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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ANA CAROLINE PIRES MIRANDA
"POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS": análise do processo de construção
sociológica e jurídica da expressão
São Luís
2012
1
ANA CAROLINE PIRES MIRANDA
"POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS": análise do processo de construção
sociológica e jurídica da expressão
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação
em
Ciências
Sociais
da
Universidade Federal do Maranhão para
obtenção do título de mestre em Ciências
Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Horácio Antunes de
Sant’Ana Júnior.
São Luís
2012
2
MIRANDA, Ana Caroline Pires
Povos e comunidade tradicionais: análise do processo de
construção sociológica e jurídica da expressão / Ana Caroline Pires
Miranda. – 2012.
161 f.
Impresso por computador (fotocópia)
Orientador: Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Maranhão,
Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, 2012.
1. Comunidades – Sociologia 2. Comunidades tradicionais. 3.
Povos – Causa socioambiental 4. Direito – usos. I. Título.
CDU 316.334.52
3
ANA CAROLINE PIRES MIRANDA
"POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS": análise do processo de construção
sociológica e jurídica da expressão
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação
em
Ciências
Sociais
da
Universidade Federal do Maranhão para
obtenção do título de mestre em Ciências
Sociais.
Aprovada em: _____/_____/_____
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior (orientador)
Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão
_____________________________________________
Prof. Dr. Igor Gastal Grill
Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão
_____________________________________________
Profa. Dra. Madian de Jesus Frazão
Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão
São Luís
2012
4
AGRADECIMENTOS
Esta dissertação somente se tornou possível a partir do esforço conjunto de muitas
pessoas e instituições, que contribuíram sobremaneira para a sua concretização. A muitos,
portanto, devo meus agradecimentos, porém, nem todos poderão ser aqui mencionados, pelo
que peço, de antemão, desculpas.
Inicialmente, agradeço ao meu orientador, Dr. Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior,
por quem nutro intenso respeito e admiração pela competência que demonstra na condução de
seus trabalhos, pela postura ética e comprometida com que se dedica às Ciências Sociais e
pela humildade, por vezes desconcertante, que manifesta nas relações profissionais e pessoais.
Agradeço pela leitura atenta e pelas críticas realizadas a este trabalho, pelo incentivo dado à
continuidade dos estudos na pós-graduação em Ciências Sociais e, acima de tudo, por todos
os ensinamentos ao longo desses anos de trabalho e convívio.
Agradeço aos professores, funcionários e colegas do Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão (PPGCS/UFMA) por me
possibilitarem as condições de realização deste trabalho. Agradeço especialmente aos
professores Dra. Elizabeth Maria Beserra Coelho, Dra. Maristela de Paula Andrade, Dr.
Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao
Dr. Igor Gastal Grill, Dr. Marcelo Domingos Sampaio Carneiro, Dra. Eliana Tavares dos Reis
e Dr. Paulo Keller – professores de quem fui aluna no mestrado.
Aos professores Dr. Igor Gastal Grill, do PPGCS/UFMA e Dra. Madian de Jesus
Frazão, do Departamento de Sociologia e Antropologia/UFMA agradeço pelos comentários,
críticas e sugestões feitas por ocasião do exame de qualificação e que muito ajudaram no
redimensionamento deste trabalho.
Agradeço também aos professores do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais
da Universidade Federal do Pará, em especial Jean Pierre Teisserenc, Maria José de Aquino e
Denise Cardoso, pelas contribuições na construção das reflexões acadêmicas e pela
receptividade com que nos receberam na UFPA.
Meus sinceros agradecimentos aos entrevistados, que gentilmente cederam parte do
seu tempo e do seu conhecimento para que fosse possível a realização deste trabalho. No
Ministério Público Federal, agradeço aos Procuradores da República Alexandre Silva Soares e
Felício Pontes Júnior e na Universidade Federal do Pará aos professores do Instituo de
Ciências Jurídicas Dr. José Heder Benatti e Dr. Domenico Girolamo Treccani.
5
Agradeço ainda à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) pela concessão de bolsa de mestrado, bem como ao Programa Nacional de
Cooperação Acadêmica (PROCAD/CAPES) pelo financiamento ao Projeto PROCAD:
“Territórios Emergentes da Ação Pública Local e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia
Brasileira”, o que me possibilitou a realização de intercâmbio com a Universidade Federal do
Pará. Sem o auxílio dessas instituições de fomento, teria sido inviável a obtenção das
condições financeiras e estruturais para a realização desta pesquisa.
Agradeço a Turma 07 do mestrado em Ciências Sociais – Antonio Carlos Gomes,
Bruno Azevedo, Carla Georgea, Cristiane Viana, Daisy Damasceno, Douruezia Fonseca,
Emerson Rubens, Ingrid Pereira, João Gilberto, Joelma Santos, Jorge Luiz, Luciana Meireles,
Marco Antonio, Renata Desterro e Thimóteo de Oliveira – por todos os momentos de
concentração e de descontração que compartilhamos.
Sou grata a família “Ledo Reis”: D. Helena, Seu Pedro, Daniela, Carla e Larinha, que
nos acolheu em seu “recanto” durante a nossa estadia em Belém e foi nosso suporte no
período em que lá estivemos.
A Daisy Damasceno e Raíssa Moreira Lima agradeço pelo aprendizado da
convivência e pelos bons e produtivos momentos que passamos juntas em Belém do Pará.
A João Gilberto agradeço por toda dedicação e cumplicidade manifestada no período
de realização desta pesquisa.
Meu muito obrigada a Carla Georgea, Dayana Delmiro, Lenir Moraes e Regimeire
Oliveira, sempre presentes nas minhas conquistas pessoais e profissionais. Nossa amizade é
algo muito valioso e se fortalece não só nos momentos de alegria... Sou muito grata por poder
contar com vocês. À Dayana um agradecimento especial, por todo apoio e incentivo nos testes
que passei.
Agradeço ainda aos meus irmãos, Ana Karine e Marco Antonio, tios, primos e demais
familiares, que me estimulam a seguir adiante nos estudos, em especial a minha querida tia
Maria da Glória Pires Martins, que nos dá, a todos da família, aulas diárias de fé e esperança e
nos ensina, com o seu exemplo, o que realmente importa na vida.
Por fim, não poderia deixar de agradecer aos meus maiores torcedores e
incentivadores, meus pais, Antonio José Bernardo Miranda e Maria das Graças Pires Miranda,
que nunca mediram esforços para investir na formação de seus filhos. A eles meu eterno
agradecimento pela abdicação, pelo incentivo e por se realizarem com as minhas conquistas,
que acabam sendo nossas vitórias.
6
RESUMO
Análise do processo sociológico e jurídico de construção da expressão "povos e comunidades
tradicionais". Sistematização de discursos, interpretações e posicionamentos adotados por
diferentes agentes, situados no espaço do direito, em prol do reconhecimento e legitimidade
da expressão. Investigação sobre o processo internacional de invenção e institucionalização da
causa socioambiental – no âmbito da qual se situam as discussões sobre “povos e
comunidades tradicionais – com destaque para a rede de ativismo ambiental e para o processo
de importação de modelos institucionais para países periféricos, via difusão do discurso
desenvolvimentista. Análise das modificações processadas no âmbito do Poder Judiciário e
nos perfis profissionais dos que compõem seus quadros em decorrência do processo de
democratização do país. Reflexão sobre a o processo de construção de uma comunidade de
intérpretes jurídicos voltados para os direitos dos “povos e comunidades tradicionais”.
Utiliza-se como estratégias metodológicas levantamento bibliográfico sobre a temática,
análise de documentos e legislações em âmbito nacional e internacional, coleta de dados em
fontes secundárias e entrevistas com profissionais de direito.
Palavras-chave: Povos e comunidades tradicionais. Causa socioambiental. Usos do direito.
7
ABSTRACT
Sociological analysis of the process and legal construction of the term "peoples and traditional
communities”. Systematization of discourses, interpretations and positions adopted by
different agents, located in the right space, for recognition and legitimacy of the expression.
Research on the international process of invention and institutionalization of social and
environmental causes - within which lie the discussions on "traditional peoples and
communities” - especially the network of environmental activism and the process of
importation of institutional models for peripheral countries, via spread of development
discourse. Analysis of changes processed within the Judiciary and profiles of professionals
that make his paintings as a result of the democratization process in the country. Reflection on
the process of building a community of interpreters facing the legal rights of "peoples and
traditional communities." It is used as methodological strategies literature on the subject,
examining documents and legislation at national and international data collection from
secondary sources and interviews with legal professionals.
Keywords: People and traditional communities. Social and environmental causes. Uses the
right.
8
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
ADIN – Ação Direta de Inconstitucionalidade
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CEPAF – Conselho Estadual de Política Agrícola, Agrária e Fundiária
CF – Constituição Federal
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CNPCT – Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais
CNPT – Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Sociobiodiversidade
Associada a Povos e Comunidades Tradicionais
CNS – Conselho Nacional dos Seringueiros
CNJ – Conselho Nacional de Justiça
CONAFLOR – Comissão Coordenadora Política Nacional de Florestas
CONAMP – Conselho Nacional do Ministério Público
CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPT – Comissão Pastoral da Terra
DF – Distrito Federal
EIA – Estudo de Impacto Ambiental
FASE – Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional
FAO – Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
FETAGRI – Federação dos Trabalhadores na Agricultura
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNATRA – Fundação Pró-Natureza
GERUR – Grupo de Estudos Rurais e Urbanos
GEDMMA – Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio
Ambiente
GTA – Grupo de Trabalho da Amazônia
IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis
IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
IEB – Instituto Internacional de Educação do Brasil
IMAZON – Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia
INCRA – Instituto Nacional de Reforma Agrária
9
INPA – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
IPAM – Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia
ITERPA – Instituto de Terras do Pará
IUH – Instituto Humanitas
MMA – Ministério do Meio Ambiente
MONAPE – Movimento Nacional da Pesca
MPU – Ministério Público da União
MPF – Ministério Público Federal
NAEA – Núcleo de Altos Estudos da Amazônia
NAJUP – Núcleo de Assessoria Jurídica Popular
NEA – Núcleo de Estudos Ambientais
NEAB – Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros
NESSA – Norte Energia Sociedade Anônima
OIT – Organização Internacional do Trabalho
ONG – Organizações Não Governamentais
ONU – Organização das Nações Unidas
PAC – Programa de Aceleração de Crescimento
PNCSA – Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia
PNPCT – Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais
PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
PPGDA – Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental
PROCAD – Programa Nacional de Cooperação Acadêmica
PUC – Pontifícia Universidade Católica
RESEX – Reserva Extrativista
SEIR – Secretaria Extraordinária de Igualdade Racial
SEPPIR – Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial
SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação
SPDH – Sociedade Paraense de Direitos Humanos
STF – Supremo Tribunal Federal
STR – Sindicato dos Trabalhadores Rurais
SUBCOM – Subsecretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais
TI – Terra Indígena
UEA – Universidade Estadual do Amazonas
UFMA – Universidade Federal do Maranhão
10
UFPA – Universidade Federal do Pará
UNB – Universidade de Brasília
UNDB – Unidades de Ensino Superior Dom Bosco
UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância
USAID – Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
1. INVENÇÃO E INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CAUSA SOCIOAMBIENTAL ....... 23
1.1 Da “descoberta” da crise ambiental ao surgimento do socioambientalismo .................. 23
1.2 A construção da ideologia e do discurso desenvolvimentista......................................... 33
1.3 Instituições internacionais no processo de importação de modelos ............................... 40
1.3.1 Instituições internacionais e a expressão “povos e comunidades tradicionais” ....... 47
2. CONSTRUÇÃO SOCIOLÓGICA E JURÍDICA DA EXPRESSÃO “POVOS E
COMUNIDADES TRADICIONAIS” .................................................................................. 54
2.1 Conflitos socioambientais na Amazônia e construção de categorias jurídicas ............... 56
2.1.1 Reservas Extrativistas e Populações tradicionais: discussões em torno do processo
de elaboração da Lei 9.985/2000....................................................................................... 57
2.2 Análise da construção sociológica da expressão “povos e comunidades tradicionais” .. 67
2.3 Processo de territorialização e identificação ................................................................... 74
3 JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS E DEFESA DOS
“POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS” .............................................................. 82
3.1 Instituições, agentes jurídicos e usos do direito .............................................................. 87
3.2 Interpretações e posicionamentos dos profissionais do direito sobre a expressão “povos
e comunidades tradicionais” ............................................................................................... 127
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 147
REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS .................................................................................. 150
APÊNDICES ......................................................................................................................... 155
12
INTRODUÇÃO
A judicialização dos conflitos socioambientais é resultado de um processo, ainda em
curso, de ressignificação da temática meio ambiente, no âmbito do qual se verifica um
processo de “ambientalização” das pautas do diferentes grupos implicados nessa discussão.
Este neologismo, conforme destaca José Sérgio Leite Lopes (2008, p.17), indica uma
interiorização, por parte das pessoas e grupos, das “diferentes facetas da questão pública do
meio ambiente”, sendo tal incorporação manifestada pelas transformações na forma e na
linguagem de conflitos sociais, bem como na institucionalização parcial desta nova questão
pública. Assim, para o autor, o termo “ambientalização” indica o processo histórico de
construção de novos fenômenos, que implicam, simultaneamente, na transformação do Estado
e da vida das pessoas.
Henri Acserald (2010, p.103), tomando por base as reflexões de Lopes (2008), afirma
que a “ambientalização” compreende “tanto o processo de adoção de um discurso ambiental
genérico por parte dos diferentes grupos sociais, como a incorporação concreta de
justificativas ambientais para legitimar práticas institucionais, políticas, científicas, etc.”,
destacando que é por meio desse processo que “novos fenômenos vão sendo construídos e
expostos à esfera pública, assim como velhos fenômenos são renomeados como ‘ambientais’,
e um esforço de unificação engloba-os sob a chancela da ‘proteção ao meio ambiente’”.
Merece destaque nesse processo de “ambientalização” a existência de uma extensa
rede de agentes que, apesar dos discursos, concepções, instituições e práticas bastante
diferenciadas entre si, se aproximam por serem associados aos “movimentos ambientais” e ao
“discurso ambiental”, ou seja, “agentes envolvidos na elaboração do meio ambiente como
questão e como horizonte problemático de construção societal” (ACSERALD, 2010, p.104).
Cumpre destacar que tal rede é composta por intelectuais, cientistas sociais, políticos,
juristas, integrantes de movimentos sociais e outros segmentos que se articulam, dentre outros
objetivos, em prol das causas socioambientais e do atendimento das demandas dos chamados
“povos e comunidades tradicionais”, bem como do reconhecimento e legitimidade desta
expressão (que possui um caráter extremamente aberto e dinâmico, apesar das tentativas de
definição, inclusive jurídica, desta categoria).
Assim a expressão "povos e comunidades tradicionais" tem sido acionada, tanto por
representantes de movimentos sociais, quanto por agentes situados no espaço acadêmico e
13
jurídico, com o objetivo de fomentar a adoção de estratégias de identificação, resistência e
garantia dos direitos específicos desses grupos, sobretudo os relativos a direitos territoriais.
Dentre essas estratégias, destaca-se a articulação desses agentes em redes nacionais e
transnacionais voltadas para a discussão de políticas públicas e para a criação e
implementação de legislações que contemplem as reivindicações desses segmentos. Destaquese ainda as estratégias direcionadas também para atender aos objetivos dos diferentes agentes
envolvidos na ressignificação da problemática ambiental.
Diante desse contexto brevemente apresentado, o presente trabalho objetiva analisar o
processo sociológico e jurídico de construção da causa1 socioambiental, bem como analisar o
processo de produção e reprodução da expressão "povos e comunidades tradicionais" no
âmbito dos projetos e conflitos inseridos nesta causa.
O foco da análise aqui empreendida recairá sobre os discursos e interpretações de
profissionais do direito implicados no processo de institucionalização da expressão em análise
por meio da publicização e da mobilização social em torno da legitimidade e reconhecimento
da expressão.
Para tanto, será realizada uma análise do processo histórico de construção do
socioambientalismo, com destaque para a elaboração e edição da Lei 9.985/2000, que institui
o Sistema Nacional de Unidades de Conservação e que traz à tona, pela primeira vez no país,
as discussões sobre a expressão “populações tradicionais” em âmbito normativo.
Também será enfocada a construção da ideologia e do discurso do desenvolvimento,
no qual as ONGs ambientalistas – cada vez mais profissionalizadas – exercem um importante
papel ao funcionarem como vetores de modelos políticos, institucionais e ideológicos de
origem ocidental, sobretudo norte-americana.
No que concerne aos profissionais do direito que atuam na defesa das causas
socioambientais – nos tribunais, na academia ou mesmo fora dos espaços jurídicos –
destaque-se que os mesmos funcionam como “tradutores” das causas políticas em jurídicas e,
de modo inverso, de causas jurídicas em políticas, dada a preocupação que revelam em
socializar e descomplexificar o direito para que o mesmo possa ser compreendido pelos
diferentes agentes envolvidos nos conflitos.
1
Utilizamos o termo causa no mesmo sentido empregado por Virginia Vecchioli (2006, p. 15), para quem “esse
conceito remete tanto ao processo judicial, que tramita nos tribunais, quanto ao conjunto de interesses a serem
sustentados e a fazerem valer na esfera pública”.
14
Focalizar a análise nesses profissionais permite perceber como o campo judicial2 atua
como princípio de construção da realidade social que, no caso específico, se refere à
construção e legitimação da categoria “povos e comunidades tradicionais”.
Com relação a esse processo de classificação realizado no âmbito jurídico, cumpre
destacar as reflexões de Bourdieu (1998) no que se refere à redefinição das situações
ordinárias a partir da sua definição jurídica bem como da sua retradução para que as mesmas
se tornem consagradas socialmente. Nas palavras do autor:
O direito é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de
nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos; ele
confere a estas realidades surgidas das suas operações de classificação toda a
permanência, a das coisas, que uma instituição histórica é capaz de conferir a
instituições históricas (...) O direito é a forma por excelência do discurso
atuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer
que ele faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é
feito por este (BOURDIEU, 1998, p. 237).
Conforme destaca Vecchioli (2006, p. 11), este é o campo que fornece as categorias
sociais apropriadas, os cenários onde se interpretam e julgam os fatos e os meios através dos
quais se aspira solucionar os conflitos coletivos, o que garante aos seus profissionais a
centralidade no que se refere a consagração de uma maneira de intervir e interpretar o mundo
social.
Sobre este papel determinante que desempenham os profissionais do direito na
construção da realidade social, Bourdieu (1998) chama atenção para esse processo de
tradução, para a linguagem do direito, de problemas que se exprimem na linguagem vulgar, o
que possibilita a transformação de conflitos e disputas em processos judiciais. Conforme
destaca:
Nada é menos natural do que a ‘necessidade jurídica’ ou, o que significa o
mesmo, o sentimento de injustiça que pode levar a recorrer aos serviços de
um profissional: é sabido, com efeito, que a sensibilidade à injustiça ou a
capacidade de perceber uma experiência como injusta não está
uniformemente espalhada e de que depende estreitamente da posição
ocupada no espaço social (...) O poder específico dos profissionais consiste
em revelar direitos e, simultaneamente, as injustiças (...), em resumo, de
manipular as aspirações jurídicas, de as criar em certos casos, de as aumentar
ou de as deduzir em outros casos (BOURDIEU, 1998, p. 232).
2
De acordo com Pierre Bourdieu (1998, p. 229), “o campo judicial é o espaço social organizado no qual e pelo
qual se opera a transmutação de um conflito directo entre as partes diretamente interessadas no debate
juridicamente regulado entre profissionais que atuam por procuração e que têm de comum o conhecer e o
reconhecer da regra do jogo jurídico, quer dizer, as leis escritas e não escritas do campo”.
15
Ainda no que se refere a esses profissionais do direito engajados na defesa dos direitos
dos “povos e comunidades tradicionais”, cumpre destacar que não se perderá de vista a rede
maior em que estes agentes sociais se situam. A análise dos discursos dos profissionais
entrevistados e pesquisados revela uma intensa articulação dos mesmos com os movimentos
sociais nacionais e internacionais voltados para a defesa dos direitos coletivos e difusos, nas
quais se inserem as discussões sobre as causas socioambientais.
Dessa forma, conforme destacado, além de nos atermos à discussão sobre as condições
e possibilidades de construção de uma comunidade de intérpretes jurídicos voltados para as
causas socioambientais, contextualizamos a “descoberta” e o “surgimento” dessas causas, o
processo de ambientalização dos movimentos e conflitos sociais e o papel das instituições
internacionais de pesquisa e desenvolvimento em torno da construção e reprodução da
temática. Essas discussões são fundamentais para compreender o processo de construção da
expressão “povos e comunidades tradicionais”, uma das categorias centrais utilizadas por
estes diferentes atores na legitimação das causas socioambientais.
Cumpre explicitar os motivos que me levaram a escolha desse tema como objeto de
estudo. Nesse sentido, pode-se falar na realização de um exercício de auto-reflexão, na
medida em que serão evidenciadas as relações entre as minhas experiências acadêmicas e
profissionais com a pesquisa realizada.
Novamente recorremos a Bourdieu (1982), quando chama a atenção para a
necessidade de, em sociologia, o pesquisador estar predisposto a realizar a “objetivação do
sujeito objetivante”, ou seja, a objetivação do local que o próprio pesquisador ocupa em suas
análises.
Essa sociologia da sociologia ou sociologia reflexiva3 pode e deve ser utilizada como
um instrumento do método sociológico, contribuindo, dentre outros elementos, para auxiliar
no conhecimento do sujeito de conhecimento e possibilitar ao pesquisador tomar a distância
necessária para pensar na sua posição social de pensador.
Tal exercício de objetivação, contudo, não é de fácil realização. Colocar em suspenso
conhecimentos adquiridos, perspectivas teóricas, posturas, adesões e filiações (sociais,
políticas, morais etc.) durante a realização das pesquisas traz à tona uma série de dilemas.
Nesse sentido, as reflexões realizadas por Norbert Elias (1998) no que se refere ao
envolvimento e a alienação presentes nos estudos científicos das Ciências Sociais evidenciam
3
Para Bourdieu (1982), a vantagem dessa objetivação do sociólogo com o seu objeto – ou da objetivação dos
seus interesses em objetivar – torna possível um certo domínio dos fins sociais que estão, ou podem estar,
implicados nos fins científicos perseguidos.
16
esses dilemas. De acordo com este autor, dentre as especificidades apresentadas pelas
Ciências Sociais e que acabam se tornando uma dificuldade adicional encontra-se o fato de
seus “objetos” de pesquisa serem ao mesmo tempo “sujeitos”, e, além disso, o próprio
pesquisador faz parte do seu objeto de estudo.
Dado esse grau de envolvimento maior do pesquisador com os acontecimentos e
fenômenos analisados, comumente acaba ocorrendo uma fusão entre a preocupação científica
dos cientistas sociais e suas preocupações extra-cientificas ou políticas, o que pode levar a,
dentre outras implicações, uma análise superficial da situação analisada, de onde decorre a
necessidade de redobrarem-se os cuidados relativos ao envolvimento com a temática
estudada.
Acrescem-se ainda as dificuldades decorrentes da própria constituição das abordagens
científicas voltadas para o estudo das questões ambientais, tendo em vista que, conforme
destaca Oliveira (2008), há uma forte imbricação das Ciências Sociais com a militância em
partidos políticos e organizações e movimentos sociais, o que acarreta uma reduzida
autonomia científica no tratamento da matéria. Segundo o autor, “as abordagens, os tipos de
problemas e os resultados da análise estavam diretamente associados às preocupações,
problemas e reivindicações levantadas pelas próprias lideranças e organizações que
participavam de tais mobilizações” (OLIVEIRA, 2008, p. 108).
Dessa forma, é comum haver uma continuidade entre as abordagens científicas e o
debate político sobre o ambientalismo em vez da consolidação de um espaço próprio de
estudos e pesquisas, distintos das preocupações políticas e ideológicas dos movimentos
ambientalistas (OLIVEIRA, 2008).
Feitas essas considerações, cumpre ressaltar que a minha relação – acadêmica e
ideológica – com a temática atualmente estudada se intensifica quando das pesquisas nas
quais fiz parte durante a graduação em Ciências Sociais4, haja vista que as mesmas foram
4
Em 2003 integrei o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEAB, participando de um projeto de pesquisa que
objetivava levantar informações sobre a situação de crianças e adolescentes de comunidades rurais quilombolas
nos municípios de Codó e Itapecuru Mirim, no estado do Maranhão. Em 2006, fiz parte do Grupo de Estudos
Rurais e Urbanos – GERUR nos projetos de pesquisa “Produção de alimentos e cultura alimentar”, que
objetivava avaliar os hábitos alimentares e aspectos da cultura alimentar de grupos camponeses e pescadores
afetados pela instalação do Centro de Lançamento de Alcântara, e “Estudo sócio-antropológico sobre a presença
de comunidades em faixas de servidão de linhas de transmissão da Eletronorte”, com vistas a entender as
representações e utilizações dos diferentes agentes sociais que ocupam e utilizam as faixas de servidão de linhas
de transmissão de alta tensão da Eletronorte. De 2006 a 2009, compus a equipe de pesquisa do Grupo de
Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente – GEDMMA, como pesquisadora do projeto
“Modernidade, desenvolvimento e consequências sócio-ambientais: a implantação do pólo siderúrgico na Ilha de
São Luís – MA”, que buscava analisar a implantação do pólo siderúrgico no município de São Luís, suas
conseqüências socioambientais e sua relação com a instalação em curso da Reserva Extrativista do Tauá-Mirim.
Desta última pesquisa resultou o trabalho de conclusão do curso de Direito, que contou com o apoio financeiro
17
realizadas a partir de um “compromisso” político e social com as questões envolvendo grupos
subalternizados.
De forma geral, pode-se afirmar que tais projetos de pesquisa, além de visarem
analisar os impactos negativos decorrentes de ações governamentais de caráter
desenvolvimentista sobre grupos étnico-raciais, buscavam ser apropriados de forma
instrumental nas lutas empreendidas por estes grupos, tanto na esfera política quanto na esfera
jurídica.
Além do mais, durante a graduação no curso de direito5, a participação em projetos
relacionados com temáticas dos direitos humanos, acesso à justiça e direitos coletivos e
difusos também condicionaram a minha inclinação para discussões relacionadas ao pluralismo
jurídico, ao direito alternativo, ao direito ambiental.
A participação nesses projetos ajuda a explicar a minha predisposição para estudar a
temática em questão e os profissionais do direito aqui apresentados (que possuem intensa
atuação e/ou produção acadêmica e científica sobre as temáticas relacionadas a formas de
promoção e tutela do meio ambiente e à proteção de grupos étnicos).
Por fim, cumpre ainda ressaltar a minha breve incursão profissional na Secretaria
Extraordinária de Igualdade Racial – SEIR, órgão público estadual que tinha como
destinatários das suas ações populações negras, indígenas, quilombolas, comunidades
tradicionais, etc.
A experiência de trabalho neste órgão me permitiu o “trânsito” entre diferentes
mundos sociais que se organizavam em torno dessas categorias: o das lideranças dos
movimentos sociais representativos dos grupos indígenas, quilombolas e demais povos e
comunidades tradicionais; os integrantes dos grupos sociais identificados como tradicionais; o
dos políticos, representado por secretários estaduais e municipais, prefeitos, vereadores,
assessores...
Esse trânsito, ainda que tenha durado pouco tempo, possibilitou o início de algumas
reflexões sobre os interesses e as alianças dos atores envolvidos nessa malha de conexões que
se estruturou em torno das discussões sobre promoção de direitos e ampliação de políticas
públicas para os grupos étnico-raciais.
do Instituto Internacional de Educação do Brasil por meio da concessão da Bolsa de Estudos para a Conservação
da Amazônia. Por fim, cumpre destacar que todas estas pesquisas realizadas ocorreram no âmbito do
Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão.
5
No que se refere a minha participação em projetos vinculados ao Departamento de Direito da Universidade
Federal do Maranhão, integrei, entre os anos de 2002 a 2003, o Núcleo de Assessoria Jurídica Popular NAJUPNegro Cosme e, no ano de 2005, fiz parte da equipe do Núcleo de Estudos Ambientais – NEA.
18
A ocorrência de algumas situações vivenciadas à época de trabalho – viagens a
municípios com o intuito de “mapear” as comunidades tradicionais existentes; conversas com
populações da zona rural ou urbana desses municípios que não se identificavam com nenhuma
categoria, mas que eram identificadas pelo estado e por movimentos sociais como populações
tradicionais; participação em reuniões com representantes de instituições estatais e
representantes de movimentos sociais nas quais as disputas por poder, legitimidade e recursos
se tornavam evidentes, dentre outras situações – fomentou algumas reflexões e indagações
importantes, inclusive sobre a atuação do cientista social nesses processos de classificação
social.
Além disso, essa experiência possibilitou a percepção de alguns elementos
antagônicos no que se refere a essa expressão, tendo em vista que ao mesmo tempo em que se
observa um movimento que visa legitimar o uso de tal categoria por determinados segmentos
sociais, existem vários entraves ao reconhecimento e à garantia de direitos a esses mesmos
grupos, constantemente questionados em sua “tradicionalidade”, sobretudo no que se refere a
discussão no espaço jurídico6.
A escolha dos objetivos do estudo, portanto, deve-se a essas experiências que
suscitaram reflexões sobre o processo de apropriação da expressão “povos e comunidades
tradicionais” por integrantes de movimentos sociais – apoiados por setores ligados à academia
e à ONGs nacionais e internacionais – bem como possibilitaram a observação de como a
expressão ensejava disputas jurídicas e políticas em torno da definição desses grupos e de
quem seriam os destinatários legítimos de tal classificação.
Cumpre ainda destacar que essas experiências também possibilitaram perceber que a
categoria em análise articula-se a contextos sociais específicos, de modo que se faz necessário
considerar essas especificidades para compreender como e quando essa expressão faz sentido,
como ela é representada e por quem e como se integra a diferentes relações de poder.
No que se refere às estratégias metodológicas utilizadas para a realização desta
pesquisa, a mesma se baseou em levantamentos bibliográficos sobre a temática em estudo,
análise de documentos textuais e legislações produzidas e reproduzidas pelas instituições
internacionais, análise da legislação nacional no que pertine aos direitos dos “povos e
comunidades tradicionais”, bem como análise de publicações e documentos relativos à
temática de pesquisa.
6
Durante a experiência neste órgão, foram feitos, pelo Poder Judiciário do Maranhão, “pedidos de manifestação”
da SEIR com vistas a “atestar” a ancestralidade e a tradicionalidade de grupos (especialmente quilombolas)
envolvidos em conflitos fundiários no interior do estado.
19
Também procedi a pesquisas na Internet com vistas a obter informações sobre os
profissionais do direito que possuem produções referentes aos direitos dos “povos e
comunidades tradicionais”, além de realização de entrevistas.
As entrevistas foram realizadas com profissionais do direito situados nos estados do
Maranhão e do Pará que possuem, na sua trajetória profissional – quer seja na academia, quer
seja na atuação junto ao Poder Judiciário – envolvimento com temáticas relativas aos grupos
estudados.
Dadas as peculiaridades apresentadas por estes dois estados – sobretudo no que
concerne a existência de uma variedade de apropriações do território por parte dessas
comunidades e a incidência de projetos e políticas de desenvolvimento que confrontam os
modos de vidas desses grupos e acarretam inúmeros e violentos conflitos agrários – foi
possível mapear um bom número de juristas engajados nessas causas, sobretudo no estado do
Pará. Contudo, por limitações temporais e financeiras (já que alguns atuavam no interior do
estado), não foi possível entrevistar mais profissionais.
A estadia no estado do Pará se deveu ao convênio firmado entre a Universidade
Federal do Maranhão, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade Federal do
Pará por meio do Projeto PROCAD NF 21/2009: “Territórios Emergentes da Ação Pública
Local e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia Brasileira”, financiado pela CAPES, e se
estendeu durante os meses abril e maio de 2011, na cidade de Belém.
Neste estado, realizei entrevistas com professores universitários vinculados ao
Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará, Prof. Dr. Girolamo
Domenico Treccani e o Prof. Dr. José Heder Benatti, assim como procedi a realização de
entrevista com o Procurador Geral da República do Estado do Pará, Felício Pontes Junior.
O primeiro contato com os professores Girolamo Treccani e Heder Benatti, no
Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA, ocorreu no dia 16 de maio de 2011, com vistas a
agendar as datas da entrevista, o que foi acertado posteriormente através de e-mails. As
entrevistas com o professor Girolamo Treccani foram realizadas nos dias 16 e 17 de maio,
enquanto com o professor José Heder Benatti ocoreu dia 23 de maio de 2011.
As informações sobre o Procurador Felício Pontes Júnior foram obtidas tanto pela
Internet quanto pela realização de entrevista. O contato com o Procurador foi realizado por email, quando ele se dispôs prontamente a conceder a entrevista ficando na dependência da sua
agenda a marcação da data. O dia 26 de maio foi a data inicialmente marcada pela sua equipe
de assessores, contudo, devido ao assassinato dos trabalhadores rurais Maria do Espírito Santo
e João Cláudio Ribeiro, do município de Nova Ipixuna, ocorrido no dia 25 de maio
20
(acontecimento que teve repercussão nacional, haja vista que o crime se relacionar com o fato
de os trabalhadores, várias vezes já ameaçados de morte, denunciarem ao IBAMA atividades
ilegais de desmatamento e o roubo de madeira de lei) e de reunião realizada na mesma data e
horário com governador do estado sobre este caso, a entrevista fora adiada para o dia 27 de
maio de 2011, na sede do Ministério Público da União do estado do Pará.
No Maranhão entrevistei o Procurador da República do Estado do Maranhão,
Alexandre Silva Soares, no dia 24 de novembro de 2011, na sede do Ministério Público da
União. A entrevista foi agendada diretamente com o Procurador via e-mail e, posteriormente,
confirmada por telefone, transcorrendo sem maiores contratempos.
Cumpre ainda destacar que visando complementar essas entrevistas, realizei coleta de
dados junto a fontes secundárias para obtenção de informações sobre a produção intelectual,
currículos e perfis profissionais, além de matérias jornalísticas e informativos institucionais
envolvendo os agentes mencionados.
Além dessas entrevistas pessoalmente realizadas, também fiz uso de entrevistas
realizadas por terceiros e disponibilizadas na Internet, sobretudo as relativas a
Subprocuradora-geral da República, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira. Assim, as
informações foram obtidas em fontes indiretas de pesquisa: sites, matérias veiculadas na
Internet e entrevistas publicadas em revistas especializadas, conforme serão indicadas ao
longo do texto.
Tal recurso foi utilizado tendo em vista, por um lado, a dificuldade de realizar contatos
pessoais com a mesma (que, além de ter uma agenda de trabalho muito intensa, reside e
trabalha em Brasília – DF) e, por outro lado, devido à disponibilização de muitas informações
na Internet sobre Deborah Duprat, dada a centralidade do cargo que ocupa e também devido
aos posicionamentos jurídicos pouco convencionais adotados pela Subprocuradora.
Ainda no que tange a obtenção de dados de forma indireta, procedi ao levantamento de
informações sobre produção bibliográfica e trajetória profissional do professor da
Universidade Estadual do Amazonas e da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (MA),
Prof. Dr. Joaquim Shirashi Neto.
No que se refere à estrutura do trabalho e à disposição das reflexões suscitadas pela
pesquisa, às mesmas encontram-se ordenadas em três capítulos.
No primeiro capítulo, será enfatizado o processo internacional de invenção e
institucionalização da causa socioambiental, no bojo do qual encontram-se os processos de
construção da categoria “povos e comunidades tradicionais”. Destaca-se como e em que
contexto as discussões sobre a temática ganharam espaço nas agendas das instituições
21
internacionais, bem como os diferentes interesses envolvidos no processo de ambientalização
das demandas sociais.
Ainda no primeiro capítulo, é realizada uma discussão sobre o discurso do
desenvolvimento, realizando uma revisão conceitual da expressão, no intuito de demonstrar a
importância dos organismos e instituições internacionais na formulação de conceito, teorias,
valores e mecanismos voltados para a produção institucional de determinadas realidades
sociais.
A partir dessa discussão, aborda-se o papel das alianças entre os movimentos sociais
nacionais e o movimento ambientalista internacional (rede de ativismo ambiental), a
importação de modelos institucionais para países periféricos e a difusão do discurso
desenvolvimentista que fundamentam as discussões realizadas em torno dessas causas.
No segundo capítulo, encontra-se uma reflexão sobre as construções jurídicas e
sociológicas elaboradas, sobretudo, por teóricos das ciências sociais, com vistas a dar
visibilidade aos segmentos classificados como “povos e comunidades tradicionais”.
Neste capítulo, discorre-se sobre o processo de construção legislativa e de
conceituação jurídica desses grupos, com destaque para as discussões em torno da elaboração
e aprovação da Lei 9.985/2000 (e as polêmicas sobre a presença ou não de populações
humanas em unidades de conservação da natureza7, sobretudo na modalidade de Reserva
Extrativista) e do Decreto 6.040/2007, que dispõe sobre a Política Nacional dos Povos e
Comunidades Tradicionais.
Ainda no segundo capítulo retomam-se as principais formulações teóricas sobre a
relação entre territórios, identidades, lutas sociais – sobretudo na Amazônia pós década de
1980 – com vistas a compreender como se dá o processo de constituição de movimentos
sociais que se articulam em torno da defesa das “terras tradicionalmente ocupadas”.
7
Conforme o art. 7º da Lei 9.985/2000, as unidades de conservação da natureza dividem-se em dois grupos com
características bem específicas: Unidades de Proteção Integral e Unidades de Uso Sustentável. Nas Unidades de
Proteção Integral não é permitido o compartilhamento de seus espaços com atividades outras que não aquelas
especificamente integradas ao objetivo da própria unidade, ou seja, como o objetivo primordial é o de preservar a
natureza, admite-se apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, salvo exceções previstas na própria lei. Já
com relação às Unidades de Uso Sustentável, os recursos podem ser utilizados diretamente, desde que de
maneira sustentável, uma vez que o objetivo dessa unidade é a compatibilização da conservação da natureza com
o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais. As Unidades de Proteção Integral são compostas por
cinco categorias de unidades de conservação: Estação Ecológica; Reserva Biológica; Parque Nacional;
Monumento Natural e Refúgio de Vida Silvestre. As Unidades de Uso Sustentável, por sua vez, compõem-se por
sete categorias de unidades de conservação: Área de Proteção Ambiental; Área de Relevante Interesse
Ecológico; Floresta Nacional; Reserva Extrativista; Reserva de Fauna; Reserva de Desenvolvimento Sustentável;
Reserva Particular do Patrimônio Natural. Existe ainda a Reserva da Biosfera, uma espécie de unidade de
conservação que não está formalmente enquadrada em nenhuma das categorias ou grupos mencionados.
22
Já no terceiro capítulo será analisado como as discussões nacionais e internacionais
sobre o “socioambientalismo” influenciaram modificações no Poder Judiciário, que foram
intensificadas no final da década de 1980 devido ao contexto de redemocratização do país.
Enfatiza-se ainda o papel das instituições e dos agentes engajados em causas
ambientais e que ocupam posições no espaço jurídico judicial (professores, advogados,
membros do Ministério Público...) no processo que neste trabalho será denominado de
“judicialização dos conflitos socioambientais”, assim como se analisam os discursos destes
profissionais no que concerne a categoria “povos e comunidades tradicionais”.
23
1. INVENÇÃO E INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CAUSA SOCIOAMBIENTAL
1.1 Da “descoberta” da crise ambiental ao surgimento do socioambientalismo
A compreensão do que se convencionou chamar de socioambientalismo requer que
retomemos, ainda que de forma sumária, o processo de “descoberta” e publicização da crise
ambiental, entendendo por esta a percepção difundida, sobretudo, por agências e instituições
internacionais de pesquisa e desenvolvimento, de que os recursos ambientais são finitos e
encontram-se extremamente ameaçados diante dos processos industriais e tecnológicos cada
vez mais agressivos ao meio ambiente, bem como diante da apropriação de recursos naturais
limitados para satisfazer necessidades ilimitadas8.
Pode-se afirmar que o reconhecimento desta crise costuma ser associado à década de
1960, período em que a questão ambiental passou a ocupar, progressivamente, mais espaço
nos debates políticos, acadêmicos e científicos. Contudo, no que se refere à tendência corrente
de considerar esta década como o ponto de partida da emergência de reivindicações, protestos
e mobilizações em defesa das causas ambientais, Wilson José Ferreira de Oliveira (2008) faz
algumas ressalvas.
Conforme destaca o autor, há um descompasso entre o recorte temporal estabelecido
pela literatura e a existência de mobilizações bastante antigas em defesa de causas ambientais,
o que o leva a afirmar que o final da década de 1960 expressa muito mais o marco da
constituição da “problemática ambiental” como objeto de estudo das Ciências Sociais do que
o período de nascimento das primeiras mobilizações concretamente voltadas para a defesa de
tais causas. Acerca dessas antigas mobilizações em defesa das causas ambientais, Oliveira
(2008, p. 104) pontua:
Cabe salientar diversos trabalhos nos quais se pode observar que o
sentimento de amor à natureza, aos animais e às plantas, à paisagem e à vida
rural é um dos traços constitutivos do processo de emergência e de
desenvolvimento da chamada “civilização industrial”, “capitalista” ou
“moderna”, estando ligados a um complexo de mudanças que estavam em
curso neste período. Do mesmo modo, o aparecimento de manifestações e
movimentos de retorno à natureza, à vida campestre e à vida natural pode ser
8
A esse respeito, o autor Gustavo Esteva (2000a, p. 75) destaca que os fundadores da economia encontraram na
escassez a pedra fundamental para toda a sua construção teórica. Assim, a partir desse viés economicista que
vislumbra a escassez a partir de carência, raridade, restrição, necessidade e insuficiência, os grupos humanos nos
quais as premissas não econômicas regem a vida das pessoas são desconsiderados e desvalorizados. Conforme
destaca: “O estabelecimento de valor econômico exige a desvalorização de todas as outras formas de vida social.
Essa desvalorização transforma, em um passe de mágica, habilidades em carências, bens públicos em recursos,
homens e mulheres em trabalho que se compra e vende como um bem qualquer, tradições em um fardo,
sabedoria em ignorância, autonomia em dependência” (ESTEVA, 2000a, p. 74).
24
observado tanto no antigo regime da França (...) quanto no início do século
XX nos Estados Unidos (...) e, inclusive, no Brasil (...).
A “descoberta” dessa crise, portanto, decorre não do surgimento de algo novo, mas
sim, efetivamente, de um novo olhar para uma questão pré-existente, tendo em vista que os
problemas ambientais e as manifestações de preocupação para com a preservação e
restauração dos recursos naturais, conforme observado na citação acima, são de longa data,
não podendo ser considerados como de origem recente. Há que se ressaltar que embora tais
discussões não sejam recentes, os processos tecnológicos em curso amplificam o potencial
destruidor da espécie humana sobre os recursos naturais e o agravamento da problemática
ambiental de forma sem precedentes.
Assim, a percepção intensificada na década de 1960 de que o desenvolvimento
econômico e o processo de industrialização em larga escala – em curso desde o século XVIII,
com a sua amplificação após a segunda metade do século XX – estavam acarretando
resultados desastrosos para todo o planeta, levou aglutinação de diferentes agentes, de
distintas
nacionalidades,
a
discutir
formas
“alternativas”
de
conciliação
entre
desenvolvimento e preservação/conservação do meio ambiente.
Nesse contexto se insere a realização do primeiro grande evento internacional sobre
meio ambiente, realizado na cidade de Estocolmo, Suécia, em junho de 1972 e sobre os
auspícios da Organização das Nações Unidas. A reunião, denominada Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente, também conhecida por Conferência de Estocolmo,
contou com a participação de 113 países e 250 organizações não governamentais e
organismos vinculados a ONU.
Tal evento é apontado como um dos grandes marcos da história do ambientalismo
internacional, e apesar da pouca representatividade do Brasil na Conferência de Estocolmo,
algumas conseqüências internas foram produzidas, tal como a criação, em 1973, do primeiro
órgão brasileiro de meio ambiente, a Secretaria de Meio Ambiente no âmbito do então
Ministério do Interior, e a edição de leis voltadas para a proteção ambiental9.
9
Dentre essas leis, menciona-se a Lei nº 6.938/1981, que estabeleceu os princípios e objetivos da Política
Nacional de Meio Ambiente, diferenciando-se das leis anteriormente editadas, pois considerava o meio ambiente
de forma holística e sistêmica e não desarticulada, como os instrumentos jurídicos anteriores. Conforme destaca
o jurista Édis Milaré (2007, p. 746) “A lei 6.938, de 31.08.1981 (...) entre outros tantos méritos, teve o de trazer
para o mundo do Direito o conceito de meio ambiente como objeto específico de proteção em seus múltiplos
aspectos; o de instituir o Sistema Nacional de Meio Ambiente, apto a propiciar o planejamento de uma ação
integrada de diversos órgãos governamentais através de uma política nacional para o setor; e o de estabelecer, no
art. 14, § 1º, a obrigação do poluidor de reparar os danos causados, de acordo com o princípio da
responsabilidade objetiva (ou sem consideração da culpa) em ação movida pelo Ministério Público”.
25
Outro evento de grande repercussão mundial e que influenciou na construção da causa
ambientalista no Brasil foi a divulgação, em 1987, do relatório das Nações Unidas intitulado
“Nosso Futuro Comum” coordenado pela então primeira ministra da Noruega, Gro
Brundtland – razão pela qual ficou conhecido como “Relatório Brundtland” (CMMAD,
1991).
Este relatório é o primeiro documento de agências internacionais que faz referência ao
conceito de desenvolvimento sustentável10, definindo-o como aquele que satisfaz as
necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de
satisfazer as suas próprias necessidades.
Cumpre ainda destacar, no âmbito do desenvolvimento histórico do processo de
consolidação internacional da questão ambiental, que, além da centralidade dada à polêmica
categoria de desenvolvimento sustentável, o “Relatório Brundtland” enfatizou ainda os graves
contornos da crise ambiental mundial. Este fato, por sua vez, abriu precedentes para que a
Assembléia Geral das Nações Unidas convocasse, no ano de 1989, uma Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, conferência esta que se realizou
três anos depois, em 1992, na Cidade do Rio de Janeiro, contando com a presença de 172
países, representados por aproximadamente 10.000 participantes, incluindo 116 chefes de
Estado e de Governo.
Essa Conferência, mais conhecida como “Rio 92” ou “Eco 92”, e também denominada
“Cúpula da Terra”, abordou uma imensa variedade de aspectos relacionados ao meio
ambiente e ao desenvolvimento. Houve, a partir desse evento, o fortalecimento e a
consolidação da tendência mundial de incluir nas discussões sobre a temática ambiental
questões relacionadas a aspectos sociais e culturais, que até então eram ofuscadas diante da
necessidade de proteção e restauração de ecossistemas e proteção de espécies da fauna e flora.
Dito de outra forma passou-se a inserir questões sociais na discussão ambiental,
resultado da articulação dos movimentos sociais em prol da conciliação da biodiversidade e
sociodiversidade, bem como das consequentes formulações políticas e jurídicas possuidoras
de uma visão mais abrangente acerca dos componentes integrantes do meio ambiente. Assim,
além do meio ambiente natural passa-se a incluir o meio ambiente cultural e artificial,
representados pelas realizações humanas, formas de expressão cultural e criações sociais.
O processo de construção do socioambientalismo tem nessa conferência internacional
um momento chave, tendo em vista que se observa, através da análise das declarações
10
A noção sobre a construção do discurso e da ideologia do desenvolvimento será abordada no item seguinte.
26
proferidas por representantes de Estados bem como dos documentos produzidos e assinados
por vários países, uma mudança de discurso no que concerne ao meio ambiente, até então
excessivamente pautado no meio ambiente natural.
Além da realização da “Rio 92” – que criou um amplo espaço de mobilização e
debates que consolidaram o movimento socioambiental no pais11 - deve-se ressaltar que,
anteriormente a realização deste evento, a promulgação da Constituição Federal de 1988 já
havia exercido um importante papel no que pertine à sedimentação legal dessa discussão.
Segundo Santilli (2007, p.42):
Outro marco do processo de democratização do país foi a aprovação, em
1988, da nova Constituição, que passou a dar sólido arcabouço jurídico ao
socioambientalismo. A Constituição, pela primeira vez na história
constitucional brasileira, dedicou todo um capítulo ao meio ambiente,
assegurando a todos o “direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (artigo 225,caput).
Indubitavelmente, a Constituição de 1988 representou um grande avanço na
proteção jurídica ao meio ambiente. Tanto a biodiversidade – os processo
ecológicos, as espécies e ecossistemas – quanto a sociodiversidade são
protegidas constitucionalmente, adotando o paradigma socioambiental.
Esse contexto histórico de consolidação democrática no país foi resultado de um
amplo espaço de participação da sociedade civil e, consequentemente, do processo de
mobilizações e articulações entre os mais variados segmentos voltados para a defesa dos
chamados “novos direitos”
12
. Tais mobilizações levaram a formação de alianças estratégias
entre movimentos ambientalistas – antes focados no aspecto estritamente ambiental diante da
preocupação com a escassez de recursos naturais – e demais movimentos sociais, tanto
nacional como internacionalmente situados.
11
Conforme destaca Juliana Santilli (2007, p. 31), “O socioambientalismo brasileiro – tal como reconhecemos e
identificamos – nasceu na segunda metade dos anos 80, a partir das articulações políticas entre os movimentos
sociais e o movimento ambientalista. O surgimento do socioambientalismo pode ser identificado com o processo
histórico de redemocratização do país, iniciado com o fim do regime militar, em 1984, e consolidado com a
promulgação da nova Constituição, em 1988, e a realização de eleições presidenciais diretas, em 1989.
Fortaleceu-se, como o ambientalismo geral – nos anos 90, principalmente depois da realização da Conferência
das Nações unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em 1992 (Eco-92), quando os
conceitos socioambientais passaram claramente a influenciar a edição de normas legais”.
12
Os “novos direitos” são identificados como aqueles que decorrem do direito de participação e de incorporação
da manifestação direta dos cidadãos na resolução de seus problemas imediatos (MILARÈ, 2007, p. 756). Na
ciência jurídica, tais direitos são considerados como de “terceira dimensão”, e dizem respeito aos direitos de
titularidade coletiva e difusa, dentre os quais se incluem o direito ao meio ambiente. Sobre esse aspecto, pontua
Juliana Santilli (2007, p. 22): “Os ‘novos’ direitos, conquistados por meio de lutas sociopolíticas democráticas,
têm natureza emancipatória, pluralista, coletiva e indivisível, e impõem novos desafios a ciência jurídica, tanto
do ponto de vista conceitual e doutrinário quanto do ponto de vista de sua concretização”.
27
Os grupos humanos – mais especificamente, populações indígenas e “povos e
comunidades tradicionais” – passam a integrar as preocupações de algumas correntes
preservacionista não mais como entraves aos objetivos de preservação e conservação do meio
ambiente natural13, mas como aliados potenciais nesse processo.
Ainda no que concerne à articulação entre movimento social e ambientalista, cumpre
ressaltar a importância e a grande repercussão internacional obtida a partir da formação, na
Amazônia brasileira, do movimento denominado “Aliança dos Povos da Floresta”. Tal
movimento é formado a partir das relações políticas estratégicas travadas entre povos
indígenas e populações tradicionais e destes com aliados nacionais e internacionais situados
em diferentes espaços sociais (partidos políticos, universidades, ONGs dentre outros).
Esta articulação se dá no âmbito dos violentos conflitos fundiários travados na região
Amazônica desde meados da década de 1970, decorrentes dos desmatamentos e exploração
predatória dos recursos naturais, dos processos de construção de rodovias federais e pela
abertura de grandes pastagens destinadas a projetos agropecuários. Como conseqüência, temse a migração de colonos e agricultores atraídos pelo discurso difundido pelo regime ditatorial
que proclamava a ocupação do vazio demográfico existente na Amazônia e a transformação
da região em um pólo produtor rentável para a nação.
Contextualizando esse conflito, pode-se identificar nos seringueiros14 da região
amazônica os iniciadores do movimento político que se opunham às injustiças geradas pela
estrutura social e econômica então vigente na região após o processo de decadência
econômica dos antigos seringais, sobretudo na Amazônia Ocidental, com destaque para o
estado do Acre.
13
Sobre esta mudança de perspectiva, o processo de discussão e promulgação da Lei 9.985/2000, que institui o
Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e que demorou mais de 20 anos para ser aprovado
no Congresso Nacional, explicita bem os conflitos e divergências em torno das visões existentes sobre as
populações humanas no que concerne a preservação/conservação e sobre a articulação entre biodiversidade e
sociodiversidade. Conforme destaca Santilli (2007, p. 41): “O socioambientalismo passou a representar uma
alternativa ao conservacionista preservacionista ou movimento ambientalista tradicional, mais distante dos
movimentos sociais e das lutas políticas por justiça social e cético quanto à possibilidade de envolvimento das
populações tradicionais na conservação da biodiversidade. Para uma parte do movimento ambientalista
tradicional preservacionista, as populações tradicionais – e os pobres de uma maneira de maneira geral – são
uma ameaça à conservação ambiental, e as unidade de conservação devem ser protegidas permanentemente
dessa ameaça. O movimento ambientalista tradicional tende a se inspirar e a seguir modelos de preservação
ambiental importados de países do Primeiro Mundo, onde as populações urbanas procuram, especialmente em
parques, desenvolver atividades de recreação em contato com a natureza, mantendo intactas as áreas protegidas.
Longe das pressões sociais típicas de países em desenvolvimento, com populações pobres e excluídas, o modelo
preservacionista tradicional funciona bem nos países desenvolvidos, do norte, mas não se sustenta politicamente
aqui”.
14
Por seringueiros compreendem-se os trabalhadores rurais, oriundos principalmente do Nordeste, vivendo da
extração do látex e também de outras atividades extrativistas e, portanto, dependentes dos recursos naturais para
a sua manutenção física e social.
28
Sobre essas injustiças, os antropólogos Manoela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida
(2001) expõem que a decadência econômica dos antigos seringais, sobretudo no estado do
Acre, criava oportunidade para a compra de terra barata, das quais eram detentores os
seringueiros que não possuíam os títulos legais da terra. Devido a esse fator, uma das
primeiras tarefas dos compradores das terras era a de expulsar os seringueiros, bem como as
demais populações extrativistas que viviam nas áreas, o que levou esses grupos destituídos de
suas posses ou em ameaça de sê-lo, a se organizar em sindicatos com vistas a resistir a essas
expulsões.
A partir de mobilizações sociais e políticas realizadas naquele estado, inicialmente, no
município Basiléia, sob a liderança de Wilson Pinheiro15, presidente do STR de Basiléia e,
posteriormente, no município de Xapuri, sob a liderança de Chico Mendes, presidente do STR
de Xapuri, houve várias denúncias das práticas predadoras do ambiente natural (como o
desmatamento e especulação fundiária) bem como de injustiças sociais (como assassinatos e
expulsão de milhares de pessoas de suas terras). Nesse sentido, conforme Sant’Ana Júnior
(2004, p. 196):
Juntamente com a organização dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, uma
intensa luta social é desencadeada pelos trabalhadores rurais acreanos,
especialmente pelos extrativistas. Essa luta assume forma de empates16,
acampamentos, comissões a Brasília, pressões sobre parlamentares,
denúncias aos órgãos públicos, demandas judiciais, multidões armadas para
impedir violência contra a posse.
Na década de 1980, o movimento sindical rural no Acre ganhou grande repercussão
nacional e internacional e a liderança de Chico Mendes bem como sua capacidade de
articulação com outros setores sociais – organizações ambientalistas internacionais,
pesquisadores, estudantes, jornalistas, trabalhadores urbanos, dentre outros – trouxeram
visibilidade e reconhecimentos à luta empreendida pelos seringueiros.
Ainda nesse contexto de formação de alianças políticas, os seringueiros de Xapuri,
liderados por Chico Mendes, iniciaram um processo de diálogo junto aos seringueiros e
extrativistas de toda a Amazônia com vistas à realização de um encontro nacional, no qual as
15
Wilson Pinheiro foi uma das principais lideranças do movimento sindical no Acre. O seu assassinato, em 21
de julho de 1980, foi o primeiro de uma série de assassinatos a lideranças importantes no estado e gerou uma
grande revolta entre os seringueiros. (SANT'ANA JÚNIOR, 2004, p. 203).
16
De acordo com Sant’Ana Júnior, os empates eram formas de resistência e luta contra os desmatamentos e
consistiam na tentativa empreendida pelos seringueiros de impedir que os peões contratados para realizar o
desmate alcançassem seus objetivos. Para tanto, os seringueiros lançavam mão tanto do diálogo quanto do
próprio corpo, por meio da formação de barreiras humanas, que impediam o avanço das motosserras e dos peões
nas florestas. O primeiro empate de que se tem notícia foi realizado no município de Basiléia, em março de
1976, sob a liderança de Wilson Pinheiro (SANT'ANA JÚNIOR, 2004, p. 196-197).
29
suas demandas específicas fossem discutidas e efetivadas. Esses diálogos, portanto,
envolviam além de seringueiros, ribeirinhos, pescadores dentre outros grupos. Ainda de
acordo com Sant’Ana Júnior (2004, p. 224):
Após uma série de reuniões e encontros preparatórios nos estados do Acre,
Amazonas, Pará e Rondônia, em outubro de 1985 aconteceu o I Encontro
Nacional dos Seringueiros, em Brasília – DF. Neste encontro foi criado o
CNS (Conselho Nacional dos Seringueiros) que adotou como principal
bandeira a luta pela criação das Resex (...).
Foi no referido encontro que surgiu a proposta de criação da reserva extrativista –
sendo o termo reserva tomado emprestado das reservas indígenas – nas quais as terras não
mais seriam divididas em lotes tendo em vista que uma idéia central na proposta de tais
reservas é a titularidade coletiva e compartilhada sobre os direitos de uso dos recursos
naturais nelas existentes17.
Devido a uma série de alianças políticas internas levadas à cabo por Chico Mendes,
inclusive com os grupos indígenas da região18, constitui-se um movimento social e político
denominado Aliança dos Povos da Floresta. Conforme já mencionado, este movimento tinha
como meta principal a defesa do modo de vida das populações tradicionais amazônicas, cuja
continuidade dependia da conservação da floresta, que estava gravemente ameaçada pelo
desmatamento e pela abertura de grandes rodovias e de pastagens destinadas às fazendas de
agropecuária.
O destaque obtido pelo movimento, somado às pressões internacionais, foi de suma
importância para a elaboração de estudos relacionados à atividade e ao fortalecimento dos
grupos extrativistas, tendo em vista que tal atividade passou a ser exaltada como alternativa ao
impacto ambiental devastador provocado pelos grandes projetos de colonização e
agropecuários.
Dessa forma, o fortalecimento da articulação entre o movimento social dos
seringueiros e o movimento ambientalista, bem como a ampla repercussão nacional e
17
Inspirados nos modelos das terras indígenas, as reservas extrativistas se baseiam no conceito de que são bens
de domínio da União (de forma que evite a sua venda e lhe dê as garantias de que somente gozam os bens
públicos) e de que a transferência do usufruto para os moradores das reservas extrativistas se faria pelo contrato
de concessão de direito real de uso às entidades representativas dos moradores da reserva.
18
Ainda segundo Sant’Ana Júnior, “devido ao brutal processo de ocupação das terras indígenas, no período da
implantação da empresa seringalista, através das correrias [expedições armadas contra os povos indígenas],
seringueiros e índios, tradicionalmente, viam-se como inimigos. Procurando demonstrar que a ambos interessava
a floresta em pé, Chico Mendes buscou estabelecer contatos com lideranças indígenas e seus assessores e
construir uma agenda comum de reivindicações, configurando o que mais tarde se chamou “Aliança dos Povos
da Floresta”. (2004, p. 230-231).
30
internacional do assassinato de Chico Mendes, ocorrido 22 de dezembro de 1988, levou à
criação, em 1990, das primeiras reservas extrativistas19 no país.
De acordo com a definição da Lei nº 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação, a modalidade de unidade de conservação denominada reserva
extrativista é definida como:
Art. 18. Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações
extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e,
complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais
de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e
a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos
naturais da unidade.
Este é o primeiro instrumento jurídico nacional que faz menção ao termo “populações
tradicionais”20 e tem recebido atenção, conforme já destacado, por tratar-se de uma categoria
que tenta conciliar e unir as preocupações ambientalistas com as prerrogativas das
comunidades consideradas tradicionais (CHAMY, 2002, p. 02).
A proposta de criação dessas unidades de conservação passou a ser considerada por
estudiosos e formuladores de políticas públicas, tal como José Heder Benatti, como uma via
de desenvolvimento possível de se tornar eficaz, uma vez que no conceito e na figura jurídica
das reservas extrativistas está presente a influência do socioambientalismo.
Tal como afirma Benatti (2009, p. 547), a reserva extrativista passa a ser vislumbrada
como a reforma agrária das populações tradicionais (posse agroecológica), levado a um
processo de questionamento da forma predatória da ocupação oficial da Amazônia.
Nessa mesma linha argumentativa, Santilli (2007, p.33) ressalta que as reservas
extrativistas surgiram da demanda dos seringueiros por um modelo diferenciado de reforma
agrária a ser desenvolvido na Amazônia, no qual seria levado em consideração a enorme
diversidade cultural e biológica da região e as formas locais de apropriação territorial, o que
não era contemplado pelo modelo tradicional de assentamento proposto pelo Instituto
Nacional de Reforma Agrária (INCRA).
19
O decreto nº 98.863, de 23 de janeiro de 1990, criou a reserva extrativista do Alto do Juruá, de 506.186
hectares, no Acre. Logo depois, em 15 de março de 1990, foram criadas mais três reservas extrativistas: Chico
Mendes, no Acre, de 970.570 hectares; Rio Cajari, no Amapá, de 481.650 hectares; e Rio Ouro Preto, em
Rondônia, de 204.583 hectares (Santilli, 2007, p. 36).
20
Muito embora, a definição jurídica desses grupos, que deveria constar no art. 2º, inc. XV da Lei 9.985/2000
tenha sido vetada pelo Presidente da República ante as divergências existentes sobre a definição até então
existente, como teremos oportunidade de discutir com mais detalhes no Capítulo 2.
31
Tal observação nos permite destacar a existência de diferentes interesses envolvidos
nesse processo de “ambientalização” das demandas sociais, que não estão ligadas somente a
questões de cunho preservacionista/conservacionista. Para além das preocupações ambientais
propriamente ditas, existem interesses motivados por diferentes fatores, a depender das
expectativas dos agentes envolvidos.
A essencialização realizada em torno dos diferentes grupos sociais identificados como
tradicionais, ou seja, a sua associação direta a agentes voltados para a proteção e defesa das
florestas e demais recursos naturais, não permite perceber outros interesses envolvidos nesse
processo de ambientalização de discursos e práticas.
Ao levantar essa questão, não se quer deslegitimar as práticas desses grupos – que, de
maneira geral, apresentam-se de fato menos impactantes ao meio ambiente quando
comparadas aos demais setores da sociedade associados a outros modos de vida – mas sim
evidenciar que o objetivo imediato desses grupos, ao estabelecer alianças e estratégias com
demais agentes e instituições nacionais e internacionais (e exemplo de ONGs, institutos de
pesquisa, universidades etc.), tinha em vista a manutenção de seu território e preservação de
suas formas de vida.
Não se tratam, portanto, de práticas e discursos racional e conscientemente articulados
ao discurso ambientalista, mas que, de forma, imediata ou incidental, referem-se à
preservação dos recursos naturais.
Da mesma forma, pode-se afirmar que agentes situados nos movimentos sociais e
ambientais, bem como em instituições internacionais de desenvolvimento e pesquisa, também
possuem outros interesses, muito deles se sobrepondo a preocupação de cunho estritamente
ambiental, como acesso a recursos econômicos assim como legitimidade e prestígio.
Essa complexa rede articulada em torno das discussões ambientais, na qual impera, na
maioria das vezes, o “bom uso do mau entendido”, nas palavras de Benjamim Bouclet (2009),
é composta por uma grande diversidade de agentes, com suas especificidades interpretativas e
cognitivas relacionadas com diferentes visões de mundo orientadoras das suas práticas e
discursos.
A rede de mediadores articulada em torno da produção e reprodução de categorias,
dentre elas a de “povos e comunidades tradicionais”, é composta por atores sociais que, por
deterem propriedades políticas e sociais, conseguem transitar entre vários mundos sociais,
dominar códigos aplicáveis a cada um deles e mediar a passagem de um mundo para o outro.
Nesse contexto, é interessante destacar alguns elementos sobre a mediação, que
ajudam a pensar sobre o caso em estudo. De acordo com Wolf (2003), o instituto da mediação
32
pode ser entendido como uma ligação entre os níveis da comunidade e da nação, ligação esta
realizada por grupos sociais estratégicos. Ainda conforme o autor, esses grupos – que podem
ser distinguidos entre os orientadores para as comunidades e orientadores para a nação – usam
da influência das suas posições intermediárias para, atuando em diferentes níveis da
sociedade, manipular interesses.
Assim, os sistemas legais, políticos e outros não são fechados, mas possuem
dimensões sociais e culturais que não podem ser compreendidas em termos puramente
institucionais. Para Wolf (2003, p. 75), “as instituição não passam, em última análise, de
padrões culturais para relação de grupos”, de forma que mudanças nas relações e nos
interesses devem ser consideradas caso se pretenda refletir sobre outras dimensões da
“realidade” institucional.
Dessa forma, os mediadores se articulam em uma malha de conexões, ou rede de
relações de grupos, que conecta os diferentes interesses entre comunidades e nação. Isto,
posto, percebe-se que os mesmos devem ser capazes de adotar padrões apropriados de
comportamento público, que os possibilitem manipular laços sociais em diferentes grupos.
Conforme Wolf (2003, p. 83):
Os indivíduos capazes de atuar em termos de expectativas tanto orientadas
para a comunidade como para a nação tendem a ser selecionados para a
mobilidade. Eles se tornam os “intermediários” econômicos e políticos das
relações nação-comunidade, função que traz suas recompensas.
Dessas considerações, decorrem a reflexões sobre as formas em que os grupos sociais
se organizam e reorganizam, com conflitos e acomodações, em torno dos principais eixos
econômicos e políticos da sociedade, ou seja, a disputa por reconhecimento, espaço e poder.
No caso em estudo, isso nos leva a reflexão sobre as agências internacionais de
desenvolvimento e os diferentes atores envolvidos no processo de “invenção” desse termo, as
simbologias ativadas, as lógicas de articulação dos diferentes agentes envolvidos e os
interesses desses mediadores envolvidos na disputa pela legitimidade da discussão sobre a
questão socioambiental.
33
1.2 A construção da ideologia e do discurso desenvolvimentista
O uso corrente da expressão desenvolvimento por políticos e pesquisadores das mais
diversas áreas de conhecimento terminou por transformá-la em uma categoria de uso comum,
naturalizada e fortemente enraizada na percepção espontânea dos mais diversos segmentos
sociais. Diante disso, e com vistas a melhor compreender os usos e desusos do termo, se faz
necessário realizar uma revisão conceitual da expressão e para tanto nos utilizaremos das
contribuições de antropólogos que trabalham com a crítica a essa noção e demonstram em
seus estudos as simplificações, contradições, equívocos e violências subjacentes a essa
categoria.
Inicialmente, mencionamos o estudo de Gustavo Esteva (2000b) que, com o propósito
de “desvelar el secreto del desarrollo y de verlo em toda su crudeza conceptual” (ESTEVA,
2000b, p. 67), realiza um exercício de elencar as diferentes acepções que a expressão assumiu
ao longo da história, bem como de relacionar essas acepções às práticas acriticamente
realizadas em prol dessa ideologia.
Para o autor, estudar o desenvolvimento é tratar de uma das ideologias mais arraigadas
e manipuladas por economistas, políticos e cientistas, contudo, é um exercício necessário,
sobretudo para que se possa tomar uma posição crítica frente a esta categoria e,
conseqüentemente, defender outras formas de sobrevivência que não as pautadas no modelo
ocidental.
Pontua Esteva (2000b) que o termo desenvolvimento, em seu sentido mais comum,
refere-se ao processo biológico por meio do qual um objeto ou organismo alcança a sua forma
natural, chegando à completude. Prossegue afirmando que embora os estudos de Wolf (1759)
e Darwin (1859) tenham propiciado posteriores correlações entre as esferas biológica e social,
inclusive fortalecendo a interpretação de que termos como evolução e desenvolvimento
podem ser utilizados como sinônimos – foram os estudos de Karl Marx que mais contribuíram
para que o termo desenvolvimento passasse a ser vislumbrado como uma categoria central da
análise das ciências sociais.
Para Karl Marx, ainda segundo Esteva (2000b), devido à estreita proximidade entre
fenômenos naturais e sociais, as leis da natureza poderiam também ser aplicadas às leis da
história, sendo estas as responsáveis por levar a espécie humana à evolução e ao
desenvolvimento.
Tal interpretação dos fatos históricos tomando por base fenômenos ou leis naturais
passa a ser cristalizada e, nesse processo, o conceito de desenvolvimento se impõe a todas as
34
culturas e povos indistintamente. Também era comum a interpretação de que o
desenvolvimento nos moldes evolucionistas se impunha às sociedades humanas como um
imperativo, devendo por isso ser seguido por todos os grupos humanos.
Com o passar do tempo, tal expressão passa a ter um grau de abrangência maior,
designando processos mais amplos, de forma a se tornar difícil definir exatamente seu
significado, uma vez que a palavra passa a ser aplicada a todas as coisas e criaturas.
Agregam-se novas significações que visam complementar o sentido da palavra
desenvolvimento e, nesse processo, termina-se contribuindo para que ela perca seus
contornos, passando a assumir diferentes significados a depender do contexto.
Conforme destaca Esteva (2000b), palavras que ajudaram na sua formação – como
crescimento, evolução, maturação – se mesclam a outras – bem estar, humano, sustentável –
na tentativa de conferir ao desenvolvimento uma especificidade de conteúdo, contudo, tal
tentativa leva a uma cegueira de pensamento e ação.
A título de exemplo, podemos mencionar a definição “desenvolvimento sustentável”,
que ganha força a partir da década de 1970 e se apresenta como alternativa aos graves
problemas sociais e ambientais ocasionados pela exploração de recursos naturais.
A expressão “desenvolvimento sustentável” se tornou central nos discursos das
instituições internacionais de desenvolvimento, bem como nos movimentos sociais nacionais
relacionados com a questão socioambiental. Acerca do conteúdo e significado desta
expressão, Sant’Ana Júnior e Muniz (2009, p. 258) pontuam:
O conceito de desenvolvimento sustentável tenta estabelecer meio ambiente
e desenvolvimento como binômio indissociável, em que questões sociais,
econômicas, políticas, culturais, tecnológicas e ambientais encontram-se
sobrepostas. Essa postura assume um significado político-diplomático na
medida em que estabelece os princípios gerais que norteariam um
compromisso político em escala mundial com vistas a propiciar o
crescimento econômico sem a destruição dos recursos naturais.
Muitas críticas são feitas a tal definição, como por exemplo, a afirmação de que a
adjetivação do desenvolvimento visa tão somente utilizar uma nova palavra para mascarar
velhos modelos de crescimento econômico, além da extrema heterogeneidade de atores
sociais que utilizam e adotam esse conceito de forma corrente, ainda que os seus objetivos e
práticas sejam bastante contrários ao discurso propalado. Nesse sentido, conforme destaca
Benjamin Buclet (2011, p. 138):
Se as promessas do desenvolvimento sustentável são atraentes, existem
muitas críticas, às vezes justificadas. Alguns autores vêem-na como a nova
religião dos países ricos, outros como uma nova razão para continuar a
exploração do terceiro mundo pelos países desenvolvidos, e outros ainda
35
como uma utopia pouco clara e irrealista, que não dá conta da complexidade
da economia do mercado. (...) O desenvolvimento sustentável se tornou uma
idéia universalmente aceita, e não existe hoje uma só organização ou
instituição que se declare contra ela: conceito proteiforme, cuja definição se
adapta àquele que o estiver usando, o desenvolvimento sustentável perdeu o
sentido.
A expressão apresenta-se ainda, sobretudo, sob a forma de um compromisso político
pautado na possibilidade de imbricação entre crescimento econômico e preservação do meio
ambiente (SANT’ANA JÚNIOR e MUNIZ, 2009, p.258).
Contudo, tal compromisso político, ante as constatações de que a sustentabilidade
buscada é, sobretudo, do próprio sistema capitalista, é de difícil consecução, pois visa
conciliar lógicas sobre os usos e representações dos recursos naturais que são antagônicas.
Isso acarreta no fato de que o chamado desenvolvimento, embora, associado a
processos favoráveis (como engrandecimento, avanço, progresso, etc...) não é vivenciado
desta forma pela maior parte da população mundial.
Assim, as definições usuais de desenvolvimento – quais sejam, as que designam o
processo histórico de transição para uma economia moderna, industrial e capitalista e as que
identificam o desenvolvimento com sustentabilidade, aumento da qualidade de vida,
erradicação da pobreza e consecução de melhores indicadores de bem estar material –
parecem cada vez mais insustentáveis, posto que por trás das proclamadas benesses do
desenvolvimento, ocultam-se processos contrários àqueles divulgados e desejados.
É nesse sentido que Andreu Viola (2000, p.11) destaca que a palavra
“desenvolvimento” se converteu em uma palavra fetiche, carregada de ideologias e prejuízos
e que funciona como um poderoso filtro intelectual da nossa percepção do mundo
contemporâneo.
Para o referido autor, a ocultação dos processos maléficos do desenvolvimento e os
prejuízos acarretados à percepção de que o discurso propalado não corresponde à prática
podem ser atribuídos a dois fenômenos correlatos: o economicismo e o eurocentrismo.
Acerca do economicismo, o autor destaca a centralidade da teoria econômica
neoclássica na configuração de imagens dominantes do desenvolvimento, entre elas, a
identificação do desenvolvimento com o crescimento econômico e com a difusão da
economia de mercado indistintamente.
Já com relação ao eurocentrismo, Andreu Viola ressalta que o mesmo é inerente ao
discurso do desenvolvimento, uma vez que o modelo de sociedade européia e ocidental é
adotado como parâmetro para definir o grau de atraso ou progresso dos diferentes povos.
36
Para o autor, a ideologia do desenvolvimento, fundamentada nesses dois fenômenos,
pressupõe uma determinada concepção da história da humanidade e das relações entre homem
e a natureza e, ao assumir um modelo implícito de sociedade considerado como
universalmente válido e desejável, se pretende uma visão de mundo única e legítima.
Essa ideologia em torno da qual se construiu o discurso do desenvolvimento tem como
marco de generealização, conforme apontam alguns estudiosos (ESCOBAR, 1996; VIOLA,
2000; ESTEVA, 2000b), o final da Segunda Guerra Mundial, mais especificamente o
pronunciamento de posse do presidente norte-americano Harry Truman, em 1949.
Conforme pontua Esteva (2000b, p. 68), o presidente estadunidense consegue fazer
com que a palavra desenvolvimento passe a ocupar um lugar até então não alcançado na
história geopolítica, ao mesmo tempo em que atribui para os Estados Unidos da América a
missão de difundir os benefícios da ciência e da tecnologia por todas as partes do globo.
A partir dessa representação, os norte-americanos se autointitularam desenvolvidos, ao
mesmo tempo em que converteram os países mais pobres em subdesenvolvidos, devido sua
posição de subordinação ante as grandes potências e sua situação de miserabilidade. Assim,
grande parte da humanidade passa a ser retratada como massas de pessoas mal-nutridas,
incultas e doentes, habitando o hemisfério sul do globo terrestre.
Arturo Escobar (1996) afirma que o termo desenvolvimento – compreendido nos
moldes difundidos pelo discurso economicista estadunidense pós década de 1940 – deve ser
vislumbrado como um regime de representação, uma invenção, que acaba criando práticas e
realidades e converte-se em uma certeza no imaginário social.
Essa certeza, conforme pontua Escobar (1996), nada mais é do que uma forma
ocidental de criar e representar o mundo, capaz de dominar pensamentos e ações de grupos
sociais inteiros. Nesse processo de dominação, ocorre uma espécie de conversão dos agentes
sociais, além da institucionalização de uma série de estereótipos, capazes de submetê-los,
domesticá-los e reprimi-los.
Perfazendo brevemente a história social desse regime de representação, Escobar
afirma que o segundo pós-guerra marcou a eclosão do termo desenvolvimento no cenário
internacional e, juntamente com ele, termos como pobreza e terceiro mundo, também foram
descobertos – ou melhor, redefinidos – e utilizados para designar os integrantes e os países da
África, da Ásia e da América Latina.
Com relação a esse processo, escreve o autor:
En 1948, cuando el Banco Mundial definió como pobres aquellos países con
ingreso per cápita inferior a 100 dólares, casi por decreto, dos tercios de la
37
población mundial fueron transformados en sujetos pobres. Y si el problema
era de ingreso insuficiente, la solución era, evidentemente, el crecimiento
económico (ESCOBAR, 1998, p. 55).
Tal crescimento deveria ser posto em marcha pelos tecnólogos e cientistas dos países
europeus e, principalmente, dos Estados Unidos da América. Este país, após a ocorrência das
duas guerras mundiais, passou a assumir uma posição de proeminência militar e econômica, o
que contribuiu para que os estadunidenses passassem a se sentir legitimados e autorizados a
intervir nas situações dos países tidos como subdesenvolvidos.
A criação de institutos e agências internacionais também deve ser apontada como fator
de grande importância no contexto de interferências internacionais nos países pobres, pois
esses institutos reivindicavam para si o conhecimento e o poder para nomear, categorizar e
representar os demais grupos humanos de acordo com suas conveniências.
Dessa forma, o discurso desenvolvimentista elabora categorias nomeadoras de sujeitos
universalizados e pré-construídos, que devem ser transformados pela intervenção direta dos
chamados países desenvolvidos.
Conforme Escobar (1998), todo um regime de representação é constituído, de forma
que a ciência e a tecnologia, ambas voltadas para atender às expectativas economicistas,
passam a ser destinadas à garantia, implantação e à execução de mecanismos de controle e
dominação.
Tal processo, conforme assinalado se torna possível a partir da elaboração e aplicação
de um sistema de intervenções técnicas, cuja função é levar aos grupos humanos (concebidos
como populações destituídas de singularidade ou constituídas apenas por carências) bens e
serviços a serem aplicados também de forma universalizante, desconsiderando-se
especificidades próprias aos diferentes povos e grupos sociais.
Esse sistema de intervenções técnicas encontra embasamento e justificação intelectual
na ciência moderna, que se apresenta como um sistema universal e neutro, embora, em
verdade, seja um projeto de construção retórica da ciência ocidental, conforme assinala
Vandana Shiva (1998).
Para esta autora, o conhecimento científico sobre o qual se baseia o processo de
desenvolvimento é, em si, uma grande fonte de violência, pois “resultó ser un proyecto
patriarcal, que excluyó a las mujeres como expertas, y simultáneamente excluyó como ciencia
los modos ecológicos y holísticos de conocimiento que entienden y respetan los procesos e
interconexión de la naturaleza” (SHIVA, 1998, p. 46).
38
Para Shiva (1998), a neutralidade com a qual a ciência moderna se reveste nada mais é
do que produto de uma construção histórica, como são todas as demais categorias construídas
socialmente, tal como o próprio desenvolvimento. Por meio dessa construção, se torna
possível a esse projeto científico moderno apresentar conceitos reducionistas como
verdadeiras representações da realidade, legitimando assim a centralização e a dominação de
grupos inteiros, em nome da ciência.
Cumpre ainda destacar que um dos elementos fundamentais para a construção do
discurso do desenvolvimento refere-se ao que Andreu Viola (2000, p. 20) nomeia de
“maquinaria de conhecimento e poder”. Tal maquinaria relaciona-se à despolitização dos
problemas socioeconômicos e culturais e a sua consequente transformação em problemas
técnicos, que são solucionados pelos profissionais dos países desenvolvidos.
Essa maquinaria, por sua vez, se apóia em uma linguagem tecnicista e burocrática
responsável pela produção de representações e etiquetas que identificam a população ou
segmentos da população com problemas que devem ser corrigidos.
Nesse “campo institucional de saber” (Escobar, 1996), os discursos são produzidos,
registrados e postos em circulação e, nesse processo, as instituições internacionais criadas no
segundo pós-guerra exercem um papel fundamental.
Conforme
Escobar
(1996),
ao
incorporarem
o
sentimento
paternalista
e
“salvacionista”, numa espécie de metáfora da infantilização dos países pobres que necessitam
da tutela e da orientação dos adultos para lhes guiar, tais instituições fomentam os valores
culturais modernos por meio da apresentação da ciência e tecnologia como instrumentos
benéficos e neutros para a consecução das intervenções.
Tais intervenções são pautadas na relação agente e cliente, construção social que se
estrutura mediante mecanismos burocráticos e textuais que antecedem à interação. Nesse
sentido, conforme assinala Escobar:
Los expertos en economía, demografía, educación, salud pública y nutrición
elaboraban sus teorías, emitían sus juicios y observaciones y diseñaban sus
programas desde estos espacios institucionales. Los problemas eran
identificados progresivamente, creando numerosas categorías de “clientes”.
El desarrollo avanzó creando “anormalidades” (como iletrados,
subdesarrollados, malnutridos, pequeños agricultores o campesinos sin
tierra) para tratarlas y reformarlas luego. Estos enfoques habrían podido
tener efectos positivos como alivio de las restricciones materiales, pero
ligados a la racionalidad desarrollistas se convirtieron, dentro de esta
racionalidad, en instrumento de poder y control (1996, p. 90).
39
Para Escobar (1996), a construção de categorias de clientes exerce uma influência
muito grande na construção das realidades e, consequentemente, na própria criação do mundo
em que vivemos.
O autor defende a tese de que as práticas rotineiras e textuais das instituições
contribuem para estruturar as condições nas quais as pessoas pensam e vivem e que tais
práticas são assentadas em esquemas e procedimentos implícitos, “que organizan la realidad
de una situación dada y la presentan como hechos, como la forma de ser de las cosas” (1996,
p. 207).
Assim, as formas textuais e documentais são um meio de representar e preservar uma
dada realidade, num fenômeno denominado por Escobar (1996) de “produção institucional da
realidade social”. Contudo, conforme o referido autor procura demonstrar, o discurso do
desenvolvimento se difunde através de um campo de práticas que tem relação direta com as
instituições concretas que organizam tantos os tipos de conhecimento como as formas de
poder, relacionando uns e outros na produção das formas sociais e da realidade pretensamente
“retratada”.
Esta produção institucional é apontada pelos profissionais das instituições e do
governo como um sistema de ação racional, no entanto tais produções, expressas por textos e
documentos oficiais, estão inevitavelmente desligadas do contexto histórico da realidade a
qual supostamente representam.
Tal fato nos leva a afirmar que nos discursos e nas práticas têm prevalecido as relações
de poder que garantem a reprodução material, cultural e ideológica das instituições. Percebese ainda que nesses processos institucionais e governamentais “una cierta subjetividad es
privilegiada, al mismo tiempo que se margina la de aquellos que se suponer receptores del
progreso” (ESCOBAR, 1996, p. 206).
No processo de formação do discurso do desenvolvimento, o conhecimento e
competência necessários convergiam para os profissionais das instituições internacionais, que
detinham a autoridade moral, profissional e legal para classificar e definir estratégias.
Dessa forma, conforme aponta o próprio Escobar (1996), falar de desenvolvimento
como construção histórica requer uma análise dos mecanismos que estão estruturados por
formas de conhecimento e poder e que podem ser estudados em termos de seus processos de
institucionalização e profissionalização.
Nesse sentido, o recrutamento de profissionais das mais diferentes áreas de
conhecimento científico possibilita que os problemas vivenciados pelas populações dos países
ditos subdesenvolvidos sejam traduzidos em linguagem científica pelas agências e instituições
40
internacionais de desenvolvimento, que possuem o instrumental moral, jurídico e científico
para solucioná-los.
La pobreza, lo analfabetismo e hasta el hambre se convirtieron en fuente de
una lucrativa industria para los planificadores, los expertos y los empleados
públicos. Ello no significaba negar que en ocasiones el trabajo de estas
instituciones ha beneficiado a las gentes. Significa, en cambio, subrayar que
el trabajo de las instituciones de desarrollo no ha sido un esfuerzo inocente
hecho en nombre de los pobres. Significa que el desarrollo ha tenido éxito en
la medida en que ha sido capaz de integrar, administrar y controlar países e
poblaciones en formas cada vez más detalladas y exhaustivas (ESCOBAR,
1996, p. 99).
Nesse contexto se inserem as discussões acerca da construção da categoria “povos e
comunidades tradicionais”, bem como da reprodução, via documentos textuais dos
organismos internacionais, de valores, idéias e conceitos relacionados à ideologia fomentada
pelas instituições internacionais.
Antes de adentrarmos na análise de alguns desses documentos textuais, é necessário
fazer uma breve reflexão acerca das “estratégias internacionais” que visam à importação de
modelos políticos, institucionais e ideológicos de origem ocidental (DEZALAY & GARTH,
2000; BADIE & HERMET, 1993; GUILHOT, 2003), uma vez que tais estratégias são
responsáveis por assegurar a hegemonia de uma determinada visão política, muito embora, tal
processo ocorra de forma “imperceptível”, sobretudo para os importadores.
1.3 Instituições internacionais no processo de importação de modelos
Os autores Dezalay e Garth (2000), no intuito de evidenciar a importância da
circulação internacional de tecnologias institucionais e das definições do direito nos processos
de mudança de Estado, forjaram o conceito de “estratégia internacional” que muito nos ajuda
a pensar o caso em estudo.
Esses autores concebem-na como a “forma pela qual os indivíduos usam capital
internacional – títulos universitários, conhecimento técnico, contatos, recursos, prestígio e
legitimidade obtida no exterior – para construir suas carreiras em seus países natais”
(DEZALAY & GARTH, 2000, p. 164). Este capital internacional, traduzido, sobretudo, por
meio da produção de conhecimento técnico, tem como centro de produção e difusão os
Estados Unidos e suas instituições.
41
Tais profissionais (técnicos políticos, politólogos, experts...) “formatados” e
“certificados” pelos centros universitários e institutos de pesquisa norteamericanos, “tendem a
falar as mesmas línguas, tanto técnica como linguisticamente, e a circular com relativa
facilidade entre diferentes países – e bancos multilaterais, organizações não-governamentais,
escritórios de advocacia e centros de pesquisa que assessoram a administração pública”
(DEZALAY & GARTH, 2000, p. 164).
Percebe-se, portanto, o processo de criação de um mercado internacional de
conhecimento engendrado pelas instituições dos Estados Unidos, no qual discursos e
ideologias construídos têm potencial para circular por todo o mundo, abrindo precedentes para
intervenções práticas nos mais diferentes países, sem que se atente para as especificidades dos
mesmos.
Nesse sentido, a denominação “dinâmicas órfãs”, elaboradas pelos autores Badie e
Hermet (1993, p. 181), ajuda a pensar sobre a situação dos Estados periféricos que importam
modelos (políticos, institucionais e ideológicos) que não são produtos da história social e
política interna, o que, consequentemente, leva-os a sujeitarem-se a reprodução de uma
estrutura de hierarquização e dominação.
Ainda de acordo com estes autores, há uma estreita relação entre a “homogeneização
dos âmbitos políticos” e o nascimento de um “sistema internacional”, que propicia a
circulação de modelos de governo e de um código comum para todos os atores do sistema
internacional, concorrendo para a universalização de alguns aspectos da prática estatal
hegemônica.
Como já destacado, esse processo de circulação de modelos e códigos tem como
consequência o estabelecimento de relações de dependência econômica, política e militar
entre os Estados produtores e Estados periféricos, ou importadores de modelos. Nesse sentido,
segundo Badie e Hermet (1993, p. 181):
Así, pues, es peligroso e costoso introducir en las sociedades periféricas un
modelo estatal importado: donde quiera se perpetua y a la larga define los
contornos de un ‘Estado hibrido’ que conviene delinear para observar que
consagra una ruptura con la tradición lo bastante profunda para dar lugar a
“dinámica huérfana”.
Nicolas Guilhot (2003), também refletindo sobre esse mercado internacional de
importação de modelos, destaca o papel central ocupado pelos “profissionais da democracia”
no que ele denomina de indústria extremamente promissora, qual seja, a indústria voltada para
o financiamento de reformas do Estado e beneficiamento de inúmeros agentes e instituições
42
internacionais (consultores, ONG, centros de pesquisa universitária, associações profissionais
etc.).
Tal mercado – que conforme Guilhot se configura como “cruzadas democráticas” –
visa exportar um modelo de democracia para os países periféricos e, ao mesmo tempo,
assegurar o controle e a dominação desses “novos Estados”.
Isso se deve, dentre outros fatores, à ramificação desses “profissionais da democracia”,
que acumulam diferentes posições, se interpenetram em redes e mobilidades múltiplas e
perpetuam seu poder por diferentes países. Assim, esses profissionais, para além de parecerem
pertencer a instituições plurais e diferenciadas, frequentemente ocupam posições acumuladas
e contiguas ao espaço social norteamericano.
Existe, portanto, uma relativa homogeneidade entre esses experts especializados nos
problemas de transição para a democracia e na difusão do sistema de direitos humanos, que
atuam, concomitantemente, em instituições “ditas” privadas (embora financiadas com
dinheiro público) e em instituições governamentais.
Diante das observações realizadas por Guilhot (2003) – que se situam no âmbito da
análise do processo de criação e expansão do Fundo Nacional para a Democracia, criado pelo
governo norteamericano em 1983, no contexto da Guerra Fria –, percebe-se de que forma se
disfarça com uma fachada científica intervenções eminentemente políticas. Disso decorre que
há um equívoco em conceber fronteiras rigidamente estabelecidas entre os interesses estatais e
os interesses dos ativistas internacionais. Conforme o autor:
As demarcações institucionais, todas feitas entre o governamental e o não
governamental, o estatal e o não estatal, são inoperantes se quisermos
compreender o modo de construção desse campo, que se desenvolveu
precisamente para além de tais divisões. Por outro lado, vale perguntar se
esses discursos científicos não fazem parte dos dispositivos pelos quais, por
assim dizer, os interessados constroem a imagem pública de seu desinteresse
(GUILHOT, 2003, p. 211).
Essa situação de importação de sistemas internacionais e de intercâmbio entre esferas
aparentemente opostas pode ser bem visualizada em dois estudos realizados por Benjamim
Buclet, o primeiro acerca dos peritos não governamentais e sua atuação em pesquisas voltadas
para o estudo da biodiversidade amazônica (BUCLET, 2009) e o segundo sobre a descrição
das ONGs21 e suas atividades na Amazônia Ocidental, analisando o seu papel na definição de
políticas públicas (BUCLET, 2011).
21
Adotamos a definição de ONG exposta por Buclet (2011, p. 141), para quem trata-se de “uma associação de
direito privado, sem fins lucrativos (o lucro deve ser reinvestido inteiramente dentro das estruturas), que atua
para o benefício público e que se coloca, em nome da sociedade civil, como mediadora entre: 1) certas categorias
43
No primeiro estudo, o autor questiona a independência das ONGs ambientalistas frente
aos seus respectivos financiadores internacionais e, tendo por pressuposto o fato de que essas
ONGs, por meio de suas perícias, condicionam a “voz oficial” do governo em matéria
ambiental (Ministério do Meio Ambiente), questiona também a possibilidade de se efetivar a
soberania nacional no contexto da internacionalização do movimento socioambiental.
Acerca da relação estabelecida entre os agentes representativos das ONGs
ambientalistas e agentes governamentais, Buclet (2009, p. 98) afirma:
De um lado, as ONGs são usadas por burocratas de ministérios de menor
força política (como é o caso do MMA), que tem interesse em criar alianças
para adquirir peso nas negociações governamentais internas. Por outro lado,
o jogo do mercado (e com certeza, uma forma de desejo de poder) incentiva
as ONGs em aceitar as aproximações, facilitadas pela proximidade dos
percursos individuais em termos de educação, formação e trajeto
profissional.
A partir das análises desenvolvidas por Buclet sobre o IPAM e o IMAZON, duas
ONGs bem posicionadas no contexto nacional e internacional, o autor demonstra que os perfis
profissionais dos membros dessas instituições revelam uma aproximação com os dos agentes
situados no âmbito governamental, ou seja, há similaridade de formação, o que pode ser
atestado por meio de publicações conjuntas, consultorias, etc.
Em ambos os casos, também se percebe uma estreita conexão com instituições de
ensino e pesquisa dos Estados Unidos, haja vista que, sobretudo no caso das ONGs, é possível
perceber lógicas de importação e exportação de perícia ambiental que tem nas universidades
norte americanas o seu centro de referência.
Cumpre ainda destacar que é na formação norteamericana que os agentes estão
expostos à produção e à aquisição de sentidos e valores e que essa formação os condiciona a
se submeterem – embora de forma não perceptível – a uma lógica de importação de trabalho,
ou seja, ao mercado do desenvolvimento.
Conforme ressalta Buclet (2009, p. 99), as ONGs existem porque respeitam as lógicas
estruturais do mercado do desenvolvimento, constituído de ofertas e demandas e, portanto,
devem justificar a sua existência por meio da extrema profissionalização dos seus membros e
da venda e compra de produtos (que assumem a forma de projetos, programas, discursos,
idéias, conceitos, técnicas...).
de população (geralmente desfavorecidas) e o poder público; 2) o meio ambiente (no sentido amplo) e a
sociedade como um todo”.
44
Essas lógicas estruturais do mercado, por seu turno, levam ao isoformismo normativo
– compreendido como a divulgação e aceitação dos mesmos conceitos, idéias e ferramentas
pelas ONGs, fundações, organizações comunitárias e agências bilaterais – e isoformismo
institucional – que se refere à uniformização das ONGs e à padronização do seu
funcionamento segundo a ortodoxia do desenvolvimento.
Esses isoformismos possibilitam que essas instituições utilizem conceitos, idéias e
ferramentas parecidas, ainda que não haja uma concordância sobre o seu significado.
Importante destacar, portanto, que “os financiamentos seguem orientações que dependem das
tendências do momento no ‘mercado internacional da solidariedade’, que são baseados sobre
conceitos, freqüentemente resumidos a uma palavra, ou expressões, geralmente mal definidas
e sempre polêmicas” (BUCLET, 2009, p. 106).
Acerca desse “mercado internacional da solidariedade”, Buclet (2011, p.139) destaca
que o processo de expansão do terceiro setor no país foi influenciado sobremaneira pelo
contexto internacional. Disso decorre que a definição das políticas públicas implementadas no
Brasil pós década de 1980 eram orientadas, sobretudo, pelas definições e postulações das
organizações multilaterais.
Nesse contexto, as ONGs exerceram – e ainda exercem – um importante papel nessa
“transfusão” de ideias entre os contextos internacional e nacional e isto ocorre devido ao fato
de que, de acordo com Buclet (2011, p.147), o campo de atuação das ONGs está estritamente
relacionado ao campo do desenvolvimento, dados os laços evidentes destas instituições com
as agências de cooperação internacional. Conforme destaca o autor:
Sem falar aqui dos financiadores, é relevante ressaltar que todas as ONGs
pesquisadas tem relações diretas com o exterior: através de seus fundadores
(vindos de outros países ou de outras regiões do Brasil), através das suas
ligações com o mundo acadêmico internacional ou através das relações
interpessoais dos seus líderes. Estas ligações internacionais são construídas
em torno da adesão a uma certa concepção de sociedade (BUCLET, 2011, p.
147).
Tal vínculo com o campo internacional de desenvolvimento, portanto, possibilita a
adoção e disseminação no contexto nacional de valores universais e globais, uma vez que os
projetos de intervenção elaborados resultam de interpretações da realidade local feita pelos
agentes integrantes da ONGs, que os elaboram a partir dos referenciais que, como destacado
anteriormente, são externos, internacionais. Nesse sentido, segundo afirma Buclet (2011, p.
149):
O forâneo tende a ver a realidade a partir de seus conhecimentos e
experiências, ou seja, interpreta o que vê segundo seus próprios valores,
45
objetivos e preocupações. Os projetos são então, em larga medida, o
resultado de uma leitura externa da realidade local.
Ressalte-se ainda que, para além desses valores, a própria lógica de estruturação
dessas instituições deve se submeter à lógica do mercado de desenvolvimento e essa
adequação pode ser constatada na mudança de perfil dessas instituições ao longo das últimas
décadas.
Percebe-se uma mudança da perspectiva militante para uma perspectiva mais técnica,
com exigência de competências e habilidades específicas, dadas as novas exigências por parte
dos financiadores internacionais (normas de avaliação, planejamento e de quantificação da
eficiência das ações) e a escassez de recursos financeiros, levando a uma maior competição
entre as ONGs na busca por financiamentos, tanto das agências de cooperação internacional,
quanto do poder público.
Nesse sentido, as reflexões de Henri Acserald (2010) acerca da mudança de projetos
dos movimentos ambientalistas processadas a partir da década de 1990, corroboram com as
análises realizadas no que se refere à profissionalização das ONGs ambientalistas.
De acordo com este autor, a noção de “movimento ambientalista” tem sido evocada no
Brasil para designar um espaço de circulação de discursos e práticas associados à “produção
ambiental”, configurando uma “nebulosa associativa” formada por um conjunto bastante
diversificado de organizações com diferentes graus de estruturação formal.
A expressão “nebulosa associativa” é utilizada por Acserald a partir das reflexões
desenvolvidas pelo autor André Micoud (2001, apud ACSERALD, 2010) sobre o
ambientalismo francês. Para Acserald, este termo é plenamente adequado ao caso brasileiro,
“tanto pelo caráter disseminado e multiforme do conjunto de instituições que a noção
compreende, como pela nebulosa intransparência que envolve crescentemente certos
procedimentos de ambientalização” (ACSERALD, 2010, p. 104).
A década de 1990 possibilita a percepção de uma importante mudança no
ambientalismo brasileiro, sobretudo no que concerne a sua institucionalização. A partir desse
período, surgem organizações com corpo técnico e administrativo profissionalizado e com
grande capacidade de captação de recursos financeiros.
Acserald (2010, p. 107) assinala ainda que tal profissionalização corresponde a um
processo de
substituição de um “ecologismo contestatório” por uma atuação técnico-
científica, visando resultados práticos e aferíveis, o chamado “ecologismo de resultado”,
propósito comum a organismos multilaterais, governos e empresas poluidoras.
46
Percebe-se ainda nessas instituições, além de uma aproximação com o mercado por
meio do fornecimento de “soluções discursivas, mediação e legitimação ao processo de
ambientalização das empresas” (ACSERALD, 2010, p. 105), uma tendência, já assinalada
anteriormente, de aproximação com o setor ambiental do governo, fornecendo informação,
perícias ou mediação de conflitos. Sobre esse processo, Acserald (2010, p. 106) destaca:
A tendência observada à cientificização das políticas ambientais teve por
contrapartida uma tendência a cientificização dos movimentos, a tecnocracia
oficial é confrontada por contraperícias, e, ao chamado “setor ambiental do
governo”, passa a corresponder uma comunidade ambiental de associação de
especialistas. Formam-se instituições de caráter para-administrativo que
funcionam como nós de redes, ora estando no Estado, ora servindo como
correia de transmissão para a execução de suas políticas, via prática
pedagógica ou de consultoria. Muitas dessas organizações tendem a dar
prioridade ao pragmatismo da ação eficaz do que aos dispositivos
democráticos e de organização da sociedade.
No mesmo sentido, afirma Buclet que o ambiente de atuação das ONGs passa por esse
processo de profissionalização devido às modificações das leis do mercado, levando,
consequentemente, a um maior investimento no aspecto técnico dos projetos e no
fortalecimento de redes de relações entre profissionais das ONGs, setores do funcionalismo
público e pesquisadores vinculados a institutos de pesquisa e universidades.
Assim as ONGs, dado o contexto competitivo no qual se inserem, passaram a ser mais
requeridas na criação e gestão de projetos e também na busca de financiamentos para
acessarem recursos o que, por sua vez, acarretou na profissionalização das suas ações. De
modo geral, Buclet (2011, p. 146) destaca como características dessa profissionalização ditada
pelas leis do desenvolvimento as seguintes:
1) Investe-se mais na tecnicidades dos projetos, o que compreende sua
elaboração, seu monitoramento e avaliação, sendo dada uma grande atenção
aos indicadores de resultados e impactos; 2) A maioria das ONGs e dos seus
profissionais especializaram-se numa área de conhecimento e intervenção; 3)
Constituí-se um círculo de relações entre profissionais das ONGs, setores da
função pública e, eventualmente, pesquisadores, que facilita o acesso a
projetos, seu enquadramento e sua tramitação; 4) Muda o perfil dos quadros
das ONGs. Aumenta a porcentagem de pessoas com formação superior,
inclusive com pós-graduação. Encoraja-se o aperfeiçoamento profissional; 5)
Procura-se melhorar os salários, tradicionalmente modestos, e implementar
planos de cargos e salários; 6) Procura-se dar visibilidade ao seu trabalho, à
eficácia e ao impacto das suas ações.
Todas essas modificações operadas nas estruturas das ONGs corroboram para o que
Buclet chama de “crise de identidade” por que passam essas instituições, uma vez que,
expostas a intensa profissionalização com vistas a justificar a sua posição e a sua própria
47
existência no mercado, elas assumem várias responsabilidades, atinentes a diferentes campos
de atuação. Nesse sentido, afirma Buclet (2009, p.153):
Lugar de expressão da democracia e empresa competitiva, prestadoras de
serviço e parceiras das instituições públicas, representantes das populações e
assessoras dos grupos de base, partilhadas entre independência ideológica e
militância política e/ou religiosa, as ONGs estão no cruzamento de várias
dinâmicas contraditórias, reveladas pela dificuldade de ir além das
experimentações realizadas nos projetos.
Exercendo as funções de experimentador na gestão dos problemas sociais, participante
da gestão das políticas públicas e de prestador de serviços ao Estado (BUCLET, 2009, p.
150), as ONGs acabam defendendo, muitas vezes, posições contraditórias, assumindo, ainda,
como terceiro setor, o papel de Estado.
Cumpre assinalar que este papel é desempenhado tendo por influências pautas
externas (internacionais) e com base na dependência de financiamentos transitórios, o que as
fazem sustentar posições de mediadoras e conciliadoras entre interesses por vez
contraditórios: da sociedade civil, do mercado empresarial, do Estado e das agências de
cooperação internacional, a depender de onde provém a maior parcela dos financiamentos.
Isso leva Buclet (2011, p.154) a afirmar que as “ONGs se situam numa posição institucional
tão imprecisa, quanto o conceito chave no qual se baseia a maioria das suas atividades: o
desenvolvimento sustentável”.
1.3.1 Instituições Internacionais e a expressão “povos e comunidades tradicionais”
Além do “desenvolvimento sustentável”, podemos mencionar o termo “povos e
comunidades tradicionais”, categoria que consta nos editais de licitação dos organismos
financiadores como “público alvo” de projetos, bem como constantemente presente em
inúmeros documentos, nacionais e internacionais, e, também, em programas e políticas
públicas nacionais, que padece dessa mesma imprecisão teórica, adequando-se, muitas vezes,
as pautas externas mais do que a demandas desses próprios grupos catalogados como tais.
De início, ressalte-se que a categoria “povos e comunidades tradicionais” surgiu em
um contexto das mobilizações realizadas por representantes de movimentos sociais em
articulação com instituições internacionais de pesquisa e desenvolvimento com vistas a
garantir a efetivação de direitos e a aplicação de políticas voltadas para grupos étnica e
culturalmente diferenciados.
48
Internacionalmente, diversos são os instrumentos legais que fazem menção a esses
grupos22, dentre os quais se destacam a Convenção sobre a Proteção e Promoção da
Diversidade das Expressões Culturais, de 2005, e a Convenção nº 169, da Organização
Internacional do Trabalho, de 1989.
Acerca da Convenção 169 da OIT, ressalte-se que a OIT foi a primeira agência
internacional a reconhecer os direitos dos “povos” indígenas e tribais como sujeitos de direito,
tendo em vista que os instrumentos normativos anteriores vislumbravam esse grupos como
fadados a total assimilação da cultura das sociedades envolventes e, portanto, ao
desaparecimento. Segundo Shiraishi Neto (2007, p. 38):
A Convenção nº 169 da OIT foi adotada pela Organização Internacional do
Trabalho em 1989. Entrou em vigor em 1991 após ter sido ratificada por
dois Estados membros, revogando a Convenção nº 107, de caráter
integracionista ou assimilacionista. A Convenção nº 107 ancorava-se em
modelos explicativos que pressupunham a irreversibilidade do processo de
“integração” ou de “assimilação” dos povos indígenas. Essa posição foi
revista pela Convenção nº 169, que incluiu a noção de permanência da vida
dos “povos indígenas e tribais”.
No Brasil, a referida Convenção de 1989, embora ratificada apenas em 2003,
influenciou o ordenamento jurídico interno no que concerne a legislação infraconstitucional
que trata dos grupos afetáveis pelo instrumento normativo. Nesse sentido, conforme afirma
Deborah Duprat (2007a, p. 20):
Não há como se recusar que nosso direito interno não está isolado no
contexto global. Um rápido exercício comparativo permite visualizar como a
Constituição brasileira reflete o desenvolvimento do direito internacional no
reconhecimento e respeito às diferenças étnicas e culturais das sociedades
nacionais.
No âmbito da legislação nacional, ainda que não utilize o conceito de “povos”, a
Constituição Brasileira23 reconheceu direitos coletivos específicos aos povos indígenas e às
comunidades quilombolas, em especial a seus territórios, também os assegurando aos demais
grupos que tenham formas próprias de expressão e de viver, criar e fazer. Da mesma forma, o
Decreto nº 6.040/2007, de 07 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, visa dar reconhecimento
22
Conforme afirma Shiraishi Neto (2007, p. 42), os dispositivos jurídicos internacionais e nacionais vem
utilizando diferentes termos e expressões para se referir a esses grupos, embora os mesmos sejam utilizados
como sinônimos, tais como populações indígenas, populações locais, populações extrativistas, populações
tradicionais, comunidades indígenas, comunidades locais, comunidades tradicionais, povos indígenas, povos
tribais, povos autóctones e minorias.
23
A esse respeito, ver os arts. 215, 216 e 231 da Constituição Federal de 1988 e art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias.
49
político e jurídico aos diferentes grupos que possuam identidades étnicas e culturais
específicas. Juridicamente, este é o primeiro documento interno que contém uma definição
desses grupos, qual seja:
Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e
que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização
social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição
para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica,
utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela
tradição.
No âmbito das ciências sociais, várias são as tentativas de definição desta
categoria, todas elas partindo da diferença destas populações com relação à sociedade
envolvente. Contudo, a tentativa de encontrar uma definição por meio da listagem das
características, traços comuns e pela identificação de algo que dê unidade aos mesmos, é algo
impraticável, dada as especificidades que cada grupo comporta.
No Brasil, percebe-se que a diversidade social de tais comunidades e sua
distribuição pelo país possibilita um mosaico bastante diferenciado de situações, o que leva
Alfredo Wagner B. de Almeida (2007, p. 17) a afirmar que:
A heterogeneidade aponta para diferenciações sociais, econômicas e
religiosas entre esses povos, embora eles estejam em alguma medida unidos
por critérios político-organizativos e por modalidades diferenciadas de uso
comum dos recursos naturais. O consenso que envolve o termo “tradicional”
está sendo, portanto, construído a partir desses dissensos sucessivos, que
aparentemente não cessam de existir.
No entanto, apesar da terminologia “povos e comunidades tradicionais” ser
adotada pelos institutos internacionais, redes de ativismo ambiental e pelo poder público no
intuito de reconhecer e de encaminhar as pautas específicas desses diferentes grupos sociais
frente ao Estado, as suas demandas, conforme atestam os inúmeros conflitos sociais
envolvendo esses grupos, não tem sido contempladas. Nesse sentido, conforme destaca
Almeida (2007, p. 15):
Tais atos não significaram acatamento absoluto das reivindicações
encaminhadas pelos movimentos sociais, não significando, portanto, uma
resolução dos conflitos e tensões em torno daquelas formas específicas de
apropriação e de uso comum dos recursos naturais.
Dessa forma, percebe-se que tal categoria – dentre tantas outras expressões que
passam a funcionar como formas adjetivadas, tanto no discurso das entidades multilaterais,
quanto no discurso dos órgãos governamentais – embora seja construída a partir de um
50
aparente consenso, esconde, em verdade, uma teia de significados e de relações de poder,
inclusive no que pertine à nomeação e à definição de categorias.
Cumpre ressaltar que a categoria em questão é acionada pelos atores que são
identificados pelos órgãos governamentais e instituições internacionais em contextos
específicos, o que denota claramente que não é neutra, posto que está imbricada em uma série
de relações que envolve reconhecimento, poder e recursos financeiros e simbólicos. Nesse
sentido, conforme expõe Escobar, “las prácticas documentales non son inocuas en absoluto.
Están inmersas en relaciones sociales externas y se hallan profundamente implicadas en los
mecanismos de poder” (1996, p. 210).
Por vezes, essa invenção de categorias, conforme assevera Escobar, provoca efeitos
devastadores sobre os grupos catalogados, convertendo-os em estereótipos, normalizando ou
fragmentando experiências dos grupos sociais, envolvendo, conforme expõe o autor, “una
política del conocimiento que permitiera a los expertos clasificar problemas y formular
políticas, emitir juicios acerca de grupos sociales enteros y hasta predecir su futuro, en
síntesis, producir un régimen de verdades y normas al respecto” (ESCOBAR, 1996, p. 97).
Existem, portanto, mecanismos de poder subjacentes à atuação dessas instituições
internacionais, uma vez que a lógica de tais instituições, ainda quando preconizam o respeito
e a valorização da diferença, é, sobretudo, voltada para a internacionalização de categorias,
valores, ideias, conceitos.
Tal lógica fomenta uma certa uniformização e padronização desses grupos que passam
a ser submetidos às intervenções técnicas de profissionais formados nos grandes centros de
produção científica e política e que vislumbram nesse intervencionismo uma forma de
manutenção das redes de relação de dominação e dependência, conforme atestam os estudos
de pesquisadores que se dedicaram ao tema da importação de modelos institucionais para
países periféricos (BADIE & HERMET, 1993; BUCLET, 2009; DEZALAY & GARTH,
2000; GUILHOT, 2003).
Por outro lado, alguns autores assumem um posicionamento mais relativista perante a
intervenção técnica dessas instituições. Conforme destaca Buclet (2011, p.150), as ONGs
assumem um importante papel na definição e atendimento de demandas24 das populações.
24
Com relação à definição de demandas ou finalidade, Buclet (2011, p. 144) destaca que “Idealmente, o que
determina as finalidades deveria ser a ‘utilidade social’, e essa utilidade social deveria ser determinada pelos
‘usuários’, ‘beneficiários’. Mas não é tão simples, porque, de um lado, a ‘demanda social’ nunca, ou muito
raramente, é explícita. Trata-se de um princípio chave: a demanda não existe em si. As demandas aparentemente
espontâneas, mesmo se elas revelam uma necessidade real, são na verdade construídas por um conjunto de
fatores, como a capacidade da expressão dos indivíduos, as suas situações sociais, a confiança que eles tem nos
interlocutores, etc”. Ainda no que concerne a esse aspecto, o autor pontua: “Isto constitui um problema?
51
Diante dessas demandas identificadas, elas podem ou implantar de forma direta projetos
visando contemplá-las ou dar visibilidade aos problemas vivenciados e chamar atenção das
instituições governamentais responsáveis.
Assim, Buclet (2011) destaca que as ONGs podem operar mudanças concretas na vida
das populações (constantemente “esquecidas” pelo Poder Público) tanto por meio de ações
voltadas para ampliação e acesso a serviços de saúde, educação, geração de renda,
capacitação profissional etc., quanto por meio da influência que tais instituições exercem
sobre a implementação de políticas públicas.
Contudo, Buclet faz a ressalva de que o Estado tem se eximido das suas
responsabilidades, deixando a cargo das instituições não governamentais a identificação e o
atendimento dessas demandas sociais. Tais ações, quando implementadas pelas ONGs, podem
levar a transformação do “terceiro setor” num substituto das ações estatais, fazendo com que o
Estado protele a resolução de problemas estruturais do país, renunciando as suas
responsabilidades e atribuições (BUCLET, 2011, p. 153).
Da mesma forma, há que se destacar que, para além dos efeitos negativos advindos da
padronização fomentada pela importação de modelos institucionais, Bertrand Badie (1999) e
Sidney Tarrow (2009) apontam que as organizações e redes de ativismo internacionais
também são responsáveis pela produção de oportunidades de ação coletiva que abrangem
atores nacionais e internacionais. Ocorre, portanto, uma amplificação das demandas
específicas dos movimentos sociais domésticos.
Para Tarrow (2009) a cooperação através de fronteiras entre atores sociais nacionais
articulados em redes, possibilita que objetivos coletivos sejam assegurados, o que se dá tanto
por intermédio de leis, quanto por meio das instituições internacionais.
Dessa forma, é possível falar em difusão de ideias através de fronteiras e da circulação
de atores sociais, o que possibilita uma uniformização da linguagem e a descoberta de
problemas similares em diferentes partes do globo.
Prossegue afirmando Tarrow (2009) que essa ação coletiva se torna possível graças à
formação de movimentos sociais transnacionais (bases sociais formadas para o confronto
político e ultrapassam fronteiras nacionais), as trocas políticas transnacionais (compreendidas
como formas de interação temporárias de cooperação entre atores de diferentes
nacionalidades) e as redes transnacionais de ativismo, que “inclui aqueles atores relevantes
Provavelmente, não, porque, apesar do fato das populações ‘beneficiárias’ dos projetos muitas vezes não estarem
formulando nenhuma solicitação específica a priori, os projetos são elaborados a partir do que se poderia chamar
de demandas latentes que, uma vez satisfeitas, representam uma melhoria significativa das condições de vida de
certos grupos” (BUCLET, 2011, p. 149).
52
que trabalham internacionalmente por uma questão, que estão ligados por valores
compartilhados, por um discurso comum e por densas trocas de informação e serviço”
(TARROW, 2009, p. 236) e que são beneficiários do suporte financeiro de agências
internacionais e de governos do Hemisfério Norte.
Badie (1999) insere tais discussões no âmbito da perda da soberania dos Estados, ou,
dito de outra forma, no âmbito da interdependência crescente que une entre si atores para
além das fronteiras, retirando dos Estados nacionais o monopólio das relações internacionais.
Essa interdependência leva os Estados a sofrerem influências, constrangimentos,
pressões e controles não só externos, mas também internos, o que os leva a assumir
obrigações e responsabilidades para com o bem comum.
Ainda de acordo com Badie (1999), essas obrigações a que se vêem submetidos os
Estado nacionais implicam responsabilidades anunciadas pelos próprios Estados por meio de
princípios e declarações internacionais. Tais declarações ultrapassam a mera figura retórica,
pois, os seus enunciados transcendem legislações nacionais e possibilitam que, em caso de
descumprimento, sejam geradas mobilizações de atores sociais espalhados em vários países.
A discussão sobre “povos e comunidades tradicionais” pode ser abordada a partir
dessa perspectiva, tendo em vista que, transformados em atores internacionais e gozando da
proteção normativa “assegurada” em diversas Convenções, Declarações e Tratados, os grupos
identificados como “tradicionais” expõem, na arena internacional, as violências a que estão
submetidos internamente, bem como utilizam estratégias oriundas da formação de redes
transnacionais em prol de objetivos considerados por eles como comuns.
Cumpre destacar que para além da responsabilização judicial – que na esfera
internacional, ante a soberania dos Estados, é de mais difícil consecução – existem formas
diferentes de obrigar os Estados a cumprirem com o que foi pactuado, tais como embargos
econômicos e políticos. Assim, como destaca Badie (1999, p. 220):
Os constrangimentos exercidos sobre Estados e suas legislações nacionais
são mais eficazes e mais seguros quando impostos de um modo mais
sociopolítico do que estritamente jurídico. A história da OIT está aí para
lembrar a profusão das normas em matéria social que a comunidade
internacional pretende universalizar: esta obra, porém, é realizada por meio
de convenções que os Estados têm a possibilidade de assumir ou ignorar,
sem que nenhuma sanção seja exercida contra os que ficam de fora.
53
Dessa forma é necessário levar em consideração as diferentes formas de fazer com que
os Estados se sintam obrigados a responder perante as “comunidades de responsabilidade” 25 –
formas estas que estão para além do direito, tendo em vista que:
Efeito da visibilidade no âmbito de um espaço econômico internacional onde
ninguém se quer distinguir pelos seus desvios, o jogo informal das pressões e
das orquestrações desempenha um papel mais determinante do que a ameaça
de uma hipotética sanção jurídica (BADIE, 1999, p. 220).
Assim sendo, as ações desenvolvidas por essas “comunidades de responsabilidade” em
torno de um objetivo coletivo comum, ganham amplitude social e política a partir da
articulação a redes de ativismo, possibilitando dessa forma uma maior visibilidade em torno
das suas lutas específicas.
Tais lutas terminam por envolver diferentes atores em suas reivindicações, que,
embora sejam de diferentes formações acadêmicas, possuem acesso a novos tipos de recurso
para organizar a ação coletiva além das fronteiras, o que inclui viagens ao exterior,
comunicação com pessoas que pensam da mesma forma e habilidade em utilizar as
comunicações transnacionais e as instituições internacionais (Tarrow, 2009, p. 228). Nesse
contexto que se insere a discussão sobre o caso de juristas engajados em causas políticas,
conforme teremos oportunidade de discutir no terceiro capítulo deste trabalho.
25
Segundo Badie (1999, p. 177) “Locais, regionais ou mundiais, as comunidades de responsabilidade reúnem
todos aqueles que se consideram afetados solidariamente pelas mesmas ações públicas. Modo determinante da
organização contemporânea dos espaços mundiais, estas comunidades inventam assim uma nova gramática das
relações internacionais: a ação internacional aprecia-se agora não só por referência a uma deliberação soberana,
mas também em função da satisfação das necessidades de comunidades de responsabilidade mundial, regional ou
local”.
54
2. CONSTRUÇÃO SOCIOLÓGICA E JURÍDICA DA EXPRESSÃO “POVOS E
COMUNIDADES TRADICIONAIS”
Conforme assinalamos no capítulo anterior, a expressão “povos e comunidades
tradicionais” foi constituída a partir da articulação dos “novos” movimentos sociais com
agentes situados em diferentes espaços sociais e institucionais (ONGs, universidades,
instituições de pesquisa e desenvolvimento...) com vistas à garantia de direitos e de efetivação
de políticas públicas que contemplassem as especificidades desses grupos.
Neste capítulo, pretende-se aprofundar alguns aspectos relacionados a esse processo
de criação e apropriação da expressão, relacionando as discussões internacionais voltadas para
a legitimação do termo “povos e comunidades tradicionais” com as iniciativas direcionadas
para o fortalecimento de movimentos sociais locais, sobretudo no âmbito dos conflitos sociais
vivenciados na Amazônia a partir da década de 1980.
Nesse contexto, recuperamos as discussões realizadas por teóricos das Ciências
Sociais visando a problematização desta expressão. Cumpre ressaltar que muitos destes
teóricos realizaram um exercício de teorização sobre esses grupos no âmbito de disputas
intelectuais e políticas, com vistas a legitimar o termo em análise em diversos espaços (e não
só na academia).
Assim sendo, não se pretende realizar esta análise com o intuito de encontrar a
“essência” ou “substância”26 da expressão “povos e comunidades tradicionais”, mas sim
perceber como tais categorias estão envoltas em processo de construção social e de disputas.
Em tais disputas, voltadas para a ampliação e legitimação de direitos, pode-se afirmar
que há a formação de um domínio discursivo em torno da temática que, embora tenham como
eixo central as discussões travadas no âmbito das Ciências Sociais, resvalam para outros
campos de conhecimento, como o jurídico, por exemplo, possibilitando a formação de
categorias de classificação e identificação.
26
Com relação ao processo de substancialização de categorias, retomamos as reflexões desenvolvidas por
Gaston Bachelard (1996), para quem a idéia substancialista nas pesquisas – por meio da busca pelo “interior” das
substâncias, a idéia de virá-las do avesso, encontrar sua essência, adjetivar os fenômenos como forma de
descrever a realidade – deve ser evitada pelo pesquisador, pois essas práticas terminam por comprometer a
racionalização. O “espírito científico” não pode satisfazer-se apenas com ligar elementos descritivos de um
fenômeno à sua respectiva substância e, no caso em estudo, a tentativa de encontrar uma definição de “povos e
comunidades tradicionais” por meio da listagem de suas características, traços comuns, pela identificação da
essência desses grupos e de algo que dê unidade aos mesmos, levaria a adjetivação e substancialização.
Destaque-se ainda que tal expressão encontra-se em permanente construção de significado, possuindo, portanto,
um caráter aberto e dinâmico. É uma expressão que, longe de ser estabelecida e consolidada, designa uma
variedade de articulações, idéias e práticas sociais, conforme tentaremos demonstrar nesse capítulo.
55
Ao analisar o processo de construção sociológica e jurídica da expressão “povos e
comunidades tradicionais”, pretendemos realizar um exercício de “tomar para objeto os
instrumentos de construção do objeto” (BOURDIEU, 1998), ou, em outras palavras, refletir
sobre os processos de produção intelectual e acadêmica realizados por cientistas sociais sobre
a expressão em análise. Tal reflexão, num segundo momento, nos auxilia a perceber de que
forma essa produção teórica influencia a tomadas de posições teóricas e práticas no espaço
jurídico, o que será abordado no terceiro capítulo.
Cumpre ressaltar que a realidade estudada – nunca clara e evidente – mantém uma
relação intrínseca com as representações feitas a seu respeito, de modo que tais representações
exercem um papel fundamental na produção daquilo por elas descrito ou designado.
É equivocado, portanto, tentar operar uma cisão entre representação e realidade,
devendo-se “incluir no real a representação do real ou, mais exatamente, a luta das
representações, no sentido de imagens mentais e também de manifestações sociais destinadas
a manipular as imagens mentais” (BOURDIEU, 1998, p.113).
Nesse sentido, é interessante recuperar as idéias de Becker (2009) acerca das
representações sociais, sobretudo no que concerne à parcialidade das representações das
realidades sociais. Como destaca o autor, todos os dados apresentados como representações
do social, embora não sejam precisos o suficiente devido a sua parcialidade, são orientados
para determinada finalidade, ou seja, com todas as suas omissões e imprecisões são “bons o
suficiente” para algo.
Assim, nas acepções de Becker (2009) e Bourdieu (1998), as representações realizadas
pelas Ciências Sociais (embora esta área reivindique para si o monopólio das representações
sobre a sociedade) detêm, apenas, um tipo de representação (e consequentemente parcial)
sobre a realidade. Deve, pois, o sociólogo resistir à ambição de legislar sobre a realidade
social, o que só é obtido por meio de uma crítica epistemológica radical, que o impeça de cair
na tentação do discurso de autoridade científica.
Conforme Bourdieu (1998), é necessário realizar um exercício constante de fazer a
crítica social da sociologia, sobretudo, do lugar que a sociologia acha que ocupa: a posição de
árbitro das disputas sociais, de representante dos grupos que estuda, de detentor das “visões
soberanas”, desenvolvidas por sociólogos que se arrogaram ao direito de determinar e
classificar as coisas, assumindo – ou usurpando – o papel de soberano e de autoridade
legítima para poder dizer quais são as fronteiras e os limites de determinada realidade.
56
Bourdieu faz uma crítica a esse caráter “recenseador” que assume o sociólogo, de
detentor estatutário legítimo desse poder de constituição, capaz de converter em realidade as
divisões do mundo social por ele elaboradas.
Essa ambição de fundar na razão as divisões arbitrárias da ordem social pode e deve
ser combatida por meio de uma tomada de posição diferenciada da sociologia: ao invés de se
lançar ao fetiche das classificações, a sociologia deve tomar como objeto a luta pelo
monopólio das classificações, das representações legítimas do mundo social. Assim, no lugar
de engajar-se na luta pela construção e imposição da taxonomia legítima, deve passar a ser a
ciência dessa luta, buscado conhecer o funcionamento e as funções das instituições “oficiais”
envolvidas na classificação.
Conforme Bourdieu (1982, p.13):
Sem dúvida, o sociólogo não é mais o árbitro imparcial ou espectador
divino, o único a dizer onde está a verdade – ou, para falar nos termos do
senso comum, que tem razão – e isso leva a identificar a objetividade a uma
distribuição ostensivamente equitativa de erros e das razões.
Dessa forma, o sociólogo deve tomar como objeto de análise aquilo que é colocado
como instrumento indiscutível do trabalho, deve questionar os conceitos, as representações e
as classificações “dadas” e legitimadas, para fugir da tentação de descrever a realidade social
“assim como ela é”.
É com base nestas premissas, tomando como pressuposto o fato de que a categoria em
análise envolve manipulações, disputas e interesses variados, que pretende-se recuperar o
processo histórico, jurídico e social de construção social do termo “povos e comunidades
tradicionais”.
2.1 Conflitos socioambientais na Amazônia e construção de categorias jurídicas
Conforme destaca Almeida (2008a), o final da década de 1980 foi marcado pelas
polêmicas em torno da relação entre fragilidade do “ecossistema amazônico” e as
“alternativas de desenvolvimento”, o que, por sua vez, levou a mudanças de perspectiva e
rupturas com os esquemas de pensamento comumente adotados nos discursos oficiais no
âmbito das políticas ambientais.
Tal ruptura, segundo o autor, pode ser compreendida a partir da ampliação da noção de
“ecossistema amazônico”, que passa a ser percebido como “um produto das relações sociais e
57
antagonismos, ou seja, pensado como um campo de lutas em torno do patrimônio genético, do
uso de tecnologias e das formas de conhecimento e apropriação dos recursos naturais”
(ALMEIDA, 2008a, p. 128) e não mais reduzido ao seu quadro natural, no que concerne a
descrição de paisagens e inventários de espécies animais e vegetais e pensado
predominantemente por biólogos e geógrafos.
Ante esse quadro, abre-se possibilidade de se colocar em execução projetos de
reconhecimento do “saber nativo” (ALMEIDA, 2008a, p. 129), acumulado a partir de
experiências não só de manejo, processamento e transformação de recursos naturais, mas
também demais formas de relação com o meio pelos grupos locais da Amazônia. Com relação
a esses grupos, afirma Almeida (2008a, p. 142):
A questão ambiental não pode mais ser tratada como uma questão sem
sujeito. Não se restringe ao contorno de um quadro natural isolado, pensado
preponderamente por botânicos e biólogos. E quem seriam os sujeitos? Os
sujeitos desta questão ambiental na Amazônia tem se constituído na última
década e meia. Eles não têm existência individual ou atomizada. A
construção desses sujeitos é coletiva e se vincula ao advento dos vários
movimentos sociais que passaram a expressar as formas peculiares de usos e
de manejo dos recursos naturais por povos indígenas, quilombolas,
ribeirinhos, seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, ou seja, pelas
denominadas “populações tradicionais”.
Essas populações, consideradas os novos sujeitos da questão ambiental, organizaramse em movimentos sociais, nos quais os processos coletivos de autoidentificação e
territorialização assumem fundamental importância.
Esse processo histórico de constituição deve ser concebido como desdobramento das
discussões realizadas no âmbito dos movimentos, nacional e internacionalmente relacionados
com o processo de fortalecimento das demandas de grupos considerados tradicionais. Nesse
contexto, as discussões sobre a implantação de reservas extrativistas na Amazônia são
emblemáticas e ajudam a perceber o processo de construção e apropriação de categorias
sociológicas e jurídicas.
2.1.1 Reservas Extrativistas e Populações tradicionais: discussões em torno do processo de
elaboração da Lei 9.985/2000
Conforme destacamos no primeiro capítulo deste trabalho, as décadas de 1970 e 1980
possibilitaram a consolidação de novas categorias fundiárias, que surgiram a partir da
articulação e das discussões travadas entre movimentos sociais e diferentes organizações nãogovernamentais.
58
Ressalte-se que o fim da ditadura militar, em 1985, e a instalação de governos civis
possibilitaram que os “novos” direitos e questões socioambientais passassem a ser
problematizados, culminando com a promulgação da Constituição da República Federativa do
Brasil em 1988.
A partir de 1988, vários grupos sociais formadores da sociedade brasileira – dentre os
quais se incluem os chamados “povos e comunidades tradicionais” – passaram a receber
reconhecimento especial da Constituição Federal, conforme dispõe os artigos 215 e 21627, que
tratam sobre o direito a diversidade cultural e o dever do poder público de proteger as
manifestações dos povos e grupos que participaram do processo civilizatório brasileiro.
Além dessas referências ao patrimônio cultural, o texto constitucional incorpora
distintas modalidades territoriais na sua proteção, como o caso das terras indígenas (art. 231)
e dos remanescentes das comunidades de quilombo (art. 68 dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias).
Nesse processo de redemocratização e de discussão sobre a ampliação de direitos,
surgem as discussões sobre o processo de consagração de categorias identitárias (tais como
povos da floresta, populações tradicionais, seringueiros) bem como sobre a invenção28 das
reservas extrativistas. De acordo com Antonaz (2009, p. 175):
A invenção da reserva extrativista é um produto conjunto da ruptura com um
modo de vida, da atuação de um contexto particular no Acre dos anos 1970,
da atuação singular de Chico Mendes e dos efeitos de sua morte mas, mais
do que isso, é o resultado de um processo de reinvenção e de criação de
identificações e de um trabalho a muitas mãos, que vai do campo, às cidades,
expandindo-se por organizações do mundo todo.
Para Antonaz (2009), as reservas extrativistas, diferentemente das demais unidades de
conservação, não resultaram de uma elaboração feita pelos experts em questão ambiental, mas
sim de um processo de discussão realizada pelos próprios “candidatos” a ocupar ou preencher
27
A Constituição Federal dispõe em seu art. 215: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais”, cabendo ao art. 216 dispor sobre patrimônio cultural nos seguintes termos:
“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou
em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III –
as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.
28
Por “invenção” tomamos de empréstimo a definição utilizada por Hobsbawn (1997, p. 09) para referir-se aos
processos de tradições inventadas, no sentido de que são “conjunto de práticas, normalmente reguladas por
regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza real ou simbólica, visam inculcar certos valores e
normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação
ao passado”. Refere-se, portanto, ao processo de formalização de uma construção que, no caso, tem em vista
validar, pela repetição e difusão, uma classificação diferente da dominante.
59
as categorias de identificação que aproxima diferentes grupos sociais em prol da legitimação
do direito de uso dos recursos naturais, tais como as categorias “povos da floresta” ou
“populações tradicionais”29.
O jurista José Heder Benatti (2009, p. 547) destaca que as reservas extrativistas devem
ser entendidas como parte da luta pela reforma agrária na região amazônica, na qual novos
critérios de apossamento da terra são propostos, inclusive com o questionamento do modelo
de reforma agrária pautado pelos assentamentos em lotes agrícolas padronizados e sem levar
em consideração as especificidades de apossamento das populações rurais da Amazônia.
Nesse sentido, de acordo com Benatti (2009), há uma marginalização do sistema de
“uso comum” na estrutura agrária brasileira, o que pode ser evidenciado pela ausência de um
conceito juridicamente consolidado da expressão30. Segundo destaca:
A dificuldade em definir áreas de uso comum, também conhecidas como
terras comuns, está no fato de que o controle dos recursos básicos não é
exercido livre e individualmente por uma família ou grupo doméstico de
camponeses, e as normas que regulam essa relação social vão além das
normas jurídicas codificadas pelo Estado (BENATTI, 2009, p. 546).
Dessa forma, as reservas extrativistas, apoiando-se nessa noção de terras de “uso
comum”, surgem como uma figura jurídica que visa aliar conservação ambiental à exploração
econômica, sendo destinada às populações extrativistas ou, nos termos da lei que institui essa
modalidade de unidades de conservação, às populações tradicionais. Segundo Benatti (2009,
p. 250), “ela distingue-se da concepção tradicional de unidade de conservação de espécies
vegetais e animais porque prevê a exploração auto-sustentável e a conservação dos recursos
naturais renováveis pelas populações extrativistas, ou seja, garante a presença humana”.
Com relação à presença de populações humanas em espaços territoriais especialmente
protegidos por lei, cumpre resgatar, ainda que sumariamente, o processo de discussão da Lei
9.985, de 18 de julho de 200031. Cumpre ainda destacar que, embora o ápice dessas discussões
29
Conforme destaca Antonaz (2009, p. 159), “trata-se de uma categoria inventada no interior das organizações
de seringueiros. Os seringueiros, por sua vez, constituem mais uma classificação socialmente construída”.
30
Para Almeida (2008b, p. 28) a noção de “uso comum” designa situações sociais nas quais um conjunto de
regras, combinando uso comum de recursos e apropriação privada de bens, são acatadas de maneira consensual
entre os diversos grupos familiares que compõe uma unidade familiar. Assim, esses recursos básicos não são
apropriados de forma livre e individual por um determinado grupo doméstico de pequenos produtores. Tais
práticas de ajuda mútua incidem sobre os recursos naturais renováveis e revelam um conhecimento aprofundado
e peculiar dos ecossistemas de referência.
31
A Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, foi
criada com vistas a regulamentar o disposto no art. 225, §1º, inc. III da Constituição Federal de 1988, que
estabelece ser de incumbência do Poder Público “definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais
e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e supressão permitidas somente através
de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção”.
60
tenha se dado no momento de elaboração e promulgação desta lei, ainda hoje é possível
observar inúmeras polêmicas em torno da legitimidade desses grupos no interior de unidades
de conservação.
A análise do processo histórico de tramitação da Lei nº 9.985/2000, sobretudo ao
longo da década de 1990, possibilita a percepção do embate travado entre os defensores de
uma visão biocêntrica do mundo, que vislumbravam na ação humana, necessariamente, uma
ameaça à conservação dos recursos naturais e ao equilíbrio ambiental e, por outro lado, os
que, partindo de uma concepção sistêmica de mundo, procuram o equilíbrio e a harmonia
entre as formas de interação do homem com a natureza, concebendo na ação de determinadas
populações um instrumento a mais no projeto de conservação da natureza.
Conforme pontua Lima (2002, p. 39), o SNUC pode ser interpretado como sendo um
sistema
legal
que
abriga
duas
visões
contrárias
da
conservação
–
conservacionistas/preservacionistas e socioambientalistas – baseadas em posicionamentos
diferentes sobre a relação entre sociedade e a natureza, uma vez que “a redação do SNUC
refletiu claramente essa disputa entre os proponentes de um e de outro modelo de
conservação”.
Por seu turno, as autoras Delduque e Pacheco (2004, p. 13) apontam que as polêmicas
em torno do modelo de conservação a ser adotado no Brasil refletiam o momento político da
época, permeado de conflitos ideológicos e por disputas de poder com vistas a legitimar
instituições e categorias com respeito às unidades de conservação. Conforme afirmam, a partir
de 1988, quando o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) encomendou à
Fundação Pró-natureza (FUNATURA) o primeiro anteprojeto do SNUC, intensificam-se
esses conflitos ideológicos.
A proposta a ser elaborada deveria pautar-se no objetivo de unificar a legislação
acerca dos variados tipos de unidades de conservação até então existentes no país, uma vez
que estava em curso o processo de fusão dos órgãos destinados a gerir os recursos naturais em
âmbito nacional e regional, aumentando o clima de tensão provocado pela instabilidade
institucional e gerando disputas por espaço e poder. Além dessas disputas institucionais, que
aprofundaram os conflitos que cercaram o processo legislativo do SNUC, ainda havia a
disputa pela definição de categorias a serem adotadas no texto legal (DELDUQUE;
PACHECO, 2004, p. 16).
Conforme destaca Juliana Santilli (2007), o primeiro projeto da lei do SNUC
encaminhado ao Congresso pelo então presidente Fernando Collor de Mello, em maio de
61
1992, baseava-se na idéia de que a presença humana representa uma ameaça à conservação da
diversidade biológica.
Adotava, portanto, uma orientação eminentemente conservacionista/preservacionista,
inspirada em um modelo de unidade de conservação preocupado unicamente com o valor de
espécies e ecossistemas e com a perda da biodiversidade em si, priorizando as unidades de
proteção integral – em que não se admite a presença de população humana – em detrimento
das unidades de uso sustentável – que previam a presença de populações humanas.
Distribuído ao deputado Fábio Feldmann, relator da Comissão de Defesa do
Consumidor, Meio Ambiente e Minorias do Congresso Nacional, ele apresentou, em 1994, a
sua primeira proposta de substitutivo, com diversas alterações no texto original. Ao justificar
as modificações introduzidas, o relatório apresentado pelo deputado Fábio Feldmann bem
sintetiza
as
controvérsias
que
dividiram
conservacionista/preservacionistas
e
socioambientalistas durante a tramitação da lei, conforme transcrito:
Na perspectiva tradicional, criar uma unidade de conservação significa, em
essência, cercar uma determinada área, remover ou – alguns diriam –
expulsar a população eventualmente residente e, em seguida, controlar ou
impedir, de forma estrita, o acesso e a utilização da unidade criada. A
preocupação básica, quase exclusiva, é com a preservação dos ecossistemas
(...) A visão conservacionista, a rigor, é incapaz de enxergar uma unidade de
conservação como um fator de desenvolvimento local e regional, de situar a
criação e a gestão dessas áreas dentro de um processo mais amplo de
promoção social e econômica das comunidades envolvidas.
Consequentemente, as populações locais são encaradas com desconfiança,
como se fossem uma ameaça permanente à integridade e aos objetivos da
unidade, o que, nessas circunstâncias, isto é, nesta situação de isolamento e
confronto, acaba se tornando verdade. A sociedade local, alijada do
processo, sem possibilidades de participação e decisão – o que lhe permitiria
conhecer e compreender melhor o significado e a importância de uma
unidade de conservação, percebe a intervenção do Poder Público como
sendo um ato violento, autoritário, injusto e ilegítimo, e assume uma atitude
de resistência, discreta algumas vezes, ostensiva, outras (FELDMANN apud
SANTILLI, 2007, p. 116).
Com o afastamento do deputado Fábio Feldmann do Congresso para assumir a
Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, em 1995, a relatoria do projeto de lei
que instituiu SNUC foi distribuída ao deputado Fernando Gabeira, que incluiu modificações
nas propostas e acrescentou novas modalidades de unidades de conservação, todas de uso
sustentável. O deputado Fernando Gabeira, em seu parecer, justifica as alterações introduzidas
em seu substitutivo:
A principal crítica à concepção tradicional das unidades de conservação é a
de que essas áreas são criadas e geridas sem consulta à sociedade,
62
especialmente às comunidades mais diretamente atingidas, vale dizer,
aqueles que vivem dentro ou no entorno das unidades. Os parques e reservas
permanecem assim isolados, sem se integrarem à dinâmica socioeconômica
local e regional (...) Hoje se reconhece que a expulsão das populações
tradicionais é negativa não apenas sob o ponto de vista social e humano, mas
tem conseqüências danosas também no que se refere à conservação da
natureza. Essas comunidades são, em grande medida, responsáveis pela
manutenção da diversidade biológica e pela proteção das áreas naturais. Ao
longo de gerações desenvolveram sistemas ecologicamente adaptados e não
agressivos de manejo do ambiente. Sua exclusão, aliada as dificuldades de
fiscalização dos órgãos públicos, muitas vezes expõe as unidades de
conservação à exploração florestal, agropecuária e imobiliária predatórias.
Com isso perde-se também o conhecimento sobre o manejo sustentável do
ambiente natural acumulado por essas populações (GABEIRA apud
SANTILLI, 2007, p. 121).
Diante desses debates e polêmicas em torno da presença ou não de grupos humanos
nas unidades de conservação e os embates entre socioambientalistas e conservacionistas /
preservacionista, o conceito de “populações tradicionais”, que deveria integrar uma das
dezenove definições constantes no art. 2º da Lei 9.985/2000, foi eliminado do referido
instrumento legal.
Ante a dificuldade de encontrar uma definição para esses grupos, tanto por parte dos
intelectuais quanto por parte de parlamentares e dos próprios representantes dos grupos
envolvidos nos debates de construção da Lei 9.985/2000, a lei foi sancionada, mas foi
negociado o veto32 junto ao então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, à
definição de populações tradicionais.
Tal negociação se deu entre representantes de movimentos sociais, sobretudo o
Conselho Nacional dos Seringueiros, e o Senado Federal, vez que a então senadora Marina
Silva foi acionada para que, no processo de votação do SNUC, a lei não fosse alterada, mas
fosse vetada a definição de “populações tradicionais”.
O dispositivo vetado, bem como as razões do veto, são abaixo transcritos:
Art. 2º. XV “população tradicional: grupos humanos culturalmente
diferenciados, vivendo há, no mínimo, três gerações em um determinado
ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita
dependência do meio natural para sua subsistência e utilizando os recursos
naturais de forma sustentável”.
32
Com relação ao veto presidencial, cumpre esclarecer que os projetos de leis aprovados pelo Congresso
Nacional, independentemente da iniciativa, serão submetidos ao Presidente da República, para sanção ou veto,
total ou parcial, no prazo de quinze dias. Assim, se o Presidente da República discordar do que está sendo
debatido, poderá vetar o projeto totalmente (quando o abarcar integralmente) ou parcialmente (se atinge apenas
partes do projeto). Tal veto deve ser expresso e fundamentado e não apresenta caráter absoluto, ou seja, existe a
possibilidade de o Congresso Nacional rejeitar o veto, mantendo o projeto que aprovou (MENDES, 2011,
p.906).
63
Razões do veto: "O conteúdo da disposição é tão abrangente que nela, com
pouco esforço de imaginação, caberia toda a população do Brasil. De fato,
determinados grupos humanos, apenas por habitarem continuadamente em
um mesmo ecossistema, não podem ser definidos como população
tradicional, para os fins do Sistema Nacional de Unidades de Conservação
da Natureza. O conceito de ecossistema não se presta para delimitar espaços
para a concessão de benefícios, assim como o número de gerações não deve
ser considerado para definir se a população é tradicional ou não, haja vista
não trazer consigo, necessariamente, a noção de tempo de permanência em
determinado local, caso contrário, o conceito de populações tradicionais se
ampliaria de tal forma que alcançaria, praticamente, toda a população rural
de baixa renda, impossibilitando a proteção especial que se pretende dar às
populações verdadeiramente tradicionais. Sugerimos, por essa razão, o veto
ao art. 2º, inciso XV, por contrariar o interesse público" (Lei nº 9.985/2000,
disponível em <http://www.planalto.gov.br/>).
Conforme afirma Renata Sant’Anna (2003), havia vários aspectos levantados no que
se refere à utilização do termo, que iam desde a preocupação para que o mesmo não ensejasse
pré-noções e desse margem a questionamentos futuros quanto a “tradicionalidade” dos grupos
aos quais seria dado o direito de permanecer nas unidades de conservação, até a desconfiança
no que se refere à relação desses grupos com o meio natural, o que se traduzia na preocupação
de não se concederem benefícios ou privilégios a quem não merecesse.
Tais preocupações demandavam um trabalho de objetivação de uma categoria que
estava em processo de construção e se apresentava multifacetada e dinâmica, haja vista que, a
depender do contexto sociocultural, tais populações poderiam vir a desenvolver um
relacionamento diferenciado com o entorno.
Assim o veto presidencial se deu diante da dificuldade em se alcançar uma
conceituação capaz de, por um lado, não ser excludente e injusta e por outro, não ser
demasiadamente abrangente. Nesse sentido, conforme Renata de Sant’Anna (2003, p. 123):
Para muitos que se envolveram na elaboração do SNUC, o veto representou
a melhor solução possível naquele momento, pois não restringia ou
generalizava, mas abria espaços para que cada grupo social interessado em
participar do sistema de unidades de conservação fosse avaliado segundo seu
caso específico.
Contudo, ressalte-se que, embora a definição legal tenha sido rejeitada, o termo
aparece em outros dispositivos da Lei 9.985/2000 que tratam da relação entre essas
populações e as unidades de conservação que admitem a presença humana (áreas de proteção
ambiental, floresta nacional, reserva extrativista e reserva de desenvolvimento sustentável)33.
33
Alguns dispositivos da Lei 9.985/2000 que fazem referência expressa ao termo “populações tradicionais” são
abaixo transcritos: art. 17, § 2º. “Nas Florestas Nacionais é admitida a permanência de populações tradicionais
que a habitam quando de sua criação, em conformidade com o disposto em regulamento e no Plano de Manejo
64
No ano de 2003, o Estado brasileiro ratificou a Convenção 169 da OIT, que trata sobre
povos indígenas e tribais, o que reforça o processo de visibilidade desses grupos, em curso
desde a década de 1980. Conforme destaca Almeida (2008b, p. 27)
A expressão “comunidades”, em sintonia com a idéia de povos
“tradicionais”, deslocou o termo “populações”, reproduzindo uma discussão
que ocorreu no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em
1988-89 e que encontrou eco na Amazônia através da mobilização dos
chamados “povos da floresta”. O “tradicional” como operativo foi
aparentemente deslocado do discurso oficial, afastando-se do passado e
tornando-se cada vez mais próximo das demandas do presente. Em verdade,
o termo “populações”, denotando certo agastamento, foi substituído por
“comunidades”, que aparece revestido de uma conotação política inspiradas
nas ações partidárias e de entidades confessionais, referidas à noção de
“base”, e, de uma dinâmica de mobilização, aproximando-se por este viés da
categoria “povos”.
Nesse sentido, afirma Litlle (2002, p.23) que a substituição do termo “populações” por
“povos” coloca esse conceito nos debates sobre o direito dos povos, transformando-se em
instrumento estratégico nas lutas por justiça social e pelo reconhecimento da legitimidade de
seus regimes de propriedade comum.
Atualmente, influenciada por essa discussão internacional, bem como pela produção
acadêmica, pode-se falar na elaboração de uma conceituação jurídica desses grupos, que se
encontra no Decreto nº 6.040 de 07 de fevereiro de 2007, que dispõe sobre a Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT.
O art. 3º do Decreto define e esclarece os conceitos normativos chaves para a implementação
desta política, quais sejam, povos e comunidades tradicionais, territórios tradicionais e
desenvolvimento sustentável, abaixo transcritos:
I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e
que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização
social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição
para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica,
utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela
tradição.
II - Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural,
social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles
utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz
respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem
da unidade”; art. 18. “A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja
subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, agricultura de subsistência e na criação de animais
de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações e
assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade”; art. 19. “A Reserva de Desenvolvimento
Sustentável é uma área natural que abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas
sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições
ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da
diversidade biológica”.
65
os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias e demais regulamentações; e
III - Desenvolvimento Sustentável: o uso equilibrado dos recursos naturais,
voltado para a melhoria da qualidade de vida da presente geração, garantindo
as mesmas possibilidades para as gerações futuras.
Comparando a atual definição com o vetado inciso XV, do artigo 2º da Lei
9.985/2000, percebe-se que apesar da expressão “culturalmente diferenciados” ter sido
mantida, ocorreram muitas modificações na forma de conceber tais grupos.
Assim, além da modificação do termo “populações” por “povos e comunidades”,
conforme já apontado, o critério temporal – expresso na exigência de permanência dos grupos
humanos em determinado ecossistema por no mínimo três gerações – foi abolido da definição
constante no Decreto nº 6.040/2007.
Também adotaram-se critérios menos biologizantes para se referir a esses grupos, uma
vez que a expressão “vivendo (...) em um determinado ecossistema” foi substituída pela
expressão “que ocupam e usam seus territórios e recursos naturais como condição para a sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica”, indicando uma mudança de
perspectiva na forma de conceber o relacionamento desses grupos com o meio no qual vivem.
Por fim, foi incluído ainda o critério de autodefinição ou autoidentificação (“grupos
que se reconhecem como tais”) e não apenas a atribuição externa, levando-se em conta que tal
critério deve implicar, além dos aspectos históricos, os aspectos culturais, políticos e
econômicos.
Ressalte-se, contudo, conforme pontua Ronaldo Lobão (2006), que o processo através
do qual o acesso aos direitos desses grupos, bem como a recursos públicos e programas
governamentais, devem passar pela categorização e recenseamento Estado e seus agentes.
Assim, mesmo o processo de autoidentificação desses grupos deve, necessariamente, passar
pelas malhas do Estado, de modo que os diferentes agentes e órgãos que o compõe – a
exemplo das Secretarias de Meio Ambiente, Universidades, ONGs – disputam entre si
“reconhecimento e a definição de quais grupos são elegíveis para efeito de aplicação dos
dispositivos legais” (LOBÃO, 2006, p. 155).
Nesse sentido, cumpre ainda destacar, com relação à apropriação pelos aparelhos de
estado, que a elaboração e divulgação de políticas públicas e a criação de órgãos que
incorporam tal categoria nas suas definições institucionais propiciam, ao mesmo tempo, a
invenção e a oficialização dessas categorias.
66
Conforme
destaca
Lobão
(2006)
é
possível
verificar
esse
processo
de
institucionalização de categorias nas modificações processadas no órgão do CNPT – que até
1995 CNPT significava “Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações
Tradicionais”; de 1995 a 2004 “Centro Nacional para o Desenvolvimento Sustentado das
Populações Tradicionais” e a partir de 2004 “Centro Nacional de Populações Tradicionais e
Desenvolvimento Sustentável”34. Sobre esse processo, ressalta Lobão (2006, p.45):
No decreto que regulamentou as Reservas Extrativistas decreto 98.987, de
30 de janeiro de 1990, o grupo local que poderia explorar os recursos
naturais de uma Resex ainda era denominado população extrativista
(BRASIL, 1990, art. 1º). Em fevereiro de 1992, foi criado o Centro Nacional
de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais – CNPT. O
nome do órgão que passou a ser o responsável pela criação, consolidação e
desenvolvimento da Resex, no âmbito do IBAMA, consagrou em sua criação
dois conceito novos no processo: o de “desenvolvimento sustentado” e de
“populações tradicionais” (LOBÃO, 2006, p. 45).
Assim, percebe-se que esses conceitos e categorias ao serem oficializados e
consolidados em políticas governamentais terminam por exercer um importante papel na
produção de novos significados, consagrando uma mudança radical ao oficializar essas
categorias no “mundo das regras, das leis e regulamentos” (LOBÃO, 2006, p.44).
Entretanto, ainda que tais expressões, como “povos e comunidades tradicionais”,
sejam incorporadas em diversos instrumentos legislativos bem como apropriada e/ou
construída pelos aparelhos de Estado (tanto por meio de políticas públicas quanto através da
criação de órgãos que incorporam tais expressões em suas definições institucionais), isso não
gera, de forma automática, o acatamento das reivindicações encaminhadas pelos movimentos
sociais representativos desses grupos, tampouco consensos no que se refere à inclusão desses
grupos sociais nessas categorias externas.
34
Atualmente a sigla CNPT designa o “Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Socio-biodiversidade
Associada a Povos e Comunidades Tradicionais”, centro “com expertise técnico-científica” criado pelo Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) por meio da portaria nº 78 de 03 de setembro de
2009. Conforme art. 1º, inc. I, alínea “d” da referida portaria, constituí-se como objetivo do CNPT – que possui
sede no município de São Luis, estado do Maranhão – “promover pesquisa científica em manejo e conservação
de ambientes e territórios utilizados por povos e comunidades tradicionais, seus conhecimentos, modos de
organização social, e formas de gestão dos recursos naturais, em apoio ao manejo das Unidades de Conservação
federais”.
67
2.2 Análise da construção sociológica da expressão “povos e comunidades tradicionais”
Antonio Carlos Diegues (1996), Manoela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida
(2001), Paul Litlle (2002) e Alfredo W. B. de Almeida (2008a, 2008b, 2009), são alguns dos
cientistas sociais que, nos seus trabalhos e publicações, destacam a heterogeneidade de grupos
sociais considerados “povos e comunidades tradicionais”, bem como a diferenciação interna
existente dentro de um mesmo povo ou comunidade. De igual forma, abordam em seus
trabalhos elementos sobre os quais, para além da extrema multiplicidade de práticas
socioculturais e econômicas existentes, seja possível falar em pontos de unificação e de
aproximação entre esses grupos tão diversos.
No intuito de melhor compreender esses pontos de convergência existentes entre as
concepções defendidas nos trabalhos desses autores, iremos retomar, de forma breve, as suas
principais ideias no que concerne a expressão “povos e comunidades tradicionais”.
Antonio Carlos Diegues (1996, p.125) pontua que a preocupação com as chamadas
“populações tradicionais” no Brasil é relativamente recente e ao se referir a esses grupos,
utiliza a denominação “culturas tradicionais”.
Por “culturas tradicionais” entende os padrões de comportamento transmitidos
socialmente, ou seja, “modelos mentais usados para perceber, relatar e interpretar o mundo,
símbolos e significados socialmente compartilhados, além de seus produtos materiais,
próprios do modo de produção mercantil” (DIEGUES, 1996, p. 87).
Além dessa definição, Diegues (1996, p. 88) enumera outras as características que são
peculiares às culturas tradicionais, dentre as quais:
a) dependência e até simbiose com a natureza, os ciclos naturais e os
recursos naturais renováveis a partir dos quais se constrói um modo de vida;
b) conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos que se reflete na
elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse
conhecimento é transferido de geração em geração por via oral;
c) noção de território ou espaço onde o grupo social se reproduz econômica e
socialmente;
d) moradia e ocupação desse território por várias gerações, ainda que alguns
membros individuais possam ter-se deslocado para os centros urbanos e
voltados para a terra de seus antepassados;
e) importância das atividades de subsistência, ainda que a produção de
mercadoria possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implica uma
relação com o mercado;
f) reduzida acumulação de capital;
g) importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações
de parentesco ou compadrio para o exercício das atividades econômicas,
sociais e culturais;
h) importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, à pesca e
atividades extrativas;
68
i) a tecnologia utilizada é relativamente simples, de impacto limitado sobre o
meio ambiente. Há reduzida divisão técnica e social do trabalho,
sobressaindo o artesanal, cujo produtor (e sua família) domina o processo de
trabalho até o produto final;
j) fraco poder político, que em geral reside com os grupos de poder dos
centros urbanos;
l) auto-identificação ou identificação pelos outros de se pertencer a uma
cultura distinta das demais.
Para Diegues, tais características são identificadoras das “populações tradicionais” (o
que evidencia uma visão um tanto quanto essencializada e normativa do autor no que se refere
a esses grupos) e demonstram a estreita conexão que estes grupos mantêm com os recursos
naturais, vez que seus modos de fazer e viver dependem dessa conexão.
Já os antropólogos Manuela Carneiro Cunha e Mauro Almeida (2001) destacam que o
processo de criação e apropriação de categorias não deve ser encarado como uma novidade no
âmbito das Ciências Sociais, uma vez que termos como índios, tribais, nativos, aborígenes e
negro são todas categorias externas, criadas quando do contato com o colonizador europeu.
De acordo os autores, ainda que tenham sido genéricos, artificiais e impostos como
categorias de classificação exógena eles foram, aos poucos, sendo habitados por “gente de
carne e osso”, que acabaram por incorporar e reverter um estigma negativamente imputado
por meio de sua apropriação como categoria de luta e mobilização. Conforme destacam:
Não deixa de ser notável o fato de que com muita freqüência os povos
começaram habitando essas categorias pela força, tenham sido capazes de
apossar-se delas, convertendo termos carregados de preconceito em
bandeiras mobilizadoras. Nesse caso a deportação para um território
conceitual estrangeiro terminou resultando na ocupação e defesa desse
território (CUNHA e ALMEIDA, 2001, p. 184).
Pensando no caso das chamadas “populações tradicionais”35, os autores destacam que
houve uma mudança de rumo ideológico no que se refere a esses grupos, sobretudo pensando
no caso das populações da Amazônia, historicamente associadas como entraves aos projetos e
concepções desenvolvimentista até então vigentes (ou, como destacam, quando muito
candidatas a serem positivamente “transformadas” por esses projetos e concepções).
Essa mudança ideológica, conforme enfatizam, ocorreu basicamente devido a
associação feita entre essas populações, seus conhecimentos tradicionais e a conservação
ambiental. Um ponto de unificação entre esses grupos para Cunha e Almeida (2001, p. 184) é
justamente o fato de que possuem, ou tiveram, em algum momento, uma relação histórica de
35
Manuela Carneiro Cunha e Mauro Almeida (2001) trabalham com a categoria “populações tradicionais”, tendo
em vista que o termo “povos e comunidades tradicionais” é resultado de um processo social, histórico e político
de reelaboração da expressão, processo discutido no item 2.1 deste capítulo.
69
baixo impacto ambiental e que se comprometem a “prestar serviços ambientais em troca da
recuperação ou manutenção do controle sobre o território”.
Embora reconheçam que o termo “populações tradicionais” é propositalmente
abrangente, os autores defendem que essa abrangência não deve ser interpretada como
confusão conceitual. Destacam ainda que definir tais populações como apegadas à tradição
seria contraditório aos conhecimentos antropológico atuais, ou defini-las como tradicionais
por estarem fora do mercado também não se coaduna com as práticas socioeconômicas e
culturais desses grupos. Defini-los com base nesses critérios, portanto, tornaria praticamente
impossível a identificação desses grupos.
Uma definição que esboçam sobre esses grupos é de que:
Populações tradicionais são grupos que conquistaram ou estão lutando para
conquistar (por meios práticos e simbólicos) uma identidade pública que
inclui algumas e não necessariamente todas as seguintes características: o
usos de técnicas ambientais de baixo impacto, formas equitativas
organização social, a presença de instituições com legitimidade para fazer
cumprir com suas leis, liderança local e, por fim, traços culturais que são
seletivamente reafirmados e reelaborados (CUNHA e ALMEIDA, 2001, p.
192).
Assim, tornar-se tradicional, para estes autores, inclui um processo de autoconstituição
que se faz em meio a lutas e conquistas, tanto para a afirmação da sua identidade como para
acessarem o controle sobre seus territórios, ressaltando que este processo passa pelo
estabelecimento de regras de conservação, bem como formação de alianças com agentes
externos. Segundo os autores: “deve estar claro que a categoria de ‘populações tradicionais’ é
ocupada por sujeitos políticos que estão dispostos a constituir um pacto: comprometer-se a
uma série de práticas, em troca de algum tipo de benefício e sobretudo de direitos territoriais”
(CUNHA e ALMEIDA, 2001, p. 192).
Alfredo Wagner Berno de Almeida (2008b, p. 95), ao analisar os processos de
políticas de identidade e de modalidades de existência coletiva, afirma que se está diante da
fabricação de novas unidades discursivas. Tais unidades, ao mesmo tempo em que
substantivam e diversificam o significado das “terras tradicionalmente ocupadas”, refletem
mobilizações políticas levadas a cabo por sujeitos da ação que, a despeito das suas diferenças,
podem ser agrupados por diferentes critérios, tais como “raízes locais profundas, laços de
solidariedade reafirmados mediante a implantação de ‘grandes projetos de exploração
econômica’, fatores políticos-organizativos, autodefinições coletivas, consciência ambiental e
elementos distintivos de uma identidade coletiva”. Segundo o autor:
70
Em virtude disto é que se pode dizer que mais do que uma estratégia de
discurso tem-se o advento de categorias que se afirmam através de uma
existência coletiva, politizando não apenas as nomeações da vida cotidiana,
mas também um certo modo de viver e suas práticas rotineiras no uso dos
recursos naturais (ALMEIDA, 2008b, p. 89).
O autor pontua que, apesar da heterogeneidade nas condições materiais de existência
dos “povos e comunidades tradicionais”, os mesmos têm em comum, sobretudo, o fato de
serem alvo das intervenções estatais universalizantes que desconsideram suas especificidades.
Pode-se, diante disso, afirmar que o termo “tradicional” passa por um processo de
ressemantização, tendo em vista não se referir de forma exclusiva a fatos passados, mas sim,
atrelado a fatos do presente e às atuais reivindicações dos movimentos sociais. Não pode,
portanto, ser reduzido à história, ao passado, pois incorpora reivindicações atuais e que
decorrem, diretamente, da ação estatal que ameaça, fragiliza e desestabiliza tais grupos.
Conforme afirma Almeida (2008b, p. 123).
Neste sentido, não se está diante do “tradicional” que resiste às políticas
governamentais “modernas”, mas sim do tradicional que é construído a partir
do fracasso destas políticas em assegurar, para além do discurso, o que
dizem ser um ‘desenvolvimento sustentável’. Aqueles agentes sociais que 15
anos atrás eram considerados como residuais ou remanescentes hoje se
revestem de uma forma vívida e ativa, capaz de se contrapor a antagonismos
que tentam usurpar seus territórios.
Nesse sentido, Almeida (2008b) utiliza a noção de "unidades de mobilização” que se
refere a grupos que, ainda que não representem necessariamente categorias profissionais ou
segmentos de classe, têm se organizado em todo o país com vistas à mobilização e articulação
política. Conforme Almeida, “unidades de mobilização” se refere a:
Aglutinação de interesses específicos de grupos sociais não necessariamente
homogêneos, que são aproximados circunstancialmente pelo poder nivelador
da intervenção do Estado – através de políticas desenvolvimentistas,
ambientais e agrárias – ou das ações por ele incentivadas e empreendidas,
tais como as chamadas obras de infra-estrutura que requerem deslocamentos
compulsórios (ALMEIDA, 2008b, p. 32).
Assim, os elementos básicos que possibilitam a composição de vínculos solidários
entre agentes pertencentes a grupos tão distintos emanam de intervenção estatal e/ou de
empreendimentos da iniciativa privada, que ameaçam as condições de vida e de existência
desses grupos e possibilitam a formação e articulação política de movimentos contestatórios
perante essas ações.
Conforme Almeida (2009, 2008b), esses grupos, outrora classificados como
camponeses ou trabalhadores rurais (sobretudo por partidos políticos, movimento sindical dos
71
trabalhadores rurais e entidades confessionais), passam a se articular a “novos” movimentos
de identificação que, sem destituir o atributo dessas categorias36, possibilitam uma maior
mobilização face ao poder do Estado, visando a manutenção do controle sobre seus territórios
e, em alguns casos, a sua (re)afirmação étnica. Segundo Almeida:
A nova estratégia do discurso dos movimentos sociais no campo, ao designar
os sujeitos da ação, não aparece atrelada à conotação política que em
décadas passadas estava associada principalmente ao termo “camponês”.
Politiza-se aqueles termos e denominações de uso local. Seu uso cotidiano e
difuso coaduna com a politização das realidades localizadas, isto é, os
agentes sociais se erigem em sujeitos da ação ao adotarem como designação
coletiva as denominações pelas quais se autodefinem e são representados na
vida cotidiana (ALMEIDA, 2008b, p. 80).
Tais “unidades de mobilização”, conforme destaca Almeida (2009, p. 519) devem ser
percebidas como forças sociais que alteram padrões tradicionais de relação política com os
centros de poder e com instâncias de intermediação, possibilitando ainda a emergência de
lideranças independentes e desatreladas daqueles que detêm o poder local.
Destaque-se, neste particular, que mesmo distante da pretensão de serem
movimentos para a tomada de poder político, logram generalizar o localismo
das reivindicações e mediante estas práticas de mobilização aumentam seu
poder de barganha face o governo e o Estado. Para tanto suas formas de
atuação transcendem as realidades localizadas e geram movimentos de maior
abrangência, que agrupam diferentes unidades (ALMEIDA, 2009, p. 519).
Cumpre ainda destacar que esses sujeitos sociais, nesse processo de transformação de
uma existência atomizada para uma existência coletiva que, de acordo com Almeida (2008a,
p. 143), pode ser “objetivada numa diversidade de movimentos sociais e suas respectivas
redes sociais, redesenhado a sociedade civil da Amazônia e impondo seu reconhecimento aos
centros de poder”, contam com um suporte técnico capacitado e permanente.
Esta assessoria técnica é prestada por ONGs, universidades, instituições de pesquisa,
conforme mencionamos no capítulo anterior ao nos referirmos à utilização de estratégias
internacionais no processo de importação de modelos institucionais.
Percebe-se, pois, uma forte articulação entre o conhecimento científico (produzido,
sobretudo, por intelectuais engajados e que intervêm na luta política desses grupos por meio
36
De acordo Almeida (2008b, p. 88), “tal multiplicidade de categorias cinde, portanto, com o monopólio político
do significado do termo camponês e trabalhador rural, que até então eram utilizados com prevalência por
partidos políticos e pelo movimento sindical centralizado na CONTAG (Conferência Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura) e do termo “posseiro” utilizado pelas entidades confessionais (CPT - ACRE). Tal
ruptura ocorre sem destituir o atributo político daquelas categorias de mobilização, haja vista que quilombolas,
quebradeiras de coco, seringueiros, pescadores, garimpeiros e ‘atingidos’ também se associam a Sindicatos de
Trabalhadores Rurais através dos quais passam a ter direitos aos benefícios da previdência social”.
72
de sua competência técnica e seu saber e prestígio acadêmicos) e os integrantes dos
movimentos sociais dos chamados “povos e comunidades tradicionais”.
Destaque-se, ainda, o fato de que os representantes dos movimentos sociais desses
grupos passam por um processo constante de capacitação, que inclui, além da articulação com
instituições internacionais para a capacitação em temas relacionados com a sua atuação
militante, a obtenção de formação universitária e a conversão dessa formação em prol de
causas específicas. Nesse sentido, afirma Almeida (2008a, p. 145):
Às lutas pelo livre acesso das chamadas ‘populações tradicionais’ aos
recursos naturais acrescente-se aquela de uma nova geração de índios,
quilombolas e seringueiros, que migrou para as cidades concluindo cursos de
formação superior e que agora se voltam para aprimorar seus estudos na
questão do patenteamento e dos direitos territoriais.
Dessa forma, não se pode desconsiderar a formação de redes de organização e
movimentos que objetivam capacitar os agentes para que, em muitos casos, a interlocução
entre os representantes dos “povos e comunidades tradicionais” e o Estado se faça
diretamente, sem intermediários.
Já Paul Litlle (2002) discorre sobre a diversidade de grupos englobados pelas
categorias “populações”, “comunidades”, “povos”, “culturas”, bem como a quantidade de
termos que são utilizados para adjetivar tais grupos, como “tradicionais”, “autóctones”,
“rurais”, “locais” dentre outros, revelando a complexidade que tais nomeações acarretam.
Conforme pontua:
Qualquer dessas combinações é problemática devido à abrangência e
diversidade de grupos que engloba. De uma perspectiva etnográfica, por
exemplo, as diferenças entre as sociedades indígenas, os quilombos, os
caboclos, os caiçaras e outros grupos ditos tradicionais – além da
heterogeneidade interna de cada uma dessas categorias – são tão grandes que
não parece viável tratá-los dentro de uma mesma classificação (LITLLE,
2002, p. 02).
Oura dificuldade decorre da opção da palavra “tradicional” para se referir a esses
grupos, tendo em vista que este termo já se apresenta tão carregado de significados e quase
sempre vislumbrado como oposto a noção de moderno37, incidindo assim na associação
desses grupos com concepções de imobilidade histórica, atraso econômico e social.
37
Nesse sentido, afirma Litlle (2002, p. 22) que “A teoria da modernização, por exemplo, prognosticava a
inevitável (e desejável) superação da “sociedade tradicional” (...) Todavia, nesta análise, a importância dada às
constantes mudanças históricas provocadas pelos processos seculares de fronteiras em expansão e aos múltiplos
tipos de territórios sociais que produziram, mostra que o uso do termo tradicional aqui refere explicitamente a
realidades fundiárias plenamente modernas (e, se quiser, pós-modernas) do século XXI. Aqui a conceito de
73
A despeito desses “entraves”, Litlle (2002, p. 23) defende a utilização desta expressão
nas Ciências Sociais, tendo em vista que a mesma “procura oferecer um mecanismo analítico
capaz de juntar fatores como a existência de regimes de propriedade comum, o sentido de
pertencimento a um lugar, a procura de autonomia cultural e práticas adaptativas sustentáveis”
dos variados grupos englobados por esta categoria.
Com relação à impossibilidade aparente de tratar tais grupos como pertencentes a uma
mesma categoria, o autor, tendo como foco a questão territorial, se propõe a demonstrar
semelhanças importantes existentes quando se vinculam tais grupos às suas reivindicações e
lutas fundiárias (semelhanças estas que ficam ocultas quando se utilizam outras categorias),
sem contudo, eliminar ou ignorar as diferenças efetivamente existentes entre os diversos
grupos.
No que concerne às suas reflexões sobre o processo de criação de conceitos
territoriais, Litlle (2002) destaca que tal atividade deve ser considerada, ao mesmo tempo,
uma atividade acadêmica centrada na descrição de territorialidades existentes, mas, também,
uma atividade política utilizada para o reconhecimento legal desses grupos. Assim, enfatiza
que é possível constatar no conceito de “povos tradicionais” tanto uma dimensão empírica
quanto uma dimensão política, de modo tal que as duas dimensões são praticamente
inseparáveis.
Por outro lado, o autor chama atenção para que esse fenômeno de convergência entre
categorias sociológicas, jurídicas e políticas pode levar ao risco de fundir o lado conceitual
com o lado pragmático, levando a substituição das categorias etnográficas pelas categorias
jurídicas. Conforme pontua, “a análise etnográfica, mesmo quando engajada em lutas
políticas, necessita manter certa autonomia, tendo a realidade empírica em toda sua
complexidade − e não só seu lado instrumental − como seu fundamento em última instância”
(LITLLE, 2002, p. 15).
Com relação ao termo “povos e comunidades tradicionais” e seus subsequentes usos,
tanto políticos, quanto sociais, Paul Litlle (2002, p. 23) destaca os diferentes contextos nos
quais a expressão é utilizada. Dentre eles, o autor destaca o processo das fronteiras em
expansão (no qual o termo é acionado com vistas a defender o território da usurpação do
Estado), da união dos movimentos ambientalistas e socioambientalista e ainda no âmbito dos
tradicional tem mais afinidades com uso recente dado por Sahlins (...) quando mostra que as tradições culturais
se mantêm e se atualizam mediante uma dinâmica de constante transformação”.
74
debates internacionais (atrelados às discussões sobre reconhecimento e legitimidade
vinculadas à Convenção 169 da OIT).
Cumpre ainda analisar um aspecto bastante enfatizado pelos diferentes teóricos
implicados nas reflexões sobre esses grupos, quais sejam os debates em torno do processo de
territorialização e identificação ou, em outros termos, o processo de construção de identidades
coletivas articulado à construção de territórios específicos, o que será discutido no próximo
tópico.
2.3 Processo de territorialização e identificação
A territorialização, para Almeida (2008b), deve ser entendida como um processo
resultante de uma conjugação de fatores, que envolvem desde a capacidade mobilizatória em
torno de uma política de identidade, até um “jogo de forças” em que os agentes sociais, por
meio de suas expressões organizadas, travam lutas e reivindicam direitos face ao Estado.
Assim, entender a territorialização como um processo implica em reconhecer que o agente
está implicado nessa construção social.
Ainda de acordo com o autor, o processo político de construção de identidades
coletivas se dá de forma conjunta e articulada à construção de territórios específicos. As
identidades, portanto, são redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada,
apresentando-se como produtos de reivindicações e de lutas, sobretudo, perante o Estado,
levando a um redesenho da sociedade civil pelo advento de vários movimentos sociais. Nesse
sentido, destaca Almeida (2008b, p. 72):
A estas formas associativas, expressas pelos “novos movimentos sociais”
(...), que agrupam e estabelecem uma solidariedade ativa entre os sujeitos,
delineando uma “política de identidades” e consolidando uma modalidade de
existência coletiva (Conselho Nacional dos Seringueiros, Movimento
Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, Coordenação Nacional de
Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, Movimento
Nacional dos Pescadores, Movimento dos Fundos de Pasto...), correspondem
territorialidades específicas onde realizam sua maneira de ser e asseguram
sua reprodução física e social. Em outras palavras pode-se dizer que cada
grupo constrói socialmente seu território de uma maneira própria, a partir de
conflitos específicos em face de antagonistas diferenciados, e tal construção
implica também numa relação diferenciada com os recursos hídricos e
florestais.
Cumpre destacar que essas territorialidades específicas não podem ser confundidas
como correspondentes às categorias formais utilizadas pelo Estado para cartografar, mapear
75
ou situar geograficamente esses grupos, tais como ocorre com a noção de terra, imóvel rural
ou estabelecimento, uma vez que as modalidades de apropriação do território não encontram
correspondência com o ordenamento jurídico formal38.
Nesse sentido, pode-se afirmar que há uma limitação das categorias cadastrais e
censitárias no que se refere à identificação desses grupos, da mesma forma que se pode
afirmar que tais lacunas são reflexos da pouca preocupação do Estado com as chamadas
“comunidades tradicionais”.
Já Paul Litlle (2002) articula suas reflexões sobre os “povos e comunidades
tradicionais” a partir da categoria da territorialidade, definida como sendo o “esforço coletivo
de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de
seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu ‘território’” (2002, p. 03).
A partir da categoria territorialidade e a despeito da extrema diversidade entre os
grupos, bem como das diferenciações internas existentes em um mesmo grupo, o autor
procura evidenciar que é possível encontrar semelhanças importantes entre eles.
Este novo “olhar analítico”, como define Litlle (2002), permite vincular essas
semelhanças às suas reivindicações e lutas fundiárias, descobrindo possíveis eixos de
articulação social e política que levam a uma modificação do quadro de invisibilidade social e
marginalidade econômica a que esses grupos foram historicamente submetidos.
Com relação à discussão sobre território e territorialidade, cumpre ainda destacar as
reflexões desenvolvidas pelo geógrafo Haesbaert Costa (2009), que nos ajudam a melhor
compreender as diferentes dimensões envolvidas nestes conceitos.
O autor direciona as suas análises com vistas a explicitar o que se entende por
território, tendo por objetivo desconstruir a confusão conceitual que se observa nos debates
realizados nas Ciências Sociais sobre o que se convencionou chamar de “desterritorialização”
ou “fim dos territórios”.
Assim sendo, suas reflexões são elaboradas em torno das seguintes questões básicas
sobre os discursos e práticas da “desterritorialização”: geralmente não há uma definição clara
de território nesses debates; a “desterritorialização” é focalizada quase sempre como um
processo genérico e uniforme, nunca vinculado a sua contraparte, qual seja, a (re)
territorialização e, por fim, a “desterritorialização”, como sinônimo de “fim dos territórios”, é
38
Conforme Almeida (2008a, p. 147), em texto referente à questão fundiária da Amazônia, “os grupos que se
objetivam em movimentos sociais se estruturam também para além de categorias censitárias oficiais. Importa
distinguir a noção de terra daquela de território e assinalar que as categorias imóvel rural usada pelo INCRA, e
estabelecimento, acionada pelo IBGE, já não bastam para compreender a estrutura agrária da Amazônia. Os
critérios de propriedade e posse não servem exatamente de medida para configurar os territórios em consolidação
na Amazônia”.
76
apresentada como se a predominância de redes39 implicasse, necessariamente, na dissociação
ou na oposição da noção de território.
Como expõe o autor, a crescente globalização e mobilidade espacial não podem ser
tomados como sinônimos de desterritorialização, pois a desterritorialização pode ocorrer sem
que haja deslocamento físico, “bastando para isso que vivenciem uma precarização das suas
condições básicas de vida e/ou a negação de sua expressão simbólico-cultural” (COSTA,
2009, p. 251).
Para Haesbaert Costa (2009), o que muitos autores denominam de desterritorialização
é, no seu ponto de vista, a intensificação da territorialização, ou seja, um processo de
multiterritorialidade no qual se observa, concomitantemente, a destruição e a construção de
territórios, “mesclando diferentes modalidades territoriais (como os territórios-zona e os
territórios-rede) em múltiplas escalas e novas formas de articulação territorial”40 (COSTA,
2009, p. 32).
Nesse sentido, Arturo Escobar (2005), refletindo sobre os debates em torno do
“desparecimento” do lugar diante os processos desterritorialização, propõe uma fuga das
armadilhas epistemológicas impostas pelas teorias da globalização por meio da articulação da
defesa do “lugar”.
Sem desconhecer o fato de que os processos globais alteraram as dinâmicas culturais e
econômicas, o autor destaca que tem ocorrido uma assimetria neste debate, de modo que para
alguns a condição generalizada do dessenraizamento tornou-se a condição dos tempos atuais,
o que, por sua vez, tem levado ao enfraquecimento do “lugar” e uma limitação na compressão
da cultura, do conhecimento, da natureza e da economia. Conforme afirma:
O lugar e a consciência baseada no lugar têm sido marginalizadas nos
debates sobre o global e o local. Isto é duplamente lamentável porque, por
um lado, o lugar é central no tema do desenvolvimento, da cultura e do meio
ambiente, e é igualmente essencial, por outro lado, para imaginar outros
contextos para pensar acerca da construção da política, do conhecimento e
39
Embora o autor não apresente uma definição do que entende por “rede”, podemos afirmar, com base nas suas
reflexões, que a “rede” pode ser compreendida como a articulação através de múltilas escalas, que ligam o global
ao local, conectando diferentes pontos ou áreas. Assim, associando essa noção de rede à de território (e não
vislumbrando-as como esferas dissociadas), Haesbaert Costa compreende a formação dos territórios-rede, que,
embora espacialmente descontínuos, são extremamente conectados e articulados entre si (COSTA, 2009, p. 79).
40
De forma geral, com base nas ideias desenvolvidas por Haesbaert Costa (2009), podemos tomar o fenômeno
da desterritorialização como exclusão, privação ou precarização do território como recurso ou apropriação
material ou simbólica indispensável à nossa participação efetiva como membros de uma sociedade. Já a
territorialização seriam as relações de domínio e apropriação do espaço, ou seja, nossas mediações espaciais do
poder, poder em sentido amplo, que se estende do mais concreto ao mais simbólico. Por fim, a
multiterritorialidade implicaria na possibilidade de acessar ou conectar diversos territórios, o que pode se dar
tanto através de uma mobilidade concreta, no sentido de um deslocamento físico, quanto virtual, no sentido de
acionar diferentes territorialidades mesmo sem deslocamento físico.
77
da identidade. O desaparecimento do lugar é um reflexo da assimetria
existente entre o global e o local na maior parte da literatura contemporânea,
na qual o global está associado ao espaço, ao capital, à história e à ação
humana, enquanto o local, contrariamente, é vinculado ao lugar, ao trabalho
e as tradições, assim como sucede com as mulheres, as minorias, os pobres e
poder-se-ia acrescentar, as culturas locais (ESCOBAR, 2005, p. 151).
Entendendo o lugar como sendo a “experiência de uma localidade específica com
algum grau de enraizamento, com conexão com a vida diária, mesmo que sua identidade seja
construída e nunca fixa” (ESCOBAR, 2005, p. 134), o autor destaca que o predomínio do
espaço sobre o lugar tem levado à invisibilidade de modelos culturalmente específicos. Tais
modelos, que não são baseados na relação binária entre natureza e cultura, possibilitam a
continuidade entre o mundo biofísico, humano e supra natural, bem como modos de
identificação e classificação diferenciados.
Para Escobar (2005, p. 136) é possível – e necessário – que seja realizada uma defesa
do lugar, mas sem naturalizá-lo, sem reificar as permanências, a presença, a ligação, a
corporeidade e similares e, principalmente, reinterpretando os lugares e vinculando-os a
construção de redes e que permitam a transposição de fronteiras e identidades parciais sem
descartar completamente a noções de enraizamento, limites e pertencimentos.
Uma das condições que tornam possível a defesa e o reforço do lugar é por meio de
redes reais e virtuais, coalizões de movimentos sociais e através de coalizões heterogêneas de
diversos atores como acadêmicos, ativistas, ONGs. Conforme destaca o autor:
Redes tais como as dos indígenas, dos ambientalistas, das ONGs e outros
movimentos sociais estão tornando-se mais numerosas e adquirindo maior
influência nos níveis locais, nacionais e transnacionais. Muitas destas redes
podem ser vistas como produtoras de identidades baseadas-no-lugar, e ao
mesmo tempo transnacionalizadas (ESCOBAR, 2005, p. 160).
É possível, portanto, que o lugar seja reinterpretado a partir das redes e mesmo de
espaços desterritorializados. No que concerne à definição do termo território, Costa (2009)
ressalta a enorme polissemia que acompanha a utilização do conceito pelos autores de
diferentes áreas de conhecimento41, destacando ainda que boa parte das confusões advindas
41
Afirma Haesbaert Costa (2009, p. 40) que, de forma geral, a noção de território pode ser abrigada em três
grupos de concepções bastante diferenciadas entre si. No primeiro deles, a noção de território está relacionada as
relações de espaço-poder em geral, configurando a vertente política ou jurídico-política do território. Essa noção
é a mais difundida, na qual o território é visto como um espaço delimitado e controlado pelo poder do Estado. A
segunda noção refere-se ao território cultural ou simbólico-cultural, na qual se prioriza a dimensão simbólica e
subjetiva implicadas no território, “em que o território é visto, sobretudo, como produto da
apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido”. Por fim, tem-se a noção
econômica do território, sendo a menos difundida das três, e que enfatiza a dimensão espacial das relações
78
do uso do termo território decorre justamente da perspectiva que o considera como simples
sinônimo de espaço ou espacialidade, ou como a simples e genérica dimensão material da
realidade.
Assim, como forma de superar essa visão reducionista do território, o autor destaca a
necessidade de buscar uma superação da dicotomia entre as perspectivas materialistas e
idealistas do território. Na perspectivas materialistas tem-se a ênfase nas relações econômicas
de produção e, sobretudo, conotação fortemente vinculada ao espaço físico como evidência
empírica, ao passo que nas perspectivas idealistas, desenvolvidas, sobretudo, nas Ciências
Sociais, em especial na Antropologia, as referências são feitas de forma mais enfáticas aos
“poderes invisíveis” que fazem parte do território, ou seja, a valorização do território como
representação e realidade simbólica.
O autor defende ainda que o território deve ser pensado em seu sentido relacional, ou
seja, uma relação social mediada e moldada na/pela materialidade, portanto, não deve ser tido
como uma “coisa” que se possui ou um espaço que visa o enraizamento, a estabilidade, a
delimitação e/ou a fronteira. Nesse sentido, conforme destaca Costa (2009, p. 79):
Fica evidente neste ponto a necessidade de uma visão de território a partir da
concepção de espaço como um híbrido entre sociedade e natureza, entre
política, economia e cultura, e entre materialidade e idealidade, numa
complexa integração tempo-espaço (...), na indissociação entre movimento e
(relativa) estabilidade – recebam estes os nomes de fixos e fluxos, circulação
e ‘iconografia’ ou o que melhor nos aprouver. Tendo como pano de fundo
esta noção híbrida (e, portanto, múltipla, nunca indiferenciada) de espaço
geográfico, o território pode ser concebido a partir da imbricação de
múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômicopolíticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente
cultural.
O autor chama atenção para o fato de que, mais do que território, territorialidade é o
conceito utilizado para enfatizar essas questões de ordem simbólico-cultural. Assim, os
processos de territorialidade teriam como referência justamente esses aspectos simbólicos,
que, por sua vez, estão diretamente referidos às relações sociais e culturais, bem como a
contextos históricos específicos.
Dessa forma, é importante situar a que contexto se refere essa noção de território e de
territorialidade, uma vez que os grupos e sociedades possuem diferentes formas de incorporar
essa relação com as esferas materialistas e idealistas. Nesse sentido, conforme afirma Costa
(2009, p. 73), o grau de centralidade do território na cosmovisão dos grupos sociais pode ser
econômicas, passando o território a ser concebido como fonte de recursos e/ou incorporado no debate entre
classes sociais e na relação capital-trabalho.
79
bastante variável, daí a necessidade de se redobrarem os cuidados quando da utilização deste
conceito em contextos socioculturais distintos.
Assim, de acordo com Haesbaert Costa (2009), ainda que não seja o elemento
dominante e tampouco esgote as características do território, este caráter ou dimensão
simbólica deve ser sempre considerado quando da análise dos processos de territorialização.
Sobre esse aspecto, o autor destaca que uma noção de território que ignore a sua dimensão
simbólica – mesmo entre aquelas que enfatizam seu caráter político – implica na limitação em
compreender os laços existentes entre espaço e poder42.
Por fim, cumpre ainda destacar o caráter que assume o território como instrumento de
classificação, que opera as suas distinções tanto internamente – levando a uma padronização,
uma vez que todos os que estão dentro de seus limites tendem a ser vistos como “iguais” –
quanto externamente – uma vez que na relação com outros territórios estabelece-se uma
relação de diferença entre os que se encontram no interior e os que se encontram fora de seus
limites.
Toda relação de poder espacialmente mediada é também produtora de
identidade, pois controla, distingue, separa e, ao separar, de alguma forma,
nomeia e classifica os indivíduos e os grupos sociais. E vice-versa: todo
processo de identificação social é também uma relação política, acionada
como estratégia em momentos de conflito e/ou negociação (COSTA, 2009,
p. 89).
Pensando nesses processos de identificação que tem no território um elemento
constituinte, Araújo (2007) destaca a necessidade de se trabalhar mais com interseções e
ambivalências do que com fronteiras ou limites bem definidos, da mesma forma que ressalta o
jogo entre material e imaterial e as relações de poder implicadas nesse processo de
identificação, que é, ao mesmo tempo, um processo de classificação. Conforme destaca,
“estas classificações com que re-significamos o mundo, nós e os outros, inclusive através dos
territórios, são objetos de intensas disputas entre aqueles que têm o poder de formular e
mesmo de fixar essas classificações” (ARAÚJO, 2007, p. 37).
Com relação às classificações baseadas em identidades territoriais, é importante fazer
algumas considerações, ainda que gerais, sobre o tema. Nesse contexto a noção de “luta das
42
Nas palavras do autor, “o poder não pode de maneira alguma ficar restrito a uma leitura materialista, como se
pudesse ser devidamente localizado e ‘objetificado’. Num sentido também aqui relacional, o poder como relação,
e não como coisa a qual possuímos ou da qual somos expropriados, envolve não apenas as relações sociais
concretas, mas também as representações que elas veiculam e, de certa forma, também produzem. Assim, não há
como separar o poder político num sentido mais estrito e poder simbólico (COSTA, 2009, 93).
80
classificações” utilizada por Bourdieu (1998) é de grande valia para pensar o processo em
análise.
Essa luta, que segundo o autor é a luta pela definição da identidade regional ou étnica
legítima, tem mais relação com as representações mentais e atos de percepção e apreciação,
conhecimento e reconhecimento do que com critérios objetivos de identidade “regional” ou
étnica, oriundos da “realidade”.
Conforme destaca, tais lutas se estabelecem em torno do “monopólio de fazer ver e
fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões
do mundo social através dos princípios de di-visão” (BOURDIEU, 1998, p. 113), de tal forma
que quando são impostas como legítimas ao conjunto de um determinado grupo, concretizam
e tornam “real” o sentido e a unidade do grupo.
Assim sendo, conforme Bourdieu, o que é instituído é o resultante, num dado
momento, da luta para fazer existir ou “inexistir” o que existe e as representações são
enunciados performativos que pretendem que aconteça aquilo que enunciam. Por este motivo,
ressalta o autor que:
A ciência que se pretende propor os critérios mais bem alicerçados na realidade, não
deve esquecer que se limita a registrar um estado da luta das classificações, quer
dizer, um estado das relações de forças materiais ou simbólicas entre os que têm
interesse num ou noutro modo de classificação e que, como ela, invocam
freqüentemente a autoridade científica para fundamentarem na realidade e na razão a
divisão arbitrária que querem impor (BOURDIEU, 1998, p. 115).
Assim, segmentos extremamente diversificados entre si, como no caso dos “povos e
comunidades tradicionais” são vislumbrados como grupos semelhantes a partir de alguns
critérios e passam a ser agrupados, teoricamente, como pertencentes ao mesmo segmento. São
classificados, portanto, a despeito de todas as suas diferenças, como pertencentes à mesma
categoria de sujeitos. A esse respeito, postula Bourdieu:
O efeito simbólico exercido pelo discurso científico ao consagrar um estado das
divisões e da visão das divisões, é inevitável na medida em que os critérios ditos
“objetivos”, precisamente os que os doutos conhecem, são utilizados como armas
nas lutas simbólicas pelo conhecimento e reconhecimento: eles designam as
características em que pode firmar-se a ação simbólica de mobilização para produzir
a unidade real ou a crença na unidade (tanto no seio do próprio grupo como nos
outros grupos) que a prazo, e em particular por intermédio das ações de imposição e
inculcação da identidade legítima tende a gerar a unidade real (BOURDIEU, 1998,
p. 120).
Assim sendo, ocorre uma espécie de retroalimentação entre representação do real e
realidade a partir de um movimento político e intelectual que possibilita que esses grupos,
81
antes negados e ignorados, obtenham visibilidade – não só para os outros grupos, mas
também para ele próprio –, e, consequentemente, reconhecimento.
Essa visibilidade se torna possível através da utilização positiva de um estigma
negativamente imputado a esses grupos, uma vez que, conforme Bourdieu, “as propriedades
(objetivamente) simbólicas, mesmo as mais negativas, podem ser utilizadas estrategicamente
em função dos interesses materiais e também simbólicos do seu portador (BOURDIEU, 1998,
p. 112).
Ainda segundo o autor, é o estigma que dá a revolta não só as suas determinantes
simbólicas, mas também os seus fundamentos econômicos e sociais, princípios de unificação
do grupo e pontos de apoio objetivos da ação de mobilização.
É porque existe como unidade negativamente definida pela dominação simbólica e
econômica que alguns dos que nela participam podem ser levados a lutar (e com
probabilidades objetivas de sucesso e de ganho) para alterarem a sua definição, para
inverterem o sentido e o valor das características estigmatizadas, e que a revolta
contra a dominação em todos os seus aspectos – até mesmo econômicos – assume a
forma de reivindicação regionalista (BOURDIEU, 1998, p. 127).
Nesse contexto se inserem as discussões levadas à cabo por agentes sociais situados
em diferentes espaços sociais, que visam auxiliar nesse processo de reverter o estigma
negativo imputado, por meio de sua produção intelectual e acadêmica, bem como por meio da
sua atuação prática e política.
Tal processo de visibilidade e inversão de estigma possibilita a esses grupos sociais
agrupados sob a denominação de “povos e comunidades tradicionais”, antes invisibilizados e
indiferenciados, passem a se constituir em sujeitos coletivos, organizados e articulados a
variadas redes de relações, que inclui, dentre outros agentes sociais, os juristas engajados nos
conflitos socioambientais e na defesa desses segmentos.
82
3 JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS E DEFESA DOS
“POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS”
Conforme destaca Maria Tereza Sadek (2008, p. 110), tornou-se lugar comum
constatar que a promulgação da Constituição Federal de 1988 provocou inúmeras
transformações na sociedade brasileira, consolidando-se o novo diploma legal como um
“verdadeiro marco na história do país, impondo um antes e um depois”.
O processo de democratização que se seguiu ao período de autoritarismo vivenciado
no Brasil durante o regime ditatorial evidenciou o processo de aprofundamento de atitudes de
indiferença política da população e desorganização da vida social vigorantes no período
anterior à Constituição. Como destaca Werneck Vianna:
O processo de transição à democracia pôs a nu os efeitos da modernização
autoritária conduzida pelo regime militar, sobretudo no que se refere à
degradação da dimensão do público, não somente na esfera estatal, como
também na própria sociedade civil (VIANNA, 1999, p. 153).
Ainda segundo Vianna (1999), somente a partir da década de 1990 esse processo de
degradação e indiferença social e política passa por modificações substanciais, sendo tal
fenômeno decorrente, dentre outras circunstâncias, da crescente internalização pelo Ministério
Público do seu papel nas ações públicas e da pressão democratizadora exercida sobre o Poder
Judiciário. Essa pressão é exercida, sobretudo, pelos setores mais pobres e desprotegidos da
população, que vêem neste poder uma possibilidade de atendimento das suas expectativas de
direito e de aquisição da cidadania frustradas pelo regime militar.
Nesse contexto, o Ministério Público ocupa um papel central no modelo de Estado e
de sociedade, redesenhado pela Constituição Federal, bem como o Poder Judiciário passa a
ser visto como uma instituição estratégica na democracia, “invadindo” o direito diferentes
esferas da vida política e social e alcançando a regulação da sociabilidade e de práticas antes
tidas como de natureza eminentemente privada.
Ainda segundo destaca Vianna (1999, p. 145), percebe-se um processo de
massificação da tutela jurídica, de modo que o Poder Judiciário passa, também, a ser
considerado uma alternativa viável para a solução dos conflitos sociais43, levando ao que o
43
Nas palavras do autor, “o Poder Judiciário surge como uma alternativa para a resolução dos conflitos
coletivos, para a agregação do tecido social e mesmo para a adjudicação da cidadania, tema dominante na pauta
e facilitação do acesso a justiça” (VIANNA, 1999, p. 22).
83
autor denomina de “judicialização” das relações sociais e políticas. Tal processo pode ser
compreendido como:
Todo um conjunto de práticas e de novos direito, além de um continente de
personagens e temas até recentemente pouco divisáveis pelo sistema jurídico
(...), novos objetos sobre os quais se debruça o Poder Judiciário, levando a
que as sociedade contemporâneas se vejam, cada vez mais, enredadas na
semântica da justiça” (VIANNA, 1999, p. 149).
Assim, o modelo de democracia então inaugurado com o texto constitucional, após
anos de ditadura, possibilitou a formação de um novo desenho institucional, formalizando
uma ampla gama de direitos – sem precedentes na história do país – e passando o Poder
Judiciário a incorporar uma dimensão de intervenção no âmbito social. Dessa forma, cria-se
um cenário público de modo que “nessa nova arena, os procedimentos políticos de mediação
cedem lugar aos judiciais, expondo o Poder Judiciário a uma interpelação direta dos
indivíduos, de grupos sociais e até de partidos” (VIANNA, 1999, p. 23).
Essa maior democratização do Judiciário, por seu turno, pode ser relacionada com uma
maior diversificação dos profissionais que têm acesso ao título de bacharel em direito, uma
vez que, em decorrência da maior diversificação social e econômica desses profissionais, há
uma espécie de “pluralização44” das concepções de direito e justiça, assim como sobre os
diferentes usos possíveis de se fazer o direito.
Nesse sentido, utilizamos as reflexões desenvolvidas por Fabiano Engelmann (2006, p.
11), ao analisar o contexto da estrutura do judiciário no Rio Grande do Sul, para quem essa
conjuntura de redemocratização do país, acompanhada do fim do regime militar e da
promulgação da Constituição Federal de 1988, possibilita a emergência de novos usos e
definições das instituições jurídicas e políticas. A partir da década de 1990, conforme afirma o
autor, observa-se uma maior diversificação nos usos das profissões jurídicas, bem como nas
disciplinas que fundamentam o conjunto de atividades nesse espaço.
Essa diversificação tem relação com as características sociais daqueles que passam a
ter acesso ao título de bacharel em direito, uma vez que, segundo Engelmann (2006), pode-se
afirmar que as tomadas de posição públicas em relação a temas conjunturais (principalmente
políticos e sociais) por parte dos juristas e o engajamento em causas coletivas, estreitamente
vinculadas aos “movimentos sociais”, decorrem da ascensão de grupos de juristas mais
44
As teorias do “Pluralismo Jurídico” ou do “Direito Alternativo”, que reconhecem a possibilidade de existência
de direitos que não sejam diretamente emanadas do positivismo jurídico estatal, ganharam força com o processo
de promulgação da Constituição de 1988 e influenciaram uma série de profissionais do espaço judicial, conforme
discutiremos ao longo deste capítulo.
84
diversificados socialmente e dissociados, social e intelectualmente, dos padrões de juristas
mais conservadores.
Assim, Engelmann, referindo-se a configuração específica no estado do Rio Grande do
Sul, destaca a existência de dois pólos45 concorrentes no campo jurídico nacional, campo este
definido como “universo de interação dos bacharéis em direito, (que) implica num espaço
socialmente instituído por ritos, símbolos, códigos, hierarquias e garantias legais legitimadas
pelo Estado” (2006, p. 17).
O primeiro pólo seria composto por segmentos mais tradicionais do direito,
caracterizado pela neutralidade, conservadorismo e praticidade. Nesse pólo, agrupam-se os
bacharéis associados às “grandes famílias de juristas e políticos”, que detêm amplo capital
social e que se posicionam nas carreiras jurídicas e na gestão das faculdades de direito mais
tradicionais. Já o segundo pólo é mais diversificado, caracterizado pela politização, criticidade
e academicismo, nele se posicionando os grupos que se legitimam enfrentando a tradição
jurídica, havendo, portanto, uma tendência à valorização do ensino universitário de pósgraduação como opção de carreira profissional (ENGELMANN, 2006, p. 12).
Faltam-nos elementos e material empírico para melhor elucidar a construção dos
espaços jurídicos nos estados do Maranhão e do Pará, no entanto, podemos afirmar, a título de
aproximação e como hipótese para futuros trabalhos de pesquisa, que o perfil social dos
bacharéis em direito nos dois estados obedecem a outras lógicas de estruturação, diferentes
das verificadas no Rio Grande do Sul.
Sobretudo no que se referem à realidade do Maranhão, tais diferenças dizem respeito à
aquisição de títulos de mestrado e doutorado e na profissionalização daqueles bacharéis que,
quando da graduação, apresentavam um envolvimento maior com essas discussões tidas como
mais politizadas e críticas. Tais afirmações são feitas com base no depoimento de um agente
investigado no estado do Maranhão, o Procurador da República Alexandre Silva Soares.
Para o Procurador da República, a maioria dos estudantes com envolvimento junto aos
movimentos estudantis, sociais e à assessoria jurídica popular quando da sua graduação em
direito na UFMA, estão atuando hoje em áreas que não guardam relação com o ensino
universitário ou com a defesa das causas coletivas. Segundo afirma:
45
Diferentemente do que ocorre na Europa e nos Estados Unidos, no Brasil não há uma oposição entre as
posições de “teórico” – voltados para a elaboração puramente acadêmica da doutrina – e as posições de “prático”
– referentes a avaliações práticas de um caso jurídico particular (BOURDIEU, 1998, 217). No Brasil, conforme
expõe Engelmann (2006, p. 27), “as disputas em torno da definição do direito legítimo de ser ‘aplicado’ e as
problemáticas consideradas ‘juridicamente legítimas’ são definidas tradicionalmente no espaço do ‘mundo
prático’ da advocacia e das carreiras de Estado”.
85
Eu até observo o seguinte, aqui tem uma detalhe interessante no Maranhão.
Eu tava observando a minha turma de graduação (...) todo mundo que tava
no NAJUP46 passou em concurso público, quase todo mundo (...) Então,
onde que essas pessoas estão? E é uma coisa curiosa que observo inclusive
nos primeiros movimentos de assessoria jurídica popular universitária que
existiam, algumas pessoas estão inclusive na advocacia pública, estão
advogando para o Estado, estão dentro do aparelho, ainda que tenham sido
formados nessa linha, digamos assim, mais crítica com relação ao direito,
com relação à atuação do profissional de direito (...). Se pararmos para
observar essa trajetória, é uma trajetória do concurso público, como fonte de
acesso democrático de ascensão (Entrevista realizada no dia 24/11/2011).
Ainda conforme destaca Alexandre Silva Soares com relação ao ensino jurídico, uma
das críticas feitas aos professores do curso de direito da Universidade Federal do Maranhão –
por muito tempo, a única instituição de ensino superior jurídico do estado – era que os
mesmos tinham um bom domínio da prática jurídica, mas não possuíam uma boa didática em
sala de aula. Conforme afirma, “Na verdade você tinha muito professores na universidade que
tinham experiência, mas a aula... Era uma das críticas ao direito, na verdade, que era cheio de
professores que eram aqueles advogados medalhões” (entrevista realizada no dia 24/11/2011).
Poucos professores possuíam o título de mestre ou doutor e os que haviam adquirido
tais títulos de pós-graduação faziam parte da elite jurídica ou, nos termos de Engelmman
(2006), pertenciam à tradição jurídica do estado, às grandes famílias de juristas e políticos
(ainda que, ideologicamente, pudessem ser posicionados no pólo mais crítico do direito). Isso
os possibilitava acesso às condições necessárias para cursar a pós-graduação em outros
estados. O Procurador também destaca este aspecto na sua fala:
Na verdade assim, a minha meta inclusive era ter feito carreira acadêmica,
mas, como falei há pouco, meus pais eram funcionários públicos estaduais,
assim, para eu sair para fazer mestrado fora, eu precisaria de ter um certo
aporte de capital que na época não tive (...), então eu não tinha como seguir
da forma que havia planejado, que era me formar e fazer mestrado. Não ter
mestrado em direito aqui é uma grande limitação que existe hoje (...) porque,
enfim, para quem não pode sair daqui para fazer mestrado é muito difícil
(Entrevista realizada no dia 24/11/2011).
Contudo, para além dessa diversificação dos espaços jurídicos observados e do perfil
social dos agentes que os compõe, algumas reflexões do estudo realizado por Fabiano
Engelmman (2006) podem ser utilizadas neste trabalho. Cite-se, como exemplo, a
“sociologização” do campo jurídico, ou seja, a aproximação dos juristas com a Sociologia
46
Núcleo de Assessoria Jurídica Popular NAJUP - Negro Cosme, vinculada ao Departamento de Direito da
Universidade Federal do Maranhão.
86
para a fundamentação de posições políticas e intelectuais, numa tentativa de aproximação do
direto com a realidade dos grupos socialmente dominados, característica esta que observada
nos profissionais analisados.
Outro aspecto relevante na análise de Engelmann (2006, p. 20) e que pode ser
utilizado neste estudo, diz respeito às análises das tomadas de posições doutrinárias acerca das
definições e usos do direito e justiça (uso mais “conservador” ou mais “politizado” do
direito), que passam pela análise de uma série de variáveis, incluindo desde características
relacionadas à origem social dos agentes até o estudo do espaço social de produção do
conhecimento. Conforme afirma:
O estudo do espaço de produção desse saber doutrinário, que é um dos
objetos centrais das lutas pela definição do direito e do monopólio de dizer o
direito, é fundamental para a compreensão dos princípios de estruturação das
disputas. Nessa análise, é necessário pôr em questão as relações dos
produtores do direito com diversos grupos sociais aos quais estão
vinculados, e com os interesses sociais que estes agentes traduzem na forma
do direito. Nesse sentido, é importante considerar o espaço social e
profissional no qual são mobilizados diversos recursos de definição e
tradução, que instituem seu monopólio em relação aos profanos, na
manipulação dos códigos jurídicos.
Dessa forma, ainda que tais reflexões se refiram ao contexto estudado e analisado em
um estado da federação, alguns pontos destacados por Engelmman (2006) são de grande valia
para analisar a posição adotada por agentes implicados na construção da causa
socioambiental, haja que vista que os mesmos se articulam em um malha de conexões, ou
rede de relações de grupos, que os conecta a diferentes interesses e diferentes usos e
apropriações feitas em torno da categoria “povos e comunidades tradicionais”.
Tais considerações, quando aplicadas no caso em estudo, permitem relacionar as
tomadas de posição dos diferentes agentes em prol do reconhecimento e legitimidade da
categoria em análise, permitindo elucidar questões acerca das formas que os agentes – em
especial, do Ministério Público e da academia – utilizam o termo para organizarem e se
reorganizarem em torno das disputas por reconhecimento, espaço e poder.
Nesse contexto, pretende-se expor algumas aproximações com aspectos relacionados a
estratégias sociais, formação acadêmica e perfil profissional e social de alguns profissionais
representativos situados no espaço jurídico e que possuem “engajamento” com as causas
relativas aos direitos dos “povos e comunidades tradicionais”. A ideia é apenas a de iniciar
uma reflexão, a partir desses perfis preliminarmente levantados, e perceber a correlação entre
87
os mesmos e as interpretações e posicionamentos adotados na esfera jurídica, com vistas à
legitimação da expressão mencionada.
3.1 Instituições, agentes jurídicos e usos do direito
Para Baeta Neves e Petrarca (2009, p.09), a importação de causas coletivas pelo
espaço jurídico e a emergência dos novos usos do direito apresenta-se como um fenômeno
histórico recente, não só no Brasil, mas também em outros países.
Desse modo, tais usos do direito se manifestam, por exemplo, através de mobilizações
de advogados no âmbito do Direito do Trabalho na França (por meio da advocacia para
sindicatos de trabalhadores na década de 1970), da advocacia voltada para defesa dos
excluídos nos Estados Unidos e, no âmbito das causas relacionadas aos direitos humanos na
América Latina, em defesa dos presos políticos dos regimes autoritários então vigentes.
Assim, pode-se afirmar, com base no estudo desenvolvido por essas autoras, que o
movimento dos direitos humanos ganha proporções destacadas a partir dos movimentos
políticos de contestação das ditaduras militares na década de 1970 na América Latina.
Entretanto, ainda conforme Baeta Neves e Petrarca (2009, p.10), as modalidades de
engajamento dos advogados em causas coletivas se modificam substancialmente no contexto
dos anos de 1990, sobretudo devido à ampliação dos movimentos sociais nesse período e à
profusão de novas causas (tais como direitos ambientais, direitos indígenas, direito dos sem
terra etc.).
Nesse contexto, pode-se afirmar que a emergência de novos direitos se dá de forma
concomitante ao processo de atuação engajada no âmbito das profissões jurídicas, bem como
a possibilidade de mobilizar a lei em favor de determinadas causas. Há, portanto, ínsito a este
processo de ampliação da defesa da causa, um crescente processo de interação entre direito e
política, bem como a transformação de causas particulares em causas jurídicas levando a
legitimação dessas causas e tornando-as passíveis de serem discutidas e debatidas na esfera
pública.
Neste momento, “os advogados investem na tradução de problemáticas construídas no
âmbito dos movimentos sociais para o universo do direito” (BAETA NEVES; PERTRARCA,
2009, p. 10), de modo que faz necessário examinar as relações entre o espaço judicial e as
88
causas coletivas, bem como o processo de profissionalização no direito colocado a serviço de
determinadas causas.
Assim, conforme já afirmado por outros autores, esse contexto da redemocratização
criou as condições necessárias para a institucionalização de determinadas causas, o constante
acionamento da esfera judicial e a criação de uma série de associações da sociedade civil e
instituições jurídicas. Conforme afirmam Baeta Neves e Petrarca (2009, p.12):
Nesse sentido, pode-se dizer que o momento de abertura política e de
redemocratização da política brasileira, assim como a organização do
processo constituinte, decorrente de tal abertura, a qual se iniciou nos anos
de 1980 para a realização da nova constituição brasileira, criou as condições
tanto para a emergência de novos atores na política nacional quanto para
novas formas de mobilização no espaço jurídico. Dentre esses novos atores
estão os movimentos sociais que se diversificam nesse período, contando
com quadros militantes oriundos de várias profissões e com diferentes
formações universitárias. Estes novos atores, sobretudo advogados,
sentiram-se autorizados a mobilizar a lei em favor da causa que
empreendiam.
Além dos advogados, outros agentes do espaço judicial, situados em instituições
jurídicas engajadas nos processos de discussão sobre ampliação e efetivação dos chamados
“novos direitos” (dentre os quais se incluem os direitos difusos dos “povos e comunidades
tradicionais”), são os membros do Ministério Público, tanto em suas em suas esferas estadual
como federal.
No que se refere à instituição Ministério Público, pode-se afirmar que, de forma sem
precedente na história do constitucionalismo no país, a Constituição Federal de 1988 alçou-a a
um papel basilar no que concerne a promoção e manutenção do regime democrático. Assim, o
texto constitucional estatuiu a independência, a não vinculação a nenhum dos demais Poderes
do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) e proveu o Ministério Público com todas as
garantias de autonomia administrativa e funcional. Nesse sentido, conforme Sadek (2008, p.
111):
O texto constitucional aprovado em 1988 não deixa dúvidas sobre o papel
central do Ministério Público nos modelos de Estado e de sociedade aí
idealizados. A inserção do Ministério Público no Capítulo IV – “Das
Funções Essenciais à Justiça” -, integrando o Título IV – “Da Organização
dos Poderes” – bastaria por si só para indicar que a instituição foi alçada a
uma posição de relevo, merecendo um capítulo próprio.
O Ministério Público, conforme definição constitucional, “é instituição permanente,
essencial à função jurisdicional, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
89
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput, Constituição
Federal).
Apresenta-se, tal como o Judiciário, dividido em dois ramos: o da União e dos
Estados. O Ministério Público da União – que tem por chefe o Procurador-Geral da
República, nomeado pelo Presidente da República para mandato de dois anos – compreende o
Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Militar e o
Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios, enquanto o Ministério Público
Estadual – tendo por chefe o Procurador-Geral, nomeado pelo chefe do Executivo Estadual –
é composto pelos Ministérios Públicos de cada estado da Federação (art. 128, Constituição
Federal).
O texto constitucional estabelece ainda as seguintes funções do Ministério Público:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de
relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo
as medidas necessárias a sua garantia;
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do
patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos
e coletivos;
IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de
intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;
V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;
VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua
competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na
forma da lei complementar respectiva;
VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei
complementar mencionada no artigo anterior;
VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito
policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações
processuais;
IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis
com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria
jurídica de entidades públicas.
Percebe-se, pois, a quantidade de atribuições que competem a esta instituição,
destacando ainda que as mesmas não são exaustivamente relacionadas no texto, mas sim
exemplificativas, tendo em vista a redação do último inciso, que determina ao Ministério
Público exercer outras funções, desde que compatíveis com as suas finalidades.
Tais atribuições, somadas ao extenso rol de direitos individuais e coletivos constantes
em todo o texto da Constituição, transformaram a instituição do Ministério Público e os seus
90
membros nos “guardiães da promessa”47 (VIANNA, 1999, p. 23), atuando como fiscais dos
atos e ações dos demais agentes estatais, entidades governamentais e instituições sociais, bem
como na defesa da cidadania.
Tal característica possibilita aos membros da referida instituição bastante visibilidade
nas ações desenvolvidas, tendo em vista que, dada a amplitude de atribuições e funções,
dificilmente se encontra um tema no qual não seja possível a presença dos seus membros na
resolução de conflitos sociais. Nesse sentido, segundo Sadek (2008, p. 114):
As novas funções conferidas ao Ministério Público combinadas à ampla lista
de direitos individuais e supra-individuais, implicam indeclinável presença
da instituição e de seus integrantes na arena pública, particularmente na
fiscalização da atuação de agentes políticos e no controle da definição e da
consecução de políticas públicas. A abrangência das possibilidades de
interferência do Ministério Público nas dimensões política, econômica e
social são ingredientes que estimulam a constituição de um ator relevante
tanto na arena judicial quanto na política, em seu sentido mais amplo.
Saliente-se, ainda, que o Ministério Público, diferentemente do Poder
Judiciário, que só age quando provocado, possui controle de agenda. Essa
característica contribui fortemente para acentuar seu papel de destaque no
cenário público.
Assim, ante a redefinição do papel do Ministério Público, tal instituição, após a década
de 1980 passa a obter uma importância significativa na arena pública do país, não só do ponto
de vista das disposições legalmente prescritas, mas igualmente na atuação prática de seus
membros.
No entanto, cumpre destacar que a atuação prática de seus membros em determinadas
questões está, muitas vezes, para além das determinações legais, ou seja, conforme dispõe
Sadek (2008, p. 117), os reflexos das mudanças legais na efetividade das ações na prática dos
membros do Ministério Público se relacionam ao empenho individual dos integrantes da
instituição. Ainda conforme destaca a mencionada autora:
Em tese, as transformações de virtualidades contidas em preceitos legais em
realidade dependem em larga medida da atuação dos integrantes da
instituição. No caso do Ministério Público, essa dependência é
particularmente forte e possui especificidades. Como salientamos, trata-se de
uma instituição de tipo monocrática, não havendo uma hierarquia baseada
em estritos princípios de mando e obediência. A subordinação a um chefe é
apenas de natureza administrativa. Cada membro possui garantia de
independência funcional, sendo livre para atuar segundo sua consciência e
suas convicções, baseados na lei. Isso significa dizer que, ao mesmo tempo
47
De acordo com Werneck Vianna, os membros do Ministério Público e os magistrados seriam os novos
personagens da intelligentzia nos modelos de justiça adotados nos países ocidentais. Conforme destaca,
“Guardiães das promessas, na definição de Garapon, em meio a um mundo laico dos interesses e da legislação
ordinária, seriam os portadores das expectativas de justiça e dos ideais da filosofia que, ao longo da história do
Ocidente, se teriam naturalizado no campo do Direito” (VIANNA, 1999, p. 23).
91
em que há consideráveis empecilhos para a definição e implementação de
políticas institucionais, cada integrante é, em si, a instituição, possuindo
ampla margem de discricionariedade (SADEK, 2008, p. 117).
Ainda segundo Sadek (2008, p. 117), podendo-se considerar cada integrante uma
instituição, existe amplo espaço para uma atuação que extrapole o que está contido na
legislação. Disto decorre que o empenho depende, dentre outros fatores, de características
individuais dos membros do Ministério Público e do grau de independência real e da
vinculação ideológica dos membros a diferentes instituições sociopolíticas e a determinadas
causas sociais.
Assim sendo, perceber a relação que cada um de seus membros possui com os poderes
e atores políticos, econômicos e sociais – tanto políticos quanto privados – possibilita a
compreensão das suas tomadas de decisão, do seu engajamento com determinadas causas, do
empenho com que se dedicam a determinadas ações, elementos que, conforme já assinalado,
extrapolam o conhecimento das funções propriamente institucionais arroladas na Constituição
Federal.
Ressalte-se ainda que esse desempenho não se restringe à atuação de promotores e
procuradores no âmbito estritamente dos procedimentos judiciais, não se circunscrevendo aos
gabinetes, tribunais e demais espaços judiciais, tendo em vista que “a atividade fora de
gabinete e a busca de soluções extrajudiciais orientam parte considerável das atividades dos
integrantes da instituição” (SADEK, 2008, p. 119).
Assim, buscar compreender as motivações desses agentes implica uma análise mais
detida, na qual deve ser analisada não somente as ações desenvolvidas na esfera jurídica
propriamente dita, mas também as ações realizadas fora do gabinete, feitas de maneira
voluntária e relacionadas, muitas vezes, a comprometimentos de ordem ideológica.
A análise desse grau de influência de fatores externos às atribuições dos membros do
Ministério Público é resultante de uma série de fatores e variáveis, “cuja mensuração é difícil
e dependente de análises empíricas que levem em consideração o contexto econômico, social
e político” (SADEK, 2008, p. 118). Nesse sentido, Sadek afirma que para a realização de um
“retrato” mais bem acabado no Ministério Público que surge no contexto pós-1988, aos traços
provenientes de estímulos oriundos da esfera legal-normativa devem ser acrescidos e
combinados traços de natureza demográfica e sociológica.
Ainda conforme pesquisas realizadas pela autora, houve um grande crescimento
numérico de promotores e procuradores em todo o país no período compreendido entre 1988 e
92
200848, de modo que esse aumento expressivo guarda relações com as alterações verificadas
na instituição. Conforme destaca a autora:
O mero fator numérico já provocaria alteração nas características da
corporação. O tamanho o grupo faz a diferença. Ou seja, independente de
outros aspectos, a transformação de um grupo restrito em um de tamanho
maior tem capacidade de gerar aumento no grau de heterogeneidade interna.
Com efeito, o crescimento na quantidade de promotores e procuradores
implicou alterações na composição etária, de gênero e extração social, no
tipo da experiência anterior; na ideologia; em termos doutrinários (SADEK,
2008, p.122).
Essa heterogeneidade interna se revela no maior empenho com que alguns membros se
dedicam às funções e às atribuições institucionais, sendo alguns mais voltados a persecução
penal enquanto outros se dedicam de forma mais acentuada para a defesa da sociedade e dos
direitos sociais de forma que “a opção por este último extremo favorece a presença pública, e
maior visibilidade, já que crescem, proporcionalmente, as iniciativas voltadas à defesa dos
direitos sociais, da probidade administrativa, da moralidade pública” (SADEK, 2008, p. 119).
Esse empenho no que concerne à atuação como agente promotor da cidadania e
defensor da sociedade – bem como pela “opção pelos mais pobres” – tem relação, muitas
vezes, com a história de vida desses agentes e seus relacionamentos estabelecidos
previamente à entrada no espaço judicial que direcionaram, conscientemente ou não, suas
escolhas profissionais a uma articulação com suas concepções ideológicas.
Nesse sentido, buscando discorrer sobre alguns agentes no âmbito do Ministério
Público Federal49, sistematizamos algumas informações sobre três membros desta instituição:
a Subprocuradora-geral da República, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, o
Procurador da República no estado do Pará, Felício Pontes Júnior e o Procurador da
República no estado do Maranhão, Alexandre Silva Soares.
O critério de escolha por estes agentes deveu-se a fatores estruturais – como
possibilidade de acesso, facilidade de obtenção de materiais informativos (institucionais ou
não) sobre os mesmos etc. – bem como pela grande visibilidade que possuem por conta das
48
De acordo com Sadek (2008, p. 122) “segundo dados obtidos na Conamp, enquanto em 1988 o Ministério
Público dos Estados somava 4.300 integrantes, em 2008 passaram a ser 13.428. Em vinte anos, multiplicou-se
por três o número de procuradores e promotores atuando em todas as unidades da Federação. O mesmo ocorreu
com o Ministério Público da União”.
49
No Ministério Público Federal, conforme informações obtidas no site oficial da instituição, os membros
iniciam a carreira no cargo de Procurador da República, por meio de aprovação em concurso público específico
para o ramo. Quando promovidos, passam a exercer o cargo de Procurador Regional da República e, após nova
promoção, o de Subprocurador-geral da República, último cargo da carreira. Ainda conforme dados obtidos no
site oficial, a instituição conta com 633 Procuradores da República (12 no estado do Maranhão e 08 no estado do
Pará); 188 Procuradores Regionais da República e 58 Subprocuradores da República. Disponível em:
www.pgr.mpf.gov.br. Acesso em 20/11/2011.
93
ações judiciais e atividades extrajudiciais que desenvolvem no que concerne à defesa de
povos indígenas, quilombolas e “povos e comunidades tradicionais”.
A atual Subprocuradora-geral da República50 Deborah Macedo Duprat de Britto
Pereira, graduou-se em direito pela Universidade de Brasília (UNB), possuindo mestrado em
Direito e Estado, pela mesma instituição. Seus trabalhos, publicados por editoras comerciais
bem como pela Procuradoria Geral da República versam, predominantemente, sobre questão
indígena e quilombola, tal como se observa pela sua produção bibliográfica.
Tal produção inclui os livros: “O papel do judiciário” (2006), “Breves considerações
sobre o Decreto no 3.912/01 (2002), “O direito de ser índio e seu significado” (2000), “500
anos sem liberdade e igualdade” (2000), “Para índio, terra é vida, não propriedade” (1999); os
capítulos de livros: “O estado pluriétnico” (2002), “Os fundamentos jurídicos da titulação das
terras de Quilombos” (2001), “Declaração da área indígena Yanomami por forma contínua”
(1990).
No que diz respeito às suas motivações para atuar junto a esses grupos, Deborah
Duprat revela:
Eu sempre quis trabalhar com a questão indígena, e, curiosamente, tão logo
entrei no Ministério Público Federal, por razões absolutamente fortuitas, tive
essa oportunidade. Em 1987, salvo engano, atuei em um habeas corpus,
contra a expulsão do Paulinho Paiakan do Brasil. Quando veio a
Constituição de 1988, foi instituída, no âmbito do MPF, uma comissão para
tratar da temática indígena, e a integrei já em sua primeira composição. Em
1989, eu e o colega Eugênio Aragão ingressamos com a primeira ação para
assegurar, ao povo yanomami, território tradicional nos moldes em que
delineado pela Constituição. Desde então, e depois como membro da 6ª
Câmara, prossegui atuando na matéria. Em relação aos quilombolas, acredito
que por volta de 1992, 1993, nos foram apresentados os trabalhos do Rafael,
geógrafo e professor da UnB. Começamos, de alguma maneira, a elaborar
teoricamente a questão, que não nos parecia muito clara. Já havia algumas
iniciativas do MPF, no Vale do Ribeira, em São Paulo, e Oriximiná, no Pará,
onde a discussão a respeito do que era quilombo já se colocava. Por outro
lado, existia uma disputa entre as instituições. Então, a 6ª Câmara assumiu o
papel de chamar essas várias instituições para que juntos pensássemos
competências e instrumentos que pudessem viabilizar os direitos
assegurados às comunidades quilombolas51.
De acordo com a Subprocuradora-geral, ao tentar reconstruir sua história de vida, a
opção pelo direito deveu-se menos a critérios relacionados a questões de ordem financeira e
50
O Procurador-geral da República exerce a chefia do Ministério Público da União e do Ministério Público
Federal, além de atuar como Procurador-geral Eleitoral. É escolhido e nomeado pelo presidente da República, e
seu nome deve ser aprovado pela maioria absoluta do Senado Federal (www.pgr.mpf.gov.br).
51
SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito
Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007.
94
econômica, pois, conforme afirma em entrevista publicada em sites especializados na área
jurídica52: “Quando fui estudar direito, nunca pensei em me dedicar ou especializar nas áreas
tradicionais. Na verdade, nunca pretendi fazer algo que me deixasse rica”. Ainda segundo a
matéria, a opção pelas “classes menos favorecidas” começou antes da sua aprovação, em
1987, para o concurso da Procuradoria da República. Segundo Duprat "Meu primeiro trabalho
em 1985, quando voltei do Rio (...) foi com o ministro Armando Rollemberg, com quem
aprendi muito em termos de preocupação com as classes menos favorecidas”.
Deborah Duprat ao exercer, ainda que interinamente, o cargo de Procuradora-geral da
República (PGR), foi a primeira mulher a ocupar o comando da instituição53, tendo
permanecido no cargo no período de 29 de junho até 22 de julho de 2009, quando da
nomeação do Procurador Roberto Monteiro Gurgel Santos para o provimento definitivo do
cargo pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.
Pela centralidade do cargo ocupado, Deborah Duprat conta com bastante visibilidade
institucional e midiática, “trunfos” por ela utilizados para disseminar as suas concepções
sobre direito e justiça. Cumpre destacar que, considerando os posicionamentos polêmicos
assumidos frente ao Judiciário, a mesma é alvo de muitas críticas junto aos setores mais
conservadores do direito.
A título de exemplo, mencione-se que durante o curto período que assumiu a
presidência da PGR (menos de um mês), Deborah Duprat propôs inúmeras ações polêmicas
perante os órgãos de cúpula do judiciário: ações a favor da união homoafetiva; solicitação ao
STF para que fosse garantido aos transexuais o direito de trocar de nome mesmo que ainda
não tenham realizado a operação de mudança de sexo; posicionamentos favoráveis ao aborto
de anencéfalos; questionamento do STF (Supremo Tribunal Federal) acerca de decisões
judiciais que proibiam atos públicos pró-legalização das drogas e, contrariando também ao
governo, ajuizamento de uma ação direta de inconstitucionalidade questionando artigos da Lei
11.952/2009, baseada na Medida Provisória 458, que trata da regularização fundiária de
posses na Amazônia Legal. Segundo avaliação da Subprocuradora, o texto da lei deixou
brechas para “privilégios injustificáveis em favor de grileiros que se apropriaram ilicitamente,
no passado, de vastas extensões de terra pública”54.
52
HOLLANDA, Eduardo. Deborah, uma defensora dos indígenas, é Procuradora-Geral por 10 dias.
Disponível em: http://www.revistabrasileiros.com.br. Acesso em: 30 de janeiro de 2011.
53
Dados obtidos junto ao site oficial da Procuradoria Geral da República. Fonte: www.pgr.mpf.gov.br.
54
DOLME, Daniella. Ousada, Deborah Duprat se destaca como a primeira mulher no comando da PGR.
Matéria veiculada no site: www.ultimainstancia.uol.com.br. Acesso em: 30 de janeiro de 2011.
95
Enquanto Coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério
Público Federal (cargo que ocupa desde 2004) e que trata especificamente dos direitos das
populações indígenas e minorias étnicas, Deborah Duprat é autora de inúmeras peças e
pareceres, bem como de artigos publicados em sites de movimentos sociais que atuam na
temática ambiental (como Instituto Socioambiental, ONG Racismo Ambiental etc.), nos
quais, freqüentemente, contesta a interpretação e aplicação “acrítica” e “fragmentada” do
direito por parte dos operadores jurídicos.
No que tange a interpretação jurídica, sobretudo temas como direitos humanos,
indígenas, quilombolas, meio ambiente e demais direitos sociais, Duprat afirma:
Se prevalece a compreensão do direito estatal como corpo de normas
objetivo, neutro e determinado – visão por muito tempo naturalizada –
desfaz-se o compromisso com a pluralidade. Um significado aparentemente
claro da norma atesta apenas a hegemonia de uma interpretação específica
(DUPRAT, 2007, p. 22).
Ainda no que se refere à interpretação da norma jurídica, Deborah Duprat evidencia
um posicionamento bastante peculiar, uma vez que a Subprocuradora-geral da República
defende o não monopólio dos juristas na interpretação de uma norma jurídica. Conforme
destacado no livro “Pareceres Jurídicos – Direito dos Povos Tradicionais” (2007, p. 18), no
qual figura como organizadora:
É preciso, portanto, em primeiro lugar, desfazer a noção de que o intérprete,
por uma dada competência, está habilitado a decifrar, por si só, uma norma
em abstrato. Não há esse ato de deciframento prévio. Norma e prática se
interpelam o tempo todo, e aquela só tem sentido à vista desta. Depois é
preciso por mandamento constitucional, reconhecer ao grupo e aos seus
membros a sua liberdade expressiva. Há aqui um deslocamento da terceira
pessoa para a primeira. São elas que apresentam o ambiente no qual se faz
uso da norma e a atenção que a ela conferem. Só então, compreendido o
contexto de uso revelado pelos próprios agentes e, a partir daí, o sentido da
norma, será possível, ao aplicador do direito, decidir adequadamente.
Deborah Duprat acredita ainda que é necessária uma profunda reformulação dos
cursos de direito, exatamente para que a defesa dessas minorias étnicas e sociais passe a ser
prioridade. Conforme destaca em entrevista dada a Eduardo Holanda:
O direito é uma ciência social. É um absurdo que, no currículo das
faculdades, sejam dados oito semestres de direito civil e apenas um de
direito constitucional, por exemplo. Os cursos precisam ter uma orientação
holística, serem interdisciplinares. Aliás, não apenas no direito55.
55
HOLLANDA, Eduardo. Deborah, uma defensora dos indígenas, é Procuradora-Geral por 10 dias.
Disponível em: http://www.revistabrasileiros.com.br. Acesso em: 30 de janeiro de 2011.
96
Ainda com relação à formação jurídica e os reflexos dessa formação nas questões
atinentes a esses grupos – que extrapolam o âmbito do Judiciário, se fazendo repercutir no
Poder Executivo, sobretudo nos órgãos relacionados à questão fundiária – Duprat assevera,
em entrevista concedida a Gilda Santos e Gilson Afonseca:
Ninguém está preparado. Não é um problema só do INCRA, não é um
problema só do Ministério Público, não é um problema só do Judiciário.
Acho que começa nos nossos cursos, nas nossas universidades. O curso de
direito ainda é marcadamente privatista. São seis semestres estudando direito
civil. Direitos humanos, quando muito, um assunto de direito constitucional,
de breve referência. Sobre quilombos não se fala, sobre índios não se fala56.
Com vistas a superar o que chama de “distorção”57 e devido ao cargo ocupado no
âmbito da Procuradoria Geral da República, Deborah Duprat afirma que tem buscado,
juntamente com outros membros do Ministério Público Federal, tencionar para que
determinados conteúdos sejam contemplados nos processos de seleção dos concursos para
Procuradores da República, considerados dos mais concorridos e difíceis do país. Conforme
destaca:
Aumentamos o número de questões das provas sobre direitos humanos,
indígenas, quilombolas, meio ambiente, enfim, direitos sociais como um
todo. Mesmo quem nunca viu isso nas faculdades, vai ter que estudar a
fundo senão não é aprovado. As novas turmas de procuradores já trazem
muita gente com esse tipo de preocupação. Acho que a diferença na atuação
do Ministério Público Federal será sentida, para melhor, em pouco tempo.
Essa preocupação com temáticas como direitos humanos, meio ambiente e questões
relacionadas aos “povos e comunidades tradicionais”, contudo, se faz sentir na atuação não só
de procuradores aprovados nos últimos concursos realizados para preenchimento de vagas no
cargo. Procuradores há mais tempo atuando junto ao Ministério Público Federal, como é o
caso do Procurador da República no estado do Pará Felício Pontes Júnior, também
demonstram essa preocupação.
O Procurador Felício Pontes Júnior graduou-se em direito pela Universidade Federal
do Pará, no ano de 1988, e cursou por quatro anos o mestrado em Teoria do Estado e Direito
56
SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito
Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007.
57
Conforme matéria publicada por Eduardo Hollanda no site www.revistabrasileiros.com.br, “Deborah
considera que a maioria dos estudantes pensa em se especializar em ramos do direito que os deixem ricos, ‘como
o novo queridinho, o direito tributário’. Ela acha que é uma distorção que precisa ser corrigida, pois processos
nessas áreas são menos de 2% das causas em tramitação. ‘Em um país como o nosso, a quem interessa direito de
herança, a não ser a uma parcela ínfima da sociedade?’, critica”.
97
Constitucional, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, entre 1989 e 1993.
Durante a realização do mestrado, Felício Pontes Júnior advogou junto ao Centro de Defesa
dos Direitos Humanos Bento Rubião, na cidade do Rio de Janeiro, atuando, sobretudo, com as
causas relacionadas aos direitos da criança e do adolescente.
Essa atuação profissional, concomitantemente realizada ao curso de mestrado,
possibilitou a conexão entre a experiência prática de advocacia e a construção do seu trabalho
de conclusão do mestrado, versando sobre direito das crianças e adolescentes. Conforme
revela:
Eu fui advogado quando o estatuto estava nascendo, eu participei até da
construção do Estatuto da Criança e do Adolescente (...) Meu trabalho foi
sobre o direito de participação política e eu trazia dois instrumentos de
participação direta, que estavam no estatuto, que era o conselho de direitos
da criança, como um dos exemplos – era a última parte da dissertação – de
instrumento de participação direta da população na formulação das políticas
públicas para a infância. Então, quer dizer, tem toda uma formação nessa
linha aí, mais social (Entrevista realizada em 27/05/2011).
Ainda sobre essa relação existente entre trabalho prático e trabalho teórico, Felício
Pontes Júnior afirma que a composição do corpo discente do curso de mestrado possibilitava
uma formação mais crítica e voltada para a intervenção social, diferentemente do curso de
direito, que, em suas palavras, “formavam pessoas para que pudessem sustentar o status quo”.
Conforme revela:
Acho que daria para contar nos dedos de uma mão só durante o curso inteiro
aqueles que alguma coisinha falavam sobre o sistema ou que deixavam que a
turma pudesse pensar sobre a questão da legitimidade ou não das normas
jurídicas (...) No mestrado, nos tínhamos cientistas sociais, psicólogos,
tínhamos historiadores... Acho que me proporcionou uma riqueza de
conhecimento muito grande. Por que você imagina, nos passávamos quase
quatro anos juntos, acho que éramos 15 pessoas, e cada um de um lugar
diferente do Brasil, então era, foi uma experiência riquíssima para mim...
Acho que tudo que a universidade tentou fechar os olhos só para o mundo
jurídico, o mestrado me abriu (Entrevista realizada em 27/05/2011).
Essa interseção entre o trabalho propriamente jurídico e o trabalho de conscientização
da população sobre os seus direitos esteve presente na atuação profissional de Felício Pontes
Júnior antes do ingresso no MPU, da mesma forma que, no seu ponto de vista, as esferas
jurídica e social deveriam ser vistas como indissociáveis, percepção que também é constatada
na sua atuação como procurador. Conforme revela:
A gente tem muita confusão aqui no estado (Pará), então acaba tendo muita
gente que faz a posição de vanguarda nessa questão de misturar o lado
jurídico com o social. Eu, na verdade, não saberia como é que “desmistura”
isso, como é que você separa isso, pra mim é uma coisa que tá muito ligada
98
na outra, todo mundo, principalmente quem trabalha com o direito público,
mas não só ele, eu vejo no direito privado também, que não há como você
fazer essa separação. (...) Se você pega os grandes juristas nacionais, Afonso
Arinos, o maior de todos, Rui Barbosa, as peças deles, quem já teve a
oportunidade de ver isso, não desassociam uma coisa da outra (Entrevista
realizada em 27/05/2011).
Felício Pontes Júnior afirma que o período de democratização vivenciado no Brasil no
final da década de 1980 influenciou sobremaneira a sua formação. Durante a sua graduação
em direito vigorava, ainda, a ditadura militar, com todos os reflexos do autoritarismo no
sistema educacional, contudo, quando do seu início no mestrado se vivia no país um momento
de muita efervescência, social e política devido à recente promulgação da Constituição
Federal. Nesse momento que o Ministério Público ganha o status de defensor da sociedade e
sobre a esse momento, destaca Felício Pontes Júnior:
Eu me lembro que na época se discutia se nós íamos ter no Brasil a criação
de um novo órgão para fazer a defesa da sociedade ou incorporaria isso ao
Ministério Público e aí venceu essa segunda tese. Então foi uma hora de
muita, de uma efervescência cultural muito forte, aí eu fui formado nesse
período de muita esperança também. Fui formado nesse período, de quando
o direito se abriu de novo. Que até ali o direito estava fechado,
extremamente conservador, com uma política própria mesmo, como se ele
fosse um fim em si mesmo. Com a Constituição, o direito se abre e eu vou
para PUC, para uma universidade católica, estudar mestrado em Direito
Constitucional. Então, era um momento riquíssimo de discussão, sabe, era
um momento de sonhar com um novo país mesmo (Entrevista realizada em
27/05/2011).
Após a conclusão do mestrado e como decorrência das experiências profissional e
acadêmica realizada nesta área, Felício Pontes Júnior foi chamado pra ser fiscal de projetos
sociais do UNICEF, em Brasília, atuando na área de financiamento de projetos que levassem
em consideração a promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes. Sobre essa
experiência Felício Pontes afirma: “foi uma época muito boa, pessoalmente, porque eu corria
o Brasil todo na busca desses projetos e no incentivo a esses projetos que o UNICEF queria
financiar”. Sobre a possibilidade de continuar atuando nesta instituição, o Procurador afirma:
Eu fiquei lá, acho que dois anos, foi, porque depois queriam me levar pro
exterior, aí eu dizia que não queria sair, dizia que tinha muita coisa para
fazer... Não era meu plano ir embora, meu plano era voltar para Amazônia e
trazer todo esse conhecimento para cá. E eu, desde o início da faculdade, eu
achava que o melhor lugar para aplicar esses conhecimentos era o Ministério
Público, e o Ministério Público Federal. Era onde a gente tinha maior
autonomia, maior liberdade, maior atribuição, maior infraestrutura para
aplicar tudo isso, era o Ministério Público Federal. E aí eu volto para cá, fico
dando aula de direito nas universidades aqui no Pará, principalmente para os
99
cursos de Serviço Social. Eu ficava dando aula e me preparando para o
concurso (Entrevista realizada em 27/05/2011).
O ingresso no Ministério Público Federal se deu após a aprovação de concurso,
realizado no ano de 1996, tomando posse no cargo inicial de Procurador da República em
1997. Acerca da instituição do Ministério Público, Felício Pontes Júnior, em entrevista
concedida ao IHU On-line, afirma que:
Acho que o Brasil tem uma experiência extraordinária com o Ministério
Público. Uma coisa que salta aos olhos dos outros países é ver a
independência dessa instituição, de como pode ser uma instituição ao mesmo
tempo atrelada ao poder público, paga pelo poder público, e que consegue
atuar independentemente dele. Acho que essa foi uma grande conquista da
sociedade brasileira na Constituição de 1988. Nós conseguimos ter, como
Procuradores da República ou Promotores de Justiça, uma atuação
independente. O Procurador da República age na defesa da sociedade, não na
defesa do governo. No momento em que o Ministério Público entra com uma
ação contra alguém que cometeu um crime ambiental, está automaticamente
defendendo a sociedade daquele que cometeu o crime58.
Conforme se evidencia nos relatos de Felício Pontes Júnior, o ingresso nesta
instituição se colocava como um objetivo profissional, tendo em vista sua percepção das
afinidades entre as práticas profissionais anteriormente exercidas como advogado e as
expectativas acerca dessa instituição e dos membros que a compõem. Conforme destaca:
O Ministério Público, se eu pudesse sintetizar, numa frase, a função dele, é
fazer a defesa da sociedade (...) Então, se essa é a missão, você tem que tá
muito enraizado, muito próximo, trabalhando dentro da sociedade para a
qual você vai defender. E eu acho que trabalhar para essa sociedade é expor
para ela a mesma coisa que eu fazia quando eu comecei a carreira jurídica,
como advogado no Centro de Defesa no Rio, a mesma coisa que você tem
que fazer, é o quê: não tratar a sociedade como um objeto de estudo, mas
como um sujeito de direito (Entrevista realizada em 27/05/2011).
Percebe-se que, na sua concepção sobre a função de um procurador do Ministério
Público, há uma continuidade entre as práticas desenvolvidas anteriormente à entrada na
respectiva instituição e as suas experiências profissionais e acadêmicas.
Procurando explicar de que modo a sua trajetória influencia as suas tomadas de
posição como Procurador da República, Felício Pontes Júnior ressalta que a sua relação com
as temáticas de direitos humanos, direito ambiental e “povos e comunidades tradicionais” é
anterior à entrada na faculdade e que possui uma relação muito próxima com essas causas,
58
IHU ON-LINE. Belo Monte de problemas. Entrevista especial com Felício Pontes Júnior. Disponível em:
www.diarioliberdade.org. Acesso em: 20 de junho de 2011.
100
sobretudo pelo fato de seu avô ser canoeiro e pescador, vivendo também do extrativismo no
município de Abaetetuba, no estado do Pará.
Assim sendo, embora nascido na cidade de Belém, Felício Pontes Júnior passou parte
de sua infância e de sua juventude no município de Abaetetuba e pode constatar as
transformações acarretadas pela chegada de grandes empreendimentos na região. A percepção
de tais transformações e das injustiças – tanto sociais, quanto ambientais – decorrentes da
implantação de grandes projetos, são apresentadas como constituintes de um olhar mais
crítico sobre essa realidade. Conforme afirma:
E naquele tempo, quando eu começo a me entender por gente, é que começa
a implantação do projeto Albrás-Alunorte no município de Barcarena. Esse
projeto se instala em Barcarena, mas os efeitos dele se irradiam por toda a
região, principalmente na cidade de Abaetetuba que era a maior cidade
daquela região. Então, eu pude ali ver como era a qualidade de vida das
pessoas antes, durante e depois do projeto. E esse projeto vinha, eu lembro,
que toda a parte de marketing era de que “agora chegou o progresso na
Amazônia, desenvolvimento, nós vamos agora ter melhor condição de vida,
tudo vai melhorar” e eu pude sofrer exatamente os impactos disso, ver o
quanto isso piorou, o quanto isso deteriorou. E hoje, passados 20 e tantos
anos desse projeto já implantado, eu posso dizer com clareza mesmo, de
experiência própria, que nós tínhamos antes uma qualidade de vida muito
melhor do que nós temos hoje. Acho que as pessoas até morriam muito mais
velhas na época em que eu era criança do que morrem agora, principalmente
a população mais próxima ali de Barcarena expostas aos detritos da bauxita,
aquela transformação em alumínio, que tem causado um problema de saúde,
de contaminação de igarapés, de rios. Existem igarapés e rios que foram
lugares muito marcantes na minha infância e que eu vi já na minha
adolescência já completamente estragados, deteriorados e as pessoas doentes
por conta disso e tudo. Então foram, eu acho que eu sofri na pele mesmo, do
ponto de vista pessoal, o impacto de um grande projeto na Amazônia. Isso
vai marcar minha trajetória toda, isso vai marcar, porque eu acabei sem
querer tendo mestrado, doutorado e pós-doutorado na área, porque sem
querer eu comecei a perceber todos os efeitos danosos sobre a população
local, sobre a população da Amazônia, desses grandes projetos. Isso abre os
olhos da gente não só para esses aspectos ambientais, mas pros sociais
também, de quanto não é levado em consideração a população da Amazônia,
a população diretamente afetada por esses projetos (Entrevista realizada em
27/05/2011).
Além dessa experiência pessoal, a sua trajetória escolar também é apresentada como
guardando continuidades com a sua opção profissional, pois, conforme afirma, Felício Pontes
Júnior estudou em escolas católicas, nas quais seria possível se fazer um questionamento
sobre a realidade vivenciada.
Eu tive uma formação muito forte por ter estudado (...) em escolas católicas,
e isso deu, e num tempo em que, talvez a única maneira de se questionar a
realidade era dentro de uma escola católica (...). Então, o ensino religioso
foi muito forte para mim, eu cheguei até a dar aula em catecismo, eu cheguei
até a ser professor de formação religiosa para crianças e isso foi muito
101
instigante, em Abaetetuba e Belém, nos dois (...) E essa formação religiosa
me permitiu fazer encontro de jovens no interior, com comunidades do
interior, que eram muito parecidas com aquela que eu vivia e que também
sofreram um impacto muito forte na área desses projetos sociais e num
tempo, bem no meio da ditadura (...) Eu lembro, era nessas comunidades do
interior que a gente se reunia em casa de farinha, morava junto com as
pessoas lá, os encontros eram feitos assim. Então a gente tinha acesso a
textos, a livros que não era comum nenhum jovem ler (Entrevista realizada
em 27/05/2011).
Em outro trecho da entrevista, o Procurador revela sua visão das continuidades entre a
sua formação religiosa e a afinidade com o Ministério Público no que tange à opção pelos
mais pobres e desassistidos, tendo em vista que:
A igreja tinha uma frase que dizia bem isso, que ainda hoje é aplicada, mas
não tão em voga como antes, que era a opção preferencial pelos pobres, que
foi uma determinação tirada na conferência, no congresso de Puebla, no
México, ainda tava no final do regime ditatorial no Brasil, e isso perpassou a
Igreja e não devia nunca ter saído da missão principal da igreja. Eu acho que
quem faz isso dentro do sistema jurídico nacional é o Ministério Público. O
Ministério Público não pode escolher, ele tem que ter uma opção
preferencial pelos pobres e no sentido de fazer com que esses pobres possam
viver com dignidade mesmo, que não tenham seus direitos violados, que
possam ter reconhecidos seus direitos, eu acho que essa é a missão da gente
(Entrevista realizada em 27/05/2011).
Atuando, desde 1997, em inúmeros casos envolvendo direitos humanos e direitos
ambientais, além da tutela de povos indígenas, o Procurador da República recentemente
ganhou visibilidade midiática no âmbito nacional ao atuar de maneira mais efetiva no
chamado “caso Belo Monte”.
Felício Pontes Júnior é constantemente procurado pela imprensa para se pronunciar
sobre a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Em entrevista publicada na página
eletrônica “Diário Liberdade”59, o Procurador informa que, ao longo de cerca de uma década
de trabalho e investigação, mais de 10 ações judiciais contra o governo federal foram
produzidas, ações que envolvem irregularidades no processo de licenciamento ambiental do
projeto, problemas relacionados ao fluxo migratório para as cidades paraenses e viabilidade
técnica do empreendimento.
O Procurador Felício Pontes Júnior, por conta dessa visibilidade, goza de bastante
prestígio e representatividade junto aos movimentos sociais, conforme atesta a nota do
Movimento “Xingu Vivo” em defesa do Procurador da República e do Ministério Público
59
IHU ON-LINE. Belo Monte de problemas. Entrevista especial com Felício Pontes Júnior. Disponível em:
www.diarioliberdade.org. Acesso em: 20 de junho de 2011.
102
Federal, distribuída no seminário “Usina Hidrelétrica de Belo Monte: desenvolvimento para
quem?”, realizado na UFPA em 12 de maio de 2011 e assinada por mais de uma centena de
movimentos sociais, conforme abaixo, bem como em inúmeras cartas de apoio que circulam
em listas de e-mail na Internet.
103
Em contrapartida, ao mesmo tempo em que desfruta de grande legitimidade junto aos
movimentos sociais, o Procurador é extremamente criticado por setores mais diretamente
ligados ao discurso desenvolvimentista e aos interesses econômicos do país, quer tais setores
estejam situados no governo, em suas diferentes esferas, quer no setor empresarial60, fato este
que pode ser ilustrado pela representação, no Conselho Nacional do Ministério Público,
apresentada pelo consórcio Norte Energia S.A (NESA) 61.
Acerca do blog www.belomontedeviolencias.blogspot.com de sua autoria, que motivou
a representação da citada empresa, o Procurador, reafirmando uma postura que se manifesta
desde o início da sua atuação com a temática dos direitos humanos, ressalta que:
O blog é uma tentativa de mostrar o que está em 12 volumes de processo –
alguns processos com 20 volumes – de uma linguagem jurídica
extremamente pesada, tendo do outro lado advogados da União,
procuradores do IBAMA, advogados das maiores empresas desse país e
tudo. Tentar pegar isso tudo e transformar numa linguagem que qualquer
pessoa do povo possa entender. O blog tem essa missão, e acho que tudo isso
foi experiência que eu tive durante toda a minha vida, de tentar transformar
essa linguagem jurídica em algo que... Por que na minha cabeça, não tem
nada dentro do direito, que a gente esteja fazendo, sobretudo quando se está
trabalhando com o direito público, que não possa ser compreendido por
quem vai ser beneficiado por ele. Tudo que a gente está fazendo tem uma
causa, uma lógica, não é nada de outro mundo que não se possa entender
(Entrevista realizada em 27/05/2011).
Ainda de acordo com o Procurador, a necessidade de “desmistificar o direito” foi
buscada de forma consciente na sua atuação jurídica, o que pode ser ilustrado pela sua
preocupação – tanto no mestrado quanto na primeira experiência profissional como advogado
do Centro de Defesa, conforme já assinalado – de traduzir causas sociais para causas jurídicas
60
Essa situação se aproxima daquela analisada por Sadek (2008, p.123) com relação à atuação do Ministério
Público, pois, conforme destaca a autora, “Hoje, dificilmente se encontra um tema, um conflito, uma campanha,
uma denúncia, uma investigação em que o Ministério Público não esteja presente. E não se trata de qualquer
presença. É uma presença de relevo. Em conseqüência, tem crescido, simultaneamente, o apreço e as críticas.
Não vai aí nenhum paradoxo. O apoio e aplauso vêm principalmente da oposição, de minorias, de ONGs, da
imprensa. As críticas mais mordazes, por sua vez, são vocalizadas pelo governo, políticos da situação, setores da
magistratura, da polícia, advogados e de grandes empresas” (SADEK, 2008, p. 123).
61
Conforme matéria publicada pela Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal do Pará no site
oficial da instituição (www.pgr.mpf.gov.br.), “a NESA pede o afastamento do procurador do caso Belo Monte
devido à publicação, em seu blog, de uma série de artigos sobre os processos judiciais contra a usina hidrelétrica,
bem como a retirada do link www.belomontedeviolencias.blogspot.com do site do Ministério Público Federal no
Pará, sob alegação de que o blog ‘incita à violência’, ‘utiliza-se de informações privilegiadas’, tem o ‘nítido
propósito de inviabilizar a construção da hidrelétrica de Belo Monte’, alegando ainda que o blog de Felício
Pontes Júnior fere ‘a autonomia do Poder Executivo, na medida em que expõe os atos administrativos dos órgão
competentes à execração pública, taxando-os de ilegais e irregulares’. Na sua defesa apresentada, Felício Pontes
Jr. enfatiza que a reclamação tem um caráter autoritário evidente e carece de substância, afirmando ainda que ‘se
esse pensamento vigorar, o governo não pode ser criticado, ainda que as críticas expostas no blog tenham como
origem autos processuais. Se assim for, não só o direito à informação deve ser abolido, mas também o direito de
expressão’”.
104
e possibilitar a compreensão dos instrumentos jurídicos pela população, sobretudo a mais
desassistida, quer por meio de palestras informativas quer por meio de publicações62 que
possam ser apropriadas e instrumentalizadas pelos grupos sociais. Conforme afirma:
Uma coisa que a gente usava muito na época, uma expressão chamada
“desmistificar o direito”. Então, eu tinha que “desmistificar o direito” tanto
no mestrado – porque o mestrado era basicamente para que eu pudesse dar
aula também, então eu tinha que ler livros toda semana e apresentar aula
para todo mundo, pros companheiros de aula que não eram formados em
direito e isso foi muito cativante e ao mesmo tempo eu aprendi muito com
isso, porque eu tinha que traduzir, eu tava falando o tempo todo pra quem
não tinha formação jurídica – e no Centro de Defesa eu tinha que fazer as
duas coisas, por que eu tinha que tá correndo com os processos no fórum do
Rio de Janeiro, utilizando a linguagem jurídica, mas para que, chegasse a
esse ponto lá, eu tinha que ter trabalhado isso antes, nas favelas do Rio (...).
Então, nos tínhamos muitos encontros onde eu fazia muitas palestras para
essas pessoas sempre no sentido de “desmistificar o direito”, de dizer que
havia instrumentos jurídicos, por exemplo, que poderiam ser apropriados por
essas pessoas, como habeas corpus, que não precisava de advogado, que nas
prisões ilegais poderiam fazer e até exercitar esses instrumentos com essas
pessoas (...). Então, eu acho que eu fui toda vida tentando fazer isso,
“desmistificar o direito” (Entrevista realizada em 27/05/2011).
Também com destacada atuação nas questões envolvendo conflitos socioambientais
no âmbito do MPU, menciona-se o Procurador Geral da República no estado do Maranhão,
Alexandre Silva Soares. Tendo sido aprovado para o cargo de Procurador da República no
ano de 2005, Alexandre Silva Soares ingressou no Ministério Público, originalmente, no
estado do Pará, atuando como Procurador Chefe Substituto, junto com o Procurador da
República do Estado do Pará Felício Pontes Junior, até o ano de 2007.
Conforme revela em entrevista, o Procurador graduou-se em direito na Universidade
Federal do Maranhão no ano de 2002, tendo exercido, antes da entrada no Ministério Público
Federal, as atividades de docência em uma universidade particular de São Luís e uma rápida
experiência como assessor jurídico da Diocese de um município no Maranhão, por oito meses.
Conforme relatado por Alexandre Silva Soares, sua atuação se dá nas causas
ambientais e de populações tradicionais63, uma área em que atua desde o ano de 2007 no MPF
62
Quando questionado sobre publicações sobre a sua temática de estudo no mestrado, Felício Pontes destacou
que o incentivo recebido na pós-graduação era de que os estudos realizados fossem publicados como forma de
possibilitar um processo de apropriação de conhecimento pela população. Conforme destaca: “a editora
Malheiros de São Paulo publicou uma série chamada Direito da Criança e eram uns livrinhos para a população
entender aquilo que tava acabando de nascer. Eu participei dessa série com um dos livros que é sobre o conselho
de direitos da criança e do adolescente” (Entrevista realizada em 27/05/2011).
63
A distribuição dos processos entre os Procuradores da República no estado do Maranhão obedece a uma
sistemática parecida com a verificada no Ministério Público Federal no estado do Pará, pois existem duas formas
de atuação na área ambiental, que embora integradas, são distintas: as áreas penal (criminal) e cível, a primeira
com um viés mais repressivo e a segunda com viés mais preventivo. A atuação do Procurador Alexandre Silva
105
do estado do Maranhão por opção, pois, em suas palavras, “entendi que era oportuno ficar
mais um tempo nessa área em que estou, de meio ambiente e populações tradicionais”
(entrevista realizada em 24/11/2011).
Com relação aos processos tramitando nesta área no estado, o Procurador destaca:
Existe uma vara ambiental aqui em São Luís, Federal. Toda demanda
ambiental tramita nessa vara especializada da justiça federal. Ano passado o
levantamento que eu fiz, quando a vara foi instalada, era de 500 ações
coletivas em matéria ambiental. Então era um número razoável. Eu mesmo –
isso ano passado – esse ano eu propus cerca de 50 ações civis públicas em
matéria ambiental e nos anos anteriores... acho que ao todo [pausa]... eu acho
que eu já propus mais ou menos 90 ações civis públicas em matéria
ambiental desde que eu cheguei aqui no Maranhão. Não é um número ainda
muito elevado, apesar de corresponder a quase 10% do que está em curso na
vara ambiental, mas, assim, considerando o tamanho dos problemas que
você tem aqui é pouco ainda (Entrevista realizada em 24/11/2011).
Ainda com relação a sua atuação na área ambiental e de “povos e comunidades
tradicionais”, o Procurador destaca o desgaste pessoal sofrido por aqueles que defendem tais
causas no âmbito do Ministério Público, tendo em vista a existência de uma repercussão
negativa sobre a imagem dos membros que atuam nessas causas. Conforme afirma:
Eu acho que hoje em dia quem atua na área ambiental no Ministério Público
tem fama de ficar com a pecha de louco, porque em geral você vai entrar
com ações para barrar a obra, pra desfazer a obra... Então, acaba ficando
com uma fama do cara que quer só destruir, e isso numa sociedade que é
premente de carências materiais, que vê essas construções, que vê essas
melhorias entre aspas como sinônimo de progresso (...). Então, eu
acompanho alguns blogs, eu inclusive observo a repercussão de algumas
notícias, aí tem algumas coisas que o pessoal escreve: “O que esse
Alexandre tem contra o progresso? Deixa o Maranhão crescer procurador”.
Eu já recebi uma mensagem desse jeito... (...) Antes de tu chegares aqui, por
exemplo, eu tava discutindo com outros procuradores uma recomendação no
caso da Via Expressa64, que é um negócio que vai trazer uma repercussão
pessoal para mim muito negativa, mas é algo que tem que ser feito. Então,
existe um desgaste pessoal muito grande para quem atua na área ambiental,
porque é um camarada que é enxergado, socialmente e politicamente, como
uma pessoa que defende, na verdade, o atraso, que defende, na verdade, que
as coisas fiquem como estão... Numa sociedade onde existe muita demanda
por crescimento, modernização, isso é tido como uma característica negativa
(Entrevista realizada em 24/11/2011).
Soares se verifica nas demandas das áreas cíveis envolvendo matéria ambiental e de povos e comunidades
tradicionais.
64
Trata-se de um empreendimento do governo do estado do Maranhão visando à construção de uma avenida de
nove quilômetros de extensão no município de São Luís e que prevê a supressão de áreas de preservação
permanente (como o sítio Santa Eulália) bem como impacta o patrimônio histórico e arqueológico de um bairro
centenário do município (o bairro do Vinhais Velho).
106
Outro aspecto de destaque na entrevista realizada com o Procurador refere-se à
importância atribuída à interlocução com os demais agentes de outras áreas científicas – em
especial na academia – que possuem envolvimento com a temática socioambiental, tal como
professores vinculados aos Departamentos de Ciências Sociais, Geografia, Química, dentre
outros. Sobre esse aspecto, selecionamos o seguinte trecho da entrevista:
Eu acho que lá no Pará, no meio acadêmico, você tem o desenvolvimento de
algumas figuras que se tornaram mais conhecidas socialmente do que aqui.
Aqui não é que você não tenha, pelo contrário, aqui você tem até alguns
professores bem engajados nessa questão ambiental, mas que não tem
recepção, tal como o pessoal do GEDMMA65 e algumas poucas pessoas do
departamento dessa área (...) A Maristela66 é o maior ícone na academia
nessas discussões. Por exemplo, Alcântara, quem escreveu o laudo que nos
permitiu recolocar, digamos assim, ou colocar o Ciclone 4 dentro da base, da
área da base, foi a professora Maristela. Inclusive a professora Maristela tem
contribuído muito com a discussão socioambiental aqui no estado do
Maranhão, inclusive não apenas enquanto discussão acadêmica, mas também
quanto à adoção de providências por parte de órgão públicos. A mesma coisa
com relação à questão do Baixo Parnaíba, no qual ela está trabalhando no
caso do eucalipto. Então efetivamente ela tem contribuído muito...
(Entrevista realizada em 24/11/2011).
Ao mesmo tempo em que revela o conhecimento e o reconhecimento do trabalho dos
profissionais de outras áreas disciplinares que não a jurídica para fundamentar as discussões
no âmbito das causas socioambientais – em particular, professores vinculados ao
Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão – o Procurador
Alexandre Silva Soares demonstra preocupação com o que percebe como instrumentalização
às avessas do trabalho acadêmico, por parte de alguns profissionais, no que se refere a essa
discussão.
Tal instrumentalização, segundo o Procurador, verifica-se, sobretudo, por meio da
realização de estudos técnicos e científicos feitos por professores de outros Departamentos da
Universidade com vistas ao fortalecimento dos objetivos das empresas e empreendimentos
direcionados a interesses políticos e econômicos em detrimentos dos direitos de grupos tidos
como tradicionais. Conforme afirma:
Agora, dentro disso, também tem um problema, que a gente tem observado
na academia, que é o fato de que tem muita que tá trabalhando no espaço
universitário na verdade para prestar serviços para grandes empresas que
estão interessadas na degradação, na exploração de recursos ambientais. Isso
é um fato que eu acho muito mais marcante na academia, principalmente nas
áreas de ciências biológicas, oceanografia, do que a defesa do ambiente. O
65
Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente, vinculado ao Departamento de
Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão.
66
Dra. Maristela de Paula Andrade, professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Maranhão.
107
que tenho visto com mais nitidez é exatamente isso. A utilização dessas
ciências – ciências biológicas, ciências ambientais – nos seus quadros para
instrumentalizar a operação de empresas no estado do Maranhão (Entrevista
realizada em 24/11/2011).
Essa valoração das diferentes disciplinas científicas e da atuação dos profissionais a
elas vinculadas teria relação com a formação acadêmica do Procurador Alexandre Silva
Soares, pois, conforme afirma em entrevista, durante a graduação em direito, o engajamento
em movimentos (estudantil, de defesa de direitos humanos) e a realização de disciplinas em
outros cursos possibilitou uma tomada de posição mais crítica ante alguns processos sociais.
Nesse sentido, afirma que o envolvimento com as temáticas nas quais hoje atua como
Procurador tem mais relação com experiências vivenciadas fora das salas de aula do curso de
direito. Assim sendo, menciona a realização de estágios extracurriculares e curriculares, junto
a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e ao Centro de Cultura Negra, a realização de
disciplinas em outros Departamentos (como foi o caso da disciplina de Métodos e Técnicas de
Pesquisa, do curso de Ciências Sociais, ministrada pela professora Dra. Maristela de Paula
Andrade) e a participação no Núcleo de Assessoria Jurídico Popular Negro Cosme, da
Universidade Federal do Maranhão. Acerca da experiência no núcleo, destaca o Procurador:
(...) Foi bem interessante para tomar conhecimento desses problemas nos
quais hoje eu atuo e também para determinadas formas de atuação que não
se limitam apenas a atuação judicial, a atuação de gabinete. Isso aí eu acho
que foi um diferencial razoável para formação, sobretudo no modo de agir,
no modo de utilizar, digamos assim, o campo do Poder Judiciário também
como um campo de afirmação de direitos para as populações tradicionais
(Entrevista realizada em 24/11/2011).
Percebe-se, portanto, a preocupação do Procurador Alexandre Silva Soares em atuar,
na prática jurídica, de uma forma mais ativa e próxima aos grupos considerados tradicionais,
de modo que essa atuação não esteja circunscrita aos limites estritos do espaço judicial.
Assim, a interlocução, na medida do possível, é buscada com estes grupos, e, conforme
afirmado, essa forma de proceder tem relação com uma concepção diferenciada do direito, tal
como observamos também nos depoimentos dos demais membros que compõem o Ministério
Público e aqui foram apresentados.
Além do Ministério Público, agentes situados em outros espaços acabam exercendo
grande influência no que concerne às discussões sobre a ampliação e ao reconhecimento de
direitos. Nesse sentido, destaca-se a atuação de professores da área jurídica – alguns com
atuação anterior como advogados desses grupos e outros com atuação posterior a entrada na
academia no exercício de cargos no Executivo – mas todos com vínculo junto a universidades
108
federais e estaduais e com uma vasta produção bibliográfica sobre a temática, com vistas à
defesa dos chamados “povos e comunidades tradicionais”.
Dentre esses, podemos situar três professores analisados para fins dessa pesquisa: o
Dr. Joaquim Shiraishi Neto, docente da Universidade Estadual do Amazonas e com vínculo
junto à Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, no estado do Maranhão e doutores Girolamo
Domenico Treccani e José Heder Benatti, ambos da Universidade Federal do Pará.
Conforme dados preliminarmente obtidos junto a fontes secundárias, Joaquim
Shiraishi Neto possui uma atuação atual mais voltada para a produção acadêmica nos temas
relativos a conflitos socioambientais, movimentos sociais e direito dos “povos e comunidades
tradicionais” do que para o exercício da prática da advocacia no que se refere à defesa judicial
desses grupos (embora, tenha atuado como assessor jurídico, sobretudo na década de 1990,
em movimentos associativos em diversos estados da federação, conforme tabela ao final do
trabalho).
Joaquim Shiraishi Neto67 é bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (1988) e possui mestrado em Planejamento do Desenvolvimento pelo Núcleo de
Altos Estudos da Amazônia da Universidade Federal do Pará (1997) e doutorado em Direito
pela Universidade Federal do Paraná (2004).
Ex-professor da Universidade Federal do Maranhão e da Universidade Estadual do
Maranhão, atualmente ministra disciplinas na Universidade Federal do Pará, na Universidade
do Estado do Amazonas junto ao Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental
(PPGDA-UEA) em Manaus – AM e na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, em São Luís
– MA.
Dada a vinculação com diferentes cursos e programas de pós-graduação, não somente
em direito, mas em áreas como sociologia, geografia, políticas públicas dentre outras, muitos
são os artigos, capítulos de livros e obras publicadas, individualmente ou não, por Joaquim
Shiraishi Neto, conforme lista da sua produção bibliográfica que inclui, dentre outras obras,
os artigos: “Novas Sensibilidades Velhas Decisões: notas sobre as recentes transformações
jurídicas” (2011); “Redefinições em torno da propriedade privada na Amazônia: ecologismo e
produtivismo no tempo do mercado (2011); “Idealismo Jurídico como Obstáculo ao ‘Direito à
Cidade’: a noção de planejamento urbano e o discurso jurídico ambiental” (2009); “O campo
jurídico em Pierre Bourdieu: a produção de uma verdade a partir da noção de propriedade nos
manuais de direito” (2008); “Novos Movimentos Sociais e Padrões Jurídicos no Processo de
67
Dados obtidos junto a Plataforma Lattes, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Fonte: lattes.cnpq.br.
109
Redefinição da Região Amazônica” (2008); “Tentativa de Compreensão da Lei de Recursos:
estratégias do capital e "novas" formas de privatização da água” (2007); “Reflexões do
Direito das ‘Comunidades Tradicionais’ a Partir das Declarações e Convenções
Internacionais” (2006).
Com relação aos livros publicados, menciona-se: “Meio Ambiente, Território e
Práticas Jurídicas: enredos e conflitos” (2011); “Conhecimento Tradicional e Biodiversidade:
normas vigentes e propostas” (2010); “Direito dos Povos e das Comunidades Tradicionais no
Brasil: declarações, convenções internacionais e dispositivos jurídicos definidores de uma
política nacional” (2007) “Leis do Babaçu Livre: práticas jurídicas das quebradeiras de coco
babaçu e normas correlatas” (2006); “Guerra Ecológica nos Babaçuais: o processo de
devastação das palmeiras, a elevação do preço de commodities e o aquecimento do mercado
de terras na Amazônia” (2005); “Economia do Babaçu: levantamento preliminar de dados”
(2001); “Inventário das Leis, Decretos e Regulamentos das Terras no Maranhão” (1998).
Já como capítulos de livros, tem-se: “Tensões entre o Dito e o Feito” (2011); “The
complex rite of passage from invisible subjects to subjects of rights to attain benefit sharing in
the implementation of the CBD: the case of the babassu breaker women in Brazil (2010); “ O
Direito dos Povos dos Faxinais” (2009); “Conhecimento Tradicional e Biodiversidade:
normas vigentes e propostas” (2008); “O Pluralismo como Valor Fundamental: a cooficialização das línguas nheengatu, tukano e baniwa, à língua portuguesa, no município de
São Gabriel da Cachoeira, Estado do Amazonas” (2007); “A Particularização do Universal:
povos e comunidades tradicionais face às Declarações e Convenções Internacionais” (2007);
“Experiências com Áreas Protegidas: cinco estudos de caso” (2003); “As Palmeiras Enquanto
Patrimônio Jurídico Mínimo das Chamadas Quebradeiras de Coco Babaçu” (2002); “Babaçu
Livre: conflito entre a legislação extrativa e práticas camponesas” (2000); “Prá cá não é tão
bom como no Goiás” (2000); “A greve da CELMAR: conflito, direito e mobilização
camponesa” (1998); “Grilagem de Terra no Leste Maranhense” (1995).
Percebe-se pelos títulos de seus trabalhos a circulação deste autor por diferentes áreas
de conhecimento, sobretudo as relativas às Ciências Sociais, conforme mencionado
anteriormente. Essa relação estabelecida com antropólogos e cientistas sociais através de
projetos de pesquisa e publicações em conjunto, possibilita que o seu posicionamento sobre o
Direito e os temas elegidos como fonte de pesquisa e trabalho sejam perpassados pelas
discussões realizadas no âmbito das Ciências Sociais.
Mencione-se ainda a posição de Shiraishi Neto com relação ao necessário afastamento
do operador jurídico de uma postura dogmática no que concerne a interpretação das normas
110
relativas aos direitos étnicos. Organizador da obra “Direito dos povos e das comunidades
tradicionais no Brasil: declarações, convenções internacionais e dispositivos jurídicos
definidores de uma política nacional” (2007), Shiraishi Neto afirma:
A inversão da ordem de se pensar o direito a partir da situação vivenciada
pelos povos e comunidades tradicionais, leva a uma ruptura com os
esquemas jurídico pré-concebidos. Essa dinâmica que serve para iluminar o
direito tem provocado três movimentos, os quais podem ser delineados: a)
deslocamento de disciplinas tidas como tradicionais, a saber: o direito civil,
o direito agrário e o próprio direito ambiental; b) a relativização e
reorganização hierárquica de determinadas normas e regras consagradas
pelos intérpretes; e c) a reafirmação e ampliação de dispositivos jurídicos
internacionais de proteção dos direitos humanos (SHIRAISHI NETO, 2007,
p. 29).
Shiraishi Neto (2007), constantemente nas suas publicações, recorre a sociólogos e
antropólogos para fundamentar a necessidade de “outras” práticas jurídicas que se encontram
coadunadas a “outras” formas de saber, situadas nas experiências de cada grupo social. De
acordo com o autor:
Convém enfatizar que para além das reivindicações dos povos e
comunidades tradicionais se está diante de uma luta interna no campo
jurídico, onde há um enfrentamento dos “operadores do direito” em torno do
direito de dizer o direito (BOURDIEU, 1989). A referida disputa
identificada inicialmente no plano dos operadores, não pode desgastar as
intervenções ou mesmo paralisar os atos oficiais ou inibir as discussões que
envolvem os procedimentos operacionais. Sublinhe-se que os direitos aos
quais se está referido se encontram no bojo dos direitos fundamentais e,
portanto, de aplicação imediata, conforme determina o texto constitucional
brasileiro (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 31).
Dessa forma, percebe-se a mediação realizada no que se refere ao discurso acadêmico
e à articulação realizada entre este saber científico e também político e a defesa dos povos
indígenas e grupos e comunidades tradicionais, conforme teremos oportunidade de analisar no
próximo item.
Outro agente que também realiza essa mediação é o professor da Universidade Federal
do Pará Dr. Girolamo Domenico Treccani. Diferentemente dos demais entrevistados,
Girolamo Treccani nasceu na Itália, tendo adquirido a cidadania brasileira por meio do
Certificado de Naturalização, em 2001. Conforme revelado em entrevista, o prof. Dr.
Girolamo Treccani veio ao Brasil integrando uma congregação religiosa há mais de trinta
anos.
111
Desde que chegou, estabeleceu-se no estado do Pará, inicialmente no interior do
estado e, a partir de 1986, atuou como Secretário Regional da Comissão Pastoral da Terra.
Com relação a essa experiência, destaca Treccani:
Um fato marcante daquele tempo foi à conquista da federação dos
trabalhadores na agricultura do estado do Pará e Amapá, naquele tempo, a
FETAGRI68, por parte da chapa encabeçada pela CUT69. Era ainda um
período final da ditadura, começo da nova república, aonde os movimentos
sociais, de maneira especial os sindicatos, tinham, aqui e acolá, já adquirido
feições mais combativas, mas na sua grande maioria ainda, abre aspas,
denominados pelegos, isso é, aqueles que não se enquadravam, vamos dizer
assim, em perfis mais avançados no que diz respeitos as lutas populares.
Portanto um das primeiras coisas que a gente se envolveu foi exatamente a
conquista da direção da FETAGRI através de uma ampla campanha de
sensibilização. Naquele momento histórico, por isso faço referência a isso, a
idéia é de que todo mundo era trabalhador rural, isto é, apesar de que,
evidentemente alguma noção de que não era uma categoria monolítica, mas
não existia a preocupação de se encontrar grandes diferenças. Se talvez
diferença poderia ser vista era entre o trabalhador rural – o camponês – e o
sem terra – aquele que iria ocupar terras, portanto. Mas também era a mesma
representação sindical, portanto toda essa discussão, seja aquelas relativas à
regularização fundiária, seja aquelas relativas à reforma agrária eram
traçadas de maneira conjunta pelos mesmos atores sociais, portanto, não se
via naquele momento, pelo menos eu pessoalmente posso dizer de maneira
mais genérica, não se via naquele momento qualquer diferenciação maior, a
não ser, evidentemente, já naquele tempo era bem claro isso, populações
indígenas, que aí sim, era outro ato de estratégias, de reunião, etc etc etc...
Integrando a Comissão Pastoral da Terra evidentemente o trabalho era
aquele de sensibilizar as comunidades, sensibilizar os sindicatos, sensibilizar
enfim a própria igreja, ou as igrejas, melhor dizendo nesta tarefa...
(Entrevista realizada no dia 16/05/2011).
No que se refere à sua formação profissional, conforme mencionado, a primeira
graduação obtida foi no curo de Teologia, na Itália, vindo a ingressar o curso de direito após
sua estadia no Brasil, em 1987, obtendo o grau de bacharel em 1991. A especialização, o
mestrado e o doutorado também foram realizados na Universidade Federal do Pará, em
diferentes programas de pós-graduação. Com relação a esses programas, destaca:
Naquele tempo [no mestrado em Direito] ainda não se tinha essa
diferenciação, apesar de que a linha de pesquisa na qual entrei diga respeito
a Amazônia, na verdade era Amazônia e outra linha de pesquisa Direito do
Estado, e eu preferi Amazônia... Bom, aqui, nesta mesma universidade eu
fiz, como disse ainda pouco, uma especialização, essa especialização tem
caráter latino americano, na medida em que se discutia o desenvolvimento
sustentável e daí, portanto, a preocupação já naquele momento de tentar
entender melhor, do ponto de vista mais teórico, como é que se constituíam
as diferentes realidades. A especialização foi aqui no Núcleo de Altos
68
Federação dos Trabalhadores na Agricultura.
Central Única dos Trabalhadores. Representa naquele momento histórico o pólo combativo do movimento
sindical.
69
112
Estudos da Amazônia, realizada em 1994. O mestrado foi feito em direito
nesta mesma universidade, de 1996 a 1999, e do doutorado 2001 a 2005
(Entrevista realizada no dia 16/05/2011).
Atualmente, Girolamo Treccani é professor da Faculdade de Graduação e do Programa
de Pós-graduação do Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA e Vice-Coordenador do
Programa de Pós-graduação em Direito da UFPA. Ainda conforme o Currículo Lattes (ver
mais detalhes em anexo), de janeiro de 2007 a dezembro de 2010 foi Assessor Chefe do
Instituto de Terras do Pará (ITERPA), assumindo a presidência nas ausências do titular, e
Consultor Jurídico da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAGRI-PARÁ), da
Coordenação das Associações das Comunidades Remanescente de Quilombo do Estado do
Pará (MALUNGU/PARÁ) e da Comissão Pro-Índio de São Paulo.
Da sua formação acadêmica resultaram inúmeras publicações, algumas de caráter mais
“acadêmico” e “técnico” e outras com um caráter mais “politizado”, tal como a elaboração de
inúmeras cartilhas voltadas para instrumentalização dos movimentos sociais, bem como a
participação em diversas comissões de elaboração de minuta de decretos estaduais, tratando
da regularização fundiária, projetos de assentamento e ordenamento territorial do estado do
Pará.
Com relação a publicações de artigos e livros publicados, predominam as temáticas
relacionadas a conflitos agrários e questão fundiária. Os livros são: “Manual de Direito
Agrário Constitucional. Lições de direito agroambiental” (2010), “Terras de quilombo:
caminhos e entraves do processo de titulação” (2006), “Violência e grilagem: instrumentos de
aquisição da propriedade da terra no Pará” (2001); os capítulos de livros: “Combate à
Grilagem: Instrumento de promoção dos direitos agroambientais da Amazônia” (2008),
“Identificação e análise dos diferentes tipos de apropriação da terra e suas implicações para o
uso dos recursos naturais da várzea amazônica no imóvel rural, na área de Gurupá” (2005),
Terras de Quilombo (1999); artigos: “O Título de Posse e a Legitimação de Posse como
formas de aquisição da propriedade” (2009), “A questão fundiária e o manejo dos recursos
naturais de várzea” (2005), “Direito Agrário Brasileiro” (1999). Já as Cartilhas publicadas
são: “Direitos Fundamentais violados no caso da usina Hidrelétrica de Belo Monte” (2011),
Coletânea de Legislação Agro-Ambiental e Correlata (2010), “Ordenamento Territorial
Avanços e Desafios 2007-2010” (2010), “Trilhas da Regularização Fundiária para
Comunidades nas Florestas Amazônicas” (2010), “Pará: do caos fundiário à terra de direitos”
(2010), “Trilhas da regularização fundiária para populações nas florestas amazônicas” (2008),
“Ordenamento Territorial e Regularização Fundiária no Pará” (2008), “A regularização
113
fundiária como instrumento de ordenar o espaço e democratizar o acesso á terra” (2007),
“Regularização fundiária e manejo dos recursos naturais” (2006), “A posse da terra no
ambiente de várzea. Debates para uma possível solução” (2005), “Os diferentes caminhos
para o resgate dos territórios quilombolas” (2005), “Nova Legislação Remanescente de
Quilombo” (2003), “Documentar a terra: uma luta constante” (2001), “A Luta pela terra no
Pará - Os Camponeses como criadores de um novo direito” (1997).
Cabe destacar a preocupação do prof. Girolamo Treccani em tornar acessíveis aos
grupos estudados os resultados de seus trabalhos, de forma que os mesmos pudessem ser
“traduzidos” e, consequentemente, compreendidos pelos grupos sociais.
Dessa perspectiva, surge a tentativa de construção das cartilhas que, segundo afirma,
partem de uma discussão mais teórica, feita a partir de uma experiência concreta, para
oferecer subsídios a essas populações tradicionais de modo que as mesmas possam conhecer
quais são as diferentes formas de reconhecimento e consolidação de direitos. Acerca da sua
produção bibliográfica, destaca que:
Fruto do meu mestrado foi o meu primeiro livro sozinho, “Violência e
grilagem: instrumento de aquisição da propriedade no estado do Pará ” e
fruto do doutorado foram outros dois livros, um mais específico sobre as
comunidades remanescentes de quilombo e outro retomei a discussão, um
capítulo, no coletivo, a discussão sobre o combate a grilagem. A publicação
conjunta é “Direitos humanos em concreto”, foi publicado em 2008 pela
editora Juruá. Na realidade este livro é uma coletânea, todos os doutores do
programa de pós graduação em direito escreveram um capítulo. O meu
capítulo era “Combate a grilagem e instrumentos de promoção dos direitos
agro ambientais na Amazônia”. A discussão sobre as populações tradicionais
fez parte do meu doutorado. Já no mestrado trabalhei em parte isso, mas
muito pouco, eu procurei aprofundar mais essa discussão no doutorado. (...)
Nós publicamos várias cartilhas. A parte mais científica está na minha
própria tese de doutorado, mais uma das características da FASE Amazônia
– de maneira especial o projeto demonstrativo Gurupá, como era chamado
naquele tempo – era exatamente a publicação de materiais, cartilhas enfim,
materiais em nível de divulgação popular, isso exatamente para poder
atender a essas populações, partindo do pressuposto de que é importante
evidentemente a discussão mais técnica mas ela tem que ser colocada ao
serviço e traduzida no linguajar que o próprio pessoal pudesse se apropriar
(Entrevista realizada no dia 16/05/2011).
A sua atuação profissional também é permeada por essa preocupação em
disponibilizar aos grupos de maior vulnerabilidade o seu conhecimento e a sua formação,
pois, conforme afirma em entrevista, as instituições, movimentos sociais, comissões de
direitos humanos e sindicatos nos quais, por meio de discussões específicas sobre
regularização fundiária e reforma agrária, ajudaram a definir estratégias de combate à
grilagem e a violência no campo. Em suas palavras:
114
Trabalhava na CPT e ao mesmo tempo oferecia assessoria jurídica eventual à
FASE. Uma das estratégias da CPT naquele tempo, isso significa até
praticamente 10 anos atrás, mais ou menos, era priorizar o acompanhamento
do movimento sindical. Portanto, enquanto integrante da coordenação
estadual da CPT, uma das minhas tarefas era aquela de oferecer assessoria
jurídica também eventual para a FETAGRI. Porque eventual? Na realidade
eu nunca peguei processos específicos, minha tarefa era muito mais ajudar a
discutir a estratégia global e a implementação dessa estratégia de
regularização, estratégia de reforma agrária, estratégia de combate a
violência no campo, estratégia de combate à grilagem, enfim foram várias
iniciativas que em conjunto foram feitas, canalizadas naquilo que nasceu no
estado do Pará, o chamado Grito do Campo, em 1991, que hoje tem
dimensão nacional no Grito da Terra Brasil (Entrevista realizada no dia
16/05/2011).
A análise do currículo do jurista – tanto no que se refere a suas publicações
acadêmicas, trabalhos técnicos e experiências profissionais – permite perceber que a sua área
de atuação predominante refere-se às discussões realizadas no âmbito do Direito Agrário,
Ambiental e Civil, atuando principalmente nos temas terra, legislação agrária, grilagem, meio
ambiente, comunidades quilombolas e Amazônia bem como na consultoria nessas áreas.
Com relação a sua experiência no ITERPA (2007-2010), Girolamo Treccani fez uma
avaliação na qual se dizia um tanto quanto frustrado pela experiência no governo, embora
reconheça que houve muitos avanços com relação a administrações anteriores. Ponderou que
a prática comum nesse órgão era tão somente a emissão de documentos (trabalho
eminentemente técnico) e que, em sua gestão conjunta com o Dr. José Heder Benatti, o
objetivo, dentre outros, seria também o de discutir algumas categorias com os próprios
integrantes da administração, o que, no prazo de quatro anos, não foi possível. Conforme
destaca:
Nossa intervenção se deu através de várias vertentes. Primeiro, o
reconhecimento da situação caótica na qual vive o estado do Pará em seu
aspecto fundiário, e daí a necessidade, portanto, de ter uma visão de como se
chegar a superar isso. O ponto mais importante dessa discussão chegou a ser
o cancelamento administrativo de algumas dezenas, centenas, milhares,
ninguém sabe exatamente o número – pois até agora ainda não se teve
feedback de quanto registros foram cancelados – mas enfim, o cancelamento
administrativo por parte do CNJ70 de dezenas de registros fraudulentos. Uma
outra vertente fundamental no nosso trabalho foi aquela de encontrar
caminhos para a regularização fundiária e (...) chegamos a adotar aquilo que
denominávamos de “varredura fundiária”, isto é, o primeiro passo era a
identificação da realidade fundiária de determinado município ou região e a
partir da daí, desse contato preliminar, já desenhar as possíveis categorias
sociais que precisariam ter um tratamento específico. E daí nascia, por
exemplo, a discussão de, os processos administrativos correspondentes, de
criação de reconhecimento de direito de comunidades quilombolas. No
70
Conselho Nacional de Justiça.
115
mesmo trabalho se identificavam áreas a serem regularizadas de maneira
coletiva, e daí, portanto, a discussão sobre os projetos estaduais de
assentamento agroextrativista. Uma outra possibilidade, a criação de projetos
de assentamento mais tradicionais, no sentido dos PA, do INCRA, portanto,
os projetos de desenvolvimento sustentável. A grande diferença teórica entre
um e outro é que, enquanto o projeto de assentamento agroextrativista tem
como beneficiário uma associação, portanto coletiva, no desenvolvimento
sustentável ele tem como base a própria unidade familiar. E isso leva
também, apesar que teoricamente não necessariamente, mas na prática, o que
quê se percebeu: a grande maioria das populações tradicionais escolheu a
modalidade coletiva. Isso aconteceu por exemplo em Juriti, isso aconteceu
em Oriximiná, isso aconteceu em Porto de Moz, isso aconteceu em
Santarém, isso aconteceu em Gurupá... Áreas, pelos nomes desses mesmos
municípios, aonde a quantidade de floresta em pé ainda é significativa.
Naqueles municípios, aonde ao contrário, a frente de expansão agropecuária
foi muito mais forte – me refiro, por exemplo, Tailândia (que é um dos
municípios enquadrados no Arco Verde, antigo Arco de Fogo, né) Tailândia,
Rondon do Pará, Dom Elizeu, enfim, municípios esses, todos, praticamente,
esses que citei, dentro do Arco Verde ou até municípios que não estão no
Arco Verde, como Acará, Mujaú e outros, mas onde a dinâmica do
desmatamento foi muito maior – estes municípios, todos eles, escolheram
como modalidades de assentamento aquele familiar. Além disso,
evidentemente, há regularização fundiária familiar fora dos assentamentos. E
a terceira grande vertente que nós, na verdade, demos continuidade a política
que começou a ser adotada desde 97 pelo governo de Gabriel, que continua
no governo, no primeiro governo Jatene, que foi a política dos
reconhecimentos dos direitos territoriais das comunidades quilombolas. Uma
outra vertente deste trabalho dentro do governo do estado, dentro do
ITERPA, foi o diálogo com o INCRA, com o órgão federal, exatamente...
Primeiro, diante do estado de confusão. Nem sempre é muito fácil entender
se aquela área é estadual ou federal. Isso é herança histórica que desde a
década de 70 carregamos na Amazônia, famoso decreto lei 1164, que
federalizou 100 km de cada lado das rodovias federais e que criou uma
grande confusão, exatamente porque estas, a incorporação dessa área ao
patrimônio público federal se deu em mapas daquele tempo, e hoje fica meio
complicado se saber exatamente onde é que é jurisdição de um e de outro. E
daí necessidade de um trabalho em conjunto, além do que os próprios
assentamentos estaduais foram reconhecidos pelo INCRA para oferecer a
essas famílias, a essas associações, a possibilidade a ter acesso aos créditos
da reforma agrária (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).
O prof. Dr. José Heder Benatti, com quem o prof. Dr. Treccani compartilhou a
experiência no órgão público de terras estadual assim como a carreira docente na
Universidade Federal do Pará, incluindo produções bibliográficas conjuntas, é formado em
direito pelo Centro de Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Pará (1986), Mestre
em direito pela Universidade Federal do Pará (1996) e Doutor em Ciência e Desenvolvimento
Socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará
(2003).
116
Atualmente, conforme consta na Plataforma Lattes do CNPq é pesquisador e Professor
Adjunto da Universidade Federal do Pará, com experiência em Direito de Propriedade e Meio
Ambiente, atuando principalmente com os temas Amazônia, populações tradicionais, unidade
de conservação, regularização fundiária e posse agroecológica.
Conforme destaca José Benatti, o início da carreira se deu na Sociedade Paraense de
Direitos Humanos, mais precisamente no interior do Pará, no município de Marabá, ainda
como estagiário, vínculo este que se manteve durante a realização do mestrado em direito na
UFPA.
Quando eu me formei, eu já estava trabalhando no movimento estudantil,
tinha ligação com a esquerda, e tal, no movimento estudantil, criação de
centro acadêmico. Quando, eu fui para Marabá. Eu fui trabalhar aqui, fui
discutir na Sociedade Paraense de Direitos Humanos e abriu a possibilidade
para ir, num estágio, quando eu era estudante, abriu a possibilidade de ir para
Marabá. Aí primeiro que ninguém de Belém queria ir para Marabá, não
porque seria Marabá na época, 86, mas era mais porque o pessoal não queria
ir para o interior. Eu me dispus a participar do projeto, tinha um outro
advogado que ia receber a gente lá, que era da CPT. Depois quando eu
terminei o projeto, me formei em julho de 1986, o projeto terminava em
dezembro de 1986. Quando eu terminei o projeto as pessoas de lá me
convidaram para ir para Marabá e a entidade de Direitos Humanos tinha
interesse de criar um núcleo de Direitos Humanos, que é a Sociedade
Paraense de Direitos Humanos lá em Marabá. Então eu fui para lá com o
objetivo de criar um núcleo da entidade em Marabá (Entrevista realizada no
dia 23/05/2011).
Ainda conforme relatado em entrevista, José Benatti retorna a Belém, após essa
experiência no município de Marabá, com o objetivo de realizar o mestrado em direito. O
objeto da dissertação de mestrado possuía relação direta com as situações vivenciadas no
interior do estado, no que se refere a conflitos agrários, questão possessória e uso coletivo das
terras, focalizando a análise nos confrontos e hierarquias entre legislação federal e estadual.
Um dos motivos de vir para Belém foi para fazer mestrado, em direito, na
época em direito aqui, tinha aqui. Eu continuei trabalhando na Sociedade de
Direitos Humanos, quando eu voltei eu já vim como vice, depois fui
presidente. Mas eu trouxe a discussão que encontrei lá. Qual era o debate?
Eu percebia assim... que tinha um conflito que eu peguei, logo quando eu
cheguei lá, que era um despejo em área de castanhal. Nós conseguimos
ganhar na justiça a não liminar, o juiz não deu liminar favorável ao dono do
castanhal, que era um tal de Montram. Eu fiquei com aquele negócio na
minha cabeça: “porque que o juiz não deu a liminar, uma discussão que tem
uma família tradicional que dominava politicamente a região e o juiz não
deu a liminar”? Aí, mas também, no dia a dia, na correria, falei, tudo bem,
depois eu vou pensar com calma ... Aí, eu comecei a trabalhar lá com a
questão indígena, assessorando um caso indígena, um processo de
reivindicação de área indígena dos índios Gaviões da Montanha, que tinham
sido transferidos por causa da Barragem de Tucuruí, comecei também uma
discussão com a questão quilombola e, também, o Conselho Nacional dos
117
Seringueiros me convidou para ajudá-los a debater a questão fundiária. Tava
começando a ter encontro nacional de seringueiros e tal... E aí, quando eu
resolvi voltar para Belém, a minha dissertação foi exatamente discutir as
posses, que eu vi que tinha a posse seringueira, a posse dos quilombolas, a
posse agrária, a posse indígena, então eu vi que tinha uma pluralidade de
posses e depois eu fui entender qual era o problema de enfrentar... Por que o
juiz não deu? Por que na realidade o juiz entendeu que naquele conflito tinha
duas concepções de posse: a posse agrária, que está no Código Civil e no
Estatuto da Terra, que ele estava trabalhando, e tinha a posse prevista na
legislação estadual, que era a posse do extrativismo da castanha, que tem
uma legislação estadual que regulamenta, que diz que tem que ter um
barracão, que ele tem que limpar a estrada, que ele tem o período de
dezembro a março fazer a coleta da castanha... obviamente os castanhais têm
por trás um aforamento que não era delimitado. Então, o juiz, como não
entendeu que se tratava de duas concepções na mesma área, o que ele fez?
Ele, pela sua formação tradicional, não foi contra a legislação federal,
porque uma posse regulamentada pela lei federal e outra posse pela
estadual... Então na cabeça dele tinha uma hierarquia, ele tinha que manter a
hierarquia federal, que naquele momento favoreceu os posseiros. Quando eu
voltei de Belém, eu voltei para trabalhar... tinha a minha formação desde
quando eu sai daqui de Belém, o meu trabalho de dissertação, de conclusão
de curso, foi sobre a Lei de Anilzinho, que é uma lei que acontecia com o
apoio da Igreja Católica na região de Cametá, onde eles pediam a
regularização fundiária coletiva, que pra época era novidade, isso foi 85, 84
e a partir daí eu comecei a discutir já... eu discuti que, olha, tinha um
apossamento coletivo, posse, não era só individual... (Entrevista realizada no
dia 23/05/2011).
No que se refere a sua formação acadêmica, José Heder Benatti ressalta que a mesma
sofreu influência tanto da participação no movimento estudantil, que, segundo afirma, “me
introduziu mais na discussão da dialética, a discussão mais, do compromisso social,
preocupação com a justiça, de apoiar o segmento mais fraco ou marginalizado da sociedade”,
quanto dos autores vinculados ao “direito alternativo”, que possibilitavam uma tomada de
posição mais crítica ante os fenômenos jurídicos. Nesse sentido, destaca que:
A partir daí também a outra formação teórica foi à questão do pluralismo
jurídico. Eu achava que existia um pluralismo jurídico, aí vem a influência
teórica que eu trabalhei, a referência teórica que era Roberto Lyra Filho, José
de Souza, o... professor da UnB, tinha Marilena Chauí. Tive contato também
com Boaventura de Souza Santos que escreveu um livro sobre pluralismo
jurídico, que discute, a dissertação dele de mestrado foi sobre o pluralismo
jurídico, ou seja, a minha formação foi nessa formação plural. A gente lia o
“Direito achado na rua”, tinha as produções de Roberto Lira Filho, na época
era “O que é direito?”, tem toda uma construção teórica nessa parte... que aí,
tem uma coisa que eu percebi também. Qual era a novidade até então? Antes
os juristas faziam crítica ao direito com base na sociologia, na filosofia, na
ciência política... A partir dessas construções teóricas você fazia crítica ao
direito por dentro do direito. Você pegava os próprios teóricos do direito e
começava a rediscutir. Então, era uma crítica mais fundamentada, nos não
éramos estranhos ao direto, nos estávamos criticando o direito por dentro
118
dele, a parte lá do positivismo jurídico, quais eram os limites dele... Aí fazia
uma distinção muito clara entre positivismo jurídico e dogmática jurídica.
Olha, dogmática não quer dizer que seja um dogma, você pode usar a
dogmática jurídica para construir o direito. Então à medida que, qual foi essa
grande diferença até naquela época – em Marabá foi muito claro no meu
comportamento – eu dizia o seguinte: eu não sou um militante político, eu
sou um militante jurídico, quer dizer, eu luto pelo direito dentro das regras
do direito e (...) não confundia direito com norma, direito muitas vezes está
acima das normas às vezes até contra a norma... Então essas discussões
teóricas começavam a construir mais ou menos clara essa distinção... Para a
geração anterior não, ele era militante, político, organizava o partido, então
eu fazia muito bem clara essa distinção da militância política da militância
jurídica (Entrevista realizada no dia 23/05/2011).
Ainda conforme relatado, essa formação, apoiada nos autores mais críticos associados
à corrente do pluralismo jurídico, não se dava no âmbito do ensino oficial do curso de
graduação em direito. Havia, conforme Benatti, poucos professores simpáticos à essa
discussão, de modo que uma das estratégias encontradas pelos alunos, vinculados ao
movimento estudantil, era realizar seminários e trazer professores convidados. Nas suas
palavras:
Por que na realidade você ainda tá a transição71. Depois disso, começou a
surgir a corrente dos juízes alternativos, era um momento, no final da
ditadura, com a consolidação da democracia, a democratização do país.
Então, você tinha também essa transição, que é o forte das reivindicações
políticas, a conquista do espaço democrático, na construção do centro
acadêmico, DCE72, dos partidos políticos, surgimentos das ONG...
(Entrevista realizada no dia 23/05/2011).
Um dos aspectos destacados no relato de Benatti é a necessidade de demarcar o caráter
técnico, e não eminentemente político, que se exigia dos profissionais do direito que atuavam
junto aos movimentos sociais. Conforme ressalta, ainda que assessorando o Partido dos
Trabalhadores em eleições, ele sempre destacava que o vínculo com o partido se dava no
caráter eminentemente técnico.
Nesse sentido, o jurista traça uma distinção entre essas esferas, pois, como destaca,
“participava do movimento estudantil, do PT, sempre assessorei o PT, nas eleições e tal... Até
fui convidado para ser candidato, aí eu não quis, não meu papel é mais técnico, sou mais da
área técnica, falei não levo jeito para ser político, no sentido político-partidário” (entrevista
realizada no dia 23/05/2011). Ainda sobre essa demarcação, asseverara José Benatti:
71
Período compreendido entre o final do regime ditatorial e o processo de redemocratização do país, no início da
década de 1980.
72
Diretório Central dos Estudantes.
119
Tanto é que num debate da Sociedade de Direitos Humanos, ela quando
surge, em 77, ela aglutinou toda a esquerda em Belém, no Pará. Então, ela
tinha todo mundo. Depois, com a redemocratização, o que acontece?
Começam a surgir os partidos políticos, o PT, os outros partidos, os
sindicatos e a Sociedade de Direitos Humanos foi diminuindo a quantidade
de pessoas, que ela era que mobilizava tudo, tinha aquele fórum, aquela
disputa – a eleição era disputadíssima, tinha muitas pessoas, tinha voto,
chapa... – e quando eu vou assumindo, aí eu digo, “não, a sociedade tá em
outro patamar”. Então, a gente propunha mudanças no estatuto para deixar
de ser uma sociedade, para ser uma ONG, e aí tinha um debate, “não, a gente
não pode abrir mão disso, porque ela e uma entidade militante”, não, ela é
militante enquanto compromisso político, mas ela tem que ser formada por
quadros técnicos, ela não pode viver mais do voluntarismo das pessoas, ela
tem que ter um quadro técnico e apoiar o movimento social. Se apóia o
movimento social, e não se é o movimento social. Então nesse ponto, passei
nessa transição, fui vice, depois presidente, e havia esse embate, um embate
que eu acho construtivo, no debate, que acabou consolidando a entidade
como uma ONG e no quadro, quase majoritariamente formado por
advogados. Até hoje ela continua com esse viés (Entrevista realizada no dia
23/05/2011).
Após essas experiências profissionais – assessorando juridicamente os movimentos
sociais por meio da atuação na Sociedade Paraense de Direitos Humanos – José Benatti se
dedicou a um objetivo que garantisse visibilidade aos estudos realizados com vistas a melhor
refletir sobre os conflitos agrários no estado do Pará, o que foi obtido por meio da criação da
ONG Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – IPAM. Segundo destaca:
Sai do núcleo (da SPDH), aí eu fiz mestrado, depois, em 91, 90, eu vou
ajudar a criar uma outra entidade, que é o Instituto de Pesquisa Ambiental da
Amazônia, o IPAM, que é uma ONG mais ambientalista, ligada à pesquisa, e
essa ONG tinha um espaço dentro da Universidade e tinha uma sala dentro
do NAEA. Então, ela começa, surge, até mais ou menos a sua estruturação,
eu era pesquisador associado do NAEA e tinha meu projeto de pesquisa, que
foi minha dissertação de mestrado (...), consegui um financiamento da Ford
para aprofundar o debate sobre o pluralismo jurídico, como é que funcionava
e depois eu publico meu livro sobre posse agroecológica, resultado da minha
dissertação e mais quatro anos de pesquisa, que analisei o Parque Nacional
do Jaú, analisei a criação da reserva extrativista, analisei a questão dos
quilombolas e aí eu fui aprofundar mais esses conceitos, o que é esses
conceitos, como é que funciona, os limites, mais em casos concretos
(Entrevista realizada no dia 23/05/2011).
No doutorado realizado no NAEA, Benatti dedica-se a discutir a questão da
propriedade coletiva, da propriedade comum, tendo em vista a realização dos estudos sobre a
posse no âmbito do mestrado. Acerca da sua opção em realizar um doutorado interdisciplinar,
Benatti revela que:
Quando eu comecei a levantar onde vou fazer o doutorado, a crítica era a
seguinte, todos os doutorados eram muito tradicionais, USP, Rio Grande do
Sul, Brasília, Rio de Janeiro. Então, eu não me identificava com o que tava
120
sendo colocado, ou eu tinha que ir para a área de Sociologia, Filosofia e não
tinha a discussão mais na área que eu queria discutir. Então, eu decidir fazer
uma coisa, não, antes de discutir a propriedade comum, vou discutir o que é
propriedade. Na verdade, a minha dissertação de mestrado, doutorado foi
sobre direito de propriedade, por que eu falei, bem, se eu domino os
conceitos... E eu escolhi o NAEA porque era um curso interdisciplinar, por
que eu achava que além das discussões jurídicas, eu precisava também
entender as discussões metajurídicas, ou seja, que influenciavam o debate
jurídico, eu achava que só o jurídico não ia resolver a fazer a crítica... O
direito dialogando com outras ciências, que a questão da ecologia, biologia,
sociologia, economia... Por que o direito teve um movimento que era muito
forte direito e economia, depois ele rompe na década de 70, 80 teoricamente,
metodologicamente e acaba criando um sistema meio isolado... E aí escolhi
o NAEA por causa disso, pela capacidade de dialogar com outros ramos
(Entrevista realizada no dia 23/05/2011).
O convite para assumir o órgão do ITERPA ocorreu no ano de 2007, quando Benatti
atuava como coordenador do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Meio
Ambiente da Universidade Federal do Pará. A sua atuação no ITERPA ocorreu nos anos de
2007 a 2010 e, conforme destaca José Benatti, ao avaliar a sua participação neste órgão
público, destaca as intersecções – ou fusões – existentes entre o conhecimento produzido no
âmbito das ONGs e as políticas públicas gestadas pelo órgão governamental.
É interessante que quando, em 2004, eu tinha feito dois estudos, em 20042005, 2003-2005 eu fiz dois estudos, um sobre, uma consultoria via ONG, o
IPAM, para o Ministério do Meio Ambiente, sobre grilagem de terra. Então
eu discuti grilagem, então naquele momento eu procurei resolver se você
tivesse uma legislação que incorporasse os diferentes segmentos, tinha que
fazer a diferença entre a grilagem, uma coisa o que é ilegal, e o que é
irregular. O irregular você pode regularizar o ilegal não. Então começava a
discutir que tinha que ter critérios para regularizar, pois um dos problemas
da grilagem é a falta de terra regular, por que a terra tá disponível, mas todo
mundo tá, porque se todo mundo tá irregular tem alguma coisa errada,
porque boa parte não tinha título, e tal. E eu tinha feito um estudo também
pro MMA, mas via o Pró-várzea, que era a discussão da regularização
fundiária da várzea. Então, quando eu vou pro governo, eu já tinha duas, dois
estudos que me diziam qual era importância da regularização fundiária.
Então eu fui pra lá pra implementar um programa, olha, nós temos que criar
uma política de regularização fundiária e temos que priorizar a pequena
propriedade. (...) E outra coisa que o Estado não criava que a gente achava
importante era criar assentamento. Criamos um programa de regularização
fundiária, priorizamos a pequena propriedade... Parte do nosso debate, que
em 2007 já tinha esse debate, em 2008 lançamos um caderninho dizendo as
linhas gerais da nossa política de regularização fundiária, lá a gente
priorizava, tinha que priorizar todo mundo, mas priorizando a pequena, ele
tem que optar se ele quer assentamento ou não quer e que tipo de
assentamento ele quer, o fato se ele quiser assentamento individual tem que
respeitar o título individual (Entrevista realizada no dia 23/05/2011).
121
De acordo com informações obtidas junto à Plataforma Lattes do CNPq (mais detalhes
em anexo), José Heder Benatti conta com uma grande produção bibliográfica. Destaquem-se,
entre os artigos completos publicados em periódicos, os seguintes: “Questão fundiária e
sucessão da terra na fronteira Oeste da Amazônia” (2010), “Possibilidade jurídica do
cancelamento administrativo de matrículas de imóveis rurais: repercussões no Pará” (2010),
“Internacionalização da Amazônia e a Questão Ambiental: o direito das populações
tradicionais e indígenas à terra” (2007), “Aspectos jurídicos e fundiários da utilização social,
econômica e ambiental da várzea” (2004), “Políticas públicas e manejo comunitário de
recursos naturais na Amazônia” (2004), “Políticas públicas e manejo comunitário de recursos
naturais da Amazônia” (2003), “A titularidade da propriedade coletiva e o manejo florestal
comunitário” (2002), “Aspects juridiques de l aménagement du territorie et de la préservation
de l environnement au Brésil. Vivre avec la forêt: gestion locale des ressources naturelles en
Amazonie brésilienne et au Costa Rica” (2002), “Derecho, institucionalidad y ordenamento
territorial en Brasil y Costa Rica” (2000), “O papel da propriedade territorial rural na proteção
da floresta: uma análise jurídica da função social e ecológica do imóvel rural (1999),
“Constituição e Cidadania” (1998), “Posse agroecológica: um estudo das concepções jurídicas
dos apossamentos de camponeses agroextrativista na Amazônia” (1998), “Aspectos jurídicos
das unidades de conservação no Brasil” (1997), “Posse coletiva da terra: um estudo jurídico
sobre o apossamento de seringueiros e quilombolas” (1997), “El pluralismo jurídico y las
posesiones agrarias en la Amazonia” (1994), “Os crimes contra etnias e grupos étnicos:
questões sobre o conceito de etnocídio” (1992).
Com relação a livros organizados e publicados por José Heder Benatti, têm-se os
seguintes títulos: “Manual de Direito Agrário Constitucional: lições de Direito
Agroambiental” (2010), “Direito Ambiental e Políticas Públicas na Amazônia” (2007), “A
grilagem de terras públicas na Amazônia brasileira” (2006), “A questão fundiária e o manejo
dos recursos naturais da várzea: análise para elaboração de novos modelos jurídicos” ( 2005),
“Posse agroecológica e manejo florestal” (2003).
Já com relação a capítulos de livros publicados e demais trabalhos técnicos, são
relacionados os títulos: “Proposals, Experiences, and Advances in the Legalization of Land
Tenure in the Várzea” (2011), “Integrating Comanagement and Land Tenure Policies for the
Sustainable Management of the Lower Amazon Floodplain” (2011), “Apropriação privada
dos recursos naturais no Brasil: séculos XVII ao XIX (estudos da formação da propriedade
privada)” (2009), “Áreas Protegidas no Brasil: uma estratégia de conservação dos recursos
naturais” (2008), “Análise jurídica para realização da regularização fundiária. Atlas
122
socioambiental: municípios de Tomé-Açu, Aurora do Pará, Ipixuna do Pará, Paragominas e
Ulianópolis” (2008), “Estado e Sociedade no BR 163: desmatamento, conflitos e processos de
ordenamento territorial” (2008), “Aspectos jurídicos e fundiários da várzea: uma proposta de
regularização e gestão dos recursos naturais” (2005), “A questão fundiária e o manejo dos
recursos naturais da várzea: análise para elaboração de novos modelos jurídicos” (2005),
“Privately-owned forests and deforestation reduction: an overview of policy and legal issues”
(2005); “Terra coletiva ou comum” (2005), “O meio ambiente e os bens ambientais” (2005),
“Indenização da cobertura vegetal no imóvel rural: um debate sobre o papel da propriedade na
contemporaneidade” (2005), “Ordenamento territorial e proteção ambiental: aspectos legais e
constitucionais do zoneamento ecológico econômico” (2004), “A legislação e os sistemas
institucionais de gestão dos recursos hídricos no Brasil e sua relevância para a Amazônia”
(2003), “O direito para o Brasil socioambiental” (2002), “Constituição e cidadania: a
demarcação das terras de quilombolas no Estado do Pará” (2001), “Formas de acesso à terra e
a preservação da floresta amazônica: uma análise jurídica da regularização fundiária das terras
dos quilombolas e seringueiros” (2001), “Presença humana em unidade de conservação: um
impasse científico, jurídico ou político?” (2001), “Zoneamento Ecológico-Econômico:
aspectos fundamentais de sua implementação” (2000), “Carajás: desenvolvimento ou
destruição” (1997); “O pluralismo jurídico e as posses agrárias na Amazônia” (1994), “A
posse agrária alternativa e a reserva extrativista na Amazônia” (1994), “Os crimes contra
etnias e grupos étnicos: questões sobre o conceito de etnocídio” (1993), “Categorias
Fundiárias na Amazônia” (2005), “Direito de Propriedade e proteção ambiental no Brasil:
apropriação e uso dos recursos naturais no imóvel rural” (2003).
Dentre as produções técnicas, destaca-se: “A regularização fundiária como
instrumento de ordenar o espaço e democratizar o acesso à terra” (2007), “A grilagem de
terras públicas e a sua inserção nas dinâmicas do desmatamento na Amazônia brasileira”
(2005), “Aspectos Jurídicos e Fundiários da Utilização Social, Econômica e Ambiental da
Várzea: análise para elaboração de modelos de gestão” (2004), “Elaboração de propostas
jurídicas para regularização fundiária das comunidades extrativistas na Floresta Nacional do
Purus” (2003), “Detalhamento de execução dos estudos estratégicos do sub-estudo A questão
fundiária da várzea: análise para elaboração de novos modelos jurídicos” (2001), “Sugestões
para a estruturação jurídica e estutária do Instituto de Terras do Estado do Acre” (2000),
“Impacto sobre políticas públicas sobre manejo comunitário dos recursos naturais” (2000),
“Diagnóstico dos aspectos jurídicos relacionados ao uso dos recursos naturais no âmbito do
Zoneamento Ecológico-Econômico do Acre” (1999), “Avaliação da situação fundiária das
123
áreas com potencial para criação de unidades de conservação de uso indireto na Amazônia”
(1998), “Elaboração de Cartilha para esclarecer as implicações fundiárias para as
comunidades no caso de permanecerem ou se excluirem da Floresta Nacional do Tapajós”
(1996), “Diagnóstico Fundiário do Parque Nacional do Jaú” (1995), “Preparação de guia de
desenvolvimento de plano de utilização e solicitação de concessão” (1993), “Legislação
fundiária do Pará” (1992).
A partir da leitura das publicações de José Heder Benatti – livros, capítulos de livros,
artigos e demais produções técnicas – percebem-se alguns títulos publicados em inglês bem
como trabalhos que possuem um caráter mais técnico e intervencionista na realidade social.
Esta característica deve-se, dentre outros fatores, às conexões existentes entre o profissional
analisado e as redes mais amplas de movimentos sociais, inclusive de caráter internacional –
em especial os Estados Unidos – das quais Benatti faz parte.
Conforme revelado em entrevista e por meio da análise de seu currículo, José Benatti
foi orientado pelo norte-americano David Gibss McGrath, um dos fundadores da ONG
ambientalista IPAM, junto com David Nepstar73.
Acerca desta ONG, afirma Buclet (2011, p. 142) que o IPAM pode ser classificado
como uma ONG socioambientalista de pesquisa que, além de defender valores relacionados à
ecologia e ao humanismo, desenvolve atividades centradas em torno da avaliação científica e
da consultoria. Ainda segundo Buclet (2009) e conforme já discutido em capítulos anteriores,
o conhecimento técnico dessas ONGs, centrado no circuito universitário dos Estados Unidos e
instituições correlatas, é voltado para um mercado internacional e, ao mesmo tempo, funciona
como um direito de entrada no mercado da perícia não governamental no espaço nacional.
Dessa forma, percebe-se na trajetória das pessoas chave dessas organizações lógicas de
importação e exportação de perícia ambiental.
Nesse sentido, importante recuperar as reflexões de Fabiano Engelmann (2007, p.01)
acerca dos fenômenos de “internacionalização do direito vinculados à importação-exportação
73
Conforme Bouclet (2009, p. 96), “Nepstar foi o primeiro presidente do IPAM, passando depois para a função
de coordenador. Um doutorando orientado por ele, Paulo Moutinho, se tornou o primeiro diretor e as equipes dos
dois projetos se juntaram para formar o corpo técnico da ONG: conforme Daniel Nepstar, ‘o IPAM nasceu com
35 pessoas, era um mostro já’. Esse ‘monstro’ contava também com a participação de José Benatti, advogado de
movimentos sociais no Pará, que tinha um vínculo muito forte com os movimentos sociais, em particular com o
Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), e que fortaleceu a diferenciação do IPAM em relação ao IMAZON
no sentido de atuação social (...). Com mais de 110 funcionários, o IPAM encontra-se organizado em cinco
programas: Biodiversidade, Cenários para a Amazônia, Floresta e Comunidades, Manejo da Várzea, Mudanças
Climáticas e Planejamento Regional (...). Quatro desses programas são coordenados pelos fundadores, McGrath
e Nepstar, Moutinho e Benatti e, como o IMAZON, vários profissionais se formaram ou tiveram experiência
profissional nos Estados Unidos”.
124
de causas políticas traduzidas para o espaço judiciário por juristas vinculados a um padrão de
militantismo político e jurídico”.
Para o referido, a importação-exportação das causas coletivas se apóia em redes
formais (associadas ao movimento internacional dos "direitos humanos") e em redes
informais (vinculadas ao militantismo e a defesa judicial de determinados grupos, tal como o
pertencimento a determinado partido político, ONG, movimento social ou órgão de defesa
corporativa). Nesse sentido, conforme expõe o autor:
No caso brasileiro, os advogados relacionados à militância política através
do direito constituem uma modalidade de agentes que conseguiram ascender
no espaço jurídico combinando a expertise jurídica com um conjunto de
relações estabelecidas através do militantismo (ENGELMMAN, 2007, p.
06).
Cumpre ainda destacar que a vinculação desses agentes jurídicos com os movimentos
sociais e ativistas internacionais de instituições voltadas para a defesa dos direitos humanos e
do meio ambiente, que se dá por meio de consultorias, publicações, participação em eventos
etc., possibilita que os mesmos se engajassem em causas políticas, “traduzindo” para o campo
jurídico os conflitos vivenciados pelos grupos nas esferas política e social.
Percebe-se, portanto, há uma assimilação de causas coletivas internacionais, que são
difundidas através de redes de ativistas internacionais e, inclusive, pelo ensino jurídico, o que
tem como implicação a efetivação de uma forma específica de lidar com as idéias e princípios
jurídicos, conforme observamos no que se refere à compreensão desses agentes com as causas
relacionadas aos “povos e comunidades tradicionais”.
Estes aspectos aplicam-se aos demais profissionais analisados, tendo em vista que com
base nos depoimentos colhidos nas entrevistas e no material pesquisado no que concerne às
carreiras destes diferentes profissionais situados no espaço judicial, podemos perceber que os
mesmos revelam um comprometimento de caráter predominantemente político com o serviço
das causas socioambientais.
Assim, é perceptível uma conjunção entre engajamento militante e exercício
profissional na trajetória dos agentes estudados, que concebem tais espaços como simultâneos
e não dissociados.
De igual forma, pode-se afirmar que os agentes analisados se inserem no chamado
“ativismo judicial”, o que produz transformações tanto nas formas de fazer e pensar a política
quanto nas formas de fazer e pensar o direito.
125
Nesse sentido, tomando de empréstimos as considerações elaboradas por Vecchioli74
(2006, p.01) no que se refere à análise de advogados especializados na causa dos direitos
humanos, podemos afirmar que “trata-se de profissionais que se constituem como tal por
terem como referência dois espaços simultâneos de atuação: o engajamento militante e o
exercício profissional do direito”.
No mesmo sentido, as afirmações de Baeta Neves e Petrarca (2009) corroboram com o
entendimento de que a ampliação das esferas de ação jurídica se relaciona com a ampliação
do militantismo profissional, ou seja, a conciliação entre a prática profissional e o
engajamento militante, funcionando como tradutores dos problemas sociais para a esfera do
direito.
Assim, conforme destacam as autoras, “a utilização da justiça se apresenta como
substituto da arena política tradicional e um espaço de luta política, constituindo-se como
importante argumento para impor e construir a causa” e, da mesma forma, além da imposição
e construção desta causa há que se destacar que a utilização dos recursos jurídicos e do saberfazer profissional pelos agentes situados neste espaço funciona como importante instrumento
de demarcação de suas tomadas de posição no campo de poder (BAETA NEVES,
PETRARCA, 2009, p. 17).
Ocorre, portanto uma relação entre o espaço judicial e as mobilizações coletivas,
existindo estratégias desenvolvidas, tanto pelos movimentos sociais na apropriação deste
espaço judicial, quanto na preocupação, por parte dos profissionais situados neste espaço, de
aproximar – e traduzir – as causas sociais para as causas jurídicas, ou como menciona Baeta
Neves e Pertarca (2009, p. 10), “a tradução das causas militantes para causas profissionais”.
Assim, percebe-se, na análise das informações prestadas pelos agentes, que, embora
pertencentes a diferentes instituições (no caso, o Ministério Público, a Academia e os
movimentos sociais e instituições públicas e privadas vinculados a temática socioambiental)
há um estreito relacionamento entre esses agentes. Constatou-se inclusive nas falas dos
entrevistados – tanto nos momentos da gravação das entrevistas quanto nas conversas não
gravadas – a referência que tais agentes faziam uns aos outros75 no que se refere a análise
desta temática.
74
As reflexões desenvolvidas por Virgínia Vecchioli (2006), embora se refiram a um contexto histórico, político
e espacial diferenciado – pois se reporta ao engajamento de advogados especialistas na Argentina envolvidos na
institucionalização da causa dos direitos humanos naquele país – nos ajuda a pensar na construção da causa
socioambiental e nas intersecções existentes entre o engajamento militante e o exercício profissional.
75
A título de exemplo, mencione-se que, sobretudo quando questionados acerca do seu entendimento sobre a
expressão “povos e comunidades tradicionais” vários dos entrevistados fizeram menção aos estudos
desenvolvidos pelo antropólogo Alfredo Wagner B. de Almeida, com quem revelam possuir laços de amizade,
126
Nesse sentido, conforme ressalta Vecchioli, (2006, p.12) acerca da importância dessas
redes de relações entre os agentes, “as ações desenvolvidas pelos militantes da causa ganha
sentido não só ao serem consideradas por sua relação com o Estado, mas pela relação com
outros profissionais da política e do direito que se colocam em uma posição de maior
proximidade com essa militância”.
Da mesma forma, podemos afirmar que tais agentes possuem uma grande circulação
entre diferentes instituições – inclusive, agências internacionais de desenvolvimento e
pesquisa – o que leva, em alguns aspectos, a uma uniformização de seus discursos.
Cumpre ainda destacar a similaridade entre os agentes analisados no que se refere ao
posicionamento de que a formação acadêmica e profissional deve ser instrumentalizada e
colocada a serviço da politização das causas que atuam. A ênfase no relato das experiências
de ativismo vivenciadas, antes mesmo da entrada na Universidade, demonstra a afinidade com
questões relacionadas com a causa socioambiental, bem como a ênfase dada à necessidade de
aliar “realidade” e “prática”, ou seja, a importância de articular a formação escolar e
universitária ao engajamento político e em movimentos sociais e religiosos.
Isso se torna ainda mais evidenciado quanto se analisa os relatos das motivações de
alguns agentes – sobretudo nos relatos dos membros do Ministério Público Federal – acerca
das suas trajetórias e motivações para atuar nas causas socioambientais. Nesse sentido, como
destaca Oliveira (2008, p. 110):
O valor e a utilidade da formação escolar e universitária para o exercício
profissional sempre implica a capacidade ou a competência de “articular” os
recursos adquiridos durante o processo de escolarização à “realidade” e à
“prática”. A aquisição de uma formação universitária, de competências
técnicas e de suas vinculações com o exercício profissional são apresentados
como indissociáveis da capacidade de integrar tais tipos de conhecimento e
“ideologias e práticas políticas”, de modo que sem esse “compromisso” ou
“articulação” com a “realidade”, a escola e a formação que ela oferece não
tem nenhum valor.
Por fim, cumpre ainda destacar a existência de um questionamento, por parte desses
juristas – tanto situados no Ministério Público quanto na Academia – sobre a instituição do
“monopólio do direito de dizer o direito”, que, por sua vez, contribui para que haja uma cisão
social entre profanos e os profissionais. (BOURDIEU, 1998, p. 213). Acerca desse
monopólio, afirma Pierre Bourdieu (1998):
O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de
dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na
expressos em agradecimentos constantes em suas obras e situações vivenciadas – e relatadas de forma informal –
no que se refere ao desenvolvimento de trabalhos realizados de forma conjunta.
127
qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social
e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de
interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de
textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social (1998, p. 212).
Ainda segundo Bourdieu, a prática teórica de interpretação dos textos jurídicos está
orientada para fins práticos, de modo que é necessário manter a restrição de sua autonomia,
com vistas a assegurar uma interpretação juridicamente regulada. Conforme Bourdieu: “as
divergências entre os intérpretes autorizados são necessariamente limitadas e a coexistência
de uma pluralidade de normas jurídicas concorrentes está excluída por definição da ordem
jurídica” (1998, p. 213).
Por meio dos casos representativos dos juristas analisados evidencia-se que deve haver
uma crítica constante direcionada as relações de poder fundadas no “monopólio” dos juristas
de dizer o direito, uma vez que, conforme afirmam, deve haver uma preocupação dos
operadores do direito em “compreender ao invés de interpretar” (DUPRAT, 2007, p. 23) e
uma “ruptura com esquemas jurídicos pré-concebidos” (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 29).
Nesse sentido, conforme destaca Engelmann (2006, p. 33), o conjunto de tomadas de
posição acerca de definições do direito construídas a partir da apropriação da “sociologia” e
da “filosofia do direito”, bem como o investimento em títulos escolares (mestrado e
doutorado), possibilitam aos juristas relacionados à produção “crítica do direito” que façam
usos mais “políticos” e “sociais” do direito.
3.2 Interpretações e posicionamentos dos profissionais do direito sobre a expressão
“povos e comunidades tradicionais”
Conforme analisado, os profissionais do direito aqui investigados possuem
diferenciadas formas atuação junto aos “povos e comunidades tradicionais”. Por um lado,
alguns apresentam uma atuação mais relacionada à prática jurídica com esses grupos, ao
defenderem as demandas nos tribunais, por outro, abordam as temáticas envolvendo os
direitos desses grupos a partir de uma perspectiva mais acadêmica, por meio de publicações
de livros, artigos e demais trabalhos técnicos.
De qualquer forma, percebe-se um processo de construção e consolidação da categoria
analisada, quer nos espaços propriamente jurídicos, quer nas discussões e debates acadêmicos,
128
levando à formação de uma comunidade de intérpretes jurídicos autorizados para falar em
nome dessas questões.
Contudo, a partir dos relatos e posicionamentos a respeito da expressão “povos e
comunidades tradicionais” por parte dos diferentes profissionais, tanto os situados no
Ministério Público quanto os situados nas universidades, percebe-se a existência de discursos
heterogêneos e diferenciados.
Tais discursos, como já tivemos a oportunidade de ressaltar, encontram-se
disponibilizados em diferentes meios, contudo, para fins desta análise, serão considerados
apenas os depoimentos colhidos em entrevistas76. Ressalte-se, ainda, que esses discursos,
muitas vezes, acabam sendo incorporados nos processos legislativos acerca dos “povos e
comunidades tradicionais”, de modo que os juristas aqui investigados podem ser tidos como
produtores de categorias e realidades jurídicas.
Nesse sentido, mencione-se a participação de José Heder Benatti no processo de
elaboração da Lei 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação,
haja vista que, durante o processo de discussão e aprovação da lei, assessorou juridicamente o
Conselho Nacional dos Seringueiros.
Quando questionado sobre a sua atuação nesses processos legislativos de elaboração
de instrumentos jurídicos, afirma Benatti que sua participação se deu em regulamentos tanto
em nível de decreto como na própria legislação sobre a possibilidade de regularização
coletiva. No âmbito das discussões sobre a legislação em nível federal, afirma:
Participei diretamente, discutia, propunha, no próprio SNUC eu dizia –
porque a gente assessorava o Conselho Nacional dos Seringueiros e alertava:
“olha cuidado se tiver esse comando, pode prejudicar vocês”. Porque,
lembro que na reserva extrativista, na primeira propostas, dizia que não
podia ter plano de manejo, não podia ser feito exploração florestal. Isso é um
erro. Se vai ter manejo florestal ou não é uma decisão de vocês, e não da Lei.
É o plano de manejo que vai ter que definir, se vai ter ou não. Se a priori
vocês optarem pela exclusão, vocês tão fora, e é o principal recurso (...) que
vocês têm de acesso financeiro, é madeira. Então, já excluir... O que vai
acontecer na prática é que vai ser exploração ilegal, achar que não vai
explorar é besteira. Depois você tem o debate na legislação, que a gente
participou também, da política nacional de concessão florestal, que tinha a
questão lá, a questão muito forte de assegurar direitos das populações
tradicionais, as áreas que seriam cedidas, só seriam cedidas depois que
fossem reconhecidos os direitos das populações tradicionais ou então as
áreas que eles reivindicassem tinha que ser excluída essa concessão,
participamos lá desse debate e o decreto que regulamentou a questão das
76
Quer estas tenham sido diretamente realizada ou obtida em outras fontes, como a Internet. Tal ressalva se faz
importante, vez que, a despeito da intensa e importante produção bibliográfica de alguns dos agentes
investigados, não pudemos – por questões de limitações de tempo e mesmo de acesso a estas publicações –
analisar as obras dos mesmos no que concerne a temática em estudo, o que deverá ser feito na continuidade da
pesquisa aqui apresentada.
129
populações tradicionais, que é que criou a política nacional das populações
tracionais, mas foi uma participação mais indireta (Entrevista realizada no
dia 23/05/2011).
Da mesma forma, destaca-se a atuação de Girolamo Treccani que ajudou a discutir a
legislação dos estados do Pará e do Piauí e a legislação de vários estados que se refere à
reflexão sobre as comunidades quilombolas e ainda atuou em reuniões do processo legislativo
que culminaram com a elaboração do Decreto Federal 4.887/2003, que trata da
regulamentação das terras quilombolas.
Conforme destacou em entrevista, Girolamo Treccani destacou os avanços obtidos
com a aprovação deste decreto em relação ao anterior que regulamentava a matéria, o Decreto
Federal 3.912/200177, bastante criticado, dentre outros fatores, pelo critério de tempo adotado
para reconhecer o direito dos quilombolas.
Estas críticas são também compartilhadas pela Subprocuradora-geral, Deborah
Duprat, para quem o Decreto 3.912/2001 seria ostensivamente discriminatório e sua
orientação estritamente escravagista, de modo que o instrumento posterior, o Decreto
4.887/2003, traduziria de forma mais adequada o que diz a Constituição Federal no que
pertine a esses grupos. Conforme afirma Duprat:
Eu tenho um artigo, em que procurava mostrar a inconstitucionalidade do
antigo Decreto 3.912, onde dizia que toda escritura tem que ser lida no
contexto atual em que se apresenta. Aliás, isso não é novidade alguma, faz
parte do cotidiano dos operadores do direito. No caso, o dado é
particularmente grave, pois o conceito de quilombo foi produzido por
aqueles que escravizavam. Significar quilombos tal como conceituado à
época da escravidão seria importar aquele regime para o seio de uma
Constituição cujo princípio vetor é o da dignidade da pessoa humana. Ou
seja, há uma incompatibilidade fundamental e lógica: de um lado, uma
Constituição erigida sob princípios de dignidade do indivíduo, de pluralismo
sócio-cultural, de justiça social; de outro, uma norma constitucional, que
segundo alguns, lexicamente, remetia a sua compreensão do período da
escravidão. De modo que a conceituação de quilombos, a partir de regra
produzida no regime da escravidão, é, à toda evidência, inconstitucional78.
77
O Decreto 3.912/2001 trazia a seguinte redação em seu art. 1º: “Compete a Fundação Cultural Palmares – FCP
iniciar, dar seguimento e concluir o processo administrativo de identificação dos remanescentes das
comunidades de quilombo, bem como de reconhecimento, delimitação, demarcação, titulação e registro
imobiliário das terras por eles ocupadas. Parágrafo único: Para efeito do disposto no caput, somente pode ser
reconhecida a propriedade sobre as terras que: I – eram ocupadas por quilombos em 1888; e II – estavam
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 05 de outubro de 1988”. Conforme afirma
Duprat (2007, p. 32), o prazo definido no decreto acarretava a necessidade de comprovar a ocupação por cem
anos de qualquer terreno reivindicado, sendo que o art. 68 do ADCT não apresenta qualquer critério temporal
quanto à antiguidade da ocupação, nem determina que haja coincidência entre a ocupação originária e a atual,
motivo pelo qual foi alegada a inconstitucionalidade do referido instrumento.
78
SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito
Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007.
130
Isto posto, percebe-se que a atuação desses agentes não se circunscreve apenas a uma
discussão mais acadêmica ou jurídica: ela tem efeito na elaboração e no aperfeiçoamento de
instrumentos legislativos, de modo que podemos situar esses juristas, conforme já
mencionamos, como produtores de sentidos no que concerne a essa discussão.
No entanto, cumpre ressaltar novamente que embora em alguns momentos os agentes
pareçam convergir nas suas interpretações, em outros apresentam posicionamentos
diferenciados, quer tais posicionamentos decorram da percepção e da atuação mais prática
com esses grupos ou ainda, a partir de uma maior apropriação das discussões realizadas no
âmbito das ciências sociais
Acerca desses aspectos acima mencionados, podemos destacar alguns trechos das
entrevistas realizadas, como forma de perceber quais as divergências e as convergências de
entendimentos entre profissionais de diferentes instituições ou que, ainda pertencentes à
mesma instituição, manifestem posicionamentos bastante diversificados sobre essas questões.
Tal reflexão, portanto, se faz necessária para melhor compreender as acepções dadas à
expressão “povos e comunidades tradicionais” e as especificidades destacadas pelos
entrevistados no que se refere ao entendimento sobre essa categoria.
Nesse sentido, expondo sua percepção sobre esta expressão, Girolamo Treccani
afirma:
No meu entender, pela minha experiência mais concreta, pelos estudos
feitos, eu entendo que existe um núcleo fundamental comum, que seria uso,
não diria coletivo no sentido que a gente dá, de maneira, assim, no sentido
comum da terra. Na realidade, comunidades remanescentes de quilombo no
estado do Pará e outros grupos sociais, cada um deles tem seu lote, portanto
não é nenhum coletivo no sentido que existe uma exploração comunitária.
Agora, apesar disso, a propriedade é coletiva, porque além do espaço
familiar tem o espaço efetivamente coletivo onde a exploração de fato é feita
a partir de negociações, e negociações que muitas vezes nem sequer estão
escritas, nem sequer estão evidentemente consagradas em instrumentos
como contratos ou como estatutos ou como regimentos internos. (...).
Portanto se é uma propriedade coletiva no sentido estrito, é uma propriedade
coletiva no sentido amplo, exatamente por essas discussões de necessidade
de se estabelecer normas de utilização de alguns recursos comuns e daquilo
que é pessoal, pessoal familiar, como é que isso é trabalhado e é respeitado.
Portanto, muito difícil para mim dar conceitos. Eu li o livro do Diegues, li o
livro do Alfredo79, li o livro dos meus amigos antropólogos, mas existe muita
complicação no meio do caminho (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).
79
Os autores citados referem-se aos antropólogos Antonio Carlos Diegues e Alfredo Wagner Berno de Almeida.
Este último é recorrentemente citado em outros trechos da entrevista realizada com Girolamo Treccani como
“Alfredo”.
131
Ainda fazendo menção aos profissionais e às discussões realizadas no âmbito das
ciências sociais, José Heder Benatti, quando questionado sobre seu entendimento acerca da
categoria “povos e comunidades tradicionais”, afirma que a mesma não possui uma definição
propriamente jurídica, mas sim antropológica, ou, em suas palavras, “o conceito nosso é
muito alimentado do diálogo com a antropologia” (Entrevista realizada no dia 23/05/2011).
Para Benatti, tal categoria seria aplicável aos grupos que se apropriam dos recursos
naturais a partir do extrativismo. Segundo menciona, “não é a única fonte, mas (...) o
extrativismo é importante, pois exige muito tempo de uso desses recursos naturais e tem
alguma identidade do espaço que [os povos e comunidades tradicionais] ocupam” (Entrevista
realizada no dia 23/05/2011).
Acerca dos grupos aos quais essa categoria pode abranger, Girolamo Treccani, a partir
da sua experiência profissional – tanto no que se refere ao trabalho de campo no contato
direto com esses grupos, quanto no que se refere a uma reflexão mais teórica – afirma:
Na realidade, quais são os grupos fundamentais, são ribeirinhos – e na
categoria ribeirinho eu incluiria aquele camponês que ao mesmo tempo vive
da roça dele, vive da pesca, vive da exploração, sobretudo do açaí na nossa
região, e vive da exploração da castanha, aqui e acolá, enfim, poderia ser
definido como agroextrativista no sentido mais técnico da coisa. Outra
categoria fundamental, aquilo que poderia ser definido como lavrador ou
campesinato clássico, que é aquele, sobretudo na região mais perto de
Belém, que já está naquela região a algumas gerações, não se reconhece
como população tradicional no sentido clássico do termo, tem, portanto, uma
pretensão de ter uma propriedade familiar específica, com um documento
específico de sua terra, mas que tá aberto, tá em diálogo e é até o aliado,
normalmente, inclusive contra o latifúndio, contra o poder público, contra o
juiz que vai dar a liminar, contra a polícia que vai dar o despejo... enfim,
aliado um do outro. Claro que não se reconhece como população tradicional,
mas não deixa de não ter características que fariam dele como muito
próximo as populações tradicionais (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).
Outra discussão levantada por Treccani, refere-se à incapacidade de o poder público
perceber a diversidade de grupos implicados nessa categoria. Conforme destacado, uma das
questões aprofundadas em seu doutorado foi discutir a dificuldade da legislação agrária,
federal e estadual, dialogar com a multiplicidade de situações, não só fundiárias, mas também
relativas a questões étnico-culturais. Para ele, essas diferentes realidades nunca foram
efetivamente incorporadas no arcabouço jurídico, exceto no caso das populações indígenas,
que já possuem uma legislação mais consolidada.
A incapacidade desses instrumentos criados pelo poder públicos em perceber essas
nuanças produz algumas situações que, do ponto de vista do entrevistado, são discrepantes,
132
tendo em vista que categorias censitárias oficiais não dão conta de traduzir as realidades
desses grupos. Segundo afirma:
Isso fez com que, por exemplo, todas as comunidades remanescentes de
quilombo do estado do Pará, que tenham área superior a 300, 400 hectares,
praticamente 90% delas, são enquadradas pelo INCRA como grandes e
improdutivas, exatamente porque não se usam categorias específicas de
entendimento daquela realidade. É aquilo que o Alfredo trabalha em vários
livros que ele escreveu e, sobretudo, nas introduções ao livro sobre Jamary
dos Pretos, sobre Frechal, ele faz muito a diferença entre imóvel rural, como
categoria censitária do IBGE, e outras dinâmicas, as terra de negro, terra de
santo etc., enfim... Isso faz com que se tenha, evidentemente, como tava
dizendo, uma dificuldade inclusive teórica de tentar identificar melhor o que
significam essas realidades (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).
No mesmo sentido, na tentativa de destacar essa incapacidade do Estado, em suas
diferentes esferas, de perceber as diferenças implicadas quando se trata desses grupos, bem
como a reprodução da visão errônea que os concebe apenas a partir de carência e da falta,
Deborah Duprat afirma:
O Estado ainda não está preparado para lidar com as diferenças. Isso é um
dado inequívoco. Suas políticas públicas, em geral, são orientadas pelo
modelo anterior, em que havia um padrão de sujeito de direito,
aparentemente abstrato, sem qualidades, intercambiável. É preciso, portanto,
que o Estado se capacite, que produza para si conhecimento, de modo a que
a sua atuação leve em conta, de fato e de modo eficaz, a diferença. Do
contrário, o Estado seguirá sendo um agente colonizador. É também
necessário que se desfaça da noção de que todos os pleitos são de natureza
econômica, que há um quadro de pobreza que alcança a todos esses grupos e
seus membros indistintamente. Essa é uma falsa visão. Por isso, antes de
mais nada, conhecimento, para poder agir com eficácia80.
Ainda com relação à definição da categoria, para Girolamo Treccani, mais importante
do que definir esses grupos, é perceber como eles próprios entendem sua inclusão entre os
“povos e comunidades tradicionais”. Importante também, conforme destaca é perceber a
multiplicidade de grupos implicados nessa discussão e o fato de que, apesar das diferenças
que guardam entre si, os mesmos possuem algo parecido e reivindicam questões específicas.
Afirma Treccani:
No Encontro dos Povos da Floresta (...) a grande discussão que percebi – não
só nesse encontro mais específico, mas também no encontro nacional, onde
se discutia a política de plano nacional – era a multiplicidade de realidades.
Por exemplo, nesse último encontro de dois anos atrás em Olinda, quando
nas teses aparecia “populações tradicionais” a plenária levantava e dizia,
“não, tem que ser populações tradicionais e dizer quem é quem”. E aí vinha
uma lista de 05, 10, 20 nomes diferentes. Acho que hoje este é um dos
80
SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito
Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007.
133
desafios que o trabalho do Alfredo Wagner e sua equipe mostra claramente,
no trabalho de cartografia social, isto é, a grande quantidade de grupos
diferentes que, ao mesmo tempo, reconhecem algo parecido entre si –
portanto o decreto 6.040/07 seria o grande guarda chuva para todo mundo –
mas ao mesmo tempo, reivindicam questões bem específicas. Portanto, por
exemplo, as quebradeiras de coco babaçu, do Maranhão, Tocantins e sul do
Pará, não tem nada que ver com o castanheiro da região dos castanhais de
Marabá – é claro que ambas estão no mesmo quadro, e até, no caso
específico, no CNS – que não tem muita coisa que ver com o explorador da
castanha do Pará do Acre, no sentido de que a organização é diferente,
apesar de ser o mesmo produto (...) mas a realidade socioeconômica é
diferente, tem nuances diferentes... (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).
Outro aspecto levantado pelos entrevistados no que se refere à discussão sobre essa
categoria, refere-se à invisibilidade desses grupos sociais, tendo em vista que durante muito
tempo questões relacionadas às identidades diferenciadas e territorialidades específicas não
foram objeto de debate e discussão.
Nesse sentido, destacando esse processo, ainda incipiente, de recente visibilidade dos
“povos e comunidades tradicionais”, afirma o Procurador da República do estado do Pará
Felício Pontes Júnior:
Elas sempre existiram, mas, quando eu comecei a atuar na prática eu percebi
que havia mesmo era invisibilidade, que elas eram invisíveis aos olhos dos
juízes, e que tinham uma carência muito grande de produção literária sobre
eles. Nós não tínhamos isso ainda incorporado, até a própria denominação
deles era uma coisa que se discutia. As pessoas por muito tempo, eu me
lembro que de 1988 até mais ou menos 1999, 2000, (...) a própria
denominação quilombola era uma coisa que tava ainda em construção, tinha
acabado de vir da Constituição e ainda não tinha, isso tudo era, eles eram
invisíveis, completamente invisíveis. Então, eu acho que uma coisa que
mudou em relação a isso, que vem mudando, embora a gente ainda esteja
muito aquém, é que nós precisamos de uma produção acadêmica que possa
falar sobre essas pessoas, dar visibilidade a esses grupos sociais, uma
primeira coisa, e que possa também aprofundar a questão dos direitos delas,
trabalhar as questões dos direitos (Entrevista realizada em 27/05/2011).
Sobre essa discussão de direitos diferenciados e as implicações sobre os “povos e
comunidades tradicionais” no âmbito do Judiciário, o Procurador da República no estado do
Maranhão, Alexandre Silva Soares, faz importante reflexões, enfatizando a falta de marcos
jurídicos muito claros no que concerne aos direitos desses grupos. Segundo afirma:
Na verdade é uma categoria ampla, é uma categoria em construção, que está
sendo delimitada com relação a esses grupos. Se você observar a situação, há
trinta anos, quem era povo tradicional? Era só índio, na fala dos juristas.
Hoje em dia, o leque foi ampliado. Foi ampliado, inicialmente com a
inclusão da categoria das comunidades de remanescente de quilombo e hoje
em dia você tem uma série de grupos, você tem as quebradeiras de coco,
você tem a questão das populações ribeirinhas, uma série de múltiplas partes,
134
digamos assim. Tem todo um conjunto aí de integrantes do campesinato que
pode ser considerados também como populações tradicionais a serem objeto
de especial proteção. O grande problema é que ainda que a gente tenha essa
definição do que sejam populações tradicionais, você não tem muita clareza
com relação aos direitos dessas populações tradicionais. Por quê? Pela falta
de marcos muito claros com relação a elas. Com relação a indígenas e
quilombolas é que você tem alguns marcos. Agora com relação a outros
grupos, você não tem direitos diferenciados para essas pessoas. Aí é que
você tem que fazer a leitura diferenciada de direitos que estão presentes nos
textos normativos, mas isso é uma tarefa ainda a ser feita (Entrevista
realizada em 24/11/2011).
Com relação aos instrumentos jurídicos e aos marcos legais sobre essa questão,
cumpre destacar a existência de diversos dispositivos internacionais ratificados pelo Brasil
que reafirmam o reconhecimento desses povos e grupos sociais. Dentre estes, menciona-se a
Convenção 169 da OIT que trata dos “povos indígenas e tribais” e foi adotada pela
Organização Internacional do Trabalho em 1989, conforme discutido no item 1.3.1 deste
trabalho.
Tal instrumento, composto de 44 artigos, distribuídos em dez “partes”, possui um
caráter programático, ou seja, seu conteúdo funciona como princípios jurídicos orientadores
de demais instrumentos e ações a serem adotados nos âmbitos dos Estados nacionais. Assim,
as Declarações e Convenções Internacionais carecem de efetividade propriamente jurídica,
possuindo um caráter sancionatório de cunho mais político e comercial (por meio dos
embargos econômicos), conforme discutimos no primeiro capítulo deste trabalho.
Disto decorre a dificuldade em operacionalizar a categoria “povos indígenas e
tribais”, dado caráter universal e abstrato da mesma e, além do mais, ainda existem algumas
polêmicas que a utilização dessas categorias pode suscitar, conforme observado por alguns
dos entrevistados. Nesse sentido, afirma o Procurador Alexandre Silva Soares:
Que você tenta fazer a partir do texto da Constituição e de algumas
convenções internacionais, como é o caso da Convenção 169 da OIT, mas
mesmo assim suscita muita polêmica na aplicação. Eu lembro assim que há
pouco tempo atrás a gente lançou uma recomendação (...) sobre questão da
Resex do Tauá-Mirim e um dos fundamentos que a gente tava suscitando
para o não deslocamento de populações tradicionais da área da Resex do
Tauá, era da Convenção 169 da OIT. E aí, assim, uma das discussões que a
gente teve na Procuradoria e que a gente suprimiu do texto da recomendação
foi exatamente a utilização da Convenção 169. Porque iam ficar naquela
discussão: mas o pessoal de Tauá Mirim, eles podem ser enquadrados nesse
contexto povos tribais? Afinal de contas, caberia ou não caberia nesse
conceito ou ele seria, digamos assim, um elemento de embate negativo
socialmente? Porque isso é uma questão (...), porque a gente tem que ter a
preocupação de que essa discussão não caia, digamos assim, não seja alvo de
crítica maior do que já é. Então, você também tem que pensar nas
135
repercussões da adoção de determinados instrumentos com as conseqüências
dele (Entrevista realizada em 24/11/2011).
Além da manifesta preocupação com a possível estigmatização que a categoria “povos
indígenas e tribais” poderia lançar sobre os grupos que a Convenção 169 da OIT pretende
abranger, o Procurador Alexandre Silva Soares também destaca o necessário, porém difícil,
processo de “adequação” à realidade nacional de uma categoria pensada e elaborada em
contexto externo. Nesse sentido, afirma:
O grande problema na verdade é esse, que esses conceitos são pensados em
uma realidade que não é a nossa, e quando a gente faz a leitura disso causa
uma certa estranheza aos olhos dos demais brasileiros (...). Pensar que a
nossa sociedade não é uma coisa única, digamos assim, uniforme, onde no
máximo você tem aquela figura exótica do índio. Porque é isso: o índio é
índio quando ele é visto com exotismo, o índio que não tem essa
característica é tido como um desviante (...) “ah, mais esse cara não é mais
índio, ele usa computador”. Então assim, essa leitura (...) de instrumentos
internacionais no contexto interno é uma leitura que tem que ser feita com
cautela, certo? Nesse sentido, é preciso ter atenção para as particularidades
do contexto nacional, percebendo que a sociedade brasileira é uma sociedade
formada por vários grupos, é uma sociedade que é formada por diversos
segmentos e esses diversos segmentos têm formas de pensar a realidade
diferente das nossas... Ainda que não totalmente, às vezes as lógicas
coincidem, às vezes não, às vezes essa diferença não é com relação a
aspirações de vida e outras é, quanto a conforto, quanto a bens de consumo,
quanto a utilização de bens ambientais... Então, essas diferenças de visões,
de sociedade, de mundo, de fazeres, de modos de criar e viver às vezes ela é
em todo distinta, como no caso dos índios, mas as vezes não é de todo
distinta. E a questão é até que ponto você pode considerar isso como um
grupo que tem essa marca da tradicionalidade e, sobretudo, a ser alcançada
por um instrumento internacional de proteção como a Convenção 169
(Entrevista realizada em 24/11/2011).
Precisamente no que se refere à adoção no contexto nacional de uma categoria
internacionalmente elaborada, os demais juristas entrevistados manifestam a mesma
preocupação do Procurador Alexandre Silva Soares, ou seja, de que essa discussão não seja
feita de forma descontextualizada, tendo em vista que a desconsideração das diferenças leva à
um agravamento dos problemas.
Por outro lado, os entrevistados também afirmam que, a despeito das limitações desses
instrumentos normativo devido o contexto exógeno em que fora elaborado, existem ganhos no
que se refere à utilização da Convenção 169 da OIT. Nesse sentido, o Procurador Felício
Pontes Júnior faz a seguinte reflexão:
Eu acho que num primeiro momento, eu vou lhe dar uma resposta de quem
está fazendo uso disso na prática, de quem tem que usar essa legislação na
prática de todo o dia. Num primeiro momento ela nos é extremamente
válida. Por quê? Porque como nós não temos nenhuma outra legislação,
136
como nós não temos nada específico, pelo menos para essas categorias de
povos tribais, elas nos servem nesse momento. Mas o que eu acho, que a
evolução tem que fazer é dizer o seguinte: que esses estatutos são estatutos
que falam dessas categorias todas em termos gerais, como se fosse a espinha
dorsal, e dessa espinha saem as ramificações que estes estatutos não
contemplam. Então, eu acho válida a existência delas, porque, a gente tem
que fazer uso delas e ainda bem que elas existem, por que senão nem isso
nós teríamos como regras jurídicas para defender os direitos dessas
populações, então é muito válido que isso exista, mas não pode ficar só
nisso. O perigo que se tem não é a existência delas, mas é que ela acabe
sendo as especificidades de todas as outras categorias, o que não pode ser.
Eu vejo os direitos contemplados na Convenção 169, por exemplo, como
direitos que pudessem ser ditos assim, estavam no capítulo das
considerações gerais de um código e de que os outros capítulos fossem as
considerações específicas de cada uma dessas categorias sociais (Entrevista
realizada em 27/05/2011).
Dessa forma, com base nos depoimentos, a Convenção 169 da OIT pode ser analisada
a partir do seguinte prisma: ela fornece alguns instrumentais (ainda que genéricos),
necessários à proteção coletiva de determinados grupos, que, por sua vez, poderão se
identificar com a categoria “povos indígenas e tribais” para fins de reconhecimento de direitos
sociais, econômicos, culturais dentre outros.
Nesse sentido, são pertinentes as reflexões levantadas pelos entrevistados com relação
à aplicação da Convenção 169 junto aos povos indígenas, às comunidades quilombolas e aos
“povos e comunidades tradicionais” a partir do reconhecimento do próprio grupo como
destinatários deste dispositivo jurídico. A esse respeito, Girolamo Treccani pontua:
Acho que é uma discussão jurídica a ser feita: para quem se aplica o 169?
Ninguém duvida que se aplique às populações indígenas, ninguém discute, é
tão louco de duvidar disso. Mas se nos formos pegar a Ação Direita de
Inconstitucionalidade apresentada pelo PFL, hoje Democratas, contra o
Decreto 4887/2003, expressamente esta ADIN não se coloca dizendo que
comunidade remanescente de quilombo não se enquadrariam no 169. Mas
dois argumentos fundamentais utilizados naquela ADIN contrariam o 169: a
possibilidade do auto-reconhecimento e a possibilidade de que aquele grupo
social possa indicar e desenhar, portanto, os limites do seu território. Isso
significa na prática que, e eu já vi isso em alguns autores que defendem no
rumo do PFL, que não acham que o169 não se aplicaria a comunidades
remanescentes de quilombo. Pessoalmente acredito que não é bem assim, tá,
eu entendo que aplica-se sim...(...). Ampliar, como já vi em vários debates e
em algumas teses, esta realidade para as populações tradicionais que são
abrangidas pelo 6.040/2007, aí já não é tão simples e não é tão aceito por
parte considerável da doutrina. Eu pessoalmente acho que aplica-se sim a
169, agora isso, evidentemente, nos cria alguns problemas. Quais? Tem três
coisas, pra mim fundamentais do 169. Duas são aquelas que referi ainda
pouco, isto é o auto-reconhecimento e o segundo é a questão – e aqui
fazendo um paralelo com o art. 231, §1º, na parte final da Constituição – que
se refere a índios, tá. Portanto é bem específico, mas quando se refere a
índios lá no final, diz seus usos e costumes, que seria o critério para
137
determinar se aquela população é indígena ou não. Não existe dispositivo
constitucional nesse sentido nem para remanescentes de quilombo nem para
os demais que se reconhecem como comunidades tradicionais, mas
pessoalmente entendo que aplica-se sim. Claro, não se aplica este dispositivo
constitucional específico, ele é só para índio mesmo, mas de maneira similar
eu entendo que é possível sim extrapolar esta categoria para as demais
populações tradicionais fazendo com que, portanto, elas possam encontrar na
169 a sua filosofia de trabalho. E aí tem uma terceira coisa que ainda não
coloquei que é a necessidade que toda e qualquer política pública, toda e
qualquer legislação, os PAC81 da vida, que venham a atingir essas
populações, necessariamente terão que passar por uma consulta a essas
populações (...). E daí não vejo como consulta aqui onde o poder público vai
dizer é assim e se não quiser é assim mesmo. No que diz respeito a Belo
Monte, vai ser muito interessante, caso se venha a ter, não só como hoje esta
entrada no cenário de Belo Monte da OEA, mas que por enquanto é só
pedido de informações, se isso for mais adiante será interessante verificar se
a 169 poderá ser utilizada não só pelas comunidades indígenas, que estão
sendo e serão atingidas caso Belo Monte continue os trabalhos, como o
governo federal está dizendo recentemente, mas também se, por exemplo, as
outras comunidades, é, vamos pensar, por exemplo, as comunidades dos
PDS82 que forma criados pelo INCRA naquela região. Ou comunidades ao
redor, como por exemplo a comunidade do Bacajaí, onde o Estado criou um
projeto de assentamento agroextrativista, enfim: será que essas populações
poderão invocar o 169 para defender seus direitos? Essa é uma discussão que
eu acho plausível mas que será interessante ver como é que será trabalhada,
seja pelo Ministério Público Federal, em eventuais ações, qualquer que elas
sejam, seja pelo próprio movimento enquanto reconhecimento desse
instrumento a favor deles (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).
Dessa forma, interessante sublinhar a indagação realizada por Girolamo Treccani,
tendo em vista que esta discussão não se encontra pacificada: os povos e grupos que não são
reconhecidos “oficialmente” como “povos indígenas e tribais” ou “povos e comunidades
tradicionais” poderão ser amparados pela Convenção 169 da OIT?
A priori, há entendimento que sim, posto que a Convenção 169, e mesmo o Decreto
6.040/2007, não definem que são esses grupos, mas sim, possibilitam os instrumentos
necessários para que o próprio sujeito se defina diante do seu grupo. Contudo, ainda paira a
indagação sobre a efetividade desta autoidentificação, sobretudo por parte dos grupos que não
são indígenas e nem quilombolas (vez que estes contam com outros instrumentos normativos
específicos de proteção), especialmente entre os setores mais conservadores e apegados à
dogmática jurídica.
Nesse sentido, interessante recuperar as reflexões de Deborah Dupart acerca do
conceito de auto-atribuiição ou autoidentificação, que ainda causa bastante estranheza a
81
82
Programa de Aceleração de Crescimento, do Governo Federal.
Projetos de Desenvolvimento Sustentável.
138
alguns operadores do direito, havendo inclusive, manifestações, em alguns pareceres jurídicos
que exigem provas desta identificação. Conforme destaca:
Não só viemos de uma sociedade hegemônica; ela ainda luta por sobreviver.
Nesse contexto, há um grupo que, dominante, tem o poder da classificação e
da outorga de direitos dela decorrentes. Numa sociedade plural, não há quem
possa validamente, a partir de uma posição de superioridade, classificar os
demais. Se pudesse, não seria mais plural. Aliás, é de todo absurdo imaginar
uma disputa judicial por identidades: alguém diz que é, o outro diz que não
é, e um terceiro define se é ou não é. Em boa hora, isso acabou, não obstante
a luta daqueles que desejam que tudo permaneça como era antes (...) Falam
em remanescência, resíduo daquilo que um dia foi. Mas a Constituição tem
em vista grupos existentes no presente, com projetos de futuro. Seu olhar
não é para o passado. De resto, não é só juridicamente. Factualmente, os
grupos estão aí, afirmando as suas identidades. Além do despropósito de
alguém ficar por aí classificando pessoas e grupos, como iria provar essa
remanescência? Fazer exame de DNA e procurar um ancestral histórico?
Aliás, essa disputa em torno de identidades não é novidade alguma. De
diferente, apenas que os quilombos são a bola da vez. Antes, foram os
índios, e aquela tal prova de que eram descendentes de populações précolombianas. O desatino é tão grande que não resiste ao tempo83.
Essa discussão, portanto, se atualiza no caso dos chamados “povos e comunidades
tradicionais”, sem que as polêmicas em torno da identificação e da aplicação dos dispositivos
jurídicos – como a Convenção 169 da OIT – sobre indígenas e quilombolas tenham sido
superadas, conforme afirma Deborah Duprat. Retomando essa questão de outro modo, o
Procurador Alexandre Silva Soares afirma:
Eu acho que com relação à indígena e quilombola eu não tenho dúvida com
relação à aplicabilidade dela, a questão é com relação aos outros grupos da
sociedade brasileira, essa é que é a questão na verdade, até que ponto ela
consegue alcançar efetivamente esses vários grupos formadores da sociedade
brasileira, ou se faltam instrumentos que possam dar conta disso. A gente
tem um marco normativo muito importante que é o Decreto 6.040/2007, que
é o decreto de povos e populações tradicionais, a política nacional de povos
e populações tradicionais, mas, que assim, é um negócio que é quase
esquecido. Não tem muita aplicabilidade... (Entrevista realizada em
24/11/2011).
Ainda sobre a abrangência e aplicabilidade do Decreto 6.040/2007, que institui a
Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, Girolamo Treccani faz a seguinte
reflexão:
Se nós vamos pegar o decreto 6.040 e toda a legislação que implementa
políticas para essas populações, desde o SNUC84 com (...) a possibilidade de
83
SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito
Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007
84
Sistema Nacional de Unidades de Conservação.
139
criar RDS e RESEX, RESEX e RDS85, no sentido mais importante a nível de
números, mas enfim, o próprio decreto ele abre, quando cria depois o
conselho nacional de populações tradicionais, abre um vasto leque de nomes
e aí fica de fato meio complicado poder chegar a categorias homogêneas. A
própria definição que consta no 6.040 não diz muita coisa, do ponto de vista
mais técnico. Ela quer ser abrangente, todas as vezes que se quer ser
abrangente quando a realidade prática é muito diferenciada evidentemente
não se tem muito como fazer esses enquadramentos (Entrevista realizada no
dia 16/05/2011).
No que tange a esses enquadramentos e diferenciações entre “povos e comunidades
tradicionais”,
“quilombolas”
e
“indígenas”,
os
agentes
entrevistados
manifestam
posicionamentos diferenciados, pois, se alguns não percebem grandes diferenças entre os
mesmos, outros os concebem como extremamente distintos entre si.
Questionada acerca desses aspectos, sobretudo devido ao fato de que os grupos acima
referidos tenham alguns de seus direitos abordados em instrumentos normativos específicos, a
Subprocuradora-Geral da República, Deborah Duprat, em entrevista concedida a Gilda Santos
e Gilson Afonseca, pontua que:
Rigorosamente, não vejo grande diferença. A começar que as distinções são
externas aos grupos. São meras classificações produzidas por terceiros, sem
maiores compromissos com os grupos que se pretende estejam ali refletidos.
De resto, com a convenção 169, da OIT, toda essa discussão perdeu sua
razão de ser. A uma, pelo critério da auto-atribuição. A duas, porque ela
coloca, num grande bloco a que denomina povos tribais, grupos cujas
condições sociais, econômicas e culturais os distinguem. Temos aí
comunidades remanescentes de quilombos e populações tradicionais. O que
há de diferente são os direitos que cabem a cada qual e que ficam a depender
exatamente do modo específico de vida de cada um deles. Uma anotação
com relação a esse Decreto 6.040. Ele traz para o plano legal aquilo que, não
obstante já revelado pela Constituição, ainda era por muitos recusados. Essa
é uma sociedade plural, e a diferença acarreta direitos específicos. Rompe-se
o pressuposto, que orientou o direito anterior, de uma sociedade homogênea.
Também acaba com aquela noção de cultura que a fazia corresponder
exclusivamente aos seus aspectos arqueológicos, arquitetônicos, artísticos e
folclóricos. A cultura é tomada como expressão de vida, e, portanto, é ela
também essencialmente plural. A partir da Constituição de 88, da Convenção
169, desse Decreto, comunidades tradicionais não são aquelas que se
imobilizaram no tempo, até porque não há nenhum grupo humano que possa
assim permanecer. A cultura e a tradição são processos dinâmicos que estão
em permanente renovação, no dia-a-dia86.
85
Reserva Extrativista e Reserva de Desenvolvimento Sustentável, duas modalidades de unidades de uso
sustentável estabelecidas pela Lei 9.985/2000.
86
SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito
Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007.
140
No mesmo sentido do entendimento anterior, Deborah Duprat defende que, do ponto
de vista étnico, cultural e jurídico, não há que se falar em diferença com relação à posse da
terra. Assim, para a Subprocuradora-geral:
Em ambos os casos, cuida-se de assegurar um território necessário à
produção e reprodução física e cultural do grupo. Ao Estado, incumbe
garantir a pluralidade da sociedade nacional, o que significa que as suas
responsabilidades são as mesmas, sejam eles índios, quilombos, ribeirinhos,
quebradeiras, etc. As mesmas cautelas que se tem em relação aos territórios
indígenas, constitucionalmente estipuladas, hão de ser tomadas em relação
aos territórios dos demais grupos: gestão plena por seus membros,
impossibilidade de deslocamentos compulsórios, atuação de terceiros a
depender de consentimento prévio informado, inclusive no que diz respeito a
políticas públicas87.
Já o Procurador da República Felício Pontes Júnior no que se refere à adoção de
estatutos jurídicos para indígenas, quilombolas e “povos e comunidades tradicionais”, possui
entendimento um tanto quanto diferenciado do que expôs Deborah Duprat, pois, conforme
afirma:
Há uma espinha dorsal que passa por todos eles. Mas é preciso reconhecer
que são populações diferentes entre si, que tem especificidades e que não
podem ser consideradas todas com um estatuto só, jurídico, para abrigar os
direitos de todas essas comunidades. Há especificidade, há diferenças entre
essas populações e isso precisa estar bem definido, e só se faz esta definição
com a perfeita compreensão e conhecimento do uso, da forma de vida, de
organização, de produção dessas comunidades, que são diferentes. Então eu
acho que não há problema nenhum quando a gente vai pra cima e pode falar
pra fora, eu defendo os povos das florestas, das populações tradicionais, não
tem problema nenhum em relação a isso, de que isso aconteça, mas na hora
que você tá lidando especificamente com uma população, em perigo, por
algum projeto ou por alguma ação de alguma pessoa, aí você tem que ter
mesmo, e definido, o grupo de direitos específicos daquela comunidade
porque elas são, pra quem conhece a Amazônia, pra quem nela viveu, para
quem trabalha com essas pessoas, sabe que há diferenças de compreensão de
mundo mesmo entre elas (Entrevista realizada em 27/05/2011).
Assim sendo, percebe-se que as classificações em torno dos “povos e comunidades
tradicionais” não são percebidas de forma homogênea. A depender do critério utilizado para
implementar as disposições relativas aos direitos desses grupos – sobretudo os territoriais – os
entrevistados podem sustentar que tais grupos pertencem a um mesmo “bloco”, no qual se
inserem também os povos indígenas e quilombolas, ou, de outra forma, podem alegar as
identidade e territorialidades específicas implicadas nessa discussão, impedindo a redução
desses grupos a uma mesma classificação.
87
SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito
Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007.
141
Trata-se, portanto, da tentativa, por parte destes operadores jurídicos, de encontrar
semelhanças importantes dentro da diversidade de situações que se apresentam na atualidade
sem, no entanto, reduzi-las a categorias universais e a-históricas, tão caras ao direito, mas tão
criticadas por esses profissionais aqui analisados.
Ainda no que concerne a percepção que dos profissionais entrevistados sobre esses
grupos, cumpre ressaltar como eles percebem a relação entre os “povos e comunidades
tradicionais” e o discurso ambientalista.
Tal relação, conforme se percebe nos trechos selecionados abaixo, aparece como
constitutiva desses grupos sociais, de modo que, para esses agentes, os objetivos de
convervação/preservação ambiental e as formas de vida dos chamados “povos e comunidades
tradicionais” são sinônimos.
José Heder Benatti, ao ser questionado sobre essa relação e apoiando-se em reflexões
desenvolvidas na antropologia, destaca que:
Ah, com certeza, na verdade, embora eles não tinham essa lógica, essa
preocupação ambiental, mesmo que você queira excluir a área para o uso
coletivo, mas, eu diria que, há um uso, eles tem o uso, eles tem uma
preocupação do ponto de vista ambiental. Tanto é que na antropologia, na
antropologia ambiental, eles mostram que tem estudos que dizem que na
verdade a biodiversidade amazônica, das florestas tropicais, advêm muito
mais da ação antrópica do que da própria natureza, que no próprio manejar
da floresta eles foram aumentado a biodiversidade existente. Então não foi
só formação natural, há uma intervenção humana já milenar aí (Entrevista
realizada no dia 23/05/2011).
Girolamo Treccani, ao ser questionado sobre a existência da relação entre o discurso
ambientalista e esses grupos sociais revela a mesma certeza no que se refere à convergência
de objetivos e, inclusive, menciona a necessidade de remunerar esses grupos pelos serviços
ambientais prestados. Segundo Treccani:
Sim, com certeza. Inclusive uma das discussões que nos fazíamos dentro da
FETAGRI/Pará era exatamente o pagamento dos serviços ambientais como
uma forma de remunerar essas práticas. Práticas estas que, evidentemente,
tem seu ônus, do ponto de vista econômico e que, portanto, deveria se ter
também o reconhecimento formal por parte da política pública com políticas
específicas de apoio e de remuneração. Infelizmente esse discurso de
serviços ambientais até hoje não encontrou eco nos governo federal nem nos
governos estaduais, fazendo com que não se tenha conseguido avançar muito
nisso. Hoje, ressurge, de uma maneira diferente quando se fazem as
discussões sobre o seqüestro de carbono e toda essa dinâmica de
pagamento... que no meu entender não é exatamente a mesma coisa. Tem
coisas que vão na mesma direção mas não é exatamente a mesma coisa. Mas
enfim, eu acho portanto que é uma discussão esta que precisaria ser melhor
trabalhada, pois a conexão entre, não só o discurso mas a prática...
(Entrevista realizada no dia 16/05/2011).
142
Já o Procurador da República Felício Pontes Júnior, ao pensar sobre essa relação,
recupera o histórico de constituição do ambientalismo (inclusive no âmbito do direto),
destacando uma evolução no que concerne a visão da presença humana em espaços
protegidos, já que antes a relação destes grupos considerados “tradicionais” com o direito era
de embate e disputa. Em suas palavras:
Eu acho que houve uma evolução, pelo menos durante os 14 anos que eu
tenho de Ministério Público, um pouco mais, porque eu tinha 10 anos de
advocacia, mais de 14 de Ministério Público, eu vejo que houve uma
diferença no tempo. Num primeiro momento, quando o movimento
ambiental surge, ele surge com base numa formulação muito americana de
concepção de Direito Ambiental, que era colocar numa redoma as áreas
protegidas e que ninguém pudesse fazer parte disso. Então, num primeiro
momento houve um choque muito grande entre as populações tradicionais,
povos e comunidades tradicionais, com o Direito Ambiental. O que deveria
ser um se apropriar do outro e fazer um movimento único, como eu acho que
hoje existe, num primeiro momento não havia isso. Porque, até se você
puder estudar, por exemplo, a Lei do SNUC, a Lei das Unidades de
Conservação, a Lei da Política Nacional de Meio Ambiente, essa lei, a lei da
política principalmente, ela vai ser, o projeto de lei entra no Congresso com
uma mensagem do presidente Collor, e quando ele entra, ele entra com um
viés extremamente de proteção integral, de que temos que proteger, era
aquela visão americana dizendo: “vamos proteger o meio ambiente, vamos
transformar isso aqui em Parque Nacional, retira todo mundo”. Então ela
entra com esse viés, com essa característica, e ela vai, eu não me lembro
quantos anos, mais foram mais de 05 anos com certeza, de discussão no
Congresso e ela sai completamente diferente. Quando ela sai, ela sai já
abrigando, mostrando que a presença humana nessas florestas foi um fator
extremamente rico para a biodiversidade, um fator extremamente rico até
para a proteção dessas florestas, então o que, aí começa a diferenciar a
categoria dos homens da cidade, daqueles que qualquer interferência no
meio ambiente é destruidora, dos povos da floresta, daqueles que qualquer
interferência no meio ambiente é protetora. Então essa evolução vai se dar
com o tempo mesmo. Eu acho que os primeiros contatos do Direito
Ambiental com as populações tradicionais foi de choque, e hoje eu acho que
a evolução permitiu ver que não há possibilidade mesmo de se desassociar,
que ao invés de choque eles tem que estar juntos, vivendo juntos ... Ainda
bem, porque isso nos facilita muito a vida quando a gente tá trabalhando
com os juízes daqui (Entrevista realizada em 27/05/2011).
Por fim, no que se refere à receptividade dessas questões no âmbito do Poder
Judiciário, os entrevistados, embora apontem alguns avanços verificados nos últimos tempos,
destacam que ainda muito precisa ser feito para que efetivamente ocorra uma mudança de
postura deste poder para o atendimento das demandas específicas desses grupos. Conforme
destacam, ainda é muito incipiente as iniciativas e aquém do esperado, caso se leve em
143
consideração a dimensão e a quantidade de pessoas envolvidas e implicadas nessas
discussões.
Com relação à atuação dos operadores do direito no que trata da discussão sobre os
conflitos fundiários, por exemplo, a Subprocuradora Deborah Duprat destaca que:
As visões homologadas pelo direito importam no descarte das visões
concorrentes. A noção de território, cara a quilombolas e índios, entre outros,
não tem similar no direito civil. Todavia, o judiciário segue julgando
conflitos fundiários a partir da noção civilista da posse. A vitória, nesse caso,
está de antemão definida, porque a visão de um dos lados já foi previamente
adotada como a única legítima88.
Nesse sentido, há uma crítica ao discurso jurídico dominante, que subjuga as formas
de entendimento e compreensão da realidade por parte desses grupos considerados
tradicionais e se apóia em disciplinas orientadas por critérios estranhos a esses grupos. Dessa
forma, ilustrativa a fala de Girolamo Treccani, ao se referir a uma ação judicial de duas
décadas atrás, envolvendo a comunidade de ribeirinhos da ilha do Marajó.
Se tratava de ver se alguns ribeirinhos poderiam ser considerados como
ocupantes de uma determinada região, e o juiz chegou a se manifestar no
seguinte sentido na decisão dele: como a atividade principal deles é açaí e
eles só ocupam, portanto, aquela determinada região, durante alguns meses
do ano, não se pode reconhecer a estas famílias qualquer tipo de posse,
porque posse, no sentido civilista que estava na cabeça dele, era uma
presença física ao longo dos doze meses do ano. Hora, é evidente que
ninguém vai para o açaizal quando não tem o açaí. É verdade de que tem
uma atividade de limpeza, a atividade de manutenção, uma atividade de
manejo que não se faz única e exclusivamente durante o período da safra.
Mas é claro que no período da safra a atividade, inclusive econômica, é
muito mais intensa do que fora desse período e no estado do Pará, pelo
menos, o período da safra do açaí é bem específico, não dura doze meses.
(...) Existem algumas decisões, no meu entender, absolutamente equivocadas
do nosso tribunal (...) onde o Tribunal não reconhece que numa ação
possessória se discuta função social da propriedade, pois numa ação
possessória não se discute propriedade portanto não tem porque discutir
função social. Para mim isso é uma aberração jurídica. Isto é, não existe
posse que não seja condicionada pelo cumprimento da função social, não é
só propriedade que tem que fazer isso. Esta distinção entre posse e
propriedade para mim, feita dessa maneira, é totalmente fora de cogitação
(...) Isso leva praticamente a reconhecer como a dimensão da população
tradicional não passa pela cabeça de juízes, a maioria deles que se formaram
décadas atrás (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).
88
SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito
Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007.
144
Também compartilha desse posicionamento José Heder Benatti, destacando ainda que,
embora existam muitos conflitos de natureza fundiária, discutindo posse e propriedade,
poucos são os que efetivamente conseguem chegar às instâncias de decisão jurídica e, quando
chegam nessas instâncias, nelas prepondera uma concepção dominante, que é prejudicial aos
grupos considerados tradicionais. Segundo afirma:
O Judiciário tem dificuldade de entender essa diversidade, para chegar nesse
conceito, nesse debate, o que é propriedade comum, como é que se dá. Você
acaba se especializando, você acaba tendo contato com toda uma literatura...
E o juiz tem que se virar, com dezenas, milhares de casos. Desses milhares,
um ou dois casos é sobre populações tradicionais. É obvio que ele não vai ter
informação, não vai ter dimensão dessa situação, então cabe aos interessados
de municiar, informar ao máximo sobre o que se tá discutindo, para que ele
possa, ao decidir, ter o mínimo de informação possível para fazer a decisão.
Apesar de que hoje você tem segmentos, alguns juízes mais preocupados
com a questão social, que pensa duas vezes antes de dar liminar. Mas, você
tá tratando com pessoas, que podem ser simpatizantes do latifúndio, por
origem histórica familiar ou por simpatia mesmo, como podem ser pessoas
mais preocupadas com a questão social (Entrevista realizada no dia
23/05/2011).
Dessa forma, conforme se extraí dos depoimentos obtidos, os profissionais que atuam
nessas causas precisam se municiar de estratégias para atuar nessas disputas, que são disputas
internas ao direito, nas quais se coloca em questão até mesmo o que dizer e como dizer, com
relação a essa discussão, nesse espaço. Assim, conforme destaca o Procurador Alexandre
Silva Soares:
Em primeiro lugar, nem tudo o que é discutido nesse sentido é levado para o
Judiciário. Então, isso é um fato. Nem tudo que a gente discute quanto a isso
é levado efetivamente à judicialização. Às vezes por uma questão estratégica
inclusive, porque afinal de contas não é interessante você levar a uma
instância com essa capacidade decisória de dizer o direito em última palavra
alguns temas tão polêmicos. Então isso é um fato: nem tudo que é discutido
quanto a essas categorias, quanto a esses grupos tradicionais é levado ao
Judiciário e não é levado de forma estratégica. Em alguns casos você, dentro
do Judiciário, você encontra posicionamentos absolutamente divergentes, e
divergentes não apenas com relação a povos e populações tradicionais, mas
também com relação à própria visão de meio ambiente. Então você vai
encontrar uma discrepância muito grande entre instâncias diferentes e,
sobretudo, um grande diferencial é o interesse econômico que está em jogo,
interesses econômico, político e tudo mais... (Entrevista realizada em
24/11/2011).
È preciso ter em conta, conforme revelam os profissionais do direito entrevistados, que
o Poder Judiciário é extremamente conservador, e apenas recentemente tem se observado
algumas mudanças, tal como afirma Benatti ao destacar que “apesar de que ainda tem muito
preconceito (...) mas acho que você já tem bons avanços e a discussão esta conseguindo
145
ampliar um pouco mais do que era” (Entrevista realizada no dia 23/05/2011). No mesmo
sentido, avalia o Procurador da República do estado do Pará, Felício Pontes Júnior, ao afirmar
que:
O Judiciário ainda é o mais conservador de todos os Poderes e isso se reflete
nessas decisões. (...) Então eu vejo hoje, o Judiciário, as pessoas que chegam
agora à Justiça, com uma cabeça social muito mais consciente, com uma
consciência social muito maior do que aqueles do passado, e isso se reflete
nas decisões. Então você tem, assim, os tribunais, hoje eu vejo a primeira
instância muito mais fácil de entender aquilo que tá sendo proposto nessas
ações sociais, nessas ações que envolvem essas categorias sociais e o
Tribunal muito distante disso. Vejo um conflito de gerações mesmo, sabe,
um conflito de gerações. Os novos juízes foram juízes que tiveram, por
exemplo, direito ambiental ou direito indígena como matérias obrigatórias.
(...) E as pessoas que estão hoje nos Tribunais, os magistrados, os Tribunais
Superiores, principalmente, o nosso Tribunal, o Regional Federal, embora,
alguns sejam extremamente, salvo raríssimas exceções, que são estudiosos e
foram buscar essas matérias novas, que tem absoluta compreensão do tema,
eles são minoria, eles estão a minoria lá dentro. Então hoje o Judiciário, na
segunda instância, na terceira instância é extremamente conservador e o
Judiciário na primeira instância é progressista, ou pelo menos com uma
consciência social maior (Entrevista realizada em 27/05/2011).
Nesse aspecto podemos afirmar que os entrevistados convergem, ou seja, as críticas
direcionadas ao Poder Judiciário pela forma como este lida com os direitos dos “povos e
comunidades tradicionais” e com as questões relacionadas à identidade e à territorialidade são
uníssonas.
Para os entrevistados, portanto, a existência de um discurso jurídico dominante e de
modelos jurídicos pré-existentes, baseados no direito civilista de propriedade privada,
funciona como um entrave no processo de consolidação de direitos étnicos e de
reconhecimento de situações territoriais especificas.
Dessa forma, percebe-se um movimento por parte desses juristas de conceber o direito
a partir de outras bases, o que passa, necessariamente, pela reformulação dos cursos jurídicos,
conforme revelaram. Assim, são favoráveis a inclusão, no ensino jurídico, de disciplinas que
abordem as discussões sobre os “povos e comunidades tradicionais”.
Outro ponto no qual as falas convergem, refere-se à relação – necessária e bem quista
– entre esses grupos e o discurso ambientalista, muito embora, não haja uma essência
ambientalista entre os grupos tidos como “povos e comunidades tradicionais”, tal como se
verifica nas preocupações ambientalistas em sentido estrito.
De outro modo, diversos são os pontos em que os entrevistados divergem, o que
demonstra a diversidade de interpretações feitas por estes profissionais, que, apropriando-se
das discussões realizadas em outras áreas disciplinares (sobretudo nas ciências sociais) e em
146
contextos diferenciados (como as discussões internacionalmente realizadas sobre a temática
socioambiental) utilizam as diferentes acepções da expressão para fundamentar as suas
tomadas de posição jurídica com relação a esses grupos.
Assim, no que concerne à própria expressão “povos e comunidades tradicionais”,
podemos perceber algumas diferenças, inclusive na própria nomenclatura utilizada, vez que a
exceção da Subprocuradora-geral Deborah Duprat, os entrevistados referiam-se aos grupos
passíveis dessa classificação, na maioria das vezes, como “populações tradicionais”.
Tal fato, no entanto, não pode ser analisado como revelador de um desconhecimento
do processo de ressemantização e transformação pela qual passou essa categoria (processo
este analisado no segundo capítulo deste trabalho) mas sim reflexo das discussões e das
primeiras legislações que tratavam sobre esses grupos e nos quais a denominação
predominante é “populações tradicionais”.
Verificou-se divergência também no que se refere à generalização desses grupos por
meio da adoção da categoria “povos e comunidades tradicionais”. Se para a Subprocuradorageral Deborah Duprat é possível incluir indígenas e quilombolas nessa denominação sem
maiores problemas, significando tal inclusão um avanço na garantia dos direitos desses
grupos – posicionamento também compartilhado pelo Procurador da República Alexandre
Silva Soares – para outros entrevistados as especificidades de cada grupo precisam ser bem
definidas. Para estes, tal generalização pode ser vista como limitadora do ponto de vista
prático, tornando de difícil concretização a garantia dos direitos desses grupos, sobretudo ante
as críticas de setores considerados mais conservadores da sociedade.
Esses são apenas alguns aspectos que podem ser levantados a partir da análise das
falas dos profissionais investigados que, conforme dito no início deste item, manifestam
posicionamentos diferentes. Contudo, cumpre destacar que todos eles fazem parte de um
espaço judicial que se pretende produzir uma releitura dos esquemas jurídicos dominantes,
que desconsideram as discussões voltadas para os modos de viver dos “povos e comunidades
tradicionais”.
147
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se neste trabalho analisar a construção sociológica e jurídica da expressão
"povos e comunidades tradicionais" a partir da sistematização dos posicionamentos adotados
por diferentes profissionais em prol do reconhecimento e legitimidade da expressão.
Neste intuito, procedeu-se à identificação de alguns desses profissionais e as
instituições às quais pertencem – inclusive internacionais – evidenciando as correlações
existentes entre a produção de um saber institucional e as intervenções científicas e políticas
realizadas nos países importadores de modelos institucionais.
A análise, centrada em alguns documentos textuais produzidos e reproduzidos pelas
instituições internacionais, possibilitou perceber de que forma se dão as estratégias de
circulação de conhecimento técnico e de profissionais mobilizados por estas instituições.
Assim sendo, o trabalho investigou o processo internacional de invenção e
institucionalização da causa socioambiental – no bojo do qual se encontram os processos de
construção da categoria “povos e comunidades tradicionais” – com destaque para a análise de
uma rede de ativismo ambiental e para o processo de importação de modelos institucionais
para países periféricos.
Tal importação se dá via difusão do discurso desenvolvimentista, motivo pelo qual,
analisou-se o processo de construção deste discurso e da ideologia por ele empreendida.
Discutiu-se também o papel central assumidos pelas ONGs nessa difusão, bem como o
processo de construção de realidades sociais por elas produzido.
Buscou-se analisar também as construções jurídicas e sociológicas realizadas em torno
dos segmentos classificados como “povos e comunidades tradicionais” e do processo de
constituição de movimentos sociais que se articulam em torno da defesa das “terras
tradicionalmente ocupadas”.
Nesse sentido, ressaltou-se a influência das discussões internacionais na elaboração de
instrumentos jurídicos nacionais, a exemplo da Convenção 169 da OIT e sua influência no
processo de elaboração e edição da Lei 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação e, sobretudo, no Decreto 6.040/2007, que estabelece a Política
Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais.
De igual forma, procurou-se demonstrar a formação de redes de ativismo engendradas
pelas instituições internacionais, com destaque para o processo de judicialização de conflitos
sociais e políticos, levados a cabo por agentes situados no espaço jurídico. Tais redes, formais
148
e informais, possibilitam a importação e exportação de causas políticas e a transformação das
mesmas em causas jurídicas.
Nesse passar, afirmamos que as discussões em torno da “ambientalização” dos
fenômenos sociais – sobretudo realizadas no final da década de 1980, no contexto de
redemocratização do país – influenciaram modificações no âmbito do Poder Judiciário e
possibilitaram as condições para a consolidação de uma comunidade de intérpretes jurídicos
voltados para a discussão sobre os “povos e comunidades tradicionais”.
Dessa forma, pode-se falar em processos de tradução e mediação realizada pelos
agentes investigados e o empenho com que tentam “descomplexificar” o direito, para que o
mesmo possa ser apropriado pelos destinatários das normas jurídicas.
Assim, conforme mencionado, a análise neste trabalho foi orientada, sobretudo, para
compreender os discursos e interpretações de juristas, de modo que a análise dos discursos
dos profissionais que ocupam posições no espaço jurídico e que possuem uma atuação
profissional direcionada para a defesa desses grupos – tais como professores universitários,
advogados e membros do Ministério Público Federal, situados, majoritariamente, nos estados
do Maranhão e do Pará – foi fundamental para as conclusões deste trabalho.
Dentre essas conclusões, pode-se afirmar que as teorias do pluralismo jurídico,
segundo a qual o direito produzido pelo Estado não é o único, influenciaram os
posicionamentos dos juristas aqui analisados no que se refere às discussões sobre os “povos e
comunidades tradicionais”, orientando, por sua vez, o processo de consolidação de um corpo
de profissionais especializados nessas discussões.
Verifica-se, portanto, uma produção acadêmica e uma atuação profissional voltada
para a crítica intensa da postura dogmática que vigora no Poder Judiciário no que se refere a
esses grupos. Tal crítica é realizada com base em aportes científicos de outras áreas de
conhecimento, que são vistas não apenas como auxiliares nas suas tomadas de posição, mas
sim como constituintes das suas concepções teóricas sobre os grupos considerados
tradicionais.
Nesse sentido, defendem que o direito mantenha diálogo com outras disciplinas, em
especial as ciências sociais, tendo em vista que, conforme se verifica na análise dos
depoimentos dos entrevistados, há uma apropriação das discussões realizadas nesta disciplina
bem como uma relação de proximidades com antropólogos e outros cientistas sociais na
realização de seus trabalhos, pareceres, peças técnicas etc.
Observa-se ainda por parte desses profissionais um empenho em alterar as relações de
dominação historicamente estabelecidas, sendo tal postura relacionada com os compromissos
149
ideológicos, de caráter eminentemente político, assumidos por esses operadores jurídicos com
as causas socioambientais.
Verifica-se por parte desses profissionais um intenso questionamento sobre o
monopólio de dizer o direito e uma tentativa de ruptura com esquemas jurídicos estabelecidos.
Tais processos se tornam evidenciados a partir da análise dos posicionamentos – nem sempre
convergentes – que os entrevistados relevam no que concerne aos direitos dos povos e
comunidades tradicionais.
Por fim, percebe-se uma indiferenciação entre o engajamento militante e o exercício
profissional na trajetória desses agentes estudados, que concebem tais espaços como
simultâneos e não dissociados.
Percebe-se a necessidade de realização de uma análise mais detida sobre o
relacionamento existente entre as condições sociais, profissionais e políticas dos profissionais
investigados, e de que forma essas condições possibilitam a vinculação entre o tratamento
jurídico da causa socioambiental e a defesa militante da mesma, tidas como esferas
simultâneas. Tal análise poderá ser realizada em outros trabalhos.
150
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APÊNDICES
Informações relativas às carreiras dos profissionais analisados
Alexandre Silva Soares
Deborah Macedo Duprat de
Britto Pereira
O Procurador da República no estado do Maranhão graduou-se
em direito pela Universidade Federal do Maranhão, tendo
obtido o título de bacharel no ano de 2002. Durante a
graduação, integrou o movimento estudantil e o Núcleo de
Assessoria Jurídico Popular NAJUP, da UFMA. Iniciou uma
pós-graduação em Ciências Criminais, no UNICEUMA. Antes
da entrada no Ministério Público Federal, desenvolveu
atividades de docência, ministrando a disciplina Direito
Ambiental em universidades particulares e teve uma rápida
experiência, de 08 meses, como assessor jurídico da Diocese
do município de Brejo, estado do Maranhão.
Antes de ser aprovado no concurso para Procurador do
Ministério Público Federal, se submeteu e foi aprovado nos
concursos para Defensor Público, Procurador do Estado,
Advogado da União e Procurador da Fazenda.
A Subprocuradora-geral da República, Deborah Macedo
Duprat de Britto Pereira, possui graduação em Direito e
mestrado em Direito e Estado, pela Universidade de Brasília.
Antes de ingressar no Ministério Público, Deborah Duprat
exerceu as funções de auxiliar judiciário, técnica judiciária e
assessora de ministro do extinto Tribunal Federal de Recursos.
Já no Ministério Público Federal, conforme informações junto
ao site do oficial da Procuradoria Geral da República, Deborah
Duprat exerceu as seguintes funções: 16/10/87: nomeada para
o cargo de Procurador da República de 2ª categoria; 10/11/89:
representante do MPF na apuração das sessões eleitorais da 1ª
Zona Eleitoral; 31/05/89: designação para compor comissão
permanente de atuação na defesa dos interesses indígenas;
07/12/89 - promovida ao cargo de Procurador da República de
1ª categoria; 21/05/93 - promovida, por transformação, ao
cargo de Procurador Regional da República; 25/07/93 designação para o exercício da Coordenadoria de Defesa do
Meio Ambiente e dos Direitos do Consumidor, em
substituição; 1993/1994 - Coordenadora da Coordenadoria de
Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos - CODID, em
substituição; 1994/1996 - Membro da 7ª Câmara de
Coordenação e Revisão (consumidor e minorias); 1997/2004 Membro da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (populações
indígenas e minorias étnicas); 03/12/2003 - promovida, por
merecimento, ao cargo de Subprocurador-Geral da República;
06/05/2004 - Coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e
156
Revisão (populações indígenas e minorias étnicas);
29/06/2009 – Exercício interino do cargo de Procuradora-geral
da República.
Felício Pontes Júnior
Girolamo Domenico
Treccani
O Procurador da República Felício Pontes Júnior graduou-se
em direito pela Universidade Federal do Pará, no ano de 1988,
e possui mestrado em Teoria do Estado e Direito
Constitucional, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (1989-1993). Durante a realização do mestrado,
Felício Pontes Júnior advogou junto ao Centro de Defesa dos
Direitos Humanos Bento Rubião, na cidade do Rio de Janeiro.
Após a conclusão do mestrado, Felício Pontes Júnior atuou no
UNICEF (1994-1995), em Brasília e, após essa experiência,
atuou como docente na UNAMA, faculdade particular do
município de Belém – Pará (1995-1996), enquanto se
preparava para o concurso do Ministério Público. Sua entrada
como membro do Ministério Público Federal ocorreu no ano
de 1997.
O prof. Dr. Girolamo Domenico Treccani possui graduação
em Teologia pelo Instituto Teológico Saveriano - Pontificia
Universitá , Roma - Itália (1981) e graduação em Direito pela
Universidade Federal do Pará (1991). Especialista em
Planejamento do Desenvolvimento Regional pelo Núcleo de
Altos Estudos Amazônicos - NAEA/UFPA (1996) e mestre
em Direito (1999), também pela Universidade Federal do Pará.
Atualmente, professor da Faculdade de Graduação e do
Programa de Pós Graduação do Instituto de Ciências Jurídicas
da UFPA e Vice-Coordenador do Programa de Pós-graduação
em Direito da UFPA. Possui vínculo de professor junto a
Escola de Governo (2009); a Faculdade Brasil Amazônia
(2007); a Escola Superior de Magistratura do Pará (em 1991 e
2006), ministrando o curso de aperfeiçoamento em Direito
Agrário e Ambiental para juízes, além de assessoria jurídica.
Atuou, entre 2007 a 2010, como Assessor Chefe do Instituto
de Terras do Pará (ITERPA); Consultor Jurídico da Federação
dos Trabalhadores na Agricultura (FETAGRI-PARÁ), da
Coordenação
das
Associações
das
Comunidades
Remanescente de Quilombo do Estado do Pará e da Comissão
Pro-Índio de São Paulo . Como assessor jurídico, atuou junto a
Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial SEPPIR (2003-2006), desenvolvendo, no âmbito da
Subsecretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais
(SUBCOM), os projetos de pesquisa: Melhoria dos
Procedimentos de Reconhecimento e Regularização de Terras
de Comunidades Quilombolas; Banco de Dados Comunidades
Quilombolas; Sistematização da Legislação Federal e Estadual
Referente às Comunidades Remanescentes de Quilombos;
157
Apoio à Promoção da Igualdade Racial e Reconhecimento do
Domínio de Terras Quilombolas, bem como ao Ministério da
Cultura (2002), desenvolvendo o projeto “Análise dos
Processos de Titulação das Comunidades Quilombolas”.
Ainda como assessor jurídico, atuou junto a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB Norte II), no período de
1988 a 1999. Atuou ainda no Ministério do Meio Ambiente e
da Amazônia Legal – MMA (2001-2002), junto ao projeto de
pesquisa “Estudo de áreas comunitárias na várzea amazônica”,
com o sub-estudo “Identificação e análise dos diferentes tipos
de apropriação da terra e suas implicações sobre o uso dos
recursos naturais renováveis na várzea amazônica no imóvel
rural, na área Gurupá”. Atuou como Secretário Executivo
Regional da Comissão Pastoral da Terra dos estados do Pará e
Amapá (1986 - 1988) e também como Membro do Conselho
Diretor Nacional da CPT, no período de 1987 a 1991. No
Governo do Estado do Pará, atuou junto a Secretaria da
Justiça, como vice-diretor da Colônia Agrícola “Heleno
Fragoso” (1986) e, no período de 2001 a 2011, junto aos
projetos “Levantamento dos registros de imóveis bloqueados e
a serem cancelados” (2007 - 2011), “Apoio à promoção da
igualdade racial”; “Melhoria dos procedimentos de
reconhecimento e regularização de terras de comunidades
quilombolas”; “Reconhecimento de domínio das terras
quilombolas”; “Banco de dados de comunidades
quilombolas”; “Sistematização da legislação federal e
estaduais referentes às comunidades remanescentes de
quilombos”; “Análise dos processos de titulação das
comunidades quilombolas”; “Estudo de áreas comunitárias na
várzea amazônica, com o sub-estudo “Identificação e Análise
dos Diferentes Tipos de Apropriação da Terra e suas
Implicações sobre o Uso dos Recursos Naturais Renováveis da
Várzea Amazônica no Imóvel Rural, na Área de Gurupá”.
Destaca-se ainda a atuação como representante da CONTAG
na Comissão Coordenadora Política Nacional de Florestas CONAFLOR (2004-2006); o Conselho Estadual de Política
Agrícola, Agrária e Fundiária do Estado do Pará - CEPAF
(1996-1998 Decreto nº 1.339, de 27 de maio de 1997 e de
2007 até dezembro de 2010) e o Conselho Estadual de
Desenvolvimento Rural Sustentável.
Joaquim Shiraishi Neto
O prof. Dr. Joaquim Shiraishi Neto graduou-se em Direito
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1988),
possuindo mestrado em Planejamento do Desenvolvimento
pelo Núcleo de Altos Estudos da Amazônia da Universidade
Federal do Pará (1997) e doutorado em Direito pela
Universidade Federal do Paraná (2004). Possui atuação como
docente na Universidade Federal do Maranhão (1999-2001),
Universidade
Estadual
do
Maranhão
(2003-2008),
158
Universidade Federal do Pará (2008-2011), Universidade do
Estado do Amazonas (2007-atual) e Unidade de Ensino
Superior Dom Bosco (2008-atual). Possuiu vínculos com a
Fundación Interuniversitaria Fernando González Bernáldez, da
Espanha, orientando o trabalho de conclusão de mestrado de
Javier Sosa Ruiz intitulado “Empoderamento dos Povos
Tradicionais em torno da Criação de uma Reserva Extrativista:
o caso da Enseada da Mata, Maranhão – Brasil”; como
professor colaborador do Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônia – INPA, como professor colaborador do Programa
de Mestrado Profissional em Gestão de Áreas Protegidas da
Amazônia, ministrando a disciplina “Legislação ambiental e
direitos étnicos” e “Economia extrativa” no curso de
especialização “Políticas Governamentais, Desenvolvimento
Sustentável e Comunidades Tradicionais na Amazônia” (2006atual), tendo ainda passagem como colaborador e assessor
jurídico em diversos movimentos associativos na década de
1990 (Comissão Pastoral da Terra de Araguaia Tocantins,
Comissão de Direitos Humanos Pe. Josimo Moraes Tavares do
Bico do Papagaio, Associação em Defesa da Moradia,
Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu,
Sindicatos de entidades representativas de categorias
profissionais...). Além de ministrar disciplinas nos cursos de
direito das instituições de ensino superior mencionadas,
Shiraishi Neto participou ainda dos projetos “Identificação de
Áreas de Remanescentes de Quilombo”, em 1998,
desenvolvido pelo Mestrado em Políticas Públicas e
coordenado pela antropóloga Maristela de Paula Andrade e, no
período de 1999 a 2001, na Universidade Federal do
Maranhão e na Universidade Estadual do Maranhão integrou
como pesquisador o projeto de pesquisa “As quebradeiras de
Coco Babaçu e o Direito” e “Nova Cartografia Social da
Amazônia (PNCSA)”, coordenado pelo antropólogo Alfredo
Wagner Berno de Almeida (2005-2009). Na Universidade
Estadual da Amazônia participa dos projetos de pesquisa “A
Cultura na Construção e Defesa dos Territórios Tradicionais:
legislação e políticas públicas para a proteção dos
conhecimentos tradicionais numa sociedade pluriétnica”; “A
proteção jurídica da sociodiversidade na Amazônia brasileira e
países integrantes do Tratado de Cooperação Amazônica”; “O
pluralismo Jurídico como valor fundamental: o Estatuto das
Sociedades Indígenas”. Na Unidade de Ensino Superior Dom
Bosco, atualmente, Joaquim Shiraishi coordena o Núcleo de
Pesquisa em Direito e Diversidade e o projeto “Povos,
Comunidades Tradicionais e a Cidade de São Luís: dilemas
entre as demandas localizadas e a pretensão universal do
direito”.
159
José Heder Benatti
O prof. Dr. José Heder Benatti graduou-se em direito na
Universidade Federal do Pará em 1986, possuindo Mestrado
em Direito (1990-1995) e Doutorado em Desenvolvimento
Sustentável do Trópico Úmido (1999-2005), todos na
Universidade Federal do Pará. Atua como professor da UFPA,
ministrando cursos ("Comparative Property Law", 2005) e as
disciplinas Direitos humanos e meio ambiente, Direito
Agrário, Direito Civil V - Direito das Coisas (2004-atual),
além de atuar nos seguintes projetos de pesquisa: Direito de
Propriedade na Amazônia: estudo das políticas públicas de
regularização fundiária no Estado do Pará (2010-2012);
Propriedade comum na Amazônia:: acesso e uso dos recursos
naturais pelas populações tradicionais (2007-2010); Análise
dos instrumentos jurídicos da proteção ambiental na Amazônia
brasileira: estudo de caso Pará (2004-2006); Impacto das
Políticas Públicas sobre Manejo Comunitário de Recursos
Naturais
(2000-2002);
Regularização
fundiária em
apossamento agroextrativista na Amazônia (1995-1999), além
de cargos e funções de direção e chefia no âmbito do
Departamento/Coordenação de direito. Presidiu o Instituto de
Terras do Pará, ITERPA (2007-2010); atuou como
colaborador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia,
IPAM (2000-2006); assessor jurídico da Sociedade Paraense
de Defesa dos Direitos Humanos (1987-1995). Destaca-se
ainda a atuação como Membro da Comissão de Direito
Ambiental da IUCN, com sede em Born, Alemanha, desde
2001; Membro do Instituto o Direito por um PlanetaVerde,
desde 2001; Professor visitante da University of Florida Levin
College of Law, em 2005; Revisor do texto "The Rise of
Brazil as an Agricultural Superpower and the Dilemma over
the Amazon Rais Forest: a World Systemic, Treamill of
Production View", para "The Jounal of Environment and
Development - Graduete School of International relations and
Pacific Studies” - University of California, San Diego, EUA,
em 2006; Consultor externo do processo de avaliação de
projetos de pesquisa da UFRN, no ano de 2010.
160
Roteiro de Entrevista
1 – Origem Geográfica, Social e Familiar
a) O (a) Sr.(a) nasceu em qual município e estado?
b) O (a) Sr.(a) poderia descrever as suas origens familiares por parte paterna e materna
(atividades as quais se dedicavam seus antepassados, principais características dos
ancestrais, origem étnica, município em que habitavam, participação política, etc.)?
c) Qual a principal profissão do seu pai?
d) Qual a principal profissão da sua mãe?
e) Qual é o grau de escolarização do seu pai?
f) Qual é o grau de escolarização da sua mãe?
2 – Trajeto escolar
a) Em que tipo de escola o(a) Sr(a) cursou os seus estudos pré-universitários (pública ou
privada)?
b) Em quais instituições de ensino universitário o (a) Sr(a) estudou?
c) O (a) Sr(a) fez alguma pós graduação?
d) O (a) Sr(a) fez pós graduação em qual área? Em quais instituições?
3 – Atuação Política (passada e presente)
a) O (a) Sr(a) é filiado (a) a algum partido político?
b) O (a) Sr(a) teve algum envolvimento com entidades estudantis (na escola,
universidade etc.)?
c) O (a) Sr(a) exerceu ou exerce algum tipo de atuação em movimentos sociais? Poderia
descrever como se deu ou se dá a sua participação nesses espaços?
d) O (a) Sr(a) tem algum envolvimento com movimentos que atuam nas áreas de direitos
humanos e ambientais?
4 – Trajeto profissional
a) O (a) Sr(a) já exerceu outra profissão? Quais as profissões que o (a) Sr(a) já
desempenhou?
b) Já ocupou cargos em associações e instituições que atuou? Quais?
c) A que se deve a opção para exercer sua atual profissão?
d) Na sua profissão é comum lidar com temas relacionados a direitos humanos e direitos
ambientais? De que forma?
e) A que o (a) Sr(a) atribui o seu interesse por questões ligadas aos direitos humanos e
ambientais?
5 – Produção intelectual
a) O (a) Sr(a) tem alguma relação/vinculação com instituições de pesquisa?
b) Essas instituições têm envolvimento com a temática relativa a direitos humanos e
ambientais?
c) Quais as principais fontes de financiamento/agências de fomento das pesquisas
realizadas?
d) Possui publicações? Em que áreas?
161
6 – Povos e Comunidades Tradicionais
a) Como o (a) Sr(a) entende a categoria “povos e comunidades tradicionais”?
b) O (a) Sr (a) teve alguma participação na construção acadêmica / jurídica da categoria
“povos e comunidades tradicionais”?
c) A que grupos o (a) Sr(a) acha que se aplica esta categoria?
d) Com relação à expressão “povos e comunidades tradicionais”, como o (a) Sr(a) analisa
a abrangência de grupos a que a mesma se refere?
e) Como o (a) Sr(a) analisa a adoção, no contexto nacional, desta categoria
internacionalmente formulada?
f) Qual a relação que o (a) Sr(a) concebe entre os povos e comunidades tradicionais e o
discurso ambientalista?
g) Qual a sua opinião sobre a postura do Judiciário nas ações que envolvem os direitos
desses grupos (comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas...)?
h) Na sua opinião o ensino jurídico contempla a discussão sobre as questões relativas a
direitos desses grupos (comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas...)?
i) Existe uma correspondência entre o que o hoje e debatido academicamente sobre
direitos dos povos e comunidades tradicionais e o que é aplicado na prática jurídica
(sentenças, proposições de ações, pareceres)?

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