a perspectiva do estranho em vaca de nariz sutil, de
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A PERSPECTIVA DO ESTRANHO EM VACA DE NARIZ SUTIL, DE CAMPOS DE CARVALHO Diego Lock Farina* Orientação: Rita Lenira de Freitas Bittencourt RESUMO O artigo em questão propõe-se a analisar a novela "Vaca de nariz sutil" (1961), de Campos de Carvalho, a partir da noção de estranho desenvolvida inicialmente por Freud em 1919, paradigma fundamental da modernidade, e revisitada por Zygmunt Bauman em "O mal-estar da pós-modernidade" (1997), referente à contemporaneidade. Através da trajetória dispersa do protagonista, que narra-se em primeiríssima pessoa como define Juva Batella (2005) -, prevê-se reflexões e atravessamentos entre as teorias acima citadas, acerca do sujeito moderno e contemporâneo, aplicadas sobre a fragmentação do personagem central, seu desajuste com a sociedade e sensação da ausência de saídas e sentidos à existência. Tendo a novela como objeto de mediação entre Freud e Bauman, pretende-se promover um questionamento sobre a impossibilidade de adaptação e comunicação com o mundo concreto, considerando o absurdo e a solidão como deslocamentos possíveis à condição do indivíduo/personagem à margem, sejam estes deslocamentos de livre escolha ou determinados por estruturas excludentes. A situação do narrador, ex-combatente retornado à sociedade, e seus desenlaces perversos, como tendência pedofílica e voyeurismo, assim como sua sensação de morte em vida, são características temáticas da obra literária que a aproximam da noção de estranho esmiuçada pelas teorias postas em foco. PALAVRAS-CHAVE: Fragmentação, Inadaptabilidade, Estranho. RESUMEN El presente artículo analiza el libro “Vaca de nariz sutil” de Campos de Carvalho, a partir de la noción del extraño desarrollada por Freud, paradigma fundamental de la modernidad, explotada también por Bauman en “O mal-estar da pós-modernidade”, refiriéndose a la contemporaneidad. A través de la trayectoria del protagonista, narrada desde una “primerísima persona” – como lo definió Batella -, encuéntranse reflexiones y cruces entre las teorías citadas, sobre el sujeto moderno y contemporáneo, aplicadas en la fragmentación del personaje central, su disparidad con la sociedad y la sensación de ausencia de salidas y sentidos para la existencia. Utilizando el texto literario como objeto de mediación entre Freud y Bauman, se pretende promover un cuestionamiento acerca de la imposibilidad de adaptación y comunicación con el mundo, considerando el absurdo y la soledad como desplazamientos posibles a la condición del individuo/personaje que está en la orilla, sean esos desplazamientos de libre albedrío o determinados por estructuras excluyentes. La situación del narrador, excombatiente de guerra, y sus desenlaces perversos, con tendencias paidófilas y voyeristas, bien como su sensación de muerte en vida, son características temáticas de la obra literaria que la acercan a la noción de extraño desmenuzada por las teorías citadas. PALABRAS-CLAVES: Fragmentación, Inadaptabilidad, Extraño. *Licenciando em Letras Português/Francês pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Email: [email protected] La diferencia, además, entre un novelista y un loco es que el novelista puede ir hasta la locura y volver. Los locos no vuelven, ni son capaces de escribir una novela de locos. Una novela es un cosmos, un orden. Y el demente vive en el desorden total. (Ernesto Sabato – De un reportaje de 1963) 1 Das Unheimliche, consciência moderna: algumas considerações Em tese, parafraseando Freud, o ESTRANHO (unheimliche, em alemão, o oposto de doméstico) é aquela categoria do assustador que remete-nos ao que é conhecido de velho, portanto, no que cerne ao que há tempos soa-nos familiar, mas que por algum motivo segue inquietante. É desta prerrogativa introdutória que desenvolve-se Das Unheimliche, estudo de extrema relevância ao pensamento ocidental moderno, publicado pelo autor germânico em 1919, trabalho motivado enquanto o psicanalista sente-se impelido às pesquisas sobre estética, centrando-se nos efeitos obtidos através da literatura fantástica de E.T.A Hoffmann. Conveniente analogia, sugestivamente plástica, aproxima-nos do entendimento do termo que desvenda o conceito em foco: Com frequência os neuróticos do sexo masculino declaram que sentem haver algo estranho no órgão genital feminino. Esse lugar unheimliche, no entanto, é a entrada para o antigo Heim (lar) de todos os seres humanos, para o lugar onde cada um de nós viveu certa vez, no princípio. Há um gracejo que diz ‘O amor é a saudade de casa’; e sempre que um homem sonha com um lugar ou um país e diz para si mesmo, enquanto ainda está sonhando: ‘este lugar é-me familiar, estive aqui antes’, podemos interpretar o lugar como sendo os genitais da sua mãe ou o seu corpo. Neste caso, também, o unheimliche é o que uma vez foi heimische, familiar; o prefixo ‘un’ (in) é o sinal da repressão1. (FREUD, 1976, p.305). O fenômeno do “duplo”, referente à constituição identitária através da alteridade, marca-se quando o sujeito identifica-se ou depara-se com outra pessoa de tal forma que fica em dúvida sobre quem, afinal, é o seu EU; ou substitui este seu próprio EU, temporariamente, pelo paradigma diferente experimentado, num constante intercâmbio de características e desvios que, por sua vez, criarão e recriarão o ego. Acredita-se, no estudo da psicanálise estendido às circunstâncias do sentir e da expressão artística, que a qualidade de estranheza, portanto, advém de um estado mental 1 Ver o artigo de Freud sobre “A Negativa” (1925) para maior aprofundamento sobre o assunto. bastante primitivo: estado no qual o duplo teria tido um aspecto mais amistoso do que tem no presente, devido à ausência de vínculos rígidos de padronização que buscarão na sequência histórica, conforme necessárias conjunturas de estruturação do convívio social como bem sabemos -, frear instintos em nome da “civilidade”. Crê Freud, que em tempos anteriores, o ego não se distinguia ainda nitidamente do mundo externo e de outras pessoas. De maneira inconsciente, visto isso, a cada vez que nos depararmos perante qualquer estranheza, de modo mais abrangente, deverá ocorrer uma regressão imaginária a este estado primeiro. O duplo, ou mesmo a presença estranha necessária à constituição em questão, entretanto, converte-se a objeto de aversão no instante em que ameaça o equilíbrio e segurança ontológica, cujo caráter civilizatório, criador de modelos de normalidade, isto é, protótipos ‘‘aceitáveis’’, deu ao sujeito à impressão de pertencimento e dignidade. Reconhecendo, por meio dos instintos ora contidos, ora aflorados, a compulsão à repetição prevalecente sobre o princípio do prazer, o estranho passa a ser o inimigo, o rejeitável, o nosso “outro” desconcertante que deverá ser reprimido, por questões, inclusive de reconhecimento das próprias condições de indivíduo. E já é marco freudiano conceber que todo afeto reprimido tornar-se-á ansiedade. Sobre a figura do duplo, sua projeção mundana e produto relacional efetivo, traz o texto: Quando tudo está dito e feito, a qualidade de estranheza só pode advir do fato de o ‘duplo’ ser uma criação que data de um estádio mental muito primitivo, há muito superado – incidentalmente, um estádio em que o ‘duplo’ tinha um aspecto mais amistoso. O ‘duplo’ converteu-se num objeto de terror, tal como, após o colapso da religião, os deuses se transformam em demônios. (FREUD, 1976, p.295) O estranho, assim tratado, em nada é alheio. E a repressão é a condição necessária de um sentimento primitivo retornar em forma de algo distinto, confirmará Freud acerca de suas experiências a respeito da literatura de Hoffmann, por exemplo, servir como dispositivo que acione tais regressões por meio do contato do leitor com objetos e ações momentaneamente incomuns. O medo da castração e a vontade de superar antigas crenças serão seguintes meios a evitar qualquer estranhamento. Quando algo em vida parece confirmar o já rejeitado, sentimos então a sensação do estranho. E o estranho, por fim, permite testar as divisões entre realidade e sonho; fantástico e verossímil. Sobre o teste de realidade, o autor complementa de maneira esclarecedora, quase como síntese: Tomemos o estranho ligado à onipotência de pensamentos, à pronta realização de desejos, a maléficos poderes secretos e ao retorno dos mortos. A condição sobre a qual se origina, aqui, a sensação de estranheza, é inequívoca. Nós – ou os nossos primitivos antepassados – acreditamos um dia que essas possibilidades eram realidades, e estávamos convictos de que realmente aconteciam. Hoje em dia não mais acreditamos nelas, superamos esses modos de pensamento; mas não nos sentimos muito seguros de nossas novas crenças, e as antigas ainda existem dentro de nós, prontas para se apoderarem de qualquer confirmação. Tão logo acontece realmente em nossas vidas algo que parece confirmar as velhas e rejeitadas crenças, sentimos a sensação do estranho; é como se estivéssemos raciocinando mais ou menos assim: ‘Então, afinal de contas, é verdade que se pode matar uma pessoa com o mero desejo da sua morte!’. (FREUD, 1976, p.308) 2 Bauman e a revisitação pós-moderna Zigmunt Bauman: sociólogo e teórico atual responsável por uma das leituras mais significativas do período pós-moderno. Revisita o estudo de Freud, em “A criação e Anulação dos Estranhos” (1997), no intuito de adaptá-lo ao contexto contemporâneo, através de densa reflexão sobre o resultado de seu desenlace moderno. Seu recorte é pensar especificamente o sujeito estranho ambivalente, as pessoas desencaixadas no mapa cognitivo, moral e estético, num mundo de mecanismos opressores e alienantes. O ‘‘estranho’’, sobretudo, agora se trata do “confuso” que polui a alegria com a angústia no mesmo tempo que faz atraente o fruto proibido que leva consigo. Este acaba por introduzir, no mítico indivíduo normal, a incerteza, que por sua vez dá origem ao malestar do sentir-se perdido em meio ao nada que somente há. O mundo da ordem empurrou o estranho ao desajuste, à incomunicabilidade pela defesa através da exclusão. Mas a preponderância desses exóticos, por estarem sempre às proximidades e lembrarem a todos o que poderiam ser caso abram-se às contrariedades, rompeu divisões nítidas e arruinou balizas de dominação muitas vezes invisíveis. A respeito do recorrente mundo da ordem e sua fragmentação gradual, Bauman explica: Como demonstrou Michel Foucault, o estado moderno clássico, firmemente encarregado dos esforços diários de estabelecimento da ordem, coletivizou e “demografizou” suas incumbências. O estabelecimento da ordem era, acima de tudo, a tarefa de generalizar, classificar, definir e separar categorias. Dessa perspectiva, a contra-ordem poderia surgir apenas como outra classificação oposta e como inversão da hierarquia das categorias. Aqueles empenhados em realizar a inversão poderiam ser encarados somente como aspirantes a classificadores alternativos e legisladores de categorias. O “demônio interior”, assim exorcizado e reencarnado no corpo da conspiração revolucionária, era a tendência autodestrutiva do próprio esforço legislativo do estado: o descontentamento, a dissensão e a heresia que este esforço não podia deixar de gerar, numa intensidade sempre crescente, os lançados às extremidades receptoras das classificações atuais. (BAUMAN, 2008, p.53). Os humanos que transgridem fronteiras convertem-se em estranhos, e estes, tanto como os outros já anteriormente inclusos, pertencem ao processo incessante e jamais conclusivo de construção da identidade (BAUMAN, 2008, p. 37). Para demarcar o estranho pós-moderno, Bauman esmiúça com olhar recente o estranho moderno de ontem, e eis que sua perspectiva irá passar a interessar adiante neste determinado artigo. A decorrência da ação praticada pelo estranho que Freud observou, contribuiu, ao longo desta curta história, como fundamento à diluição da diferença entre o normal e seu oposto, o aguardado e o inesperado, o domesticado e o selvagem. Antes, os estranhos eram estrategicamente selecionados pelo caráter excludente das políticas modernas, tanto liberais quanto fascistas, mas o que ocorreu foi que, graças a suas instabilidades necessárias à adequação nômade contínua, invadiram o império do doméstico, dispersando assim aquelas próprias identidades ditas inabaláveis. O que faz certa pessoa estranha, e por isso, incompreensível e ameaçadora, porém simultaneamente sedutora, pensará Bauman, é justo sua tendência a obscurecer as linhas de fronteira antes claramente vistas devido ao interesse do Estado, pretensiosamente, estabilizador. Sua sedução e caráter atrativo consta-se justamente no fato da sua presença dar-se como interrupção do tédio advindo do universo monótono e homogêneo cuja pregação moderna de controle tentou implantar no imaginário coletivo. A viscosidade2, de encontro à água pura, implica o medo de que a liberdade, tão ficcionalmente conquistada, esteja em risco – e aqui, entendamos o efeito da liberdade como a maior relação de poder referente à existência, maior palco de luta já vislumbrado. E tal complexo de repulsa, foi adquirido como reflexo desta carência de poder da parte dos estranhos, que cristalizou-se na sua força de persuasão e envolvimento que na qual, como 2 Tal analogia referente à viscosidade em comparação à água é retirada por Bauman de Le Visqueux, análise de Jean-Paul Sartre pertencente à obra O Ser e o Nada. Segue trecho de Sartre, utilizado na fortuita metáfora de Bauman: “Se mergulho na água, se afundo nela, se me deixo submerso nela, não experimento nenhum mal-estar, pois não tenho qualquer medo de seja lá como eu possa nela dissolver-me; continuo um sólido em sua liquidez. Se me deixo submergir no viscoso, sinto que vou perder-me nele... Tocar o viscoso é arriscar-se a ser dissolvido na viscosidade”. (BAUMAN, 2008, p. 39). vimos, embaraçou os pilares modernos e segue a desmistificar toda e qualquer tradição linear persistente que permeie o contexto de hoje. Visto isso, relativo à mescla de direcionamentos que desenvolveu-se no prolongamento da época moderna, seu estopim e dissolução, cabe última nota a respeito do cenário deslizante que se mostra na sequência das tensões entre continuidade e desagregação, terreno e hábito estável e nomadismo; diz Bauman (2008, p. 32): Os projetos de vida individuais não encontram nenhum terreno estável em que acomodem uma âncora, e os esforços de constituição de identidade individual não podem retificar as consequências do “desencaixe”, deter o eu flutuante e à deriva. (...) O mundo pós-moderno está-se preparando para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível. 3 Desajuste e inadaptabilidade: estranho perante vaca de nariz sutil Dito isso, “Vaca de Nariz Sutil” (1961), novela de Campos de Carvalho, é aqui focalizada como objeto literário de medição entre as duas fundamentações respectivas, sem reduzi-las meramente a limitações psicanalíticas e/ou sociológicas, por virem ambas destas áreas, e mesmo sem engessá-las ao tempo em que foram escritas, tampouco, claro, ambicionando determinar a novela de Campos como mais moderna ou pós-moderna. O protagonista de nome indefinido, ex-combatente de guerra, igualmente não específica, tentando readaptar-se às lógicas sociais, é narrador de si mesmo em primeiríssima pessoa do singular, segundo o crítico Juva Batella (2004, p.119), apesar da evidente posição de não querer deixar satisfação sobre nada. Tem ao seu horizonte o intuito único de justificar sua situação peculiar de sujeito fragmentado, decadente e solitário, que não concebe nenhuma forma de saída à existência a não ser aderir à sensação de estar morto em vida: sujeito à margem que trata de seguir sua desorientação conforme lhe couber, pondo em dúvida a estrutura do esperado, condizente ao modelo que Bauman constrói do sujeito estranho: A guerra o ocupava e o mantinha alienado de si. Findo os combates, o narrador se vê diluído em inúmeros eus que entre si não dialogam e não conseguem superar as distâncias que os separam um do outro (...) a presença esmagadora da distância é a ausência esmagadora de toda comunicação (...) o problema intrínseco a toda existência humana, sua falta de sentido, o absurdo de sua gratuidade, circula em meio a um incomensurável vazio, que acaba por ser tomado como causa e consequência do mal-estar existencial. (BATELLA, 2004, p. 131) Em meio ao desajuste com a sociedade e seu retorno traumático, consciência da ausência de sentido e do absurdo de toda desvalia das relações humanas, dentre farrapos de memória e descontinuidade nos relatos, destaca-se sua impossibilidade de adaptar-se à conjuntura que se mostra na realidade que agora desconhece. Na chegada, recebe uma medalha de ouro artificial e simbólica, acompanhada de um diploma de esquizofrênico do médico da família. Segue a vida quase sem segui-la; torna-se estranho e é tido como pitoresco obscuro – o estranho típico que perdeu o sentido da comunicação e é incapaz de superar a distância de que tem dos outros, vistos, na maioria dos casos, como sujeitos cômodos ao maquinário social. Comenta ainda Batella (2004, 123): “a indefinição, o ceticismo, a instabilidade da consciência contemporânea esboçados num inflamável ‘talvez’; a inconstância do narrador em toda a viagem em que se lançará em sua narrativa de-si-e-para-si.” A identificação do texto de Campos com Viagem ao fim da noite, de Céline é sutilmente visível e proveitosa, sendo, à sua maneira, também zombeteiro, antipatriótico, cético e moralmente obsceno, como o escritor francês – que, inclusive, falece no mesmo ano de publicação da novela de Campos -, e tendo como protagonistas, ambos os textos, ex-soldados que narram suas vivências cruéis e desprezíveis de qualquer mérito ou honra, centrando o corpo que resta como metáfora de uma guerra tanto exterior quanto interna, cadáver adiado e calejado de uma guerra que estende-se, ou seja, como dirá Batella (2004, p.126) a respeito do sentido do relato trazido por Campos: “a história que nos contará será a história de sua solidão e seu despedaçamento”. No fluxo das recordações do protagonista, percebe-se a tonalidade descrente e amarga de como o pensamento do homem na guerra choca-se com a lembrança do mesmo agora homem-despedaçado, concretamente fora dela; a falta de significação entre os atos; a nulidade das razões e as sensações ligeiras devem ser reparadas: O silêncio era o pior, quando nos mandavam fazer silêncio: um assobio, mesmo em surdina, era crime de lesa-pátria, não se podia nem peidar direito, espirrar então só em pensamento: ou se é um homem ou se é uma estátua. Não se era um homem mas um soldado, pena que os senhores não possam ver isso mesmo diante de um espelho, de corpo inteiro, de frente e por trás, com veem o inimigo e como são vistos por ele; aqui estamos a serviço de uma causa, não somos causa de coisíssima nenhuma, ou pensam que os chamamos pelo número para poder treinar a matemática, ou que somos tão imbecis que aceitaríamos comandar tantos sendo assim tão poucos, dez contra mil? Está certo, mas nem por isso o silêncio deixa de ser insuportável, preparam-nos para tudo menos para o silêncio, não este, um tiro de canhão não iria fazer mal a ninguém, muito pelo contrário. Tudo inútil. (CARVALHO, 2008, p.51) Ao invés da interação, opta por observador através das fechaduras da pensão em que habita o cotidiano dos outros. Neste caso, a ausência do nome do protagonista provocará o efeito ambivalente de que não ter nome específico, ou mesmo ter e não lembrá-lo, é também ter todos os nomes do mundo. O corpo estilhaçado vive por meio do voyeurismo que desenvolve: sua matéria aos pedaços distribui-se pelos lugares que está, por onde passa e pelos que enxerga através das fechaduras da pensão que habita - o corpo levará consigo a imobilidade das trincheiras, o distanciamento das vidas do outro lado e o prazer só permitido pelas vias indiretas, como indicam os exemplos a seguir: (...) decidi copular por via indireta, através das fechaduras: nem a imaginação nem a falta da imaginação, os outros fazendo força e eu simplesmente no meu posto de sentinela, o eterno triângulo numa versão pósguerra. Às vezes, o marido ausente, eu fazia as vezes dele, tal como o cachorro da inglesa fiel, ela e não o cão (...) copulei com o arquivista e no arquivista (...) já o casal de bailarinos se entendia às maravilhas, os três, aliás, se não estávamos em lua-de-mel era como se cada um estivesse (...) a filha-noiva da dona da pensão masturbava-se com todos os dedos (...) e havia o caso do rapazinho de seus treze anos, a escova de dente enfiada até o cabo, a banheira cheia d’água quente, as pernas para cima: até hoje choro tê-lo deixado escapar. (ibid, p.30 e 31) Sua sina de sujeito isolado, imoral e esquizofrênico, é a de continuar a sentir-se um estranho para o mundo – o estranho que causa aversão a todos, embora atice a curiosidade dos mesmos que lhe repudiam, tornando-lhe simultaneamente medonho e sedutor pela diferença que irradia. Dentre inúmeras referências que aqui poderiam ser trazidas, são centralizados seus desenlaces perversos, ainda focando a sugestão que há no texto de que o protagonista envolve-se num caso com uma menor, Valquíria. Tanto a pedofilia como a masturbação, a dissintonia quase completa e reclusão, levam-no aos maus olhares. “É tornado criminoso”, informa o próprio, enquanto nada entende. Valquíria traz-lhe o olhar da infância reprimido - indício que aponta Freud como dispositivo de estranheza -, e na infância remota crê estar a justificativa para desviar-se do mundo repulsivo dos adultos: “as crianças são adoráveis, veja só esta: que coxas! É um perigo ter uma criança dessas dentro de casa, dentro do quarto (...) Valquíria também poderia ser minha filha, mas não é.” (ibid, p.45) E ainda sobre o desenlace pedofílico, quando copulam sobre uma sepultura do cemitério onde o pai de Valquíria trabalha: O seio esquerdo de Valquíria na minha mão: um ovo. (...) os cabelos agora cobrindo o morto e o olho morto, já não se ouve senão o coração de Valquíria pulsando no cemitério, não sei se vai gritar ou se é esse todo o seu êxtase, a boca entreaberta no silêncio, a mão na minha mão, o seio de repente túrgido (...) como uma fúria eu sorvo estar alma que assim se entrega e se recusa, mordo estes lábios subitamente intumescidos, a língua fremente e esquiva: os dentes de criança. Reclino-a sobre o túmulo, ela se deixa deitar, seu corpo está mais quente do que o mármore, deito-me sobre Valquíria e sobre o morto, o dia faz-se noite, o mundo já não existe, nenhum mundo. (ibid, p. 86 e 88) 4 O cruzamento das teses e o sentir-se vaca Dirá Camus que o homem absurdo não poderá fazer outra coisa senão esgotar tudo e se esgotar, e sobre tal nulidade de sentidos e condição afirma: Matar-se, em certo sentido, e como no melodrama, é confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos (...) trata-se apenas de confessar que isso “não vale a pena”. (...) Num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, o homem se sente um estrangeiro. É um exílio sem solução, porque está privado das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo. (CAMUS, 2010, p.21) Os momentos finais da novela de Campos são marcados pela sugestão de fuga do protagonista. Uma fuga ou viagem, real ou metafísica, quase alucinógena, pontilhada e trazida em flashes, sobre um trem de minúsculas descobertas e libertações de toda circunstância que antes o emparedava. O protagonista, tão estranho a todos e a si mesmo, não-doméstico, típico unheimliche, o que confunde, seduz e, todavia, ameaça, ou o que for, demarca-se mais uma vez através de seu modo peculiar de estar-no-mundo: sempre estando em desacordo, em disritmia. A ambientação nonsense e absurda desse esfacelamento via viagem translúcida, dáse no instante que o estranho desfaz-se dos óculos, da bagagem, como se, inclusive, o trem se desprendesse dos trilhos e transcendesse junto a ele. Acerca disso, o relato final é composto pelo desfecho incrível que estende sua situação até então individual a situação dos homens de uma maneira geral, constatando a trajetória flutuante do sujeito moderno às portas de uma nova época, próximo ao que dirá Bauman, numa analogia da impossibilidade de retorno ao útero materno, verdadeiro lar, Heim que conta-nos Freud: (...) não sou eu o solitário, é o homem, fecharam-me o umbigo para sempre, o ar que respiro já não serve para ninguém, nem sequer tenho um útero para despistar. É triste mas é a verdade: a única. Aproveito para entrar no meu desrumo: deixo-vos os trilhos, vou ver se ainda me alcanço: não disponho de vossa eternidade para viver, muito menos para pensar. É agora ou nunca. (CARVALHO, 2008, p. 109) Vaca de nariz sutil é também o título de um quadro de Jean Dubuffet3, artista plástico francês, figura central da arte bruta. Ao longo deste percurso de trem, de repente, o protagonista depara-se, pela janela, com uma vaca. Confessa que desde os tempos da guerra é perseguido por aquela imagem de uma vaca pastando calma a mirá-lo. É o momento que lembra já ter visto o quadro em questão numa revista, “onde todo o espaço é ocupado por uma vaca em todo igual às outras vacas, mas com um focinho e um olhar que não deixavam dúvida sobre a sua segunda sabedoria”. (CARVALHO, 2008, p.108). A vaca o encara e neste atravessamento desencontrado percebe que o olhar mesmo daquela vaca só o havia encontrado em Valquíria. A vaca, entretanto, é uma aberração, como mostra o quadro, pertence à condição de exceção entre seus iguais e, portanto, sua imagem é próxima a do protagonista, também marginal, isolado, avesso incompreendido, contestador, e dirá Batella (2004, p.159): “branco entre negros e negro entre brancos”. O mesmo crítico ainda conclui: Vaca de nariz sutil é inteiramente dedicado a combater a violência da guerra através do exercício obstinado da memória – a única companhia possível nesta viagem cujo fim é a noite (...) o nariz da vaca como sina da diferença do inevitável sofrimento de saber-se sempre um intruso em meio a um mundo incompreensível. (ibid, p.161) É Importante salientar, no entanto, que os pontos de ligação com as teorias de Freud e Bauman aqui trabalhas são, inevitavelmente, bastante variáveis. O artigo em questão previu esclarecer e exemplificar com aprofundamento tais diálogos e confluências que apontam a trajetória dispersa do protagonista como que atravessada pela ótica do paradigma do sujeito estranho: sua projeção e seus revezes no momento propício seguinte ao período moderno que aqui se convencionou tratar como pós-moderno, por predileção teórica. 3 Em relação ao diálogo entre Campos e Dubuffet, a partir das obras homônimas, pretendo finalizar ainda em breve a composição de um artigo específico sobre o assunto, comparando as tensões e efeitos atribuídos a cada expressão artística em pauta, trabalhando suas aproximações estéticas e especificidades das linguagens nesse processo de transição de princípios plásticos na criação literária. REFERÊNCIAS BATELLA, Juva. Vaca de nariz sutil – a viagem ao fim da noite. In_: Quem tem medo de Campos de Carvalho? Rio de Janeiro: 7Letras, 2004. BAUMAN, Zygmunt. A criação e anulação dos estranhos. In_: O mal-estar da pósmodernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BAUMAN, Zygmunt. Os estranhos da era do consumo: do estado de bem-estar à prisão. In_: O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010. CARVALHO, Campos de. Vaca de nariz sutil. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. FREUD, Sigmund. O ‘Estranho’. In_: História de uma neurose infantil e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA, 1976. SABATO, Ernesto. De un reportaje de 1963. In_: Lo mejor de Ernesto Sabato: selección, prólogo y comentarios del autor. Buenos Aires: Seix Barral, 2011.