O método intuitivo e a Escola Nova

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O método intuitivo e a Escola Nova
O método intuitivo e a Escola Nova:
Discussões educacionais em fins do século XIX e início
do século XX
Fernanda Mendes Resende1
Rita de Cássia de Souza1
Resumo
Este trabalho tem por objetivo apresentar os resultados da pesquisa sobre a
divulgação e apropriação do método de ensino-aprendizagem denominado
Método Intuitivo, no Estado de Minas Gerais, e sua relação com o movimento
escolanovista, com ênfase nos primeiros anos da República brasileira, ou seja,
na última década do século XIX e nas décadas iniciais do século XX.
Palavras-chave: Método Intuitivo, Escola Nova, República
Abstract
The aim of this paper is to present the results of a reseach about propagation
and apropriation of teaching-apprenticeship method denominate Intuitive
Method, at Minas Gerais, Brazil, and its relation with escolanovista movement,
emphasizing the early years of Brazilian Republic, in the last decade of 19th
century and in the beginning decades of 20th century.
Key-words: Intuitive Method, Escola Nova, Brazilian Republic
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Este trabalho tem por objetivo apresentar os resultados da pesquisa sobre
a divulgação e apropriação do método de ensino-aprendizagem denominado
Método Intuitivo e sua relação com o movimento escolanovista, no Estado de
Minas Gerais, com ênfase nos primeiros anos da República brasileira, ou seja,
na última década do século XIX e nas décadas iniciais do século XX.
Funcionários da instrução pública, inspetores e professores se apropriaram
diferentemente das idéias deste método como forma de divulgação dos projetos
republicanos, na perspectiva da educação de um novo cidadão.
O período estudado representou, no Brasil, uma época de grande
efervescência política sendo a educação entendida como uma das principais
vias de divulgação das propostas republicanas, o que significou, neste campo,
investimentos, tanto políticos quanto financeiros, por parte do governo.
Ao longo do século XIX, observa-se a presença de importantes discussões
educacionais e pedagógicas na busca de uma forma de ensino que
racionalizasse o tempo escolar, disciplinasse corpos e espaços escolares,
facilitasse e organizasse a aprendizagem dos alunos. Este período assistiu a
mudanças significativas nestes aspectos: poucas escolas elementares isoladas na
Província nos primeiros anos do Império, crianças apinhadas em salas de aulas
ocupadas nas casas dos professores, parcos recursos pedagógicos. Ao final do
século XIX compreendia-se a instrução organizada em Grupos Escolares,
estando as crianças separadas por grau de adiantamento e nova metodização do
ensino, mesmo que tal estrutura não estivesse ainda generalizada para toda a
população escolar.
O Método Intuitivo, a partir do decênio de 1870, foi uma das formas
encontradas para que esta racionalização se tornasse possível através da
valorização do ensino pelo domínio das coisas: a educação dos sentidos pela
observação direta dos objetos e das coisas da natureza, o que possibilitou uma
nova relação com o conhecimento.
Para organizar a instrução em Minas Gerais nas primeiras décadas do
século XIX seria necessário, segundo os dirigentes mineiros, romper com uma
estrutura ineficaz, baseada em um método de ensino considerado ultrapassado
e dispendioso, o método individual, caracteristicamente doméstico. A instrução
pública assim organizada era considerada ineficiente, uma vez que os alunos
permaneciam na escola durante muitos anos sem, no entanto, aprender o que
era considerado necessário: ler, escrever e contar. As discussões sobre questões
metodológicas foram o fio condutor dos debates nesse momento. Seria preciso,
segundo os dirigentes mineiros, que se investisse em um método de ensino
eficaz e econômico e que, concomitantemente, proporcionasse um melhor
aproveitamento do tempo.
A partir desse momento, várias tentativas de organização do ensino
foram feitas: muito se investiu na divulgação dos métodos mútuo e simultâneo,
na busca de uma maior racionalização do ensino. Com eles, organizou-se, em
termos estruturais, a escola, a sala de aula para, depois disso, ser possível
começar a refletir sobre a questão da aprendizagem infantil.
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A partir do final do século XIX, surgiram discussões em torno da difusão
e divulgação do Método Intuitivo de ensino, um dos resultados dos
investimentos políticos feitos na instrução. A idéia básica do método, tornar a
criança o centro de sua própria aprendizagem, levando até ela os objetos da
natureza para serem observadas, estava em consonância com as idéias
difundidas pelo novo tipo de governo que regeria a nação a partir daquele
momento, a República. A educação foi percebida como difusora dos ideais
republicanos, na necessidade de formação de um novo cidadão, agente da
nação, diferente do cidadão pacato do Império.
As concepções do Método Intuitivo foram difundidas através do manual
Lições de Coisas que teve vários autores, sendo o mais utilizado o manual do
americano Norman Allisson Calkins, traduzido para o português por Rui
Barbosa. A existência de um manual acabou configurando as lições de coisas
como disciplina à parte nos programas escolares, e não como método que
permeasse todo o ensino, fato que para alguns pensadores da educação,
empobreceu a concepção do método intuitivo.
A instrução apoiada na educação dos sentidos, na intuição e na
observação das “coisas” ajudou a refletir e repensar o ensino, antes doloroso e
desprazeroso. Com o advento de novos métodos e técnicas, a progressiva
organização escolar, as discussões em torno de um método de ensinoaprendizagem começaram a se tornar relevantes entre os pensadores da
educação no sentido de buscar o prazer e a descoberta na aprendizagem e
aquisição de novos conhecimentos. Dessa maneira, a observação direta de fatos
e coisas da natureza, através da educação do olhar, do tato e dos outros
sentidos, permitiria essa relação prazerosa com o conhecimento.
O fato de o Estado assumir as questões da instrução a partir do início do
século XIX, foi uma das condições existentes para que este quadro se alterasse.
A observação de grupos de alunos desordenados mostrou a necessidade da
criação e eleição de outras formas e outros métodos de ensino, atuando, neste
âmbito, profissionais de diversas áreas. Na educação dos sentidos estaria a
perspectiva de controle de como se relacionar com o mundo das coisas –
mediatizadas pelas descobertas científicas, ou pela afirmação da ciência como
mediadora do progresso social e da nação. Para Warde:
Quais os problemas que suscitaram o interesse pela infância e a
disposição de resolver os problemas que dela se impunham? Para
Claparède, ao contrário do que se possa imaginar, não foram os problemas
da educação que induziram aos estudos da natureza e desenvolvimento da
criança. Bem ao contrário, a prática educativa se revelou desfavorável à
visão científica dos problemas que a educação suscita. Não foram mestresescolas os primeiros a se preocuparem com a infância e a lançarem as
bases da pedagogia, mas sim filósofos, fisiologistas, biologistas, lingüistas,
etnólogos, médicos, psicólogos, criminalistas... (Warde, 1997, p. 303)
Neste sentido, a educação e a instrução das crianças, futuro da nova
nação, foi incumbência de todos os tipos de profissionais, e não
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necessariamente apenas aos ligados diretamente à Pedagogia, na direção
imposta pela ciência e pela razão em detrimento às questões da fé. Souza (1998)
afirma que a escola do Império havia tomado como referência a educação
jesuítica, ou seja, o exercício da repetição e as virtudes pedagógicas da memória. O
formato do catecismo, feito de perguntas e respostas padronizadas, tornou-se um modelo
de cultura. Os professores ensinavam dessa forma porque era essa a maneira com que
eles próprios, e seus alunos, eram avaliados (Souza, 1998, p. 83-84). Junto às
reformas políticas republicanas, surgiu a necessidade da revisão deste tipo de
ensino ligado à idéia de religião, de memorização e decoração de trechos e
autores, e a imposição do ensino leigo, ligado à idéia de razão e ciência,
empirismo e observação.
Do ponto de vista da modernidade pedagógica, os significados das
inovações estiveram relacionados à produção de novos sujeitos e novos
conhecimentos, à dinâmica de uma sociedade que demandava novas relações
com o conhecimento e que deixaram de ser meramente contemplativas, porém,
relacionadas à formação de sujeitos ativos, co-responsáveis pela sua educação.
Segundo Marta Carvalho, a escola deu a ver a República, sendo um dos seus
principais signos. Na monumentalidade de seus edifícios, a escola deveria fazer ver a
República instaurada (Carvalho, 2001, p. 139).
Neste sentido, na maior parte das vezes encontra-se na historiografia
brasileira a referência aos avanços do movimento escolanovista sem se
considerarem os esforços anteriores nos anos iniciais da República.
Praticamente não há menção aos avanços ou nas tentativas e esforços por
melhorias na educação mineira no período que antecede a Escola Nova. Fez-se
tabula rasa das primeiras décadas republicanas em relação à educação, como se
todo o progresso começasse naquele momento com o movimento escolanovista.
O que observamos, comparando as fontes documentais às quais tivemos
acesso, é que a aplicação do ensino intuitivo tornava-se difícil pela falta de
materiais que facilitassem tal ensino, além da falta de preparo dos(as)
professores(as) para isso. Entretanto, é importante destacar que desde fins do
século XIX já se discutia uma nova forma de relação com o conhecimento, e os
princípios da Escola Nova. Este movimento foi considerado marco inaugural da
educação no Brasil e reafirmava alguns dos princípios do método intuitivo sem,
entretanto, quase nunca citá-lo. Veiga (2000) mostra que os precursores
escolanovistas apontavam para a inauguração de uma nova era com este
movimento no Brasil que, porém, desqualificava todas as conquistas da
educação nas quase quatro décadas republicanas anteriores.
Portanto, antes dos autores da Escola Nova anunciarem suas
preocupações com um novo método ou uma nova relação com o conhecimento
e a aprendizagem, já se faziam presentes esforços para isso na educação
brasileira, através da divulgação do método intuitivo e suas concepções, da
utilização das lições de coisas, mesmo como disciplina escolar, da criação dos
museus pedagógicos e dos Grupos Escolares, para citar apenas alguns
exemplos.
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As discussões relativas à apropriação do método intuitivo tornaram-se
possíveis por causa da possibilidade de uma nova relação com o conhecimento,
para além de uma ordenação do espaço escolar e dos saberes a serem
transmitidos no interior da escola organizados nas disciplinas escolares. Apesar
de todas as dificuldades encontradas na aplicação do novo método, pode-se
afirmar que os discursos e saberes veiculados neste período produziram
mudanças sistemáticas na prática docente e no cotidiano escolar.
Duas reformas escolares em Minas Gerais estavam sintonizadas com o
movimento escolanovista que vinha ocorrendo desde os fins do século XIX na
Europa tendo também repercussões nos Estados Unidos. As reformas
realizadas em 1925 no governo Mello Vianna tendo Sandoval de Azevedo como
Secretário do Interior e 1927 com Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e
Francisco Luís da Silva Campos distavam entre si muito mais pelos esforços e
investimentos feitos na segunda, do que em suas concepções. Foi a segunda
reforma, no entanto, que obteve maior repercussão, já que o governo mineiro
não poupou esforços em implantar mudanças no ensino público primário,
utilizando-se de vários expedientes para tal, como a criação de uma Escola de
Aperfeiçoamento de Professores, reformulações na Revista do Ensino,
contratação de educadores europeus para o ensino das professoras e realização
de inúmeros cursos que pretendiam modernizar as práticas educativas no
Estado.
A Escola Nova em Minas Gerais possuía características bem específicas e
é preciso reforçar essa necessidade de não se tomar por homogêneas práticas e
concepções educativas que, embora baseadas num mesmo movimento, tinham
bastantes divergências entre si. O próprio movimento escolanovista não pode
ser concebido como homogêneo em seus princípios. A necessidade de atentar
para essas especificidades é comentada por Clarice Nunes:
O enfoque dos modelos dominantes de escolarização (Escola Tradicional x
Escola Nova) é empobrecedor da realidade pedagógica. Seria oportuna,
portanto, sua substituição nas pesquisas de história da educação pelo
enfoque das múltiplas e diferenciadas práticas de apropriação desses
modelos nas quais a ênfase da problematização recaia sobre os diversos
usos que os agentes fazem da instituição escolar, sobre a apropriação de
práticas não escolares no espaço escolar e os múltiplos usos não escolares
dos saberes pedagógicos. (Nunes, 1996, p.221)
Entretanto, se há algo em comum entre a Escola Nova mineira,
especialmente com a Reforma de 1927, e as outras reformas que aconteceram na
década de vinte em alguns estados brasileiros era a tentativa de rompimento
com um passado, cujas praticas educacionais eram retratadas como retrógradas,
ineficazes e vexatórias. O expediente de usar a expressão “educação nova”
como uma demarcação entre um passado obscuro, inadequado e um presente
que indicava um rompimento com este passado e a criação de algo diferente,
especial, mais moderno e adequado era comum entre os propagandistas do
escolanovismo no Brasil. Marta Carvalho (2002) chama a atenção, por exemplo,
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para a forma como Fernando de Azevedo utilizava esta expressão. No início da
década de trinta, período do lançamento do Manifesto dos Pioneiros, o sentido
atribuído tinha a função de demarcar nitidamente o campo de litígio, dando à
expressão forte poder de designação das iniciativas de remodelação da escola e de
reestruturação do sistema escolar. Em um contexto de disputas, portanto, Azevedo
teria, no recurso à utilização da expressão “educação nova” a oportunidade de
reunir em campos opostos os tradicionalistas e aqueles que lutavam em prol de
mudanças, do novo. A autora ressalta que a mesma expressão usada
posteriormente, na redação de A cultura brasileira não apresentava a mesma
intenção, já que o discurso, neste momento, possuía um tom conciliatório,
deixando para trás os conflitos anteriores.
O fato é que, para se colocar como novos e modernos, os reformadores1
da educação tendiam a ocultar suas relações e heranças do passado. Cousinet,
um dos representantes do escolanovismo na Europa chega a propor que: “A
educação nova nega tudo quando os tradicionalistas afirmam, o que ela afirma mais
energicamente, os tradicionalistas declaram inadmissível. Encontramo-nos em presença
de dois sistemas irredutivelmente opostos” (Cousinet, 1930, p. 8).
Neste sentido, eram vários os artigos na Revista do Ensino que opunham
Escola Tradicional versus Escola Nova como sendo radicalmente diferentes
entre si. Vários desses artigos utilizavam a expressão “Escola Antiga ou
Tradicional” para designar o que de pior havia na educação: professores mal
preparados, práticas incoerentes e inadequadas à idade e compreensão dos
alunos, uso de castigos físicos, atividades sem sentido e utilidade para os
alunos, alunos desinteressados, imóveis, calados, sem oportunidade de se
expressar e cujo aprendizado era tido como insuficiente. Por este motivo,
identificar-se com práticas “antigas” constituía-se num risco de ser
imediatamente associado a uma série de características bastante negativas das
quais todos, em sã consciência, pretendiam se afastar.
Por outro lado, alguns grupos em Minas Gerais, por ser um Estado de
cunho tradicional, de valores conservadores e de forte influência católica,
temiam essas modernidades que poderiam colocar em risco valores importantes
como a família, a hierarquia, o dever de obediência aos mais velhos. A
liberdade preconizada pela Educação Nova parecia ameaçadora aos olhares
mais conservadores no Estado. Nem sempre as novidades eram destituídas de
perigos, sendo necessário, por este motivo, destituí-las de características
ameaçadoras à sociedade mineira.
A Psicologia, a influência pragmatista americana, a vinda de professoras,
algumas moças solteiras, outras que deixavam filhos e marido para estudar na
Escola de Aperfeiçoamento em Belo Horizonte, a temida laicização do ensino
público, bem como a ingerência do Estado na formação feminina – cuja
importância a Igreja Católica não ocultava - eram alguns dos fatores que
assombravam alguns mineiros e mineiras que temiam a Educação Nova.
Eram os católicos os que mais discutiam a importância de se valorizar as
tradições e a educação tradicional. Um exemplo disso é uma Conferência do
arcebispo Joaquim Silvério de Souza proferida na Escola de Aperfeiçoamento
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cujo título era “Deve a Escola Nova renegar a Escola Tradicional?”. Esta
conferência foi publicada em partes em alguns números do jornal O Horizonte,
um jornal católico, no ano de 1933. Obviamente, o autor recomendava, como em
outros artigos no jornal, que a adesão às práticas educativas modernas não
renunciasse às tradições que tinham também o seu valor. Uma das discussões
mais caras aos católicos era a co-educação. Nesse sentido, rejeitar esta novidade
e permanecer utilizando as classes separadas por sexo era, entre os católicos,
um reconhecimento do bom-senso dos educadores antigos que percebiam a
clara diferença entre a educação que deveria ser dada às meninas e aos
meninos. Ponto, portanto, para a Educação Tradicional.
Por outro lado, em nenhuma fonte consultada, foram encontradas
oposições ao novo em si, pelo contrário, todos eram unânimes em afirmar a
necessidade e a importância de uma renovação educacional. O que se pretendia,
especialmente entre os católicos, era destituir o novo dos seus perigos para a
manutenção da ordem e da moral. Uma vez garantidos os valores religiosos
católicos na base da educação pública mineira, as novidades eram bem-vindas e
propagadas até mesmo por seus antigos opositores.
Um exemplo claro dessa adesão ao novo é a participação do Padre
Álvaro Negromonte na implantação das reformas mineiras. Trabalhando em
prol de uma escola pública católica, o Padre visitava as escolas com freqüência,
publicava artigos em jornais, celebrava missas das formaturas na Escola Normal
e na de Aperfeiçoamento, cujos discursos eram publicados na Revista do Ensino,
e publicou um “Manual de Religião” para ser utilizado nas escolas públicas
primárias em Minas Gerais. O autor enfatizava que o ensino do catecismo
deveria se dar a partir dos preceitos renovados da educação: era preciso
despertar o interesse dos alunos para o aprendizado de religião, tornar as lições
ativas e adequadas ao nível de compreensão infantil, realizar excursões para o
ensino desta disciplina, como visitas às Igrejas, incluir as atividades religiosas
nos auditórios, enfim, adaptar as modernas práticas educacionais para o ensino
religioso. Tal iniciativa revela, portanto, que a rejeição aos princípios novos da
educação não era total e que somente os aspectos que contradissessem os
valores católicos precisavam ser expurgados para que o novo se tornasse uma
meta, inclusive da própria educação católica1.
Se a adesão ao novo era um princípio caro aos reformadores, tem-se
como corolário a esquiva em se valorizar as práticas tradicionais. Embora a
Escola Nova deva muito aos seus antepassados, não é esse o discurso que a
sustenta. Saviani salienta: Ora, no entanto, essa crença que a Escola Nova propaga é
uma crença totalmente falsa. Com efeito, o chamado ensino tradicional não é précientífico e muito menos medieval. (1985; p.47). Segundo o autor, a Pedagogia
Tradicional estaria baseada em Johann Friedrich Herbart que havia consolidado
a Pedagogia enquanto uma ciência. Além disso, para o autor, a Escola Nova
teria democratizado o acesso à escola pública, mas dificultado o acesso ao
conhecimento, que se daria de forma mais efetiva pelos métodos tradicionais. A
Escola Nova, segundo suas análises, só seria eficiente com um custo
extremamente elevado que o governo nunca se dispôs a efetivar.
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Talvez por toda a crítica ao ensino tradicional, o método intuitivo
aparece na Reforma de 1927, mas sem receber esta denominação. A Reforma
implantava a disciplina “Noções de coisas” em todos os anos do curso primário
e Francisco Campos lhe dedica 74 páginas das 268 do Programa do ensino
primário. Campos afirmava que as “Noções de Coisas” eram uma adaptação do
método Decroly e ele assim justificava a sua introdução no ensino primário:
Pareceu-nos útil introduzir nos programmas dos grupos escolares, ainda
que a título de ensaio, a applicação do methodo Decroly ao ensino
primário. Até então tem constituído uma séria difficuldade, ainda não
satisfactoriamente removida, a organização de um programma de “noções
de coisas” e o ensino destas noções de maneira a não constituírem uma
congerie de factos sem ligações recíprocas e, particularmente, sem relação
com a personalidade e os interesses da creança. (Programa do Ensino
Primário, 1927, p. 1135)
As Noções de Coisas eram, portanto, detalhadamente apresentadas e
tinham por objetivo tornar a criança ativa no processo de aprendizagem. Tal
aprendizagem deveria-se fazer a partir de três operações básicas: a observação,
a associação de idéias e a expressão. A observação seria o momento de se
apresentar à criança um fato ou objeto, despertando-lhe a curiosidade. O
segundo momento, associação de idéias, seria o de generalização, em que a
criança deveria associar todos os fatos ou objetos conhecidos ao que lhe foi
anteriormente apresentado. No terceiro momento, a expressão, o desenho da
criança acerca do que lhe foi apresentado auxiliaria a fixar a lição e ainda
revelaria as dificuldades de aprendizagem sobre o objeto, as quais o professor
deveria, então, sanar.
O programa de ensino definia como as lições básicas para o 1o ano: a
escola, a alimentação, o vestuário, a rua e a casa. Estas lições deveriam estar
centradas no “dia da criança”, ou seja, na sua atividade cotidiana e se
desdobrariam em outras dentro da mesma categoria. Para o segundo ano eram
as seguintes as lições principais, centradas por sua vez, no tema “A luta contra
as intempéries”: criança, animais, plantas, seres inanimados e astros. No
terceiro ano, o tema em torno do qual as lições se apresentavam era a “Defesa
contra os inimigos e os perigos” que se dividiam nas lições: criança, animais,
plantas, seres inanimados e o sol. No último ano do curso primário era o
“trabalho solidário” que demarcaria as lições: criança, animais, vegetais,
inanimados, sociedade e trabalho. Este esquema minucioso não parecia ainda
ser suficiente. O Programa trazia, em detalhes, sugestões para o preparo de
lições de coisas para todas essas lições básicas. As recomendações eram as mais
variadas, começando sempre pela apresentação de um objeto às crianças ou um
desenho que desencadeava os trabalhos posteriores. As formas de expressão
não se limitavam ao desenho, mas eram feitas também através de cartonagens,
modelagens ou trabalhos manuais espontâneos sugeridos para o quarto ano.
As fontes consultadas, entretanto, não mostram como as professoras
trabalhavam com as “Noções de Coisas” no curso primário. Um Termo de
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Visitas de maio de 1932, deixado pela Assistente Técnica Zembla Soares de Sá
no livro de registros do Grupo Escolar Mariano de Abreu, recomendava à
diretora que fizesse com que as professoras utilizassem materiais necessários às
disciplinas, para que o ensino se tornasse verdadeiramente intuitivo e concreto
e para que as aulas se tornassem ativas e interessantes.
No entanto, as referências ao Método parecem desaparecer nessas
primeiras décadas do século XX. Não que tivessem sido substituídas ou que
perdessem a importância nas novas reformas. Pelo contrário, o que nos parece é
que, diante da necessidade de métodos e propostas novas, o método intuitivo
foi sendo apropriado1 pelo escolanovismo que renegava as suas origens. É
curioso que as Reformas da década de vinte que pretendiam tornar o ensino
ativo e colocar o aluno no centro do processo de ensino aprendizagem em todas
as disciplinas do Programa escolar repetisse o mesmo que havia ocorrido no
final do século XIX. O encarceramento do Método Intuitivo numa disciplina
escolar contrariava o princípio de uma educação pelos sentidos para todos os
conhecimentos escolares. Esta adaptação do Método em uma disciplina
mostrava uma apropriação distorcida do objetivo inicial do método. Segundo
Chartier (1990) a apropriação permite que sejam dados novos significados às
concepções originais:
Rompendo com a antiga idéia que dotava os textos e as obras de um
sentido intrínseco, absoluto, único – o qual a crítica tinha a obrigação de
identificar-, dirige-se às práticas que, pluralmente, contraditoriamente,
dão significado ao mundo. Daí a caracterização das práticas discursivas
como produtoras de ordenamento, de afirmação de distâncias, de divisões;
daí o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas
diferenciadas de interpretação. (1990, p.27)
Estas interpretações, portanto, fizeram com que o Método Intuitivo em
Minas Gerais deixasse de ser compreendido como um método universal de
ensino para se limitar a uma disciplina específica: Lições de Coisas ou Noções
de Coisas. Posteriormente, a necessidade de romper todos os vínculos com as
tradições e o passado educacional faria com que as reformas educacionais
deliberadamente ocultassem suas raízes mais antigas, reafirmando os novos
processos e práticas sobre um passado recoberto e negado. O Método Intuitivo,
por sua vez, era novamente apropriado como uma disciplina, mesmo que a
título de experiência, e constitui ainda uma incógnita a sua apropriação pelos
professores em sala de aula. Pelo que podemos deduzir da observação de
Zembla Soares de Sá, após cerca de 60 anos de introdução do Método Intuitivo
no Estado ainda não era de uso comum nem mesmo das professoras de um
Grupo Escolar na Capital. Demarcar os usos e apropriações no cotidiano escolar
é um projeto para outra pesquisa.
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Horizonte: Imprensa Oficial, 1928.
Livro para registro de Termo de visitas iniciado em 1932 encontrado no Grupo
Escolar Mariano de Abreu.
DEVE A Escola Nova renegar a Escola Tradicional?– (Conferência do exmo. D.
Joaquim Silvério de Souza proferida na Escola de Aperfeiçoamento) –
Continuação do n. anterior. O Horizonte, 3 set. 1933, p.3 [não há o n. anterior na
Hemeroteca]
DEVE A Escola Nova renegar a Escola Tradicional?– (Conferência do exmo. D.
Joaquim Silvério de Souza proferida na Escola de Aperfeiçoamento) – O
Horizonte, 7 set. 1933, p.3
DEVE A Escola Nova renegar a Escola Tradicional?– (Conferência do exmo. D.
Joaquim Silvério de Souza proferida na Escola de Aperfeiçoamento) –
Conclusão. O Horizonte, 10 set. 1933, p.2.
ORAÇÃO às novas professoras. Proferida pelo Revmo. Pe. Alvaro Negromonte,
na missa de conclusão do curso. O Horizonte, 24 dez. 1933, p.3-5
CURSO de Aperfeiçoamento para religiosas. O horizonte. Belo Horizonte, 22
nov.1934, ano XII, n.1.163, p.1.
OLIVEIRA, Mons. J.R. Da Coeducação. O horizonte. Belo Horizonte, 25 nov.1934,
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