas as partes e a formação
de elementos culturais híbridos, como se pode notar no texto seguinte:
Partimos para a aldeia do Espírito Santo sete léguas da Bahia.
Chegamos à aldeia à tarde, antes dela um bom quarto de léguas,
começarão as festas que os índios tinham aparelhados, as quaes fizerão
em uma rua de frescas e altíssimas arvoredos, das quaes saião uns
cantando e tangendo a seu modo, outros em ciladas saião em
grande gritaria, outros que nos atrocinão e fazião estremecer; os
curumins e meninos com muitos macho de frechas levantadas
fazião seu motim de guerra, e davão seu grito e pintados de
vermelho, digo de várias cores, musinhos vinhão com as mãos
levantadas receber a benção do padre dizendo em portuguez:
louvado seja Jesus Cristo. Estas festas acabadas Os índios
Murubixaba e principaes dão o Creiupe ao Padre que quer dizer
vieste? E beijando-lhe a mão recebião a bencos mulheres nuas
(coisa para nós mui nova) com as mãos levantadas ao céo também
davão seu Creiupe, dizendo em portuguez louvado seja Jesus
Cristo, assim de toda a aldeia fomos levados em procisão à igreja,
com danças e bão música de flauta, com Fé-Deum louvamos: feito a
oração lhes mandou o padre fazer uma fala na língua de que ficarão
muito consolados e satisfeitos aquella noite os índios principaes
grandes línguas pregarão da vinda do padre a seu modo, que é da
maneira seguinte: Começão a pregar na rede por espaço de meia
hora, depois se levantão e correm toda a aldeia pé ante pé mui
devagar, e o pregador também é pausado, lfeumatico e vagoroso,
repetem muitas vezes as palavras, por gravidade, cantão nestas
pregações todos os trabalhos, tempestades, perigos e morte que o
padre padeceria, vindo de tão longe para visitar e consolar e
justamente os incitão a louvar a deus pela mercê recebida e que
27
tragão seus presentes ao padre, em agradecimento (CARDIM, 15831590, p. 73. Grifos nossos).
Esse relato leva-nos a reconhecer diversos elementos culturais Tupinambá
em mestiçagem com elementos cristãos, como: índios cantando e pregando a seu
modo, encenando a guerra, instrumentos, pinturas, cânticos, nudez e a danças
permanecem nos aldeamentos com elementos culturais cristãos. Apesar das
transformações ocorridas nas cerimônias guiadas pelos inacianos, isso possibilitou
aos Tupinambá traduzir a religião cristã a partir de seus elementos culturais e
atualizar seus “maus costumes” nos aldeamentos jesuítas. Portanto, a partir do que
foi estudado, podemos reconhecer que o encontro cultural de alteridades tão
distintas nos possibilitou identificar os aldeamentos inacianos como espaços de
mudanças, adaptações, negociações e constantes redefinições de identidades,
possibilitando o surgimento de um novo padrão cultural híbrido.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A evangelização dos indígenas teve como ponto de partida a instrução, a
preparação para a conversão. E nessa preparação, os inacianos tinham que se
misturar ao mundo social dos Tupinambá para transformá-los, identificar seus “maus
costumes, corrigi-los e trazer para os “bons costumes cristãos”. Isso fazia da missão
jesuíta um projeto civilizador e evangelizador. Aculturar e converter eram o propósito
da catequese que só aplicava o sacramento da salvação (batismo) àquele que
abandonasse o modo de vida antigo e passasse – consequentemente – a adotar a
conduta dos princípios dogmáticos do catolicismo.
Nesse processo da conversão, “equívocos” e “mal-entendidos” (AGNOLIN,
2007) faziam parte da relação entre jesuítas e Tupinambá. A tradução de dois
mundos divergentes fazia surgir um novo universo simbólico de elementos culturais
diferenciados que, segundo Bosi (1996, p. 65), possibilitava o surgimento de nova
representação do sagrado. O que daí resultava, portanto, já não era nem teologia
cristã nem a crença tupi, mas uma terceira esfera simbólica, uma espécie de
mitologia paralela que só a situação colonial tornara possível.
Buscou-se demonstrar com esse estudo que, no interior dos aldeamentos
jesuítas, as tradições culturais dos Tupinambá estavam sendo construídas e
ressignificadas costumeiramente. Nesse sentido, cabe ainda destacar que não foram
apenas os indígenas que mudaram, mas também os próprios jesuítas ao
remodelarem os dogmas e os métodos da catequese aos costumes nativos. Nesse
sentido, para converter os ameríndios eles mudariam a essência de sua própria
religião. Assim, a pesquisa referente à relação entre os jesuítas e os Tupinambá nos
aldeamentos nos possibilita avaliar que os sentidos da conversão não alcançaram
os objetivos desejados pelos inacianos durante quatro décadas de evangelização.
Portanto, compreender o encontro entre uma religião prosélita como a cristã e
outra com suas plasticidades como a religião dos Tupinambá, responsável por
possibilitar o surgimento de elementos novos e híbridos culturalmente, nos leva a
repensar e negar a eficácia dos sentidos da conversão e considerar os aldeamentos
de Manoel da Nóbrega a Fernão Cardim (1549-1590) como um ambiente de
constante tradução identitária, marcado por permanências de elementos culturais de
ambas as partes.
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